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com = non if Ayo ULHERES QuE Peveecoi ane 3.9 DUDA PoRro 0 _h ARYANE CARARO Cara leitora, caro leitor, Certamente, voré jf ouviu falar de pessoas incriveis que superam grandes dificuldades, pessoas que lutam pelo que acreditam, que nao tém medo de mu- dar as coisas, transformando um simples ato em algo extraordinario, palavras em um discurso grandioso, Vocé conhece alguém assim? Alguém que tenha mudado sua propria histéria ou a do lugar onde vive? Extmondindrias: Mulleres que revolucionaram o Brasil traz & luz a historia de mu Theres que, com forca ¢ coragem. enfrentaram desafios para alcancar seus ideais de igualdade de género, acesso & educagao, condigoes de trabalho, entre outros. Percorrer estas paginas o far descobrir heroinas de came € 0380, cujas agdes tiveram impacto na historia do Brasil, indiretamente, na de cada um de ns, ‘mas que raramente aparecem nos livros. Voce vai encontrar aqui o perfil de mulheres, do passado ¢ da atualidade, que exerceram sua cidadania, a fim de propor um convivie mais democratico entre todos, homens ¢ mulheres. Assim, este livro se destina tanto as meninas quanto aos meninos, de todas as idades. Porque a igualdade € © respeito que das damam, desde 0 passado, nijo se constroem apenas pelo desejo de uma s6 pessoa, mas pelo empenho de todos nds, Boa leitural FPN Rericion em Revencense DUDA Peat DE S°uZA ARYANE CARARO ADRIANA KOMURA © BARBARA MALAGOLI © BRUNA ASSIS BRASIL © HELENA CINTRA REROONE Copyright do texto © 2017 by Duda Porto de Souza ¢ Aryane Cararo Copyright das ilustragdes © 2017 by varias ilustradoras A ilustragéo da princesa Isabel foi baseadla na fotografia de autoria le Pacheco & Filho (¢. 1887), do acervo do Museu Imperial/Ibram/ MinC/n® 14/2017. A ilustragio de Graziela Maciel Barroso foi baseada na fotografia (cédigo smex.cnin.icon.ttom.4) do Arquivo Graziela Maciel Barroso, do acervo do Jardim Boténico do Rio de Janeiro sclo Seguinte pertence a Editora Schwarcz .a Grafia atualizada segundo 0 Aamo Ortognifio da Lingua Portuguesa de 1990, que entrou: em vigor no Brasil em 2009, cara £ pRojer0 GeAcico Tamires Oliveira cuncacem Erico Melo rRePaRacio Ligla Azevedo kevisto Carmen TS. Costa e Adriana Moreira Pedro Dads tlernacionais de Ca Ageia Hacqaa Souza, Duda Porto de Exlruordinarias: mulheres que revolucionaram 0 Brasil / Duda Porta de Souza, Aryane Cararo ; lust ches de Adriana Komura, Barbara Malagol, Bruna Assis Brasil Helena Cintra Joana Lia, Laura Alheyde Lole Versdiana Searpelh, Yara Kono. ~ 3d, ~ Sho Paula Sequinte, 208 ogacto na Publicacto lem) Isa 978-85-550-51541 1. Mulheres~Biografia 2. Malheres ~ Brasil 5. Mulheres ~ Hisléra 1. Carara, Aryane u. Titulo Komura Adsiana 1 Malagli, Réebarav. Bras, Bruna Assis vi Cintra Helena vu. Lira, Joana vs. Athayde, Laure 1 Lole x Scarpell, Veridiana x, Kono, Yara 1-071 970.7206 indice para cailogp sstemitico 1 Bras =Mulheres Biograia 920720981 (2018) Todos os direitos desta edigao reservados & EDITORA SCHWARCZ S.A Rua Bandcira Paulista, 702, cj. 32 EA /editoraseguinte (04552-002 - Sao Paulo - sr W G@editoraseguinte Telefone: (11) 3707-3500 B Editora Seguinte £S editoraseguinte editoraseguinteoficial wvewseguinte.combr contato@ seguinte-com br Para Nina Carano Schulze todas as brasiteiras 2 16 0 “ 26 32 36 0 ae 56 60 4 oo n 76 0 u a8 2 96 100 104 178 184 190 Sumario ene Madalena Coramuru Dandara Barbara de Alencar Hipslita Jacinta Teixeira de Melo Maria Quitéria Maria Felipa de Oliveira Nisia Floresta Ana Néri Anita Garibaldi Maria Firmina dos Reis, Princesa Isabel Chiquinha Gonzaga Georgina de Albuquerque Nair de Tefé Anita Malfatti Bertha Lutz Antonieta de Barros Carmen Portinho Lauddlina de Campos Melo Nise da Silveira Pagu ‘Ada Rogato Graziela Maciel Barroso Carolina Maria de Jesus Linhat do tempo Glossitrio Referéncias 108 u2 6 120 12 128 1 136 0 a6 148 182 156 160 164 168 173 i 1s 176 7 201 203 204 Maria Lenk Dorina Nowill Cacilda Becker Dona Ivone Lara Zuan Angel Josefa Paulino da Silva Nitde Guidon Zilda Arns Margarida Maria Alves Leila Diniz, Dinalva Oliveira Teixeira Marinalva Dantas Indianara Siqueira Sénia Guajajara Djamila Ribeiro Marta Vieira Abrasileiradas Felipa de Souza Olga Benario Prestes Carmen Miranda Lina Bo Bardi Dorothy Siang Agradecimentos Sobre as autoras Sobre as ilustradoras Apresentacao Cada mulher tem sua parte heroina. Enfrentar os preconceitos que mes- ‘mo no século s6xr S40 tdo presentes em nossa sociedade, dando conta também de tantos papéis e exigéncias, é, sem diivida, prova de forga. Prova. Essa palavra que nasce conosco € nunca nos abandona, Parece que temos de provar tudo a todos a todo momento, embora a gente saiba muito bem que ninguém nunca deveria ter de provar nada para garantir dircitos iguais ¢ respcito. ‘Mas quem seria sua heroina? Nao vale falar da Mulher-Maravilha, Jean Grey, Mulan, Katniss Everdeen, Beatrix Kiddo ou Trinity. Queremos, saber quem € sua herofna de verdade, de came e oss0, aquela que voce admira, cuja histéria conhece, com quem se identifica, Joana e'Arc? Frida Kahlo? Marie Curie? Cleopatra? E facil citar estrangeiras, mas onde ficam as brasileiras nessa lista? Sua inspiragdo € uma de nés? [Na tereeira onda do feminismo ~ ou quarta ou pésferninismo, por que 86 0 tempo dird como ficardio conhecidos os dias atuais -, ainda parece dificil citar nossas guerreiras de ontem € de hoje, aquelas que. como nds, nasceram no Brasil ou decidiram viver aqui. E € por isso que escrevemos este livro, Se varias gerades crescem sem saber quem so as mulheres que fizeram, nossa histéria, que lugar no pais ¢ no mundo somos preparadas para cocupar? £ urgente falar, conhecer ilustrare dar espago para essas brasiciras «que deixaram sua marca ¢ se tornaram um divisor de dguas em suas dreas. Em nossa pesquisa, nos surpreendemos com a quantidade de narra~ tivas que gostariamos de contar Para cada figura escolhida, outras tan= tas surgiam. Entre elas, contemplamos também as mulheres que ndo ‘hasceram aqui, mas que marcaram a hist6ria do pats. Como critério, optamos por celebrar as diferentes areas de atuagao = da arte aos direitos humanos, das revolugdes & medicina, da luta con- tra a escraviddo do passado ¢ de agora a ciéncia. Pioneiras, ousadas, guerreiras, rebeldes, curiosas, valentes ~ nenhuma delas se limitou ao papel que lhes foi atribuido socialmente. Sao todas mulheres a frente do sscu tempo, que foram além. As que aparecem aqui, no entanto, ndo so mais importantes que todas as outras, incluindo voot (importincia ¢ um conceito muito amplo, subjetivo ¢ controverso). 4 lista ¢ infinita, de modo que este trabalho nao acaba aqui, mas as mulheres escolhidas so aquelas que consideramos que todo mundo deveria conhecer 6 quanto antes. Talvez voc® jé tenha cruzado com alguns desses nomes. Anita Gari~ baldi ¢ Chiquinha Gonzaga foram retratadas em séries de tv. Zuzu Angel ganhou filme. Marta Vieira continua brilhando no futebol. Dona Ivone Lara ajuciou a compor nossa identidade cultural através do sam= bba, Mas muitas outras esto sendo apagadas da nossa meméria com 0 tempo e a escassez de registros. F 0 caso de Maria Firmina dos Reis e ‘Maria Felipa de Oliveira, Em alguns casos nao discernimos com clareza © mito da verdade, como acontece com Madalena Caramuru, Dandara © Dina, Algumas nunca foram muito conhecidas, mas deveriam, como Margarida Maria Alves, Laudelina de Campos Melo © Ada Rogato. De outtas, como Pagu, s6 conhecemos uma faceta, ignorando quao mara~ vilhosas foram em sua totalicade. Jé as contempordneas nossas, como Nigde Guidon ¢ Marinalva Dantas, estio af lutando enquanto seguimos nossa vida, talvez sem nos dar conta de sua relevancia, E hé aquelas, como Indianara Siqueira, que transformaram as questoes de género, fazendo-nos lembrar de que somos todos humanos. Ao final de tantos esforcos, 0 que se sobressai nas trajetSrias aqui reunidas é a forca dessas mulheres para comunicar e promover mudangas para toda a sociedade. Esta compilacio ¢ to plural quanto as regides do pals, como ndo poderia deixar de ser. Da militincia social de Barbara de Alencar no sertéo pernambucano a criagao da fundagao Dorina Nowill em S80 Paulo, que serviu de modelo para o resto do mundo; de Leila Diniz, exibindo a barriga de gravida nas areias de Ipanema a Sénia Guajajara liderando 0 movimento indigena na Amazénia; ou ainda Margarida ‘Maria Alves, que deu a vida em defesa da populagio camponesa no Brejo Paraibano. As ricas influtncias geogréticas e culturais do Brasil si pilares fundamentais para compreendermos tantas agitacdes. Ao reunir estas histérias de vida, pudemos entender um pouco da ;nossa propria historia, do que nos fez chegar até aqui, do que jé con quistaram para nds la atras. E do que ainda temos de enfrentar, pois as conquistas, as vezes, sdo fios frégeis de uma costura complexa ¢ traba~ Thosa que ndo se condui de uma hora para outra. Colocando essas mulheres lado a lado, percebemos 0 quanto suas vidas se entrelagam no, tempo, no espirito ou nas conviegdes, como séculos de histéria sepa~ ram as mesmas rcivindicagdes. Entendemos como cada uma foi vitima c embaixadora de sua época. Para seguir carreira, muitas tiveram de abdicar do casamento, para ndo serem proibidas de trabalhar pelos w maridos. Outras foram julgadas por defender © prazer feminino ou acreditar que a maternidade nao era uma regra. Muitas pagaram com a liberdade ou com a vida por levantar a voz. Em pleno século xx1, 0 Brasil ainda esté entre um dos paises mais violentos para as mulheres. Ha aqui feministas de diferentes épocas, cada qual com suas proprias lutas ¢ reivindicagoes, ainda que no tenham sido militantes. Mulheres que lutaram pelo dircito ao voto ¢ participagao politica. Mulheres que quebraram tabus em relagio a sexualidade e brigaram pelos direitos reprodutivos ¢ pela conquista do mercado de trabalho. E mulheres que lutam ainda hoje pela pluralidade ferminina, em uma redefinigio do género que respeita as diferencas entre classes, cores, etnias, lovalidades: ce escolhas sexuais. Ou seja, reunimos aqui brasileiras que das mais va- riadas formas, se posicionaram contra a discriminagéo da mulher Precisamos falar sobre elas, porque Ihes devemos muito. Este livro foi criado para ser lido por mulheres ¢ homens, jovens, adultos ¢ idoses, econtado para as criangas. Porque transmitindo essas historias podemos: fazer deste um mundo mais igualirio, justo e melhor, Para todas e todos, Este trabalho ndo acaba aqui NOTA DA EDICAO ‘Ao longo do texto, vocé vai encontrar termos grifados. Todas eles contam com ‘uma explicagao no nosso glossario (p. 184). Boa leitural Madalena Caramuru A participacdo feminina no Brasil Colonia (1500-1822) se restringiu, em parte, & procriacio, aos trabalhos domésticos, ao canto e as oracdes. Nesse contexto, a alfabetizacao das mulheres seria fundamental para ampliara atuacdo feminina na sociedade e mudar ahistéria do pais, como mostrou a pioneira Madalena Caramuru Madalena era uma das filhas do naufrago portugues Diogo Alvares Correia, mais conhecido como Caramuru, ¢ da india fupitambé Para guagu, que adotou o nome cristo de Catarina do Brasil. A familia mo- rava no povoado de Salvador, na Bahia. Em 1554, ela se casou com Afonso Rodrigues, nascido em Obidos, Portugal, que foi quem a alfabe- tizou. De acordo com Varnhagen, um dos poucos historiadores que documentou a vida da moga ~ ¢ que portanto nos garante que cla de fato existiul ~, 0 casamento dos dois foi registrado na igreja de Nossa Senhora da Vitéria, uma das primeiras de Salvador, Depois de instrufda, Madalena se manifestou em defesa do pove diante dos portugueses. Em 26 de marco de 1561, dla escreveu uma carta para o padre Manuel da Nobrega. chefe da primeira missdo jesul- tica enviada ao Brasil, em 1549. No documento, cla cxigia o fim dos ‘maus-Hratos as criangas indigenas e o inicio da educagao feminina, ofe~ recendo uma ajuda financeira para que isso acontecesse. O padre, a0 conirério da maioria dos homens brancos, tentou integrar 0 povo colo~ nizado. Ele acatou suas ideias, recorrendo a rainha de Portugal, d. Cata~ rina, para conseguir a autorizecio necesséria para colocé-las em pritica Ele também alegou que a presenca feminina nos cursos de catecismo era muito maior, de modo que elas poderiam aprender a ler ¢ escrever: A Corte portuguesa, no entanto, julgou a iniciativa petigosa, vetando © pedido. Com essa correspondéncia, que se perdeu com 0 tempo, Ma~ dalena ndo se tornou apenas a primeira mulher a interprelar € usar © Céxligo linguistico na histéria do pais, como também a primeira a usé-lo para lutar pela ampliagao da educagao. Em 2001, os Correios emitiram tum selo para homenagear o ativismo de Macalena Caramuru, cuja arte foi criada por Ricardo Cristofaro. Foi apenas em meados do século xvi que as meninas passaram a frequentar as escolas brasileiras, mas com muitas restrigdes. Mais tarde, R Aprimeira brasileira alfabetizada + Primeira metade do século XV, Bahia + [locale data desconhecidos) = Mlustragao de Joana ira “L...] oindigena que via na mulher uma companheira nao via razao para as diferencas de oportunidades educacionais. Nao viam 0 perigo que pudesse representar o fato de suas mulheres aprenderem a lere a escrever, como os brancos os preveniam. Condenar ao analfabetismo e a ignorancia ‘0 sexo feminino Thes parecia uma ideia absurda.”" ‘rida Inés Miranda Ribeiro, em Aeducagdo das mulheres na Colénia EDUCACAO INDIGENA: DA CATEQUIZACAO AO RESPEITO ETNICO + De 15491757, aeducacao dos Indios era de responsabilidade dos missiondrios catélicos, principalmente jesuitas + An6s a expulséo dos jesuitas das terras sob dominio portugues, em 1759, 0 Marqués de Pombal elaborou uma reforma no ensino, Ele instituiu o Ditetério ‘dos indios, que proibiu o uso de outra lingua que nao o portugués e criou esco- Jas separadas para meninos e meninas. Além da doutrna cist, elas deveriam aprender ler, escrever, far, fazer renda e costura. 0 diretério foi revogado em 1798, muito por conta dos abusos contra a popula~ io indigena. Apesar disso, varias provincia continuaram a adotd-lo até 184. Em 1845, fo institufdo o Regulamento das MissOes, que trouxe novamente 05 mmissiondrios ao Brasil eos incumbiu da educagSo indigena, que incluta o cate- ‘cismo, mas ndo com a autonomia de antes. Com acriagdo do Serviga de Protecdo.aos Indios e Localizacao cle Trabalhadores Nacionais, em 1910 (posteriormente chamado sé de Servigo de Proteco aos {ndios ~ SPI), e politica deintegra¢ao nacional, a educa¢do passou aservista ‘como forma de “ciilizat” os indigenas e preparé-Ios para serem “trabalhado- res". Assim, eram ensinados, além de portugués, matemdtica bésica para o comércio, nagBes de agricultura, pecudriae indstra, No havia preocupagéo ‘em manter as diferencas entre as vérias etnias, Acusacio de exterminio cultural das populacBes indigenas,o Brasil substituiu 0 SPI pela FundagSo Nacional do Indio (Funai) em 1967. Aentidade manteve a educag3o voltada para a inser¢So do indo na sociedad, mas reconheceu a importSncia da ‘educacdo bilingue. Entretanto, ouso das linguas natvas era visto apenas como uma forma de transicao para o aprencizado do portugués da “identidade nacional”. Em 1991, o MEC passou cudar do ensino incigena e inseriu a sociedad civil, in- ‘luindo representantes desses povos, ras decisbes sobre as dietrizes escolares. Desde entdo, as polticas educacionais procuraram respeitar a interculturalidade, a ‘educacdobilingue, diferenciada eespectfica, de acordo comos costumese tradicies| decadaetnia, como prevé a Corstituiglo de 1988, um marco na educacdoindigens. + Em 2016, havia 3115 escolas indfgenas no pais e 233 mil alunos matriculados, segundo 0 Censo Escolar da EducacSo Bésica 2016, “ “O Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indigenas (RCNEI), institufdo em 1998, orienta as praticas pedagdgicas. A alfabetizacao das criancas falantes da Vingua materna nativa é feita por professores indigenas bilingues que tém o grande desafio de educar as criancas também em portugués até o terceiro ano, e com isso garantir a valorizacdo das tradigdes culturais da etnia.” Rosely Fialho de Carvalho, mestre em EducagSo Escolar Indigena com a Lei Geral de 1827, foi autorizada a abertura de escolas publicas femininas, garantindo apenas os estudos primétios Ao longo do século xx, houve uma reversio do hiato de género. As mulheres foram as principais beneficiadas pela universalizacdo do ensi- no, ultrapassando, em muitos cursos, 0 ntimero de homens em sala de aula ¢ tirando notas melhores que eles. A histéria da alfabetizacao no Brasil é contada por mulheres como Madalena Caramuru, que colocaram em pritica o verdadeiro poder de ter pena, lépis ou caneta em maos. Garantir esse dircito a todos continua sendo a maneira mais efetiva de conquistar um futuro melhor EDUCAR PARA LUTAR Oinvestimento na educacSo fo fundamental para a luta pela emancipacio das mulheres, Nisia Floresta (p. 36) foi a primeira por aqui a dar voz ao feminismo com seu Tivro Direitos das mulheres e injustica dos homens, de 1832. Em 1892, outro passo importante foi dado: a mineira Prsciliana Duarte de Al- ‘meida (1867-1944) fundou a icdnica A Mensageira: Revista Literaria Dedicada d Mulher Brazileira. A publicagao contou com diversas colaboradoras, que finalmente ganharam espaco para desenvolver suas produedes literérias. Elas abordaram o preconceito, o renasclimento das letras, a poesia, aeducagaoe tantos outros temas progressistas sob a dtica feminina, A publicacSo circulou até 1900, e hoje é parte ddoacerva daBiblioteca Nacional. Priciliana fez contribuigdes valiosasparaa literatura, principalmente ‘no segmento infantil, e foi uma das fundadoras da Academia Paulista de Letras. Dandara Uma guerreira negra que aprendeu a fabricar espadas e a lutar com A lider de Palmares elas; uma capoeirista forte e corajosa que planejava acdes de comba- te e liderava seus companheiros na luta pela liberdade—assimsobre- + [Locale data desconhecidos] vive em relatos e lendas populares a historia de Dandara, rainha do + 6/2/169, Unido das Palmares (AL) Quilombo dos Palmares e companheira de Zumbi. Nao se sabe a0 cer- to onde ela nasceu e como chegou ao maiore mais duradouro quilom= + lstragio de ole bo implantado nas Américas. Independente da falta de registros oficiais, de sua existéncia, uma coisa é certa: quando se fala em Dandara, se coloca em questao o siléncio e o apagamento imposto as mulheres negras no Brasil Dandara viveu na regido da serra da Barriga, atualmente pertencente a0 ‘municipio de Uniao dos Palmares (AL), All assumiu a missdo de proteger © Quilombo dos Palmares, fundado por volta do final do século xvt por escravos que haviam fugido dos engenhos de acticar nas redondezas. Segundo as narrativas, ela nao se contentava apenas com a resistencia a0 regime colonial portugués ¢ aos ataques holandeses, propondo es- tratégias para ampliar 0 poder de Palmares e extinguir o trabalho escra~ vo nas fazendas, CONHECENDO AS TERRAS DE ZUMBI E DANDARA 0 Quilombo dos Palmares foi, entre 1597 e 1695, o maior centro de resisténcia negra 8 escravidao no Brasil. £m seu auge, teve entre 30 mil e SO mil habitantes, espalhados nas dezenas de aldeias ‘que o formavam. 0 local onde ficava, no alto da serra da Barriga, foi tombado nos anos 1980 pelo Instituto do Patriménio Historica e Artistico Nacional (Iphan). A partir de 2007, passou a abrigar 0 Parque Memorial Quilombo dos Palmares, que reconstitut aspectos importantes do cotidiano dos quilombolas. As construcdes so feitas de pau a pique e cobertas de palha, ineluindo o Onjé de Farinha, onde se produzia e torrava a farinha de mandioca usando praticas indigenas, e 0 Oxile das Ervas, onde se utilizavam plantas e raizes com propriedades medicinais para rituais e oferendas. Outro espaco importante é o Onjé Cruzambé, dedicado a pratica de religides de matriz africana. Em 2017, a serra da Barriga recebeu o titulo de Patrimdnio Cultural do Mercosul, em votacéo unnime realizada em Buenos Aires. 16 Quando em 1678 0 primeiro grande lider da comunidade, Ganga Zumba, tio de Zumbi, assinou um acordo de paz com o governo da entao provincia de Pernambuco, Dandara se posicionou fortemente contra, O documento garantiaa liberdade dos palmarinos e permitia que realizassem comeércio, mas os obrigava a entregar qualquer escravo que aparecesse ali em busca de abrigo. Diversas fontes dizem que a influén Gia da companheita foi fundamental para 0 rompimento de Zumbi com © tio e sua ascensdo a lideranga do quilombo. Ganga Zumba teria pa gado com a vida por esse tratado de “paz’ tendo sido assassinado por quilombolas contrérios ao acordo com os portugueses. A tradigao ral, reforcada por alguns historiadores, conta que Dan- dara teria morrido no dia em que as forcas militares derrotaram a tiltima aldcia de Palmares, 6 de fevereiro de 1694. Scus trés filhos com Zumbi ~ Hamédio, Aristogiton ¢ Motumbo - teriam sido mortos em combate, ela teria se jogado de um penhasco para nao ser capturada. Zumbi conseguiu fugir com um grupo pequeno para tentar reconstruir Palmares. PELA CONSCIENTIZACAO SOBRE A MULHER NEGRA Desde 2011, 0 Brasil celebra 0 Dia Nacional de Zumbi e da Consciéncia Negra em 20 de novembro. E uma referéncia a data em que o lider dos Palmares foi morto, em 1695, quando tentava reunir forcas. para retomar o movimento derrotado, Para resgatar a histéria da participagdo feminina na luta contra aescraviddo, a Assembleia do Rio de Janeiro aprovou em 2016 ainclusdo no calendrio estadual ficial do Dia de Dandara eda Consciéncia da Mulher Negra, comemorado em 6 de feverero. A trajet6ria de Dandara em Palmares ¢ reiratada em detalhes no livro As lendas de Dandara, da escritora cearense Jarid Arraes. Mesclando pes quisa historiogratica, ficedo e memria popular, ela narra como a guer~ reira conseguiu desempenhar papéis geralmente destinados aos homens, arriscando-se em missdes de resgate de escravos em fazendas ¢ em um, porto de navios negreiros. Para Jarid, o racismo ¢ 0 machismo da socie~ dade fazem com que heroinas como Dandara sejam quase completa~ mente apagadas da historia brasileira. Como conta na introdugao do livro, ela s6 conheceu sua histéria quando comegou a militar como fe~ minista negra. Em uma entrevista ao Disrio de Pernambuco, publicada em 2015, Jarid criticou a escassez de narrativas desse tipo na midia e nas escolas, ¢ explicou sua decisao de publicar o livro: 18 Deciti escrever sobre Dandara quando publiquei um texto falando dela [..], em novembro de 2014, e recebi comentarios que afirmavam que ela nao era nada além de uma lencia, Pensei: se ela é uma lenda, ento preciso escrever e558 lendas, pois nem isso temos a seu respeito. Assim, as varias facetas de Dandara continuam vivas. Sua forca re- verbera entre as novas geracd das mulheres negras no Brasil , ligada & histéria da digspora africana ¢ ~O-OSaiba mais Ahistériade Dandara, Zumbi e Ganga Zumba é contada no filme Quilombo (1984), dodiretor Cacé Diegues. Os personagens historicossdo representados pelos ato- res Zexé Motta, Ant6nio Pompéo e Tony Tornado, respectivamente. A producdo oi indicada 3 Palma de Ourono Festival de Cannes de 1964. Naliteratura, o professor Newton Rocha recriaa queda de Palmares no conto ramanceado Dandara, arainha guerreira de Palmares (2015). Barbara de Alencar Ahist6ria da matriarca da familia Alencar, que liderou importantes mo- Uma lider politica vimentos politicos e sociais, é pouco conhecida mesmo no seu estado natal, Pernambuco. Avs 57 anos, jé viva, ela se tornou umadas primei- 11/2/1760, bu (PE) ras prisioneiras politicas da histdria do Brasil, ao lutar contra o dominio 28/8/1832, Froneiras (P)) da Corea portuguesa. Mas essa ndo foi sua unica batalha, Agds a Inde~ pendéncia do pafs, continuou contestando 0 autoritarismo, opondo-se » iustragdo de Veridiana Scape as politicas centralizadoras da primeira Constituiggo do Império. Em uma época em que a inteligéncia da mulher era comparada a lou- cura © qualquer participacao feminina na politica era um escandalo, como ressaltou 0 socidlogo José Alfredo Montenegro, Barbara deixou seu nome na histéiria e gravado no Livro dos Herdis e Herofnas da Pi- tria, Influenciados pelas agdes, pelas opinides e pelo espirito contestador dda mae, seus filhos também se tornaram importantes figuras na luta por ideais de lberdade e igualdade. O LIVRO DOS HEROIS E HEROINAS DA PATRIA Vocéjé ouvi falar no Livro de Ago? Ele € lteralmente composto de péiginas de aco e esté guardado no Pantedo da Patria e da Liberdade Tancredo Neves, na praca dos Trés Poderes em Brasflia, Além de ‘documentar as figuras que protagonizaram momentos importantes da histéria do Brasil e ajudaram a construire fortalecera identidade nacional, também homenageia os Soldados da Borracha, cujosnomes io sao identificados. Eles foram osseringueiros recrutados para trabalhar na coletade tex durantea Segunda Guerra Mundial para enviar aos Estados Unidos, ajudandonas esforcos de combate aonazismo, Para que um nome seja incluido no Livro, 0 Senado e a Camara dos Deputados precisam aprovar uma lei, Menos de 10% dos nomes que fiquram nele s30 de mulheres. Entre as hero‘nas homenageadas esto aenfermeira Ana Néri(p. 40) a estilistaZuzu Angel (p. 124) eas revoluctonérias Anita Garibaldi (p. 44) e Barbara de Alencar. Marta, Alexandre, Joo € Leonel, os irmios portugueses que deram rigem a familia Alencar no Brasil, estabeleceram-se na chapada do Ara ripe, uma muralha com sitios geolégicos ¢ palcontoldgicos que divide 20 (08 estadlos do Cearé, Pernambuco ¢ Piaui. Ao longo do rio da Brigida, que nasce na chapada, Leonel fundou fazendas que deram origem ao municipio de Exu, em Pernambuco. Foi li que, anos mais tarde, em 11 de fevereito de 1760, nasceu Barbara, Quando adulta, ela passou a atuar como lider comunitaria ¢ politica de uma maneira tio impactante que seu legado resist falta de registros em documentos oficiais: foi a par tir da tradigao oral que muitos historiadores resgataram sua trajetéria Barbara era casada com o capitdo e comerciante portugues José Gon- calves dos Santos, com quem teve cinco filhos. Dar uma educagio de qualidade a eles sempre foi uma das suas maiores prioridades. Por isso, escolheu o Seminario Maior Nossa Senhora da Graga, em Olinda, que oferecia uma educagdo progressista. Era um espaco de mutta discussao politica © de conscientizagao sobre a realidad do pais, que foi funda~ ‘mental para a histéria da familia, Em 1817, eclodiu a Revolugao Pernambucana, um movimento que descjava que 0 Brasil fosse emancipado ¢ deixasse de ser col6nia. Alguns dias depois, em 8 de marco, foi proclamada a Reptiblica em Recife, que pretendia implantar uma nova Constituigao no pats Filho de Barbara, José Martiniano era lider da revolugio ¢ 9 maior politico do Cearé dessa época. Ele foi para o Cariri reunir seus familiares ¢.do pilpito da igreja da $é, no Crato, comandou uma passeata, ao lado da mae, em diregdo a Camara Municipal. Ao chegar a0 local, retirou a bandeira da Cora portuguesa ¢ fincou uma branca, da Repiblica, em seu lugar. A repressdo foi dura: no mesmo ano, a matriatca ¢ seus familiares foram presos ¢ acusados de traigao ao governo. Ela foi torturada ¢ en- carcerada em condigées deploraveis ¢ insalubres em uma das celas da fortaleza de Nossa Senhora da Assuncdo, no Cearé, Detida durante quatro anos, Barbara foi transferida para prises em Recife ¢ Salvador, Quando 0 movimento de independéncia jé se mostrava incontornével Portugal absolveu os envolvidos com uma anistia geral, Birbara foi solta em 17 de novebro de 1821. Foi uma época tenebrosa, mas nao demorou muito até que ela se envolvesse com politica novamente. Mesmo com a Independéncia con quistaca em 1622, a primeira Constituigio, de 1824, marcou ndo s6 a continuacao da extrema centralizacao do poder no Rio de Janeiro, como também a influéncia que Portugal ainda exercia sobre o Brasil Nesse mesmo ano, uma nova luta pelas politicas sodas ¢ pela dis- tribuigao de poder assolou o Nordeste, com a Confederacdo do Equador. Tristdo, outro filho de Bérbara, comandou a insurreigao, vitoriosa por 2 pouco tempo, chegando a exercer 0 cargo de presidente da provincia do. Ceara, Barbara ¢ José Martiniano também participaram ativamente da revolta, que nao teve um final feliz para a familia: Tristdo © o irmao Carlos José acabaram morrendo. Apés fugir de intimeras perseguigées politicas, Barbara morreu em 28 de agosto de 1852, na fazenda Alecrim, no Piaul. Ela foi sepultada na igreja cle Nossa Senhora do Rosério, no distrito de Ttagué, proximo da sede do municipio de Campos Sales, no Ceara. Em reconhecimento a sua uta, 0 centro administrativo do Cearé recebeu seu nome. Na década de 1990, foi erguida uma estétua da herofna na praga da Medianeiza, em Fortaleza, Em 2011, foi fundacto na capital cearense um instituto que leva seu nome e se dedica & defesa dos direitos das minorias e das politicas puiblicas. a Hipolita Jacinta Teixeira de Melo Habil articuladora, estrategista e competente nos negécios, Hipélita A inconfidente Jacinta foi uma mulher com coragem suficiente para participar ativamen- te da Inconfidéncia Mineira, um dos principaismovimentos separatistas 1748, Prados (MG) do Brasil Coldnia. E, embora a maioria das narrativas hist6ricas releque 27/4/1828, Prados (NG) muitos inconfidentes a um papel secundério, sem a participacao de re- beldes como ela a conspiracao nao seria posstvel. Hipdlita chegou a = ustagdo de Adrana Komura eliminar provas que incriminavam os participantes e a se arriscar a0 avisd-los sobre um traidor. Filha do rico casal de portugueses Clara Maria de Melo e Pedro Teixeira de Carvalho, de quem herdou uma grande fortuna, era uma mulher instruida ¢ com vasta cultura, Casou-se com 0 coronel Francisco AntO~ nnio de Oliveira Lopes, amigo de Joaquim José da Silva Xavier, mais co- nhecido como Tiradentes. O casal esteve entre os maiores articuladores. do movimento que pretendia fazer da capitania de Minas Gerais uma repiiblica independente no fim do século xvi AINCONFIDENCIA MINEIRA. ‘Adescoberta e a procugdo de ouro na regido de Minas Gerais possibilitaram a formagdo de uma elite Jocalao longo do século XVIII. Muitos de seus membros concluiram os estudios na Europa, onde entraram ‘em contato com ideias e acontecimentos que anunciavam mudancas. A Inconfidéncia Mineira teve inicio na década de 1780, mativada pelos ideaisiluministas, pela independéncia dos Estados Unidos e pelo aumento dos impostos cobrados pelo governo portugués sobre a produgdo de auro no Brasil. Formado por um grupo de intelectuas, militares e comerciantes, ‘0 movimento pretendia transformar a capitania de Minas Gerais em uma repiiblica independente. Os rebeldes planejavam boté-lo em prética quando a cobranga de um novo imposto, conhecide como derrama, tivesse inicio, No entanto, a revolugdo nao chegou a acontecer. Com a traigdo de Joaquim Silvério dos Rets, 35, principais figuras do movimento foram presas. Tiradentes, que assumiu a chefia do grupo, foi execu- tado. Os demais foram condenados ao exilio na Africa (no caso dos civis) ou enviados a conventos em Portugal (no caso dos religiosos) 24 Hipdlita permitiu que a fazcnda Ponta do Morro, onde morava, fos se transformada em um ponto de encontto dos conspiradores. Quando a repressio da Coroa portuguesa fechou o cerco em torno de movimen- to, da demonstrou impressionante coragem. Em maio de 1789, escreveu uma carta ao marido ea outros inconfidentes informando sobre a pris. de Tiradentes, no Rio de Janciro, ¢ revelando a traigao de Joaquim Sil- vétio dos Reis. Assim, pedia aos envolvidos que tomassem cuidado € os Tembrava que lutavam por algo maior: Dou-ves parte, com certeza, de que se acham presos, no Rio de Janeiro, oa~ ‘quim Silvério dos Reise o alferes Tiradentes, para que vos sirva guse pontiam fem cautela; e quem nao 6 capaz para as coisas, ndo se meta nelas; e maisvale ‘morrer com honra que viver com desonra Depois que Francisco Aniénio foi preso em 1789 por trair a monar- quia portuguesa, ele chegou a escrever uma carta ao visconde de Bar bacena, governador de Minas Gerais, com informacdes sobre a rebdio, za tentativa de ter sua pena reduzida. Mas Hipdlita a queimou antes que fosse entregue, climinando também outros papéis que poderiam com= prometer os revolucionérios. Nao que ela nao se importasse com 0 destino do marido, tendo disposto de varios recursos para tentar liber ti-lo, Diz-se, até, que mandou fazer um cacho de bananas de our macigo em tamanho real para ser entregue a rainha de Portugal em troca do perdao a Francisco, mas o presente teria sido interceptado pelo visconde de Barbacena, Em 19 de abril de 1792, Jodo Francisco foi condenado ao exilio na Africa, onde acabou morrendo. Hipalita também sofreu sangies, tendo todos os scus bens confiscados, 0 que a levou a demonstrar determina- Gio ¢ habilidade politica Hipolita escreveu ao governo portugues argumentando que boa parte dos bens tomados era heranca de seus pais, que nada tiveram a ver com a Inconfidéncia. A batalha burocratica fot longa (de 1789 a 1795), mas no fim muitos bens he foram devolvidos. Ao se colocar como. eximia negociadora e competente administradora, dla rompeu com a imagem comum naqueles tempos da mulher submissa Hla ¢ 0 marido nao tiveram fills biolégicos, mas adotaram os me- ninos Anténio Francisco e Francisco da Anunciagio, que se tornaram homens de destaque no Império: 0 primeiro, bardo, ¢ 0 segundo, padre © deputado da provincia de Minas Gerais. Se por um lado Hipélita se ‘mostrou implacdvel na defesa de seu patrimdnio, por outro se revelou 26 gencrosa ao distribuir parte dele entre os mais pobres da regiéo onde morava, como demonstram seu testamento eos registros da igreja matriz de Nossa Senhora da Conceigao, em Prados ‘Morteu rica, em abril de 1828. Em 1999, foi homenageada postuma- mente com a Medalha da Inconfidéncia, a mais importante condecora~ «ao concedida pelo governo de Minas Gerais. QUTRAS MULHERES INCONFIDENTES Hipdlita foi a Unica diretamente envolvida com a Inconfidéncia, mas outras duas tmineiras participaram dessa historia Barbara Heliodora Gullhermina da Silveira, casada com 0 inconfidente Alvarenga Peixoto, ndo participou da conspiragdo, mas, como Hip6lita, lutou por seu patri- ménio apés a condenacio do marido. Ela recorreu contra o confisca de seus bens foi igualmente bem-sucedida, Maria Doroteia Joaquina de Seixas era a musa inspiradora do poeta inconfidente Tomas AntOnio Gonzaga. Os dots estavamn naivos quando ele fol preso, em 1789, acusado de participar da rebelido, Nunca mais se viram, mas o amor e a saudade contribu‘ram para que ele escrevesse Marfa de Dirceu, cissico da lingua por- tuguesa, n Maria Quitéria Cabelos curtos e encaracolados, farda militar azul, calga branca, quepe, arma em méos e uma expressdo serena no rosto. Pela pintura de 1920 do italiano Domenico Failutti, mal dé para identificar se a personagem retratada é homem ou mulher, a nao ser, talvez, pelo saiote. Mas trata- se da baiana Maria Quitéria, que fugiu de seu pai, enganou todo mun- do aoe vestir de homem ese alistou para lutar contra o dominio portu- ‘gués na Guerra da Independencia (1822-4). Nascida em 1792 (algumas fontes divergem sobre a data, apontando 1797), em uma fazenda em Sao José das llapororocas, pertencente a vila de Cachotira, ela perdeu a mae quando tinha nove anos ¢ assumiu os cuidados coma casa ¢ os dois irmaos. Seu pai, Gongalo Alves de Almei- da, casourse pela segunda vez, mas logo ficou vilivo de novo e decidiu se mudar para a fazenda Serra da Agulha, onde criava gado ¢ plantava algodao. A essa altura, Maria Quitéria jé era uma moca que montava, usava armas de fogo, cagava e até dangava lundus com os escravos. Sua préxima madrasta, Maria Rosa de Brito, reprovava esses modos, Quitéria era bem independente. Quando o recéncave baiand decidiu lutar a favor do principe d. Pedro como regente, 0 espirito de revolta con tra 0 dominio portugués jf havia incendiade a todos. Cachoeira entiou rna guerra em junho de 1822, ¢ logo emissirios sairam em busca de voluntérios. O pai de Quitéria explicou a0 mensageiro do Conselho Interino da Provincia que nao tinha filhos homens adultos, que de mesmo jf era velho ¢ que seus escravos nao serviriam, Ouvindo tudo isso, a filha peciu permissao para se alistar Ele nao deixou, Entao ela 0 desafiou. Foi escondida até a casa da irma, que jd era casada, contou seus planos ¢ ganhou uma aliada, que Ihe emprestou as roupas do mario, José Cordeiro de Medeiros. Quitéria cortou 0 cabelo bem curto, vestiu -se de homem ¢ fugiu de casa para se apresentar ao comando de Ca- chovira como “soldado Medeiros E foi assim que se tornou oficialmen= tea primeira mulher-soldado do pais. Foi aceita para a artilharia, mas ‘scu corpo franzino demais para empunhar canhées a fez ser transferida para a infantaria. O disfarce ia bem até que seu pai a descobriu entre os oficiais, 28 Aheroina do Exército + 2/1792, Cachoeira (BA) +f 21/8/1853, Salvador (BA) + Hlustragao de Yara Kono Quitéria nao quis voltar para casa, no entanto. Como aquela altura 65 oficiais j4 conheciam sua disciplina e seu talento com as armas, nd0 permitiram seu retomo, transferindo-a para 0 Batalhio de Cagadores Voluntirios do Principe Dom Pedro, conhecido popularmente como Batalhio dos Periquitos, devido ao verde nos punhos e na gola do uni- forme. Ela passou, entdo, a usar o tal saiote ¢ encarou sua primdira bata~ ha em janciro, na foz do rio Paraguacu, na baia de Todos os Santos. Chefiando um grupo de mulheres ~ isso mesmo, ela nao era a tini- cal ~, pds para corer os portugueses. Sua bravura nesse combate a tornou famosa, ¢ varios poetas ao Longo dos anos exaltaram a desteri- da heroina. Um més depois, cla participou dos embates em Pituba tapua tomando sozinha uma trincheira inimiga ¢ fazendo dois prisio~ neiros. Sua valentia rendeu a promogao ao cargo de primeiro-cadete ‘mas ela nao patticipou de mais batalhas porque logo os baianos expul- saram as tropas portuguesas de Salvador, em um importante capitulo da Guerra da Independencia do Brasil. GUERRA DA INDEPENDENCIA Meses antes de d, Pecto | dar o famoso grito de Independéncia ou morte 3s margjens do ria Ipiranga, ‘como se isso bastasse para determinar a emancipacSobrasileir da condicdo de colénia portuguesa, fo preciso pegar em armas. A resisténcia na oficalizagao desse processo fez com que manifestantes pr6 ‘contra a Coroa entrassem em confitoarmado a partir de fevereiro de 1822 -embora no ano anterior ‘0 Exército luso jd tivesse sido expulso de Pernambuco, primeiro terrtério a se separar oficialmente do reino portugues. Na Bahia, entao tercelra maior provincla, a adesdo ao imperador e & luta armada ‘comegou em Cachoeira, apés deliberacio em 25 de junho de 1822, e terminou com a retomada de Salvador, em 2 de julho de 1823. A guerra em outras provincias do terrtério brasileiro, no entanto, se estendeu até 0 ano seguinte, Acessa altura, a fama de Quitéria jétinha ultrapassado a Bahia. Quan- do 05 portugueses foram derrotados, em julho de 1825, ea recebeu do proprio d. Pedro 1, no Rio de Janeiro, a condecoragéo de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro, Sua presenga na cidade fot um alvorogo todos queriam conhecer a jovem que vinha sendo compatada a france- saJoana dArc Na Corte, conheccu a escritora ¢ pintora britanica Maria Graham, que escreveu suas impress6es sobre o pais no Didrio de uma viagani ao Brasil ede urna esada ness pais durante parte dos anos 1821, 1822 ¢ 1823. 30 Chega a ser curiosa a descrigao da britanica, especialmente quando fala sobre a aparéncia fisica da combatente: Ela éiletrada, mas inteligente, Sua compreensdo € répida e sua percepcdo aguda. Penso que, com educagdo, ela poderia ser uma pessoa notavel. Nao é particularmente masculina na aparéncia; Seus mados sdo delicadase alegres.. [..-] No hd nadia de muito pecutiar em suas maneirasa mesa, exceto que ela come farinha com ovos a0 almogo e peixe ao Jantar, em vez de pao, e tua charuto ap6s cada refeico, mas 6 muito sébria Tao preconceituosa quanto essa observacao de Maria Graham foram alguns comentérios da imprensa que exaltavam nao s6 a valentia, mas a pureza da oficial. Matéria do Diavio Carioan de 15 de janciro de 1946, por exemplo, assinada por Américo Palha, diz que Pedro Iconfere 4 gloriosa guerreiraa honra de recebé-la em audiéncia espe cial. 0 Imperador soube da sua bravura e da maneira correta com que sempre se portara no meio da soldadesta, mantendo-se pura eaureolada pelas mais, belas virtudes cristas. O jommalista ainda escreve que ela no sedefxou, entretanto, levar pelas miragens da vida. Nao se deirouarrastar pelas ambicdes oupelo ulgor da gloria que conquistara. Depois de encerrados, 05 episédios da guerra libertadora, a heroina recolheu-se a quietude dolar. Maria Quitéria voltou a fazenda do pai, ainda despertando muita curiosidade da populagio. Casou-se alguns meses depois com o agri- cultor Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha, Luisa Maria da Conceigao. Com o tempo, sua fama se esvaiu. Apds ficar vitiva, mu dou-se para Feira de Santana, em 1855, e depois para Salvador, sobre~ vivendo do seu salirio de militar, Quando morte, aos 61 anos, estava quase cega Embora tenha passado seus tiltimos anos praticamente inedgnita, as inimeras ruas, pracas e avenidas batizadas com seu nome nao nos deixam esquecé-la. im 1953, 0 ministro da Guerra ordenou que o qua- dro de Failuti estivesse presente em todos os quartéis e unidades do Exército, Em 19%, a baiana sc tornou Patrona do Quaclro Complemen= tar de Oficiais do Exército Brasileiro. ul Maria Felipa de Oliveira Nao foi preciso arma de Fogo para pOr os portugueses a correrda ilhade Algoz dos portugueses Itaparica no século XIX. Pelo menos ndo no grupo de mulheres liderado pela negra Maria Felipa de Oliveira, simbolo da resistencia na luta pela * [Locale data desconhecidos] independéncia do pais. +f 4/1/1873, local desconhecido Nao se sabe ao certo se Maria Felipa de Oliveira. negra da ilha de ltaparica, — » lustragdo de Laura Athayde cera escrava, se foi alforriada ou se nasceu livre. Como se voluntariou para lutar contra os portugueses, a opgio mais provavel €a tiltima. A fella de registros historicos a seu respeito & compensada pela bravura de seus feitos, € pela admiragio que despertou em seus conterraneos, ficando marcada ‘na meméria coletiva da iha Localizada na bafa de Todos 08 Santos. Felipa se destacava na comunidade como marisqueira, capocirista ¢ lider de um grupo de mulheres valentes conhecidas como ‘as vedetas {vigias] da praia’. Enquanto os militares portugueses na Bahia ndo reco- nheciam a Independéncia brasileira, Maria Felipa se informava sobre 05 acontecimentos da Guerra da Independencia nas rodas de capoeira ¢ ‘nas Zonas portudrias de Salvador e de ltaparica, repassando-as a inte- agrantes da resistencia lider portugues Madeira de Melo pretendia ocupar a ilha para comandar dali a reconquista de Salvador. As embarcagées ¢ 05 soldados MARIA FELIPA NOS LIVROS. Opesquisador Ubaldo Osério foi umdos primeiros autores a falar sobre Maria Felipa, emseu ivro Atha de Itaparica (1942). Ele ainda a homenageou ao batizar a filha, mae do escritor odo Ubaldo Ribeiro, ‘comseu nome. Jodo Ubaldo, por sua vez, teria se inspirado nela ao criara personagem Maria da Fé, de seu romance Miva opovo brasiletro (1984), A professors Eny Kleide Vasconcelos Farias, especializada em historia do patriménio cultural, es- ‘reveu Maria Feliga de Oliveira: Herafna da Independéncia da Bahia (2010), ap6s oito anos de pes- ‘quisa. Foi uma das estudantes sob sua ortentacdo, Priscila Caldas Batista Vila Verde, quem descobriu0 atestalo de ébito de Maria Felipa, comprovando que elarealmente existiu, Como parte dessaiiniciativa, seu retrato foi construfdo pela perita técnica Filomena Modesto Orge, do Instituto de Criminalistica Afrnio Peixoto, da Bahia, 2 lusitanos que chegaram 14, no entanto, foram atacados por Maria Felipa ce suas vedetas. Conhecedoras do territério, elas nao precisaram de armas de fogo para dar conta dos estrangeiros. Munidas de peixeiras ¢ galhos da planta cansangao, suxraram os soldados ¢ queimaram as embarcagoes com tochas feitas de palha de coco, O episédio foi decisivo para acclerar a derrota dos portugueses na Bahia em 2 de julho de 1825. Os portugueses nao foram os tinicos a sofrer uma derrola dante da determinagio de Maria Felipa de Oliveira. Contam que havia uma ima- gem de Nossa Senhora da Piedad, protetora dos pescadores, das ma risqueiras € da populagio mais pobre, em um nicho em uma pedra na praia da ilha de laparica, que havia sido colocada ali pelo visconde do Rio Vermelho. Quando ele morrcu, seus herdeiros quiseram tiré-la dela, mas Maria Felipa e suas seguidoras se colocaram diante dela ¢ impediram a policia de fazé-lo. A imagem continuou em seu lugar e depois foi construida uma capela em homenagem & padrocira OUTRA BRAVA GUERREIRA Conta-se que no ano de 1625 uma mulher frustrou 0s planos ds holandeses de invadirem a bala de Vitéria, na Espirito Santo, sem usar nenhuma arma, apenas agua fervente. 0 episélio foi registrado ‘em 1675, no liv Nova Lusitdnia, histdria da Guerra Brasflica, de Francisco de Brito Freyre. O autor {oi almirante durante os confrontos finais contra o5 holandeses, em meados do século XVII, e virou ‘governador da capitania de Pernambuco (1661-4). Com base em depoimentos e documentacio sobre 0 conflito, ele escreveu que uma mulher por- ‘uguesa jogou aqua fervente de seu sobrado sobre o almirante Perez quando ele subia para a parte alta da cidade, identificando-o pela roupa. Nesse relato, o primeira a citar a agdo que teria retardado ‘oataque da esquadta holandesa, dando tempo para o contra-ataque da vila, amulher nao tem nome, ‘como apontoue histariador Gerson Franca. As publicacdes anteriores sabre oconfronto no falam dese episicto—que pode, realmente, ter sido coletado por Freyre entre a populacéo anos maistarde. Mas, ‘como tempo, ele foi ganhando cada vez mais detalhes, Até que, em 1858, José Marcelino Pereira de Vasconcellos publicou Ensaio sobre a histéra e es- tatistica da provincia do Espirito Santo e deu nome & mulher que paralisou o ataque holandés: Maria Urtiz. Curiosamente, ele citou como fonte aobra de Brito Freyre. De onde veioessename, néo fica claro. Fato é que Maria Ortiz, como ficau grafado ao longo dos anos, acabou Sendo celebrada como herofna ‘apixaba desde o final do século XIX €, assim, o nome acabou até batizando a ladeira em que isso teria ‘ocorrido. Hoje, publicagGes chegam a apontara data de nascimentoe morte dela Vitéria, 1603-46). Sela |équal forsua verdadeiraidentidade, parece muito provavel que, sim, mais uma ver na histéra brasileira uma mulherlangou-se &luta com o que tinha em mos e ajucoua mudar o destino de sua cidade 3 Enquanto mulheres brancas como Joana Angélica ¢ Maria Quitéria {(p.28) colaboraram para a vitdria brasileira ¢ tiveram, em certa medida, sua importancia reconhecida, a celebrago da negra Maria Felipa de Oliveira permanece muito aquém do devido. Nao se sabe ao certo, por exemplo, 0 que aconteceu com ela apés 0 confronto, E mais provavel que tena retomado a vida de marisqueira ¢ deixado descendents. Fato € que morrcu em 1875, conforme atestado de dbito encontrado na cidade cde Maragogipe. Em entrevista Webtv da Universidade Estadual da Bahia (Uineb), a diretora da Casa de Maria Felipa, Hilda Virgens, destacou a sensibilidade da guerreira de Ilaparica para organizar sua luta com “armas da natureza’ ¢ o lugar especial que conquistou no coragio da comunidade negra da Bahia, 5 Nisia Floresta Dionisia Pinto Lisboa, escritora e intelectual nascida no mindsculo vilarejo potiguar de Papari, ficou mais conhecida pelo pseuddnimo Nisia Floresta Brasileira Augusta, que ultrapassou as fronteiras brasileiras. Floresta era 0 nome do sitio onde nasceu; Brasileira exaltava seu orgulho do pais; Augusta homenageava seu segundo companheiro e grande amor. Ela lutou pela educagao das mulheres, a aboli¢go da escravidao, a Repiblica, os indigenas e @ liberdade religiosa Nisia abandonou 0 primeiro marido, publicou o primeiro livro feminis- ta no pas, introduziu o ensino igualitirio ¢ desfilou com desenvoltura hos citculos intelectuais europeus, sendo amiga do filésofo positivista ‘Auguste Comte ¢ outros tantos, Sua contribuigdo foi tao grande que em 1948 sua cidade natal passou a se chamar Nisia Floresta Sua vida parece até obra de ficedo quando pensamos que ela nasceu em 1810, em um vilarejo mintisculo de uma colénia portuguesa em que ainda ndo se usava talheres para comer. Mas teve a sorte de ter um pai liberal, 0 advogado portugues Dionisio, ¢ uma familia em boa eondicao financeira A perseguicao politica a seu pai, uma das vitimas da revolta contra 5 portugueses durante os conflitos pela Independéncia, ajudou a forjar seu espirito revolucionério, uma vez que em 1817 a familia se mudou para Goiana (rs), onde as ideias liberais fervilhavam. Ainda assim, Nisia do escapou ao casamento precoce, aos treze anos, com Manuel Ale- xanire Seabra de Melo, dono de terras em Papari sem quase nenhum letramento. A unio ndo durou um ano. Nisia abandonou 0 marido, quando o pai precisou fugir de novo, primeito para Olinda ¢ depois para Recife Manuel Alexandre a perseguiu: durante anos, ameacando processé-la por abandono do lar ¢ adultério quando ela se uniu a outro homem aos dezoito anos, o estudante de direito Manuel Augusto de Faria Rocha, cam quem teve dois filhos, Livia Augusto, e um terceiro fale= cido prematuramente. Quando a sociedad ¢ os jornais fizeram cam= panha para desqualificé-la, anos mais tarde, essa segunda unigio nao. foi perdoada. 36 Ativista em diversas frentes + 12/10/1810, Papa, ole Nisia Floresta (RN) + 24/4/1885, Roven, Fanga = llustracao de Bruna Assis Bras ‘Mas nada foi mais revolucionéri que sua estrcia na literatura, aos 22 anos, com o Livro Dinitas das mulheres ¢ injustia das homens (1852)" Foi com essa obra subversiva que surgiu 0 pscudénimo que a deixou fa~ ‘mosa. E foi com ela que o feminismo acabou sendo implantado nas letras brasileira, ganhando contornos bem nacionais nas palavras, con texio ¢ rellexdes de Nisia Em sua vida pessoal, no entanto, tragédias se sucediam, O pai foi assassinaddo em 1828, ¢ ela perdeu o companheito alguns anos depois Sozinha e com filhos pequenos, decidiu partir em 1857 para 0 Rio de Janeiro, deixando para trés Porto Alegre, o epicentro da Guerta dos Far= Fapos, onde fizera amizade com Giuseppe Garibaldi (conhega a hist6ria de sua companheira Anita na p. 44) No Rio, Nisia mostrou novamente scu pionecirismo ao fundar 0 Co- légio Augusto para meninas, com aulas de inglés, italiano, francés, his~ Iria, geografia, matemética, caligrafia, latim, portugués, mtisica, danca, desenho eaté educagio fisica. Se as feministas dos anos 1960 queimaram sutias, Nisia ainda tinha que brigar contra espartilhos, que eram peca obrigatéria da vestimenta ¢ impediam os movimentos. Para se ter ideia de quao revolucionatia foi sua escola, basta dizer que, na educacio tradicional da época, as meninas $6 eam preparadas para ser boas ¢s- posas, aprendendo portugués, frances, contas basicas ¢ bordado, isso quando estudavam: em 1852, de 55 mil alunos das escolas pablicas, apenas 84 mil eram garotas, ‘A partir da década de 1840, a imprensa passou a atacar nao s6 seus métodos de ensino como sua vida pessoal, ¢ sua resposta foram artigos ‘em jornais, poemas e outros catorze livros publicados ao longo da vida ~ entre cles, Conselhos é minha filha, usado até nas escolas italiana Durante as quase trés décadas em que vive na Europa, Nisia teve contato com toda sorte de intelectuais, incluindo Alexandre Dumas ¢ Victor Hugo, ¢ seu trabalho foi publicado em varias linguas. Ela morreu de pneumonia na comuna francesa de Bonsecours, em 1885, Seus restos ‘mortais foram transferidos para o Brasil em. 1954 ¢ hoje descansam na sua cidade natal. Nisia nao deixou descendentes diretos, jf que nao teve inetos, endo chegou a ver o fim da escravido ou a Reptiblica. Mas écomo se tivesse participagio em cada uma dessas conquistas, especialmente nas feministas ~ afinal, foi da quem comecou essa luta no nosso pais. “ tgesardelisssretarqu esiveseereountrau ret bras ein ness Wm Well tect ede Mary Shelley (astra de rankonstin), a pesusidora aria Lica atares-Bukeafma «ue tr emauesetaseu, na verde, omen ir infer o Man (1738), esr or Man Wonley Montag cj pseacieoer Sophie, 38 DIREITOS DAS MULHERES E INJUSTICA DOS HOMENS (trechos) “0s homens, no padendlo negar que nés somos criaturasracionais, querem pro- var-nosa sua opinido absurda, eos tratamentosinjustos que recebemas, poruma condescendéncia cega ds suas vontades; eu espero, entretanto, que asmulheres de bom senso se empentaro em fazer conhecer que elas merecem um melhor tratamento e néo se submeterdo servilmente a um orgulho to mal fundado.” "Se cada homem, em particular, Fosse obrigado a declarar o que sente arespeito ‘de nosso sexo, encontrarfamos todos de acordo em dizer que nés nascemos para eu uso, que nao somos prOprias sendo para procriar e nutrir nossos filnos na infancia, reger uma casa, servi, obedecer, e aprazer a nossos amos, isto é, a les homens.” 38 Ana Néri Em meados do século XIX, pouco restava a fazer para uma mulher de cinquenta anos, principalmente considerando que a expectativa de vida nem chegava aos trinta. Mesmo assim, com todos os filhos e outros parentes alistados na Guerra do Paraguai (1864-70), a baiana Ana Néri no pensou duas vezes antes de se Voluntariar como enfermeira. Apds meio século de vida, tinha inicio seu maior desafi. Vitiva de um militar © portanto com boa condigao financeira, Ana de~ cidiu estar entre os 18 mil baianos que compunham os batalhoes € acabou reconhecida como a primeira enfermeira de guerra do Brasil. fla ferecia muito mais do que curativos ~ como consolo, palavras de dni- mo € colo ~ tanto para brasileiras como para os soldados das outras nagdes envolvidas, de modo que argentinos, uruguaios € até os inimigos paraguaios ganhavam igual atengio, Nao € por acaso que entre nossas tropas ela comecou a ser chamada de “mae dos brasileiros”. Sua historia comecou na entao vila de Cachoeira do Paraguacu, ci dade a 120 quilémetros de Salvador. Unica mulher entre os cinco filhos dle José Ferreira dle Sousa ¢ Luisa Maria das Virgens, casou-se aos 25 anos com o capitdo de fragata portugués Isidoro AntOnio Néri, que ‘morreu durante uma viagem ao Maranhao em 1845-4 (as fontes diver~ gem). Vitiva aos 29 anos, Ana fez 0 que se esperava de uma mulher naquela época: dedicou-se a educar os filhos Justiniano (de 1859), Isi- doro (de 1841) ¢ Pedro (de 1842), Ela se mudou para Salvador, onde prosseguiram com os estuctos, tendo dois deles se formado médicos € tum seguido a carreira militar ‘A Guerra do Paraguai entrou em sua vida em 8 de agosto ce 1865, quando da mandou uma carta ao presidente da provincia da Bahia, Manuel Pinto ce Sousa Dantas, que dizia Tendo jd marchado para exército dois de meus filhos, além de umirmao-e ou- trosparentes, e havent se oferecido o que me restavanesta cidade, aluno do sextoano de medicina, para também seguir sorte de seus irmaos e parentes na defesa do pats, oferecendo seus servicos médicas — como brasileira, ndo podendoserindiferente aos sofrimentos dos meus compatritas.e, comomée, 10 podendoresistira separacdo dos objetos que me sio caro, [..] desejava 40 Aprimeira enfermeira de guerra ‘® 13/12/1814, Cachoeira (BA) + 20/5/1860, ia de Janeiro (Rd) = Mlustragao de Laura Athayde acompanhé-los por toda parte, mesmo no teatro da querra, mas opondo-se a este meu desejo, aminha posi¢ao e 0 meu sexo, nao impedem, todavia, estes dois motivos, que eu ofereca meus servicos em qualquer dos hospitais do Rio Grande do Sul, onde se facam precisos, como que satisfarei ao mesmo tempo (05 impulsos de mie e o5 deveres de humanidade para com aqueles que ora sacrificam suas vidas pela honra e brios nacionais ¢ integridade do Império. Digne-se vossa exceléncia de acolher benigha este meu esponténeo ofere- cimento, ditado tao somente pela voz do coragao. A resposta chegou dias mais tarde, aceitando sua oferta. E as criticas da sociedade baiana também vieram: *S6 pode estar loucat, "Guerra & coisa para homens!, “Nao fica bem a existéncia de enfermeiras no Exér- ito? Ana ignorou o falatsrio. E, na semana scguinte, jf estava a caminho do Sul, onde trabalhou em hospitais montados no Brasil, no Paraguai ¢ na Argentina. No Paraguai, alids, ela transformou a propria casa em enfermaria, Se 0 Brasil nao tinha Exército suficiente para uma batalha daquele porte, que dird recursos médicos, A GUERRA DO PARAGUAI Em dezembro de 1864, ocitadorparaguaia Francisco Solano Lépezdeclarou guerra o Brasil Os histo- riadores ainda divergem sobre os motivos que o teriam feito se lancar contra um vizinho muite maior — se era s6 uma necessidade de ter uma saida para o mar, a vontade de tomar seu pats uma grande poténcia, ou apenas uma reacéo 3 ameaca do Império brasileiro. A verdade é que o confito pode ser considerado um desdobramento da invasdo brasileira ao Urugual poucos meses antes para destituir seu presidente —ou, pelo menos, essa foi a desculpa perfeita. Solano invadiu o Mato Grosso com um ‘exército bem maior que o brasileiro, No entanto, o Brasil se aliou, para surpresa do paragualo, ao Urugual @ Argentina, formando a Triplice Alianca. 0 confito se desenralou por cinco langos anos, até 1870, dizimando quase toda a po- pulago masculina do Paraguai—historiadores dizem que de 75%a 90% dos homens adultos morreram. Muitos, inluindo af eriancase mulheres, padleceram de fome e doencas. Das dois lados do confto, as, baixas teria somado mais de 300 mil pessoas. No fim, havia apenas meninos paraguatos para lutar. 3s cinco anos em que esteve na guerta, Ana viu todo tipo de hor~ ror da carnificina nos charcos ¢ brejos da regio, que dizimou a maioria da populagio masculina do Paraguai, além dle muitos brasileiros, argen tinos ¢ uruguaios, ¢ matou de fome mulheres e criangas. Mas, certamen= 2 te, 0 dia mais dificil foi aquele em que, entre mortos ¢ feridos no acam= pamento, encontrou © corpo do préprio filho, Justiniano, ja sem vida. Conta-se que mal teve tempo de chorar: quando um soldado adversdrio gemeu por ajuda, foi atendé-lo sem rancor. Uma semana depois, viu seu sobrinho Artur morrer ¢ outro filho ferido. Nem mesmo a dor da perda a fez desistir ou interromper sua ajuda aos que permaneciam em gue ra, suas vitivas € scus 6rfios Em margo de 1870, com o fim do conflito, ela retomou ao Brasil e se fixou no Rio de Janeiro, levando consigo quatro criangas érfas para criar (conforme a maioria dos relatos, que apontam de trés a seis criangas) Foi honrada pelo governo com as medalhas Humanitaria de Primeira asse e Geral de Campanha. Entrou para a historia como nossa primei- ra enfermeira de guerra foi indicada como a precursora da Cruz Ver~ melha em territério nacional. Morreu em uma casa modesta dez anos depois. Mais de um século mais tarde, em 2009, recebeu uma justa ho- ‘menagem ao ser a primeira mulher a entrar para o Livro dos Herbis € Heroinas da Patria 4a Anita Garibaldi Uma mulher valente, apaixonada, de espfrito independente, que sabia cavalgar muito bem e manejar armas como poucos soldados. Largou um casamento infeliz para seguir seus desejos em pleno século XIX. Arris- cava~se em zonas de tiroteio, incitava a luta armada e foi protagonista de fugas espetaculares. Enfrentou frio, chuva, fome, febre e as piores condigées possiveis carregando os filhos no colo ou no vente. Virouuma Tenda no Brasil na Italia, a ponto de ganhar o titulo de “heroina de dois mundos" Essa mistura de ingredientes é t80 boa que Anita poderia até ser uma personagem da televisdo ~ ¢ foi, na minissérie A eusa das sete males, exibida em 2005 pela tv Globo. Mas Ana Maria de Jesus Ribeiro real mente existiu. Até julho de 1859, dla era apenas a Aninha do Bentéo, filha do tropeito Bento Ribeiro da Silva ¢ de Maria Antonia de Jesus. Foi a0 conhecer o italiano Giuseppe Garibaldi que se tornou Anita. Teveuma vida intensa, mas morreu cedo, as 27 anos, nas bragos do companhei- +o, € seu nome foi inscrito no Livro dos Herdis € Herotnas da Patria, Segundo a versio mais acca, ela nasceu em 50 de agosto de 1821, em uma familia pobre na regido de Morrinhos, que pertencia a cidade catarinense de Laguna, hoje Tubardo. Certa vez. ainda nova, quando estava indo a missa a cavalo, deparou com bois no caminho. Peditt a0 vaqueiro que os retirasse ¢, diante da recusa, ela mesma 0 fez © rapaz tentou impedi-la, segurando as rédeas de seu cavalo. Aninha nao pensou dluas vezes: chicoteou 0 sujeito, Imagine a desfeita que era apanhar de uma mulher no século xtx!O vaqueiro deu queixa as autoridades e, com a repercussio, a mie, jd vitiva, teve de se mudar com os filhos para o outro lado do rio Tubarado. Temendo 0 espirito valente e livre da filha, sua mae tratou de the arrumar um marido. Ana tinha s6 catorze anos quando, em agosto de 1855, se casou com um sapateiro mais velho, Manuel Duarte de Aguiar. Foi uma unio infdliz de quatro anos, sem herdeiros, que ruiu quando le se alistou no Exército Imperial. Mas ela nao ficou sozinha por mui to tempo, Em julho de 1859, Giuseppe Garibaldi chegou a Laguna com trés navios, para fundar ali a Reptiblica Juliana, como parte da Revalugao “4 Aheroina de dois mundos + 30/8/1821, tagura (50) +f 4/8/1849, Mandrioe, tla * llustracao de Barbara Malegoll Farroupilha ou Gucrra dos Farrapos (1835-45). E foi amor & primeira vis ta. 0 italiano conta, em suas memsrias, que vit. Ana do navio e desem= barcou para procurd-la, mas s6 a encontrou algum tempo depois. Foi tudo to intenso que, em 20 de outubro, quando ele zarpou com seu havio, ela 9 acompanhou, pouco se importando com seu casamento, ainda vigente ¢ as conveng6es socias. Cito dias depois, a caminho de Santos, passaram a ser cacados por veleiros imperiais, que combatiam os rebeldes farroupilhas. Recuaram e, em Imbituba ($0), com um navio avariado ¢ outro perdido em um tem poral, se prepararam para 0 conflito por terra ¢ mar. Era 4 de novembro. Anita ficou no barco, de carabina em méos, ajudando os feridos. Gari- baldi bem que tentou protegé-la, pedindo que ficasse no pordo. Mas cla nao cra mulher de se esconder. Desceu apenas para trazer trés fujdes. Perderam a luta, mas escaparam. No dia 15, jé em Laguna, outra batalha pds a prova o sangue-frio de Anita, que disparou canhdes ¢ encarou o fogo cruzado doze vezes para ir a terra pedir reforgos ¢ trazer munigdo, Foram 53 horas de confronto, em desvantagem numérica. A Republica Juliana caiu ea eles coube fugit pela serra para Lages, numa travessia penosa que no 05 poupou de combates com as forcas imperiais. Na batalha do Campo das Forquihas, perto de Curitibanos (sc), em 12 de janeiro, Anita acabou cercada por soldados inimigos ¢ foi feita prisioneira, © combate foi tio sangrento que ela pediu para procurar © corpo de Garibaldi entre os mortos. Se foi artimanha ou oportunis ‘mo, nao se sabe, mas cla enganou os oficiais, conseguiu um cavalo ¢ fugiu floresta adentro. Ficou ofto dias na mata, machucada ¢ faminta, € atravessou rios ¢ tempestades até chegar a Vacaria (ns), onde Gari- baldi estava Essa ndo foi, no entanto, sua fuga mais complicada, Doze dias apés dar 4 luz o primeiro fiho, Menotti, em setembro de 1840, Anita foi sur preendida sozinha por um ataque noturno em Mostardas (rs), De ca~ isola, saltou no cavalo com o bebé nos bragos ¢ buscou refligio na escuridaio da mata, Passaram quatro dias escondidos na floresta. Trés meses depois, cla € 0 filho quase morreram novamente. Depois, do cerco a Porto Alegre (Rs), 08 farroupilhas bateram em retirada ¢, em nove dias de uma extenuamte caminhada, tiveram de atravessar monta~ nnhas ¢ vales isolacos, mata densa, chuva incessante, pouca comida, pés em carne viva ¢ muito frio. Fla teve de aquecer 0 bebé com 0 priprio halito. Muitos rebeldes tombaram no caminho, especialmente mulheres ecrlangas, 4 OUTRAS MULHERES NAS REVOLUCOES Barbara de Alencar, p. 20. Maria Quitéria, p. 28. ‘Ana Paes d'Altro (1605-2), também conhecida como Anade Holanda, abri~ gow em seu engenhio mulheres eflhas dos ideres da revolta pernambucana contra 05 holandeses no Brasil. Sua fazenda foi paleo do combate mais sangrento do conflito, em 1645, lara Camaro (século XVI), lutow na querra para expulsar 0s hholandeses de Pernambuco. Inigena, foiuma das heroinas de Tejucupapo, local célebre pela resisténcia feminina contra o do- minio holandes. Por causa dos perigos, a familia se retirou do conflito em 1841 c foi para © Uruguai. Lé, Anita © Garibaldi se casaram, em 26 de marco de 1842, ¢ tiveram mais trés filhos ~ Rosita (1845), que morreu pequena, ‘Teresita (1845) e Ricciotti (1847). Eles persistiram em seus ideais republi- canos: Garibaldi chefiou a Legido Italiana, um batalhao de imigrantes que lutava contra as tropas argentinas de Juan Manuel Rosas, 0 que 6 fez aumentar a fama do casal Quando Anita chegou a Génova, na Italia, com os trés filhos em. marco de 1848, foi ovacionada por 3 mil pessoas. Nem cla esperava tanta popularidade, Ficou com a sogra em Nice thoje pertencente a Franga) até Garibaldi se juntar a ela para lutar pela unificagao da Htélia = que $6 aconteceria, de fato, em 1870. Como nao era mulher de ficar cem casa esperando © marido, cla 0 acompanhou em alguns embates. UNIFICACAO ITALIANA A Italia $6 vitou um pais propriamente dito em 1870, quando os varios reinos que compunham seu territéria foram unifcados, ads mats de cinquenta anos de guerras de sucesso. Os principaiseram os reinados de Piemonte-Sardenha; de Veneza, Lombardia Tirol, sob comando austriaco; ede Parma eas Duas Sietias, sob comando dos espanhis; além dos Estados Pontificios (Roma), lideradas pelo papa, -Mesmo gravida, deixou os filhos com a av}, cortou 0 cabelo, vestiu= -se de homem e chegou a Roma em 20 de junho de 1849. Ali, deparou com as tropas de Garibaldi cercaclas pelos franceses. De alguma forma, furou © cero. Derrotados, fugiram em julho com uma legido de 4 mil homens, Mas, dessa vez. a epopeia seria ainda mais longa ¢ cruel, Per- correram mais de quinhentos quilémetros, nas piores condigdes, com os austriacos nos seus calcanhares A satide de Anita nfo acompanhou sua coragem, Desnutrida € com febre, ela morreu nos bragos do companheiro em 4 de agosto de 1849, em uma fazenda em Mandriole, perto de Ravenna. Giuseppe mal teve tempo de chorar: precisou fugir antes do enterro e s6 pode buscar seu corpo dez anos depois, para enterré-lo em Nice. Mais tarde, ee foi leva doa Roma, a Maria Firmina dos Reis Maria Firmina dos Reis foi uma expoente da cultura maranhense. Seu romance de estreia, Ursula, € considerado a primeira obra do género escrita por uma mulher no pais. Escritora, poeta e professora, contribuiu ‘com artigos para diversos jomais de sua época e também atuou no cam~ po da masica, compondo cancdes classicas e populares. ‘Maria Firmina era uma mulher mitida ¢ reservada, que nao se deixava conhecer profunclamente, pois no permitia aproximacies muito intimas. Amava a noite, o siléncio € a harmonia do mar, mas nao era feliz. “In sondavel me segue, me acompanha, esse querer indefinivel’ escreveu sobre si mesma As descrigdes que se tem dela contam que tinha cabelo crespo, sempre preso na altura da nuca, olhos escuros e um rosto re= dondo, Alguns relatos dizem que era parda; outros, que era negra, © que torna ainda mais relevante o papel que teve no cenéio politica ~ ma- chista ¢ arcaico ~ de seu tempo. Ela era contra a escravidao e a discri- minagao de género nas escolas, que separavam meninos de meninas Sua bagagem cultural, pelas poucas oportunidades de estudo que teve, era admirével. Nasceu em Sao Luts, capital do Maranhao, mas se mudou aos cinco anos para a vila de Guimaraes, na baia do Cuma, Morou com a mie, a avé, a irma e duas primas, Lia incansavelmente ¢ se alfabetizou sozinha. Também aprendeu por si mesma o francés. Em 1847, com 29 anos, foi a primeira mulher de Guimaraes aprovada em um concurso para profes- sora priméria, Para comemorar o feito da jover, seus parentes arranja~ ram um palanquim, uma espécie de assento coberto, preso em duas hhastes de madeira, que era cartegado nos ombros por dois ou quatro escravos, A ideia era que fosse levada pelas ruas para receber as devidas homenagens. Mas cla se recusou. Nao via sentido em ser louvada ex plorando a forga escrava. Respondeu que ia a pé porque negro ndo era animal para se andar montado em cima, Um caso emblematico para demonstrar sua posigdo libertaria ¢ avancada Na época em que Maria Firmina comecou sua producto litera, a cstética literéria que estava no auge era o romantismo, ¢ scus esctitos nao fugiram ao estilo dramatico dese movimento, mas sempre deixa~ vam claras suas posicdes politicas. Em 1859, escreveu seu primeiro livro, 4 A primeira romancista 11/10/1825, S30 Luts (MA) 4 I/11/1917, Guimardes (ua) * Hlustragao de Joana ira Ursula, A personagem-titulo é uma heroina ullrarromantica que tem um desfecho infetiz e softido - 0 que, por si s6, €surpreendente, jf que eram esperados finais felizes para agradar ao piblico feminino. Apesar de sua protagonista se encaixar nos ideais da época, Maria Firmina da voz a dois personagens secundarios que sao escravos e fundamentals para a narrativa: Tilo ¢ Susana. Esta ultima relata as tristezas de ser escraviza~ da, a apavorante viagem no navio negreiro ¢ toda a Felicidade que foi obrigada a deixar para tras, na Africa. © discurso de ambos deixa clara a posigdo antiescravagista de Maria Firmina Ela nao os reirata como bestas, como criaturas dignas de pena ou recone aos esterestipos de sensualidade e exotismo, camo tantos autores da época, Por Ihes dar voz dignidade, Uratla também € considerado 0 primeiro romance da lite- ratura afro-brasileira Os jornais acolheram bem a obra, apesar de sempre fazerem mengao a0 sexo da autora. Em 13 de maio de 1861, 0 maranhense A Verdadeira Marmota disse que era raro ver a mulher preferie cultuar o espirito aos prazeres do sali, para se ter ideia «le como era incomum ver uma mu her se aventurando no campo das letras, Ndo & toa, Maria Firmina nao colocou seu nome no texto, assinando apenas como “uma maranhense’ ‘Além de talentosa, da nao se detxava calar: Quando os movimentos abplicionistas comegaram a se alastrar pelo pais, ganhando mais forga a partir da década de 1880, ela continuou em sua luta antiescravagista através da literatura. Em 1867, no auge do movimento abolicionista no ‘Maranhao, publicou 0 conto ‘A escravat ‘Um ano antes de se aposentar, fundou a primeira escola mista do Maranhao, em 1880, mostrando que nao concordava com um sistema educacional que alimentava a desigualdadle entre os géneros ~ o femi- nino ainda era minoria nas salas de aula. Ela criou uma inslituiglo aberta e gratuita a quem nao podia pagar. Sua carreira como autora inclui ainda a publicacio da novela Gupwa entre 1861 € 1862, € 0 volume de poemas Cantos d baira-mar, em 1871 Apesar da importancia de sua producao literéria ¢ de colaborar cons~ tantemente com jomnais, participando dle forma ativa da vida intelectual da época, seu nome e sua obra foram apagados dos registros. As poucas referencias a Maria Firmina feitas nas historiografias mencionam suas obras apenas de passagem. Foi s6 em 1975, mais de meio século apés a morte da autora, que o pesquisador José Nascimento Morais Filho comegou a resgatar sua me= méria, Ele a descobriu por acaso, enquanto pesquisava textos natalinos de autores maranhenses em jomais antigos. Ficou intrigado com aquela 30 “Nao é a vaidade de adquirir nome que me cega, nem 0 amor-préprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educacao acanhada e sem Oo trato ea conversacio dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrugao misérrima, apenas conhecendo a lingua de seus pais, e pouco lida, seu cabedal intelectual € quase nulo.” Trecho de Ursula cousada mulher que jé escrevia para os jomais em pleno século x1 Por que 05 livros nao falavam deta? Com espanto, descobriu: que, além de ter conquistado espaco na imprensa, tinha livros publicaclos e era uma intelectual respeitada. Aos poucos, foi reconstruindo sua trajetéria € escreveu sua primeira biografia, em 1975, Em comemoragao aos 150 anos de nascimento da autora, o pesqui- sador publicou outro livro: Maria Firmina dos Res: Fragmentos de uma vida. Nessa ocasido, 11 de outubro foi decretado o Dia da Mulher Maranhen- se. A partir de entéo, houve algumas tentativas de curar a amnésia que apagou dos livros uma existéncia to brilhante: Maria deu nome a uma rua ¢ a um colégio, mas ainda ¢ pouco, ‘A maranhense, que morreu cega, pobre ¢ sem gl6rias aos 92 anos, é tum dos casos de esquecimento mais injustos quando se traga a evolugao da literatura brasileira. Se sua histéria e sua obra fizessem parte dos livros, com certeza teriamos outra perspectiva sobre a produgao literdria na~ cional, com um coro mais plural. 5 Princesa Isabel Em vez de se dedicar &s "prendas domésticas", essa princesa do século XIX recebeu a mesma educacdo que era destinada aos garotos. Ela tam- bém foi a primeira mulher a exercer, como regente do Império, o cargo de chefe de Estado na América Latina, e assinou a lei que aboliu defini- tivamente a escravatura no Brasil, em 13 de maio de 1888. \Nascida em 29 de julho de 1846, no Paldcio de $0 Crist6vao, no Rio de Janeiro, Isabel foi a segunda filha de d. Pedro 11 ¢ Teresa Cristina de Bourbon-Duas Sicitias. Seu irmao mais velho, Afonso Pedro, morreu com. apenas dois anos, em 1847, ¢ © mais novo, Pedro Afonso, morreu com apenas um, em 1850, Essas tragédias familiares distanciaram a vida de Isabel dos padrdes da época, que reservava as mulheres a dedicagaio ao casamento ea procriagao. Herdeira do trono com somente trés anos, la foi educada para ser capaz de comandar o Império: aprendeu matern’- tica, fisica, quimica, biologia, histéria, latim tudo sobre os assuntos de Estado, chegando a estudar até dez horas por dia. Sua irma mais nova, a princesa Leopoldina, recebeu a mesma educagdo, para que, na ausén- ia de Isabel, estivesse apta a governar 0 pais. A folga dos estudos, bastante supervisionados, principalmente pelo pai, incluia passeios © piqueniques. Mas nem sempre d. Pedto 1 ¢ d. Teresa Cristina podiam estar presentes, passando a responsabilidade para a condessa do Barral, Luisa Margarida Portugal de Barros. A aia era uma mulher experiente, emancipada, confiante ¢ inteligente, filha de Domin- 308 Borges de Barros, um grande abolicionista. Na adolescéncia, Isabel acabou criando um vinculo ainda mais forte com cla, jf que 0 convivio com stia mae nao proporcionava um aprendizado igualmente estimu- ante. A condessa, que possuia uma enorme preocupacdo com a educa «a0 ferninina, teve um papel importante e positive na vida da princesa. Isabd se tornou uma jovem culta ¢ religiosa. Como previa a consti- tuigdo do pais na época, em 29 de julho de 1860, avs catorze anos, cla prestou juramento se comprometendo a obedecer as leis ¢ a0 imperador, a manter o catolicismo no pais. Uma das maiores preocupagées de d. Pedro 1 era garantir que 0 casamento de sua sucessora produzisse um herdeiro para 0 trono. Como de costume, ele arranjou 9 matriménio, ‘mas ndo com um portugués, para nao correr o risco da recolonizagio 82 Aprimeira chefe de Estado + 29/7/1846, Rio de Janeiro (8) $f 14/11/1921, Dieppe, Franca + Hlustragao de Yara Kono lo Brasil. Em 1864, Isabel se casou com Gastio de Orléans, mais conhe- cido como conde du, neto de Luis Filipe, o ultimo rei da Franca, en quanto Leopoldina casou com o duque de Saxe-Coburgo. ‘As memérias do nobre e intelectual visconde de Taunay, publicadas ho comego do século xx, contam que a ideia original era que Isabel se casasse com 0 duque de Saxe e Leopoldina com o conde d'Eu. Leopol- dina, no entanto, teria se interessado pelo pretenclente da irma c pedido a ela que trocassem de noivos A sua primeira regéncia do Império foi de maio de 1871 a margo de 1872, quando tinha 25 anos € seu pai precisou se ausentar do pats. Nesse periodo, em 28 de setembro de 1871 assinou a Leido Ventre Livre, também comhecida como Lei Rio Branco. A partir de entdo, os negros que nasces- ‘sem no pais no seriam escravos, parte cde um lento proceso em respos- ta as crescentes manifestacdes abolicionistas locais que resultavam de correntes, pressdes ¢ politicas intemacionais. “Apesar de ser uma nobre privilegiada, Isabel também encontrou contratempos, 0 mais significative sendo sua dificuldade em gerar um herdeiro. Para por fim a um periodo de quase uma década sem conseguir engravidar, a princesa fez. intimeros tratamentos, conduzidos por Luis da Cunha Feij6, 0 visconde de Santa Isabel, chegando a ir para a Euro~ pa se tratar Em outubro de 1875, de votia ao Brasil, nasceu o principe do Grdo-Pard, Pedro de Alcdntara. Ela ainda foi mae de outros dois meninos, Luis Matia Filipe e Antonio Gusmao Francisco. Em 15 de maio de 1888, Isabel sancionou a Lei Aurea, abolindo a es cravidio, Historiadores divergem sobre sua importancia nesse episéin, uma vez que, na época, a escravidao jé havia sido extinta nos paises ocidleniais, o que manchava ainda mais a histéria ca imagem do Brasil, de modo que essa decisio teria sido inevitavel. Abolicionistas como Joa quim Nabuco e José do Patrocinio faziam campanhas ¢ vérios quilombos estavam formados. A propria Isabal financiara a alforria de escravos. Mas © pais ainda mantinha cerca de 600 mil quando a lei foi assinada, A ati~ tude da princesa foi necesséria para colocar um ponto final nesse periodo sombrio da nossa historia. D. Pedro provavelmente teria levado mais alguns anos para encerré-lo, pois seu compromisso com os fazendeiros, principais interessados na continuidade da escravidao, era grande, “Vossa Alteza redimiu uma raga, mas perdeu 0 trono’ teria dito © bardo de Cotegipe a princesa, Com o fim da escravatura, os ideais da monarquia jd nao se sustentavam mais. Apenas um ano ¢ meio apds & lei ser sancionada, um golpe militar instaurou a Reptiblica, Na macru- gada de 17 de novembro de 1889, um domingo, sem nenhum tipo de 54 MULHERES QUE LUTARAM CONTRA AESCRAVIDAO Chiguinha Gonzaga, p. 56. Nisia Floresta, p. 36. Dandara, p. 16. combate, a familia imperial foi banida ¢ forgada ao exilio. Era 0 inicio de um period bastante triste na vida de Isabel. que perderia seus pais, e dois flhos. Hla Viveu na Franga até sua morte aos 75 anos, em 1921, no castelo «Eu, na véspera do 32° aniversério da Reptiblica. Nos planos do presi- dente Epitécio Pessoa para o centendrio da Independéncia, em 1922, cslava a revogacio do banimento da famitia imperial. © timulo de Isabel e do conde d'Eu pode ser visitado em Pettspalis, SIMBOLO DE RESISTENCIA A histéria dos quilombos abolicionistas nos ajuda a entender melhor a resisténcia a escravidao, 0 ‘movimento negro e sua importancia politica na época. Tratava-se de um novo modelo que, ao contré- rio do tradicional quilombo de rompimento, que funcionava como um esconderijo, abrigava cidados politizados e ativos na sociedade. 0 primeiro quilombo abolicionista conhecido deu origem ao bairro carioca do Leblon. Seu lider, o portugués José de Seixas Magalhaes, produzia malas e sacos de viagem ‘no centro da cidacle e possufa uma chacara onde cultivava flores com a ajuda de escravos que haviam fugido, Assim, acamélia, uma espécie pouco frequente emsolo brasileiro, tomou-se osimbolo maximo do movimento abolicionista. A princesa Isabel, que apoiou o quilombo do Leblon, enfeitava sua mesa de trabalho e sua capela particular com as flores Id plantadas, histéria detalhada no livro As camélias do Leblone a aboli¢do da escravatura, de Eduardo Silva. 55 Chiquinha Gonzaga Um escandalo. € um bom resumo da vida de Chiquinha Gonzaga aos olhos da sociedade. Mulher sem preconceitos de raca, género ou ritmo musi- cal e que prezava pela liberdade — amorosa, financeira, de escolhas ~, acabou ela mesma sendo discriminada. Ela foi renegada pela familia, afastada dos filhos, desprezada pela elite e humilhada pelas “pessoas de bem". Uma figura tao audaciosa nao tinha como sair ilesa em uma sociedade patriarcal, machista e desigual. la chutou para o alto todas as convencoes sociais, eve uma vida boémia quando as mulheres mal saiam de casa, separou-se de um marido rude que a impedia de tocar piano ¢ enfrentou o julgamento alheio para que pudesse viver sua vida como desejava, dedicando-se & sua miisica e es colhendo a quem amar. Claro que nao foi fil. Na sua lépide, fez questo cde que estivesse registrado: “Softi ¢ chorei’. Mas munca se arrependeu, Gragas a sua personalidade subversiva, o Brasil ganhou algumas de ‘suas primeiras mtisicas populares, quando era de bom-tom tocar e com= por apenas ritmos estrangeiros. Mais do que isso, ganhou sua primeira macstrina, sta primeira compositora para pegas de teatro ¢ uma defen= sora fervorosa do fim da escravidao ¢ da instituigio da Reptiblica. Chi- quinha Gonzaga chegou a vender uma de suas composigées para alfor riar um muisico negro, José Flauta, ¢ doou outros rendimentos & causa. Com nome de santa, Francisca Edwiges nasceu em um bairro aristo- cratico do Rio de Janeiro, em uma familia orgulhosa por ser parente do pocta litico Toms Anténio Gonzaga, Mas sua primeira certiddo revela que sua mae, Rosa Maria, era filha de escravos ¢ solteira, © 56 depois viria a se casar com o marechal José Basileu Neves Gonzaga, que reco nheceu Chiquinha como sua filha, Foi criada como as sinhaziniias da alte, com aulas de piano, latim, ciéncias e portugues, e educada para gostar de Speras, valsas, poloas e tangos. Fez do instrumento seu méhor ‘amigo, ¢, aos onze anos, apresentou a familia sua primeira composicdo, *Cangao dos pastores’ Como era costume, logo The arranjaram um marido, ¢ aos dezessets anos cla se viu casada com Jacinto Ribeiro do Amaral, dono © coman= dante de um navio mercante, filho de um rico comendador. O primeiro filho, Jodo Gualberto, veio em 1864, € no ano seguinte nasceu Maria. 56 Aintérprete da alma popular brasileira + 17/10/1847, Ro de Janeito (Rd) + 28/2/1935, Riode lneio (RL) + llustragao de Veridian ScarpeT © marido nao tinha absolutamenic nada a ver com cla. Ele transpor tava armas e soldados, muitos deles escravos, para a Guerra do Paraguai Chegou a levar Chiquinha ¢ 0s filhos em uma de suas viagens, 0 que provavelmente 56 contribuiu para aumentar sua posigdo contriria & escravidio, Era um homem rude, que passava muito tempo viajando ¢ odiava ver sua mulher envelvida com musica. Assim, proibiu que cla tocasse, decretando a morte de um relacionamento que nunca eavolve= ra amor. Ela 0 abandonou, levando as criangas consigo, mas se descobriu gravida de novo e decidiu retornar ao lar Hilirio nasceu em 1870 Depois de um tempo, Chiquinha tomou coragem, largou o marido de vez.e voltou para a mtisica, nao sem sofrimento - ela teve de deixar 6s fillios sob os cuidados da fafa de Jacinto, Pedir a separagao, na queles tempos, era visto como uma afronta, ¢ 0 ex-marido, com 0 or gulho ferido, moveu uma agio de divércio perpeétuo no Tribunal Ede sidstico por abandono do lar ¢ adlultéro. ‘Mas ndo demorou para Chiquinha descobrir verdadeiramente 0 amor ~ hé quem diga que ela encontrou quando ainda morava com Jacinto. Apaixonou-se pelo engenheiro Joao Batista de Carvalho, um Don Juan que adorava miisica e com quem viveu até em canteiros de cobras no interior de Minas Gerais. No Rio de Janeiro, 0 casal foi muito hostilizado pela sociedade. [sso abalou muito Joao, ¢ 6 relacionamento definhou, Chiquinha podia suporiar as criticas, mas nao a infidelidade do com- panheiro, entdo juntou suas coisas ¢ foi morar no pordo de uma casa modesta no baitto de So Cristévao ¢ viver daquilo que sabia fazer ‘miisica. Levou também a filha Alice, que nasceu daquela unio, mas cuja guarda acabou perdendo para Joao ~ as mulheres nao tinham direitos, naquda época Para se sustentar, Chiquinha passou a dar aulas de piano e idiomas, tocar em festas, cabarés ¢ rodas dle choro, além cle vender suas compo- sigbes de porta em porta, Seu primeiro sucesso foi a polca ‘Atraente’, Jangada em 1872, que abriu camminho para a pianista, mas ndo sem per calgos. Sua muisica ‘Aperte © botio’ por exemplo, foi proibida por Flo~ ‘iano Peixoto, que pediu sua prisdo por ser irreverente demais. Mas isso ‘96 aumentou a fama da artista. Frequentadora da roda boémia ¢ mulher de opinides fortes, Chiqui- nha virou amiga de José do Patrocinio, Olavo Bilac, Carlos Gomes, Os6~ rio Duque Estrada ¢ do dramaturgo Artur Azevedo. Este tiltimo Ihe pediu para musicar a pega Viagem ao Farnaso, mas os empre que o envolvimento de uma mulher pegaria mal e a refitaram, ios acharam, 58 PARA COMECAR A OUVIR Nao deixe de cutir sucessos de Chiquinha regravados por outros artistas, com Carmen Miranda (p. 175), Pixinguinha e Diogo Nogueira. Aqui vio alguns exemplos: “Sabre alas” “Corta-jaca” “Estrela dalva" “Lua branca" “Mtraente” “0 que passou, passou" “brasileira” “Nao se impressione” “"Valquiria" “Falena” Ela ndo se dlcu por vencida. Em 1885, musicou a pega Festa de Sao Joao em 1885, a opereta A cove nara, que a tornou. 0 nome da moda entre os autores de teatro ~ na época, a imprensa nao sabia nem como cha- ‘mé-la, porque nao havia feminino para a palavea “maestro” Ao longo de sua vida, compos 77 partituras teatrais, além cle um volume inacre~ ditivel de 2 mil outras composigdes, misturando ritmos ¢ criando uma miisica genuinamente brasileira ¢ popular Sem se intimidar com os comentatios alheins, tocou violao ~ um instrumento malvisto pela elite ~ ¢ compés muitos maxixes, um ritmo tido como obsceno por implicar uma danca agarradinha. Chiquinha foi a primeira a reger um concerto exclusive de violdes, com cerca de ‘cem miisicos da periferia carioca no palco do teatro $80 Pedro, em 1887. Foi um ato corajoso. Afinal, tocar serenata, na época, era consi- derado crime. Em 1912, outro espetdculo teatral, Forrobodd, um dos maiores sucessos de sua carreira, mostraria que a compositora conti- nuava envolvida com ideias ¢ amigos irreverentes, que retratava um baile da periferia carioca e era repleta de palavrdes, ainda que Chiqui nha $6 a tivesse musicado. Chiquinha abriu alas para a expresso genuinamente brasileira na musica ¢, curiosamente, foi com a marchinha °O abre alas’, feita a pedido do Cordao Carnavalesco Rosa de Ouro para 0 carnaval de 18%, que a cobra da compositora acabou eternizada ~ ¢ até hoje ganha as ruas de todo o Brasil nos dias de folia, Tanta irreveréncia e popularidade uma hora a levariam a se infltrar na alta sociedade. Em 1914, a ento prime! ra-dama, Nair de Teffé(p. 64), fez.questio de tocar o maxixe “Corta-jaca’, de Chiquinha, no violdo, na iltima recepcdo oficial do marechal Hermes da Fonseca como presidente, no Palicio do Catete Sua fama, a essa altura, jé tinha extrapolado o Brasil. Em 1902, cla havia comegado suas viagens internacionais, para Portugal, Espanha, Itélia, Franca, Alemanha, Bélgica, Inglaterra ¢ Esedcia, onde viu suas obras sendo executadas sem Ihe rencler nenhum tostio. Em 1917, fundou a Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, que regulamentou os direitos autorais dos artistas. Naquela época, viajava acompanhada de seu mais longo amor: Jodo Batista, um rapaz 56 anos mais novo que cla. Conheceram-se quando le tinha dezesseis ¢ cla 52. Para minimizar o falatdrio, cla o registrou como filho, Chiquinha viveu bastante, 0 suficiente para saborear 0 gos~ to de scu trabalho, acompanhada até o tillimo dia de vida por Joao. ‘Morreu em uma quinta-feira, 28 de fevereira de 1955, antevéspera de Carnaval. 58 Georgina de Albuquerque Muitos pintores famosos se inspiraram em figuras femininas para criar obras-primas ~ Mona Lisa (c.1503), Garota com brinco de pérola (c.1665), As donzelas de Avignon (1907). Mas, procurando do lado de cAidas telas, ¢ facil perceber que, até oinicio da arte moderna, pouguis- simas mulheres puderam se dedicar 8s mais variadas formas de expres- sio artistica, Entre as varias razdes para isso, est o pensamento anti- ‘quado de que caberiaao sexo feminino apenasum papel submisso, como objeto a ser representado, jamais como sujeito. No Brasil, Georgina de Albuquerque mostrou que esse pensamento, que durou tempo demais, era um grande erro, Dona de um talento natural, treinada em escolas de arte de renome & ganhadora dos principais prémios nacionais, Georgina superou obsté- culos para conquistar um espaco entre os grandes pintores brasileiros. Hla transitou entre diferentes estilos ¢ se tornou a primeira mulher a dirigir a Escola Nacional de Belas-Artes (Ena). Seus quadros esto em acervos de museus de cidades como Rio de Janeiro, Sdo Paulo, Buenos Aires e Washington, ‘Nascida no interior de Sao Paulo, desde crianga gostava de desenhar, incentivada pela mae. Durante a adolescéncia, teve aulas com o pintor italiano Rosalbino Santoro, que chegou a morar em sua casa. Aos de zessete anos, estava tio decidida a se tornar pintora que enviou, por meio de um tio, um quadro para a Enba, no Rio de Janciro, Ele voltou com uma noticia peculiar: o quadro havia sido considerado tao bom que achavam que se tratava dle uma espia. A Jovem no deixou por menos. Foi com ele ao Rio, arrumou um, jeito de se encontrar pessoalmente com um dos professores da Enba que havia visto scu quadro ¢ disse que, para provar que nao era copista ¢ merecia entrar na escola, ia pintar o retrato dele. Depois disso, ela foi actita, de modo que, em 1904, iniciava sua educagdo artistica formal. Mas nao foi na Enba que Georgina completou seus estudos. L4 dla co- nheceut o também aluno Luctlio de Albuquerque, com quem se casou pouco depois. Em 1906, apés o marido ficar em primeiro luger em uma. exposigao de arte ¢ receber como prémio uma bolsa de estudos em Paris, os dois se mudaram para lé 6 Amulher do outro lado da tela % 4/2/1885, Taubaté (SP) + 29/8/1952, Rio de lneio (RL) = llustracao de Bruna Assis Bras Na Franca, cla continuou fiequentando instituigdes de prestigio, como. a Ecole des Beaux-Arts e a Académie Julian, que se destacou como a primeira escola de arte do mundo a oferecer as mulheres aulas ce mo- ddo vivo. Georgina, é daro, aproveitou a oportunidade. Além disso, foi influenciada pelo impressionismo, movimento artistico que caracterizou a maior parte de sua obra. O casal teve trts filhos: Beatriz (que morreu ainda crianga), Dante Jorge ¢ Flaminio jilio. Georgina nao permitiu que a maternidade afetasse sua carreira, tenclo deciarado que nao deixou de trabalhar nem um $6 dia mesmo quando seus filhos eram pequenos. IMPRESSIONISMO. Osartistas desse movimento nose prendiamas praticas da arteacadémica da época, optando porpin- celadas mais livres. Suas obras captam as impressées perceptivas e sensorias de luminosidade, cor e ssombra das paisagens, sobretudo ao arlivre, Para sso, eram produzidas em diferentes hordrios do dia. As inovacbesna producdo de tinta aéleo durante oséculo XIX transformaram a pinturaem umaatividade portatil, proporcionando ferramentas importantes para a proliferagdo do movimento. No Brasil, essa pintura comegou a ser praticada com o rompimento do alemo Johann Georg Grimm (1846-87) coma Academia Imperial de Belas-Artes do Rio de Janeiro, quando novos materials também chegaram por aqui. Georgina de Albuquerque também foi uma das introdutoras do impressionismo no pats. A familia retornou ao Brasil em 1912, quando foi morar em Niterdi (ay), Georgina criou cursos de arte e Luctlio se tornou professor da Enba. Hla pintava e desenhava com frequéncia, usando diversos materiais. ‘Nessa ¢poca, ganhou duas medalhas de prata na Exposigao Geral de Belas-Artes (em 1912 ¢ 1914), que era 0 evento mais importante das artes plésticas no pais. Na edicao de 1919, ela se consagrou com a me- dalha de ouro pelo quadro Familia, Assim, foi a primeira brasileira a ser reconhecida como uma grande pintora No centendrio da Independencia brasileira, em 1922, Georgina inovou mais uma vez. Atéentao, a pintura hist6rica ~ representagio de momen= tos historicos em quadros de grandes dimensdes, geralmente encomen= dados por governantes ~ ainda era considerada o genero de maior prestigio, dominado por homens. Fla pintow a tela Sesdo do Consetho de Extado, com a qual ndo apenas ousou cntrar naquele ramo da pintura como também, como afirma a professora Ana Paula Cavalcanti, em s pesquisas sobre mulheres artistas, subverteu 0 género. © quadro repro- a uz a reunio na qual teria sido tomada a decisio de separar 0 Brasil de Portugal, antes mesmo do Grito do Ipiranga Em geral, telas de pintura hist6rica traziam imagens grandiosas ¢ heroicas, como cenas de batalha, € tinham como personagem central figuras masculinas. Ainda na visio de Ana Paula, Sessio do Consetho de Bado, ao contrario, retrata uma situagdo em ambiente fechado ¢ tem como protagonista uma mulher, a princesa Maria Leopoldina, esposa de Pedro 1. Para completar, a artista usa pinceladas impressionistas em tum género caracterizado por tragos mais cléssicos. Hoje a obra faz par- te do acervo do Museu Histérico Nacional, 10 Rio de Janeiro. Com esse quadro, ela se tomou a primeira brasileira a realizar com destaque tudo 0 que um pintor de formacao clissica poderia fazer. O fato de isso ter ocorrido em 1922, mesmo ano da Semana de Arte Mo- ema, é bastante simbdlico. Georgina foi a grande pintora classica bra- sileira que abriu 0 caminho para que pintoras modernas, como Anita ‘Malfatti (p. 68) ¢ Tarsila do Amaral, brilhassem. Na década de 1920, ela assumiu o cargo de professora da Enba, a qual dirigiu entre 1952 ¢ 1955, Em 1940, criou, na casa em que morava, (© Museu Luctio de Albuquerque, para preservar a obra do marido, que havia morrido. Anos depois, a casa foi demolida, 0 museu foi vendido para o Itamaraty e a colegio se destez Georgina tinha consciéncia de que vivia em um tempo “em que a mulher nao tinha os mesmos direitos do homem’ como ela mesma dlizia, Entretanto, com talento ¢ determinagdo, lutou pelo espaco das mulheres do outro lado da ta, 6 Nair de Teffé Chegara velhice mantendo o humor afiado néo é para qualquer um, mas Nair de Teffé conseguiu isso depois de se consagrar como a primeira mulher caricaturista do mundo. Ao completar naventa anos, em 1976, ela disse em uma entrevista ao Globo: "Comecei invertendo meu nome. Ponha af no jornal que eu faco noventa anos com o zero 8 esquerda, Na realidade sou uma eterna menina de nove anos”. Se com essa idade ela era assim, imagine aos nove... Pois foi exatamen= te quando a pequena Nair comecou a se interessar pela caricatura, ain~ da como estudante de um convent na Franca, “Por achar 0 nariz de uma das freiras muito comprido, desenhei-o num papel, o que fez as meninas rirem muito’ cla contou ao jomal O Estado de S, Paulo, em 1969. Anos depois, adotou o pseudénimo de Rian (seu nome de trés para a frente) e alcangou sucesso com desenhos de personalidades da belle Epoque do Rio de Janeiro. Fiha do bardo de Teffé, heréi da Guerra do Paraguai, e de Marie Louise Dodsworth, Nair se mudou com a familia para a Europa quando tinha um ano e meio, Morou na Franga, na Itlia e na Bélgica, paises em que aprendeu a falar diversas Iinguas, incluindo francés ¢ alemao. Voltou 0 Brasil jé adolescente, passando a morar em PettSpolis, onde continuo. estudando artes A estreia como caricaturista aconteceu na revista ilustrada semanal Fon-Fon, em 1909, aos 23 anos. Ao longo da carreira, cla colaborou com diversas publicagdes de prestigio, como Guzeta de Noticias, Carta, O Matho € Revista da Samana. A imprensa europeia também destacou seu trabalho em publicagées humoristicas como Fantasio, Le Riv, Excelsior e Fémina, Os desenhos de Nair geralmente retratavam politicos ¢ integrantes da alta sociedade. Ela tinha um reperiério cultural muito amplo, tocava piano © ainda era atriz de teatro. Ser caricaturado por Nair era um grande acontecimento, Uma de suas charges mais famosas é a do senador Rui Barbosa, que na cleicao de 1910 havia sido derrotado pelo marechal Hermes da Fonseca, futuro marido dela Em 1912, jf reconhecida como artista talentosa, atraiut ainda mais as atengdes com uma exposigio de suas caricaturas no salao do Jornal do Commercio, evento foi inaugurado por Hermes da Fonseca, que com- 64 Uma mulher nada caricata + 10/6/1886, io de Janeiro (R)) +f 10/6/1981, Nien (Rd) * llustragao de Adriana Komura PSEUDONIMO 0 pseudénimo Rian deu muito o que falar. Entre as interpretacdes mais po- pulares, estavam a similaridade com “rien” (nada, em francés) ¢ uma referéncia ao verbo "rit" pareceu na companhia da entéo primeira-dama, a professora Orsina da Fonseca ‘Meses depois, ele ficou vitivo e reencontrou a jovem artista em Pe- trépolis. A prépria Nair revelou como ocorreu a aproximagdo em inti= meras entrevistas. Ela sofreu uma queda do cavalo eo marechal a so- correu. Ele a pediu em casamento ¢ ela disse que precisava de seis meses para pensar. Mas a resposta veio muito antes, ainda durante o periodo, de luto dele, Fm 1915, Hermes da Fonseca tinha 58 anos ¢ Nait, 27, tor nando-se a primeira ¢ até hoje tinica mulher a namorar e casar com um presidente da Repitblica no exercicio do cargo. Nos holofotes da vida politica e social do pats, dew um tempo na carreira: parou de publicar caricaturas, embora continuasse a fazé-las. Mas, espitito livre que era, fez questao de nao ficar & sombra do marido. Organizava saraus e festas no Palacio do Catete, entdo residéncia oficial do presidente. Em uma delas, inovou ao tocar no violio 0 famoso ma xixe *“Corta-jaca’, de Chiquinha Gonzaga (p. 56). Os convidados aplau- diram, mas a ousadia de Nair em tocar um instrumento considerado imoral ¢ executar uma miisica popular diante da elite brasileira, acostu- ‘mada a ouvir valsas e polcas europeias, foi demais para as cabecas mais conservadoras, principalmente as dos opositores de seu marido. Rui Barbosa, por exemplo, criticou duramente a peripécia no Senado. Outra histéria, negada por Nair, conta que cla usou em um evento uma saia rodada com apliques de caricaturas de sua autoria dos minis tros de Estado, Verdade ou mentira, 0 fato é que sua mentalidade revo- lucionsia mexia com o imaginario das pessoas, Nair viveu ao lado de Hermes da Fonseca por quase dez anos, dois eles como primeira-dama, entre 1915 1914. Apés ficar viva, voltou a Petrdpolis, onde foi clita, em 1928, para a presidéncia da Academia de Ciencias e Letras local, que transformou, no ano seguinte, em Academia Petropolitana de Letras. Também integrou a Academia Fluminense de Letras. No Rio de Janeiro, em 1952, fundou 0 Cinema Rian, em Copaca- bana, importante ponto da cena cultural da cidade, que ficou em ativi~ dade até 1985. Na década de 1940, Nair se mudou para um sitio em Pendotiba, nos arredores de Nitersi, Nessa fase, viveu mais isolada, na companhia dos seus filhos adotivos ¢ de seus cachorros. Ainda em vida, sua obra continuou sendo celebrada por cronistas, escritores ¢ historiadores. Foi Herman Lima quem a convenceu a voltar a publicar caricaturas apés a longa pausa. Ela manteve o traco ¢ o humor inreverentes até o fim da vida. Aos noventa anos, junto com 0 formuli~ rio do Imposto de Renda, entregou uma caricatura do entdo ministro da 66 Fazenda, Delfim Netto, ¢ um recado: “Minisiro, desculpe-me, mas essa coisa de Imposto de Renda é muito complicada pra mim, Vocés deviam dispensar os adultos com mais de setenta anos’ “Até hoje, so raras as mulheres caricaturistas que conquistaram ta- manho reconhecimento, Porém, 0 pioneirismo de Nair mostra a impor- Lancia de valorizarmos a participagao feminina nessa arte, @ Anita Malfatti Apolémica gerada pelas pinturas de Anita Malfatti durante uma exposi- Go realizada em 1917, em Sio Paulo, foi tao intensa que um senhor de idade ameacou romper os quadros coma bengala. Masa coisa esquentou para valer depois que o escritor Monteira Lobato publicou uma dura critica sobre a mostra, Cinco quadros jé vendlidos chegaram a ser devol- vidos. Foi assim que a moca de personalidade timida causou a primeira ‘grande controvérsia no provinciano e académico meta artistico paulis- tano, dando a largada no modemismo brasileiro Fitha da americana Eleonora Elisabeth Malfatti e do italiano Samuel Malfatti, Anita teve 0 incentivo da familia para seguir carreira nas artes. Queriam que ela se formasse professora de desenho, como a mae, que dava aulas no Colégio Mackenzie. Seu pai, um engenheiro que veio a0 Brasil para trabalhar na construcio das estradas de ferro, morreu cedo. Devido a uma atrofia congénita no braco ¢ na mao diteita. a menina se tornou uma canhota involuntaria, ‘Antes da aparigdo de suas primeiras obras modernistas, os artistas, em sua maioria homens, exibiam quadros que em geral retratavam a natureza. O impressionismo estava entre as tendéncias vigentes ¢, alguns anos antes, Georgina de Albuquerque (p. 60) destacou-se como uma das precursoras do movimento no Brasil. Imagine uma mulher ousar seguir uma nova corrente artistic... Mas foi o que Anita fez! Ela optou por valorizar a figura humana em suas telas, com dlaras influéncias do ex= pressionismo e do cubismo, inspiracdes que acumuulara em seu tempo de estudamte no exterior Para conseguir ampliar seus horizontes, Anita recebeu ajuda finan- ceira do tio, © engenheiro e arquiteto George Krug, Em 1910, com 21 anos, cla partiu para a Alemanha, onde morou por quatro anos. O pais vivia a efervescéncia cultural das vanguardas artisticas, como 0 expres- sionismo, 0 cubismo ¢ 0 fativismo, Durante um ano, Anita frequentou a Academia Imperial de Belas-Artes, em Berlim, além de ter estudado com Lovis Corinth (1858-1925). Mais tarde, ao se lembrar desses cursos, cla comentou em uma entrevista para A Gazeta que desde 0 comego lhe permitiram ter independéncia como artista ¢ the deram “Toda liberdade de pintar’ 68 Pioneira do modernismo + 2/12/1889, Sto Paulo (SP) +f 6/11/1964, Sap Palo (5P) * llutracao de Lole

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