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Michel Lahud ALGUNS MISTERIOS DA LINGUISTICA “Perguntawase (no Renascimento) come era possivel reconhecer que um signo designava realmente aquilo qu ele significava; a partir do século XVII perguntar- -4e-4 como pode um signo estar ligado aquilo que ele significa. Questfo a qual a idade clissia responders pela andlise da representagdo; e & qual o pensumento moderno responder pela ads do sentido eda sig- nificagio Questdo curiosa esta que, ao mesmo tempo em que nos 6 dada como decorréneia da organizacio especifi- cca do saber cléssico, parcce resist ds transformagies “arqueol6gicas” constitutivas do “pensamento mo- éeino", nele encontrando um espago igualmente aco- Thedor. Se é realmente esta a situaci0, pode-se entfo csperar que & anilise das origens, pressupostos © com- promissos te6ricos da questo — “como pode um signo estar ligado Aquilo que ole significe?” — permita determinar a natureza precisa ¢ 0s fundamentos dessa relativa continuidade, sugerida no texto de Foucault, centre a problemstica semiol6gica cldssica e 0 penss- ‘mento lingiistico contemporaneo. ‘Tontaremos mostrar aqui que © resonhesimento de manifestagbes. dessa continuidade ali mesmo onde mais so tendo a proclemar rupturas radieais — isto 6, nas proprias bases da cisneia linguistica contempori- nea — aclera cortos aspectos fundamentais da teoria do Signo com a qual operam as correntes dominantes, ia; e, 20 mesmo tempo, fornece valiosos elementos para uma apreciagdo adequada das solugoes propostas, explicita ou implicitamente, pela lingUisti- ‘ca para problemas cruciais — ou melhor, como vere~ ‘mos, para certos “mistérioe” — relatives 20 mecanis- ‘mo lingiistico de produgdo © de transmisso do sentido, (1) Michel Foucault, Les mots ef les choses, Basis, Gall smard, 1966, p. 5 Comecemos por lembrar a definigto do signo propor- ‘ta pela Logica de Port-Royal — obra que, como se sabe, exerceu um papel decisivo na contolidagdo da- quela nova disposiggo do saber sobre os signos que veio romper a profunda imbricagio, postulada pelo Renascimento, entre a linguagem e o mundo: ag as are eae et al nae préprio ser, sem dirigir 0 espitito para aquilo que ele pode reprosentar, a iia que dol-se tom é umaidéia Ge coisa, como a idéia de terra, de sol. Mas quando se considera um objeto apenss como representando um ‘outro, a idéia que dele se tem é uma idéia de signo e ‘ease primoiro cbjoto se chama signo. E assim que fo babitualmente considerados os mapas ¢ os quadros Portanto, um signo engloba duas idéias: ums da coisa que reprisenta; a ovtra da coisa representada, © sua ratureza consste em excitar a segunda pela pri- meira.”? Trata-se, pois, da nitida expressio de uma teoria bindria do signo, onde o funcionamento deste é plens- ‘mente absorvido no elemento da representapdo, Essa dualidade constitutiva do signs determina inclusive a organizagdo material da eélebre Gramdrica de Arnauld Lancelot, cuja primeira parte versa sobre aquilo que 68 signos sto “por sua natureza, isto é, enquanto sors fe caracteres”, a0 passo que a segunda s* ocupa de “sua significagfo, Isto é, 2 manelra como os homens @ servem deles para significar seus pensamentos”, Os gramiticos de Port-Royal sfo bastante explicitos nna abertura dessa segunda parte: ““Até aqui consideramos na fala apenas aquilo que ela tem de material, ¢ que ¢ comum, pelo menos quanto 40 som, aos homens e aos papagaios. Resta-nos examinar o que ela tem de espiritual, que faz uma das maiores vantagens do homem sobre todos * (2) Amauld © Nicolo Le lgique ox Yart de penser (1662), Paris, Flammarion, 1970, p. 80. Ce 0s outros animals, e que & uma das maiores provas da azo: & 0 uso que dela fazemos para significar nostos pensumentos, © essa invengdo maravilhosa de compor 1 partir de 25 ou 30 sons essa variedade infinita de pa- lavras, as quals ndo tém nada nelas mesmas de seme- Ihante aquilo que se\passa em nosso espirito, mas que nem por isso deixam de revelar aos outros todos 0s se- gredos desse titimo e de transmitir Aqueles que nele nfo podem penetrar tudo o que concebemnos, ¢ todos 08 diversos movimentos de nossa alma, ‘Assim, pode-ss definir as palavras: sons distintos © srticulados, dos quais os homens fizeram signos para significar seus pensamentos.”> ‘A natureza particular da dualidade na qual os signos ‘aparecem aqui envolvidot & concebida de maneira {déntica no artigo “Lingua” da Encyclopédie: “Todas as Linguas tém uma mesma meta que é a enun- ciagdo dos pensamentos. Para tanto, todas empregam ‘© mesmo instrumento, que ¢ @ vor — é como oespi- Fito 2 0 corpo da linguagem (...).” “Distinguimos nas linguas 0 espirito ¢ 0 corpo, o objeto comum cue elas ‘= propdem ¢ 0 instrumento universal de que elas 3° ‘servem para exprimilo; numa palavra: os pensamen- ‘tose 0s sons articuladcs da vor (..)."4 E poderiamos citar ainda indimeros outros exemplos de relteragio desta concepedo que reduz 0 signo a re- lagi de tepresentartio entre dois elementos total- mente heterogéneos — som ou letra (a matéria ou 0 ‘compo da linguagern), idéia ou pensamento (0 espirito ‘ou a aima de linguagem) —, pois, na verdade, tate-se justamente do pressuposto comum 4 maior parte, #9 nfo 2 totalldade, da reflexto linguistica do classicismo, Usando terminologia de William Alston,S chamare- mos de ideacional a concepsS0 de siguificagio impli cada nessa definigfo de signo, conceppao que, como salionte oportunamonte esto autor, esté sempre suber ‘tendida quando se pensa na linguagem como “o meio ou instrumento de comunicagio de idéias” ou como “uma representapdo Tisica e externa de um estado in- terno”, Ora, pelo menos dois diferentes problemas sfo automaticamente levantados por tal concepeao: @) Amauld ¢ Lancelot, Grammeire séxérsie ot rlsonnée (1660), Pasis, Républiations Paule, 1969, pp. 22-23. @) Frepelophaie, tome 9,1765, yp. 256B257A. (©) In Pauosophy of Languege (1963), cp. 1; tad. bas: Rio, Zahar, 1972, ALMANAQUE § 29) ~ Se 0 signo € essa relagZ0 de constituintes diversos, cada qual possuindo uma existéncia independent ¢ uma natureza perfeitamente heterogénea 4 do outro, cabe entio porguntar como essa relapfo 6 possivel. Como pode a signficapdo ser o resultado da associa- Glo ¢e coisas t£0 poueo cancildveis entre sl6 A afic- tagao de Foucault, segundo 2 qual 0 novo regime a aque 0 século XVI 'submete o signo engendea o pro- blema, até entao desconhecido, de como pode o signo estar ligado Aguilo que ele signifies, encontra aqui, pottanto, um sentido bem determinado, Sentido que traduziremos dizendo que uma concepcfo ideacional do signo contém em si mesma a condiggo de possi lidade do surgimento de um certo “mistério da signif casi = Se, por outro lado, a significagfo ¢ o produto da comrela¢do entre um sinalfisico ¢ uma idéia, 0 que ge zante que para os diferentes locutores de uma mesma comunidade estas correlagdes se estabelegam de modo ais ov menos idéntico? Em outros termos, 0 que ge rante uma certa univocidade da significaggo quando cesta ¢ definida como a contraparte espicitual de um si nal material que a representa, univocidade que é con- ‘igfo necesséria para uma comunica;ao efetiva entre as pessoas? E nesse sentido que se pode também dizer ‘que uma concepsfo ideacional do signo suscita necos- surlamente um determinado “mistério da comunica- Examinaremos, primsiro,algumes “solugSes” propos {as pelo proprio pensamento clissico a esses “misté- rics”, para que possamos doterminas, em soguida, Iz das indicagbes colhidas nesse exeme, a verdadeira situapdo"epistomoldgica das quest6es da significagdo © 6a comunicagdo tal como se apreseitam em Saussure, eum lado, e em Chomsky, do outro, © ccartesianismo fornecemnos, na figura de Géravd de Cordemoy,? a tiais clara acusasf0 © explicagfo do primeiro mistério acima especificado. Depois de est belecer, na mais perfeita tyadigfo carteslana, que felar © Justis assim a inquitagio do président de Brosses 1 Thité de le méchanique des langues ou des princines Dhysiques de Vérymologie, 1765, 1, 1:40 wro ds fala) ‘onsite em transmitir pola vor aqulo que a alma rece ‘eu pelos sentidos,em de now representarexteriormen- fe 0 que ¢ interior e que jd havia procedido de for (.) Como 0 ser real, aid, 0 tom, a letra, quatro coisa nafureza to oposts, e que paresem tZe pouco conelié- els assim se aproximaram’ (D) Discour physique deta perote (1666). ‘CADERNOS DE LITEMATUNAE ENSAIO. nffo 6 somente proferir sons, mas produ signos ex- teriores de nossos pensamentos para que esses estados interiores da alma possam ser transmitidos aos outros, Cordemoy nota o seguinte: “Uma das principals coisas dignés de considera®0 re- ferente a estes signos é que nfo postuem nenkuma conformidade com os pensamentos que unimos a eles por instituigho. (..) vejo tio pouca semelhanga entre todos esses movimentos da cabera, da boca ou da io e tudo 0 que eles nos transmitem, que nfo posso deixar de admirer como eles nos dgo tio facilmente a inteligéncia de uma coisa que eles representam {0 mal" Enquanto no Renascimento “o signo era marca na medida em que era “quase a mesma coisa” que aquilo que ele designava’,? numa organizagao sinbélica es- tritamente bindria, 20 contréri, nfo existe mais ne- numa figura intermediéria que posse ancorar na pro- Bria ordem das coisas a relardo entre os dois elemen- _ 108 consttutivos do signo, No mais se confundindo { com uma remissfo fundada na semelhanga, mas ape- nas com o resultado do uma misterios relagio repre- sontativa entre dois termos heterogineos (um mate- ‘rial, 0 outro espiritual), a significagfo lingifstica ape- rece realmente como surpreenente, Mas Cordemoy no se limita @ constatar, “admirado”, ‘eam alteridade radical dos elementos em jogo no pro- cesso simbélico. A admiragao ndo provém da falta de razBee, ¢ 0 “mistério da sgnificagfo” comporta uma certa explicagao: “Mas, 0 que me parese mals admiriel risio, € que ssa extrema diferenga existente entre esessigncs © ‘NOssos pensamentos, marcando-nos aquela que existe entre nosso corpo ¢ nossa alma, permite not 10 met- ‘no wnpo coteoer todo oie de sn unlo, Po renos parves-me que esta esteita unio, fruto da ins- tituipio dos homens, entre certos movimentos exte- Hore ¢ notsos pensamentos 6 (..) a mis bela manei- 1 de conceber agullo em que consist veéadetramen- te a unizo do corpo e da sim. (..) Além disso, 6 evidente que & dessa relagio to neces. tia, que 0 Autor da natureza mantém entre 0 corpo €a alma, que proveio « necessidade de produzir signos para comunicar os pensamentos."10 (8) Ibid, ed. de 1704, Bibliothéave du Grapbe, p. 15. ©) Foucault, op. elty p78. {UO Cordemoy, op.ct, pp.i5-16. E esse duplo srgumento que se pode depreender uma “solugio" go mistério da unio constitutiva da fale, Por um lado, esta 6 considerada aqui como s me- mais bela — da unigo rele 9/ oun re gneee —> 9f TOF RE xADEEZ sta é exatamente a fungfo da caracteriaapao do signo como unidede indissolavel, como associagao insepard vel de um significante e de um significado, proposts ‘no capitulo do Cours intitulado “As Entidades Con- cretas da Lingua”. Essa earacterizaggo, embora intro- uza um elemento verdadeiramente estranho 4 con- cepego representativa do signo anteriormente susten. tada, nfo constitui ainda, propriamente falando, uma ova definigfo do signo: ela representa, antes, uma asiagem, marcando uma etapa conceitual interme- didria necessiria a transformaglo teérica que, s6 nos capitulos subseqientes, daré corpo a uma definigéo, do signo substancialmente diversa daquela que aqui apenas comega a ser posta em xeque. E interessante notar que a esst inovagio conceitual operada pela caracterizagfo do sign como unidade de duas faces corresponde uma significetiva transfor- magio metaférica. A célebre metéfors ldssica da pes- soa humana, (do adequaca para exprimir a natureza da associagdo entre a imagem acistica e 0 conceito, deixa de sé4o quando se trata de figurar 0 vinculo in. dissolivel entre 0 significante © 0 sigificado:20 “Comparouse amide essa unidede de duae faces com ' unidade da pessoa humana, composta de alma e cor- Po. A comparagdo € pouco satisfatéria. Poderse-ia Pensar, com mais propriedade, numa composigao qui- ‘mica, a dgua por exemplo; & uma combinagio de hi- droginio © de oxigénio; tomados separedamente nenhum desses elementos tem as propriedades da fgua."21 (E também a essa mesma ctapa de reflento saussutla ‘na que melhor corresponde sua famosa metéfora da folhe de papel )22 (©0) Embors os editores do Cours tonham se srvido quase indiseriminadamente dos pares imagem aeuitca|concet {0 e stgnificante/signifcato, fazemos aqui una utiliza: ‘fo éiferenciada deses pares para marcar uma oposigio de natureza concetual: © so das expeetados Nimagers stica/concsito™ parsee-nos oportano spenas quando € gucstio do signo tal como caracteriaco no eapitale "A Natureza do Signd Lingistico”, itd & como sim- ibe de Uae ples entidade de duas feces distintss © indcpendentes” entre si, 20 passa que proferimot aetodar os termes de ‘mesmo radical “signiicate/sigifiado” 2 eta Ga te- ‘exo saussuslana em que 0 signo se apreeata como lunidade de cuss faces inseparives. (21) Saussure,op. ct, p. 145 (22) *A lingua € também compardvel a uma fob de papel: © persamento é © anverso © 0 som 0 verso; af © Pode ‘ecoriar 0 ver sem recoray, so mesmo tempo, oanver- 0; da mesma forma 1a Ifngua nfo se poderis olay ‘som do pentamento nem o penaamento ¢o som; #6 se ALMANAQUE 5 33 Mas 2 transformagao conceitual que prepara essa nova, caracterizacao do signo s6 6 plenamente rcalizada ‘com 2 introdugo das nogoes de sistema e de valor 23 Pois, a partir dai, nfo se poderd mais pensar o signo como uma entidade pstquica de duas faces, nem sim. plesmente como uma unidede de duss faces, mas es sencialmente como uma unidade relacional ov dife. ‘encial — tornando-se, assim, a pesa do jogo de xadrez «a metéfora privlegiads do signo. De fato, as nogdes de valor de sittera slo introduzi- das por Seussure como decorréncias de sua critica ra- dial 4 concepeio de linguagem como nomenclatusa. ‘Nio hi ume organizaydo do ndodinguistico prévia a organizagéo da lingtagem. E a Lingua que constitui suis prépriss unidades recortando as dues masses amorfas que entram em jogo no sew’ funcionamento, A realidade lingiistice por exceléncla passa entéo & Ser 0 sistema ¢ no unidades izoladas e dadas de ante. ‘mio cyja soma formatia a lingua: “A palavra, portanto, depends do sistema; no exis- tem signos isolados, Ora, perder de vista que hi somente um sistema de signos-a ser estudado € corer © tisco ¢e se esquivar da verdadeira maneira de tratar 2 semiologia.”24 E nisto reside a verdadeira falha da definigio do signo lingistico como unifo de certa imagem auditiva com certo conceito. NJo que esta definigfo nfo tenhe, xo thos de Sousnure, sua razdo de ser; mas ela favorece 0 equivozo que consste em se considerar 0 vincalo por assim dizer interno do signo como inical na Itngua, ‘quando, na verdade, néo passa de um produto secun._ _irio do valor. A mesma rexsalva vale, portanto, em particular para a Identificeggo do significado com 1 contraparte de uma imagem auditiva: “Quando se diz que 6s valores correspondem a con- ctitos, subentende-se que sfo puramente diferencias, definidos no positivamente por seu contetido, mas negativamente por suas relagdes com os outros te1mos do sistema. Sus caracteristica mais exata é ser 0 que 08 outros nko sfo, Vé-se entfo Assim: interpretagio real do esquems do signo. ‘chegaia a 80 por uma abstragio cajo resiltado seria fazer pscologin pura ov foxologia pura (Saussure, op cit... 15." (29) Cx, prinigalmente 0s capitulos do Cours denominados ““Identidades, Realiades, Valores” © "O Valor Lingle tico”. (2b) Saussure citado por Godel, op. ct, p. 199. GADERNOS DE LITERATURAE ENSAIO significado “julear” significante “julgar”™ (quer dizer que em portugués um conceito “julgar” est unido @ imagem avistice fulgar; numa palavre, simboliza a significagto; mas, bem entendido, esse conceito nada tem de inicial, € somente um valor de~ terminado por suas relagBes com outros valores seme- Ihantes, e sem eles a significaggo nao existiria. Quan- do afirmo simplesmente que uma palavra significa al- guma coise, quando me atenlo a associa da imagem actstice com um conceito, fago uma opera- ‘¢#0 que pode, em certa medida, ser exate ¢ dar uma idsie da realidade; mas em nenhum caso exprimo 0 fato linguistico na sua amplitude."?$ ma, € fall perceder que 0 que esté sendo aqui eva ido & justamente 0 *'mistério da. sgnifcagdo” tal como 0 earacterizamos acim, ite mistério aparece na medida em que o vineulo entre sons conceitos se apresenta como inical Ora, Saussure, rm oncelto de valor, faz deste vineulo 0 resultado de {uma opefagto constitutive cujpsueito€ © préptioss- “tema no qual o signos se acham inseridos:—— “Um sistema linghstico & uma série de ciferengas de sons combinadas com va série do diferengas de ‘ins: mas esa confrontagao de um certo ndmero de “Y. signos sctistioot com outros tantos.recortesfeitos na (2, massa do pensamento engendra um sistema de valo- \ Pes; e & tl sistema que constitu o vincula efetvo en | tre os elementos fontcos ¢ psiquicos no_interior de of cada signo.”26 = [Nosse sentido, a remissio 20 “sistema” constitu efeti- ‘vamente uma solugdo a0 mistério que envolve a rel fo entre os dois componentes do signo em sua defi Tighe eléssica. SO que atribuir 20 sistema esse papel consttutivo do vineulo entre os ons e os conceitos & fomecer uma solugdo que protede, no pela climina- ‘gf0, mas por mero deslocamento do mistério. Pois 2gora ¢ 0 proprio mecanismo responsivel por esse vir- culo, 2 operagio de recorte arbitririo da experiéneia “num siete de valores, qué aparece revestido do certo mistério, como alifs admite 0 proprio Saussure: “© papel caracteristico da Lingua frente 20 pensi- mento nfo ¢ eriar um meio fonico material para a ex- (25) Sausnute, Cours, p. 162. (26) 1a, p. 166 (ogrifo é nos. pressio das idéias, mas servir de intermediério entre 0 ppensamento ¢ 0 som, em condigGes tais que sua unio conduza necessariamente a delimitagbes reciprocas de ‘unidades. © pensamento, cadtico por natureza, § for- ado a precisarse 20 se decompor. Nao hé, pois, nem Inatetializago do pensamento, nem espiritualizagao, e sons; trate-se, antes, do fato, de certo modo miste- oso, do “pensemento-som” implicar divisdes e da lingua elaborar suas unidades constituindo-se entre duas massas amorfas."27 E nfo besta lembrar que para Saussure a organizagto de um sistema lingUistico € um faro socal no sentido de Duikheim para que seja dissipado esse mistério que acomparha a propria “solugéo” saussuriana go “mis- tétio da significagio"; isso apenas indica 0 sentido ‘exato do deslocamento que essa solugdo opéra;indi- ca, mals precisanente, que a remissfo ao “sistema” em Saussure = resclve um mistério éa lingistica na medida ém que ctia outro para ums ovtra disciplina a sociologia. Mas como @ partir dessa “soluedo” a0 “mistério da significaydo” pode ser pensada a possibilidade da co- rmunicagfo? Se o vinculo entre significante e significa- do ¢ determinado pelo proprio sistema, 0 que garante ‘uma certa univocidade a esse vinculo ao nivel da ustl- zoo desse sistema, isto 6, co nivel da parole? Em ou- tros termos, como 0 sistema, que constitu os valores dos termes da lingua © que serve de fundamento a re- acto entre of elementos internos de cada um de seus diferentes signos, se imp6e aos individuos de forma 1 possibilitar mAtuo entendimento no processo de co- snunicagio? ‘Novamente 6 na caracterizag%o da lingua como fato social que se deve buscar a resposta saussuriana a este problema. Com efeito: “Tas slo of tragos distintivos dos “fatos sociais” traiase 19) de representagSes; 22) de representagoes exterices is conscincias individuais; 39) de repre- sertagdes dotadas de um poder de coergio em virtude do qual elas se impCem acs individuos; 49) de repre- sertapGes tendo por substrato e suporte a “conscién cia coletiva”. is portanto os earacteres que 3 atri- tbucm & ‘ingus” quando se a quilifica de “fato sovial” no sentido durkheiniano do termo,"?® (21) Ibid, p. 156 (0 grifo € nosso), (28) Doroszewski, “Quolqucs remarques sur les rapports des sosiclogie ot de i linguistque: E. Durkheln et F. de Saussure.” in Exsais sur le lngage, J. C. Parente e4., Paris Minuit, 1969, p. 108 ee Or, para Saussure a lingua ~ “‘esouro depositado 10S cérebros” dos individuos — esté localizada justa- mente naquela porgfo do “sircuito da fala” em que uma imagem auditiva sssocia-se a um conceito 29 Assim sendo, $6 s0 nivel da expressfo pode haver uma Intervengao ativa do sujeito falante, intervencfo, no entanto, totalmente neutrilizada no proceso de ‘compreensto, posto que a associagéo da imagem acts. tica com 0 conctito é exterior a0 individuo, que “por si 36, ndo pode nem crié-a, nem modificéla”, mas, apenas registra passivamente, Percebe-, portato, que o que garants » comunica- $40 lingutslea€ essa extriondade sociale coer 4a Tingva que elimins, no momento da decodificagio ‘dos enunctados, todas as mareas individuais da atvi dos sujeitos. Mas como estas represen: inidade? Quais os mecanismos responséveis por essa ristalizago nos “cérebros” dos individuos? Misté- 2 iow Ow problema que cabe a picoogla soda, e ape. nasa ela, resolver. “Quando dominow uma lingua, o homem é capaz de compreender um ndmero indefinido de expressbes in- tciramente novas para ele, que no comportam entre si nenhuma semethanga fisica simples, e nfo sfo sim- Plesmente anilogas & expressbes que formam sua experiéneia linghistica;e cle € capaz, com maior ou menor facilidade, de produzir corretamente tals ex- Pressées, 1 despeito de sua novidade, fora de toda configuragto de estimulos, ¢ de ser compreendido por outros, que partilham com ele essa capacidade «inde misteriowa 30 - ‘Como a Fungo da gramdtica para Chomsky consiste 1a especificapdo dos mecanismos subjacentes i utiliza. sf0 da linguagem como instrumento de livre expres. Sfo ¢ do pensamento, & no mfnimo eutioso vé-o con. siderar essa criatividade linguistica como “ainda mis. teriosa”. Seria isto uma espécie de conflssgo da inca. acidade do modelo gerativotransformacional de rea- ear, pelo menos na sua forma atual, seus propésitos explicitos? Ou melhor, poderia a decleragdo dese ‘mistério ser interpretada simplesmente como © mo- desto reconhscimento por parte do cientista da exis- tencia de uma grave discrepincia entre o: fonémenos 2 serem explicados o a “imagem” desses fendmenos forneeiéa pelo modelo por ele proposto? Ov ainda es- 9) CL. § 2 Ao capitulo do Cours: “Objeto da Linghistia”* (BN, Chomsky, “La forme et Ie sens danse langage mata- Tel" im Hypothises, Pass, Seghers/Lafont, 1972, p. 17. ALMANAQUE 5 ‘35 tariamos, também aqui, is voltas com am mistéio ‘engendrado pela propria concepefo de inguagem e de sano que serve de suporte ao modlo chomskiano — ‘istério, entdo, intrinsecamente ligado a esse modelo mesmo ¢ no propriamente resultante da projesio deste sobre os fentmenos gramaticais de que pretende ar conta? Tudo leva a crer que a tiltima ¢ s alternativa correta Sobretudo porque, pare Chomsky, conhecer uma lin, gua é dominar um sistema de regras que relacionam som e sentido para uma classe infinita de frases posti- veis. Ora, posto que essa concepcfo se insereve clara ‘mente nos quadros dvalistas de uma semiologia idea- clonal, ¢ extremamente provivel que uma gramdtica edificada no interior de tais quadros esteje setiamente ‘comprometida com 0 universo de qlestoes e proble- mas pr6prios a etsa mesma semiologia. Bxaminemos a quesigo mais de perto. Sea gramética ¢ para Chomsky a cléncia que estabelece os prinefpios € a8 egr48 que governam a competéncia lingftica do sujeliofalante, e se por competéncia entende-se “a ca. racidade do locutor-ouvinte ideal de associar som e sentido em conformidade estrita com as regras de sua lingua”,?1 neste easo a gramitica, como modelo da ‘competéncia ideal, nfo passe de um sistema que rels- iona de uma maneira determinada o som ¢ 0 sontide, as representayGes fonéticas e as semiénticas. O impor. tante porém & salientar aqui que a forma adotada pels sramitice gerativo-transformacional para estabelecer fessis relapOes no constitui apenas ums solugto ao problema ettritamente técnico da “tepresentagao” adequada do processo de engendramento e de andlise das frases gramaticeis das diferentes Iinguas. Indmeras vvezes Chomsky identifica os mecanismos essimiladot fem seu modelo a estruturas cognitivasinatas do sue ‘to falante, como, por exemplo, neste texto categérico: 4 estruturas profundas postulades nes graméticas Serativas € transformacionais so esirutures mentatt resi, Baas estruturas profundas, mats as regras de trarsformacfo que as relacionam a uma estrutura su Perficial ¢ a8 regras que relaclonam as estruturas su Derficias ¢ profundas és representagdes do som e do sentido, fo as regras que foram dominades por aguele que aprendeu uma lingua. Constitvem o #9 conhecimento dessa ingua ¢ sfo uilizadas quando ele produz.ou compreende uma fase.”32 (21) N. Chomsky, La nature formelle du langege, in Le tin ‘uistique certésinne, Psi, Sevil, 1965, ». 126, 22) N, Chomsky, “La forme et te sens dans le langage nate FEL" p. 138 (0 r/o é nosso). 36 CADEANOS DE LITERATURA E ENSAIO Ora, 0 que indus Chomsky # postular estruteras men- tais inatas que determinam a propria estrutura da lin- guage? Sobre que fatos estd apoiada sua hipdtese de ‘um conhecimento inato das regras da “gramitice unl- vorsal”"233 Em primeio lugar, €Postilagao de uma Faculdade lin- sUistin especitica que determina os teagosuniverais da linguager constitu, pare Chomsky, a trice expli- cago aceitével para as uniformidades encortradat na forma e na organizaea0 dos mats diversos sistemas gra- imaticais extuéados.F certo que a descoberta de wni- formigades importantes entre a linguas seria mais simplesmente explicada pele hipStew de uma origem comam do que pela postulagdo de uma gramaticauni- versal inata. Mas se Chomsky nem cogita tal hipdtese & porgue cla ngo contsibuire em nada para o tata- mento de um outro problema, para ele fundamental: 4 saber, que toda crianga deacobre a gramitice de sua ingua a partir dos dados de que disp5e, ou melhor, que ‘lingua € ‘reinventada" cada vez que é aprendi- oe : 16 justamente na “enorme disparidade entre conhecl- mento e experiéncia — no caw ds linguagem, entrea ramatioa gerativa que exprime a competéncia de ori gem do falante © os dados magros deturpades sobre (os quais ele construlu essa gramdtica"?5 — que a hipdtese inattta de Chomsky encoatra seu principal apoio. A gramética€ construfda nos limites das esti g¥es empiricas impostas pelo tempo e pelos dados acessveis a crianga; e, apesar diso, assim como das diferencas de educacao, de experiéncias ¢ de inteligén- cia, todos 03 falantes de uma mesma Iingua adquirem graméticas que se asiemelham de mancira surpreen- dente, “come podemos constatar pele facilidade com que se comunicam, e pela cortespondéncia nas suas interpretagdes das frases novas.”3 “Botudando esta quests em detalhe, penco que somos levados a atrbuir ao dispositive (@ estruture do. cespiito) um sistema muito rico de restrigBes sobre a forma de uma gramatica possivel; sendo ndp se pode cexplicar como as criangas chegam a constmair gramati- (33) A gramdtica universat “especfca um certo subsstema de leis que formam o esqueletoestratural de qualquer lingua ¢ ura variedade de condig6es que devem ser ‘reenchides por toda elatomgio mais profunds da ga- Initia” (Chomsky, Le langage et le pensie, Pasis, Payot, 1970, pp. 127-128). G4 CE, Le lengage etl penste, pp. 125.126, (98) 10d, p13. (96) “La forme et lo sens dant le langage nature.” pp. 148- 1149 (0 grifo é nose), ‘eas conformes so modelo que parece ser empirica- mente “‘adequado” nas condigdes exigidas de tempo de acesso aos dados."37 are Vé-se entio que, no sistema de Chomsky, a hipstese inatista ¢ bem mais do que um mero omnamento elimni- nivel. Seu modelo gramatical, no sentido estrito da expressio, representa aperas 0 processo que relaclona tom e sentido; mas ele é incapar de, por sis6, forme. cer uma explicapgo propriamente dita para esse rela cionamento. Fste requer um fundamento, que justifi- que realmente as corespondéncias consiatéveis nas associages que os falantes operam entre 0s sors ¢ 08 sentidos das frases de sua lingua, e que, portanto, fun- cione como garantia dltima do processo de intereo- municagio. Ora, como pode ser verificada, ¢ esta exa tamente a fungZo da postulago chomskiana de uma competéncia lingUistica inata, Em suma: o gerativis- ‘mo, por se apoiar numa concepgfo dualista do signo e a linguagem, termina também se defrontando com ‘8 dois “mistérios” que acompanham sempre tal con- cepgio; e soluciona esses mistérios remetendo, néo ‘como em Saussure & sociologia ou A psicologia sovisl, ‘mas a.uma psicologia cognitiva de inspiragao biologica Reconsiderando-se agora 0 texto de Chomsky primet- ramente citado, cabe perguntar: sea remisséo a biolo- “gia, que sc realiza com a postulagzo de um dispositive lingifstico inato especiico, constitui efetivamente a solugdo adotada pelo gerativismo para seus mistérios, or que entdo a atividade linguistica pode parecer a Chomiky como “ainda misteriosa"? Simplesmente porque a biologia se encontra inapta 2 arcar com o problema que a linghistica gorativa, para contornar os seus, acaba por Ihe transferir: "Como pode a mente humana vir a ter as propricda- des inatas que estio por tris da aquisigfo do conheci ‘mento? A‘ € claro que @ evidéncia linguistica nao traz informagao alguma. O processo pelo qual a mente hu. ‘mana atingiu 0 seu estado presente de complexidade € sua forma particular ée organizagio inata sfo um mis. 16:10 toral..."32 Com este andlise pretendeu-se sobretudo ressaltar que, com relaglo aos “mistérios” aqui enfocados, Saussure ¢ Chomsky ocupam posigOes epistemologica- ‘mente equivalentes. Primeiro porque, independentemente das diferentes “solugSes” apresentadas, tanto o pensamento de 7) Mid, p.149, (38) N. Chomsky, “A Linguagem e a Mente,” in Novas Pers peetles Lingnfticss, PotSpalis, Vezes, 1970, p. 42. ws ky Stussure quanto o de Chomsky se encontram presos a luma mesma concepgfo do signo e da significaygo — concepeo que remonta a uma tradipfo semiol6gica classica: quando Saussure define 0 signo como um [Valor no interior de um sistema, ele nfo esté propria- | mente rompendo com © ponto de vista ideacional, ‘mas, como vimos, apenas propondo um fundamentoy | -para a retagio postulada por essa tradi entre 0 som © 0 sentido dos signos; por outro lado, o carteslanis- mo de Chomsky se manifesta muito menos na sua ca- racterizagio da linguagem como atividade criativa do {que nos pressupostos metafisicos de sua concepgfa da {gramdtica como mecanismo de assoclagzo entre tepre- sentagdes fonéticas e semAnticas Or, se 05 problemas da cormunicapo » da signifca- fo inctentes a essa perspectiva ideacional foram aqui tratados como “‘mistério®”, & porque, efetivamente, eles no parecem comportar verdadeiras [solugéen\ Recorrendo teologia, 0 cartesianismo propoe uma. “explicagfo” ao mecanismo da significagfo ainda sais misteriosa que o proprio “mistério” a ser eluc- dado; e nada ainda esté realmente explicado quando, como em Locke, apenas se menciona o Uso como garantia da comunicagdo civil, Tais “solugBes” no assem, na verdade, de meros expedientes que, a0 fnvSs de dissolverem os “mistérios” em jogo, apenas 6s transiadam para uma outra instincia, Fice entfo 9 Que conciusdo tais andlises impdern? Simplesmente que a incapacidade tanto da lingistica stussuriana quanto da Linguistica gerativa de resolverem os pro- ‘blemas, no entanto fundamentais, da significagdo ¢ da comunicagdo nao se deve a uma falha na escolha das, “‘solugfes”, mas aos pr6prios tormos em que, tanto ‘numa quanto na outra, esses problemas sfo colocados. Os impasses com que a moderna lingietica se depara ‘no tratamento desses problemas provém, ra realidad>, dos proprios impasses da metafisica particular com a qual: estfo implicitamente comprometidos certos pontos essenciais da teoris de base da primeira. Néo se trata, portanto, de propor ou de continuar bus- cando alguma solugdo diferente das até agora apresen- tadas aos problemas aqui examinados; trata-te, 20 contrério, de perceber que estes sfo exatamente do tipo daqueles que, segundo a distingao wittgenstei- niians, nfo podem ser resolvidos, mas somente dissol- vidos; ¢ que, portanto, s6 2 recusa daquilo que lhes serve de suporte, isto é, de toda sua base semmiolégico- -metafisica dualista.(a teorla do signo como associa- ~ Go de som ¢ sentido e, conseatientemente, a concep. (910 ideacional da significagao e a concepgeo represen- tacional da linguagem) é capaz de extipar alguns gra- ‘ves mistérios da lingifstica contemporinea* ¢ de emmitir que as importantes questtes da signifieasa> da comunicagiio possam, enfim, vir a ser forruladas em termos que as tomem suscetiveis de alguma resposta. 69) A opeio sociologista de Sausnuze © a tiologisia de ~ Choresky, que se revelaram agu! perfeitamente equ: ‘lentes do ponto de vista teérico, parecem estar fund rmentalment> vinculadas 20 prestigio ieatigico de que ‘gomn 4 sociolopia postvists 20 comego do sSculo © ‘om que conta Hoje a blologla em certosefreulos cent feos norteamericanos. Portanto, 86 uma historia das ‘deologias cientfficas seria capa2 de determina 0 sigaif ‘ado exato do fato dea linglfstica tor conferido, main dado momento, precisumente & scclologis t, mm out, 8 biologa, © mesmo papel que, no século XVI, foi sti ‘buido, por Condemoy,& tologa, (40) As rovontes pesquiaas can pragmndtica€ 0 atual desenvoF ‘Yimento de uma “Ungafstica dk enuneiagdo” parecer estar adotando, na andlise da siqnificagio, ama direcdo ‘gue foge aos quairos tricot aqui srtiadon

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