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ANTONIO MARINHEIRO (O EDIPO DE ALFAMA) Pega em trés actos no Teatro de Come- siea de Car. ade Matos (A Louca), io Gongalves. (Homer Personagens ANTONIO MARINHEIRO— 2 AMALIA — 36 anos BERNARDA — 60 anos ROSA —27 anos RUI—28 anos A LOUCA — ANINHAS — 8 ADOLFO — 30 * MULHER * MULHER HOMEM * HOMEM HOMEM MULHERES E HOMENS DE ALFAMA Lisboa, Alfama Actualidade Primeiro acto O compartimento de entrada, em casa pobre de. Alfama: unt velho guardaloica, wma’ mesa redonda de centro, uma méquina de costura, cadeiras, ete Ao fundo, a porta da rua; ainda a0 fundo, mas mais @ direita, uma janela. A esquerda, uma porta que dé para o quarto de Bernarda (que serve também de cozinha). A direita, porta para o quarto de Amélia, Estas duas portas interiores apresentam, em toda a altura, cortinas de rede ou tecido ade- quado, Através da janela e da porta da rua, quando abertas, vé-se a frontaria duma taberna fipica, além de outros elementos cenogréficos definidores do ambiente de Alfama; por cima da entrada da taberna, um candeciro antigo de iluminacao publica, tipo lanterna grande. No interior da casa de Amélia, cavado numa das paredes, um nicho com a imagem de Santo Ant6nio, em barro; em sitio adequado, um re- trato do falecido marido de Amélia; sobre a mesa, um candeciro de petréleo; na pedra do guarda-loica, um vaso de manjerico, etc. E 0 fim duma tarde de Inverno: luc frouxa, Quando o pano sobe, Amdélia passa roupa a ferro e Bernarda, sentada perto da janela. se- miaberta, cose &@ mao um pano verde. As duas mulheres esto vestidas de preto. Laboram em silencio; crispada, sombria, a expresso dos rostos 13 BERNARDO, SANTARENO Cena I BERNARDA (levanta-se, sempre calade, e vai buscar uma qualquer peca do vestido em que trabalh Sutras, esta pendurada num dispositivo feito com a no aberto duma corda suspensa do tecto; néo chega Id): Pronto! 6 escusado av © mo a no sabes jcango, aquilo?!... Irra, isto é uma danagao! Estow fai de te dizer: 0 que for pra eu coser, quero-o ca em baix ‘A (levanta-se, sobe a uma cadeira e tira 0 pano, entreg a); Tome li: € isto? BERNARDA (examinando a peca): Parece que esta! corta-me ¢ssa maldita cordal Que diabo, ja viste algu dessas. pra ara roupa?! Qualquer is dai a baixo e partes uma na... Arranja um cesto, que raio! Sim, pra que serve isso". AMALIA (meiendo a cabeca pelo nd aberto da corda ve? Pra me enforcar... (Desce da cadeira e volta d tarefa anterior.) Assim, a gente tem a certeza de que nfo desaparece nada: ie acontecen com a manga daquele vestido da senhora Ereflia ANINHAS (na rua, @ bater & janela): Senhora Bernat- BERNARDA (que vai abrir @ janela: co cansada): Diz Vi, menina...? Que queres tu, 'ANINHAS (mostrando a cabeca, através da janela): A ‘a Mae manda dizer, se tem um bocadinho de act he empreste...? AMALIA ntar os olhos do trabathoy: Dé-lhe, fo-se, pesadamente, para a porta da 6 tudo! (A imitar Amalia.) Dé-the, ‘a casa é abonada, ni ANINHAS (que enirou; beijando Bernarda na fe da! (A mostrar um pticaro de esm: tarde, ser . pro eafé do meu irmao. 14 ANTONIO MARINHEIRO BERNARDA (tomando, idez du ii , com rudeza, o piicaro das miios de Aninhas): Ai, descansa... Esté descansadinha que levas Essa te garanto eu... (Sai pela porta da esquerd Cena TIT zangada, a senhora Ber- jodo, que uma tigela com égua quente, que n E ia quente, que ia. para borrifar a roupa, cai sobre as maos da menina; esta chora e grita aflit mios da crianca ao Deus, meu Deus! Déi-te is, .- Doi? ite muito, O que eu te fiz... O que eu te fiz!?... (Beija as maos de Aninhas,) Mae! © Mae!?... (Aparece Bernarda, & porta. A chorar.) Quei Ole, olhe praqui... Queimei-lhe as méos!. (Aninhas continua a ge Ce BERNARDA (assustada): Deixa ver, Aninhas... Deixa e4 ver... (Observa as mios da menina.) Nao... Nio € nada! A gua jd nfo estava muito quente... al Wais Yer, vals. vor. Espera, copera al um instante: ar azeile... (Sai pela porta da esquerda, voltando log 4 seguir com a garrafa do unto.) Sie AMALIA: Depressa, mie!, antes ssa, mie!, antes que isto empole... (Ber- narda besunte ax mies de Aninhas' com o azete) Pobre ial. Neit a minha eabgca, mie: nfo sei como fiz si to nervosa, a bater com as mdos na cabeca:) Estou doida... Doida varrida; s6 fa 56 ti ee ; $6 fago mal... S6 malt (Soluca 15 BERNARDO SANTARENO ‘os quais liga as mdos da crianca.) © Ai cala-te, mulher: io € nada!?... Cena V mpurrando. a porta. da rua. Corre a minha filhinhal Vamos pro hospit : filha: quero ver, quero ver! (Agressiva.) Quem foi? Quem foil... al BERNARDA (severa): Néo & nada, Rosa. Nio.grites! ra diaas Mulheres que, na rua, espreitam através Ge'vorte aberta) Th, eraturithas! Andando, andando. Ala, (Fecha @ porta, com estrondo.) Coscuvilheiras nara Rosa.) Acaba com a choraminguice, cala-te! fo, Aninhas?. ANINHAS (mimo): D6i ROSA (brutal): Que raio de gen eriancin| i 1 BERNARDA: Pronto, ai vem o coice! és pobre e mal- -agradecida, benza-te Deus. a MAMALIA (lorturada): Fui eu, Rosa... Ful ev Nio sci. Foi sem querer... (Yuma explosao de choro. ‘i menina, Rosa! Leva-a daqui! Estas minhas mios esto amaldicoadas: onde clas tocam, ¢ isto que se vé... Sou eu, fa! Sou eu, sou eu... ROGERNARDA (censura): © Amélia, tu sempre AMALIA: £ verdade, é verdade! Tudo aquilo em que toco, se estraga... Nao deixes vir aqui a menina, Rosa, digo-te eu NEGERNARDA (aworidade): Sossega, Amélia! Toma tento nessa cabeca | MALIA: Eu ando a cumprir um fadério, mie: isto fsb, € casio! As minhas mfos nio merecem tocar numa ha... Deus niio se esquece, nao... Nunca se esquece! a, tena e assustada.) Guarda bem 0s teus filhinhes, ‘Nao os largues, no 0s percas de vista... sta! Como diabo fize- — ANTONIO MARINHEIRO ROSA (admirada, Aninhas jé néo chora): © Amalia, mas...? Pronto, nao te aflijas, mulher!... J4 nao te déi, pois nao, Aninhas?... Isto no hé-de ser nada.. BERNARDA (dando o piicaro a Rosa): Pega, leva 0 car. ROSA: Obrigadinha, senhora Bernarda! BERNARDA: E pouco: tem paciéncia. Mas isto, agora, mudou de figura. Nesta casa, jé ganho de homem: (Pause breve.) Estamos praqui duas mulheres... Duas pobres mulheres, Rosa!... E, cd plo meu lado, j& pouco fago... Dantes outro galo cantava! Ora, LIA (retomando o trabalho: dor vivay: Dantes, tinha omem. vivo, ROSA (a querer restituir 0 aciicar): Se faz falta, eu... BERNARDA: Leva, Rosa. Podes levar. AMALIA (absorta, ‘suspendendo a tarefa): Mataram-mo. Mataram-me 0 meu marido, Rosa... ROSA (curiosidade): Acabou hoje o julgamento, no foi?... AMALIA (desalento, encolhendo os ombros): Mataram- “mo, Agora, praqui estou, sozinha BERNARDA: Julgamentos.,. Tribunais... Juizes: mentiras, Poucas-vergonhas! (Gdio.) Soltaram-no! Absolveram 0 assassino! Vé ful... ROSA (estupefactay: Nao me diga, senhora Bernarda!? AMALIA: Foi no peito, Rosa, Cravou-lhe a faca mesmo Ro centro do coracio... Horror.) Varou-o, de lado a lado! (Odio) E anda a solta... Aquele malvado, a estas horas, anda por af livre: ri-se da gente, goza, come e bebel... (Mdgoa infi- nita.) Atravessou-o de lado a iado, Rosal... Num segundo, acabou com cle num relimpago: o tempo de a gente levantar 95 olhos pra Deus... Nao mais! (Apontando para fora) Ali ja taberna! A vida dum homem € como ‘ido, Rosa! Isto brada aos céus... Ai, mas Deus nao dormel... AMALIA (com outro sentido, que no 0 de Bernarda Dolorosamente): % verdade, minha mie. Deus nao dorme! Ve tudo, nunca se esquece,.. ROSA: Dizem que ele, 0 assassino, € muito novo... Um rapazelho ainda! 17 BERNARDO SANTARENO BERNARDA: Qual, Rosa!? # um homem feito: tem vinte anos! (Com rancor.) E uma mais negra do que este pa fostra o tecido da. saia.) ROSA: Mas dizem que foi o seu genro, quem o feriu pri- cor, sempre): Dizem. ROSA: Que 0 outro viu-se obrigado a matar o teu homem, ia, pra salvar a vidal’... Ho que dizem... s as testemul lembras do meu g ROSA (a medo): Parece que estava bébado, senhora Ber- narda...? MEALIA (cansaco exiremo): Mi O resto... Ha trés meses, que er desses falat6rios! Isso nio ta, Rosa... S6 sei que meu homem est morto.... Ai © que esta mesa Ora, o resto. Mataram-mo, eu irm&o Chico também estava chamou-lhe os piores marido que i ou da navalha e nomes, provocow-o e, sém mais aqu deu-lhe um golpe no br © outro, alagado em sangue, ¢ que vem ter com BERNARDA: , desgracas, desgrace inha que ser, estaya escrito... 1 vivos e tu havias ou nfo! Assim... Ai, 1B depois, viram-no com aquela carinha tu reparaste bem nele, no correr do julgamento? $6 queria que visses, Rosa! Sério, triste, os olhos claros parécia um santinho de altar! (Feroz) Enganou-os! Tntrajou-os a todos! A estas horas, anda por ai a rirse deles, da gente... Maldito! Assassino! ROSA: Dizem que & muito bonito!?. BERNARDA: Bonito, aquele deménio?! (Levantando as maos ao alto.) Jesus! Isto brada aos céus! (Para Rosa, agr siva.} Feio, m Mais feio que a pes que a cancra ANTONIO MARINHEIRO » que Viram Id no tribunal, Ui Cr apre- jue hd quem tenha ido ao a cadela tinhosa que ROSA (para Bernarda): Isso, € a raiva que voce the tem: no domingo eu ouvi a Rosa Jesus! O estendal que ela fez: que o rapaz era bom, gue a Se Ver que estava inocente, hos que a pescaria do alto, gue. s parecia tonta! BERNARDA: Grandessissima cabra! Eu... Eu é que devia ouvir esse sermao! i © seu genro em defesa, sem que- rapaz assim, entregaria sem medo as chaves sa... (Riso brejeire.) Ai, 0 que eu me fartei altura, aparece o marido, 0 Zé Martinho, destas estaladas no nai Entio € que “om 0 sangue a correr plos inha prali gritou! Que o outro que valia mais um nico dos seus cabelos que o homem dela inteiro; que antes queria viver com ele uma hora do que a vida toda com o marido... Pumba! ainda no tinha acabado de dizer isto, ¢ ji 0 Zé Martinho Ihe arriara outra punhada, que a deitou ao chiol... Pois julgas que uu, Amélia? Pés-se a espernear como do‘da na caleada, ¢ ia, com quantos bofes tinha: ¥ lind ido, & lindol... Olha, uma vergonha. osa, inguieta, sensual.) Ele & realmente assim, ito, Amalia? AMALIA (dorida): Eu nunca r para ele. ROSA: Desgracas, Amilia, Anda, Aninhas! (Esta, di as falas. anterior sempre qualquer bringuedo.) Vamos, vamos Ik. jeu mitido com anginas: queria ver se o pequeno nga de café, Por causa dele, nfo pude ir hoje (Mudanga répida.) © senhora Bernarda, afinal donde ¢ 0 rapaz? Aqui, de Alfama, nfo consta que seja: plo fui capaz de 19 BERNARDO SANTARENO menos, ninguém o conhece por ca. A famflia dele, é claro, ( ara a rud.) do menino, que A porta, a fal ndo (Esta, absorta, nao responde.) Am AMALIA: Diga. BERNARDA: Tu rej (Amalie 05.) Parece que so os dois do mesmo navio. A co Rosa fez-me pensar: e se eles fossem irmios?... Hum, néo me cheira: nao tém a mesma pinta acabou-se! Vai, Rosa, vai-te embora: ‘Nao quero que me ais nesse homem... (Gesto de Bernarda.) Nao quero, sse!... (Indicando, com wm sinal da cabeca, a taberna.) ;, alvorocada): % bem, no toca?!... Ai, car! (A porta) B ele um Taio do céu que as quei- ‘As tabernas so lugares de morte, Rosa. Ti det masse a ANTONIO MARINHEIRO © deixes 14 ficar: se nfo Ai, matam-to, fica sabendol... ir 0 fado que Adolfo toca na que ele toca, Amilia! ida, a tremer, levantando-se): Um dia, quando estiveres descansadinha da tua no melhor do sono, quando mal o esperes, Rosa!, entram-te pela casa den- Cada grito! Ai, cada — «Corre! Corre que © teu homem esgota-s »... E tu... Depois... Quan- do, com 0 coragiio desfeito em fezes, li chegas... Achas-te com to nos bracos! Malditas tabernas! Sio lugares do nio, Rosa! (Uns passes, torturada.) Mudem um homem m, um no-te-rales de man honradez —como era o meu!— num malvado, pior que BERNARDA ((dgubre): % o vinho.. AMALIA (violenta): Eo A primeira vez AMALIA: raiva. BERNARDA: L isso... Estou farta! Ele esti motto: cala-te! AMALIA (violéncia gelade): Com rai 1 Ce warcados em sangue, os dentes arregan! Horror.) Era um lobo, Rosa! Malhou-me & doida, io transido.) Ni Um estranho! a ser a mesma mulher do men homem me ti BERNARDA: Era o vinho. AMALIA (cansaco): Era a verdade. © vinho s6 trazia ao de cima este ddio arrecadado. ROSA (que tem estado hesitante entre 0 prazer de owir @ guitarra e a impressdo causada pelas falas de medo): Credo, Amilia, quem te ouvir. AMAlia (estranheza, mistério, Nunea 0 ouvi rir com tanto gosto, cor aquela ido’ se juntava com os um rapaz, . Novol... Porqué?. (Ironia desalentada:) 24 BERNARDO SANTARENO © melhor e © pior do meu homem nfo o conhecia eu... (A indicar « taberna.) Ali! Ali € que ele se mostrava todo... forte a guitarra; nery ‘8 ouvidos com ambas as maos.) Quero sait de / «le ver-me livre desta ua, desta casa! BERNARDA: Sao homens, filha, so homens... ROSA: Sio assim, s4o todos 0 mesmo... AMALIA: A gente pensa que... Mas nao, Rosa! As mulhe- res nfo bastam aos homens. ‘Tenho a certeza! Agora, tenho a certeza: eles querem outra coisa, que a gente nao pode dar-lhes... Que a gente no tem! ROSA (quase brejeira): Essa, agora... AMALIA (orca obsessiva): © ali! Na taberna, na compa- mhia uns dos outros, que eles encontram isso! ROSA (estranheza, troca): Isso. 1 AMALIA (lorturada, fixando profundamente os olhos de Rosa): Nao sei...? (Crescente violéncia crispada.) Mas eu nunca tinha visto 0 meu tZo novo, nunca o tinha wwido rit assim, daquele jeito... O melhor do meu homem aD i... (Siléncto palpitante.) Nessa noite, percebi que esta casa era pra ele uma gaiola, uma pristiol... BERNARDA: Ora, todos os homens so iguais. Tu estés a AMALIA: Uma prisio, mae! Livre, & solta, s6 se sentia ali, na taberna, embrulhado com og outros. (Gesto de Ber- narda.) % assim como eu digo, mae! Pensei mui ‘Ai, fartei-me de pensar. 2 assim, assim tal e qual! (Ironia ‘angustiada.) Entéo vocé julea, mie, que o meu homem era um bonzarréo, um manso de algodio em rama? Pois esté muito enganadinha: era mais arisco que um cardo, mais fadista e arricado que 0 eiro! Cuida senhora 0 ¢ estal tel... (Riso nervoso, quase a chorar.) Triste, 0 meu Jesus, era um bande! homem! Mais mexido e saltador que um pardal de trigo! com I ) Isso, era ele aqui Hav’ jo além, na taberna. ROSA: Ora, Amilia! E tu a isso que tem’?! AMALIA muito! Gostavas de desco! dia que toda a tua um puro engeno? Um e elas dizem, € © mal 22 ANTONIO MARINHEIRO que nos fazem, e 0 gozo que dio a gente... Tudo, tudo sio sombras de nevoeiro, sopradelas de vento? Gostavas, Rosa?! Quand dia percebesses, quando acordasses, tinhas na ie nunca mais passa, ¢ nos olhos Cann (aponta a inela) com todas as a um homem mais falso que os bonecos que a de cinema! Nao te deixes enganar, nfo hecer 0 teu Adolfo, como ele’ & 0 b le est na, Deses- (Pausa.) Porque? Por que razio, m bom hom: Nao sei, mie. io, respeitado... AMALIA (grito): Nao sei, no sei! BERNARDA: Sei e omem melhor que eu conheei, em toda a 1 vivi com ele um recordar inteiro, todo! ¢ anga aos bocados: vém-me a meméria os , OU aS Mos, ou as falas que me dava. Mas nunca todo, nem uma s6 vez completol... (Violéncia desesperada.) Nao consigo agarré-lo, nfo sou capaz!? ROSA: Eo tempo, Amélia, Estés a esquecer o teu defunto marido... Ai, o tempo tudo apaga! BERNARDA (Ii Nem tudo, Rosa, nem tudo. AMALIA (ansiosa): Nem tudo, ROSA: E depois, Amidlia, nfo te pareca mal, mas... Enfim, tu é nova e ele, o teu homem, jé nfo... Pois, era muito ma yelho, af tens! AMALIA: Vel BERNARDO SANTARENO luzidio, alegre... Era assim 0 meu homem: ali, na taberna, com og mais, era diferente, era outro! Era mais no Raios 0 partam! BERNARDA (repreensio). Amélia!? ROSA: Morreu: deixa-lhe a alma em paz. AMALIA: Sim, mae, 14 cumpridor era ele! Cumpria todos os seus deveres de marido, nao haja divida: todos, sem faltar a nenhum! f verdade, mie, é verdade! Mas... cumpria por ago! Sem gosto, como quem paga uma divida... Sem gosto, mae! Praqueles, pros amigos, isso sim!, corria ele a contento!... é mal, no é mal nenhum. eu queria o mulherengo dum homem que nfio me saisse de casa, sempre agarrado as minhas saiasl... Ora, o qué?! Um homiem que se preze tem que ter os seus amigos, fem que beber a sua pinga, tem que... eu sei lé! Tem deu-te volta ao miolo, Amalia. Sempre dizes cada tonteira! AMALIA (arrepio): Aqui, deitadinha na mi mexer um pé, eu Sei quando eles puxam das navalhas: nem que visse, nem que visse! Sei, Rosa, sinto: o ar fica frio de gelo, mesmo no tempo quente, mesino no pico do Verde... E nas suas vozes hé qualquer coisa, uma... néio sel o qué, Rosa?... uma coisa rouca, como... quando eles cobrem a gente, na camal... 12 assim, & assim, juro! (Silencio ardente.) Quando os homens brigem uns quando eles se mat , . nko ROSA (e) ido os ombros): Nao te entendo, mulher! Nao percebo nada disso. Tu, daqui a pouco, estés mas é toli- tha de todo... Nao te rales mais, nfo te moas assim, Amalia Ai, deixa-me ir embora, que em casa... Jesus, ele € que devia ouvir- BERNARDA (sorna e ruin): Quando & que vooés se ca- sam, Rosa Nada, Eu?! Nada, mulher. Credo, nio te abespinhes ass 2! Quero la saber, Rosa! Perguntei, por perguntar... Ora esta ANTONIO MARINHEIRO ROSA: Casa comigo, sim senhora! Casa, fique sabendo! Pode dizé-lo a quem Ihe apetecer. Casa, pois entio! B mais depressa do que vocés julgam... Adeuzi fadista.) Cena VII BERNARDA (enquanto vai fechar a porta): Pois entio nfio Também me sai 1, cada pail... Heile correr com~ela daqui pra fora: sempre, sempre esta pe balhe! Eo mesmo que a gente (Outre vez, @ guitarra.) AMALIA (batendo com o ferro di posto ouvir aquilo, néo poss de petréleo): A re tens ja fre- guesia cerla: ¢ isso nfo hi d Entio que julgas? Hoje em dia trabe que lixo! vel a guitarra, na taberna: movimento crispado de Amalia.) E estas tu assim, cheia de flato, por causa daqu fadorio de ceguinhos, daquele rufia de dois patacos!?. © mulher, ld por causa disso, cer ela e pronto! Dirige-se’ pa dor fincada, a reumati pais sive i mdo no feche da janela, os olhos fas na rua.) Ai, Jesus! Olha, olha ali... Credo, Virgem San- ima! AMALIA (que suspende o trabalh BERNARDA weada): Olha ; » olha ali. ‘a da taberna... Ah, malvado! AMALIA (¢ espreitar): O qué?! Quem é, maec?. BERNAROO SANTARENO BERNARDA (rouca, a gritar): 1 ele, Amélial # ele, ¢ ele! ): Tle?!... Qual, mie? Qual?,.. novo, 6 mais novs (A. chorar.) wer pouco da enho medo, BERNARDA (ira de Ai, no haver aqui um homem! (A uit rn) AMALIA: Escute... O Adolfo ja ndo toca... Jesus, tenho muito medo! BERNARDA: E eu muita raival A minha vontade era ha, assassino! Vi provocar lia?! Medo, medo. Be fs a ver? Nio tira os olhos daqul AMALIA (cov a ansiosa e simpatia obsc ot BERNARDA ( Esta de conversa fiada Adolfo... Eu os que correr com a Rosa ra fora, estés a Va pedir pris quintas do olha praguilo!? Palmadinhas Eo Adolfo todo'se derrete! Grande intrujao, vadi amigo do h cd outra vez na pedincha, rica Rosinha ver? O assassino a apontar praqui AMALIA: Ainda nfo 0 AMALIA: Que qu s os acuda! BERNARDA (a ”: er e1 ita com: ferro morre. (Para r, be 1 surda.) His-de mor- rer cedo, il, ndo consciente: ANTONIO MARINHEIRO BERNARDA (estupefacta, voltando-se para Amilia): Néo Entao tu vés ali o matador do teu homem e... Nao Que morra, cravadinho de feridas! Roido pelos pio- AMALIA (observando Antonio): Mas ele é tao... uma crianga ainda, mie!... BERNARDA: Uma crianga que... Que z matar 0 marido! AMALIA (crispada logo, dura) razio... Esse homem mete-me medo. Feche mel... (Com estranheza, outra vex confusa, quas Wa bébado.,. (gesto de Bernarda) estava bébado, toda a © diz!... E foi ele 0 primeiro, o José € que o provocou, gado, contemplando Aniénio) Mas este & uma crianca! BERNARDA (calcinada): Tem vinte anos. Uma crianca’ Mesmo certo, tu estés boa, Amdlia?! Correa mundo: é um npedernido pelos crimes. Parece mais novo... Muito BERNARDA (liigubre): Nao lhe esmoreceram as foreas quando cravou a faca no peito do tev homem!... AMALIA (terror; agressividede): Esteja calada, mie! £ verdade, tem razio... ‘Tem razio!... (Corre a porta, dando ve.) Assassino! Malvade Tenho-lhe raiva, para junto da janela; de novo a observar Anto ez quebrada.) Como & que ele foi O que mi J aquele rapaz, mae para Bernarda; esta, ida, enc . Wolta @ contemplacao de Ant Que quer ele da gente?... (Qu vviu bem os olhos dele? Tao ti BERNARDA (abanando @ cabe Amilia, vai-te deitar: estas c: BERNARDO SANTARENO — ANTONIO MARINHEIRO AMALIA (c ele foi eapaz de n Pronto, vai, vai-te uns segundos de si n se voltar, para Bérnarda): Ble ja... ja se f BERNARDA AMALIA (a pode reconhece BERNARDA: E atirar-te u AMALIA (viole vés que... (Abraca nco da ge Duas m ‘a nossa, que 4 é a sorte, mae BERNARDA s infelizes, duas des- cadas, € 0 que a gente AMALIA: E cast BERNARDA (afastando-se de A igo?! AMALIA (dentro da f do dorme, © mal se paga, BERNARDA sei isso tudo, de cor e pre nessa hist6ria. AMALIA: Eo mesm F, como nao. Bo Deus viu, Deus sabe. we aS vores que e ossos coracdes. Ouve, sim senhora! Que querias tu que FE assim, € deste jeito 1 (Uns. passos.) Quem te ouvir ainda por cima...) (Estaca Olha que nao fui eu! AMALIA Fomos am! BERNARDA (vio ! (Caindo em si.) Dei xa... Deixa agora é vio tantos anos, jé passou tanto a que his-le estar sempre AMALIA (encolhida): Todo © mal se paga, mie. Agora para aqui estamos as duas, sor méos no E eu seca... Mais sequinha do que um cardo! BERNARDA (« edo): Credo! Quem s AMALIA (ing Bele... E el BERNARDA: O qué?! Era o que faltava... Esse bandido...! (Feroz, « gr AMALIA (¢ tremer): B ele. BERNARDA (indo até junto da porta): Quem &? Quem BERNARDA (cega de fiiria): Ah, grande. mente 0 postigo.) yer a tua obra, no aqui, para... Espera! Espera ai qu tu que, por sermos $6 d abrindo a Acudam!... ns, nat porta dat tumulto,) Agatrem este homem! Agarrem-no!... Foi ele que Matou o meu genro, foi ele! Act Acudam, por amor de Deus! Este malvado veio fazer mal & gente também! Mata- nos! Ele mata-nos! (Gritos na rua: Homens e Mutheres passam a correr.) AMALIA (que, desde 0 comeco desta fala de Bernarda, esta diante do postigo aberto, ansioss, percorrida por forcas estranhas, sem poder despegar os olhos do rosto de Antonio 29 BERNARDO SANTARENO Marinheiro, que, Sobressaltada, como, ua); Cale-se, mae! (Hesita uns segundos, depot isola, boné dem BERNARDA (descendo ao centro: esp ia): Tu ‘Amalia?! Jesus, Jesus! Este... este homem aqui itar de novo.) puxando Bernardo): stein quicta, indalo? Cale-se praf, por amor de Det re, estupefacta, fica-se a olhar Anténio com rancor do. A & janela ¢ fala para o pave.) NAo € na n quer fazer mal 4 gente... € 56 isto! Nao fagam (Riso forcado, @ falar para dentro.) Esté a ver? anja com as suas maluqueiras... (Para fora.) Podem ir... Vao-se emboral Nao fagam caso, nio fagam caso da minha nao anda boa... (Gargalhada nervosa) Jesus, quem er mal?! Com licenea... (Cerra a janela, Volta-se e, trémule, para Anténio. ardente: con 2 os trés com violéncia instintiva.) Que quer da e, baixando a cabi ‘ANTONIO: Quer... BERNARDA: Ver o que fez da gente, nio 6? ANTONIO (sincero): Vinha pedir-lhes perdi. AMALIA (dor cortante; tristeza): Vé-se embora.. BERNARDA (rodeando Anténio, feroz): Esti contente Ai, nfo ter eu um Nio haver aqui um braco de homem! Se assim fosse, —— ANTONIO MARINHEIRO nao vinhas tu cé, bandido! Estés satisfeito, agora? Esta casa cheira a miséria, ‘cem léguas em redor! AMALIA (f ? BERNARDA (x chore, dio): Dats assas- sinol, e talvez. ainda te ve Pode ser... pode ser que um a genie aqui, mortinhas de fome e roidas pelos bichos! Era o que tu gostavas, nfio era?... (Fuiria.) Rua! Rua, desta casa pra fora! “Ai, que eu antes quero airancar a ollios do que ver mais tempo, diante de mim, o teu foci- tho malvado,.. Ri s AMALIA’ (rei visto nunca! Que mal the podia querer’! Aquela, foi a primeira vex que Ihe fale... Somras.) Mas cle ofendet-me, chamou-me... tudo, tudo o que ha de Depois, cor- (contra-se assustado) nesse instante, no s BERNARDA: A\ AMALIA (desviando os olh to de Antonio; expres BERNARDA: E soltaram sem castigo, sem... Mas h4 Deus, ha Deus! E Deus ving: ipatia Estou sempre tenho-a aq ouvidos... ... B verdade, isto! Escuto as palavras dele, como sem de dentro de mim... Come se fosse et proprio que as disses. (Si a nente atraida, aproxin BERNARDO SANTARENO he AMALIA ces... Parect escute: a vor do... € BERNARDA (brutal): Doida! Mil vezes doida! a vor dele... E, as vezes, quanto , quanto mais grita... mais cd no fundo eu sinto, no Jo, uma coisa a arder, viva... uma coisa alegre...? : Isto"ndio € homem, é uma fera! ANTONIO lo ca uns passos na di- reegio de Bernarda): Nao. BERNARDA (a correr ‘me toque! Act io deixa ca se doce): Deixe-o, mae. thar alternadamente para Ber- Porque eu... quando o vi... ali, naquela (explosao desespe- Nao posso, nfo o posso ouvir! ‘de homem de que tanto tivesse Quando entrei, ele cantava 0 | Era novo... TAo novo!.. ada, quase agressiva): gostado, assim, de repente.. fado: nunca ouvi cantar to be a): Ea 10 (doce): Como ele AMALIA (seca): Aqui, na no: BERNARDA: E matou-o!? ANTONIO (dor): Ele, nfo; ele embirrou logo_comigo. quilo era raival Porqué?... (Desesperado.) Por- piolhoso, vadio.... tudo coisas mi ANTONIO MARINHEIRO AMALIA (cans ANTONIO: Matei-o. (Revolta.) E nfo queria, eu nao ‘ado.) Mata-se um homem num instante: ‘a nada, nada desta vidal Nao ha coisa mais rapida... (A gritar; dor, desespero.) Porqué? Por que razio ele tinha aquele odio contra mim?!,.. Eu ja nem o escutava... Por fim, jd nfo percebia as ofensas: matei-o porque... nao podia aguen- tar mais aquele 6dio! (Assustado, arfante, fera perseguida.) BERNARDA (rugido feroz): Malvado! Has-e pagar, mal- vado! cai MALIA (insti solto, vor raseado} ANTONIO (@ suar de tou-me, sangue. Nao diga isso! todo dobrado sobre si ‘ita 0 tronco, domina-se, Nao tenho frieza aparente na face.) Vim c& trazer-Ihes isto. mais. (PGe uma carteira em cima da mesa.) io com ndusea a carteira, sem a tirar 1 pra nos tapares a boca? isso daquit AMALIA (doc ser eu que... Ac ): O que me roub ‘ a @ Antonio.) Be ANTONIO a custo, a carteira): Mas eu gos- tava que... Nao querem? AMALIA (espécie dé enlevo) novo! BERNARDA: £, Sé com uma AMALIA (sobressalto) ANTONIO: Foi sem querer, eu nic... BERNARDA: Nio tem perdio, malvad AMALIA (serena, outra vez suave): Acre fm si: sei que tem pena. ____ ANTONIO (suspenso dos olhos de Amélia: éxtase): Se pu- desse saber o bem que essas palavras me fazem! £ muito novo... E tio avalhad: verdade. matou: ANTONIO MARINHEIRO BERNARDO SANTARENO eu sinto que acredita em mim. Era © que eu queria, era 0 BERNARDA (@proximando-se de Anténio: édio, sempre): Essa cara... Essa carinha de anjo sem tripas! A mim, nfo me enganas tu: tens o coracio, as entranhas, tudo denti mais negtos do que o carvo, mais fedorentos do que os esgo- tos! Essa cara... (Ironia desesperada.) Até tu, Amélia! Tam- bem tu... AMALIA (simples): Até eu, mae... (Siléncio confuso, dux rante 0 qual contempla Antonio.) ANTONIO (perturbacao que nao consegue dominar): Vou -me embora... (Rola o boné, entre as méos.) AMALIA (idem): Embarea outra vez?... ANTONIO: Sim, se atranjar barco.. AMALIA (ansiedade): Vai pra long ANTONIO (confirmando, soturnoy: Pra longe GEERNARDA: Que vi pris quintas do inferno! Pra onde wimento de cabeca, a ele? Nao é seu irmAo?!.., ANTONIO: Nao, E meu amigo. AMALIA. (ternura crescente, angistia nebulose: Entto morrew-the 2 "ANTONIO (covtondo, inda tio novo... B. BERNARDA (dura): Tu no re acabo de erer! Isto, s6 visto, . Nao posso, no posso ouvir-te, Amélia! me revoltal... (Para Antonio, com édio, , mulher: agora 6 que Uma crianca! Olha, His-de pi rior, da da.) , assassino! (Sai pela porta inte- Cena IX, ANTONIO (indicando Bernarda): Tem-me raiva... AMALIA (muito inquieta, procurando dominar-se): Admi- ase’ ANTONIO (sombrio): Nao. AMALIA: Jé vé... ANTONIO (répido, suplicante): EB voc8?... (Emendando logo.) A senhora?. AMALIA (suave, tristissima, indicando com a cabeca 0 retrato do marido): Matou-mo. ANTONIO (aproxima-se ¢ observa, atentamente, 0 re~ trato: a tremer, ansioso): T... 6 clel AMALIA (crispada): Foi voce... com essa mio... atraves- sou-lhe o peito!... (Terror) O sangue dele correu, correu... Ensopou tudo. (Violenia.) Ja se esqueceu?! ANTONIO (sempre diante do retrato, abismado): ¥ ele... tal qual, (Volta-se dolorosamente para Amdlia, os ofhos rasos de Idgrimas.) Durante estes trés meses, depois que eu o.. LA na prisio, todos os dias, em cada hora! Mesmo sem que- fer, eu pensava nesta casa,’ Pode acredit & esquisito, i... (exploso) & verdade, € verdad Eu g AMALIA (nm ANTONIO: o so os remorsos 4 ANTONIO (espécie de ferocidade infantil): Nao! Nao, se- mhora! Eu nao sinto remorsos... Nem pena, nem vergonhi Quando me lembro dele, e agora diante deste retrato, eu nfo 9 nada disso: 6 uma coi © que eu sinto—nio se zangue comigo! —, uma coisa como... como quando 9 navio B, 6 uma coisa assim que A cidade, a t tende? S6 parece iro bem, 2 minha vontade, quando deixo de ver a costa, quando estou no meio do mar! Quando me lembro dele Ge novo a contemplar o retrato), & wma coisa assim que eu sinto... AMALIA (apavorada): Vase embora, vé-se embora! Eu no o percebo... Nem quero! Vase embora ande!... BERNARDO SANTARENO ANTONIO (wis passos na direce as mio estendidas, implorantes): Disse que acreditava em. mim. AMALIA (a recuar): Deixe-me, deixe-me! Eu olho pra si, ris suas mios... e s6 vejo sangue! Vi-se embora... ANTONIO (péra: a mirar as proprias méos): Sangue... © sangue dele: € yerdade!... Tem medo de mim, no 6? Meto- he medo?... AMALIA; Tenho, tenho medo de si r a a contemplar as gue dele! Sinto-o aqui, ainda o cheiro... (Violén- liberta.) Quer saber? Quer que eu Ihe diga a verdade? A lembranca desse sangue io me faz medo, nem raiva, nem ida disso, (Afagando, uma com a outra, as proprias fox: espécie de sensualidade:) Era como seda a corre, como veludo, AMALIA (transida): doido!?... & um doido!... ANTONIO: E 0 que diz, o Rui. Que estou doido! ‘Talvez... (Com jiiria.) Mas & verdade, & verdade! Nao sinto remorsos, me parece que, 7 é arece que nao fui eu, mas Deus, ou o » que manejou o meu braco: e s6 pra que eu sentisse ingue dele nas mi @ gritar): Vé-so daquil Cale-se, se por amor de Deus! Mae! Oh, mie! ANTONIO (de siibito feroz, ameacador, ia), N&o grit AMALIA (grito de pavor): Mie! Venha ANTONIO (cor bas as miios): Nao grite... Nao quero que grite! Olhe que... (Levanta os punhos para Amélia; mas logo os deixa cair iner- 8; cfasta-se na direcedo da porta; péra; siléncio arfante; sem se voltar para Amélia, a voz quase serena.) Nao sinto remor- 80s, por ter derramado esse sangue. seja diferente das o1 talver. eu seja ruim de nas- eenga.. ce (Mtudanca répida.) Pr you-me embora! (parece Bernarda, na porta da esquerd sobressalto primeiro, depois espanto; imével.) Fique descan- | sada: nunca mais me poe a vista em cima. (Desespero mor- dido.) Mas isto que eu Ihe disse aqui, € verdade, (Mais um 36 ANTONIO MARINHEIRO asso ) Diga. vras seniio a sil? Era pior que a fome, piot que a sedi ir falarlhe! (Desesperado.) Pra qué?... Pra qué?! Olhe, em mim, la © quo Id se quase nfo son capaz de Ihe 0 certo, $6 a via a si, 36 a escutava.a si! Nao podi que quisesse, nao podia tirar os olhes da sua cara, (Abre @ porta; val ‘para sir.) AMALIA (grito instintivo, irracionaly: Antonio!? ANTONIO (reaparece: luz nos olhos, ansiedade, amor) Nao tem medo...? AMALIA (incontrolével: pura forea do in Nio tenho medo de si... AgANTONIO (uns passos para Amélie): Acredita no que eu lisse? AMALIA (um passo para Ant Tao novo... E quase um menino! Acredi 10), Nao... Anténio deixou aberta, aparece Rui @ fumar; gingto e muito belo. Até final do acto, expresso erescente de néusea, de ironia ciumenta:) ANTONIO (éxtase): BERNARDA ( ANTONIO (fer Jadrao. E sujo: sujo com todas as porcarias do mun r, nervosa): Vadio, ibendo! Toda a minha vida andei de navio pr Nunea via minha mi e casa... nad onheciIixo! BERNARDA: Assassino! BERNARDO SANTARENO —— ANTONIO (voz surda, baixando a cabeca): E agora matei AMALIA (ternura ardente): #& uma crianca... & ainda ‘uma erianca! ANTONIO (num impeto, corre para Amélia ¢ langa-se-lhe aos pés: a chorar, realmente wma crianca assustada): Nao te- nha medo de mim... Perdoe-me... Perdoe-me! AMALIA (a médo, com infinita docura, poisa as maos na cabeca de Antonio, esbocande uma caricia; toda inst e sensibilidade: confusamente maternal): Perdoo-te, Ant BERNARDA (grito sangrento de reprovaciio): Amiélia?! agRUL (reprovande, também: desdém, desprezo; geladoy Fim do primeiro acto Segundo acto CENARIO © mesmo do 1.° acto. E a noite de Natal. Ao subir 0 pano, Amiélia, sozinha em cena, pie a mesa de consoada. Parece mais nova, mais leve de movimentos; ainda vestida de luto, mas com mais garridice; vai cantarolando, distraida, Cena I BERNARDA (entra, pela porta da esquerda, tracendo uma travessa com fritos; é entrada, por momentos, fica parada a observar Amélie: sobrecenho carregado, expressio de desa- grado; depois vai por a travessa na mesa, batendo com ela rudemente): Lowvado seja Deus! Nao ha bem que sempre dure, nem mal que nao se AMALIA: Que horas sio, mie arranjo da mesa, sempre a cantarolar.) BERNARDA (exagero nos gestos): Sim, senhora! Estou banzada, rapariga: tu até ja cantas!... Olha... % verdade! (Por mo- mentos, i / Estava dis ua cantar?! Nao se zangue, mae... (Abrese numa gargalhada fresea, jovem.) BERNARDA (ruim): Faz hoje um ano, ainda ele era... pAMALIA (ogo enervada): Ja sei, senhora! E voe8 a dar- cthe... 14 ua entretida no ANTONIO MARINHEIRO BERNARDO SANTARENO RNARDA: Ai, tudo passa, tudo esquece!... AMALIA: Mas quem é que Ihe disse a yocé que... Ora, ihe troco! E sempre, sempre a mesma . Sabe que mais? Eu ci nio estou que eu faca —a mais mundo! — que vocé nao venha Pois que julga? Olhe que eu. fraldas.. fe, a mais simples der, agoirar... Estou fa ‘Vai boa a me- AMALIA (crispada, deixando-se cair numa cadeira): Ja sei! Raio de.. nte, nio ¢? Ja est contente: en- qua quero ver: quero que te res; gosto de ouvir 0... 0 que ja se cochicha, Nao consinto que essa gentinha se tia de AMALIA (levanta-se; mov iam! Que rebentem a rir! Quero cé riem porqué? Porqué, mae?! me por, assim que seja (mostra @ ponta da unha), a mim?! Ora, ora, sei ido_ isso sto invenciies suas! O que voce quer é ver-me... Mas no, nao e nfo! Estou contente, estou iente, e nao hé-de estragar-me esta (Volta ao arranja wo esa, a cantar nervosamenie, mais alto, batendo com a BERNARDA (autoritdria): Cala-te! Nao quero que cantes aqui, nesta casa. Pelo menos, enquanto eu c4 viver... Por is © por outras, € que elas (aponia para a rwa) dizem 0 que izem. AMALIA ando para Bernarday: Elas, quem?! Que lem. essas desavergonhadas dizer? Que eu trabalho todo 0 nto dia, de manha & noite? Que goyerno a minha casa sozi- tha, A custa do suor do meu rosto, sem ajudas de ninguém? Que nesia casa nao entra corpo (bate com a mao no p. S6 se for i sto é que elas p. entos bruscos, nervosos): Que ‘ia.) Mas, n dizer!... B quem sf0 murmuram de mim? Jesus, que santinhas de Nem 0 Santo Antoninho, ali da Sé, tem mais Maria do Rosério, que mete o Chico funileiro fm casa, enquanto o pobre do marido anda embarcado por esses mares além? Ou a Beatriz Carluxa que, com anos fc © Zé tal usta do dinheiro que o marido rouba aos maricas do Ter- Teito do Paco?... SO se forem estas que falem de mim: mulher de vergonha 0 a certeza! Que falem! Que vio a... (Dominan- dose.) Ai, minha mae, voce faz-me perder a cabec €a noite de Natal! BERNARDA: Poi Fando.) Noite triste, Ai intencional.) Plo menos pra mim. Estou a v entrava ele por ai dentro, carregadinho de embrulhos. tum homem bom, o teu: “Toma Ié tu; isto é pra si; s The agrada esta ‘prenda, diga, que eu vou trocé-la... homem bom, um mios-largas, um coragio de oiro pu Ainda 0 Natal passado... (Limpa ox olhos ao avental.) Enti Tigo falemos de coisas tristes. (Mordente.) Tu, felizmente, estés alegre. Ai, ai, as saudades que eu tenho do José! Ainda me embro daguele ano em que... (Repara de sitbito, que 0 retrato We José jé nao esté pendurado no sitio habitual: surpresa, indignacao.) Mas 0 que € isto? Onde esta o retrato dele, Aili AMALIA (conjusa) BERNARDA: Tiraste-o? Porqué? AMALIA: Ora miel... Nao sei dentro... BERNARDA: Essa, agora!? (P Kava-te? AMALIA (irritada): Mau, 16 comeca vocé com. Tepelao,) Incomodava-me, si Hoje, incomodava-me: €a noite de Natal, quero estar content BERNARDA (maty Pensa Ko que é, sei cul»): Ah!... Hdano lembrar-me do José: antes pelo’ contrario. Olha que bautica, em tantos anos que viveu aq @quela alininha se esqueccu, nestes BERNARDO SANTARENO denata, que sio os que eu mais aprecio... AMALIA (sinceramente envergonhada; com pena): Ai, mie, esqueci-me dos seus pastéis de nata, veja lal... (Num transporte de ternura, abracando Bernarda.) Tenho tanta a0 Anténio que qu ©, depois, esqueci-m: . BERNARDA (ogo hirta, empurrando Amilia): Ao... ténio? Qual Anténio?! AMALIA (descoherta, a .- Pois... © An- 0... Qual havia de ser?... O-A BERNARDA: Entao viste-o on! AMALIA (receos: quando fui comprar linhas, BERNARDA: E falastedhe?... AMALIA: Ele yeio ter comigo... Falei, é claro! BERNARDA (raiva surda): Claro que falaste. Eu. sempre faco cada perguntal... (Dominando-se.) Bem, bem! Eu you 1 dentro ver as batatas... (A caminhar para a porte da esquerda.) # por essas e por outras, que eu... (pausa; @ porta, voltando-se para Amdlia) oigo as vezes, ai por essa Aifama, aquelas de que nem 0s cies gostam! (Sai.) Cena IL (Amélia, uma vez s6, ¢ depois de se iarda @ ndo espia, poe-se & es @ rua; cautelosa, impaciente.) rrtifiear de que vita na jancla que dé para ROSA (de fora): 6 da_guard ADOLFO (56 @ voz): (Gritos de Rosa, ameacas de Adolfo, choro da crianga: tudo mente. ia, enervada, abre @ janela de par em debrugando-se para'o lado de casa invisivel de Rosa, ow quatro homens surgem na porta da taberna e comen: tam a zaragata em gestos de troca.) BERNARDA (vinda da c porta da rua) Ab, outra ve7!.. vado seja Deus! tha): Que & is Nem na noite de ‘© piores que bichos! 42 ANTONIO MARINHEIRO ROSA (voz aflita): Ai, Jesus! © da guardal ga a saia da mie, Ber- na taberna. Amdlia Cena II ‘A (em alta grita choromingada, mostrando uma das ‘Veja, veja isto, senhora Bernarda! Foi um pontapé otha o que cle me fez!... (Numa jando direita 4 porta da rua, os bra ‘amente levantados.) Grande ladrao! Chulo! Chu- (ninhas chora mais.) BERNARDA (animando Aninhas, @ qual oferece um frito): A\ ‘Anda, filha, come: & bom... Pobre crian- , tu nfo tens vergonha, Rose? # a noite de ROSA (exagerada): Ceguinha seja eu, mais rasa que a lama, se voltar pra companhia dese homem! Bandidol... Quer saber por que me bateu ele hoje, Quetia dinheiro pra moina, pra jogatina... Apanha-me tudo O-que eu ganho, Amélia! (A chorar.) Ando praqui derreadi- tha, todo o dia de rastos a esfregar casas, praquele... (Novo impeto, na direccdo da porta.) Mando-te prender, gatuno! Vais ver, vais ver... (Volta ao centro.) Nao quer trabalhar, senhora Bernarda! Nao ha meio... (Sente-se.) Ai, sou uma desgra- cadinha, uma infeliz!... a (compadeci . Rosa! Vais ver que yuestio de arranjar trabalho a seu gosto. a seu gosto?! Qual, Amélia? Que eu saiba, ele s6 gosta de fazer uma coisa: tocar guitarra. O resto... # um vadio, um traste! O pior € que eu... (Chora) _ AMALIA (simpatia funda): Tens paixéo por ele, nfo 62... (Rosa soluca.) BERNARDO SANTARENO - ANTONIO MARINHEIRO BERNARDA (seca): Ab, ele 6 isso? Pois sempre ouvi dizer ROSA: Ja comi qualquer coisa. (Com intengio, curiosa.) que, quem corre por gosto, nfo cansa. Ora, logo fazem as Ele ja veio?. a, dai a bocado, AMALIA (ferida, brusca) s tam as mulheres ROSA (brejeira): Ora, ora! moles que sujeitas ao homem que MALIA (disfarcando a sua pe dono... Ah, trampa de gente! (Para Rosa.) O rapa- Peet eislercondo o Tiga, tu ndo tens sangue, nem as: trabalhares, Poon Paik age Aetna ROSA (comendo e pro diabo! pre vail praf u AMALIA Gr Sank, AMALIA (sacudida, enervada): Que mordam, que mor- Sore a am até quebrarem os dentes!... , Yve, pica): O que ela ROSA: A inma do teu dé 6 Rosa! — 6 vergonha: rebaixar-se edo, s6 queria que a ouvisses!... AMALIA (a sofrer, tentando disfarcar): Fago ideia, fago P ipando os olhos): ¥ este o meu fado: cada qual uma pequena ideia: nem o deménio tem mais veneno no & pro que nasce rabo do que ela na lingua! AMALIA (turva, ambigua): sta dum ho- ROSA: S6 te digo, Amalia, que de cabra pra cima... AMALIA: Esquece-se de que ja tem filhas crescidas; pla € que morre o peixe. Oey at ue Farce re ROSA: Aos gritos, ali no chafariz, pra quem a quis lia, é desculpa de mulher doida: uma que seja séria, que tenha ouvir...! Tespeito por si mesma, néo pensa assim! ROSA (fatalista): Eo meu fado, senhora Bernarda: que Ihe dé, no saio disto... (A chamar.) Aninhas? NINHAS (que vai logo para junto de Rosa): NMaez- 0 marido, a Felismina. Os meus segredos podem ser gr ‘menos, até a0 ponto de hoje. ROSA: © Amélia, aqui pra nds... com franqueza... que iabo, & esq vi uma coisa assim: caramba! Foi ele que... , a cle o de. 1a entre os bracos): Tens fri, AMALIA (cortando): filhinha? Viemos prd meio da rua, a: ROSA: E a crianga € que eu tenho pena! Maldita © pequeno nfo acordou, gracas a Deus: esta'a dormir, (Arrepio, apertando.m ta Aguele homem, qualquer vontade, BERNARDA: Anda, vem co Dizem q tua casa, que entra coisa boa? (Para Rose.) Voces hoje : AMALIA (calme aparente): E & verdade: j4 ci veio. Até calha bem: tanto comer, s6 pra duas pessoas! admiras...2! A tna mie sabe dessas. menina, anda dai ROSA (apertando a m , com os olhos frangueza, isto | POete tu no Cena 1V atirar poeira acs olhos, a mim? AMALIA (descoberta sibito): O qué? Entfo pensam que. jantaste, ‘Olba o disparate! Mesmo certo, julgavam que eu... que o AMALIA (de novo a espreita, na Ant Ai, que esta o mundo doido! Mas ele é um mitido. Rosa’, 45 BERNARDO SANTARENO ANTONIO. MARINHEIRO ROSA (mal convencida): Um mitido?! 6 mulher, tu cuidas que eu sou bronca de Vejam 14, um mitido! AMALIA: E eu a imaginar que... sim, nunca me tinha passado ainda pla cabeca que 0... que punham peconha dessa, entre mim e o Ani6nio...1? (Sensacao de estranheze, quase repugndncia.) Credo! Muito suja 6 essa gente, louvado soja Deus! Entio eu podia ld... (Sincera; explosio de ternura do tipo maternal.) Mas ele & quase uma crianca!? ROSA (irritada, bruscay. E ela a dar-lhe! Qual crianga, qual... E tu a quereres meter-me os dedos pelos olhos dentro, nao véem isto?!... E depois, esse homem € 0 assassino do teu marido! AMALIA (angustiada, inquieta; a dominar-s¢): % verdade, Cuidava eu quo seria por causa disso, que essa gentinha fa- lava... Mas ndo, (Sincera.) Como é que elas puderam pensar ? Que eu € 0 Anténio...?! ROSA (manha, curiosidade): Olha lé, Amélia, tu j conhe- éias 0 An‘Snio Marinheiro antes de... sim, antes da morte jo teu marido? AMALIA: Eu? Nao, nunca o vi antes. Nem no tribunal: no fui capaz, durante o julgamento, de olhar pra ele. ROSA: Juras? Dis-me a tua palavra de honra? AMALIA (admirada): Mas... Que queres foi aqui que eu Ihe pus os 0 , pela primeira vez. ROSA: Pois olha que a Felismina anda’a dizer, alto e bom som, que tu jd antes te entendias com ele, com esse Mari- que Ihe cortassem a bisbilhoteira): Que Iguém tem que ser, Pois a firia): Com a verdade que ela inhos bravos nos olhos! Que os (De stibito vé, através da iro que esta a porta da taberna: e logo quase meiga.) Olha... Olha, ali... le, € ele! ROSA (que se levantou para observar Antonio, sentando-se de novo): E ainda tu falas... Tu tens paixdo por ele, Amélia! (roca brejeira.) Vejam, vejam como ela esté: agarra o cora- do, menina, olha que ele avoa-te!... (Riso.) AMALIA (as palayras de Rosa, reage primeiro com movi- menios bruscos de impaciéncia agressiva; depois, dividida interiormente, quase desesperada, com os olhos cheios de Iégrimas): Ob, Re ROSA (admirada): © mulher, nio chores... Que diabo, (Explodindo.) Entio, mesmo certo, néo hd nada entre vocés?!.. AMALIA (seca, digna): Bom, acabou-se a conversa. Tu Julgas que eu sou da laia dessas que tu... Mas hoje € noite de Natal e eu nfo quero... Nao queria, Rosal, sair fora de mim, estender mais roupa suja. (Volta a contemplar Antonio: silén- cio; depois, intensamente, com ternura maternal.) Paixio, pelo Antonio? Eu?! 6 Rosa, mas tu nao vés como ele é ainda novinho? Olha, olha pra ele agora... (Anténio fuma.) ROSA (sensualidade): Um lindissimo ra ele €. AMALIA (sempre com os olhos em Anténio): Paixio por Isso € 0 que 4 boa essa, Amilia! Ai, podias, po- novo para admirar Antonie urpresa alvorogada: confusiio de sentimentos): Um anjo pin reparaste na boca dele, Rosa? Olha, vé agora: tem. ios de_criancal ROSA (riso aquele se Vé-se mesmo! Tem pinta, tei AMALIA (errepiada,_ se Nio digas isso, Rosa Pois no, nao digo: se fosse aqui uns tempos at portava de fazer a experiéncial... (A observar An- ginem, boquinha de crianca! (Riso.) Digo e redigo, tem. E dentes de lob« BERNARDO SANTARENO s sou etl ls JA (que corresponde a um aceno de jue quer ROSA Upergalhads grosteira): Que quer? Naturalmente, as ee contig t6nio): O que para Rosa: inguieta, de menina, isso nfo! AMALIA (sombria): ROSA (para fazer doe Amilia: ai, os olhinhos rist rassa esta figura em jrente da taberna.) AMALIA (crispada, voltando-se logo para a rua; densa, ogressividadey. Lé vens tu com... Isso é VO pobre rape ROSA: Pudera! AMALIA (raiva, homens que sempre est ROSA ( ): Bois ja 4 agora r da_mocidade. AMALIA (feroz): & uma primeiro que passa! ROSA (trocisia): Tesus as é bonita (acentuando), ‘Ai, dezoito anos! ra! Uma perdida que se vende mulher, que im, que tu tens si ofha para Rosa: perplexa, nebu- ite confusa): Eu?!... Ciimes?... Ciimes do Anténio? Angtistia viva.) Eu jé estou v mim, Rosa: achas-me velha? z ROSA: Qual qu merects tomaram muitas raparigas de vinte, Olé, se tomaram! Repara bem em mim: s6 tenho vinte e sete, e quem € capaz de dizer que eu sou mais nova que tu)... F mmha filha, ni me yenhas pra cé com essas, Se tu me confessasses qué nfo querias, que nio podia ser porque... porque, enfim, afinal sempre foi ele que matou o teu marido!? ainda va Ié, mas... AMALIA (logo crispada): Fé-lo em legitima defesa. ANTONIO. MARINHEIRO ROSA: Pois fez. Foi o que eles disseram 14 no tribunal. Mas otha que a tua mi AMALL © rapaz vem c4 hoje passar o serio? Ah, isso queria eu! , a noite de Natal: ele, coitadito, nao tem f tenho medo de o di AMALIA: Diz que si ROSA: E tu’... AMALIA (th ROSA (sempre com malicia): Pronto! Nao ponhas mais no 0. Mas entio, onde é que AMALIA: Nio posso recebé-lo aqui, sozinha...? ROSA: Ora, fico eu com vo AMALIA (contente): Ficas? Fazes isso, Rosa?! ROSA: Esta combinado, AMALIA: Obrigadinha! Owre-se 0 Annas.) {que the pedi pra ela espreitar o meu Adolfo... ARDA® Sio horas. Vi AMALIA: Eu cé, este ano, nflo vou... BERNARDA: Nao vais? Porqué, pode saber-se?! AMALIA: Ectou derreada, néio me apetece... Mas vi voc, mie; cu espero aqui por si, pra cearmos. 49, ‘BERNARDO. SANTARENO ROSA: Ys senhora Bernarda! Olhe, leve consigo a minha Anin Ihe faz companhia... (Arranja o ves- tido @ 0 cabe nd.) AMALIA: A Rosa fica aqui comigo... Wisfaread Bernarda vai até & janela, espreitando para a rua) ROSA: Fico, ha BERNARDA (rigida): Vou, vou. Estejam.sossegadas, que euvou. (Pare Amalia.) Quem boa cama fizer, nela se deitara... Vou & missa: a ver se Deus Nosso Senhor mo faz a esmola de me levar depressa deste mundo! Ja vi coisas de mais, ja ouvi de mais... jé sofri de mais. Queres vir comigo, Aninh io @ pequena.) Ev, agora, s6 te sirvo de empecitho, Amiélia: 6 se fosse cega, surda, e varridinha do Assim... (Violenta.) Deixa-te de fingidices: manda-o (Vai @ janela e abre-a de par em par; chamando.) Senhor Antonio! Pst, 6 senhor Ant6nio!? (Anténio aproxi- ma-se, Bernarda cerra a janela e volta para dentro.) Ao me- ‘nos, facam as coisas as claras... (Abre a porta: entra Ant vestido de maritimo.) Entre! Entre!... fa Bernarda; pode ir descansadi- Cena VI ANTONIO: Boa noitel.. AMALIA E ROSA: Boa noite! BERNARDA;: A minha filha queria convidé-lo pra aqui com ela. (Marcando as palavras.) Pediu-me licenca, e eu dei-lha. Sente-se, esteja A sua vontade... EB nio esperem por Pra comer: comecem jé, que sempre demoro, (Amélie vai para dizer que esperam, etc.) BERNARDA (impedindo Amélia de falar: ironia amar- gurada): Jé. sei, filha, j4 sei que vais ter muita pena, se cu nig cear contigo, (Para Anténio.) A Amélia 6 muito minha amiga: estraga-me com mimos, faz-me todas as vontades. (Mudanca: mais seca.) Nao nota nenbuma diferenca nesta 50 — ANTONIO MARINHEIRO asa, senhor Aniénio?... (Este olha em redor: encolhe os gmbros.) Repare, olhe bem: falta qualquer coisa... (Siléncio.) Nio nota, mesmo certo?! (Acentuando 0 sorriso ri ateados.) Al do meu fal lia, curiosidade em Rosa.) Anda, menina, vamos Id... Wai para sair, com Aninhas.) jernard Diga?! isto SNTONIO (oferecendo um embrulho a Bernarda): Tra isto, BERNARDA: Pra mim?. ANTONIO: Sim. ; sei que apre- cia... BERNARDA (tomando o embri 08): Sabe? EB quem Ihe disse isso?!... (Anténio olha para Amalia.) Ah!, pois, foia minha Amélia: que filha mais amiga! Eu nem a merego. (tha para ox bolos, depois para Anténio e, por fim, para @ sitio da parede onde estava o retrato de José: tem os olhos gheios de lagrimas.) Muito agradecida pela lombranca, mes... € aie eu enjoei os pastéis de nata: agora, nao posso com tals doces! (Para Amélia.) A gente muda tanto, nfo 6? E as vezes, fem bem pouco tempo!... Toma la, Rosa: é pro teu pequeno, (Entregathe os bolos.) Vamos embora, Aninhas (a voz embar- gada), a ver se Nosso Senhor me faz a yontade, se Ele tem “pena de mim!... (Sai, nhas, Os € Rosa, constrangidos.) 108, outra vez. Amdli Cena VII AMALIA (esforco para quebrar 0 embaraco): J& conhecia a Rosa? ANTONIO: 3 a rapariga do Adolfo, nfio 6? ROSA (agressivay: Era, eral AMALIA (riso): Ora, arrufos ANTONIO: Ele 6 bom rapaz. ROSA: Pois entao no 6?! Bonzinho, doce como azedas.. E trabalhador?! Ai, ndo ha outro como ele: eu até estou seni. Pre com medo que © probrezinho rebente do peito!... BERNARDO SANTARENO AMALIA (para Anténio): Néo haveré mais nenhuma vaga, la nos barcos do Barreiro? ANTONIO: Isso sim, agora nol... Mas logo que apa- rega... Eu tive sorte, foi um acaso: morreu um, de desastre... ROSA: Ai, espera ld que ele jf cafa nessa? trabalhar? AMALIA: Sente-se, Anténio. ANTONIO (sentando-se): Com licenga. (Repara na mesa.) Ena, isto hoje!... ROSA: O Naial no é um dia como os mais... (Preocupada, de siibito.) © Adolfo estava na taberna? ANTONIO: Estava. (Para Amalia.) Pois, que me lembre, este € 0 pr Natal que eu_passo em Portugal. AMALIA: Os m ANTONIO (sorriso triste) . por esse mundo além; em qualquer porto estrangeiro, na companhia de out wiros e de mulheres da vida AMALIA (crispacto involuntdria: picada de citime); Que frio, que faz aquil’... ROSA: E dantes? Qu ANTONIO (logo mase 0 Adolfo, Ross ROSA: O Adol...?! Era o que me faltaval Nao, nfo se- thor! Agi (Mudanca.) Cha- AMALIA (para Anténio): E 0 Rui? Nao disse que chegava ontem?... ANTONIO (ligeiro, mas perce; sume da América, a 1 mal-estar): Pois, ele que vinha, Mas saber, nfo me ROSA (ofer (Serve. Para Amalia.) Ai A gente, deita quebranto, Amd ANTONIO (malicioso): Quem? O vinho?t... ROSA: Qual vinho?! Tsso, faca-se caro... (Para A # realmente’ bonit ncar): Sou? Isso & verdade? ANTONIO: Quer saber por que Ihe’ faco. esta pergunta? je, ainda hé bocado, ali na taberna, me disseram que eu areido co ANTONIO MARINHEIRO: ANTONIO (contemplando, amorosamente, 0 rosio de Amiliay: Se fosse verdade. ROSA (a observar Ant Alia, © olha que 6 mesmo! O na testa... Esta 6 boal (Riso.) ANTONIO (para Amidlia, sempre embevecido): Nesso caso, eu era 10 bonitol... _ ROSA (sempre a estudar os tracos fisionémicos de Anté- E os olhos... Vejam que até os olhos! 3, sim senhora, io € parécido contigo! (Riem os irés,) AMALIA (suave): Desculpe a minha mie: mas ela... ela, niio pode esquecer que. ANTONIO (por momentos, sombrioy: Bem sei. (Siléncio breve.) Mas cla nao percebe como eu... AMALIA: O qué?. ANTONIO (apaixonado): Como eu a estimo, Améli ROSA (trocista): Ai, ail... AMALIA (nagoada): © Rosa’ ROSA (que bebeu outro copo: alegre): Sabe o que esta tolinha me disse, ha bocado? Que, ao pé de si, era uma vye- tha... Que podia ser sua mael... (Sensual, trocista.) Ai, que Tica’ maezinh: AMALIA (docemente, para Anténio): Ou sua rma... ROSA (estowvada): Ou sua mu AMALIA (ferida: impressio 2 coracéo, os olhos rasos de légrimas): Nao digas isso, Rosa! Se tu soubesses o que eu agora senti aqui, no meu peito...’ lostil.) Nao quero que digas coisas dessas! (Dolorosamente, @ mao crispada sobre o coracdo.) Jesus, que impessio! Pareco le Tepente... a, foi como um telampa ANTONIO (triste): Nao gosta nada de mim, Amélia?... (Comeca a ouvir-se @ guitarra de Adolfo: um fado me- lancéitico.) ROSA (que se levanta logo, @ ouvir): Malandrol... (Apro- xime-se da jancla) AMALIA (ainda estranha; espécie de fadigay: Mudemos de conversa, Anténio. 53 ANTONIO MARINHEIRO ANTONIO (soturno): Nao, csaueer 0. o meu crime cea Seas & gins encostada a janela, que en- Gost MALTA: Fst enganado, Antonio. Nao, nfo 6 isso 5 ROSA arin a 4 estés bebado! Quando Qve bert ANTONIO (sempre para Amalia): tristan ea AMALIA: Triste eu?! Nem pense n sorrir.) Hoje, & a noite de Natal. (i ansiosa.) Ai, Aniénio!?... ANTONIO (debruga-se para ela): Améli se para ela): Amélia?.,. AMALIA (arrepio): Tenho medo! ANTONIO: Medo.,. de mim’ 9 ROSA (@ janela, que esté francamente aberta): Esté triste. nei ttiste, que eu bem o comhego!... nee MALIA (torturada: Nios # uma coisa Ha ag ee oie Sec et ome em » (surpresa. dori) elo lone, on iio gosta, Nao 6 capaz de la um pouco mais): Estés borracho, cas assim... (A ouvir, sedugida,) POr que est tio so... (Bsforeo para - (Silencio nervoso, Depots, AMALIA (nervosismo, precipitada): Nao, nio 6 de ANTONIO; Nem a gua dos m: . Nem a Agua dos mares todes do i capaz de lavar o sangue das minhas maos!... ™{® & uc’ MALIA (mutto asitada): Cale-se! Cale'se com isso! Sa gue, sanguc, , no sei o que 6: sinto-me per to terno, i rucada na janela, a chamary: Ad ANTONIO: Néo acredita? A wa magoada): Acre i eons KIA (docura magoada): Acredito, Anténio... sinto ‘ONTO (meigo): Diga!?.. Penh MALIA: Nao sei... Nao tenlio um momento de sossego... tenho medo, Anténio! Rara é a noite em que eu nfo sonho consigo... Jesus, que aparic&es malvada: ANTONIO: ‘Ora, sonhos!... 54 AMALIA: Todas as noites, Ant6nio, todas as noites! Uma vez estava numa casa muito grande, ‘bonita... Um paldcio ‘Como o dos reis! Com os tectos todos de oiro © as paredes de espelho. ‘Tinha mais de mil salas, umas a comunicar com as ouiras, cada qual a mais rica... Mas, por mais que pro- curasse, nfo achava a porta da rua; andei assim, perdida naquela casa, um dia e uma noite inteira... B cada vez que me chegava &s parecles — todas de espelho — pra ver se dava com a porta, queres saber? Queres saber o que eu via?! Nio, no era eu que aparecia no espelho: eras tu, Ant6nio! Tu inteiro, assim como agora te vejo! Eras tu, mais de cem, mais de mil vezes, em cada parede, em cada canto, em cada um daqueles malditos espelhos! (Légrimas istia.) A certa altura, eu ja nfo via nada —cega, ceguinha de todo! —, sentia o meu juizo a correr, como 0 fio a gente desenrola no chao; ©, com todas foreas, bati com as duas maos naquela parede, a vor so ela se abria, se me deixava pra foral... Cproximase de Anténio: Quando olhei pro espelho quebrado aos meus pés... nfo era eu, eras tu que Id estavas! (Acarinhando, com as maos, 0 rosio de Anté- nnio.) Tinhas um grande golpe aqui... este olho yazado... € 0 ppescoco coriado, separado da cabeca...! Jesus, nem me quero lembrar! (Tapa os olhos com ambas as méos.) ANTONIO (tomando, 1as, as maos de Amélia): Doi- ices, sonhos so doidices! AMALIA (aterrorizada, com os olhos muito abertos fixos no resto de Anténio): Mas tu n&o sabes... tu nao sabes: sangue — senti-o nas minhas mAos, ensopou-me os pés! —, cor- ria sangue verdadeiro das tuas feridas... Eram rios de sangue a correr entre os bocados de espelho! Credo, que aflicio a jando a cabeca de Amélie): Sko sonhos, +. Que valem os sonhos?... ROSA (que tem estado sempre alhela @ accio, concen- ‘na observacdo do exterior; a gritar): Amélia! O Amé- AMALIA (sobressaltada): Que 621 Que foi, Rosa!? (Surgiram, @ porta da taberna, Adolfo e uma Mulher que The passa 0 braco em redor do pescoco; Adolfo continua @ tocar guitarra.) 55 ROSA: Anda ver! Anda c4 yer isto, Amélia! Ah, grandes- sissima cabra! Espera, espera af que eu jé te arranjol... AMALIA (que vii): Ahl... Sossega, Rosa, sosseg: , ROSA (descalca um sapato e atire-o & cabeca da Muther; gritos, tumulto): Cadcla!... Cabra, cabral... Vadio! Chulo, Brande chulo! Mando-te prender, mando-te prendet!... 40 centro, acodada.) Esto a ver? Estas a ver isto, Amalia? E de propésito pra me provocar!... (Volta @ jancla, os gritos.) Vai fazer pouco da piolhosa da tua mae, grande malandro! (Outra vez dentro, @ chorar.) Sou uma infeliz... Ai, sou uma desgragadal... (Amilia fecha a janela) AMALIA: Senta-te af, Rosa, néo Ihe ligues importanci ROSA (e solucar): Fazer potico de mim, assim, a vista de toda a gente! Eu sou feia... Ele nao pode comigo: tem nojo de mim! Estou feia, j4 nfo presto pra nada... (revolta), estou cansada, estragada por tanto trabalho! (Gesto de ameaca, para fora, Pra te dar a ti, grande vadio! (Quira ver abatida) Lle no me quer, no gosla de mim... Nao me quer, tem-me al... (Com dio.) E a outra? Tu viste aquilo, Amélia?! h, coiro, coiro!... Espera, espera que eu jé te digo: arranco-te 8 olhos, arranco-tos! (Sai, a correr, pela porta da rua: gritos, burburinho, Amé- lia cerra a porta e, voltando ao centro, olha para Antonio: ambos soltam uma gargalhada, A pouco e pouco, 0 tumulto vai serenando,) AMALIA (dogura, timidez): Daqui a nada, fazem as pa- ANTONIO: EF amanba v AMALIA (inguicta): perde-se pelo Adolfo. ANTONIO: E ele também gosta del ‘agueando ansiosa): Q Adolfo méi-a, rala-a até zes. m a mesma la no vé mais ninguém no mundo: todo o dinkeiro.., ANTONIO: Mas gosta, gosta n AMALIA (perturbada, dela. medo): Nao sei ANTONIO“ MANINFEING ide): Sei eu. A vores, 6 assi verenca dum eNO NM eaee eos uma briga, homem e duma mulher, mu 6 uma... uma espécie de raiva. ies : AMALIA (reaccao instintiva de hostilidade): Seja que nao seja: nfo me interessa. ANTONIO: Mas 0 amor... AMALIA (interrompendo, brusca): Ora, 0 amor)... ANTONIO (masculo, homem, tomando a mao de Amélia): Entio nfo acredita, Amélia, qu a AMALIA (retirando logo @ mio: agreste, nervosa): Nao, no acredito em nada disso!... (Afaste-se de Anténio.) ANTONIO (magoado): Que foi, Amélia? O que que Ihe disse? Que Ihe fiz eu?! AMALIA (descontrolade, possesse de sentimentos nebulo- sos): Nada... Ora, que havia de ser?!... Nada, nadal... (Vol. ta-se e contempla longamente Antonio, em siléncio inquieto.) ANTONIO (uns passos para Amdlia): Amiélia!?... AMALIA (quase terror): Nao sti... No gosto de o ouvir falar assim. ANTONIO: Assim... como?! AMALIA: Como... como um homem grande, um homem adulto... ja batido e rebatido nessas vidas... nessas ordinarices de mulheres ANTONIO (surpreendido; gingdo, macho, logo a seguir): © qué?!... Ora, mas eu sou um homem! 5 rrito fundo): Nao! (Caindo em si.) , pois, diz sempre tu. icio em que fixa Anténio: cada vez menos sombras, mais ternura confiante; de sibito, malic, a sorir, carte): Jesus, o que tu sabes ié disso... do amor! PMANTONIO (Sines, rise). Seif sel muito da vida. AMALIA (logo terna, maternal): Ant6nio’ ANTONIO (sorriso magoado): Amilia? AMALIA: Nao fique... (emendando) nio fiques trist ANTONIO: Triste, porque? Eu nfl... z AMALIA (que se aproxima de Anténio): Triste, sim se- nhor! Na tua cara, nfo se mexe uma pestana, pequ assim... (gesto exemplificativo) sem que eu 0 no perc ANTONIO MARINHEIRO (CZransporte meigo.) Quando te vejo triste, cafdo, com essa Carita tio... olha, tenho que amarrar as aminhas ‘mios uma 4 outra, pra nao te fazer festas! E tu pareces-me novo, novi- ho... Uma erianca, ANTONIO: Por que sera, Amélia? Por que seré que eu, 20 le ti, me si (Aproxima-se mais de Amélia.) Tenho tanta confiancal... Actedito em tudo, tudo que me dizes... (Sombras, duro.) B eu sou desconfiado: sempre, desd equeno, Aos 4 me defender sozi- a minha nayalha! (Gesto » teve que ser assim: ninguém me igacio... Eu no pertencia, como ...1 Nao tive outro com a navalha... aprendi vamn-me, ITONTO (que toma e beija a felizl... Ai / € como se eu, até agora, tivesse tido ed ira dura, de ferro, a apertat-me, a separar- a gente... E tu, no sei como—sem fazeres nada, —quebraste-me essa muralha: parece que, 86 agora, © meu sangue ¢ igual ao dos outros... Pereebes?... Eu tinha vergoaha das outras pessoas: no conheci pai, nem mae, nem ninguém.,. Vergonha ¢ raiva. Todo o mal que Ihes faz parecia pouco. E verdade! quando estou assim tigo, si igual! (Siléncio brey ho medo. a): Medo ANTONIO: Medo, Toda a tiinha vida senti um medo mal- vado, aqui dentro, a roer-me as tripas... Medo nfo sei bem de que?... Medo dos outros homen: ppulso), eu sow um farrapo, trampa da valeta, um piolho! Nem pai; nem mie, nem. AMALIA (caricia): Bs? Ainda és isso, Anténio?... ANTONIO (encolhiendo-se em Amélia): Era. Jé nao sou, soul... AMALIA (maternal): Porqué?!... 58 ANTONIO (transporte afectivo): Porque... porque te en- contrei, porque te tenho a ti... (Aperta Amélia entre os bracos. desejo.) Por que te am lay tu pra mln 650 AMALIA (reaccao profunda, afastando-se logo de Anté- nio). Anda, vamos comer! ANTONIO (pers Nao gostas de mim?. AMALIA (to ra): Nao fujas. 2 Bato?! yosismo, tore D s olhos): Nao sei... nao sei, Anté mais te largo, Amélia, nunca ma este esta coisa dura que ev tinha aqui ste muro. cana quebrada, Ant6nio! E tu... tu vieste, flor, a encher-me de folhas novas... Gosto tanto de tit NTONIO (¢ ado, pega em Amdéli Biel on tele dietees % Verdade! 2 verdade, ‘eu bem o sinto: tu gostas... tu. gostas muito de mim! chiio Amélia, que ri.) AMALIA (feliz): Ail... O meu rapazinho! SNIO (a brincar, AMALIA (meiga): E nao és?.. ANTONIO: Se fosse outra m ofendido, humilhado mesmé AMALIA: Assim a dizer-me isso, ficava estou a0 porque, s como se ainda fosse ua cacipstt AMALIA (sempre terna): E no é?.. x ANTONIO: Per nestas alturas, que nao sei nad da vida, que. nte, que... Ora, tontas! (Toma as mios de Amélia, fixando-e profundamente.) ‘Amiélia! (Volta @ owir-se a guitarra de Adolfo: melodia suave de amor.) AMALIA: O Adolfo ea Rosa jé fizeram as pa: ANTONIO: & o amor, Amilial.. AMALIA (melancolia doce): ... 6 9 amor! ANTONIO (outra vez desejo): Querida Amélial... AMALIA (sombra répida, inquieta): Aniénio... achas-me velha?... ANTONIO: Nova. Nova e linda, AMALIA: Eu no me canso de olhar pra ti, Anténio! TONIO (que abraca Amiélia): Mas’ foges-m AMALIA (sombras, frdgily: Tenho medoe ANTONIO (tapando, com os dedos, @ boca de Amé Pronto, nunca mais his-de ter medo! AMALIA: Sou tao feliz a0 pé de ti! Tu entras nesta casa, € barece que tudo me cheira a rosas, que... (Aproxima-se da janela, exaltada.) Olha, Antonio, quando esiés aqui, sinto que tenho a certeza!, que, se chamasse os passaros, cles me Vinham poisar nos dedos!... ANTONIO: Desde que ew te vi, desde o julgamento... AMALIA (logo ferida): Nao fales! ANTONIO (veemente): Bendigo esse crime, Amalia, foi Por causa dele que eu te conheci! AMALIA (como em sonhos, abandonada): Qual crime?..,, Nao houve crime, nem nada disso... Nada, Antonio, nada: a Jminha vida és tu! Antes de ti, eu estava ceguinha, ndo vi nada, Bao aconteceu nada, nfo me lembro de nada! $6 gosto de i 86 me sinto viva depois que tu vieste. Néo tenho pasado... (quase feroz) eu niio tenho passado, Anténio! ANTONIO: Antes de te encontrar, eu nao me sentia bem em nenhum lado: tinha uma coisa aqui dentro, sempre a roer, a roer... Uma forea que, sem descanso, me emputrava ‘nem

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