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Publicado Anteriormente como CORAÇÃO QUEBRADO:DUOLOGIA CORAÇÕES

EM GUERRA por ANGEL WOLFF


Copyright © 2022
Todos os direitos reservados.
Autora: Angel Wolff
Capa: Liberty Vitória
Diagramação & Adaptação de Capa: Farol Serviços Editoriais
Edição de Texto: Babi Lacerda
Revisão: Natalia Pironi
Revisão da Atualização: Babi Lacerda
É expressamente proibida a reprodução total ou parcial dessa
obra por qualquer outro meio, mecânico ou eletrônico, incluindo
fotocópia, gravação ou armazenamento em sistema sem a
autorização escritor do autor ou editor. Os direitos morais do autor
foram assegurados.
Todos os personagens desta obra são fictícios. Qualquer
semelhança com fatos ou situações da vida real é mera
coincidência.
Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da
Língua Portuguesa (1990) em vigor desde 1 de janeiro de 2019.
Publicado de maneira independente por Angélica C. Romão
Guilherme Alcântara não tinha vindo para o Rio de Janeiro para
ter seu coração quebrado. Ele queria recomeçar, trabalhar na
profissão que tanto amava, viver intensamente todos os dias e
tentar ser feliz em sua nova vida.
Mas tudo virou do avesso ao ver Saulo Marques, médico
neurologista, pela primeira vez na emergência do CADME. Um
homem sério, bonito e sexy de enlouquecer qualquer um. Era
impossível não sentir aquela atração que abalava todas as suas
estruturas.
Guilherme sequer imaginou um envolvimento repentino com
aquele homem. Porém aquelas írises escuras como a noite, tão
cheias de raiva e tão vazias de amor, escondiam algo.
Não podia se envolver.
Não deveria.
O problema não era viver um intenso e quente amor com aquele
homem sombrio. Era se ver totalmente envolvido com seu
desprezível, arrogante e delicioso chefe.
O romance contem cenas de sexo explícito, não indicado para
menores de 18 anos além de abordar temas como a violência à
comunidade LGBTQIAP+e possivelmente contenham gatilhos e,
caso você seja uma pessoa sensível ao tema que será abordado,
talvez não devesse fazer esta leitura sozinho.
Serão usadas palavras ofensivas na história, mas isso não
define a opinião da autora. A história visa trazer e espalhar o amor
em todas as suas formas e lutar contra a violência física e
psicológica que a comunidade vem enfrentando ao longo dos anos.

A batalha é árdua, porém, no final, o amor sempre vencerá.

Aprecie a leitura.
Para todos aqueles que foram coadjuvantes na vida de outros,
já passou da hora de serem os protagonistas de suas próprias
vidas.

Angel Wolff
“Woke up bent and broken
Just to find that fate has spoken
And I call out I call out for change
For every moment that remains
For every sinking stone to find its place
Long before they’re washed away ”

Believing - The Calling


Prefácio
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Epílogo
Agradecimentos
Conheça outros da Trabalhos da Angel Wolff
Coração Rendido
Redes Sociais
Quando a Angel me contou sobre a história que iria escrever, o
primeiro romance LGBTQIA+, achei a proposta interessante e o
enredo envolvente. Coração Quebrado não foi o primeiro romance
gay que eu li, mas posso dizer sem sombra de dúvida que foi um
dos melhores.
Conhecer a história de Guilherme e Saulo te fará se conectar
com os dois, torcer pelo relacionamento deles e dar uns tapas em
ambos em alguns momentos da história. Esse é um livro que te
levará do riso às lágrimas, te emocionará, te trará a necessidade de
pensar sobre outras realidades e em como a sociedade trata
aqueles que não se encaixam num padrão que sequer deveria
existir.
Afinal, quem é que decide que o diferente é errado, ou o que é
ser diferente? Cada um de nós é único, cada um de nós temos
nossas peculiaridades e mesmo assim sempre tentam nos colocar
em “formas” para nos rotular e padronizar. Inclusivecom o que é
considerado um relacionamento padrão. Por que não podemos
simplesmente aceitar o amor entre duas pessoas sem julgar? Dois
homens, duas mulheres, um homem e uma mulher... Por que o
amor entre uns é melhor ou mais aceito que os outros? Esse é um
dos questionamentos que a história nos trará.
A paixão entre os personagens é avassaladora, contagiante e
ao mesmo tempo o medo dos sentimentos nos faz perceber que são
gente como a gente. Com suas ansiedades, medos, corações
acelerados e amores. O quanto vale a pena se entregar por um
amor? O quanto vale a pena suportar por um amor?
E o preconceito da família? Da sociedade? O medo de assumir
quem a gente realmente é? Será que por amor a gente consegue
superar tudo? Traumas inclusive? Lendo essa história muitas
perguntas são respondidas e sabemos até onde os personagens
estão dispostos a ir.disposto a ir.
Mas eu deixo aqui a pergunta para você leitor: Até onde você
estaria disposto a ir por amor? O que você acha que o amor é capaz
de curar? Você acha que o amor é realmente capaz de curar um
coração quebrado?
Então prepare-se para conhecer a resposta.

Janaina Sabidussi
Autora de “Não Desista de Mim” e “Laços do Destino”
Ambos publicados na Amazon.com.br
Coloquei meu melhor sorriso no rosto. A batida da música
ensurdecedora não me permitiu entender o que o cara de pé ao
meu lado no bar havia dito. Seja educado e simpático, disse a mim
mesmo. Você prometeu aos meninos que iria se divertir.
— Desculpe! — falei em tom alto, tentando ser ouvido por cima
da música eletrônica. — Não entendi o que disse!
Ele riu e sentou no banco ao meu lado, mesmo sem eu sequer
convidá-lo. Depois se abaixou o suficiente para sua boca ficar à
altura do meu ouvido.
— Eu perguntei se estava sozinho. É que nunca te vi por aqui.
— diz e o som de sua voz grave fez minha pele arrepiar. Dou graças
pela luz baixa do bar não denunciar a reação.
Olhei de relance para a pista onde meus dois melhores amigos
estão se divertindo com seus respectivos “pares”. Lucas Matieli e
Pedro Lima, companheiros de loucuras, tinham me arrastado para
aquela balada na intenção de não só me fazer desencalhar, como
me divertir, já que ambos estavam fazendo isso, mas no final me
abandonaram à própria sorte nesse bar.
Belos amigos de merda aqueles dois.
— Na verdade fui largado aqui no bar pelos meus amigos para
sofrer sozinho… e você? — Me viro e o pego me observando, havia
um sorriso de canto preso em seu rosto. — O que foi?
Ele ri e o som de sua risada é tão gostoso que acaba mexendo
comigo.
— Nada… É que achei estranho ver um rapaz tão bonito como
você sozinho em um bar…
Aquilo era um flerte? Jesus… Ele está mesmo flertando
comigo?
Paro para observá-lo melhor. Tinha cabelos castanhos claros,
quase loiros bagunçados, não consegui definir a cor dos seus olhos
devido à pouca luz do lugar. Era um cara alto de ombros largos, só
que do tipo musculoso sem esforço. Usava uma blusa preta de
manga longa justa ao corpo e calça jeans escura com cortes nos
joelhos. Pisquei surpreso por um homem como ele estar ali, ao meu
lado, flertando comigo em um bar. Parecia ser do tipo que poderia
ter qualquer um que quisesse e não perder tempo com um moleque
como eu.
— Se interessou pelo que viu? — Sua voz me arrancou da
análise minuciosa e tive que manter o controle para não ficar
vermelho de vergonha. Encarei a pista implorando para meus
amigos voltarem.
— Ahm… do que está falando? — disfarço, inutilmente.
Ouço-o rir e, em seguida, chamar o garçom.
— Tudo bem… Posso ao menos te pagar uma bebida? —
falou e assim que virei, o garçom estava colocando diante de nós
dois copos altos com canudos, enfeitados com limão e despejando
dentro de ambos uma bebida.
— Duas caipirinhas. — O bartender explica com um belo
sorriso e depois sai para atender em outra parte do bar, mas não
antes de piscar para mim.
Vejo o cara ao meu lado erguer o copo em um brinde e depois
beber o conteúdo. Não consigo tirar os olhos de seu queixo e do
pomo de adão proeminente se mexendo naquela barba rala
conforme ele engolia. Meu corpo automaticamente reagiu. Céus,
desejei lambê-lo ali. Saber como seria seu gosto após aquela
bebida. Merda, queria escalar aquele corpo e implorar para que me
tocasse.
Uma avalanche de desejo se alastra dentro de mim.. Agarro
meu próprio copo e o viro, bebendo metade do conteúdo de uma só
vez, numa tentativa vã de me acalmar. Não podia ficar de pau duro
logo ali.
— Ei... vai com calma… — o carinha ao meu lado disse, com
um tom de riso tirando o copo de mim. — Calma. Assim o álcool
sobe rápido demais a cabeça. Precisa aprender a degustar.
Suspiro concordando. Eu estava nervoso, cacete. Um
homenzarrão daquele tão próximo à mim... e eu não sabia nem a
porra do seu nome.
— Desculpe… Digo… — Levei a mão ao rosto e volto a
encarar a pista. Para meu desespero interno, não vejo mais Lucas e
Pedro. Haviam simplesmente desaparecido no ar.
Merda. É sério isso? Cadê aqueles malditos?
— Certo… — disse com uma voz grossa, chamando minha
atenção e ficamos de frente um para o outro. Ele está me
estendendo a mão direita. — Vamos começar de novo. Me chamo
Fabiano. Fabiano Montenegro.
— G-Guilherme Alcântara — gaguejo pegando em sua mão
forte, mas ele se curva para depositar um beijo entre meus dedos.
Porra, não existe sanidade mental para um gesto tão gentil e
tão sexy como aquele. Os olhos de Fabiano estão presos aos meus,
me fazendo soltar a respiração que estava presa quando seus
lábios mornos tocaram os nós de meus dedos e, antes que eu
sequer recebesse qualquer informação, em um puxão Fabiano me
leva para perto de seu corpo duro. Sinto seu braço malicioso em
minhas costas e, em outro segundo rápido demais para ser
processado, sua boca toma a minha para um beijo de verdade,
cheio de puro tesão.
Cacete. Eu deveria empurrá-lo, certo?
Mas, ao invés disso, deixo escapar um gemido, baixinho, antes
de perceber que estou sendo beijado por um estranho em um bar
gay de outra cidade! Por que, caralhos, fui na ideia de Pedro me
arrastar em pleno sábado à noite, de carro para cá e, porra, por que
eu estava me sentindo bem fazendo isso com um cara que eu
sequer conheço?
Deve ser porque sou um moleque de dezoito anos, gay,
carente e virgem!
O sabor de sua língua tinha uma pitada de menta misturada ao
álcool e limão da caipirinha e eu estava me deliciando com aquele
gosto cítrico quando ele decidiu separar nossas bocas. Fabiano me
observou ofegante e um sorriso imperfeito brotava no canto de sua
boca me fazendo amolecer em seus braços. Aquele homem
delicioso suspirou, em seguida depositou um beijo em minha
bochecha e depois em minha testa.
— Podemos conversar ali no canto? Quero conhecer melhor
você, beija-flor…
Sinto meu ombro ser cutucado. Acordo em um sobressalto e me
vejo dentro de um ônibus de viagem com um senhor que aparenta
ter uns cinquenta anos me encarando. Relaxo imediatamente na
cadeira.
— Oh, meu jovem... desculpe — ele diz e se afasta. — Já
chegamos na Novo Rio. Não queria assustá-lo.
Olho para a janela surpreso e vejo vários ônibus de viagens
parados. Esfrego as mãos no rosto não acreditando que peguei num
sono tão profundo durante todo o percurso. O pior era que sequer
me lembrava mais sobre o que estava sonhando.
— Meu Deus... desculpe… — digo e levanto. — Não sabia que
estava tão cansado.
O senhor ri e me dá passagem. Pego a mochila no
compartimento de cima e saio do ônibus para pegar a mala com os
atendentes. Me afasto o suficiente para pegar o celular e conferir as
horas. O visor da tela brilhava informando que eram seis e quarenta
e três da manhã.
— Ah cacete… Não… — sussurro, incrédulo.
Não podia ser tão tarde, era para ter chegado antes das seis
da manhã na rodoviária! Ergui a cabeça e vi o senhor que me
acordou passar em direção a um dos portões de saída
acompanhado de outro rapaz que usava o uniforme da mesma
companhia de ônibus.
— Ei! Moço! Senhor! — gritei chamando-o enquanto corria em
sua direção.
Ele para, se vira e assim que me vê, abre um sorriso gentil.
— Pois não, meu rapaz…
— O Ônibus… Não era para termos chegado às cinco e
cinquenta da manhã aqui na rodoviária? — Eu tentei não transmitir o
pânico na voz. Apertei com força o celular na mão. — O que
aconteceu?
O senhor me observa, primeiro surpreso e depois concorda
com a cabeça como se tivesse se lembrado de algo.
— Ah sim… essa era a previsão… mas houve um acidente na
Washington Luís, em Caxias e isso atrasou nossa viagem para
chegar aqui no centro do Rio — ele responde com gentileza —
Informei assim que vi o trânsito, filho… V
ocê não me ouviu?
Cacete.
Eu não tinha ouvido. Não tinha ouvido e visto nada porque
havia apagado na porra da viagem, a ansiedade pela mudança para
a capital do Rio, não me deixou pregar os olhos na noite anterior.
Levo a mão ao rosto esfregando de baixo para cima e termino
agarrando meus cabelos não acreditando no que aconteceu.
Meu primeiro dia de trabalho sendo arruinado por causa de um
acidente na estrada, sem falar nas chances de morar na capital e
começar uma nova vida que estavam indo para o ralo naquele
momento. Eu precisava estar às sete no hospital para me
apresentar para meu primeiro dia! A palavra atrasado não cabia
mais naquela situação. Meu telefone toca e só assim percebo as
inúmeras mensagens deixadas por Hana, minha colega de
faculdade.
— Obrigado moço! — E saio correndo.
— Boa sorte! — Ouço-o gritar assim que me afasto.
Saio às pressas até a porta principal da Rodoviária Novo Rio
pegando o primeiro táxi, ciente de que vou acabar com todas as
minhas economias naquela viagem, mas não iria perder a
oportunidade de trabalhar naquele hospital!

O carro avançava rápido pela pista. Havia pedido para o


motorista fugir de todo trânsito possível para chegarmos o quanto
antes ao bairro da Lapa. Ele passou por várias ruas pequenas e eu
mal conseguia prestar atenção na paisagem. Trabalhar naquele
hospital tinha sido a minha principal meta desde o dia que havia
entrado na faculdade do hospital-escola.
Dei o meu melhor, passando noites em claro, estudando e me
doando para me formar naquela profissão. E ao receber a notícia de
que havia sido indicado para ser entrevistado no CADME - Centro
de Atendimento e Diagnóstico Médico Emergencial, o maior e
melhor hospital do Rio de Janeiro, foi o começo da mudança de vida
que precisava. Trabalhar em um lugar considerado modelo de
atendimento no estado, que abrangia desde os convênios, até a
população que dependia do Sistema Único de Saúde é o sonho de
muitos estudantes de enfermagem e medicina.
A entrevista com a Dra. Lethícia Cabral, a diretora adjunta do
hospital, havia sido incrível e divertida, mas não achava que teria
qualquer chance de entrar para o quadro de funcionários daquele
hospital exatamente pela complexidade que tinha sido aquela
conversa. Assim que me formei, voltei para Campos dos
Albuquerque, minha cidade natal, sem qualquer esperança de
trabalhar na capital. Porém, receber a ligação, uma semana depois,
anunciando que fui aceito realmente transformou tudo. Não iria
perder essa oportunidade. Não deixaria nada daquilo escorrer pelos
meus dedos.
Quando o hospital despontou à nossa frente, meu telefone
tocou. Olhei o visor e o nome de Hana brilhava, o que só aumentou
meu desespero.
— Hana… — tentei dizer assim que atendi, mas ela me cortou
falando rápido demais.
— Pelo amor de Deus, Guilherme… Onde raios você está?
— O carro está parando nesse exato momento em frente ao
hospital. Dois minutos ou menos estou aí! Onde eu acho vocês?
— Estamos em frente à recepção. A Dra. Lethícia já começou
o discurso… pelo amor de Deus, amigo… vem logo!
O carro para na entrada do hospital no momento que desligo o
celular.
— Oitenta e nove reais. — o motorista anuncia.
Meto a mão dentro da mochila, xingando mentalmente o valor
absurdo que estava me cobrando, retiro duas notas de cinquenta
reais do bolso interno e lhe entrego. Sem esperar pelo troco, saio,
jogando a mochila nas costas, corro para a parte de trás e bato no
carro para alertar o motorista. Ouço o acionar do botão de destravar
e arranco minha mala, batendo com força o porta malas e parto em
disparada para o hospital, sem me importar com as pessoas me
observando.
Minutos depois invado a recepção e vejo os novos funcionários
formados em duas fileiras em um canto. Minha amiga de faculdade
e agora colega de trabalho Hana Takashima, parada na fileira de
trás, está me encarando e me acena com um sorriso gigantesco no
rosto. É impossível não reconhecê-la pois o seu cabelo verde neon
é a primeira coisa que vejo. Corro em sua direção quando ouço a
voz da Dra. Lethícia.
— Por alguns minutos achei que tinha desistido.
Hana ri, enquanto eu me empalideço de vergonha e vou em
sua direção.
— Desculpe… meu ônibus… tive problemas… Eu queria ter
avisado, mas acabei cochilando na viagem e não percebi o que
tinha acontecido… — desato a falar tentando não entrar em pânico
pela exposição e atraso.
— Calma. Tudo bem… — Dra. Lethícia ri e coloca a mão
direita em meu ombro. — Respira rapaz. Hana me explicou o que
aconteceu. Agora deixe suas coisas com a recepção e vá para o
seu lugar na fila, ao lado de sua amiga. Você está sendo observado
pelos mais importantes médicos no CADME. Mostre a eles porque
eu o selecionei, certo? — E dá uma piscadela para mim. Tento não
corar com o carinho que me proporcionou e concordo com a
cabeça.
— Pode deixar — digo e vou até a recepção deixar minha
mala e mochila. Depois sigo para a fila ao lado de minha amiga.
— Eu sabia que conseguiria. — diz me cutucando com o
cotovelo, sorrindo.
— Para. — Retribuo o sorriso.. — Estou cem reais mais pobre,
mas valeu a pena.
— Que roubo, meu Deus… Ah! Consegui o quarto que você
pediu. Desculpa não poder te levar pra minha casa… — Ela começa
e eu a corto.
— Relaxa. Eu já imaginava que seus pais não iriam ficar nada
felizes. Conhece o dono do lugar?
— Ahh… sim, foi indicação e ele ficou bem interessado… —
um riso sapeca surge em seus lábios.
Dra. Lethícia fica a nossa frente e começa um discurso de
boas-vindas. Estou feliz demais e nada poderia estragar isso.
É quando encaro os médicos atrás da diretora adjunta e meus
olhos encontraram os dele. Por um momento não sei o que está
acontecendo. É como se o tempo tivesse parado por alguns
segundos. Eu não consigo desviar de seus olhos tão intensos. Suas
irises são escuras como a noite e me sugam feito um buraco no
espaço. Estamos nos encarando não sei por quanto tempo quando
ouço Hana me chamar e me cutucar na altura da costela. Pisco,
cortando aquela conexão estranha, tentando me lembrar onde
estava e me viro para minha amiga que está me observando.
— O que foi? — pergunta curiosa.
— Nada. — tento dizer, mas minha voz sai fraca. Nem mesmo
eu sei explicar o que rolou ali.
É quando ouvimos a Dra. Lethícia chamar um dos médicos e
vejo o mesmo homem que me encarava com tanta intensidade dar
dois passos firmes e confiantes à frente.
— Desculpe, eu acabei me distraindo… — diz após limpar a
garganta. — Por favor, continue.
Ela concorda e depois volta para nós.
— Dr. Saulo Marques é o nosso neurologista e um dos mais
competentes médicos do CADME. Ele trabalha a mão de ferro no
hospital e será um dos responsáveis pelos plantões na emergência,
então estarão trabalhando diretamente com ele.
Vou trabalhar com esse homem?
E que homem, pois é humanamente impossível não notar
Saulo Marques. Alto, acredito que tenha em torno de 1,85m ou
1,90m, ombros largos do tipo que claramente puxava ferro, queixo
quadrado e uma barba perfeitamente aparada. Cabelos negros
cortados nas laterais. Tem perfeita postura e os braços… Jesus!
Aqueles braços são enormes e proeminentes nas mangas de seu
jaleco branco. Se ele enrijecesse mais, poderia rasgá-lo com
facilidade.
Sinto um arrepio passar por meu corpo e isso dispara em meu
peito uma avalanche de sentimentos. Minha atenção é desviada
pela voz da diretora adjunta.
— Dr. Marcus Silva é o nosso Cardiologista e dividirá a
responsabilidade dos plantões da emergência com Dr Saulo. — Dr.
Marcus, um homem negro corpulento, para ao lado do neurologista
gostoso e acena para nós com um sorriso amigável. — Vocês serão
divididos entre os dois turnos para trabalhar diretamente com eles e
também com os outros médicos aqui presentes para conhecer todas
as instalações. — Ela aponta para duas médicas que surgiram, uma
mulher negra de cabelos pretos lisos e uma mulher branca de
cabelos castanhos ondulados presos em um rabo de cavalo que
pararam ao lado dos outros dois médicos.
Sinto a responsabilidade pesar sobre mim. São pessoas
importantes e trabalhar com eles poderia ser o diferencial. Volto a
encarar o Dr Saulo que está de cara fechada observando os outros
novos funcionários.
— Dr. Saulo, juntamente com o Dr Marcus, irão selecioná-los e
dividi-los para trabalharem com os outros médicos. — Dra. Lethícia
continua a falar. Ela se vira para o neurologista lindo e comenta algo
baixo. A expressão de desagrado, estampada em seu rosto me faz
tremer nas bases e entender que não será fácil trabalhar com ele. —
Bem, é isso. A Sra. Roberta Guimarães, nossa enfermeira-chefe,
está encarregada de mostrar o hospital para vocês enquanto suas
funções e responsáveis são selecionados. — Uma mulher branca,
acima do peso que o padrão ridículo estabeleceu como certo, de
olhos claros surge ao seu lado. Ela tem cabelos curtos na altura do
rosto, usa um óculos estilo professora do ensino médio e sorri para
nós, acenando. — Eu adoraria ficar mais com vocês, mas tenho
uma reunião muito importante agora. Bom… Sejam bem vindos ao
CADME.
Todos explodiram em aplausos e não consigo parar de sorrir
de felicidade. Dra. Lethícia agradece com um balançar de cabeça e
se retira pedindo desculpas. Hana agarra meu braço e começa a
pular de felicidade.
— Não sai daqui, vou te apresentar uma pessoa.
Minha amiga sai por um momento, me deixando sozinho. Vejo
os outros novos funcionários conversando animados e volto a
observar os médicos. Dr. Saulo está encarando o tablet em suas
mãos muito sério. É impossível não analisar aquele homem
intrigante. Ele tem uma beleza única e um ar de mistério que só faz
aumentar minha curiosidade. É quando ergue a cabeça e nossos
olhares mais uma vez se encontram. Sinto meu corpo reagir
novamente e sei que isso não é algo normal. Dr. Saulo fecha o
semblante, imediatamente fico sem jeito e me obrigo a desviar o
olhar.
Deus, o que está acontecendo aqui?
Hana surge acompanhada de um homem usando o uniforme
do CADME e me arrancando do meu desespero interno. Ele tem a
minha altura, seu corpo é malhado e na cabeça ostenta um corte
militar.
— Gui, esse é o Alberto Souza. Ele é maqueiro aqui do
CADME. Alberto, esse é o meu amigo que eu te falei. Guilherme
Alcântara. É ele que está à procura de um quarto.
— Prazer em conhecê-lo, Guilherme. — Alberto ergue a mão e
eu a pego cumprimentando. — Bem-vindo ao CADME, aqui você vai
descobrir como é trabalhar para os grandes.
Automaticamente sorri, soltando sua mão.
— Espero que sim.
Alberto concorda e me dá uma olhada como se conferisse se
sou de confiança.
— Bem… tenho um apartamento na Tijuca e um dos quartos
está vago há um mês. Preciso alugar por causa das despesas e,
como vamos trabalhar no mesmo lugar, acho que vai ser tranquilo.
Concordo com a cabeça e sou pego observando meu provável
senhorio. Ele parece ser aquele tipo de “hetero top” com sorriso
cínico, estilo pegador, e fico muito preocupado com a situação.
— Ahm… olha… não sei se a Hana explicou que eu… eu
sou…
— Relaxa, cara. — Ele fala sorrindo e me dá um soquinho no
ombro. — Ela falou e, sinceramente, não me importo com isso. Só
tenho uma regra naquela casa: o lugar é nosso santuário e refúgio.
Sem meninos ou meninas para macular. Fora isso, o que você faz
da sua vida fora dali é problema seu. Desde que me pague o
aluguel mensalmente, é claro.
Concordo mais aliviado.
— Viu, eu disse que era algo bom. — Hana diz.
— Vamos, todos por aqui. — Roberta diz apontando para o
corredor. — Formem duas filas. Vou apresentar o hospital a vocês.
Nos despedimos de Alberto, não antes de me informar que vai
me aguardar na saída, corremos para formamos a fila e a seguimos.
Ao passar pelos médicos dou uma última olhada do Dr. Saulo,
que nos ignora. Ouço os outros funcionários cochicharem sobre o
médico e fico pensando se trabalhar no CADME mudaria minha vida
para algo bom. Algo como estar no céu…
Porém, no dia seguinte, ao receber minha primeira escala de
trabalho, eu sabia que na verdade estaria começando meu primeiro
dia no inferno.
E tudo graças ao neurocirurgião.
— Você tá se alimentando direito?
— Sim, mãe… — respondo pela quarta vez após quebrar mais
um ovo na frigideira para uma omelete.
Desde o dia que me mudei, minha mãe me liga para saber se
eu estou vivo, pois já se passaram três semanas que fui para o
apartamento de Alberto. Dona Rita é zelosa demais e na época que
fiz faculdade de enfermagem aqui na capital foi complicado para ela
também, mesmo eu voltando nos fins de semana para casa.
Sempre fomos somente ela e eu. Dona Rita era perfeita em
todos os sentidos. Mais ainda quando lhe contei sobre a minha
orientação sexual. Mamãe foi meu principal e único apoio, inclusive
depois do que me aconteceu anos atrás. Me criou fazendo faxina
nas casas dos grandes de minha cidade e vendendo seus famosos
bolos. Ela sim era a minha melhor amiga. A separação para vir
trabalhar na capital foi ainda mais difícil para nós dois, parecia algo
mais definitivo. Eu sentia falta de seu carinho.
— Tem tomado banho? — Ela continuou com seu interrogatório.
— Está trocando todos os dias essas cuecas?
— Mãe, por favor… — reviro os olhos, remexendo os ovos na
frigideira.
— Não revire os olhos para mim, mocinho.
Paro, quase incrédulo. Dona Rita sempre foi assim, parecia
saber exatamente o que eu fazia ou não e, principalmente quando
eu estava mentindo. Dou uma risadinha e desligo o fogo do fogão
onde preparava ovos mexidos.
— Não fiz isso mãe… — minto.
— Você não me engana, Guilherme.
De fato. Era impossível enganar Dona Rita.
— O café tá pronto? Temos que correr! — A voz grossa do meu
colega de apartamento reverbera pelo corredor e me viro com a
frigideira na mão enquanto equilibrava o celular entre o ombro e a
cabeça.
Alberto surge com sua mochila no ombro, usando uma calça
jeans, blusa polo branca e tênis branco. Passa a mão pelos poucos
e crescentes cabelos negros ainda úmidos do banho e me encara.
Aponto para o telefone e ele esfrega uma das mãos no rosto. Meu
amigo já tinha consciência de que, quando minha mãe ligava era, no
mínimo, uma hora de conversa.
Todos os funcionários da CADME sabem que sou gay e, graças
ao bom Deus, eles não se importaram com a minha sexualidade.
Meu relacionamento com todos é muito bom, tenho recebido muitos
elogios dos outros médicos e tenho me dedicado ao trabalho.
Dividir a casa com Alberto também tem sido engraçado e muito
divertido. Por ser hetero, ele é bem tranquilo, diferente das inúmeras
experiências ruins que já tive com outros caras assim, sem manias
de controle por horários e muito parceiro. Alternamos entre as
tarefas da casa: limpeza, lavar roupas, café, almoço ou jantar.
Quando temos folga no mesmo dia, combinamos de sair para
conhecer os pontos de baladas da cidade e, na maioria das vezes,
para não dizer todas, acabamos bêbados. Chegar em casa inteiros
é sempre um martírio. Acabamos meio que melhores amigos um do
outro.
Alberto aponta para seu relógio no pulso, balbuciando um
‘vambora’ sem som para mim.
— A gente vai se atrasar… — sussurra.
— Mãe, preciso mesmo ir — falo enquanto coloco o conteúdo
da frigideira em um prato na mesa. — Hoje tem plantão.
— Não gosto de saber que você também está trabalhando à
noite. — Ela reclama do outro lado da linha. Olho o relógio da
parede: 17:30h. Já tinha conversado sobre isso com ela e, mesmo
assim, sempre que tem oportunidade, deixa claro seu desagrado, e
sinceramente, nem mesmo eu gosto.
— Eu sei, mãe. E eu também, porém não sou eu que decido
isso. Olha, te amo. Nos falamos depois, tá bom? Agora preciso
desligar, ou o Alberto me larga aqui e eu, realmente, preciso da
carona.
— Certo, Gui. Se cuida, filho. Mamãe te ama.
— Te amo mais.
— Eu muito mais!
— Te amo! — Desligo em seguida, suspirando. Se não o
fizesse, ela iria esticar ainda mais a conversa.
Coloco o celular na mesa e volto com a frigideira para a cozinha
tipo americana do apartamento.
— Outro sermão? — Alberto pergunta enquanto coloca parte
dos ovos mexidos no pão francês.
— Na verdade, não — falo, colocando a frigideira na pia e
pegando a jarra de café. — Ela só está preocupada com os plantões
noturnos.
Alberto me observa reflexivo.
— Imaginaquando ela descobrir sobre os plantões de vinte e
quatro ou trinta e seis horas. — E dá uma mordida no pão recheado.
— Nem me lembre — falo, colocando o café na mesa e
sentando na cadeira.
Ainda tínhamos alguns minutos antes de sair e tomamos nosso
café. Conversamos sobre o próximo jogo do campeonato que teria
nessa semana e assim que terminamos, Alberto retira a mesa e lava
a louça enquanto corro para me arrumar. Tomo um banho e saio
enrolado na toalha, me vestindo no quarto. Coloco uma blusa de
manga curta cinza e calça jeans de lavagem clara. Volto para o
banheiro e me encaro no espelho. Passo um pente sobre meus
cabelos escuros alinhando-os, depois um protetor labial pois minha
boca cisma de rachar na temperatura fria do hospital. Meu rosto tem
traços finos, Alberto diz que eu pareço uma boneca e esses tipos de
comentários, às vezes, me irritam.
Ter o rosto que chamam de “afeminado” não era só irritante, era
incômodo, pois ou eu era alvo de ataques de pessoas homofóbicas
e preconceituosas, daqueles tipos que adoram julgar sem peso ou
medida, ou era abordado por pessoas que insistiam em ter uma
noite por dinheiro.
— Guilherme, ou você sai agora ou vou te largar aqui! — Ouço
Alberto me chamar da sala.
— Já vou!! Me deixa pegar a mochila! — grito ao abrir a porta
do banheiro, correndo para meu quarto.
Cinco minutos depois, estávamos no estacionamento do prédio
colocando o capacete. Eu sabia que trabalhar no hospital mais
importante do Rio de Janeiro poderia causar certos problemas,
como pacientes rejeitarem ser atendidos por mim, mas eu não me
importo. Amo meu trabalho e estou disposto a dar o melhor de mim.
Subo na moto e Alberto arranca, me obrigando a agarrá-lo pela
cintura. Trinta minutos depois, entramos no estacionamento para
funcionários no subsolo do hospital e ele para em uma das vagas
para motos.
— Já soube quem vai ser o médico responsável no plantão de
hoje? — Alberto pergunta logo após tirar o capacete e descer da
moto.
— Não. Eu não recebi a nova escala ainda. E estou preocupado
porque... — Paro de falar pois Alberto me observa com a
sobrancelha erguida e então tenho a confirmação que mais temia.
— Ah não…
Merda… Eu sabia muito bem de quem ele falava.

— Boa tarde, Gui! — A recepcionista nos cumprimenta assim


que entramos no pronto atendimento. Aceno e sigo para o segundo
andar onde fica a ala de enfermeiros para trocar de roupa.
Após vestir o uniforme, me despeço de Alberto e vou me
apresentar à chefe de plantão quando o vejo passar pelo corredor.
O homem a quem Alberto se referia, aquele que atormenta todos os
funcionários no hospital e, para meu pânico, anda povoando meus
sonhos mais obscuros.
Tento desviar os olhos, mas não tem como não encará-lo! Sua
presença era, ao mesmo tempo, intimidante e excitante. Porém,
meu problema não era sentir atração pelo neurocirurgião gostoso
mais cobiçado do hospital. Era eu ser odiado por ele sem nunca ter
lhe feito nada!
Continuo andando, sem conseguir parar de encará-lo, até que
nossos olhos se cruzaram. No primeiro segundo, sinto um arrepio
na espinha ao fitar aquelas írises negras, meu coração acelera e,
puta merda, sinto meu corpo estremecer. Não de medo, mas de
desejo. No segundo seguinte, tudo isso desaparece. Ele franze o
cenho e devolve o seu melhor olhar matador. Eu quis chorar. Não
entendia porque infernos ele me odiava tanto.
— B-boa tarde, Dr. Saulo — falo, tentando, inutilmente,
controlar o pânico que crescia em meu peito.
O médico passa por mim com toda sua arrogância, ignorando
minha presença. Me viro, observando suas largas costas, somente
para acompanhá-lo dobrar o corredor e desaparecer.
— Esse médico às vezes me dá medo… — Alguém fala atrás
de mim, me fazendo pular de susto no mesmo lugar. Consegui
conter, no último minuto, o grito mais histérico que daria na vida.
Viro-me para dar de cara com a Sra. Roberta olhando o corredor
onde o Dr. Saulo tinha acabado de sumir.
Jesus… que susto… penso, levando a mão ao coração.
— Esse homem vive mal humorado. — Ela continua ignorando
o fato de quase ter me matado do coração. — Está atrasado.
— Não estou não. — Pego meu celular e aponto o relógio que
brilhava na tela. Eram 19:01h.
— É verdade… só um minuto atrasado. Tem que se apresentar
às 19h em ponto, esqueceu?
Ela não estava falando sério, estava?
— Mas eu bati o ponto no horário! Olha eu… — Tento
argumentar, mas ela me corta, colocando um tablet em minhas
mãos.
— Só estou implicando com você, relaxa. — E aponta para o
tablet em minhas mãos. — Esses são os quartos que estão
ocupados nesse andar.
Começo a ler as informações e vejo a escala. Eu ficaria de
suporte no quarto andar, ala dos idosos, sendo cinco dos oito
quartos ocupados. Um grupo de enfermeiros foram selecionados
para ajudar também em algumas cirurgias, em outros andares, no
serviço do pronto atendimento, na emergência e em nenhum deles
eu havia sido escalado. Olhei o nome do médico responsável pela
escala e pelo plantão da noite e não me surpreendi ao ver o nome
de Saulo Marques. Bufei. Estava com esperanças de não ficar de
fora, mas foi pura ilusão.
— De novo? Até quando vou ficar sendo excluído assim? —
Desde o dia que comecei a trabalhar no CADME eu nunca consegui
ser escalado para as emergências e cirurgias.
— Do que está falando, Guilherme?
— Sempre que o Dr. Saulo é responsável pelo plantão que
trabalho, sou excluído da escala. — Aponto para a última
informação no tablet. — Por que não posso trabalhar na emergência
ou na assistência das cirurgias quando é ele quem está à frente?
Roberta dá de ombros.
— Tem certeza que não fez nada para ele?
— Eu?! — Minha voz quase sobe uma oitava. — Eu mal
direciono uma palavra sequer para aquela criatura, que me ignora
como se eu nem existisse aqui!
Me sinto frustrado. Por que esse homem me odiava? O que eu
tinha feito para alguém que sequer olhava na minha cara?!
Minha chefe dá dois tapinhas confortadores em meu ombro.
— Calma... posso ver isso com a direção para você, o que
acha? — Balanço a cabeça, concordando. Do que adianta ser
enfermeiro se me impedem de fazer a minha função? — Agora vai
lá e mostre que você sabe fazer muito bem o seu trabalho!
Concordo novamente e me despeço de minha chefe, seguindo
em direção ao quarto andar. Eu provaria que era capaz de fazer
qualquer função que me fosse designado, nem que eu tivesse que
confrontar aquele maldito médico.
Já passavam das dez da noite e nada aconteceu no plantão do
quarto andar. Assim que cheguei, tive que administrar alguns
medicamentos, verificar glicose e pressão dos pacientes e,
incrivelmente, às nove horas, a grande maioria estava dormindo
serenamente. Então, estou há uma hora e meia sem fazer nada na
pequena sala de enfermagem do andar.
— Que tédio… — falo alto, batendo com a testa na mesa.
— É a quinta vez que você diz isso, Guinho. — Hana, minha
melhor amiga e colega de trabalho que está de castigo no mesmo
plantão comigo, responde com a atenção voltada para o seu celular.
— Que Deus me perdoe, mas é que aqui é morto à noite… —
digo com a cabeça deitada de lado na mesa e vejo Hana revirar os
olhos para o meu comentário. — É que a emoção tá na emergência.
Eu soube que lá está cheio hoje… E odeio ficar parado aqui…
Ouço Hana rir.
— Para de graça… até a emergência a noite é silenciosa e
deveria dar graças a Deus de estar aqui no quarto andar na paz e
no silêncio. — Levanto a cabeça para encará-la. Hana ergue o
celular, mostrando-me a tela com uma mensagem do whatsapp. —
Josélia está dizendo que o sexto está uma loucura.
O sexto andar era o da Maternidade. Tinha visto nos arquivos
dos plantões pelo computador que, especialmente hoje, no plantão
do dia, houveram quinze partos. Quinze! Sendo que eram catorze
mulheres que cismaram de entrar em trabalho de parto todas no
mesmo dia e aqui no CADME.
— Lá, com certeza, deve estar mais legal que aqui… —
choramingo.
— Se acha que quinze bebês chorando na sua cabeça é… —
Ela ergue os dedos para imitar aspas no ar. — “mais legal” sinta-se
à vontade para trocar de lugar com a Josi.
Faço bico para minha amiga, feito uma criança birrenta e cruzo
os braços, me encolhendo na cadeira. Nesse ponto Hana tem razão,
eu não aguentaria ficar a noite toda ouvindo bebês chorando, mas
não nego que adoraria carregar uma coisinha pequenininha como
aquela nos braços. Pensando melhor, nunca tinha passado pela
minha cabeça ter um filho e pensar nisso me dava uma sensação
esquisita. Na verdade, sempre sonhei em ter uma irmãzinha, mas
minha mãe não me deu esse direito, claro que devido à nossa
situação financeira, eu seria egoísta demais se pedisse. Numa
tentativa de esquecer que cogitei tal coisa, volto minha atenção para
a tela do computador, verificando as informações do nosso pequeno
estoque e uma delas atrai minha atenção.
— Hana, vê aí por favor quantas bolsas de soro fisiológico tem
no armário?
Hana ergue os olhos do celular, confusa, e, sem discutir, se
levanta enquanto eu continuava a verificar as informações do
estoque.
— Tem duas.
— Na tela diz que deveriam ter oito.
Nos encaramos por um momento e começamos a comparar
toda a medicação e itens com as informações do computador. Em
uma hora tínhamos uma diferença absurda do real com o informado
em tela.
— Não acredito que não deram baixa no estoque! — Hana
reclamou, chutando a mesa. — Temos que descobrir quem estava
no plantão da manhã. Se houver alguma emergência aqui,
estaremos ferrados. Estão faltando os principais medicamentos!
Hana tinha razão. O plantão do dia, literalmente, havia ferrado
com a gente. Faltavam inclusive medicamentos simples como
dipirona e insulina. Se eu não tivesse notado a diferença do estoque
com o informado no sistema, qualquer problema que houvesse
naquele andar lotado de idosos nos deixaria em maus lençóis.
Começo a anotar o que faltava em um pequeno bloco de notas e
empurro a cadeira, me levantando.
— Onde você vai? — Hana grita assim que me vê saindo
porta.
— Vou pegar algumas coisas no estoque, avise a Dra. Angela
que já volto.

Quinze minutos depois, saio do estoque carregando uma caixa


com alguns medicamentos, seringas, agulhas e caminho em direção
ao elevador. O estoquista havia me garantido que a outra parte do
material que faltava seria enviada logo em seguida. Ao menos tinha
os itens necessários para segurar alguma suposta emergência.
O corredor do subsolo está vazio e absurdamente silencioso,
já que o necrotério fica do outro lado da parte onde eu caminhava.
Esse pedaço do hospital me dava calafrios. Já tinha ouvido histórias
sinistras sobre almas penadas paradas no corredor ou sussurros
nas salas vazias. Pego meu celular e verifico a hora. É perto da
meia noite. Acelero os passos e, antes de dobrar a esquina, ouço
um pequeno chiado, o que me faz travar no lugar.
— Ai Jesus, Maria e José… — sussurro, encarando o corredor
mal iluminado à minha direita. No final dele, fica a porta para o local
onde deixam os mortos.
Vamos lá. Eu sei que sou um cara durão, mas com fantasmas
nem o mais corajoso dos homens ficaria para saber o que seria
aquele som. Porém, agora entendia por que nos filmes de terror as
pessoas não seguiam para longe do som… era a maldita da
curiosidade… continuo encarando o corredor até que ouço
novamente o mesmo barulho, tipo ganido, baixo. Eu sei que deveria
sair dali e seguir meu caminho, mas, merda, a vontade de descobrir
o que era aquele som agora gritava. Ando a passos lentos, tentando
não fazer barulho, apurando os ouvidos, como se eu fosse um
cachorro e implorando a Deus que não fosse algum demônio, alma
penada, seja lá o quê.
Passava em frente a uma porta quando ouço novamente o
mesmo som, agora um pouco mais alto. Paro, encarando a porta, e
a encontro entreaberta. Engulo a seco e a empurro, com medo de
fazer barulho. Meus instintos diziam “vá embora”, mas minha falta
de bom senso gritava “o que será? Vamos ver”.
Os gemidos ficaram um pouco mais altos. Ao olhar para dentro
do lugar, percebi que aquela era uma sala de arquivos antigos, que
não usam para nada além de entulhar papel velho. Equilibro a caixa
com os medicamentos entre a cintura e o braço, andando a passos
lentos até o som que ouvi e paro atrás de uma prateleira quando o
vejo por entre as caixas. Pisco, incrédulo, não acreditando em meus
olhos.
Dr. Saulo…?
Ele está sem o jaleco e com as calças abaixadas. Fodia uma
mulher de cabelos negros, que se encontrava de costas e, por isso,
não conseguia ver quem era. Investia rápido, sem qualquer
gentileza ou preocupação, a forçando contra à parede. O gemido da
mulher, de dor ou prazer, não sabia diferenciar, era o que eu havia
ouvido no corredor.
Estamos em um hospital, pelo amor de Deus!
Eu tenho a plena consciência de que preciso sair daqui, que
não deveria estar espiando esse tipo de coisa, feito um maldito
pervertido, mas mal consigo tirar os olhos daquele homem, de suas
estocadas e de seu grunhido. Merda. Dr. Saulo é, de fato um cara
gostoso pra caralho. As costas largas, os músculos rígidos devido
aos movimentos, sua bunda definida se movia sem parar, tudo
aquilo fez um arrepio subir por minha espinha e senti um volume
nas minhas calças.
Merda… aquilo me excitava.
Eu me senti um voyeur assistindo toda aquela cena. Meu
problema é que eu quero ver mais. Estou hipnotizado pela forma
como segura os cabelos dela, no jeito que a aperta pela cintura e na
força que metia naquela criatura sem dó. Me movi atrás da estante
para poder ver mais. Ele permaneceu de olhos fechados, como se
concentrasse em algo. Ouço a mulher grunhir, seu rosto amassado
na parede.
Toda aquela situação é, ao mesmo tempo, estranha, excitante
e errada, pois além de ficar aqui parado assistindo a essa cena
privê, eu estou de pau duro, me controlando para não enfiar a mão
dentro da calça. Dr. Saulo demonstra não se importar com a mulher
pela forma que a fode, parecia estar em seu próprio mundo,
ignorando tudo ao redor. Vejo-o abrir a boca e gemer algo inteligível.
Meu corpo vibra àquele som e, nem percebi que segurava meu
próprio pau dentro das calças até apertá-lo com a mão livre. Foi
quando a ideia caiu em mim feito chumbo.
Eu desejava aquilo. Estar ali. Sendo fodido por aquele homem.
Porra. Não sou louco. Tão menos masoquista. Mas é
humanamente impossível ignorar a montanha de músculos
deliciosos, fodendo sem piedade aquela mulher.
— Vou gozar… — Ouço Dr. Saulo sussurrar, seguido de algo
ininteligível.
Meu corpo vibra sobre aquele aviso, sinto que minhas pernas
viraram gelatina e perco o equilíbrio. A caixa debaixo do meu braço
esbarra em um dos inúmeros arquivos daquela prateleira e cai no
chão, fazendo um estrondo. Boa parte do conteúdo acaba se
espalhando.
Ca.
Ra.
Lho.
Meu coração, por um momento, para. Meu sangue gela de tal
maneira que sinto o arrepio frio percorrer por todo meu corpo. A
excitação e tesão totalmente esquecidos. Ergo devagar a cabeça e
vejo que o Dr. Saulo também havia parado ao ouvir o barulho e,
agora, encarava carrancudo, a prateleira em que eu me escondia.
Preciso sair daqui. Merda, deveria ter saído há muito tempo desse
lugar.
Pego a caixa, cato muito rápido do chão tudo que poderia
denunciar minha presença e corro porta a fora. Acelero pelo
corredor dobrando a esquina e seguindo para o elevador. Aperto os
botões em pânico. Se eu for pego, serei demitido. Eu serei demitido,
porra. Continuo apertando sem parar o botão para chamar o
elevador, praticamente em pânico. Não podia ser demitido. Eu
nunca mais conseguiria um emprego em nenhum hospital na capital
por causa dessa vergonha. Ouço passos se aproximarem ao
mesmo tempo em que o elevador emite o som de chegada.
As portas se abrem e entro frenético, e quase destruo a porra
do botão do quinto andar de tanto que o estou o apertando. Nem
fodendo apertaria o quarto andar, lugar que estou de serviço, era o
mesmo que me entregar. Desceria as escadas para o meu andar e
ele nunca saberia que eu estive ali. As portas se fecham lentamente
e encosto na parede fria do elevador quando ouço passos se
aproximarem.
— Ei! — Ouço-o gritar no exato momento em que as portas se
fecham completamente e suspiro, aliviado, ao senti-lo se
movimentar para cima.
Levo a mão livre aos cabelos. Porra, o que eu estava fazendo
observando feito um maldito voyeur àquele homem foder a mulher?
E por que, caralhos, eu fiquei excitado? Sexo hétero nunca havia
me excitado na vida! Mas a resposta me cai feito pedra afundando
em um rio em minha mente.
Não era o sexo em si. Era ele. Aquele homem que me excita.
As lembranças da forma que entrava nela, os movimentos
brutos e os gemidos que produzia ainda vibravam pelo meu corpo.
Merda… sinto meu próprio pau pulsar novamente dentro de minhas
calças. Imaginei-ofazendo o mesmo comigo. Eu realmente desejei
que ele me fodesse daquela forma! Porra! O homem me odeia e,
mesmo assim, eu o estou desejando? O que tenho na cabeça?
Merda?
Com certeza.
O elevador avisa da chegada ao quinto andar e a porta se
abre. Coloco a cabeça para fora e observo em volta encontrando o
corredor vazio, para meu alívio. As escadas ficam a uns cinco
metros de distância. Perfeito. Saio, fingindo que nada aconteceu, e
sigo até as escadas de emergência. Desço apressado, tentando
apagar aquelas imagens e sons de minha cabeça.
Abro a porta de emergência do meu andar e percebo uma
movimentação em um dos quartos mais à frente do corredor. Corro
para a sala de enfermagem, onde o som da máquina de
monitoramento está apitando incessantemente em alerta, largo a
caixa em cima da mesa e disparo em direção do quarto. Assim que
entro, toda a força do meu corpo se esvai. Minha noite tão tranquila
da qual eu reclamava e havia deixado de ser com o que acabei
assistindo no subsolo, veio a piorar naquele momento, pois estou
diante de Hana, em cima de um dos pacientes, fazendo a manobra
de ressurreição.
Merda.
— … quatro… cinco… — Hana contava enquanto pressionava
o peito do paciente.
Minha cabeça dá voltas. O velhinho estava ficando roxo, um
sinal claro de que não conseguia respirar. Sinto minhas mãos
suarem.
— Guilherme!
— Seis…
— Guilherme! — Ouço alguém gritar meu nome e meus olhos
seguem lentamente para a pessoa que anda até mim e me sacode
quase em desespero. — Que merda, Guilherme! Onde estava? Por
que o estoque da sala está vazio? Preciso de Succinilcolina[1]! Não
está me ouvindo?
Succinilcolina? O quê?
Hana volta a fazer a contagem enquanto pressiona o peito do
paciente, porém o velhinho não responde.
— Guilherme!! — Pisco, tentando ligar meu cérebro, e me vejo
de frente com a Dra. Angela, plantonista do andar me sacudindo. Eu
sequer a havia notado com tudo aquilo acontecendo. — Pega a
maldita Succinilcolina!!
Succinilcolina…
Me mexo, meu corpo entra no automático mesmo com meu
cérebro ainda processando o que estava acontecendo no quarto.
Corro de volta pelo corredor, direto a sala de enfermeiros, local onde
larguei a caixa com os medicamentos.
Succinilcolina é a medicação usada para entubar o paciente,
sua função é relaxar a garganta para que o tubo possa entrar com
facilidade. Escorrego no chão assim que tento parar para entrar,
quase caio. Entro esbaforido na sala, revirando a caixa que havia
trazido comigo, localizando a ampola, seringa e todo material
necessário. Antes de sair, alerto a Unidade de Tratamento Intensivo
sobre a emergência e volto correndo para o quarto.
— Não me deixe, Seu Júlio. NÃODESISTE.— Hana repetia,
ainda fazendo a manobra de ressurreição assim que entrei.
Preparo a seringa e aplico a medicação intravenosa. Dra.
Angela entuba o velhinho, dando ordens e nos orientando na
emergência, enquanto nós o conectamos à máquina de oxigênio e
ao aparelho cardíaco, que emitiu um sinal agudo contínuo até em
seguida soltar um bip, seguido de outros vários. Os sinais cardíacos
surgiram, quase normalizados. Destravo a cama, empurrando-o até
a UTI na mesma velocidade que aquele paciente requer .

Quase perdemos um paciente. Alberto apareceu, avisado pela


UTI,assim que chegamos ao elevador, levando-o para o segundo
andar junto da Dra. Angela e de Hana. Fico na sala de enfermeiros,
aguardando notícias, preocupado. Quase perdi um paciente por
irresponsabilidade minha. Não deveria ter demorado, não deveria ter
desviado do meu maldito caminho.
Quando Hana volta, tenta me acalmar dizendo que o paciente
estava bem, com tudo controlado e que, agora, ficaria em
observação. Suspiro, tão aliviado que quase choro. Nunca pensei
que algo assim poderia acontecer em um plantão meu. Aquilo havia
me deixado em pânico, a ponto de me fazer travar.
— A culpa não foi sua, Gui. Juro que vou descobrir quem
deixou o nosso estoque vazio. — Hana fala passando as mãos nas
minhas costas. — Não vai acontecer nada. Fica tranquilo.
Concordo com a cabeça. Era quase uma da manhã quando
decido fazer uma nova ronda pelos quartos. Precisava andar e
esfriar a cabeça. Caminho pelo corredor e ouço meu celular vibrar.
O retiro do bolso, destravando a tela.

Sorrio. Meu senhorio e colega de casa sempre tinha uma boa


saída. Digito uma mensagem aceitando o convite. Realmente a be-
bida era uma ótima opção.
Entro em cada quarto, anoto as informações de quem estava
conectado ao aparelho cardíaco, confiro se todos estão bem. Não
quero um novo susto como aquele. Volto para a sala mais aliviado
ao constatar que tudo estava bem. Assim que paro na porta da
nossa salinha, não é Hana quem me aguardava sentado na cadeira
de pernas e braços cruzados.
— Noite agitada? — pergunta, o sarcasmo escorrendo pela
frase.
Eu congelo ao ouvir sua voz. Dr. Saulo me observa sério,
quase carrancudo, seus olhos estudam cada centímetro de mim.
Engulo a seco. Meu nível de estresse já batia nas alturas e agora
enfren- taria isso. Será que ele ia me demitir por causa do que
aconteceu? Ou ele sabe que eu demorei com a medicação porque o
espiei foder aquela mulher? Encaro o chão, me apoiando no batente
da porta para não cair.
— B-bom dia, Dr. S-Saulo. P-posso ajudar? — Minha voz sai
vacilante e trêmula. Merda, eu me denunciava fácil. Minha testa
parece ter um letreiro luminoso escrito CULPADO e não consigo
disfarçar.
Ergo os olhos. Vejo-o pegar um tablet, passear o dedo pela
tela e concordar com a cabeça.
Sr. Júlio Cerqueira, de 79 anos. Problemas cardíacos e
respiratórios. Estava em observação no quarto, com medicação a
ser administrada a cada seis horas. — Sua voz era grossa, forte e
decidida. Ele soltou os papéis e jogou o tablet na mesa, sem se
preocupar se quebraria o aparelho, o barulho do impacto acabou me
assustando. — O que aconteceu?
O que aconteceu? O que aconteceu? O que aconteceu? O que
aconteceu? O que aconteceu? O que aconteceu? O que aconteceu?
O que aconteceu? O que aconteceu? O que aconteceu? O que
aconteceu? O que aconteceu? O que aconteceu? O que aconteceu?
O que aconteceu? O que aconteceu? O que…
— Ahm… e-eu… e-eu…
Pensa, Guilherme, pensa. Me sentia tão nervoso diante dele
que meus olhos encheram-se de lágrimas. Estou suando frio. O que
eu ia dizer, merda? Se abrisse a boca, ele saberia que era eu quem
estava lá embaixo. Que eu quem o estava espionando e gostando
do que estava vendo. O que eu faço?
— Estou esperando — disse, descruzando as pernas, ainda
me encarando.
Inspiro, sem coragem de encará-lo e decido por dar as
informações que tinha.
— H-houve uma alteração repentina no quadro do Sr. Júlio…
o-o coração, por um momento, parou. Hana foi quem deu os
primeiros socorros junto com a Dra. Angela enquanto… enquanto…
— hesito por um momento, a partir daqui preciso entregar meias
verdades. — E-eu voltei para pegar a medicação e o material para
intubação.
Meu peito está pesado, o coração batendo feito louco nas
costelas. A ansiedade vem com tanta força que sinto minhas
energias querendo me abandonar.
— Só isso? — pergunta, erguendo uma das sobrancelhas
calmo e frio. — E por que demorou tanto para entubá-lo?
Ah merda… Como assim só isso?! Hana havia dado com a
língua entre os dentes? Não, ela não faria isso. Só se… só se ele
sabe… Meu Deus… engulo a seco e desvio o olhar, não antes de
dizer:
— E-eu não estava encontrando a Succinilcolina…
O silêncio daquele homem é quase ensurdecedor na sala.
Ergo os olhos somente para vê-lo me analisar de cima a baixo. Seu
olhar percorre meu corpo sem qualquer tipo de pressa e é quase
impossível não me sentir nu com aquela análise. Cruzo os braços
em uma forma de proteção. Não consigo mais continuar a encará-lo
e tento disfarçar que estou me sentindo constrangido, invadido e…
merda.
Por que esse homem tinha que ser tão bonito, sexy e gostoso
pra cacete?
Inspiro, reunindo toda a coragem que ainda me resta e me
forço a voltar a observá-lo. Preciso encarar tudo isso, não posso
ficar fugindo dessa confusão. Seus olhos encontram os meus e
sugo o ar, as pernas tremendo, meu corpo querendo me trair. É
como se houvesse chamas naquelas irises, me queimando e
consumindo intensamente.
— Certo… — diz de forma lenta, se levantando em seguida.
Deu alguns passos até ficar de frente a mim e percebo que
está perto demais. Tão perto, que seu cheiro me invade. Um
perfume almíscar, bem masculino, que mexe seriamente com meus
sentidos. Eu senti um grande tesão…
Tensão. Uma grande tensão.
Merda.
Umedeço meus lábios. Eu não consigo parar de pensar nesse
homem me pegando e fazendo todas aquelas coisas com meu
corpo. Desvio o olhar e descruzo os braços, levando as duas mãos
à altura de minhas partes em uma forma protetora para que ele não
perceba o volume que surgia, já que meu pau se sentiu no direito de
se animar deliberadamente. Porra, eu nem o culpo. Era impossível
não sentir o poder daquela atração. Ou seria intimidação?
Meu Deus, eu sou um maldito pervertido.
Dr. Saulo se aproxima de meu rosto e, por ser mais alto que
eu, curva-se o suficiente para que sua boca ficasse quase colada ao
meu ouvido.
— Da próxima vez, não desvie seu caminho ao pegar os
medicamentos que precisa, pois há certas coisas que não devem
ser espiadas…
Ouvir aquilo faz com que meus olhos quase saltem das órbitas
de tanto que os abro e, usando uma força inumana, luto para não
cair duro no lugar.
Ele sabe. Merda, ele sabe! Mas como?
Porém, como resposta às minhas desesperadoras perguntas
internas, Dr. Saulo coloca a mão no bolso do jaleco, retirando algo
para me entregar. Ergo a minha própria mão, muito trêmula, e ele
deposita em minha palma aberta uma ampola de Succinilcolina.
Cara… lembra quando eu disse que era um cara durão? Olha,
depois disso passei a ter certeza de que eu realmente sou, pois
sinto que minhas forças se esvaíram por completo e não faço ideia
de como não desabo duro e sem vida no chão.
— E tome cuidado para não perder mais nenhum
medicamento no caminho.
Puta.que.pariu. Eu estava muito, mas muito, fo.di.do. E não
era da forma que tanto gostaria, vamos deixar isso bem claro.
Dr. Saulo se afasta, mas não deixa de ficar de frente a mim.
Permanecemos parados daquela maneira não sei por quanto tempo.
Nenhum de nós dois mexe um centímetro sequer. Seu rosto
permanece tão próximo do meu que sinto sua respiração,
acompanho atento sua boca se abrir levemente ao suspirar e sinto
seu hálito de menta em mim. Meu coração dá um solavanco,
criando um pequeno terremoto por dentro, até que então, no
segundo seguinte, o médico se endireita e passa por mim, saindo da
sala, indo embora, como se nada tivesse acontecido naqueles
segundos.
Me forço a dar dois passos para dentro da sala, me apoiando
na mesa, permitindo que todo o medo saísse em um suspiro de
alívio mesmo sentindo meu corpo tremer descontrolado. Puxo a
cadeira em que ele esteve sentado segundos atrás e me jogo nela,
tentando não chorar pela mistura confusa de sentimentos que vivi
naqueles poucos minutos que se passaram. Largo a ampola na
mesa e esfrego as mãos no rosto em uma procura de alívio, ainda
sentindo meu coração bater tão forte que acho que posso ter uma
parada cardíaca a qualquer momento.
Mas que porra foi aquela? A boca dele estava tão perto que,
por um momento, eu acreditei que ele fosse… fosse… me beijar?
Balancei a cabeça em negativa.
Eu estou ficando maluco isso sim! Estou estressado e
completamente…
... cheio de tesão.
Não! Eu estou delirando, isso sim. Tive tanto medo que pensei
besteiras.
— Guilherme! — A voz de Hana me faz gritar e pular de susto.
Levo uma mão ao peito e a outra à cabeça que agora latejava, me
virando para a porta. — Estou te chamando e você não ouve!
Acabei de ver o doutor Sau… — Hana parou de falar e me encarou
séria. — Você está bem?
E alguém estaria depois de confrontar um médico sádico e
logo em seguida com uma louca aparecendo e gritando do nada?!
— Pelo amor de Deus, Hana. Não sei se aguento mais levar
sustos assim hoje! Já tive minha dose extra de pânico pra um único
dia!.
Hana se aproxima e abaixa na minha frente.
— Está tudo bem? — pergunta com a voz cheia de
preocupação, sua mão passa por meu rosto secando uma lágrima
que desceu e eu nem havia percebido. — Ele fez alguma coisa com
você?
Balanço a cabeça negando.
— Tem certeza? — Minha amiga insiste.
Hana parecia pronta para atacar quem fosse para proteger
quem ama. Me obrigo a abrir um sorriso, tentando tranquilizá-la.
— Ele só chamou a minha atenção e disse para não deixar
acontecer novamente. Poderíamos ter perdido uma vida.
Minha colega fez um afago em meu joelho.
— Mas não perdemos. Você só travou na hora, isso acontece
às vezes. O Dr. Saulo que é um homem arrogante. Não fique assim,
tá bom? A Dra. Angela estava lá e tinha tudo sob controle.
Concordo com a cabeça tentando me sentir aliviado com suas
palavras.
— Descobriu alguma informação sobre o estoque da sala? —
pergunto, implorando para mudar de assunto.
Hana suspirou, puxando a outra cadeira e sentando de frente a
mim.
— Descobri que não foi só no nosso andar esse desfalque.
Parece que alguém está sumindo com os medicamentos. Já passei
tudo pra a Dra. Ângela, que ficou de informar para a direção. E, por
favor, pare de pensar no Dr. Saulo. Vamos terminar esse plantão
tranquilos, tá?
Concordo com a cabeça, mas não consigo, meus
pensamentos são reféns do que aconteceu. Eu tenho consciência
de que o Dr. Saulo me odeia, mesmo sem saber o real motivo. E
tenho a plena certeza de que um homem como ele jamais teria
qualquer atração por mim. Então tudo o que senti naquela prensa foi
fruto daminha imaginação. Me subconsciente reagindo por culpa do
que havia visto e do que que aconteceu. Ele é um homem hétero e
jamais terá qualquer tipo atração por mim. Nem em meus sonhos.
Mas, em meu íntimo, desejei que não fosse verdade.
Dei graças aos céus quando o dia de trabalho encerrou. Como
marcado, lá estava Alberto me aguardando no vestiário masculino
para irmos para casa, ou qualquer outro lugar para o qual ele iria me
arrastar. Na verdade, não me importava muito. Eu só queria ir
embora daquele hospital, para o mais longe possível de Saulo
Marques.
— Tua cara não é das melhores — falou assim que me
aproximei de meu armário para retirar as roupas.
Não duvido disso. Eu sentia o peso do mundo sob minhas
costas, então não me surpreenderia se estivesse com olheiras
profundas. Só desejava a minha cama naquele momento.
— Eu só quero esquecer tudo o que foi essa noite e descansar
— respondo batendo a porta do armário e arrancando a blusa do
uniforme pela cabeça.
Quando voltei a encará-lo, Alberto me observava, sério.
— Então… essa foi a sua primeira emergência? Digo… seu
primeiro paciente de urgência no hospital?
Paro para pensar e percebo que, como sempre trabalhei nos
quartos desde o primeiro dia que comecei no CADME, nunca
acompanhei qualquer emergência. Balanço a cabeça concordando e
evitando ter que explicar toda a merda que aconteceu, o que seria
muito pior.
O que eu poderia dizer? “Além disso, minutos antes, peguei
aquele médico sádico fodendo uma mulher e ele ainda me deu um
enquadro que, puta que pariu, me deixou de pau duro e muito
estressado” Então, simplesmente esfreguei as duas mãos no rosto
tentando me recuperar.
— Trabalhar nos quartos está me deixando acomodado —
falo, retirando o restante do uniforme e troco de roupa enquanto
Alberto está parado de frente, me ouvindo atentamente. Estou com
tanta pressa para ir embora dali que iria deixar para tomar banho em
casa. — Se estivesse na emergência não teria relaxado assim. Eu
nunca travei e isso me deixou maluco.
Visto a calça jeans e me sento no banco para calçar as meias
e o tênis. Alberto limpou a garganta e sentou ao meu lado.
— Você… não tinha ficado de falar com a Dra. Lethícia sobre
isso?
Suspiro, derrotado.
— Acabei de chegar no hospital, Alberto. Não sou maluco de ir
reclamar com a diretora adjunta que não estou trabalhando no setor
para o qual ela havia me designado. Preciso do salário e eu gosto
de trabalhar aqui. Não quero ser o funcionário problema.
Meu novo amigo concordou com a cabeça e relaxou ao meu
lado, dando tapinhas em meu ombro.
— Então a solução é deixar do jeito que está e afogar as
mágoas em uma boa bebida.
Concordo com ele, terminando de amarrar os cadarços e me
levanto, pegando minha blusa e vestindo-a.
— É exatamente isso que vou fazer — falei jogando minha
mochila no ombro.
Alberto se levantou animado.
— É assim que se fala! Vamos que vou te levar em um lugar
super maneiro.
Concordo e saímos em direção ao estacionamento para o tal
lugar que Alberto me prometeu, decidido a esquecer toda aquela
merda, inclusive o próprio neurocirurgião.
Abro os olhos, me sentindo meio tonto, e encaro o teto azul
que reconheço ser do meu quarto no apartamento de Alberto.
Inspiro profundamente e sinto a boca seca.
— Porra… — solto não acreditando no que tinha acabado
acontecer.
Dr. Saulo.
Sento em minha cama e esfrego as mãos no rosto. Eu
realmente sonhei com aquele maldito médico? Merda. Ainda sinto
meu corpo quente de tesão com aquele sonho. Jogo o lençol para o
lado e lá está meu pau, duro igual a uma rocha, me denunciando.
Minha cueca boxer suja do pré-gozo.
Cueca?
Estranho… quando foi que tirei as calças?
Não tenho costume de dormir somente de roupas de baixo,
então puxo da minha confusa e enevoada memória o que havia
acontecido. Depois que saímos do plantão, Alberto me levou para
tomarmos uma bebida a fim de me ajudar a superar o susto que
havia passado naquela noite e, porra, eu realmente precisava
esquecer aquilo. Porém, eu sabia muito bem que não era só por
causa disso que precisava daquela bebida. Alberto conhecia lugares
no Rio de Janeiro que vendiam bebidas a qualquer hora e me
arrastou para tomar shots de vodca e afogar a tensão.
Todavia, não lembrava de quantos copos havia consumido,
nem me recordava dele me ajudar a chegar em casa. Porra. Bebi
tanto ao ponto de não lembrar de como foi que voltei, muito menos
como alcancei a cama? Alguém me trouxe, era fato, pois recordava
de uma voz masculina.
Com certeza, Alberto. Ele tem sido um ótimo amigo.
Graças aos céus era minha folga naquela noite, pois
enfrentaria um plantão de vinte e quatro horas no dia seguinte, a
partir das oito da manhã em ponto.
Volto a me deitar, a cabeça ainda zunindo, e me rendo ao
desejo. Meu corpo implorava por um alívio depois de tanta tensão.
Então fecho os olhos, me permitindo mergulhar nas lembranças
daquele sonho, ainda vivas na minha mente, e que faziam-me sentir
pervertido e carnal. Desci a mão direita pelo meu corpo, deslizando
pelo meu peito, seguindo até meu umbigo e descendo lento, sem
qualquer pressa. Estou tão entregue ao arrepio que o toque me
proporciona que sinto que aquela mão não me pertence mais.
Mergulho nas memórias do sonho e nelas, não era na mulher que
Dr. Saulo Marques fodia com vigor e raiva impetuosa.
Era em mim.
Eu sentia cada centímetro dele dentro do meu corpo, a dor
misturada ao delicioso prazer. Suas mãos fortes agarrando minha
cintura e meu cabelo, sentindo o calor de sua boca em minha
orelha, me arrepiando enquanto rugia em meu ouvido.
“É disso que você gosta?”
Senti uma mão apertar meu pau, fazendo movimentos rápidos
ao mesmo tempo em que Saulo metia em mim. Meus quadris se
flexionam. Meu estômago se contrai. Ele me abraçou pela cintura,
me erguendo até minhas costas baterem em seu peito nu. Eu sentia
o calor de seu hálito em mim e era tão real. Em nenhum momento
parou de socar dentro de mim, enquanto a outra mão ficava mais
forte, mais rápida e mais apertada em meu pau.
“Goza pra mim, beija-flor” ouço-o dizer e abro meus olhos,
assustado.
— S-Saulo…?
Chamei seu nome, confuso, enquanto meu corpo vibrava sob
o fantasioso comando, o tesão em seu limite quando tudo o que
sentia escapava de dentro de mim em um gozo rápido e pulsante.
Meus olhos enevoam. Minha mente ficou uma bagunça quando um
Dr. Saulo desaparecia feito fumaça de meus pensamentos e a
sombra de outra pessoa surgia sorrindo, mas que se apagou logo
em seguida. Meu coração martelava furiosamente em meu peito.
Aquele maldito sorriso…
Minha cabeça começou a girar. Meus olhos agora queimavam
pelas lágrimas que se formaram. Saulo jamais saberia aquele
odioso apelido, então por que…?
O que caralhos eu estava pensando?
Meu peito dói e sinto-me esgotado.
Por que sou assim? Será que eu sou fadado a sempre me
sentir atraído por malditos homens héteros?
Porra, não. Não de novo. Entretanto, eu não conseguia parar
de pensar no jeito que o médico me olhou quando apareci na sala
ou na tensão que aconteceu quando ficamos frente a frente.
“Goza pra mim, beija-flor” aquela voz volta a dominar meus
pensamentos e ouvidos. Automaticamente, levanto as mãos,
tapando-os. Fecho os olhos com tanta força que as lágrimas
descem pelo meu rosto. Não! Eu não ouvi aquilo. Era uma invenção
da minha cabeça. Uma lembrança muito antiga, perdida.
Esquecida!
— Pára, Guilherme. Pára! — Me repreendo com vigor. — Você
veio para o Rio com a intenção de trabalhar como enfermeiro,
começar de novo, esquecer cada segundo daquele odioso
momento. Então pára com isso! Você já superou toda aquela merda.
Chega!
Me permito permanecer naquela posição, acalmando meus
nervos e silenciando a voz em minha mente. Assim que me sinto
mais calmo, me arrasto para fora da cama e pego meu celular na
cômoda. São mais de meia noite. Que perfeito, logo estarei de pé
pra ir trabalhar. Coloco o celular de volta e vou para o banheiro me
lavar, puto comigo mesmo por ter me deixado levar por aquela
fantasia que acabou ativando lembranças que não deveria. Juro
para mim mesmo que aquilo nunca mais aconteceria.
Não posso deixar isso me afetar depois de tanto tempo. Para
de lembrar dessas merdas, agora! Brigo comigo mesmo enquanto
seco os olhos com o antebraço.
Volto para cama, agora limpo e vestido com roupas de dormir,
decidido a não deixar mais ser levado por aquele desejo tão errado
e proibido.

Assim que chego no hospital, às sete e meia, recebo a notícia


que não ficaria novamente na emergência, pois havia sido enviado
para dar suporte a área de gestantes. O médico responsável pela
divisão de trabalhos no plantão 24 horas? O desgraçado Dr. Saulo
Marques. Aquilo me enche de uma fúria descontrolada. Não consigo
me conformar com aquela ideia.
— Filho da puta! — Bato em meu armário após jogar minha
mochila lá dentro.
— Calma, Gui. — Alberto fala, batendo em meu ombro no
vestiário masculino enquanto trocamos de roupa. — Não deixe isso
subir a sua cabeça.
— É fácil pra você falar isso. Trabalha em todas as áreas
desse hospital. Você é maqueiro, porra! Pode ir e vir para onde
quiser! E eu? Me candidatei para trabalhar na emergência. Quero
ser de fato útil e não ficar parado aguardando algo acontecer!
Alberto somente balança a cabeça me encarando com pena.
Eu me sinto frustrado. O hospital CADME é conhecido pela
sua emergência eficaz. O setor fica no primeiro andar e os
corredores de atendimento da emergência são divididas pela cores:
branca, para curativos simples, atendimentos de rotina e consultas
de retorno; verde, para dores abdominais, infecções e avaliação de
exames;amarela, para primeiro atendimento de pacientes acima de
60 anos, deficientes, gestantes e hipertensos; laranja, para vítimas
de violência ou abuso sexual, sangramentos compressíveis,
queimaduras leves e medianas, vítimas de mordeduras,
hemorragias e gestantes com complicações; e, finalmente, a
vermelha, para queimaduras graves, traumatismos, convulsões,
trauma torácico, craniano ou abdominal com perfuração;
amputações, fraturas expostas e ferimentos extensos com
sangramento.
Ser prestativo naquele setor era o que eu mais amava, era um
lugar para poder ajudar a salvar vidas.
— Relaxa. Vai que rola uma emergência sinistra e chamem
todos os enfermeiros para ajudar? — Alberto falou com um sorriso
cínico no rosto.
Passo a mão pelo rosto. Deus, eu não queria pensar nisso,
mas eu desejava com todo o meu coração que algo assim
acontecesse. Foi quando os céus decidiram brincar comigo e
atenderam meu desejo.
Passavam das nove da manhã e o plantão, que começou
calmo, se tornou uma loucura quando muitos enfermeiros foram
convocados e reunidos em uma sala. E, para meu próprio
desespero, eu não estava na maldita lista de convocação, mas
mesmo sob pena de tomar uma advertência, me enfiei escondido no
meio do grupo.
Alguns médicos, entre eles o próprio Dr. Saulo, estavam à
frente explicando o ocorrido. Um acidente de trânsito com dois
ônibus, que haviam colidido, e muitas vítimas que iam de ferimentos
leves a graves.
— Recebemos a informação de que estão vindo para cá em
torno de quinze acidentados. — Sra. Roberta, a nossa enfermeira-
chefe, nos orienta.
— Provavelmente existam mais, não temos ideia da proporção
do acidente e também não sabemos se todos serão enviados para a
nossa emergência ou se serão divididos para outros hospitais. — Dr.
Saulo toma a frente. — Então, fiquem prontos para toda e qualquer
emergência.
Sra. Roberta os separa em duplas para dar suporte a outros
médicos. Como eu não estava na lista, fico afastado e atento,
mesmo meu desejo sendo participar de tudo aquilo, ajudando a
salvar vidas. Então permaneço no fundo, atrás de todos os
enfermeiros para não ser visto.
— Guilherme...? — Ouço alguém sussurrar meu nome e me
deparo com Hana, provando que meu plano é um completo fiasco.
— Você está na lista de convocados? — tento silenciá-la, porém ela
se desvencilha rapidamente. Então nego com a cabeça e minha
amiga fica chocada. — Se te pegarem aqui, você vai tomar uma
advertência.
Eu sei, merda.
— Eu o avisei. — Alberto surge do nada ao nosso lado,
fazendo Hana e eu pularmos feito gatos pelo susto. — Mas ele ouve
alguém?
— Meu Deus, Alberto. Faz barulho quando chegar perto. —
Hana diz colocando a mão no coração.
Quando eu ia abrir a boca para questionar meus amigos, as
portas da emergência se abrem e os feridos começam a ser trazidos
para dentro. Eu encaro, atônito, a quantidade de gente que entrava
em macas, carregados ou a pé. E não haviam quinze acidentados
conforme a Sra. Roberta afirmou. Haviam mais. Muito mais. Alguns
com ferimentos leves e outros com fraturas graves e expostas. Dr.
Saulo dividia com Dr Mauro os pacientes mais graves, que eram
levados às pressas para dentro dos setores correspondentes.
— Hoje vai ser um dia daqueles… — Alberto confessa,
suspirando.
E de fato foi. O grupo se dispersou, cada um seguindo para as
áreas designadas e eu tentei ser útil, orientando os pacientes que
chegavam, mesmo estando escondido. Em um momento acabei
ficando com minha amiga oriental, que dava suporte à Dra. Ângela,
cuidando de alguns idosos com ferimentos leves. Eu passava pelo
corredor com Hana guiando uma velhinha, quando outra maca
entrou porta adentro com um rapaz loiro inconsciente, porém sua
cabeça sangrava muito. A própria Dra. Angela, assim que o viu,
correu para o atender.
Eu sabia que, com um ferido grave como aquele, a doutora
precisaria de assistência e, mesmo ciente dos riscos, decido ir
ajudar.
— Hana…
— Vai lá ajudar. Eu cuido da dona Solange — ela responde,
levando a senhora para a sala verde.
Concordo com a cabeça e corro em direção à doutora, que já
estava pegando o tablet da mão da socorrista. A Dra. Angela
examinava o paciente, constatando o ferimento quando ergue os
olhos e me vê.
— Guilherme? O que você… ah, droga, deixa. Já que está
aqui vai me ajudar. — E se vira para o socorrista. — O que houve?
— Atropelamento — ele informava. — Ferimento grave na
cabeça. Provável traumatismo craniano.
Dra. Angela analisa o paciente.
— Traumatismo? — fala mais para si mesma. Ela faz o
primeiro atendimento, mas a cara que faz ao conferir o ferimento me
faz gelar. Seus olhos se encontram com os meus. — Precisamos do
Dr. Saulo — A especialidade do Dr. Saulo é neurologia e ele é muito
bom nisso, devo admitir. — Guilherme, preciso que corra para a ala
laranja e não importa o que esse homem esteja fazendo, traga-o
aqui, nem que seja arrastado.
Congelo com a ordem. Tento não tremer pois a última pessoa
com quem quero dar de cara é com ele. Issoseria o mesmo que me
entregar ao leão para ser devorado.
— Mas se ele…
— Me ouviu, Guilherme? Se demorar mais, vamos perdê-lo. —
Dra. Angela repete me impedindo de terminar de falar. — Vá e traga
do Dr. Saulo aqui, agora!
— Sim senhora — respondo ao ouvir a ordem, saindo em
disparada.
Viro para o corredor laranja e me deparo com uma correria
naquele lugar. Dr. Saulo sai de uma das salas com algumas
pessoas dando ordens. Corro em sua direção.
— Dr. Saulo! — chamo esbaforido. — Dr. Saulo!
Ele se vira e me encara com um olhar questionador. E assim
que me reconhece, seu semblante muda drasticamente.
— O que você está fazendo aqui?
— Atropelamento — respondo afoito. O médico me encara
confuso. — Traumatismo craniano grave na área vermelha. A Dra.
Angela precisa do senhor urgente.
— E como você… Merda. — resmunga e passa ordens a
alguns enfermeiros e médicos. Em seguida se vira para mim. —
Onde?
Corro, levando-o comigo para o corredor vermelho, que estava
uma loucura ainda maior. Muitos feridos graves do acidente ainda
estavam aqui. Aponto para onde estava Dra. Angela e ele segue
para lá. Ao se aproximar da maca, faz uma análise rápida do ferido.
— Está com hemorragia. Não era para estar aqui! Precisamos
levá-lo para cirurgia. Preciso de uma sala agora!
— A sala quatro está livre! — Uma enfermeira com um tablet
nas mãos informa.
Alberto, que havia entrado na sala com uma maca vazia,
correu em nossa direção e destravamos a maca juntos, mas o Dr.
Saulo me interrompe, me puxando pelo braço e me afastando do
paciente. Alberto segue levando o paciente acompanhado pela outra
enfermeira até a sala cirúrgica. O médico me solta, dando um passo
em minha direção, com o dedo em riste, em seu rosto uma
expressão de raiva contida. Médicos e enfermeiros que ainda estão
na sala se viraram para nos encarar.
— Volte para o seu trabalho no lugar onde foi escalado e
quando eu terminar, quero você na minha sala! — diz, sua voz
elevada o suficiente para que todos à volta percebam sua
autoridade. — Não quero saber de você andando por esses
corredores, fui claro?
Se vira e segue às pressas para fora da área vermelha. Solto
os braços ao lado do corpo, frustrado e muito envergonhado.
É… agora eu estou realmente fodido.
Para não dizer o pior:demitido.
Eram perto das cinco da tarde quando fui informado da ligação
para comparecer à sala do Dr. Saulo. Voltava de uma pequena
emergência: um parto normal no quarto que pegou o andar todo de
surpresa. Traumatizado o suficiente por não só assistir o parto e
ainda ter que carregar o pequeno bebe prematuro até a UTI,terei
que enfrentar a fera e quem sabe assinar minha demissão.
Na realidade, eu não quero ir. Quero fingir que nada daquilo
estava acontecendo. Por que eu tive que desobedecer a uma ordem
direta? Porque não fiquei quietinho aqui em cima como se nada
estivesse acontecendo? Por que eu nunca seria notado então
precisava enfrentá-lo, mostrar que era prestativo, que estava
naquele hospital para tudo.
Quer saber, foda-se. Eu vou bater de frente se for necessário.
Não vou perder meu emprego por causa de uma implicância
infundada. Se a raiva sem sentido que o Dr. Saulo sente por mim
vier de algum preconceito estupido, eu vou descobrir agora.
Aviso a doutora responsável do andar e sigo para a sala do
médico louco no oitavo andar, cheio de uma falsa confiança e
decidido a não fraquejar. Assim que chego, respiro fundo me
perguntando porque essas coisas aconteciam comigo, solto o ar
tentando me livrar da tensão. Bato em sua porta e abro uma fresta.
Ele está sentado diante da mesa concentrado em algo. A carranca
que está fazendo faz minhas pernas tremerem.
— D-dr. Saulo? — chamo. Ele ergue os olhos do computador
e, ao me ver, seu cenho se fecha ainda mais.
Deus me salve.
— Entre e feche a porta — fala seco.
Óh céus… estou de fato muito fodido.
Entro em sua sala e fecho a porta atrás de mim. A sala do Dr.
Saulo é grande e bem arejada. A mesa longa, em formato L, está
perfeitamente posicionada diante de uma janela ampla para a rua. O
sofá escuro de dois lugares, combina com os olhos do médico,
bonito e misterioso, talvez um pouco sombrio. Há também uma
pequena geladeira e uma bancada no lado esquerdo. É um lugar
organizado e muito masculino.
— Sente-se. — Não foi um convite, olho para a paisagem do
belo quadro, desejando estar lá, sua voz tem um tom autoritário, sei
que está querendo me intimidar.
— Eu prefiro ficar de pé — respondo, colocando as mãos nas
costas e desejando me enfiar no pequeno banheiro que avisto
enquanto observo rapidamente o lugar.
Meu “chefe” recosta em sua cadeira, sério, quando volto a
encará-lo.
— Você desobedeceu a ordens diretas. Sabe que posso
demiti-lo por isso.
Não é uma pergunta, mas mesmo assim sinto que devo me
explicar.
— Precisavam de ajuda na emergência.
— Você desobedeceu a ordens diretas — repete. Aquele
homem sequer piscava.
Sério? Vamos mesmo ficar só naquilo? Tiro as mãos nas
costas e as esfrego na calça. Respiro tentando manter a calma.
— Dr. Saulo, a emergência ficou lotada demais e percebi que
precisavam de ajud…
— Eu te escalei para ficar na ala de gestantes. — Saulo fala,
me cortando. Estava impassível. — Que direito acredita que tem
para desobedecer às minhas ordens?
Ouvir aquilo me enfureceu e não consigo segurar a língua.
— E por que sempre que está responsável pelo plantão me
exclui dos atendimentos de emergência?
Esse homem está me deixando uma pilha de nervos. O
médico se levanta, exaltado.
— Não lhe devo explicação sobre minhas decisões,
Guilherme. Você é pago para obedecer às minhas ordens!
Eu começo a ficar nervoso. Queria gritar também.
— Não entrei no CADME para ficar sendo excluído da
emergência. Entrei nesse hospital para trabalhar ali. — Ergo o dedo.
— Você não tem o direito de me tirar da minha função!
Dr. Saulo dá a volta pela mesa a passos firmes, vindo em
minha direção. Dou um passo para trás.
— Eu faço o que quiser nesse hospital, garoto. Se eu decidir
que você vai para o estoque ou ficar no necrotério, é pra lá que você
vai!
Sua ameaça me choca. De onde vinha tanto rancor, tanto
ódio?
— Isso não é justo!
— Não é justo eu ter que olhar para sua cara em todos os
meus plantões!
Nós dois nos silenciamos. Ele ainda está me encarando com
raiva.
— O que foi que eu fiz? — sussurro, incrédulo com aquela
declaração. — O que fiz para você fazer isso comigo? Por que me
odeia tanto?
De repente ele não me encara mais.
— Saia — ordena, me dando as costas.
O quê? Primeiro fala aquelas coisas horríveis e agora quer que
eu simplesmente saia?
— Não! Não vou sair — falo dando um passo à frente. —
Quero saber, tenho esse direito. O que eu fiz para sempre me tratar
como sobra?
— Saia — repete. — E não me desobedeça novamente ou
essa será a sua última vez.
Não acredito no que estou ouvindo. Ele está me ameaçando
por eu querer fazer o meu trabalho?!
— Não pode me tratar assim! Sou um funcionário competente
e exemplar deste hospital. Eu lutei para chegar aqui. Não pode
simplesmente me excluir só porque é um… um… preconceituoso! —
explodo.
Congelo com a acusação que acabo de fazer, levando a mão à
boca. Eu havia gritado com Dr. Saulo em sua sala, chamando-o de
homofóbico. Que perfeita merda! Eu realmente estava fodido e mal
pago. Adeus emprego, adeus vida adulta na capital. O médico se
vira, seu rosto tem uma fúria gélida que eu jamais imaginei ver em
alguém.
— Preconceituoso? — indaga, quase em um sussurro, como
se experimentasse a palavra em sua boca. — Quer mesmo saber
por que você me irrita?
Ele dá um passo em minha direção e eu, instintivamente,
recuo, pois o nervosismo me faz tremer.
— Quer saber mesmo por que preciso que você esteja sempre
longe de onde trabalho? — O tom de sua voz não altera em nada.
E dá outro passo, ainda mais perigoso, em minha direção e eu
recuo mais um outro.
— Porque você é irritante. Essa sua carinha de garoto
inocente, com essa sua alegria e satisfação em ser o que é, a
gentileza em trabalhar com os outros funcionários, a satisfação em
atender os pacientes… tudo em você me irrita — esbraveja, ainda
me empurrando para trás.
Não consigo reagir, pois estou muito chocado ao ouvir aquilo.
— Por que você é assim? Por que você é desse jeito meigo e
gentil?! — diz, sua voz finalmente alterada. Parecia… inveja?
Minhas costas batem na porta. Merda, estou encurralado.
— Você… — A raiva não estava mais contida, sua voz
aumentava gradativamente. — O que você faz comigo…
Nada que saía de sua boca fazia sentido para mim.
— E-eu?! — pergunto incrédulo.
— Sim, você! — grita furioso, batendo com uma das mãos na
porta muito perto do meu rosto e sua boca fica próxima demais do
meu rosto. — Por que sou punido com os sonhos mais sombrios e
pecaminosos? O que é você que desperta em mim esse desejo? Me
diga! — Explode.
Eu não respondo, até porque não sei o que dizer ou reagir com
aquela declaração. Porra… Não sou surdo, mas ou é loucura minha
ou Dr. Saulo está confessando que sente atração por mim? Não…
não estou ficando maluco, ou estou?
O peito do médico sobe e desce, como se ele tivesse corrido
uma maratona. Por um segundo, percebo que seus olhos desviam
para minha boca. Ele parece atormentado, estando perto demais de
mim. Era como se brigasse internamente consigo mesmo. Está tão
perto que seu perfume almíscar invade os meus sentidos.
Oh céus… vou enlouquecer. Ele realmente sente algo por
mim?
Isso só pode ser coisa da minha cabeça. Inspiro fundo. Preciso
sair dali.
Agora.
— Dr. Saulo… — tento dizer, mas sou interrompido quando ele
ergue uma das mãos, enfiando seus dedos em meus cabelos pela
nuca enquanto puxa minha cabeça em sua direção. — O que…
Não consigo sequer completar a maldita frase, pois sua boca
gruda furiosamente na minha.
Ok! Vamos analisar o que está acontecendo.
Dr. Saulo está me beijando.
Não. Dr. Saulo está me beijando.
Não… Dr. Saulo está me beijando.
Porra… Dr. Saulo está me beijando!
Ca.ce.te!
Não importa a forma, aquela muralha de homem
deliciosamente arrogante está realmente me beijando!
Então, por que meu cérebro está aos gritos me dizendo que
nada daquilo faz sentido? Não era o que eu desejava em meus
sonhos mais tórridos e profundos? Porra, com certeza. Saulo
Marques, o médico neurologista mais importante, bonito e, Deus me
ajude, o cara mais gostoso de todo o CADME, o homem que faz
qualquer pessoa tremer só de estar na mesma sala, está nesse
exato momento me beijando e seu pau duro está roçando em mim.
Adeus mundo… Adeus sanidade mental.
Sua boca varre a minha enquanto seu corpo me pressiona na
porta, praticamente se esfregando em mim e quando tento abrir a
minha, em uma tentativa vã em busca de ar, ele a invade com sua
língua. Caralho, seu sabor é eletrizante ao ponto de descer pelo
corpo em uma espiral de desejo até encontrar meu pau, que
enrijece de imediato.
Porra! O que eu estou fazendo?!
Ergo minhas mãos, trêmulas. Preciso fazê-lo parar. Mas… eu
quero isso?
O que? Parar? Não mesmo. Deixa rolar!
Mas isso não deveria estar acontecendo!
Não deveria?
Não!
Reunindo toda minha força de vontade e dando um gemido
doloroso, afasto-o de mim com um empurrão. Ambos estamos sem
fôlego. O médico me encara, seu rosto vermelho e confuso pela
interrupção abrupta e seus olhos atônitos encontram os meus que,
agora, estão ardendo pelas lágrimas que se formaram ali antes de
tudo aquilo e engulo a seco.
Não Guilherme! Não vai chorar agora. Não fraqueje, cacete.
Saulo, como se tivesse acordado pra vida, dá alguns passos
em minha direção.
— Guilherme…. — Me chama ao tentar me agarrar pelo braço
novamente.
Ouvi-lo me chamar com aquela voz doce me queima por
dentro. Quero ceder, meu corpo pede por isso.
Porra. Não! Ele me odeia, é só mais um maldito hetero que
não sente atração por mim! Ao menos... não deveria! Céus… Nada
daquilo faz sentido!
— Não é que está pensando… — Saulo insiste ao segurar
meu braço.
Não é? Nem fudendo!
Dessa vez não sou gentil. Eu o empurro com força. Dr. Saulo
dá dois passos para trás, se desequilibra, quase caindo e aquele é o
tempo que precisava. Me viro, abrindo a porta de saída e saio
correndo de sua sala o mais rápido que minhas pernas permitem.
Não sou brinquedo de ninguém. Grito em minha mente. Não
sou brinquedo de ninguém!
Nunca mais!
Desço as escadas de emergência sem me importar se ele está
atrás de mim. O que não está, percebo isso assim que olho por cima
do ombro e não o vejo. Paro de correr e sento nos degraus sujos,
segurando minha cabeça com as duas mãos.
O que ele está fazendocomigo? Por que está brincando assim
comigo?
Não fazia sentido me tratar como lixo por semanas, dizer
aquelas coisas e agora, do nada, me beijar! Porra, no que eu estou
pensando. Desde quando um homem hétero confuso viria atrás de
mim?
“Por que sou punido com os sonhos mais sombrios e
pecaminosos? O que é você que desperta em mim esse desejo? Me
diga!”
É quando entendo e tenho a resposta para sua pergunta.
— Eu sei o que sou, Dr. Saulo, mas e você?

O plantão da noite chega e permaneço no andar das


gestantes. Fazendo meu trabalho, me mantendo afastado da
emergência e dele, mas não consigo tirar da cabeça todo aquele
episódio incluindo o beijo, seu sabor, seu cheiro e, de quebra, seu
tormento. Aquilo queima dentro de mim.
Passo pelos quartos das gestantes de risco, verificando se
tudo estava bem, em uma tentativa de esfriar a cabeça. Aquela era
a minha sexta ronda em menos de três horas. Passavam das onze
da noite, a maioria das mães dormiam. Poucas eram as que
permaneciam acordadas lendo um livro, ouvindo o rádio ou
mexendo no celular.
Caminho a passos lentos até a sala de enfermagem quando o
vejo parado à porta, falando com a outra enfermeira plantonista do
andar. Quando se vira, ficamos frente a frente. Nos encaramos sem
falar nada e obrigo o meu corpo a continuar a andar, tentando fingir
indiferença com relação aos eventos daquela tarde. Preciso
demonstrar que sou um cara forte e que, o que aconteceu em sua
sala não havia me afetado.
— Guilherme… precisamos conversar — fala assim que estou
perto o suficiente. É direto e simples. Encaro-o com indiferença.
Sério? Vai dizer o quê agora? Que me beijou por engano?
Abro a boca para contestar, porém ele ergue a mão.
— Não… não aqui.
Ouvir aquilo me enoja.
— Mas o que tiver que me falar pode ser aqui. É sobre
trabalho, não é mesmo, Dr. Saulo? — enfatizo a palavra ‘trabalho’
para que fique ciente que não quero conversar sobre qualquer outra
coisa.
— Guilherme… — Ele começa a dizer, porém para. Leva uma
das mãos ao cabelo, parece estar sendo torturado por sua própria
mente. Seus olhos observam em volta, preocupados. É quando
vemos a enfermeira que estava na sala sair e caminhar para o outro
lado do corredor. Era óbvio seu receio. Tinha medo de ser pego
comigo?
Eu sei o que sou, Dr. Saulo… mas e você?
— Dr. Saulo? — falo e ele me encara atônito, surpreso. — Se
não tem mais nada para me dizer, preciso continuar minha ronda.
Como se não soubesse mais o que dizer, ele concorda com a
cabeça sem me encarar, me dá passagem e continuo seguindo pelo
corredor sem olhar para trás.

Aquele era o último quarto. Dona Maria José, uma mulher


negra de quarenta e nove anos, grávida de seis meses de seu
sétimo filho. Ela estava internada devido à sua hipertensão, então a
sua gravidez tinha grandes riscos de eclampsia[2]. Jesus… sete
filhos… Me pergunto de onde vinha essa coragem mesmo sabendo
do risco que corria.
— São quase meia noite, filho. — Sua voz suave me recebe
com carinho assim que abro a porta de seu quarto. — Não é meio
tarde para vir aqui fazer exames?
Sorrio. Na verdade era, pois a próxima visita para conferência
de sua pressão só ocorreria às seis da manhã, porém, ela não
precisava saber isso. Eu só precisava ocupar minha cabeça.
— É a última verificação da noite, Dona Maria, e depois só
amanhã, às seis da manhã — respondo ainda sorrindo ao me
aproximar de sua cama, em uma tentativa de amenizar sua
desconfiança.
Ela concorda com a cabeça sem tirar os olhos de mim e ergo a
manga de sua camisa, colocando o Esfigmomanômetro[3]. Me
preparava para apertar a pêra quando a ouço perguntar:
— O que aflige seu coração, filho?
Ergo a cabeça para encará-la, sem entender.
— Desculpe… do que está falando?
Ela sorri, aquele típico sorriso de mãe que sabe de tudo, o que
me faz sentir, automaticamente, falta da minha.
— Bem… Acho que tem algo que está te deixando inquieto.
Há uma hora atrás você já não disfarçava bem, mas agora… Parece
bem aéreo, os olhos fitando o nada. Parece que tem muita coisa na
cabeça…
Nossa, está tão na cara assim?
Encarei-a, analisando-a, em seu rosto não há qualquer traço
de condenação ou acusação. Ela se mantinha serena aguardando
minha resposta.
Será que faria mal conversar com alguém?
Ela ergue a mão direita e encosta sua palma em minha
bochecha.
— Pode conversar comigo… se quiser. Sou uma boa ouvinte.
Aquelas palavras de Dona Maria acabam me fazendo lembrar
de minha mãe e, com certeza, era alguém que eu queria conversar,
com quem eu poderia desabafar sem medo. A paciente aguardava
sem me pressionar. Concordo com a cabeça, suspirando.
— Achei que a paciente aqui fosse a senhora… — falei,
sorrindo um pouco sem jeito, mas Dona Maria me observava com
aqueles olhos carinhosos e afáveis.
— Que tal trocarmos o papel somente por agora? De
enfermeiro e paciente para mãe e filho? Mesmo eu não sendo sua
mãe, acho que assim tornaria as coisas um pouco mais
confortáveis. Mas só se você quiser. Não quero me intrometer em
sua vida, mesmo vendo claramente que você precisa conversar com
alguém.
Observo-a, meus olhos esquadrinhando seu rosto à procura de
qualquer traço, de algo que me faria me arrepender, mas percebo
que não há nada ali além de uma mãe pronta a ouvir e a consolar.
Dona Maria transmite uma calma e serenidade que me faz querer
abraçá-la e permanecer assim. Inspiroprofundamente. Ela de fato
estava disposta a me ajudar. Havia tanta doçura em sua voz que me
vi abrindo a boca e me abrindo com ela.
— Ahm… eu… bem… nem sei o que falar… — digo puxando
uma cadeira para sentar ao lado de sua cama.
Ela sorri afagando meu rosto.
— Que tal pelo começo? — pergunta recostando na cama.
Quero rir, pois aquela era realmente uma ótima ideia.
— Bem… ahmm… eu… eu sou gay — digo devagar e a
encaro aguardando sua reação.
Dona Maria abre um sorriso ainda maior.
— Bom… acreditaria se eu disser que eu já havia percebido,
filho, desde o primeiro momento que nos vimos? Mas não acho que
esse seja o problema, já que você não parece ser alguém que não
sabe quem é ou que tenha dúvida disso.
Concordo com a cabeça.
— Eu não tenho dúvida realmente. Só que… O problema é
que um cara me beijou. — Ela me observa com uma interrogação
estampada em seu rosto. Se sou gay, é claro que eu beijaria
homens. Dããã. Então corro para me explicar melhor. — Ah, o caso
é que ele é um cara hétero.
Sua boca forma um “O” de surpresa. Ela me encara, seus
olhos se estreitando levemente.
— Bem… nesse caso… tem certeza de que ele é hétero?
Ouvir aquilo me faz querer rir.
— Ahm… Isso eu não sei e, pelo que notei, acho que ele
também não sabe. — Lembro do tormento do Dr. Saulo ao me
acusar de fazê-lo sentir as coisas que sentia. Solto o estetoscópio e
levo as mãos ao rosto, esfregando-o. — Ele me acusou de
atormentá-lo e de se sentir atraído por mim.
Dona Maria concorda com a cabeça como se algo fizesse
sentido e muda a direção do olhar, ficando perdida em
pensamentos. Momentos depois, ela volta a falar:
— Certo… Mas e você? — Ergo a cabeça, confuso com sua
pergunta e ela ri. — Não me olhe assim… é só me dizer: O que
você sente por ele?
Essa era uma resposta fácil.
— Atração — respondo convicto. — Sempre me senti atraído.
Acredito que desde o primeiro dia que o vi, mas saber que ele
também sente isso e que me culpa por… — levo as duas mãos aos
cabelos e as esfrego neles, gemendo frustrado. — Não sei mais o
que pensar.
A única certeza que tenho é que a minha cabeça está uma
bagunça e a lembrança do beijo ainda é uma chama acesa que me
queima lento por dentro.
— O pior de tudo é que eu gostei do beijo e, meu Deus… sei
que ele também, porque… — Saulo tinha ficado duro. Porra,
dolorosamente duro. Eu o senti se esfregar em mim na hora do beijo
e eu acabei ficando duro também. Só não precisava contar esse
detalhe específico a ela. Inspirei fundo para continuar. — Eu o
afastei e saí de lá porque me senti confuso com as suas acusações.
A merda maior é que ele veio me procurar depois do que aconteceu,
queria conversar e sei lá… não sei o que pensar agora.
Abaixo a cabeça, confuso. Ele é hétero, não é? Peguei ele
transando com aquela mulher. Mas e se fosse Bi e não soubesse
disso? Ele poderia não saber que se sente atraído por um homem
até querer beijar outro cara, não é? Mas, porra, por que esse cara
tinha que ser logo eu?
— Quem sabe… — Dona Maria fala, fazendo um carinho em
minha cabeça, calando minha mente tagarela e atraindo minha
atenção. — E eu estou falando de suposição… ele te escolheu para
ajudá-lo a se descobrir. Se ele o quer e você também, vocês não
precisam manter isso sufocado.
— O quê? Não… impossível ... — Ergo a cabeça, a
encarando. Dona Maria sorri para mim, serena. Ela estava falando
muito sério. — M-mas por que eu?
Vejo-a suspirar e alisar a barriga sem pressa. Seus olhos estão
cheios de amor e compreensão. Um momento depois ela atribuiu o
mesmo olhar para mim balançando a cabeça concordando com
algo. Era como se a resposta estivesse ali e eu não a visse.
— Porque ele pode ter medo do que sente, até mesmo do que
se passa em sua cabeça. E, geralmente, esses medos não surgem
da própria pessoa, filho, mas são criados por aqueles que estão à
sua volta. Eles são implantados e enraizados por tantos anos que a
própria pessoa é capaz de negar a si mesmo.
Aquela afirmação me pega de surpresa. Eu já tinha ouvido
falar de pessoas que demoraram anos para entenderem o que
sentiam, mas jamais havia passado pela minha cabeça que eu
poderia acabar sendo procurado por alguém assim. Foi aí que tudo
começou a fazer sentido para mim. As acusações, a agressividade,
as dúvidas e depois o medo… Então era por isso que, quando me
procurou, não tirava os olhos do corredor? Com medo de ser pego?
Julgado?
— Ter você por perto, sabendo quem é e o que quer, pode ser
a porta que ele precisava para entender o que sente. Ou a brecha
para, finalmente, ser quem de fato é — diz me arrancando dos
pensamentos. Ela se ajeita, recostando-se melhor na cama,
respirando fundo. — Eu diria para se darem essa chance. Você, por
saber o que quer, pode ajudar ele a descobrir quem é. É só uma
sugestão. Não se esqueça que sou apenas uma mulher gestante,
deitada em uma cama e com as pernas inchadas. Não tem porque
fazer o que estou dizendo.
Sorrio com seu comentário e acabo concordando com a
cabeça. Ela é mesmo uma mulher muito sábia. Dona Rita com
certeza aprovaria tudo o que Dona Maria disse.
— Sabe… você me lembra muito do meu filho quando ele me
procurou e contou que também gostava de outros meninos — diz
me encarando com um sorriso maternal. — Hoje ele é muito feliz ao
lado do rapaz por quem se apaixonou. É por isso que estou te
dizendo: se dê essa chance.
Me ergo e a abraço com carinho. Seu aperto tem um calor
maternal e quero ficar ali protegido em seus braços.
— Obrigado, Dona Maria. Vou pensar com carinho em tudo o
que me disse.
Ela afaga minhas costas. Assim que nos separamos, tento
controlar as lágrimas teimosas que seu abraço despertou. Pego
meus instrumentos, confiro sua pressão, coloco as informações no
tablet e saio do quarto me despedindo. Caminho pelo corredor
pensando em tudo o que conversei com aquela mulher incrível e
decido dar uma chance.
Eu iria procurar o Dr. Saulo.
Estou parado em frente à sala do Dr. Saulo quase duas horas
depois de falar com Dona Maria José. Sim, como o belo covarde
que sou, demorei quase duas horas para vir e agora estou reunindo
toda a coragem possível para conversar com ele.
Precisei me informar se o médico estava em cirurgia ou
visitando algum paciente para não dar de cara com uma sala vazia.
Fico parado ali, pensando se foi mesmo uma boa ideia.
Convenhamos… na primeira vez o cara me chamou para me
dar o maior esporro da minha vida, provavelmente me dispensar do
serviço, mas que do nada, confessa aquilo tudo e, no final daquela
loucura intensa, ainda me beija. Depois vão me dizer que isso não é
de “fritar” os miolos? Eu tinha ficado tão confuso e pilhado, mesmo
depois daquela conversa toda com a Dona Maria, que demorar duas
horas para reunir toda a coragem que tinha para estar aqui em
frente à sala do médico era pouco. Eu poderia deixar isso para outro
dia. Então porque, raios, não consigo sair de frente dessa porta?
Só bata e entre. Já fizemos isso antes. Podemos fazer de
novo. Respiro fundo, tentando controlar o nervosismo. Dou duas
batidas e coloco a mão na maçaneta. É agora ou nunca. Abro a
porta em uma fresta.
— Dr. Saulo?
Vejo-o deitado no sofá, o antebraço sob os olhos, como se
tivesse tirando um cochilo. Abro mais a porta.
— Dr. Saulo? — chamo-o mais alto.
Ele se assusta, tirando o braço dos olhos e sentando-se para
me encarar ainda na porta. Assim que percebe que sou eu, relaxa
imediatamente.
— Ah… Guilherme…
— Posso vir em outra hora… — digo, fazendo menção de dar
a volta, mas ele me interrompe.
— Não… está tudo bem. Entre — ele fala, esfregando o rosto.
Fecho a porta atrás de mim. — Que horas são?
— Duas e dez da manhã — respondo ainda parado à porta. Eu
sei exatamente da hora, pois fiquei quase dez minutos parado do
lado de fora de sua sala.
— Ah sim… — Ele se ergue e vai para a bancada do outro
lado da sala. — Já tirou a hora do jantar?
— Estou fazendo isso nesse exato momento — respondo
casualmente como se o que estou fazendo não fosse nada demais.
E na verdade está sendo muito — Aproveitei para vir, porque o
senhor disse que quer conversar.
Dr. Saulo confirma com a cabeça enquanto pega uma garrafa
de água do armário e coloca na pequena cafeteira.
— Não quer se sentar?
— Não, obrigado.
Ele permanece parado de frente à bancada, imóvel e
silencioso. Parece estar relutante, como se estivesse aguardando
algo.
Sério que eu que teria que começar? Suspiro.
— Ahm… M-me desculpe pelo outro dia — passo a mão direita
pelo pescoço tentando aliviar a tensão. — Não deveria tê-lo espiado
com a sua namorada.
Imediatamente quero morder minha língua. Tanta coisa para
comentar e começo logo por isso? Meu Deus, que covarde que sou.
— Ela não é minha namorada — responde seco, se virando
para me encarar.
Seu rosto não demonstra qualquer emoção, mas vejo
manchas escuras abaixo dos olhos. Entretanto sua resposta,
estranhamente, me deixa surpreso e preciso pensar rápido no que
responder.
— Ahn… acho que entendi errado.
Sério que mandei isso? Que idiota.
— Não, você entendeu certo. — Suspira. Ele leva a mão à
altura dos olhos, apertando entre o nariz em uma demonstração de
cansaço. — Mas o problema aqui não é você… sou eu.
Continuo a encará-lo totalmente confuso. Aonde queria chegar
com aquela conversa? Para minha surpresa, Dr. Saulo caminha em
minha direção, parando a poucos centímetros à minha frente, não
ouso me mexer, sequer respirar. Seja o que for que aconteça, dessa
vez não correria. O médico estende a mão, tirando alguns fios de
cabelo de minha testa, tomando o cuidado de não tocar em minha
pele e isso não impede meu corpo de estremecer de expectativa.
Oh céus… a atração. Ela está ali e é quase palpável. Puta que
pariu.
— É que, às vezes, não sei o que eu quero… não sei. E isso
me atormenta.
Ele não sabe o que quer… a teoria de Dona Maria começa a
fazer tanto sentido pra mim que preciso reprimir a imensa vontade
que se ergue de mim em abraçá-lo e protegê-lo.
Entretanto, noto que aquela é a brecha que aguardava. Ou ajo
agora ou não sei se terei uma nova chance. O vejo me encarar,
como se segurasse uma tormenta interna, e engulo a seco. Dou um
passo para frente, ficando o mais perto possível de seu corpo. Se
Dr. Saulo não quiser esse tipo de aproximação, ele pode me repelir
e eu irei embora sem reclamar.
Mas é ali que, pela primeira vez, eu realmente vejo o homem
que Saulo é. Aquelas irises negras me encaravam, repletas de
ansiedade, nervosismo e completamente mergulhadas em medos.
Posso ouvir, sentir sua respiração e o perfume de seu corpo, que
sempre me descontrola. Ergo meus dois braços, segurando sua
cabeça com ambas as mãos e puxando-o para mim. Saulo não
reage… ele só se deixa entregar, como se estivesse cansado de
lutar, de negar a si.
No momento em que nossas bocas se unem, oh Deus…
Minha mente dá incontáveis voltas. Seu bigode, em uma mistura
deliciosa entre suave e afiado, faz cócegas em meu rosto, a boca
tem sabor de café e seu corpo cheira a algum perfume masculino
que só me faz querer escalá-lo igual a um bicho preguiça, me
mantendo ali, agarrado, grudado a ele.
O médico me abraça pela cintura, puxando-me para mais
perto, extinguindo qualquer mínimo espaço que ainda houvesse,
colando nossos corpos, me devorando feito um leão faminto. Abro a
boca e o permito deslizar sua língua para dentro, exploratória e
desejosa. Meu corpo roça no dele, que é tão grande e tão másculo.
Minhas mãos apertam seus ombros largos e fortes. Eu sinto o
volume dentro de sua calça social cinza crescer, endurecer e, como
resposta a tudo aquilo, o mesmo acontece comigo.
Porra. Beija-lo é bom. Deliciosamente bom. Ouço-o rosnar sob
minha boca, se esfregando quase enlouquecido em mim. Enquanto
nos beijamos, Saulo me guia em direção ao sofá atrás de mim,
entretanto, antes que me faça cair, giro nossos corpos, o
empurrando e o assisto cair sentado, surpreso no estofado. O
médico não esperava esse tipo de reação e, sinceramente, eu não
sei mais o que estou fazendo. Meu instinto toma a frente. Ele abre a
boca, confuso, enquanto me abaixo, ficando entre suas pernas,
acariciando seu pau duro sendo apertado dentro daquela roupa
social.
— Posso? — pergunto, lutando contra a ansiedade para
arrancar suas roupas.
Saulo me encara intensamente até que vejo seus olhos
desviaram de mim para outra direção.
— A porta… — fala e eu a encaro.
Sorrindo me ergo, indo até ela e viro a chave, trancando-a.
Depois vou até o banheiro e pego várias toalhas de papel. Iria
precisar daquilo. Em seguida, caminho até o interruptor e desligo a
luz, acreditando que ele vá querer um pouco de privacidade. Quem
sabe imaginar que eu seja uma mulher e se aliviar. Imediatamente
apago essa merda de pensamento que me incomoda.
— Não! — Ouço Saulo quase gritar, me surpreendendo. — E-
eu quero ver…
Ele quer ver, constatar que é um homem que o está
chupando? Abro um pequeno sorriso na escuridão. Reativo a luz e
volto para ele, me agachando de novo em frente a ele e após
colocar as toalhas em cima do sofá, são as minhas mãos nervosas
que trabalham em seu corpo. Afasto bem suas pernas para me
encaixar entre elas e sem pressa, abro seu cinto, desabotoando a
calça e desço lentamente seu zíper. Ergo a cabeça e o vejo me
acompanhar com extrema atenção, ora chocado, ora ansioso.
Se tiver que me interromper tem que ser agora, mas Saulo
nada faz.
Quando envolvo seu pau com a mão e retiro-o da cueca,
suspiro ao ver o tamanho tão de perto. De fato, faz jus ao seu dono.
É grosso e longo, com várias veias em alto relevo por sua extensão.
Acaricio de forma lenta a cabeça rosada com o polegar e ouço-o
gemer um som quase estrangulado.
— Eu gosto do seu cheiro. — Confidencio e eu realmente
gosto.
Porra, e como gosto. Passo minha língua pela sua glande, ele
volta a gemer sufocado e assim que seu sabor me atinge com força,
me obrigo a abocanhar a cabeça para saboreá-lo melhor. Desço
devagar a boca, engolindo gradativamente seu pau e sinto suas
pernas estremecerem.
— Ah… meu Deus… — Saulo sussurra entre seus gemidos
deliciosos. — Isso é tão bom… ah…
Ergo os olhos e percebo que suas írises ficaram totalmente
negras, me observando com extrema luxúria. Paro de encará-lo,
focado em chupar aquele pau enorme e delicioso, ciente de que ele
não desviaria seu olhar de mim. Eu tinha plena ciência de que Saulo
já havia sido chupado por várias mulheres, então estou decidido a
transformar aquela experiência em algo excitante e, se possível,
única.
Seu pênis tinha uma grossura invejável. Me perguntava se
ficaria sufocado se ele socasse em minha boca, então, para tirar a
prova, o engulo até chegar à base e quando ele dá um gemido
rouco, subo a boca para lamber novamente a coroa e volto a engoli-
lo mais uma vez para que a cabeça bata em minha garganta.
Satisfeito em saber até onde conseguia engoli-lo, começo a lamber
e chupar seu pau. Eu sugo seu pré-gozo, o sabor fazendo minha
cabeça girar e voltar a chupá-lo ainda com mais vigor, me ouço
gemer me deliciando naquele pau. Quero o sentir cada vez mais,
preciso saber o real sabor de sua porra.
— Sim… continua… — geme, me incentivando ao fazer sons
baixos e roucos. Ergo os olhos e o vejo entregue totalmente ao
prazer. Não há mais resquícios da confusão ou da briga interna que
sua mente enfrentava quando comecei. — Porra, mais…
Saber que eu o deixava com tesão também me enlouquecia.
Meu pau estava dolorosamente duro entre minhas pernas e eu
lutava com todas as minhas forças para não meter a mão nele e me
masturbar enquanto chupava o médico.
— Isso… ah, caralho… — Saulo começa a flexionar os quadris
pra cima, querendo ficar sem pressa na minha boca, quase a ponto
de se perder.
Satisfeito com essa constatação, continuo a sugá-lo ainda
mais, decidido a vê-lo perder esse maldito controle. Sinto suas mãos
largas segurarem minha cabeça pelas laterais e, em seguida ele
começa a meter em minha boca, acelerando os movimentos
gradativamente até a cabeça de seu pau chegar de novo à minha
garganta, até o ritmo chegar a movimentos bruscos feito um animal
no cio.
Não me movo mais, é Saulo que está totalmente perdido
socando seu pau em minha boca então levo uma das mãos ao seu
joelho para ter apoio e não perder o equilíbrio e a outra ao meu
próprio pau, apertando-o. Eu gosto… Cacete, na verdade, eu adoro
aquilo.
— Porra… porra… Caralho! — murmura estrangulando um
urro de prazer. Ele agarrou meu cabelo, estocando fundo em minha
boca, até seu corpo estremecer e o primeiro jato quente bater em
minha língua.
Afundo minha boca em seu pau enquanto ele goza, gemendo
rouco, em minha garganta. Engulo tudo, faminto, pois seu sabor é
exatamente o que esperava: viciante. Quando Saulo relaxa,
satisfeito, o solto, sentando sob minhas pernas e limpando o canto
da boca, sujo com seu gozo, com a manga do antebraço. Tiro a mão
de minhas calças e constato que também havia gozado.
Sou mesmo um puto pervertido, penso sorrindo. Pego as
toalhas de papel que havia largado ao lado do sofá e limpo as mãos,
mas assim que ergo a cabeça pronto para limpá-lo também, o vejo
me encarar e, para meu espanto, parece chocado com o que
fizemos. Ou será que está horrorizado?
Puta merda… ele vai pirar.
A respiração de Saulo está desregulada, vejo seu peito subir e
descer como se sugasse o ar.
É… Ele definitivamente vai.
— Dr. Saulo…? — O chamo, segurando uma de suas pernas.
— O que fizemos? — diz, confuso, preso em sua névoa de
pensamentos, provavelmente cheio de arrependimentos. — Meu
Deus… o que…
Não fizemosnada demais. Esse só foio oral mais gostoso que
já havia feito em minha vida… penso, mas estou mais preocupado
com o homem sentado diante de mim, que encara o vazio como se
não acreditasse em algo. Ergo-me, me apoiando em seus joelhos.
— Dr. Saulo? — chamo novamente e ele pisca, os olhos
entrando em foco, me encarando. — Está tudo bem?
Ele concorda com a cabeça e, suspirando, leva as mãos ao
rosto, escondendo-o, como se estivesse com vergonha de me
encarar. Permaneço diante dele, liberando parte do peso do meu
corpo em cima dele, impedindo-o de se levantar, correr ou até
mesmo me socar. Porque ele está no limite e pode pirar. Eu mesmo
já havia presenciado um cara surtar uma vez e, no final, terminei
com a porra de um olho roxo.
— Gostou do que aconteceu? — continuo perguntando,
colocando um dos joelhos na ponta do sofá entre suas pernas, a
mão esquerda sobre seu peito e a mão direita no encosto do sofá.
Precisava mantê-lo sentado e, se possível, imóvel.
Como se fosse possível segurar aquela montanha de
músculos à minha frente.
Vejo-o assentir novamente com a cabeça, aliviando um pouco
a pressão do medo que havia se formado em meu peito.
— E o que sentiu? — preciso fazê-lo falar, ele precisa entender
o que aconteceu. Ergo a mão esquerda e tiro uma de suas mãos do
rosto. Ele abaixa a outra, automaticamente. Nos encaramos, os
olhos intensos e sérios. Em seu rosto há uma coloração
avermelhada que me enche de esperança. — O que sentiu, Saulo?
Responda.
Ele abre a boca, sua língua passando perigosamente sob o
lábio inferior.
— Tudo.
Concordo com a cabeça, encarando-o sério.
— E o que você quer agora, Saulo Marques?
Suas írises voltam a escurecer, brilhando o tom da noite que
me faz estremecer mais uma vez de desejo. Me devolve um olhar
cheio de luxúria e, em um sussurro, me responde:
— Mais…
Aceitação? Penso e um sorriso nasce lentamente do canto de
minha boca. Ele não surtou, estava somente assimilando o que
havia acontecido. E essa sua resposta era a prova de que essa não
será nossa última vez.
O final do plantão de 24 horas foi tranquilo, graças ao bom Deus. E
para minha alegria, e alívio, Saulo não havia pirado. Após confessar
que queria mais, o médico me puxou para o beijo mais ardente que
eu já havia recebido na minha medíocre vida. Não conversamos
muito, ficamos mais numa troca de beijos e carícias e quando
chegou a hora de voltar ao trabalho, Dr. Saulo me pediu meu
número de celular. Agora estou sentado no banco do vestiário
masculino, pronto para sair após esse plantão que eu diria ter sido
revelador, sorrindo feito um idiota para o nada com o celular na mão
contendo uma mensagem dele me convidando para ir tomar café da
manhã.
Quem diria que o cara que te odiava sem razão e te perseguia
no serviço, na verdade era alguém que tinha interesse em você e
agora está te convidando para sair? Acho que nem nos livros ou nos
filmes de romances algo tão louco assim aconteceria. Ou posso
estar muito errado.
Poderíamos estar indo rápido demais? Ao meu ver acredito
que não. Até porque só vamos tomar um café, conversar, quem
sabe nos conhecer melhor. O problema é: eu quero que estejamos
indo rápido? Porra… sem dúvida alguma. O melhor de tudo, além
daquele oral, vamos deixar isso bem claro, foi ver que o médico não
tinha surtado e isso me preenche de esperança. E, agora, para
completar todo meu conto de fadas com dose extra de romantismo,
o cara me chamou para sair. Ninguém pode me culpar por não
conseguir parar de sorrir.
— Alguém tire esse sorriso idiota do rosto desse bobão! —
Alberto diz, me dando um tapa na nuca ao sentar do meu lado e me
trazendo a realidade.
O tapa dói e isso me irrita um pouco. Odeio quando ele tem
essas atitudes de hetero top babaca.
— Ei! Me deixa. Estou feliz porque estou indo para casa, para
um longo descanso, depois de um plantão louco de 24 horas
seguidas e sem pausa. — Respondo esfregando a nuca.
— Descanso… sei… — Alberto me encara curioso. — Tá
pronto pra ir então?
Merda. Alberto se ergue, espreguiçando, enquanto congelo no
lugar, enquanto penso em uma desculpa esfarrapada para não ir
com ele. Essa era a desvantagem de ir e voltar de carona com a
pessoa com quem mora.
— Estou afim de uma bebida. Quer ir? — ele pergunta
estendendo a mão. A encaro sorrindo sem graça.
— Vou deixar a bebida para outro dia. Eu estou mesmo
cansado. — Meu amigo murcha na hora, recolhendo a mão
recusada, me obrigando a tentar desviar seu caminho do meu. —
Maaasss… você pode ir sem mim. Eu quero só descansar.
Alberto estreita os olhos, me encarando desconfiado. Depois
de um momento, dá de ombros, dizendo:
— Ah... tudo bem... eu te deixo em casa antes.
Ah, porra. Sério? Eu querendo me livrar do cara e ele gruda
em mim feito chiclete?
— Não precisa, cara. Vai curtir.
Ele ainda está me encarando, agora fazendo uma cara feia.
— E como você vai pra casa?
— Transporte público — rebato, rápido.
A fisionomia de Alberto muda e ele começa a gargalhar muito
alto e eu sei bem o motivo. Ele sabe que sou péssimo para andar de
transporte público, pois nos dias que nossos plantões não batiam,
eu vivia me perdendo quando pegava metrô ou VLT[4]s. Dou meu
melhor sorriso cínico. Ele acaba concordando com a cabeça
caminhando até a porta com os dois capacetes na mão.
— Tá beleza. Vou te dar um voto de confiança. Te vejo mais
tarde! E vê se não se perde de novo! — fala saindo do vestiário.
Suspiro muito aliviado por ele ter caído naquela desculpa
esfarrapada e mal explicada. Eu sabia que era um pamonha a ponto
de me perder usando transporte público que não era nada tão
complicado, mas tudo isso era falta de prática. Entretanto, não iria
ficar me explicando para ele nem fodendo. Me levanto quando meu
celular vibra em minha mão.

Volto a sorrir feito um idiota após apertar o botão de enviar.


Para onde tudo isso iria?
Eu não faço a menor ideia.

Desço pelas escadas de emergência até o subsolo. O hospital


tem dois tipos de estacionamento: um externo, no térreo, para os
familiares dos pacientes internados e o interno, no subsolo, para os
funcionários do hospital. Abro a porta, verificando se está
movimentado e ando pelas colunas até o corredor C. Assim que
dobro a quadra, vejo um enorme BMW de vidros escuros parado em
um canto. Sinto meu peito se apertar, o coração acelerando com a
expectativa. O lugar é escuro, reservado e bem silencioso. Ajusto a
mochila nas costas e ando a passos largos até a porta do carona,
que se abre com um clique assim que me aproximo.
Coloco a mão na maçaneta e entro no espaçoso carro,
batendo a porta em seguida. Sou recebido pelo frescor do ar
condicionado e percebo que o veículo tem cheiro de limpeza. Saulo
está encostado no banco, olhando para a frente, silencioso e imóvel
feito uma pedra. Somente o polegar da mão esquerda bate
lentamente no volante.
Será que está arrependido por ter me chamado?
— Por um momento achei que tinha desistido. — Ele
finalmente fala e quase suspiro de alívio.
— Desculpe pela demora — respondo, encostando a cabeça
no banco observando aquela figura séria. — Não queria que me
vissem sair pela porta de emergência.
Saulo concorda com a cabeça e suspira, ligando o carro que
ronca alto.
— Coloque o cinto, por favor.
Imediatamente me endireito e puxo o cinto, afivelando-o ao
meu corpo. O carro começa a se mover, saindo da vaga e seguindo
para a saída. Paramos no guichê. Saulo buzina rápido duas vezes e
o vigia sai da guarita, acenando. A cancela se abre e o carro sobe
vagaroso a rampa até o portão de entrada, virando em direção à rua
e ganhando velocidade conforme avança na pista. Me viro,
assistindo o veículo deixar o hospital para trás e me endireito
olhando para frente. Suspiro.
É… é agora que vamos ver até onde isso vai.
Uns vinte minutos depois, numa viagem muito silenciosa,
passamos pela orla. Dr. Saulo mora na Zona Sul? Eu não fazia
ideia. Aquela é a primeira vez que vejo a praia de Copacabana ao
vivo, de verdade. Sinto o carro diminuir a velocidade até parar.
Estou sorrindo vidrado, vendo a areia branquíssima e parcialmente
cheia de banhistas, o céu azul e o sol fresco da manhã. A calçada
de inconfundíveis pedras portuguesas com muitas pessoas
correndo, caminhando ou andando de bicicleta, mesmo havendo
uma ciclovia ali ao lado. Os quiosques abrindo para servir o café da
manhã aos turistas.
Só tinha três semanas na capital, então não havia tido uma
oportunidade sequer para visitar os pontos turísticos da cidade.
— Gosta da visão? — Saulo pergunta atraindo minha atenção.
É quando percebo que estava quase em seu colo admirando aquela
paisagem.
— Ah nossa, desculpe… — digo voltando a me endireitar no
banco. — Ela é tão bonita… — falo observando o mar azul que
brilhava com a luz do sol forte.
— Você acha? — Dr. Saulo pergunta e volto a encará-lo. —
Achei que fosse daqui do Rio.
— Eu? Ah bem... Sou do estado do Rio, mas sou da região
serrana. Campos dos Albuquerque. Já ouviu falar?
Dr. Saulo parece pensativo, sua cabeça inclinada levemente
para a direita, porém seus olhos não desviavam da pista. Era como
se processasse a informação.
— Não… Acho que não — responde passando a marcha e
acelerando o carro. — É perto de onde?
— Fica entre Guapimirim e Cachoeiras de Macacu. Na
verdade, o território era dentro de Cachoeiras, mas virou cidade
independente nos anos de 1982.
Campos dos Albuquerque foi, na verdade, uma enorme
fazenda de plantação de cana de açúcar que pertencia a uma
família portuguesa, na qual o patriarca era conhecido como Barão
de Albuquerque. A Fazenda era um exemplar típico da arquitetura
colonial brasileira, tendo, inclusive, uma capela. A cidade tem
histórias lindas de amor, superação e outras terríveis com finais
trágicos, todas envolvendo a fundadora família Albuquerque. Toda a
cidade cresceu em torno dessa gigantesca fazenda e alguns dos
descendentes dessa família ainda moram por lá.
— Hmm… — resmunga, acredito que concordando.
Volto a encarar a praia tentando imaginar como seria o cheiro
de maresia. O carro passa pela orla até virar em uma rua estreita
onde passamos em frente a um antigo cinema com a Placa ROXY
em vermelho, depois seguindo a pista até uma rua curva cercada
por altas rochas. Assim que passamos por ela, vejo um enorme lago
rodeado por um lindo parque verde.
— Onde estamos? — pergunto curioso. Eu tinha a impressão
de conhecer aquele lugar.
— Na Lagoa.
Quase quebro o pescoço de tão rápido que viro para encarar
Dr. Saulo. O que estávamos fazendona Lagoa? Até que lembro de
algo importante.
— Não é aqui que tem aquela árvore de natal gigantesca que
acendem todos os anos? — pergunto, olhando feito um idiota para
fora.
Vejo Saulo concordar com a cabeça, me olhando de esguelha
com uma das sobrancelhas levantadas. Tento não surtar com a
confirmação. Eu via com meus próprios olhos lugares que só havia
conhecido pela televisão. Sonhava em ver aquela árvore no Natal
totalmente acesa e linda no meio da lagoa Rodrigo de Freitas, assim
como passar a virada de ano na praia de Copacabana. Um sonho
de consumo que não sabia se conseguiria realizar. Não com a
profissão e os horários irregulares que tinha.
O carro diminui a velocidade, seguindo pela faixa da direita e
vira até parar de frente à entrada de um estacionamento. Me abaixo
para encarar o prédio a frente e PUTA MERDA! O lugar é lindo, todo
espelhado e com cerca de dez ou onze andares. Típico lugar caro
que eu jamais imaginei em sequer colocar os pés.
— Tem doze andares, contando com a cobertura. — Dr. Saulo
fala e quando, boquiaberto, me viro para encará-lo, vejo-o reprimir
um sorriso. Sou quase arrebatado com aquele vislumbre.
Ah… Como eu quero vê-lo sorrir.
Dr. Saulo mora na Lagoa? Pensando bem, o cara tem uma
BMW chique e bem cara, então não duvido que tenha dinheiro.
Porra… muito dinheiro. É quando percebo que ele me trouxe para
sua casa e não para tomarmos o café que combinamos em um
restaurante.
Caralho.
O portão automático começa a se abrir e ele acelera
vagarosamente, descendo a rampa para o estacionamento
subterrâneo. Guia até sua vaga e estaciona. Desliga o carro e abre
as portas.
— Venha… Vou te mostrar como é por dentro — disse,
pegando do banco de trás uma mochila preta e uma pasta, e
descendo em seguida.
Desço logo atrás dele, levando minha mochila comigo, e fecho
a porta. Ele aperta o botão do alarme, que foi respondido pelo carro
com dois bips, e o sigo até o elevador. Minutos depois, ouvimos o
sinal da chegada e entramos. Dr. Saulo aperta o décimo segundo
andar. Quase tenho um acesso ao perceber o botão que ele
apertou.
Puta merda. Ele mora na cobertura!
Permanecemos em silêncio, aguardando a chegada no andar.
Os segundos parecem horas com ele ali dentro. Olho-o de soslaio e
o vejo suspirar enquanto encara a porta ainda fechada. Quando
finalmente o sinal do andar dá o alerta, a porta abre de frente para
um corredor. Saímos e Dr. Saulo vira para a direita, seguindo até
uma larga porta de madeira no final do corredor curto. Me viro para
trás, curioso, e há outra porta muito parecida com a dele do outro
lado.
Ando a passos rápidos para acompanhá-lo e ele tira uma
chave do bolso, encaixando-a na porta. Ao abri-la, Dr. Saulo entra e
me aguarda. Logo que entro, a primeira coisa que vejo é a ampla
sala muito bem iluminada pela luz natural advinda de uma parede
de vidro, que reflete a Lagoa Rodrigo de Freitas. Contenho a
vontade de correr até aquele janelão e admirar a incrível paisagem à
minha frente.
— Fique à vontade — fala, fechando a porta atrás de mim.
Permaneço parado na porta e arranco meus tênis deixando-os
ao lado da porta. Não quero sujar aquela casa que parece estar
impecavelmente limpa. Caminho só de meias pelo cômodo com um
enorme sofá branco, alguns quadros nas paredes e uma gigantesca
tela de cinema. Há uma mesinha de canto feita de vidro ao lado do
sofá e outra de centro, no meio da sala, sobre um tapete cinza
chiquérrimo que só me faz afundar meus pobres dedinhos nele. Tão
macio e felpudo.
Eu rolaria nesse tapete, meu Deus…
Ouço um bipe e me viro, encarando os fundos da sala do outro
lado, e percebo que há uma cozinha tipo americana toda em
mármore branco e bege. Uma bancada com quatro cadeiras divide
os dois cômodos. É quando vejo que Dr. Saulo está do outro lado
daquela bancada fazendo alguma coisa.
— Venha… — ele me chama assim que termina, secando as
mãos em um pano de prato. — Vou te mostrar o restante do
apartamento.
Ahhh pode parar! Ele chama aquilo de apartamento?
Apartamento é o que eu divido com Alberto na Tijuca. Aquele lugar
para mim é uma mansão! Coisa de gente chique e rica. Deixo minha
mochila em cima do sofá e o sigo por um corredor.
— O banheiro fica aqui — e abre uma porta à esquerda.
O banheiro é claro, na cor verde água e muito amplo, com
direito a uma banheira de hidromassagem. O cheiro de limpeza é
tão bom que inspiro profundamente. Estou de boca aberta quando
noto que meu anfitrião continua andando.
— Esse é meu escritório. — Ele abre uma porta à esquerda e
uau!
O lugar é enorme. Há uma mesa cheia de papéis no canto de
frente para uma estante lotada de livros. São tantos livros que não
consigo contar. Tem um janelão, não tão grande quanto a da sala e,
de frente a ela, há dois sofás de um lugar com uma mesinha no
centro. Saulo se afasta da porta e continua o tour.
— Aqui é a sala de treino.
— Sala de treino? — pergunto quando ele abre a porta.
Dou de cara com uma mini academia particular. Porra, era ali
que ele treinava e mantinha aqueles braços e pernas torneadas?
Que Deus me ajude. Entro, olhando os instrumentos de academia.
Não conheço o nome deles, porém tenho curiosidade. Já havia ido
com Alberto a uma praça no bairro Sáenz Peña, onde moramos,
para utilizar os aparelhos que estavam disponíveis lá, mas uma sala
de musculação de verdade? Aquilo me deixa boquiaberto. Ouvimos
um sinal vindo do corredor que saímos, o mesmo que havia
chamado minha atenção quando estava na sala.
— Ah, o café está pronto. — Saulo avisa, só que eu não
consigo parar de mexer nos aparelhos. Quero muito usá-los. —
Aproveite e experimente, eu já te chamo para comer alguma coisa.
Olho feliz para ele, abrindo um enorme sorriso no rosto, feito
uma criança autorizada a brincar no parquinho. O acompanho, com
os olhos, sair da sala e, assim que fica fora de vista, corro para a
barra. Eu adorava usá-la para exercitar os braços e definir costas e
bíceps na praça. Tiro minha camisa pela cabeça, largando-a no
chão e salto para alcançar a barra, porém não consigo pegá-la.
Ora. Como assim?
Aquela era mais alta que a da praça. Olho as laterais e
encontro um apoio para o pé. Usando-o, pulo e consigo segurar a
barra. Me ajusto em uma posição mais confortável e começo a
puxar meu corpo em uma série sequenciada. Eu gosto da sensação.
Solto a barra, os músculos dos braços queimando devido ao
esforço. Ofegante, flexiono as costas, girando os ombros e tentando
relaxar a musculatura. Passo a mão no rosto tirando o suor
acumulado na testa e, quando me viro, me deparo com Dr. Saulo
parado, me observando, sedento.
Na verdade, parece que ele me come com os olhos.
— Venha aqui, Guilherme — ordena.
— Ahm… Dr. Saulo?
— Só Saulo. — Me corrige. — Não estamos no trabalho.
Agora, venha aqui.
Caminho a passos lentos em sua direção e, quando me
aproximo, ele me envolve com seus braços pela cintura. Sua cabeça
enterrada em meu pescoço, me inspirando profundamente.
Porra… Não tenho sanidade mental para aquilo.
— Seu cheiro é muito bom — confidencia e não posso deixar
de sorrir.
Coloco meus braços a sua volta, puxando mais para mim o
seu corpo quente, grande e musculoso. Eu gosto daquela sensação
de estar com ele. Aquilo me enche de vontade de querer ajudá-lo.
Mas no que exatamente ele precisa de ajuda?
— Fique aqui — sussurra, calando minha mente. Aperto-o
mais.
Ele se ergue o suficiente para colar sua boca na minha, sua
mão agarrando meus cabelos enquanto ele se curva para
aprofundar o beijo. Eu adoro essa sensação. Porra, é o paraíso.
Dessa vez não consigo controlar minhas mãos, puxo sua camisa
para fora das calças e as deixo deslizar pelas suas costas, tinha a
necessidade desesperada de senti-lo ainda mais perto. Porém, cedo
demais, sua boca desgruda da minha e nos entreolhamos
ofegantes.
Saulo se afasta o suficiente para ver o que fiz com suas
roupas e eu puxo minhas mãos para perto de mim. Porra o que eu
fiz, caralho? Ele fixa o olhar em mim, sério, mas, em seguida,
segura minha mão pelo pulso.
— Venha… — diz, me puxando pelo corredor.
— O que… para onde...?
Todavia, Saulo não me ouve e me leva para a última porta do
corredor, abrindo-a com força demais, revelando um quarto na
penumbra, maior que a sala do apê de Alberto, com uma cama de
casal king size muito bem arrumada. Aquele era o único cômodo
escuro da casa?
Não tenho tempo para tentar observar bem aquele quarto e
sou puxado, depois jogado de costas naquela maravilhosa cama
macia.
Saulo fecha a porta com um baque e o quarto não fica escuro.
Algumas pequenas e fracas luzes se acendem automaticamente e
ele cai sobre mim, me beijando faminto, suas mãos deslizando por
meu peito e cintura, apertando-me no quadril.
Caralho, perdi a conta de quantas vezes sonhei com aquilo.
— Preciso de você — sussurra, com sua boca ainda colada à
minha. — Quero sentir você.
Aquele pedido, aquela urgência, disparam uma descarga
elétrica em meus sentidos e meu pau responde por mim, ficando
duro na hora. Suas mãos hábeis abrem minhas calças, arrancando-
as de meu corpo. Fico só de cueca boxer em sua cama e o
acompanho terminar de abrir cada botão de sua camisa, tira-la, abrir
suas calças e ficar também somente de cueca.
Puta que pariu. O corpo de Saulo é perfeito. Nada fora do
lugar. Ele volta a cair sobre mim, beijando-me como se seu fôlego
dependesse disso. Nossas ereções em uma fricção deliciosa e
torturante. Minhas mãos e as suas estavam em toda parte de
nossos corpos, até que as suas agarram a barra de minha cueca e
ele a puxa, meu pau saltando livre, ereto e melado.
Merda. Aquilo me dá um tesão avassalador. Saulo o encara e
não consigo entender a expressão que faz. Eu me apoio sobre os
cotovelos para observá-lo. O que ele pretende fazer? Minha mente
gritava alertas. No fundo, bem no meu íntimo, sei que aquilo era um
erro, mas eu havia parado de processar qualquer coisa quando sua
mão segurou minha ereção. No segundo seguinte perco todo
resquício de sanidade mental assim que sua língua desliza pela
minha glande. Gemo, um som torturante e nada decente, me
deixando cair de costas na cama, minha cabeça jogada para trás
em êxtase. Cada parte do meu corpo queima com aquilo.
Por favor, que isso não seja um sonho.
Volto a encará-lo. Ele está chupando meu pau, meio sem jeito,
mas parece gostar do que faz. Sua boca hora beija, hora lambe,
hora desce e sobe pela extensão do meu membro. É real, é muito
real. Solto um gemido alto, a pressão que daqueles lábios fazem em
meu pau me enlouquece. Aquilo era bom pra caralho, tão único,
perfeito e eu queria guardar aquela cena em meu cérebro pra
sempre, sem qualquer chance de esquecer o quão incrível estava
sendo tudo. Porra, não consigo mais pensar em nada, só em querer
foder aquela boca de lábios grossos e maravilhosos.
Minhas mãos agarram os lençóis e remexo meu quadril no
colchão.
— Oh céus… — Quase grito quando sinto a cabeça do meu
pau bater na entrada de sua garganta tantas vezes que não consigo
mais controlar meu desejo. Aquilo sim era puro êxtase, alucinante e
enlouquecedor.
Ergo a cabeça o suficiente para encontrá-lo me observando,
seu olhar queimando em luxúria enquanto eu meto fundo em sua
boca.
Caralho… Esse homem vai me enlouquecer.
— Ah… cacete… vou gozar… — Ofego, deixando a descarga
elétrica sacudir meu corpo e liberando um jato quente de meu pau.
Sinto a boca de Saulo abandoná-lo enquanto termino de esvaziar
minhas bolas em minha própria barriga.
Meu corpo está rendido ao prazer recebido, numa mistura de
êxtase com satisfação. Ele me devolveu o boquete que lhe dei de
madrugada no hospital. Puta que pariu. Ergo a cabeça, cansado,
para encontrar Saulo retirando a própria cueca boxer e alisar seu
grosso pau ansioso, sem pressa.
— Oh céus… — repito, atordoado, suspirando trêmulo. Eu não
iria gozar só uma vez.
Saulo sobe na cama erguendo minha perna direita. Sua língua
passeando por minha coxa e virilha, despertando a velha descarga
de luxúria que eu achei ter se extinguido quando gozei. Porra, eu
não estou esgotado, mas quase de imediato meu pau se anima
lentamente com as carícias. Vejo o médico esticar o braço para a
cômoda ao lado e retirar de lá uma camisinha e…
Um lubrificante?
Quero rir. Mas é de nervoso ou de alegria? Quais eram as
chances de um homem como Saulo Marques ter um lubrificante em
seu quarto? Provavelmente para masturbação. Mas Saulo era o tipo
de homem que ficava só batendo punheta? Não era o tipo de
homem que conseguiria companhia a hora que quisesse? Então
porque tinha um maldito KY disponível na gaveta de seu quarto? Ou
será que usava para outra coisa? Porra… preciso não pensar nisso,
ao menos não agora.
Saulo coloca a camisinha em seu pau e esfrega o lubrificante
em um preparo torturante para me foder e eu não consigo desviar
os olhos ansiosos, pois eu iria permitir que aquilo acontecesse. Eu
realmente quero senti-lo dentro de mim. O médico se acomoda
entre minhas pernas e eu seguro meus joelhos, encarando-o em um
convite silencioso para me tocar mais intimamente. Senti seu dedo
empapado de gel deslizar vagaroso em mim, meus músculos
retesam ao seu toque e solto um novo gemido trêmulo.
— Você gosta disso. — afirma, encarando-me com
curiosidade.
Só consigo concordar com a cabeça. Porra, eu amo aquilo,
amo ser passivo, sentir e ser usado para o prazer. O médico paira
sobre mim, sua língua deslizando por meu mamilo e ofego alto.
Sinto seu pau duro roçar em minha coxa quando um segundo dedo
me penetra, deixando o meu membro ereto 100% novamente,
pronto para participar daquela brincadeira.
Aquilo é incrível. Nunca imaginei, em toda minha vida, ser tão
desejado por alguém e quero que essa experiência seja perfeita
também para Saulo. Mesmo ciente de que não sei o que acontecerá
depois ou se vou existir para ele no dia seguinte. Provavelmente
tudo poderia voltar ao normal, ao que era antes. Por medo disso, só
quero me dar cada vez mais no hoje. Viver e desejar o agora.
— Por favor… — choramingo enlouquecido. Só os dedos não
estavam sendo mais o suficiente. — Agora.
Saulo entende minha urgência e se posiciona entre minhas
pernas, encaixando a cabeça de seu pau bem na entrada do meu
cu. A pressão sob mim é gigantesca quando o sinto forçar a
passagem. Porra. Ele está mesmo entrando em mim, deslizando e
conquistando centímetro a centímetro sem pressa.
Sinto sua mão agarrar o meu pau e alisá-lo enquanto força
novamente a entrada. Sou tomado por um prazer indescritível ao
senti-lo cada vez mais fundo e fundo. Há um zumbido leve em meus
ouvidos devido ao aumento da minha frequência cardíaca.
— Aaah… — ouço-o gemer e isso me desperta, arrancando-
me do meu próprio mundinho.
Ergo-me sobre meus cotovelos e o puxo para mim. Seu peso
flexiona os meus joelhos para meu abdômen. Agarro seu corpo,
envolvendo-o com os braços e agarrando-o pela cintura com as
pernas. Ele me encara, engolindo a seco. Passo a língua sob seus
lábios, provocando-o e isso o surpreendeu.
— O-o que é você?
— O mesmo que você — respondo. — Humano.
Saulo solta uma risada curta e o som da sua voz me faz tremer
de desejo.
— Você é um humano que me deixa louco, sabia? —
murmura.
Abro um largo sorriso e beijo-o faminto no mesmo momento
que ele começa a se mexer dentro de mim. Estamos gemendo
juntos, com barulhos estranhos devido nossas bocas ainda estarem
coladas. É muito bom ouvir aquele som que me transforma no que
Saulo precisa, seja lá o que isso for.
Aos poucos, o médico vai deixando de ser gentil. Suas
estocadas se tornam mais rápidas, até se transformarem em
selvagens e desesperadas. Ele agora me fode sem dó, totalmente
descontrolado, perdido dentro de seu próprio prazer. Agarro meu
pau, prensado entre nossos corpos, com a mão direita,
masturbando-o forte, minhas pernas presas a Saulo.
Queria me entregar, me render. Cacete, ele é demais, incrível,
gostoso e…
— Porra… vou gozar... vou gozar…
Abro meus olhos, tanto pela urgência de seu chamado quanto
para assisti-lo gozar. Aquilo explode em mim um tesão ainda maior
e me esvazio entre nós, a porra nos sujando enquanto o homem
acima de mim me preenche com seu próprio gozo.
Caio na cama exausto, suado, satisfeito e sinto o peso de
Saulo sobre mim, também esgotado. Abraço-o, mantendo-o assim,
perto, quente e ele não se mexe. Quero ficar dessa forma,
aproveitando cada momento perfeito, sentindo seu coração
retumbar enlouquecido no peito na mesma velocidade que o meu.
Fecho meus olhos, me permitindo viajar naquela pequena e
vaga felicidade
Acordo sozinho na imensa cama. O lençol sobre mim, cobrindo-me
apenas da cintura para baixo. Ergo a cabeça, olhando à minha volta
e o quarto permanece em uma penumbra, iluminado somente pelas
mesmas luzes fracas acima da cama. De soslaio, vejo uma
movimentação, um ponto vermelho no canto do quarto. Me viro,
apurando a visão, e lá estava ele, sentado em uma poltrona, a perna
cruzada e com um cigarro na boca.
Saulo fuma? Sou pego de surpresa e tento buscar na
memória. Nunca o tinha visto fazer isso nas semanas que o via no
hospital, provavelmente, por lá ser proibido fumar. Isso me faz
constatar que não sei nada de sua vida e, puta que pariu, eu acabei
de transar com ele.
Quando foi que decidi descer tanto assim? Ah sim. Ouvindo
conselhos de uma paciente, penso soltando um riso. Levo uma das
mãos à testa, lutando contra a louca vontade de me espreguiçar
feito um gato manhoso muito satisfeito pelo carinho e boa comida.
E, por favor, vamos colocar “boa” nisso. Ao me mover nos lençóis,
sinto dores em lugares que não sentia há tanto tempo e ahhh...
aquilo foi maravilhoso. A quanto tempo não tinha um sexo tão
gostoso e satisfatório como aquele?
— Está com fome? — Me viro em direção da voz que tanto me
atinge, acompanhando seus movimentos com os olhos. Saulo
apaga o cigarro em um cinzeiro na mesinha de vidro ao seu lado e
se levanta. Ele está usando somente uma calça de malha bem
abaixo da cintura, presas no finalzinho do V de seu abdômen
delicioso.
Abençoado seja o criador das calças de malha.
Meus olhos passeiam por seu peito nu, pela musculatura de
seus ombros largos, por seu pescoço, seu queixo quadrado e por
sua boca. Imagens dele me chupando invadem minha mente,
disparando uma deliciosa descarga elétrica por todo o meu corpo e
meu próprio pau se anima mais uma vez.
Sim… estou com fome… de você.
Saulo aproxima-se da cabeceira ao lado da cama e retira um
pequeno controle remoto. As luzes aumentam sua claridade e
consigo vê-lo melhor.
— Que horas são? — pergunto, sorrindo, ainda encarando-o.
— São quase dezoito horas.
Me apoio, imediatamente, nos cotovelos.
— Eu dormi tanto assim? — Não consigo disfarçar a surpresa.
Há quanto tempo não descansava daquela maneira?
— Parece que sim. — Ele me responde, hesitante e aquilo não
me passa despercebido.
Será que está arrependido? Então eu não deveria ter dormido
aqui? Oh céus… fomos rápidos demais, eu sabia. Não deveria ter
deixado aquilo acontecer.
— E-está tudo bem? — pergunto, com medo de sua resposta.
Saulo me observa, seus olhos esquadrinhando meu rosto. Eu
sinto que algo acontece em sua cabeça, provavelmente
pensamentos confusos. Sua fisionomia não me transmite nada, mas
sei que as engrenagens de sua cabeça devem estar disparando
mensagens de negação ou de surpresa e choque. Me levanto, indo
em sua direção e de joelhos na cama o puxo para mim. Ele repousa
a cabeça em meu ombro e o ouço suspirar.
Eu tinha muito medo do que viria a seguir. Não queria ser
expulso de mais uma cama.
— V-você não gostou? — Ele suspira. Engulo a seco. — E-
está arrependido?
Saulo nega com a cabeça. Qual das perguntas estava
respondendo? O medo me sufoca.
— Quer que eu vá embora?
Sinto seus braços envolverem minhas costas e me puxarem
para um abraço apertado.
— Quero que fique — responde, inspirando em meu pescoço.
— Por favor, fique.
Oh Deus… Saulo quer que eu fique. Aperto meus olhos
fechados. Desde quando eu ficava tão idiota com um homem que eu
mal conhecia? Provavelmente por nunca ter recebido tanta atenção
na cama. E isso só me faz querer chorar de felicidade.

Passavam das oito da noite quando saí do banheiro após um


banho maravilhoso, não antes de ir à lavanderia e lavar minha
cueca boxer. Ando até a sala, ainda secando os cabelos, quando
vejo Saulo de pé, usando apenas uma bermuda, diante da bancada,
bebendo algo enquanto conferia o celular. Desvio os olhos. Não
posso ficar pensando em mais safadezas. Não após aquele
segundo round que me deixou de pernas bambas.
— Acho que seu telefone estava tocando dentro da mochila. —
Ele fala sem levantar os olhos da tela.
Oh merda. Eu tinha esquecido do meu próprio celular. Será
que era minha mãe ligando?
Corro até o sofá, abro o zíper e tiro o aparelho. Assim que o
ligo, pisco incrédulo. Tem quinze chamadas perdidas de Alberto.
Abro o aplicativo de mensagens e onde estava seu nome haviam
muitas não lidas.
Que merda está acontecendo aqui?
Toco na tela, apertando em seu nome e nem ouço o toque de
chamada pois assim que coloco o aparelho no ouvido, ele me
atende.
— Onde você está? — pergunta direto.
Me assusto com sua reação.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa?
— Nada. Só a porra do meu inquilino que disse que viria pra
casa e assim que chego, não vejo qualquer sinal dele. — Ele cospe
as palavras com raiva. — Pensei logo: o cara se perdeu em pleno
Rio de Janeiro. Liguei, mandei mensagem, sinal de fumaça e nada
dele. E o que eu penso? Pode ter sido assaltado ou até mesmo
morto, já que o cara mal sabe andar na porra dessa cidade. Estava
me preparando para ir até a polícia! Porra! São quase dez da noite e
cadê você?!
Aquela explosão na última frase me pega de surpresa. Desde
quando ele se preocupava desse jeito comigo?
Olho de soslaio e vejo que Saulo está mais preocupado com
seu celular do que ouvir minha conversa no telefone, mas mesmo
assim me afasto até a janela e respondo baixo:
— Alberto, está tudo bem. — Dou uma risada curta. Ele mais
parece a minha mãe quando eu demoro para voltar para casa. Volto
a olhar para a cozinha e dou de cara com Saulo me observando
com curiosidade. Faço um sinal com o polegar indicando que tudo
está bem. — Relaxa. Está tudo bem. Te encontro no hospital
amanhã.
A linha fica silenciosa. Por um momento, acredito que a
ligação tenha caído até ouvir sua respiração.
— Alber…
— Então você não vem para casa. — Sou interrompido.. — E
onde você pretende passar a noite?
Volto meus olhos para Saulo. Vou passar a noite com o médico
que era um babaca comigo, mas agora se mostrou ser o cara mais
incrívelque já conheci na vida, quero dizer, porém não me atrevo.
Ninguém precisa saber o que eu estou fazendo.
— Não importa. Você só precisa saber que estou bem e que
está tudo bem — repito, dessa vez sorrindo.
Alberto não responde e a ligação é cortada. Tiro o aparelho do
ouvido e o encaro com o cenho franzido, caminhando de volta ao
sofá.
Estranho. Que porra foi essa?
— Está tudo bem? — Saulo pergunta ao se aproximar
segurando uma xícara de café.
— Sim, está sim — respondo, soltando o aparelho dentro da
mochila.
Saulo concorda com a cabeça, tomando um gole da bebida,
não antes de olhar para onde joguei meu telefone.
— Vou pedir o jantar. Como dispensei a empregada, não tem
nada pronto para comer — fala, voltando para a bancada da
cozinha, onde deixou o próprio aparelho. — Tem preferência em
comer alguma coisa?
Abro um largo sorriso, indo em sua direção.
— Pizza!

Quarenta e cinco minutos depois, estava sentado de frente a


bancada da cozinha ao lado de Saulo, comendo uma enorme pizza
de margherita. Havíamos conversado sobre o trabalho e, agora,
fazíamos um joguinho de perguntas enquanto comíamos para saber
mais um do outro.
— Você tem trinta e quatro anos? — Quase me engasgando.
— O quê? — pergunta preocupado. — Achou que eu era mais
velho?
Reviro os olhos.
— Não… na verdade, achei que era mais novo. Uns vinte e
sete ou vinte e oito anos, sei lá.
Ele me dá um sorriso singelo e convencido.
— Me sinto lisonjeado.
Olha só para onde elevei o ego do doutor… Agora foi a minha
vez de sorrir.
— É filho único? — Arrisco, dando outra mordida na pizza.
Ele concorda com a cabeça.
— E você?
— Também. Mas fui criado só por minha mãe. Meu pai
desapareceu quando ela estava grávida de mim — respondo com
desgosto.
— Sinto muito.
Nego com a cabeça.
— Eu não sinto, então não sinta. Acho que não seria eu
mesmo se ele tivesse me criado, pelas tantas coisas que minha mãe
me contou.
Segundo o pouco que ela mesma me dizia, era um homem
agressivo e machista que a humilhava diariamente e que a
abandonou quando descobriu que estava grávida de mim. Na
verdade, dava graças a Deus por ele ter desaparecido de nossas
vidas. Balanço a cabeça.
— E você?
Saulo reseta, parando o garfo a centímetros da boca por um
momento.
— Eu o quê? — pergunta cauteloso e depois morde o pedaço
de pizza.
Me viro para encará-lo. Ora, do que estava falando?
— Pai? Mãe?
Ele concorda com a cabeça, tão lentamente que acho que tem
medo de se mexer. Terreno perigoso?
— Sim. Fui criado pelos dois.
Não fala mais nada depois disso. Parece que há mais coisas
ali. Algo mais íntimo e que pode não ser da minha conta. Volto para
minha pizza. Permanecemos alguns minutos em silêncio.
— Você… — Saulo começa a dizer, quebrando aquela parede
de gelo que havia se formado repetidamente. Sua voz saía com
uma cautela medonha. — Sempre soube que era…
Solto meus talheres e o encaro, aquele floreio estava me
irritando.
— Gay?
Ou quer dizer Viado? Boiola? Bichinha? Penso em todas as
palavras que já fui chamado desde o dia que descobri que gostava
de homens. Saulo fica momentaneamente surpreso. Bingo. Pego o
garfo, espeto um pedaço da minha pizza e o jogo na boca.
— Sim. Eu sempre soube que era gay — afirmei entre a
mastigação. — No início foi confuso também pois não sabia como
reagir, mas com o tempo eu fui me entendendo e antes que
pergunte, não… Não saí sozinho do armário… Fui arrancado dele.
Percebi, de soslaio, o corpo de Saulo travar no lugar. Ele não
movia um músculo sequer, as mãos congeladas no corte da fatia de
pizza.
— D-desculpe… — disse depois de um tempo, voltando a
mover aos talheres. — Acho que não entendi.
Dou uma risadinha sem graça, suspirando.
— Estou dizendo que não contei ao mundo que era gay, que,
na verdade, contaram por mim.
Encaro-o e ele se volta para mim, nossos olhos encontram-se.
Saulo parece bem desconfortável com a conversa. Falar da
sexualidade o deixava assim? Issopara mim é, no mínimo, curioso.
O que aconteceria se eu contasse tudo o que houve?
— Bem… eu tinha uns dezoito anos. — Começo a dizer,
analisando sua expressão. Se ele se sentir desconfortável, poderia
me mandar parar. — Nessa época tinha total certeza que sentia
atração por homens, mas não havia contado para ninguém além da
minha própria mãe que me apoiava e meus dois amigos, Lucas e
Pedro. Pedro também era gay então íamos juntos a baladas
LGBTQIAP+em outras cidades, pois assim não corríamos o risco
de sermos reconhecidos, já que eles eram de famílias conhecidas
de Campos dos Albuquerque. Até que conheci um cara em uma
noitada.
Saulo franze a testa. Ele está atento a tudo o que estou
dizendo.
— Esse carinha demonstrou interesse e passou a flertar
comigo. Não vou mentir, eu gostava do flerte. Acho que ele tinha
uns vinte e quatro ou vinte e cinco anos na época, não lembro com
exatidão.
Quando o conheci não sabia quem era. Lucas e Pedro, que
estavam comigo na balada, não o tinham reconhecido quando ele
veio dar em cima de mim no bar. Correspondi aos seus flertes,
acreditando que ele também tinha interesse e trocamos contatos.
Nos beijamos na balada. Depois disso recebia sms diariamente.
— Eu acreditei que o carinha também gostava da fruta e me
deixei levar. — Esfrego a mão direita no queixo. — Pensando bem
agora… acho fui ingênuo demais…
Lembro de quando mostrei a foto do carinha aos meus amigos,
eles quase surtaram porque o reconheceram: Fabiano de
Albuquerque Montenegro, filho do irmão mais novo do, hoje, prefeito
da cidade. O pai de Fabiano era dono do único shopping que havia
em toda Campos. Todo mundo sabia quem era aquele filho da puta.
No dia que o vi não fazia ideia de quem era por causa da luz baixa
do lugar e tão menos sabia de sua reputação.
— Fabiano gay? Não sei… Ele tem cara e jeito de hetero, mas
esses caras sempre enganam. — Lucas comentava segurando meu
celular com a foto de Montenegro.
— Esse cara é um filho da puta. — Pedro surtava ao meu lado.
— Precisa se afastar dele agora.
— Vocês têm certeza? — indaguei incrédulo — Ele não parece
ser isso, pois foi tão carinhoso comigo…
— Gui, pelo amor de Deus. Tome cuidado. — Pedro insistiu. —
Não tem como confiar num cara como esse…
— Deixe-o, Pedro. — Lucas disse me devolvendo o celular e
abraçando Pedro. — Guilherme é esperto. Não vai se envolver com
um cara assim, certo?
Mas não foi assim. Meus dois amigos começaram a se
envolver e acabaram me deixando para escanteio. Me sentindo
sozinho acabei abrindo a brecha que Fabiano precisava e me
permitir envolver. Mas para minha decepção e confirmação dos
meus amigos, Fabiano estava mesmo brincando com meus
sentimentos, pois após os mais de dois meses de troca de
mensagens dizendo que havia gostado de mim, que sentia
saudades, passamos a ter pequenos encontros para amassos às
escondidas. E no último deles fiz uma das coisas de que me
arrependo até hoje.
Puxei a blusa pelas costas, para a surpresa de Saulo, até
expor a parte de trás do ombro esquerdo.
— Um beija-flor? — O médico pergunta, encarando a
tatuagem.
— Uma das ideias desse carinha. O pior foi que eu gostei da
sugestão e procurei na internet uma imagem que pudesse tatuar.
Ele me chamava assim nas ligações e nos nossos encontros. —
Recoloquei a blusa e me endireitei no banco, sentindo um pouco de
repulsa, já que nos meus pesadelos ainda conseguia ouvi-lo me
chamar daquele apelido horrível. — O pior era que eu gostava
quando ele me chamava assim.
Cada momento daquele dia ainda estava gravado em mim. O
dia que ele me convidou para irmos à outra balada, dessa vez sem
a companhia dos meus amigos. Totalmente sozinhos…
— Quero sentir você, Beija-Flor — dizia ao me beijar do lado
de fora. — Preciso sentir você.
— Fab, não sei se… se podemos… — Eu me sentia inseguro.
As mãos dele me enlaçaram pela cintura, enquanto se esfregava
desesperado em mim e aquilo me deixava com muito tesão.
— Por favor… eu prometo que serei gentil. Não vou deixar
nada de ruim acontecer… Eu te amo, beija-flor.
Fechei com força meus olhos e suspirei trêmulo. Lembrar
daquelas palavras mentirosas era doloroso demais.
— Bem… Foi aproveitando-se da minha ingenuidade que esse
cara me seduziu e eu cedi aos seus encantos, perdendo minha… —
ergo os dedos formando aspas no ar. — “virgindade” com ele. Só
que da pior forma.
Aquela foi realmente a primeira vez que transei com alguém.
Acreditei que estava apaixonado, que era correspondido. Acreditava
demais no romance que achava que existia entre nós, no amor que
ele dizia demonstrar e acabei me rendendo às suas carícias.
— O que é isso, Fabiano? — perguntei com ele em cima de
mim, vendo as algemas. Seu peso não me deixava me mover.
— Você vai gostar, Beija-flor… — disse ao me prender na
cama. — De cada segundo, do que farei com você, eu juro…
Ele permaneceu em cima de mim, ergueu minhas pernas e
merda eu gritei para não fazer. Eu tinha mudado de ideia. Que não
queria mais. Não conseguia me desvencilhar dele. A penetração foi
forçada, seca, dolorosa e sem cuidado ou qualquer carinho. Eu
implorava para parar, mas ele não parava. Ele me mordia, me
beliscava. Ele se divertia enquanto eu chorava sentindo dores e
medo.
Levei as duas mãos ao rosto lutando contra as lágrimas. Eu
odiava lembrar daquilo tudo. Fabiano não foi gentil, não foi amoroso
conforme suas palavras diziam que seria. Foi só sexo, bruto e
nojento. Violência. Agressividade.
— A merda toda não foi somente essa… foi descobrir dias
depois que aquele filho da puta havia instalado câmeras e gravado
somente as partes que lhe interessavam. — Encaro Saulo, que
havia ficado totalmente de frente para mim. Ele me observava,
horrorizado. — O resto já deve imaginar…
Aquilo durou horas. Quando o Fabiano terminou, eu não tinha
forças para me erguer. Ele me levou de carro até a estrada me
largando lá no meio da pista ferido, fisicamente e psicologicamente.
Para minha sorte ele havia largado comigo meu próprio celular e
liguei para Pedro pedindo ajuda. Eu mal conseguia falar pelas dores
que sentia.
Pedro surgiu com Lucas de carro quase quarenta minutos
depois. Eu via o choque no rosto de Pedro mas Lucas não me
encarava. Ambos me ajudaram a subir no carro e eu chorei o
caminho inteiro de volta para casa. Nenhum dos dois me culpou ou
disseram “nós avisamos”, pelo contrário, ficaram comigo até onde
puderam para me consolar. Mas aquele desgraçado explanou o
vídeo pelas redes e preparou toda uma história para a cidade.
— Sabe o filho da confeiteira?A Dona Rita? Aquele boiolinha
que não teve um pai para o transformar em homem de verdade, é
mesmo um ‘viadinho que adora dar o rabo’.
Ele destruiu a pouca reputação decente que ainda tinha e senti
tanta vergonha. Não por mim, mas por minha mãe, que lutou para
me criar sozinha, uma mulher que era conhecida na cidade por ser
confeiteira.
No fim perdi meus melhores amigos. Seus pais, assim que
descobriram sobre o vídeo, despacharam seus filhos para fora da
cidade, dessa forma nada do que diziam sobre mim cairia sobre
eles. Não pude me despedir de Lucas e Pedro. Nunca mais tive
contato. Nenhuma mensagem ou ligação. Aquilo só fez meu mundo
desmoronar ainda mais.
Mesmo assim, sendo isolado, excluído e humilhado, minha
mãe, Dona Rita, foi minha salvação. Ela havia jurado que acabaria
com aquilo e, quase milagrosamente, resolveu tudo. Não sei até
hoje o que fez, mas seja lá o que for, calou Fabiano, que
desapareceu de Campos e o maldito “mini clipe” que fizeram de mim
também sumiu, fazendo com que os boatos diminuíssem
drasticamente.
Se fiquei com sequelas? Várias, além da maldita tatuagem que
mantive para me lembrar todos os dias de nunca mais cometer o
mesmo erro. Entretanto, depois do que aconteceu com Fabiano,
passei a usar o álcool para esquecer tudo aquilo e não me afundar
nas crises de pânico e ansiedade que ganhei quando o vídeo se
espalhou.
Estalei os ossos dos dedos e respirei fundo tentando não
transparecer que aquele assunto ainda me doía. Me espreguicei,
erguendo os braços e soltei o ar com força enquanto Saulo me
encarava, chocado.
— Bem… Quando você me beijou à força na primeira vez, eu
acreditei que seria igual àquele cara. Sabe… Um homem hétero que
queria apenas me usar. Eu surtei na hora e o empurrei, mesmo
sentido a atração. Mesmo vendo a confusão em seus olhos, a
luxúria perdida, eu decidi sair de lá. Então, desculpe por ter sido
grosseiro e tê-lo empurrado.
Saulo pisca, como se processasse as informações que soquei
goela abaixo. Ele concordou com a cabeça e seus olhos giravam
pela casa toda. Eu percebi que o médico estava pensando em
alguma coisa. O vi se remexer na cadeira como se estivesse
desconfortável. Issome fez me sentir mal... não deveria ter contado
tanto.
— Saulo…? — O chamo e seu olhar encontra o meu. Havia
algo profundo em seus olhos, uma tristeza e melancolia que não
sabia dizer o que era ou de onde vinha.
— E-eu… — começou a dizer depois de um momento. Tive
que me aproximar um pouco para ouvi-lo. — F-fui criado em um lar
cristão.
Essa foi a minha vez de piscar e encará-lo incrédulo. Seus
olhos desviaram para o chão. Aquele gesto misturado àquela
informação e a melancolia de seu olhar já me dizia muita coisa e
nenhuma delas mostrava ser algo realmente bom.
Ah, merda. Por que eu fiz isso?
Não continuamos a conversa pois Saulo se levanta, começa a
recolher todas as coisas da bancada ainda calado, larga os talheres
e pratos na pia e segue em direção ao banheiro, se trancando lá.
Oh céus. Por que abri a minha maldita boca? Por que fui logo
falar sobre sexualidade?
Vou para o corredor e me sento no chão, encostado na parede
oposta ao banheiro e aguardo. Depois de um momento, ouço o
barulho do chuveiro, minutos depois é desligado, e após uma
eternidade inteira, ele sai do banheiro. Seus olhos me encontram no
chão e me levanto encarando-o, procurando algo para dizer.
— Vou deitar — anuncia. — Levantaremos cedo amanhã.
— Quer que eu vá embora? — pergunto. Direto. Sem meias
palavras. Ele pode estar desconfortável com a minha presença, com
tudo o que contei e o melhor que eu posso fazer é ficar longe. Saulo
inclina levemente a cabeça.
Ele estava ponderando? Esse pensamento me machuca por
dentro.
— Você quer ir embora? — Saulo retruca.
Nego com a cabeça.
— Desculpe eu não… não…
— Tudo bem. — diz, me cortando. — Você não me fez nada.
Eu que deveria estar preocupado aqui. Se não quiser se deitar
agora vou entender. Estarei no quarto.
E sai andando em direção a porta de seu quarto e deixando-a
entreaberta após passar. De onde venho, aquele gesto é um convite
para entrar. Sem pensar em mais nada, ando a passos rápidos,
entrando em seu quarto e fechando a porta atrás de mim.
Por fim ficamos apenas deitados, acabei puxando conversa sobre o
CADME e, quando o cansaço venceu, dormimos de conchinha.
Saulo dormiu abraçado ao meu corpo como se tentasse protegê-lo.
Foi bom ficar somente assim.
Sinto um toque leve e quente em meu rosto que me desperta.
Ao abrir os olhos, me deparo com Saulo de cabelos úmidos e
penteados para trás, agachado, sorrindo para mim, totalmente
vestido com suas roupas sociais. Pisco, imaginando se estava
diante de uma miragem.
Já é hora de ir? Levo a minha mão de encontro a sua.
— Bom dia — sussurro ainda meio sonolento.
— Bom dia — responde com suavidade. — Precisa levantar ou
vamos nos atrasar. E sabe que o hospital não tolera atrasos.
Suspiro sentindo que meu sonho havia terminado e, agora, era
lançado de volta à realidade. Saulo sorri, se levanta e caminha sem
pressa até uma cômoda na parede, me dando uma maravilhosa
visão de sua bunda naquela calça social justa. Me apoio para
observá-lo ali e Meu Deus… Como Saulo é um homem bonito. A
blusa de manga comprida está dobrada na altura dos cotovelos. Ele
abre a primeira gaveta e retira um relógio Rolex que deve ser oito
vezes o valor do meu salário.
Maldito homem rico. Me espreguiço, sorrindo com o
pensamento.
Agarro os lençóis que tem seu cheiro. Na verdade, tem o
nosso cheiro agora. O cheiro do que fizemos quase um dia inteiro
ontem. Levanto de uma vez e corro todo felizinho até a sala para
pegar minha mochila, depois vou até a lavanderia para pegar minha
cueca lavada. Volto para o banheiro, tomo um banho e me visto.
Penteava os cabelos quando ouço duas batidas na porta.
— Cinco minutos ou perderá a carona.
Arregalo meus olhos após ouvir aquilo. Ele não faria isso. Ou
faria? Escovo os dentes rapidamente e saio porta afora, correndo
pelo corredor em direção à sala. Saulo já estava pronto, de pé
diante da porta de saída, me aguardando. Ergue o pulso direito e
aponta para o Rolex.
— Dois minutos.
Ôh porra. Não eram cinco? Não demorei nem um minuto
naquele banheiro! Ele é um compulsivo por horário? “O hospital não
tolera atrasos” uma ova. Ele quem não tolera atrasos. Mais uma
informação sobre o senhor perfeito anotada. Enfio meus pés nas
meias e calço meus tênis. Assim que me levanto pronto, Saulo já
está com a porta aberta.
— Venha. Vamos tomar café antes de irmos para o hospital.
Jogo a mochila nas costas e passo pela porta, sorrindo.

Depois de sairmos de seu apartamento, tomamos nosso café


em um restaurante em Copacabana e seguimos para o CADME. A
BMW de Saulo entra em sua vaga costumeira sem qualquer
suspeita. Sou o primeiro a sair do carro, andando pela parte escura
do estacionamento até as escadas de emergência. Subo os degraus
até o primeiro andar e caminho pelo corredor, como se nada tivesse
acontecido, para pegar o elevador, quando ouço uma voz.
— Guilherme.
Fecho os olhos, suspirando e encaro o homem parado ao meu
lado que está com cara de poucos amigos.
— Bom dia para você também, Alberto — sorrio.. — Dormiu de
calça jeans hoje? Está com uma cara azeda…
Ele dá uma risada curta e balança a cabeça.
— Um dia e uma noite fora. Tsc tsc…
— Virou a minha mãe agora? — Aperto o botão de chamada
do elevador. — Ou acha que é minha babá aqui?
Eu não iria aturar aquele tipo de reação. Alberto ergue os
braços, em rendição, mudando drasticamente a sua postura.
— Hey! Eu só fiquei preocupado com você! Em três semanas,
nunca vi você passar uma noite fora, sozinho. Achei que tinha se
perdido, só isso. Tenho o direito de ficar preocupado. Prometi a
Hana que cuidaria de você. — E joga o braço por cima do meu
ombro me puxando para perto. — Desculpe. Ainda amigos?
Suspiro, não acreditando naquela ladainha, mas Alberto é um
bom amigo e é alguém em quem eu confio. As portas do elevador
se abrem, revelando um Dr. Saulo parado lá dentro, olhando seu
celular, ao lado de uma mulher de cabelos negros, que segura seu
braço animada. Ela nos vê e solta o médico, endireitando sua
postura. Saulo, entretanto, ergue a cabeça e nossos olhos se
encontram, porém, em seguida, desviam de mim para Alberto e
depois para o que meu amigo fazia. Estranhamente, sinto um leve
aperto no seu abraço.
— Bom dia, Dr. Saulo! — Alberto cumprimenta. — Bom dia,
Dra. Lucia!
— Oh! Bom dia, Alberto. — Dra. Lúcia responde. Eu já a tinha
visto antes. Aquela voz…
A mulher no subsolo com…
Saulo não desvia o olhar, fixos em Alberto ainda me
abraçando. Seus olhos ficam pretos feito piche, eu sinto que algo
está errado pois meu estômago pesa com a sensação estranha. As
portas do elevador começam a se fechar, mas meu amigo é mais
rápido colocando o braço e as impedindo.
— Vamos, Gui? — fala de forma casual e íntima. —
Precisamos bater o ponto ainda.
Engulo a seco. Eu não quero ir. Não quero estar ali dentro
vendo aquela mulher pendurada em Saulo.
— Vou de escada — falo, me desvencilhando de seu braço e
andando em direção às escadas de emergência.
— Guilherme! — Ouço Alberto me chamar conforme me
afastava.
Dra. Lucia Alencar, pediatra. Ela era a mulher que Saulo fodia
naquela noite no subsolo. O que ela estava fazendo agarrada ao
braço dele? E por que ele permitiu aquilo? Então o que foi aquilo
que aconteceu entre nós ontem?
Abro a porta e subo as escadas, quase correndo, numa
vontade de gritar ou socar alguém quando sinto que meu braço é
agarrado e puxado para trás. Quase me desequilibro, mas consigo
segurar no corrimão ao meu lado e me viro para socar a cara de
quem quer que fosse, porém me deparo com meu amigo que está
parado ali, me encarando surpreso.
— Alberto?
— O que foi, cara? Por que correu?
Me solto dele e sento nas escadas. Também não sei por que
corri. Não consigo pensar direito. A única coisa que vejo é aquela
mulher agarrada ao meu homem. Meu? Que merda tinha sido
aquela cena? Eu estava com ciúmes? Esfrego as duas mãos no
rosto.
— E-eu estou evitando o Dr. Saulo — falo, tentando ser
convincente.
— Eita… Ele ainda está te perturbando?
Dou de ombros.
— O de sempre. Meus plantões continuam sendo alterados
sem qualquer motivo. — Nem sei mais se aquilo é verdade. Alberto
só não precisava saber que fui parar na casa daquele homem ontem
e tive o melhor sexo da minha vida e que, agora, estava vendo-o
agarrado com uma mulher.
— Vamos fazer assim, bora uma bebida hoje à noite? Para
extravasar? — Abro a boca para protestar quando ele ergue as
mãos. — Em casa. Só nós dois. Pode beber à vontade, o que acha?
— Não estou afim de consumir álcool hoje, Alberto. — E me
levanto para subir as escadas para o segundo andar, onde ficam os
vestiários.
— Tudo bem. — Alberto corre para andar ao meu lado. —
Beba suco, refri, yakult ou até mesmo chá… sei lá. Só sei que eu
vou ficar na cerveja, o que acha? Podemos jogar no XBox ou ver
algum filme. Noite dos meninos, o que acha?
Não acho nada. Provavelmente ficarei mesmo em casa depois
do que presenciei.
— E tenho como negar isso?
Alberto sorri, satisfeito.
— Eu sei que não.

No vestiário, recebo meu plantão. Emergência. Meu nome está


na lista dos atendimentos na Emergência! Oh Céus, quero chorar de
felicidade. Eu vou trabalhar na emergência durante o plantão do Dr.
Saulo!
Paro de sorrir. Estaríamos trabalhando no mesmo lugar e eu
definitivamente não quero vê-lo. Não depois do elevador.
Na verdade, quero vê-lo sim, cobrar explicações, e saber o
porquê caralhos aquela mulherzinha oferecida estava agarrada ao
meu homem!
Fecho os olhos, dando dois tapas na testa com a mão aberta,
tentando calar minha mente. Saulo não é, e nunca será meu.
Precisava colocar aquilo urgente na cabeça. Eu só estava o
ajudando a se descobrir, a entender…
E desde quando faço caridade? Porra! Eu sequer fazia ideia
do que estávamos fazendo!
Saio do vestiário pronto para minhas doze horas na
emergência no primeiro andar e passo praticamente o dia inteiro em
atendimento: Um garoto de dezesseis com o antebraço quebrado
porque caiu do skate após uma manobra. Uma menininha de oito
anos que se engasgou com uma peça de Lego. Um rapaz, carteiro,
que foi mordido por um cachorro. Houve também atendimentos de
pessoas atingidas por armas de fogo, acidentes de trânsito,
atropelamentos e quase no final do plantão um senhor deu entrada
na emergência com sinais de infarto. Fazer a manobra de
ressurreição e trazer esse senhor de volta foi o momento mais tenso
daquela emergência.
Mas tudo isso só me ajudou a parar de pensar nele. O
problema é que o plantão passou rápido demais e em nenhum
momento daquelas horas o vi ou soube dele, o que só firmava
minhas desconfianças de que, provavelmente, estavam de novo
naquele maldito arquivo no subsolo…
Depois de ter me fodido um dia inteiro em sua casa! Mesmo
depois de termos conversado… Eu achei… Eu acreditei…
Levo uma das mãos à testa. Preciso calar minha mente de
alguma maneira. Pego meu celular, abro o whatsapp e digito uma
mensagem para Alberto.

Eu esperava mesmo que fosse, para o bem da minha


sanidade mental.
Acordo no dia seguinte tonto, deitado em minha cama. Minha
cabeça está girando sem piedade. Não tenho forças nem para
levantar da cama. Me sinto esgotado, como se tivesse chorado a
noite toda. Estico o braço, alcançando o celular e meus olhos quase
saltam das órbitas. Onze da manhã.
Porra... eu não bebi tanto assim, bebi?
Tento puxar na memória, porém a merda era que todas as
lembranças me escapavam. Sempre que saía para beber ficava
assim, exagerando sem perceber. Nem lembro quando foi que me
permiti ficar viciado em bebida assim… Ah sim…
Fabiano…
Tento me erguer e sinto uma pontada na barriga. Puxo os
lençóis e sou surpreendido ao me encontrar nu, da cintura para
baixo. Há uma mancha escura abaixo do meu umbigo, perto do V de
meu abdômen que parecia com um…
Chupão? Mas que porra é essa?
Sinto náuseas e seguro a cabeça com uma das mãos. Pensa.
Vamos lá Guilherme… pensa.
Me forço a recordar cada passo de ontem. Voltei para casa de
moto com Alberto. Passamos pelo mercado para comprar algumas
besteiras para comer e claro, escolhemos as cervejas. Alberto
acabou colocando no carrinho algumas garrafas de vodca e
produtos para fazer batida. Na “noite dos meninos” sempre
metemos o pé na jaca, literalmente.
Depois que chegamos em casa, Alberto foi arrumar tudo
enquanto eu ia tomar banho. Assim que saí do chuveiro, meu amigo
foi tomar o dele enquanto eu preparava algumas bobeiras para
comer. Assim que voltou, usando somente uma bermuda tactel,
sentamos para jogar e começamos a beber. Um copo atrás do outro.
Conversamos, falamos merda, rimos e eu…
Chorei? Será que faleidemais? A partir daí todas as memórias
começaram a me escapar. Tudo se tornava vago.
Fecho os olhos com força, tentando lembrar o que tinha
acontecido. Nada me vinha. Porra, é impossível a memória sumir
assim.
O que aconteceu?
Um sussurro. Meu corpo reage.
Por que não lembro?
Mãos quentes sobre mim. Meu coração acelera.
Inspiro. Expiro.
Uma queimação em meu abdômen.
Estou tremendo. Sinto medo, não consigo controlar meu corpo.
Não.
“Não vou deixar mais ninguém te tocar”
Eu não quero.
“Só eu vou cuidar de você, Beija-flor”
Não.
“Eu sei que quer isso, sei que gosta”
Não, por favor, pare.
“Goza pra mim, Beija-flor”
PARE!
Abro os olhos, mas a visão está embaçada! Meu corpo está
reagindo. Estou tremendo por inteiro. Minha respiração… não
consigo respirar, as batidas do meu coração estão totalmente
desreguladas e sinto a cabeça pesada. Eu sei o que é aquilo...
Estou tendo um ataque de pânico!
Mas eu não tenho mais ataques de pânico! Há anos eu não os
tinha. Não deveria estar tendo. Não deveria…
Sinto seu toque em mim. Por todo meu corpo. Saia! Não
quero. Saia! Meu corpo treme violentamente com as lembranças
ainda tão vivas e enraizadas. Aquilo era passado. Passado. Não
estou em Campos dos Albuquerque. Fabiano não está aqui.
Acabou.
ACABOU!
“Goza para mim, Beija-flor”
— Pare. Pare… — imploro, tentando calar a voz daquelas
lembranças. Ainda consigo ouvir sua risada, sentir seu toque e isso
me destrói por dentro. Escondo meu rosto entre as pernas. — Por
favor… Chega…
Saulo… Quero chamar por ele, mas minha voz não sai.
Somente me resta chorar e lutar para não me render àquele
terror que me destruiu anos atrás. Me encolho em minha cama, aos
prantos, abraçando minhas pernas implorando para que aquela
crise passe.
Ela precisa passar.

Aquela estava sendo a pior semana da minha vida. Eu não


fazia ideia de onde Saulo estava. Depois do episódio do elevador,
era como se tivesse desaparecido no ar. Os seus plantões
acabaram sendo liderados pelo Dr. Mauro e graças a ele pude
trabalhar na emergência normalmente.
Já se passaram cinco dias e nenhum sinal daquele homem.
Aproveitei meu intervalo para vir à sala dos enfermeiros para tentar
localizar aquele médico. Puxo uma cadeira com a cabeça latejante e
sento de frente a mesa com o celular nas mãos, observando na tela
o chat de conversa onde entupo a caixa com algumas mensagens
para o número de Saulo, que se reúnem com as incontáveis outras
que estão sem a marcação de lido. Nenhuma resposta. Nada.
— Você anda distraído demais, Gui. — Hana fala e me cutuca
uma vez, o que me assusta e escondo todo atrapalhado o aparelho.
Eu não a ouvi entrar e isso só mostra o quanto estou de fato aéreo.
— Se continuar assim vai provar que o Dr. Saulo estava certo em te
deixar de fora da emergência.
Ouvir o nome daquele médico só faz minha dor de cabeça
aumentar.
— Não ando dormindo direito esses dias — massageio minhas
têmporas com os dedos, em seguida, me viro para minha amiga que
me observa com curiosidade. — O que foi?
— Distraído, sempre cansado e sem vontade de comer… —
ela conta erguendo os dedos conforme listava meus problemas. —
Você nunca dispensou pizza! Por acaso tomou um fora?
Ouvir aquilo me dói. Não deveria doer, não deveria sequer me
afetar, mas sinto meu peito afundando com a realidade.
— Quê? — Tento disfarçar, minha voz ficando mais aguda do
que deveria. — De onde tirou essa ideia? Pra isso eu deveria ao
menos estar com alguém. Tá maluca?
Hana primeiro estreita os olhos, depois suspira, contorna a
cadeira que estou sentado e me abraça pelas costas.
— Sabe que pode contar comigo, né? Se quiser me falar
alguma coisa, qualquer coisa, estarei aqui pra te ajudar. Não vou te
condenar, nem te julgar. Eu vou ouvir tudo, eu juro e vou te apoiar.
Tento não chorar ao ouvir aquilo de Hana, ela é de fato uma
amiga maravilhosa. Quando a conheci na faculdade nunca imaginei
que existia alguém em tanta sintonia comigo como ela.
— Obrigado, Hana — digo, soltando o ar. — Obrigado por ser
uma pessoa incrível na minha vida.
Ouço-a rir, o queixo em cima do meu ombro.
— Você sabe que vou te perturbar sempre, né? Me preocupo
porque me importo com você e só estou aqui porque quero que
saiba que pode contar comigo. Até pra desabafar na hora que for
preciso. — Sinto sua boca estalar um beijo molhado em minha
bochecha.
Ouvir aquilo me toca de uma forma que sinto meus olhos
arderem e inspiro trêmulo. Me solto de seu abraço, para seu
espanto e ando até a porta da sala, fechando-a e trancando-a por
dentro. Me viro, com as costas na porta, e encaro minha amiga que
me observa curiosa.
— Sente-se, Hana. Por favor.
Ela obedece sem perguntar. Assim que a vejo acomodada
tomo fôlego.
— Conheci um cara — revelo e vejo os olhos da minha amiga
oriental se arregalarem ao máximo, como se seus pensamentos
estivessem certos, mas antes que diga algo, eu a impeço. — Não é
nada sério. Tudo aconteceu por acaso.
Vejo Hana concordar e me aproximo dela. Fico de joelhos
diante minha amiga e começo a contar o que aconteceu sem muitos
detalhes. Hana não precisava saber que o cara era o Saulo, porém,
desabafar com ela era algo que precisava: uma amiga para me ouvir
e quem sabe me dar conselhos bons.
Conto, inclusive, sobre minha crise de pânico, que
estranhamente havia voltado, quem sabe devido ao estresse e sinto
lágrimas descendo pelo meu rosto ao terminar de falar. Hana me
puxa e eu deito minha cabeça em seu colo, abraçando-a pela
cintura. Ela não fala nada, somente faz carinhos em meus cabelos,
me deixando desabafar.
— Sabe… — Minha amiga começa a dizer após vários
minutos de silêncio — Às vezes estamos tão desesperados por
amor que deixamos nos levar pelo primeiro momento de carinho que
recebemos. Você não é a primeira e nem será a última pessoa a
sofrer disso. Infelizmenteacontece e não é algo ruim. Não quando
descobrimos a tempo. Precisa aprender a ver a diferença, meu
amigo, e se afastar antes que isso fique pior.
Concordo com minha amiga. Eu me deixei levar por causa de
uma noite exatamente como havia feito tantos anos atrás. Minha
garganta aperta enquanto eu me entrego àquela tristeza, o choro
sufocado sendo liberado silenciosamente no colo de minha amiga.
Eu evitaria Saulo Marques, custe o que custasse.
Assisto ao longe uma BMW X3 preta entrar no estacionamento.
Coloco o boné na cabeça e me escondo agachado do outro lado da
vaga, atrás de uma das pilastras. Acompanho o veículo manobrar e
entrar de ré onde ele sempre deixa o carro, afastado de todos os
outros. Ajusto novamente o boné, puxando a aba para esconder
meu rosto e aguardo.
Estava ciente da minha promessa a Hana, mas quando ouvi a
notícia da Sra. Roberta que Dr. Saulo havia viajado com o diretor
para resolver negócios sobre o CADME e que voltaria hoje ao
hospital, não consegui me segurar. Não posso mais ignorar ou fingir
que nada estava acontecendo. Precisava saber, ter alguma posição
dele. Hana que me perdoe. Eu tinha o direito de tomar o fora cara a
cara.
Ouço o motor ser desligado. Me movo, ainda agachado, para a
parte de trás do veículo e ando lentamente em direção ao lado do
carona. Ouço o carro destravar as portas. E antes que ele saia, me
levanto e meto a mão na maçaneta, abrindo a porta do carona e
entrando no carro, para espanto de Saulo, que me encara incrédulo.
— O que é isso?!
Arranco o boné com um puxão e Saulo relaxa um pouco ao ver
quem eu era. Aquilo me irrita profundamente.
— Me diga você! Por que não me avisou que iria viajar? Por
que está me evitando?
O médico me observa com uma cara de desentendido.
— O que você está fazendo, Guilherme?
Ele iria ficar nesse jogo de empurra?!Me enfureço.
— Quer mesmo saber o que eu estou fazendo? Você não
atende minhas ligações, não responde minhas mensagens. Quer
realmente perguntar o que eu estou fazendo?
Saulo encara a frente do carro e suspira, esfregando as duas
mãos no rosto.
— Olha… E-eu não… — Começa, mas se arrepende em
seguida.
Aquela excitação só me faz surtar ainda mais.
— Não o quê? Termina a frase! Não quer mais? Se
arrependeu? Cansou de mim? Achou que era só uma brincadeira?
— Ele abaixa a cabeça. Eu estou cansado daquilo. — Porra, diga
alguma coisa!
— O que você quer que eu diga?! — grita em uma explosão de
fúria e aquilo não me intimida.
— Qualquer coisa! Diga que cansou de me foder e que agora
quer estar com uma mulher! — grito de volta. Saulo me encara,
espantado com minhas palavras e nem assim continuo. — Diga que
foi uma única noite de foda e que isso não mudou nada. Diga que
tudo foi um maldito engano! Diga alguma coisa, mas fale comigo!
Sinto as lágrimas voltarem a queimar meus olhos. Estou
cansado, estressado, machucado. Minhas crises de pânico haviam
piorado nos últimos dias e com isso voltei a usar o álcool para me
apagar e não pensar no que Saulo estaria fazendo com aquela
médica ou com qualquer outra pessoa e isso piorava tudo. Me
sentia sozinho sem ele. Usado. Abandonado.
Sim, estou no meu extremo. Não tinha ideia do quanto havia
me envolvido, até gritar no carro. O peso que está em meu peito é
tão grande que o sinto afundar.
— Era só dizer que seria uma noite. — Um nó se forma em
minha garganta. Eu sugo o ar entre as frases. — Poderia não ter
sido gentil comigo. Assim eu não teria criado esperanças… Por que
você foi tão doce pra, no fim, me trocar por uma mulher no dia
seguinte? Por que me usou dessa maneira e desapareceu sem me
dar qualquer notícia… Eu achei… Eu pensei…
Hana tinha razão. Eu me envolvi emocionalmente, me
entregando rápido demais. Deixei a emoção falar acima da razão.
Não deveria, mas agora estava novamente me sentindo a pior
pessoa que existia no mundo. Minha cabeça pesava, meu coração
acelerado batia sem controle em meu peito e eu sugava o ar
desesperado para respirar. Aquele era o prenúncio de uma de
minhas crises.
Foi quando senti duas mãos grandes e quentes em meu rosto,
mas o que me assustou foi o toque gentil. Havia muito carinho
naquele gesto e aquilo termina de me quebrar por dentro.
— Respire devagar… — fala pausadamente. — Respire
devagar, Guilherme. Precisa se acalmar ou terá um colapso.
As lágrimas descem pelo meu rosto e deixo aquilo que me
sufoca sair em forma de choro. Saulo me puxa para seu peito. Me
aperto a ele, ciente de que precisava daquilo nem que fosse por
uma fração de segundo.
— Desculpe. Eu não queria ter feito isso. Quando saí do carro,
minutos depois de você entrar pela porta de emergência, Lúcia
apareceu. Eu não sabia que ela estava ali. Não planejei aquilo,
Guilherme. Lúcia veio atrás no elevador, se agarrou a mim e eu não
consegui afastá-la. E assim que as portas se abriram… — Saulo me
envolve apertado com os dois braços. — Foi tudo muito rápido.
Me aconchego em seu peito enquanto o ouço.
— Eu estava decidido a falar com você na primeira
oportunidade, por isso seu plantão não foi alterado. Eu não farei
mais isso. Mas algumas coisas aconteceram…
Seria sobre a viagem? Sua hesitação me deixa preocupado.
— O que aconteceu? Por favor, me conte.
Ouço-o suspirar.
— Guilherme… Você sabe que meu pai é o diretor do
CADME?
Balanço a cabeça, negando. Não fazia qualquer ideia daquilo.
Eu mal conheço os grandes daquele hospital, somente a Diretora
Adjunta, Dra. Lethícia, foi quem fez a entrevista e quem conversou
comigo na contratação.
— José Antônio Marques é meu pai e Diretor Geral do
CADME. Ele estava me cercando já há alguns dias… e semana
passada não foi diferente. Só que dessa vez ele tinha um trunfo: a
aprovação de toda a administração do hospital em me apresentar
como sucessor. Com isso, fui obrigado a viajar para reuniões,
encontros sociais, palestras… — E me afasta de seu peito, para me
encarar nos olhos. — Ele apareceu decidido a voltar a me infernizar.
Ele me prendeu por praticamente 24 horas do tempo que estive
fora. Por isso não consegui falar com você. Não estava te evitando.
Eu juro.
Suas duas mãos envolveram meu rosto e ele me puxa,
colando sua boca na minha, me surpreendendo. É um beijo
desesperado, cheio de saudades e desejo. Quando nos separamos,
meu coração não dói mais.
— Em toda a minha vida, ninguém nunca mexeu comigo tanto
quanto você a sacode, Guilherme. — Pegou em minha mão e a
levou à sua virilha. Para minha surpresa, ele estava duro feito rocha
e foi somente com um beijo. Seus olhos escureceram e queimavam
de desejo. — Meu corpo só reage assim por você. Nunca haverá
outra pessoa. Estou rendido desde o primeiro dia que o vi. Me
perdoe por tê-lo magoado.
Ouvi-lo dizer aquilo faz meu coração derreter. Aquela era sua
forma de se desculpar. Não imaginava que ele estivesse tão
envolvido comigo quanto eu estava.
Me movo, subindo em seu colo, e ele me beija intensamente,
fazendo meu corpo virar papa em seu colo, a crise sendo esquecida
por seu toque, cheiro e sabor. As mãos de Saulo passeiam pelo
meu corpo e me queimam. Eu o puxo pela camisa, querendo cada
vez mais dele, meu pau fica tão duro quanto o dele, até que ele se
move, me tirando de seu colo, me surpreendendo.
— Vamos para o banco de trás — fala com a boca ainda
colada à minha.
Me afasto de seu corpo contrariado e meio chocado.
— O que? Você quer mesmo fazer…
— Agora — diz, a urgência proeminente em sua voz.
Pulo para o banco de trás, sem perder tempo com discussões,
enquanto ele abre o porta luva e retira algo de lá. Eu sento, arranco
meu tênis, abro a bermuda e a retiro junto com a cueca.
Saulo pula para o banco de trás com um preservativo na boca
e um tipo de sachê de alguma coisa nas mãos, senta, abrindo o
cinto e abaixando as calças até os joelhos.
Ver seu pau rijo, me aguardando, enche minha boca d'água.
Acompanho, vidrado, Saulo alisar lentamente o próprio membro, seu
polegar passeando pela cabeça sem pressa. Sequer percebo que a
minha própria mão fazia o mesmo em meu membro.
— Vai ficar só olhando? — pergunta, me tirando do transe. Ele
desliza a camisinha pelo membro depois rasga um pedacinho do
sachê. — Vem cá.
Não precisou pedir duas vezes. Me movo para seu colo,
sentando de pernas abertas e no processo bato com força a cabeça
no teto do carro.
— Ôh, porra… — sussurro, esfregando o local da pancada.
Era quase ridícula aquela situação.
Saulo segura um riso.
— Calma… nunca fez isso em um carro? — Nego com a
cabeça. Ele passa a roçar seu membro em minha bunda, sem
penetrar, me enlouquecendo. — Certo. É só ir com calma, sem
movimentos bruscos e precisa se segurar, entendeu? Sem barulhos.
Concordo com a cabeça, mas quando sinto um de seus dedos
úmidos me penetrar, tive que morder a mão para não gemer alto.
Sua boca passeia pelo meu pescoço e eu começo a me amaldiçoar
por não ter tirado a camisa. Empurro-o e começo a abrir sua camisa
social. Porra, ele iria ficar totalmente amarrotado.
— O que…
— Para não sujar — digo ainda preocupado, abrindo os botões
da camisa social.
Ele sorri e move mais um dedo para dentro de mim assim que
chego no último botão, me fazendo arfar de prazer.
— Porra, Saulo…
Ele ri novamente.
— Meio cedo para falarmos de porra.
Tento não corar ouvindo aquilo e choramingo quando ele
começa a colocar e tirar seus dedos de dentro de mim.
— Cacete… puta que pariu… — arfo, desesperado. Eu queria
gritar, ter que me manter calado era a pior coisa da vida. Em
compensação, só aumentava o meu tesão.
— Precisaremos rever esse seu vocabulário… Você fica cada
vez menos educado quando está de pau duro. — Me provoca,
sussurrando em meu ouvido e, em seguida, morde minha orelha.
Minha única resposta são gemidos baixos e ininteligíveis até
mesmo para mim. Meu cérebro havia virado mingau quando sinto
seus dedos me abandonando e finalmente anuncia:
— Vou entrar…
Sério? Já era para estar dentro.
Uma de suas mãos me segura pela cintura, a outra em minha
bunda, me posicionando, e quando deslizo para baixo, sentindo seu
pau entrar dentro de mim, vagarosamente, ambos soltamos um
gemido rouco. Não me movo. Permaneço parado, de olhos
fechados, me adaptando, respirando fundo, nariz a nariz com Saulo.
— Olhe para mim, Guilherme — pede e obedeço, abrindo os
olhos.
Me deparo com aqueles olhos escuros que me sugam feito um
buraco de minhoca no espaço. Eles brilham de desejo, luxúria e
algo mais que eu não entendo. Abraço-o pelo pescoço, beijando-o
sofregamente e, em seguida, começo a cavalgá-lo sem fazer
movimentos muito bruscos, do jeito que me pediu. Aquela posição é
tudo, vai tão fundo em mim que me enlouquece. Não existe mais
mundo ao nosso redor, somente ele e eu, em nossa bolha particular
de luxúria e êxtase. Saulo rosna em minha boca, seu quadril
movendo, investindo para dentro de mim conforme eu também me
movimento. Tudo à minha volta gira, o clímax envolve meu corpo.
Quando ele pega meu pau, pressionado entre nossos corpos e
o aperta, sinto meu corpo se contrair completamente, se rendendo
em definitivo ao prazer.
Porra, eu vou gozar.
Aperto meu abraço e escondo minha cabeça em seu pescoço
enquanto Saulo estoca em mim com um desespero arrebatador.
Meu corpo se entrega a ele. Uma descarga elétrica passa por cada
centímetro de mim, embaçando minha visão e só tive tempo de
colar novamente a minha boca à dele, abafando meu gemido
enquanto gozava entre nós.
Saulo rosna mais uma vez, estocando rápido demais,
estendendo meu próprio gozo até ele mesmo se render, estremecer
e gozar jogando a cabeça para trás, respirando fundo. Encosto
minha testa em seu peito, a respiração rápida, o corpo suado e
melado.
Não quero sair dali. Não quero me afastar mais dele. Não
posso mais.
Como se tivesse ouvido meus pensamentos, os braços de
Saulo me envolvem, me mantendo ainda mais perto dele. Ouço
seus batimentos descompassados e fecho meus olhos, me
deliciando com aquele som.
Eu acho que o amo.
Apago o pensamento em seguida. É cedo demais para
imaginar isso, preciso só curtir o momento e deixar acontecer.
— Te sujei… desculpe…
Sinto seu corpo estremecer com uma risada entre a respiração
cansada.
— Quer ir para minha casa? — sussurra tão baixo que erguo a
cabeça rápido demais, muito surpreso, acreditando que não tinha
ouvido direito.
— O-o que disse?
— Perguntei se quer ir de novo, para minha casa.
Estreito os olhos encarando-o e não acreditando no que ouvia.
— Está me dizendo para matar o trabalho, Saulo Marques? —
Digo cauteloso. Trabalhamos com vidas, não dava para “matar o
trabalho”, mesmo estando atrasados depois do que fizemos.
Ele ri, jogando a cabeça para trás.
— Não, Guilherme, não agora… Depois do plantão. O que
acha?
Meu peito se aqueceu com um calor tão gostoso que tenho
vontade de chorar novamente. Ele me quer na sua cama. Sorrio
com o pensamento.
— Vou adorar.
As horas passam voando no plantão. Durante o intervalo,
decido subir e visitar Saulo em sua sala, lhe fazer uma surpresa.
Passo pela cantina e compro uma fatia de bolo de chocolate para
levar para ele. Tudo vai bem até eu ver um murmurinho quando
chego em seu andar. Algumas pessoas se aglomeram no corredor,
olhando para uma parte específica.
— O que houve? — pergunto, curioso, ao me aproximar.
— Discussão. E das brabas. — Um enfermeiro que não
conheço responde.
Então ouvimos um bater de boca abafado.
"Você não pode exigir nada!”
Não reconheço a voz e volto a encarar o enfermeiro.
— Familiar de algum paciente?
— Que nada… é… — Mas ele para de falar quando a porta da
sala de Saulo se abre.
A maioria tenta correr, fingir que estavam fazendo alguma
coisa, outros permanecem parados, observando, assim como eu.
Um homem grisalho, que deve ter em torno de 60 anos, usando um
terno que parece ser mais caro que a casa da minha mãe, sai da
sala de Saulo, batendo a porta atrás de si. Ele para e encara os que
ficaram para fofocar e eu estou bem no meio.
— O que estão fazendo aqui?! — grita totalmente alterado. —
Voltem aos seus trabalhos!
Na real, não ficou uma viva alma. Todos correram para seus
afazeres, menos eu. O homem ficou de frente pra mim e senti uma
certa familiaridade com sua postura. Queixo quadrado, olhos negros
e sérios. Ele franze a testa. Faço o mesmo, encarando-o. Ele não
me intimida, mas a curiosidade e a familiaridade me deixam
intrigado.
Por que eu tenho a impressão de conhecê-lo de algum lugar?
O homem anda a passos lentos em minha direção. Permaneço
parado, pois ele havia acabado de sair da sala de Saulo e eu
preciso entrar lá. Convenhamos, entrar carregando um bolo daria
muita bandeira. Começo a andar em sua direção sem pressa e
passamos um pelo outro. Ele é alto… tão alto e sério quanto…
Saulo?
Pisco, sacudindo a cabeça. Não, não é minha imaginação.
Olho para trás e vejo-o dobrar o corredor em direção aos
elevadores. Paro à frente da porta da sala, dou duas batidas e abro
uma fresta. Saulo está sentado em sua cadeira com uma das mãos
na testa, massageando a têmpora. Seja o que for que aconteceu,
deve ter sido grave.
— Dr. Saulo?
— Vá embora. Seja o que for, não estou podendo falar agora.
— fala, virando a cadeira, ficando de costas para mim.
Entro e fecho a porta.
— Eu só trouxe um doce para melhorar seu dia — falo,
andando em sua direção, erguendo o bolo.
Saulo vira a cadeira e me encara. Seu rosto perde a expressão
de fúria ao perceber que era eu quem falava com ele.
— Desculpe. Eu realmente… Não posso…
— Relaxa, querido — falo, já de frente a sua mesa. Coloco o
bolo diante dele. — Só vim deixar isso aqui.
Ele encara o bolo de chocolate e percebo que seus olhos
suavizaram.
— Obrigado.
Abro um pequeno sorriso para ele. Aquela briga, de fato, o
atormentou. Se aquele homem for quem eu acho...
— Antes de eu ir… — começo a falar. — Eu só queria te
perguntar se…
— Sim. — responde, sério, me cortando.
— Mas você não sabe o que eu vou perguntar. — Tento
brincar, porém Saulo somente me observa calado. Ele não estava
para brincadeiras.
Oh merda. Então aquele era mesmo o pai dele.
Concordo com a cabeça.
— Certo… Só me responda mais uma coisa e vou embora:
ainda quer que eu vá pra sua casa?
Saulo se ergue segurando um maço de cigarros nas mãos.
— Nada mudou — responde, abrindo a janela depois de
colocar um cigarro na boca e acender.
Merda. Eu mal o via fumar e tinha consciência de que só fazia
isso quando a cabeça ficava a mil.
— Certo… Faremos assim: vou te esperar na esquina com a
Rua Líbano, tudo bem? Não quero te dar mais problemas.
Saulo apenas concorda com a cabeça com o cigarro na boca e
saio fechando a porta atrás de mim. Tinha consciência de que seria
perigoso ir para o carro dele no estacionamento com o pai, diretor
da CADME, o cercando daquela maneira. Então, esperá-lo em uma
esquina longe daqui não me parecia uma ideia muito ruim.
Bem… Eu implorava aos céus para não estar errado.
Saulo me buscou no lugar combinado e, assim que entrei no carro,
saiu em disparada antes mesmo que eu terminasse de fechar as
portas. O encarei surpreso com aquela atitude, seu rosto era uma
máscara congelada de seriedade, que me fez permanecer calado
quase a viagem toda.
Depois de um tempo, estávamos parados em um sinal na orla
de Copacabana, vejo seu telefone em cima do porta objetos perto
do câmbio, ou seja lá qual for o nome daquilo, acender e vibrar.
Saulo ignora a ligação.
— Você não vai atender?
Ele permaneceu calado encarando a estrada, ao acelerar, eu
me estiquei para ver o nome na tela.
— Quem é Rogério? — pergunto, alheio a ele ainda,
encarando a tela e vejo sua mão pegar o aparelho e atender
imediatamente.
— O que você quer? — diz, sua voz sem qualquer emoção, o
que me deixa bem preocupado. Principalmente por atender a
ligação ainda dirigindo. — Estou indo pra casa. Não… — De repente
o pego me olhando de soslaio, em seguida seus olhos voltam
rapidamente para a pista. — Não estarei sozinho. Sim… Agora?
Saulo volta a me encarar e isso me faz perguntar quem raios
era esse Rogério e por que caralhos esse médico voltou a dar uma
de misterioso, me encarando como se eu estar ali não fosse uma
boa ideia?
Será que era algum ex? Alguém do passado dele?
Porra, a ideia de saber ou sequer imaginar que houve um boy
anterior na vida de Saulo me faz fritar naquele banco. Estou lutando
para não morrer de ciúmes com aquela conversa monossilábica
sem nexo ou enchê-lo de perguntas que, com certeza, poderiam
gerar brigas entre nós dois.
— Certo — disse depois de um momento calado, desligando
meu surto interno e atraindo minha atenção. — Eu entendi, merda.
Venha, estou próximo de casa.
Ainda o encaro com a cabeça fritando de questionamentos
absurdos e que provavelmente ficariam sem resposta e o vejo
desligar o aparelho, jogando de volta ao porta objetos do carro.
Engulo a seco, me preparando para perguntar, sabendo que pode
ser a pior coisa que faria e no momento que abro a boca, ele diz
ainda encarando a pista:
— Um amigo está indo para minha casa. — Não tenho como
não me surpreender. Desde quando esse homem tinha amigos?
Amigo? Mesmo? Quero questionar, mas Saulo continua a falar, não
me dando qualquer chance. — Ele está investigando sobre o desvio
de medicamentos que está ocorrendo no CADME.
Aquela informação me pega de surpresa.
— Não sabia que estavam fazendo investigação sobre isso…
Achei que seria algo interno.
O carro começa a diminuir a velocidade para virar em uma rua
onde seguiríamos para a lagoa Rodrigo de Freitas.
— A direção do hospital ainda não sabe disso. Eu que tomei a
iniciativa por conta própria.
Estreito os olhos para Saulo que agora encarava carrancudo a
pista enquanto dirigia. Aquilo não parecia ser nada bom. Do que
será que ele estaria desconfiando para fazer algo escondido de seu
próprio pai? Seria esse o motivo da discussão em sua sala mais
cedo? Queria fazer essas perguntas, mas a merda toda era: eu
tinha direito de saber o que se passava naquele hospital? Talvez
não. Talvez o assunto fosse algo que só dizia respeito a ele ou a
família dele. Sendo assim, permaneci calado, a mente cheia de
perguntas, até chegarmos à sua casa.

Logo que entramos em seu apartamento, corri para o chuveiro.


Precisava de um banho libertador, já que um dos pacientes da
emergência acabou vomitando em mim mais cedo. Mesmo limpo,
ainda sentia o cheiro azedo. Só mais um dia no paraíso, pensei
sorrindo enquanto a água quente batia em minhas costas, relaxando
minha musculatura. Nunca reclamei do meu trabalho, pelo contrário,
eu adorava o que fazia.
Desligava a água do chuveiro quando ouvi ao longe a
campainha da casa tocar e, segundos depois, alguém falar alto. Tão
alto que, por um momento, achei que estivesse brigando. Seria o tal
amigo de Saulo? Me sequei o mais rápido que pude e coloquei uma
blusa de manga, uma bermuda e abri devagar a porta do banheiro.
— Eu estou te falando, cara. O que temos é muito pouco —
disse a voz que eu não conhecia. — Sem o grampo não terei como
saber se ele tem algum envolvimento.
O dono da voz seria o tal Rogério?
— Certo… e como pretende fazer isso? — Foi a vez de Saulo
falar.
— Tenho meus contatos e meios. — O outro homem voltou a
dizer. — Dessa forma vamos descobrir quem é o interceptador e, de
quebra, quem está desviando de dentro toda a medicação. Tudo
aponta nessa direção. Temos o registro de que a mercadoria chega
ao hospital, é recebida, conferida e os documentos assinados pelo
estoque para seguir na distribuição, mas e depois?
Houve um estranho silêncio na sala. O cara não fala mais alto.
Abri mais a porta e saí a passos lentos e cuidadosos para não fazer
barulho. Do corredor eu podia ver a porta de entrada e parte da
bancada, mas não conseguia ver a sala.
Eu estava no limite do corredor, quase me esfregando na
parede oposta para tentar olhar para a sala sem ser visto. Assim
que entraram no meu campo de visão, percebi que ambos estavam
sentados no sofá. Saulo encarava o chão sério, os cotovelos nos
joelhos e coçava a barba com uma das mãos enquanto o homem
negro, que permanecia de costas para mim, voltou a falar.
— Olha… — Começou cauteloso. — Eu sei que é difícil e que
ele é seu…
Saulo o interrompeu, se levantando.
— Faça. — Sua voz estava dura e sem emoção, isso me
lembrava a sua versão que conheci quando cheguei ao CADME. —
Quero acabar logo com isso. Só faç… — Mas não terminou de falar,
pois assim que se virou, me viu.
Merda. Pego no flagra. Não sabia onde me enfiar com o
flagrante.
— Não precisa ficar ouvindo do corredor, Guilherme.
Dei um passo para dentro da sala com a cara queimando de
vergonha.
— Desculpe... não era minha intenção.
Foi aí que vi o homem que acompanhava Saulo se levantar do
sofá e ficar de frente a mim. Usava calça jeans escuro, uma blusa
preta do Alice in Chains e uma jaqueta de couro em pleno calor de
38ºc no Rio de Janeiro. Ele tinha olhos verdes tão claros que, por
um momento, acreditei que fossem de vidro. Rosto oval, a cabeça
raspada e boca carnuda. Era muito bonito, estilo modelo de revista,
sem falar que tinha um porte atlético invejável.
— Então… esse é o Guilherme? — disse abrindo um largo
sorriso e, dando a volta pelo sofá, caminha até a minha direção,
com a mão estendida. — Eu estava ansioso para conhecer o
carinha que derrubou aquela muralha de gelo. — E aponta Saulo
com o polegar da outra mão livre. — Ele é um chato, eu sou muito
mais legal. Prazer, sou Rogério Machado, investigador de polícia.
Meu cérebro congelou. Ele era um policial? E, o mais
importante, Saulo falou de mim para ele?
Peraí, quando isso?
— Muito prazer… Eu acho. — Estendo a mão para
cumprimentá-lo e assim que ele a pega, me puxa para um abraço.
— Saulo fala muito de você, sabia?
Ele fala?
— Menos, Roger. — A voz de Saulo nos atrai e nos viramos
para ele. — Não precisa ficar agarrando o garoto assim.
— Tá com ciúmes, é? — Seu amigo fala, jogando o braço por
cima do meu ombro e eu permaneço congelado no lugar, sentindo-o
jogar um pouco do seu peso sobre mim.
Saulo fala de mim para alguém? E agora está com ciúmes? O
quê? O quê?!
— Cala a boca. — Saulo responde caminhando até a cozinha.
Rogerio dá uma gargalhada.
— Estou só brincando. — E se vira para mim. — Porra, você é
bonito mesmo… E tão jovem! Tem o quê? Dezenove? Vinte anos?
— Vinte e quatro — respondo meio constrangido com a
situação, encarando o chão. Minha cara deve estar na cor vermelho-
tomate.
— Isso o que você está fazendo se chama assédio, Roger. —
Saulo volta a falar e quando o vejo, está tirando uma jarra de suco
da geladeira. — Como policial deveria saber muito bem disso. Vai
assustá-lo dessa maneira.
— Ah, que isso. Desculpe — diz se afastando um pouco de
mim e, depois, colocando as mãos em meus ombros. — Não era
minha intenção. É que eu realmente estava empolgado em lhe
conhecer.
Empolgado, é? Estreitei meus olhos. Tinha algo ali que ele não
estava me contando.
— E o que o Saulo disse exatamente de mim para você? —
perguntei, tentando não me exaltar com a minha curiosidade
batendo no teto. Precisa saber disso.
— Ah! Que você é… — Começou, mas parou de repente
olhando para a cozinha acoplada onde Saulo estava.
O quê? Sou o quê? Continua!
Todavia, ele não continuou, pois sua expressão
surpreendentemente mudou de relaxada para aterrorizada em
questão de segundos, os olhos quase saltando das órbitas e se
afastou de mim dando dois passos para trás, as palmas das mãos
erguidas em rendição.
— Ah… bem… Oh.meu.Deus… — disse olhando um relógio
imaginário em seu pulso, fazendo uma firula, pois era perceptível
que fugia do assunto. — Olha só a hora!
Me virei para encarar Saulo no intuito de tentar entender que
merda era aquela, porém a criatura bebericava seu suco de laranja
como se nada tivesse acontecendo.
Tá de sacanagem. Que raio estava acontecendo ali? O que ele
fez, afinal?
— Foi um prazer te conhecer, Guilherme! — Falou Rogério,
que foi até o sofá, pegou uma mochila preta e um capacete de moto.
Ele estava mesmo indo embora?
O quê? Não… Não pode me deixar aqui assim sem essa
informação.
— Mas… mas…
— Vou indo nessa… — falou passando correndo por mim em
direção a porta, onde parou com ela aberta e se virou para Saulo. —
Cuzão!
O policial bateu à porta correndo no mesmo momento em que
uma maçã se espatifava no lugar onde ele estava, segundos atrás,
o que me surpreendeu. Sabe o termo "fugindo pela tangente”? Era
exatamente isso que o investigador tinha feito naquele momento.
Aquela era a primeira vez que via Saulo ter algum tipo de
amizade de verdade com alguém. Rogerio deveria ser uma pessoa
de confiança para que ele ficasse relaxado dessa maneira e isso me
deixou muito curioso quanto a vida do médico fora do CADME.
Permaneci parado encarando a porta da sala fechada, sem a
resposta que tanto queria, me causando uma frustração e uma raiva
terrível.
— Mas que porra foi… — falei me virando, mas parei assim
que dei de cara com Saulo parado diante de mim, me olhando
intensamente. — essa…
Não consegui completar o raciocínio com aquele homem tão
próximo. Engoli a seco, ansioso pelo que poderia acontecer.
Ei! E aquela merda toda que Rogério disse? Vai desistir
agora? Para de ser um tarado e se concentra! Uma vozinha
cochichava em meu ouvido enquanto outra, mais safada, dizia:
Esquece essa merda e beija logo esse homem! Eu sei que você
quer isso! Porque EU quero!
Não vou negar que estava mais propício a ouvir a segunda
voz, a mais pervertida, mesmo ciente que a primeira voz tinha
razão. Eu precisava de foco, concentração.
— Ia perguntar alguma coisa? — ele perguntou e foi aí que
meus olhos colaram naqueles lábios.
A boca de Saulo curvou em um sorriso malicioso e ele passou
a língua pelo lábio superior, produzindo uma reação imediata em
meu corpo. Porra, ele não está fazendo isso!
— V-você e Rogério são amigos… — murmuro tentando voltar
ao assunto inicial, entretanto suas mãos agarram minha camisa, me
puxando para um beijo delicioso e devorador que tinha a porra do
poder de fazer meus pensamentos escorrerem para o ralo do
esquecimento.
Aquele médico tinha sim experiência em fazer alguém mudar
de assunto da mesma forma que tinha ao cuidar de um paciente no
hospital. Não percebi que estava sendo empurrado até sentir a porta
da sala nas minhas costas. Mãos ágeis puxavam minha roupa e
gemi sob sua boca quando as senti bem quentes deslizarem pela
minha pele, meus questionamentos esquecidos pelo seu toque.
Saulo era uma brisa fresca no final de um dia abafado
enquanto eu… podemos dizer que sou como uma tempestade de
verão. Acho que poderia dizer que somos uma combinação um
tanto estranha, quase inusitada, mas não dizem por aí que os
opostos de atraem? A calmaria dele conseguia conter o temporal
dentro de mim e isso me encantava profundamente.
Entretanto, ali, naquele momento, não era a sua brisa suave
que eu sentia e sim um vento quente que me fazia querer derreter
em seus braços.
Que filho da mãe maravilhoso e gostoso pra ca…
Saulo moveu sua boca pelo meu pescoço e sugou minha pele,
me arrepiando por inteiro e acho que o nível de oxigênio da sala
diminuiu absurdamente pois eu não conseguia mais pensar. Suas
mãos apertavam minha cintura com força e senti meu pau vibrar
duro e gotejante dentro da minha bermuda.
Quando minha sanidade já havia desaparecido e eu estava
cem por cento disposto a arrancar minha bermuda e deixa-lo
penetrar em mim sem qualquer tipo de vergonha, sua boca soltou
meu pescoço e senti suas mãos abandonando minha pele.
O quê?
Saulo se afastou de mim e suspirou profundamente.
— Bem... já que não tem mais nada a me perguntar… vou
tomar um banho.
O QUÊ?
Pisquei incrédulo ao vê-lo sorrir para mim e se virar,
caminhando sem pressa para o corredor com as mãos nos bolsos e
assobiando como se nada tivesse acontecido. Ali entendi suas
verdadeiras intenções: me distrair o suficiente para esquecer
totalmente sobre o assunto, evitando qualquer pergunta.
Escorreguei pela porta caindo sentado encarando aquele
médico desgraçado caminhar como se nada tivesse acontecido, me
deixando na sala de pau duro e desesperado por uma foda. A
frustração foi tão grande que não consegui me conter.
— SAULO! — gritei, ouvindo seu riso ao entrar no banheiro.
Os dias seguintes são incríveis na companhia de Saulo. Para não
dizer as semanas que passei em sua casa. Ficar esse tempo ao
lado daquele homem afasta toda e qualquer lembrança ruim que
premeditou minhas crises. No trabalho, sempre que consigo uma
folga, fujo para me encontrar com ele ou apenas para observá-lo
trabalhar de longe. E foi assistindo-o trabalhar que entendi o quanto
ele ama o que faz, sendo um médico dedicado, competente e muito
gentil.
Desde a nossa reconciliação, nosso pseudo relacionamento
tem melhorado muito. Conversamos mais, nos conhecemos mais e
sempre que tenho oportunidade vou à sua casa, sempre a convite
dele, claro. Eu já tenho algumas coisas pessoais, como roupas,
cuecas e itens de higiene, lá. Sinto que estar com Saulo é muito
mais do que uma simples atração física.
Fico sempre ansioso pelas nossas trocas de mensagens às
escondidas. Sei que estou cada vez mais envolvido, que não
consigo mais pensar em outra coisa que não seja terminar o
cansativo plantão para estar com ele, na casa dele, na cama dele e,
de preferência, debaixo dele. Cada dia que passa, eu me descubro
mais ligado àquele homem.
Nos últimos dias, então, eu mal voltava para casa que morava.
O mais engraçado é que Alberto havia parado de perguntar ou me
cercar, para a graça do bom Deus. Nem mesmo quando eu aparecia
somente para pegar alguns objetos pessoais para ficar com Saulo.
Na verdade, não me cobrava mais nada e mal falava comigo.
Acreditei que hoje não seria diferente. Me sentia tão relaxado
trocando mensagens com Saulo, de frente ao meu armário,
marcando horário e lugar para ele me pegar que não percebi uma
presença a minhas costas.
— Você não tem mais casa? — Ouço a voz conhecida atrás de
mim e me sobressalto, desligando às pressas o celular.
Será que tinha visto? Há quanto tempo estava ali? Permaneço
de costas tentando controlar os batimentos dentro do peito. Não
quero sequer imaginar que ele tenha visto qualquer mensagem de
Saulo que isso já fazia minha cabeça explodir de preocupação e
medo.
— Está surdo, agora? Não vai me responder?
Aquela sua atitude me irrita e me viro guardando o celular no
bolso.
— Você agora fica bisbilhotando a vida particular das
pessoas?
Alberto me encara com desdém.
— Issonão vai dar certo, Guilherme — responde muito sério.
— Se eu fosse você, daria um fim nisso agora, para o seu próprio
bem.
Por um momento meu coração para de bombear sangue e fico
petrificado no lugar. Do que ele estava falando? Será que tinha
mesmo conseguido ler minhas mensagens? Tento não demonstrar
minhas emoções.
— Do que…
— Você me entendeu, Guilherme. — Me corta e me dá um
empurrão forte no ombro, me surpreendendo. Minhas costas batem
no armário. — Não vai se fazer de desentendido logo agora, porra!
Eu devolvo o empurrão com as duas mãos.
— Não tem nenhum direito de se meter na minha vida! Não te
devo nenhuma satisfação! Anda comendo merda, agora?
Alberto dá um passo e fica cara a cara comigo. Como somos
da mesma altura, eu não me intimido com a sua postura. Ele não se
atreveria a brigar comigo exatamente ali, no lugar onde
trabalhamos. Provavelmente ou o barulho da batida dos armários ou
dos gritos que estamos dando, alguns dos funcionários que estavam
no vestiário se aproximam.
— Estou te dando um aviso. Ou acaba com essa palhaçada ou
vai se arrepender.
Ele soca a porta do armário ao meu lado e, em seguida, se
afasta, empurrando as pessoas que pararam atrás dele. Quero
xingá-lo. Aquilo era uma ameaça? Sobre o quê? Por quê? Quando
foi que nossa amizade se tornou isso?
— Está tudo bem, Gui? — Um dos funcionários pergunta ao se
aproximar e concordo com a cabeça, tentando tranquilizá-lo.
Abro meu armário, pego minha mochila e saio para me
encontrar com Saulo, com aquelas ameaças martelando em minha
cabeça.

Quase uma hora depois, estou jogado no sofá branco e super


macio da casa de Saulo, de banho tomado, enquanto ele toma a
sua ducha. Toda aquela merda dita por Alberto explode em meus
pensamentos, tanto que não consigo clarear a mente. Jogo o braço
sobre o rosto tentando abafar aquela confusão até que, momentos
depois, sinto o sofá afundar ao meu lado.
— O que está te preocupando? — Ouço Saulo perguntar. —
Você não falou nada na viagem toda.
Suspiro. Não quero preocupá-lo com aquilo. Ele já tinha seus
próprios problemas para consumir na cabeça.
— Nada — respondo um pouco longe, perdido nos
pensamentos..
Tudo… penso.
Ele fica em silêncio por um momento e quando acho que
desistiu de falar, o ouço perguntar:
— Você mente agora, Guilherme?
Sugo o ar com a boca e passo a língua pelos lábios. Não sei o
que dizer. Quando foi que aquele homem aprendeu a me ler? Sinto
sua mão tocar meu braço e retirá-lo do meu rosto. Abro os olhos e
encaro suas írises negras me analisando. Eu percebo que,
estranhamente, seu rosto está limpo. Pisco, pensando estar vendo
alguma miragem.
— C-cadê a sua barba? — pergunto feito um idiota, ainda
chocado com sua aparência mais jovem. Sem a barba era como se
Saulo tivesse rejuvenescido uns dez anos.
— Não mude de assunto, Guilherme. Desembucha.
Mas não mudei porque eu quis, estava mesmo chocado com
aquilo, entretanto, começo a rir depois de ouvir as palavras usadas
por Saulo.
— Um cara formado em doutorado dizendo “desembucha” é
muito esquisito.
Entretanto, Saulo não está rindo comigo. Continua me
encarando e suspiro.
— Eu meio que discuti com o meu senhorio.
O que não é uma mentira. Mas aquilo não foi uma discussão…
foi uma ameaça. É como se Alberto soubesse de alguma coisa. Se
eu tenho a preocupação de descobrirem que Saulo e eu estávamos
juntos? Sim, eu tenho. Somente por causa dele, não por mim. Eu
sou gay assumido, não me importaria com nada que dissessem.
Mas é Saulo quem me preocupa. Ele está em uma fase de
aceitação e ser revelado assim pode foder totalmente com a sua
cabeça.
Saulo se endireita no sofá e me puxa para seu colo. Deito
minha cabeça sobre seu peito, me aconchegando.
— Pelo jeito nós dois tivemos alguns dias de merda — diz,
seus braços me apertando contra seu corpo.
Concordo com a cabeça. Ele, ao que parece, deve ter tido
outro desentendimento com seu pai e eu, com esse meu, agora
possivelmente, ex-amigo. Eu só quero ficar assim a vida toda,
agarrado a ele. Até quando teremos dias de merda? Na verdade,
me pergunto até quando estaremos escondidos dessa maneira feito
dois procurados pela CIA. Eu quero sentir como é pertencer a
alguém. Sair sem me preocupar com o que fossem falar, andar de
mãos dadas, ir a restaurantes como um casal de verdade.
Mas não somos um casal de verdade?
Não. Não enquanto continuarmos assim, em segredo.
— Quer conversar? — ele pergunta, calando minha mente.
O que realmente temos, Saulo?
— Bom… Primeiro, vou ter que procurar outro lugar para ficar.
Sinto-o se remexer.
— Por quê? O que houve com a casa que mora?
— Alberto — falo, cansado de tudo aquilo. — Foi com ele que
discuti. Ele é meu senhorio.
Sinto-o bufar, irritado.
— O maqueiro. Está me dizendo que mora com ele.
Uma afirmação. Fecho meus olhos. Eu não havia lhe contado
sobre aquilo?
— Sou inquilino. Ele me aluga um dos quartos. Não tinha onde
ficar quando cheguei aqui no Rio.
Depois de um silêncio ensurdecedor, Saulo dá um tapinha em
meu braço, me afastando e saio de seu colo. Acompanho-o se
levantar e caminhar até a janela, passando uma das mãos sobre o
cabelo.
— Não gosto dele. — Seu tom muda, encarando a noite à sua
frente.
— Ele não é má pessoa — rebato. — Só anda meio…
estranho ultimamente.
“Estou te dando um aviso. Ou acaba com essa palhaçada ou
vai se arrepender.” Sua ameaça ecoa por minha mente e esfrego as
duas mãos no rosto.
Saulo vira e me encara, com as mãos na cintura.
— Eu não confio nele.
Oh céus… Não consigo pensar com toda aquela merda
acontecendo. Poderia pedir a ele para ficar alguns dias aqui até
conseguir achar uma casa ou até ver com a Hana um novo lugar,
pode ser que minha amiga saiba de outra pessoa alugando um
quarto ou um kitnet.
— Então… Eu não… não quero mais ficar lá. Preciso
encontrar um outro lugar para alugar, pode ser um quarto ou uma
pousad…
— Fique aqui — diz, me cortando.
Ergo a cabeça rápido demais e me levanto do sofá. Meu
coração está dando vários pulos dentro do meu peito.
— O-O que disse?
Saulo vem em minha direção.
— Fique aqui. Venha morar comigo.
Minha garganta queima e um nó se forma. Eu ali, fodendo com
a minha cabeça, pensando em uma forma de não estragar tudo com
ele… e Saulo me manda uma dessas?
— Tem certeza, Saulo? — pergunto cauteloso. Aquilo parecia
ser um passo grande demais. — V-você tem mesmo certeza?
Saulo me puxa para um abraço.
— A única certeza que tenho é que eu quero você aqui
comigo. Saber que está morando com aquele homem… — Sinto-o
suspirar sob meus cabelos. — Ficarei mais tranquilo com você aqui.
Suspiro em seu peito, ouvindo seu coração bater. Meu sonho
se tornaria realidade. Eu não teria uma casa com Saulo, teria um lar.
Mas…
— E seu pai? Não vai descobrir sobre eu estar aqui?
Os pais dele poderiam atrapalhar a carreira que tinha no
CADME. Poderiam infernizá-lo. Eu poderia me tornar um estorvo.
Senti seus braços me apertarem.
— Isso eu resolvo, não se preocupe.
Não me preocupar? Essa era a última coisa que não faria.
Porque eu me preocupo sempre. Não quero ser um estorvo. Quero
ser um complemento…
Um companheiro.
— V-você… — Ouço-o dizer e volto minha atenção para ele.
— Você está bem comigo?
Hã?
Ergo a cabeça para encará-lo. Devo estar fazendo alguma
cara engraçada, pois Saulo solta uma risada curta.
— O que eu quero saber… é se você se sente feliz estando
comigo.
Feliz… Não só feliz. Eu amava estar com ele. Estar com ele
era perfeito. Um sorriso brota da minha boca e não consigo parar.
— Sim… — respondo, respirando seu perfume. — Sou sim. E
você?
Saulo esquadrinha meu rosto com os olhos. O que está se
passando naquela cabeça? Vejo-os marejarem e meu coração, por
um momento, se enche de amor. Ele se abaixa o suficiente para que
nossos narizes se toquem.
— É como estar no paraíso.
Sinto um aperto no peito, uma sensação boa de gratidão e
esperança... Me torno um turbilhão de sentimentos avassaladores, e
tudo se intensifica ainda mais quando ele cola a boca na minha.
Nossos lábios se tocando me dão a certeza do que é aquilo que
estamos vivendo:
Amor.
Mas aquilo é amor de verdade? Eu só sei que é algo que
jamais imaginei ou sonhei em sentir por alguém. Passei tantos anos
sendo o brinquedo de outras pessoas, passatempo de tantas,
finalmente eu estou sendo aceito. Pela primeira vez, me pedem para
ficar e eu quero ficar. Porque eu…
… o amo.
Minha perna bate em algo e sou lançado para baixo, caindo
em um lugar macio. Não tinha percebido durante o falatório em
minha cabeça, Saulo havia me arrastado para o seu quarto.
Estamos na cama, enroscados, nos beijando intensamente e eu não
quero soltar aquela boca. Arrancamos nossas roupas em uma
confusão de braços e pernas. Agarro-me a ele, desesperado para
senti-lo mais perto de mim, sobre mim…
Dentro de mim.
Saulo se afasta de minha boca e me sinto ofegante. Vejo-o
esticar o braço, abrir a gaveta do armário ao lado da cama e retirar
uma camisinha e o lubrificante. Ele observa tudo em suas mãos e
respira fundo. Observo-o, chocado, ao entregar aqueles itens a mim.
Congelo, sentado naquela cama. Imóvel.
Não pode ser.
Ele… Ele quer…
Quando ergo os olhos para encará-lo, vejo-o sorrir
serenamente para mim.
— Sua vez.
Ok. Ou retiraram todo o oxigênio da sala ou acho que esqueci
como é respirar, pois meu cérebro definitivamente parou de
funcionar com a falta dele.
— C-como? — balbucio incrédulo.
Saulo sempre foi o ativo de nossa “relação” e vê-lo fazer isso
me deixa chocado, assustado, muito, muito, muito excitado e ainda
mais apaixonado.
— Sua vez — repete, sem alterar sua voz.
Quero rir. Não por achar graça da situação, mas por não saber
como reagir àquilo.
— Você… Você tem certeza? — Não consigo tirar o tom
incrédulo de minha voz. — Você realmente quer isso?
Saulo para, como se pensasse sobre o assunto, e aquilo me
deixa em expectativa.
— Se refere a sentir você dentro de mim? — Seus olhos se
viraram para mim e eles brilhavam de desejo. — Então, sim.
CA.CE.TE
Ok, meu cérebro acaba de congelar e meu corpo sequer tem
um movimento. Não sei como reagir. Aquela era uma versão de
Saulo que desconhecia totalmente e desperta em mim uma criatura
faminta que sequer imaginava haver aqui dentro. Porra, foder Saulo.
Eu ia… ia? Caralho…. estar dentro dele será o inferno e o paraíso
ao mesmo tempo. Cara… eu sempre fui o passivo. Amava ser o
passivo desse homem delicioso, porém com esse passo que Saulo
queria dar… Nunca sequer cogitei tal coisa.
Digam que isso não é um sonho!
Ainda estou processando aquela informação quando Saulo se
deita me puxando para ficar por sobre ele. Respiro fundo e deixo
meus instintos trabalharem, pois se eu continuar focando nos meus
pensamentos não conseguirei me mexer.
Minhas mãos agarram seu membro e decido estimulá-lo para
acalmá-lo, pois sei que está nervoso. Porra... eu também estou!
Preciso mesmo é acalmar nós dois! Levo seu pau à boca e o
masturbo, passando a língua pela glande, capturando uma gota
perolada, enquanto minha mão sobe e desce por seu membro,
arrancando gemidos deliciosos dele.
Afasto a boca e mordo levemente sua virilha, erguendo uma
de suas pernas. Sinto-o retesar e volto a abocanhar seu pau,
subindo e descendo lentamente sobre sua extensão. Enquanto o
masturbo, uso a mão livre para abrir o tubo e passar lubrificante em
seu buraco. Saulo está tão concentrado no boquete que não
percebe o que eu estou fazendo até eu levar um dos meus dedos e
forçar a passagem de seu cu. Ele se agarra aos lençóis, travando.
Suspiro. Issoé normal, o nervosismo da antecipação. Preciso
ser paciente e ajudá-lo a relaxar para tornar as coisas bem
aproveitáveis.
— Querido… — falo, esfregando seu pau em minha boca. —
Relaxa para mim.
Sinto que seus músculos internos afrouxam e o penetro mais
fundo. Ele trava e relaxa logo em seguida. Ficamos nesse processo
até meu dedo estar todo dentro dele. Saulo respira fundo e, quando
movo o dedo massageando seu ponto G, sou presenteado com o
melhor gemido da minha vida. É algo diferente de todos os que já
havia me proporcionado. Um pouco engasgado, quase sofrido e
muito tentador.
Permaneço assim, estimulando-o e quando ele está totalmente
relaxado, decido penetrar um segundo dedo. Fazendo movimentos
de vai e vem sem acelerar ou ser lento demais, sinto-o gemer
enlouquecido e eu amo isso. Amo demais.
— Isso querido… continue… — falo, incentivando-o a se
entregar. — Vou colocar mais um.
Ele concorda de olhos fechados. O terceiro dedo escorrega
lento, abrindo caminho em seu cu apertado.
— Aaahhh… meu D-Deus… — Saulo geme e porra, estou
começando a ficar ansioso para estar dentro dele, mas preciso ter
calma, ser paciente.
Continuo estimulando-o e passo a dar pequenas investidas,
lhe dando palavras safadas de incentivo. Eu sei que está gostando
pois sinto ele começar a mexer seu quadril, ansioso para foder
meus dedos.
Muito bom.
Depois de um momento, tiro meus dedos de seu cu e ouço-o
protestar. Seguro uma risadinha. Rasgo a camisinha com a mão e a
coloco em meu pau sob o olhar atento de Saulo. Passo lubrificante
na mão e esfrego em toda a minha extensão, me masturbando para
que ele assista. Seus olhos não desviam em nenhum momento,
acompanhando todos os meus movimentos.
Eles brilham com ansiedade, nervosismo e luxúria.
Ergo suas pernas e me encaixo entre elas. Colo minha boca
na de Saulo e mergulho para dentro dele sem pressa, deslizando e
parando, tomando-o centímetro a centímetro em um processo lento,
paciente e muito gostoso.
Puta que pariu… como Saulo é quente e apertado e porra…
Seu cu está me pressionando.
Tão quente…
Eu estou totalmente dentro dele, parado, assimilando as
sensações quando o sinto me abraçar. Abro meus olhos e ele me
observa com tanto amor que meu coração se derrete. Ele está se
entregando de verdade para mim, total e completamente. Estamos
nos tornando um só ali, em mente, corpo, alma e espírito.
— Querido… — sussurro esquadrinhando cada pedacinho de
seu rosto.
Ele cola sua boca na minha e me permito mover dentro dele.
Um vai e vem sólido, lento e firme. Eu o sinto me sugar, me apertar
e me envolver. Saulo geme como se estivesse se perdendo. O som
está diferente do habitual, mais gostoso e delirante. Não penso em
mais nada além do homem debaixo de mim, quero ouvir mais, sentir
mais. Meus movimentos são lentos e muito cuidadosos. Eu sei que,
a qualquer segundo, me perderei dentro dele e quero isso. Desejo
com todo o meu coração.
Minha mente fica enevoada pelas incontáveis sensações das
quais sou submerso. Não há mais qualquer tipo de inibição ou
vergonha entre nós dois. Saulo geme cada vez mais alto debaixo de
mim como se implorasse por mais. Porra, eu vou me descontrolar.
Forço meu corpo ainda mais sobre ele, agora estocando com um
pouco mais de força. Eu sei o que fazer para que ele goze comigo,
então, para não prolongar mais, ergo seu quadril e começo a fodê-lo
sem piedade.
Saulo leva a própria mão ao seu pau, se masturbando sem
controle. Porra, o som de seus gemidos me tira a sanidade. Eu o
fodo rápido, quase desesperado pelas sensações que me
proporciona e não consigo parar. Ele está quente demais, apertado
demais e…
— Guilherme!
Seu chamado me obriga erguer meus olhos para encontrá-lo
rendido ao prazer quando seu pau expele o líquido perolado
exaltado pelo som do prazer de Saulo e aquilo explode feito vulcão
dentro de mim. Seu cu apertando meu pau sem dó.
— Porra… Saulo…
Digo seu nome enquanto jorro dentro dele, um gozo
espetacular no mesmo momento em que ele ainda se estremecia
embaixo de mim.
Caralho. Gozamos juntos. Porra, realmente gozamos juntos.
Saio de dentro dele, deixando meu corpo cansado e suado cair
sobre o de Saulo. A respiração ofegante, corações batendo
violentamente no peito. Segundos torturantes de silêncio, dos quais
só se ouviam nossas respirações, se passaram. Me sinto
preocupado, com medo de ter me empolgado demais.
— S-Saulo? V-você… está bem…? — pergunto preocupado e
me apoio em um dos braços para observá-lo, porém sou pego de
surpresa.
Saulo está sorrindo, seus olhos passeando pelo teto em uma
admiração sublime e encantadoramente linda.
— E-estou vendo… e-estrelas? — diz, ofegante, em um tom
quase incrédulo. — Hahahah… tem tantas delas. I-issoé quase fora
do normal. O teto ainda está aqui?
Meu peito se aquece com aquela revelação. Queria rir e chorar
vendo tudo aquilo. Saulo está mesmo encantado.
— M-meu corpo… — E leva a mão à testa respirando fundo.
— Porra… E-estou sem forças… acho que não… não consigo
levantar.
Dessa vez não consigo segurar o sorriso.
— Isso é bom.
Ele se vira e me encara.
— E-eu… devo me levantar?
— Acho melhor esperar até se recuperar. — respondo, o
admirando. Estava tão lindo que não conseguia parar de namorar
sua carinha de felicidade.
Saulo me observa sorrindo, satisfeito e lhe dou um selinho.
Eu te amo. Quero dizer, mas não o faço.
Não ainda.

Acordo com o quarto em uma leve penumbra. Não fazia ideia


de que horas eram. Será que dormimos demais? Há uma claridade
vindo da porta. Inspiroe percebo de soslaio uma sombra passar por
ela.
Saulo?
Um braço sobre mim, apertando minha cintura, me comprova
que Saulo está aqui na cama ainda.
Então quem…?
A sombra volta e percebo uma silhueta diante de nós, nos
observando.
Pisco, sonolento.
As luzes se acendem e queimam minha retina, me obrigando a
levar a mão ao rosto. Quando me acostumo à claridade e retiro a
mão do rosto, dou de cara com um homem parado, totalmente
vestido de preto, nos encarando com aparente nojo e reprovação.
Vejo-o erguer o braço e ele está segurando uma pistola automática.
Prendo a respiração, ao reconhecer quem está diante de nós.
Não... ele não tem culpa. Quero dizer, mas não consigo. Saulo
não tem culpa.
Me levanto tentando proteger o homem que amo quando ouço
o disparo e sufoco o grito.

Me ergo da cama esbaforido, o coração martelando no peito.


O quarto ainda está escuro. Olho para o lado à procura de Saulo,
mas ele não está mais ali. Me deixo cair de costas na cama,
tentando me acalmar.
Era um sonho. Um maldito e terrivel sonho.
Respiro fundo, esfregando as duas mãos em meu rosto,
querendo apagar aquele pesadelo da minha cabeça. Aquela
expressão, a arma, o tiro.
— Que porra…
Engulo a seco, buscando as lembranças de ontem à noite. Eu
estava sobre Saulo, tomando-o em meus braços. Sorrio. Aquele
homem era forte, conseguiu se recuperar rápido. Me levanto,
procurando no chão minha bermuda. A encontro sob o pequeno
sofá e a visto.
Será que Saulo está dolorido? Poderia ter me acordado.
Ando até a porta e a abro, mas paro ao ouvir vozes na sala.
— Não pode continuar com isso. — Alguém diz, muito
alterado, na sala. — É loucura!
— Você não tem direito de se meter em minha vida. Quantos
anos você acha que eu tenho? — É a voz de Saulo. Ele parece
cansado.
— Como ousa falar assim comigo? — A pessoa explode. —
Olhe para isso! Olhe bem para tudo isso! Acha que é bobagem ser
chantageado?
Chantageado?
Termino de abrir a porta, saindo do quarto e caminho
lentamente pelo corredor.
— Por que está preocupado com essas coisas? Não vai te
afetar em nada.
— Não vai me afetar? Você está realmente se ouvindo? Não
vê que eu estou preocupado com a sua reputação?! — Eu conheço
aquela voz, já ouvi gritar assim. Tento buscar na memória. — E pior!
No que isso pode trazer à reputação de nosso hospital! Temos o
nome da nossa família a zelar! Uma imagem a manter, Saulo!
Encaro a sala à minha frente e vejo Saulo caminhar lento em
direção à pessoa, usando uma camisa de manga e uma bermuda.
— Se te satisfaz, eu saio do CADME! Largo toda essa merda
para que você nunca mais se incomode com isso! — Fala, sua voz
grossa não demonstra qualquer outra emoção além de repulsa. —
Você não tem o direito de vir à minha casa e me ameaçar. Muito
menos dizer o que devo ou não fazer, pai.
Ouvir a última palavra de Saulo quase faz meus olhos saltarem
das órbitas.
Caralho… O pai dele está aqui. Puta que pariu. Se ele me ver
aqui… Cacete!
— Não pode falar assim comigo! Sou seu pai, Saulo Marques!
Isso não é admissível! Estou preocupado com a merda que você
está fazendo! O que nossos amigos vão dizer? O que nossa
família… Você não está raciocinando direito! Issoé… Isso…Eu não
consigo sequer imaginar…
— Então não imagine, pai.
— Você não está são, Saulo! Eu entendo que quando era
adolescente isso fosse curiosidade, mas agora? Você não tem mais
dezesseis anos! Isso é completamente inadmissível! É… é doentio!
— Inadmissível é você vir a minha casa me dizer o que eu
devo ou não fazer. Doentio é você ainda pensar que ainda estou a
sua sombra depois de tudo o que aconteceu. — Vejo Saulo
caminhar até a porta e abrir. — Por favor, vá embora.
— Você está me expulsando de sua casa?
— Estou pedindo educadamente.
Houve um momento de silêncio e vejo Saulo gesticular para a
saída.
— Você enlouqueceu? Posso acabar com a sua carreira! Sem
mim você não é nada!
— Pense e faça o que quiser comigo ou ignore quem está
fazendo isso. Eu não lhe devo qualquer satisfação da minha vida,
Dr. Marques. Nunca mais. As escolhas sempre foram minhas e não
suas. Agora saia!
Nesse momento, seu pai aparece em meu campo de visão, de
costas, usando roupas sociais escuras, carregando uma pasta
aberta enquanto guardava alguma coisa dentro dela e encarando o
filho incrédulo.
— Isso não vai ficar assim, Saulo. Ainda colocarei um juízo
nessa sua cabeça! Esse garoto não vai destruir meus planos e a
minha família!
E caminha para a saída, mas para assim que atravessa a
porta e se vira, pronto para dizer mais alguma coisa, porém não o
faz. Prendo a respiração quando nossos olhos se encontraram. O
reconhecimento que surge em seu rosto, misturado a uma
expressão de nojo, repulsa e ódio avassalador, faz com que eu
perca as forças das minhas pernas e me obriga a buscar apoio na
parede.
Dr. José Marques nada fala, sua fúria já dizia muita coisa e
nosso contato visual só é cortado graças a porta que é fechada.
Oh Deus… O que foi isso? penso tentando controlar a
tremedeira em meu corpo.
— Guilherme? — ouço-o me chamar e ergo meus olhos para
encontrar Saulo andando em minha direção. — Você ouviu.
Pisco, concordando. Era uma pergunta?
Saulo pára diante de mim, suspira e me abraça.
— Sua carreira… Saulo… o CADME…
Ele me aperta ao seu corpo.
— Esqueça isso. Nada vai acontecer. Não se preocupe.
Concordo, me agarrando a ele, mas o medo ainda está lá. Do
que pode acontecer com ele. Das ameaças que seu pai acabou de
fazer. A vida de Saulo é aquele hospital, ele ama salvar vidas. Não é
justo com ele, nem com nós dois. Porém, Saulo ainda está aqui
abraçado ao meu corpo, dizendo que tudo iria ficar bem. Ele
enfrentou seu pai por nós.
E isso só faz com que eu me sinta ainda pior.
No dia seguinte, abro os olhos sem muita energia para levantar da
cama. Não havia dormido direito naquela noite. Havia sido
acometido por um mal estar e uma sensação de que algo daria
muito errado. Tudo isso depois de assistir a discussão entre pai e
filho, além de ver Dr. Marques, o pai, me encarar com um ódio
assassino. Só lembrar de tudo isso faz com que a dor na barriga
volte com força. Ergo os olhos para encontrar Saulo, que está
pronto para sair usando suas roupas sociais, sentado ao meu lado
na cama e me observando.
A quanto tempo está ali?
— Bom dia… — digo, me sentindo ainda mais cansado.
— Você não dormiu essa noite — diz me observando
seriamente.
Me ergo, sentando na cama e levo as duas mãos ao rosto.
Não queria debater com ele. Me explicar. Inspiroprofundamente e
coloco um sorriso no rosto.
— Ah… é impressão sua — me levanto da cama, e antes que
conseguisse escapar para o banheiro, sinto sua mão agarrar meu
pulso.
Evito me virar para encarar Saulo. Sei que se eu olhar em
seus olhos, me sentirei culpado.
— Guilherme… — Ele começa, porém não continua. Aquele
momento parece uma eternidade, até que sinto soltar meu pulso.
Corro para o banheiro e me tranco lá.
Não demoro muito. Um banho rápido era o que precisava para
terminar de me despertar e encarar o dia de hoje. A maldita
sensação vindo com força sempre que pensava no pai de Saulo.
Saio do banho enrolado em uma toalha, volto para o quarto onde
me visto com uma calça jeans e uma blusa azul escura e depois
sigo para a sala, com a minha mochila nas costas, onde o médico já
está pronto me aguardando.
Quando que me vê, Saulo abre a porta sem dizer nada e
saímos em direção ao estacionamento. Entramos no carro e
seguimos toda a viagem para o CADME em silêncio, prontos para
encarar o que pudesse acontecer.
Assim que a BMW para no nosso ponto de encontro, coloco
um boné na cabeça e abro a porta. Antes que eu pudesse descer,
Saulo agarra meu braço me puxando de volta e colando sua boca
na minha, para minha total surpresa. Era um beijo de posse, quase
desesperado, me deixando sem fôlego. Quando se afasta, nos
encaramos.
— Sei que não dormiu essa noite porque está preocupado com
tudo o que aconteceu ontem. Não posso dizer que também não
estou, então… — Saulo pega minha mão e deposita algo em minha
palma a fechando. Ouço tudo surpreso. — Depois do trabalho, vá
para minha casa. O porteiro está avisado.
Abro a palma da mão para encontrar uma chave. Ergo os
olhos e Saulo tem uma expressão preocupada.
— Por favor, Guilherme. Nesse final de semana faremos sua
mudança. Então, não importa o que aconteça, vá para minha casa.
— Volto a encarar a chave tentando focar no que ele estava
dizendo. — Me ouviu, Guilherme? Vá para minha casa.
— E-está bem… — concordo e Saulo concorda com a cabeça
me soltando.
Desço do carro e ajusto o boné na cabeça andando pela
calçada quando vejo o BMW de Saulo passar por mim seguindo
para o hospital. Ouvir a preocupação em sua voz só faz com que
aquela sensação em meu estômago piore.
Assim que entro no CADME, vou direto para o vestiário e, para
meu alívio, não encontro Alberto. Ninguém ali me encara com
reprovação, parece tudo normal. Sou cumprimentado pela equipe e
começo a trabalhar na emergência normalmente.
Nos aproximávamos do horário do almoço e eu estava na
enfermaria, colocando soro em uma paciente, quando Hana surgiu.
— Ah! Você está aqui — falou quando se aproximou de mim.
— A Sra. Roberta está te procurando. Ligou pedindo para você ir até
a sala dela. Aconteceu alguma coisa?
A encarei por um momento.
— Não que eu saiba, por quê?
Hana cruzou os braços pensativa.
— Sei lá… ela não é de procurar a gente assim com
urgência…
— Então é melhor eu ir e não despertar a fúria dela né. Vai que
ela quer me remanejar de novo.
Hana tapou minha boca, no segundo seguinte.
— Vira essa boca pra lá! — ela sorriu, me soltando. — Vai que
eu cuido daqui. E não demora que eu quero almoçar cedo hoje.
Pisco para ela.
— Fechado gatinha.
A sala da coordenação ficava no segundo andar e assim que
chego, Roberta está sentada diante de sua mesa, encarando uma
prancheta, com uma expressão muito séria. Dou duas batidas na
porta, atraindo a sua atenção.
— Soube que quer falar comigo.
Ela sorri, mas seu sorriso não chega aos olhos.
— Sim… entre por favor e feche a porta.
Faço o que me pediu e me sento na cadeira em frente a ela.
— Bem… não sei por onde começar…
— Seja direta — falo dando de ombros.
— Certo… Guilherme, seja sincero comigo. Aconteceu alguma
coisa que eu não saiba? — ela pergunta. Sua expressão não me diz
nada.
A observo desconfiado.
— Sobre o que exatamente?
— Não sei… trabalho. Nos setores. Se desentendeu com
algum médico? Algum colega de trabalho?
Paro para pensar em Saulo e engulo a seco.
— Olha… não aconteceu nada. Estou trabalhando
normalmente.
Ela concorda e encosta na cadeira, suspirando.
— Não entendo — sussurra mais para si mesma. — Está
trabalhando bem e cumprindo seus plantões… É um dos meus
melhores funcionários… Que merda essa gente tem na cabeça?
Aonde ela queria chegar com aquilo?
— O que aconteceu, Roberta?
Ela empurra a prancheta com um papel que estava à sua
frente para mim. Encaro-a, sem entender, e pego para ler. É um
comunicado de dispensa. Eu estou sendo mandado embora do
CADME. Agarro o documento, incrédulo e começo a tremer.
— Por quê?
— Eu não sei… — Roberta fala, exausta. — Eu também
questionei, mas ninguém me explicou. O RH só disse estar
cumprindo ordens.
Ordens de quem? Mas aquele olhar cheio de ódio surge em
minha mente no momento que perguntei. Merda…
— Ah... Deus… — sussurro, sentindo meu corpo perder as
forças.
Quero chorar. Gritar. Explodir.
— Guilherme… aqui… Assine, por favor. — Vejo a caneta ser
empurrada em minha direção. — Gui, não fique assim. Olhe... vá
pra casa, esfrie a cabeça. Vou averiguar, fique tranquilo. Vou
descobrir porque estão fazendo isso, eu juro. Farei uma carta de
recomendação se for necessário.
Pego a caneta em cima da mesa e assino, puto e triste. Eu
amo esse lugar, amo meu trabalho e fui feliz aqui. Porra, eu lutava
contra a vontade de chorar. Saber que estou sendo expulso sem
qualquer razão, só por causa de um homem homofóbico.
Ergo-me, largando a caneta em cima da prancheta na mesa,
concordando com ela.
— Guilherme…
Ouço-a me chamar, mas saio da sala batendo a porta atrás de
mim. Eu estava sendo expulso do CADME. Será que Saulo sabe
disso? Será que imagina que seu pai havia assinado minha
demissão?
Corro em direção ao oitavo andar, para sua sala, entretanto o
neurocirurgião não está lá. Procuro-o em todo CADME, perguntando
a todos os médicos que encontro, mas ninguém sabe me informar.
Eu não faço ideia para onde Saulo teria ido. Não há nenhuma
operação marcada, nenhum paciente para visitar, nenhuma
emergência. Para onde teria ido? Pego o celular e ligo para seu
número, que cai direto na caixa postal. Eu queria gritar, socar
alguma coisa… chorar.
Volto, derrotado, para o vestiário e troco de roupa. Pego minha
mochila e saio do hospital sem olhar para trás, decidido a ir para a
casa dele, esperar por ele.
"Não importa o que aconteça, vá para minha casa." Sua voz
vem à minha mente e fico apreensivo. Era como se ele soubesse
que isso poderia acontecer. Tento novamente ligar para seu
telefone, mas todas as ligações caem na caixa postal, então decido
deixar uma mensagem no whatsapp.
— Saulo… olha… Não sei a que horas você vai ouvir isso…
Seu pai conseguiu me tirar do CADME. — As lágrimas se formam
em meus olhos e sinto um nó preso em minha garganta. — F-fui
demitido sem justa causa. Eu… Eu deveria ter desconfiado que algo
assim pudesse acontecer… — fungo e respiro profundamente. —
Sei que você me pediu para ir à sua casa, mas vou aproveitar que
ainda estamos em horário de serviço, passar no apartamento do
Alberto e pegar minhas coisas. Prometo que, de lá, vou para sua
casa te esperar.
Envio o áudio e guardo o celular na bolsa, seguindo em
direção a estação de metrô. Era algo simples e rápido. Pegar todas
as minhas coisas e seguir, sem me perder, para a Lagoa, para a
casa de Saulo e o aguardar. Depois, só depois, pensarei sobre o
que fazer em seguida.
Chego no apartamento uma hora depois que saí do hospital.
Abro a porta e vou direto para meu antigo quarto. Pego minha mala
do guarda roupa e começo a socar as roupas dentro dela. Vou ao
banheiro e pego todos os meus itens de higiene. Eu não tenho muita
coisa exatamente para facilitar minha mudança caso precisasse.
Coloco meus objetos pessoais na mochila e depois de conferir que
todas as roupas haviam sido retiradas do cabide, fecho a mala e
confiro se estou esquecendo alguma coisa no quarto. Arrasto a mala
saindo do quarto quando ouço a porta da sala bater.
— Guilherme.
Ouvir sua voz me fez parar. Ele era a última pessoa que eu
queria encontrar.
— O que você quer, Alberto? — pergunto, puxando a mala. —
Não deveria estar no hospital a essa hora?
— E deixar você ir embora assim, sem se despedir?
Paro de andar ao perceber que ele está bloqueando minha
passagem.
— Eu arranjei outro lugar para ficar.
Alberto concorda com a cabeça.
— Certo… E a multa pela quebra de contrato? Lembra? Você
deveria ficar aqui por um ano.
Suspiro. Realmente havia aquela cláusula no contrato. Eu
deveria pagar uma multa de 50% referente aos meses que não
ficaria. Isso consumiria mais da metade do dinheiro que receberia.
— Assim que receber a rescisão eu te deposito. Não sei se
sabe… mas fui demitido.
— Ahhh… demitido… — fala e não parece surpreso. — Por
isso sua cara não parece das melhores, não quer uma bebida
para…
Ergo a mão direita, fazendo o se calar.
— Desculpe Alberto, mas não. Agradeço pelos dias legais, por
ter me acolhido quando precisei, mas eu realmente preciso ir.
Ele abre passagem e puxando minha mala, passo por ele.
— Então quer dizer que vai embora para ficar com aquele
médico de merda que só te tratava feio um lixo humano? — fala e
eu travo no lugar, o coração batendo frenético em meu peito.
Merda! Merda! Merda!
A sensação ruim da manhã só piora, e de repente todos os
meus instintos gritam para sair dali. Porra, como ele soube? Ele nos
viu? Mas no momento que me virei para enfrentá-lo, sinto uma
picada no pescoço. Ergo a mão em desespero e ele se afasta.
— O que está fazendo? — pergunto, levando a mão onde senti
a picada. O encaro e vejo que em sua mão há uma seringa vazia.
O quê…?
— Não posso deixar você fazer isso comigo, Guilherme… —
Alberto começa a falar e, estranhamente, sua voz parece estar
vindo do fundo de uma garrafa vazia. Meu corpo está pesando e sou
tomado por uma estranha letargia. — Não posso permitir que me
deixe por aquele pedaço de merda. Eu cuidei de você. Eu te dei
uma casa. Te dei comida. Uma cama para dormir. Eu estive ao seu
lado, fui seu amigo. Mas eu queria ser mais do que só a porra de um
amigo! Eu me entreguei pra você!
Do que está falando?
Tento dar um passo para sair dali e a sala gira. Sou tomado
por uma vertigem que mal consigo me manter de pé.
— Quando ele me disse que iria cuidar disso, eu pensei… não
vou deixar que o levem de mim. Ele iria te pegar na hora que
chegasse na portaria da casa do médico, Gui… Viu… Eu te salvei,
mais uma vez — fala, ainda parado, jogando a seringa no chão.
Estou me apoiando na mala para não cair, ouvindo tudo horrorizado.
— Como sempre fiz de tudo para ser o melhor, para que me
olhasse… Mas no final, você prefere aquele médico incubado filho
de uma puta! Acreditou mesmo que eu aceitaria isso numa boa?
Alberto era um louco, queria sair dali, fugir, mas mal consegui
me mover. Até respirar se tornou difícil.
— O-o q-que fez c-comigo? — pergunto, sentindo meu corpo
pesar. Ergo a cabeça e o vejo sorrir, me analisando.
— O que faço sempre, meu querido… achou mesmo que iria
deixar meu passarinho voar?
O quê?
Tento andar e tropeço nas pernas, caindo de quatro no chão.
Meus membros não respondem, minha garganta se fecha. A sala
inteira está girando. Meus olhos querem se fechar, mas estou
lutando contra aquele terrível torpor.
— Ora, ora… — Alberto fala, se agachando para me ver. —
Sabe… era por causa disso que prefiro te dar com a bebida… o
álcool intensifica e disfarça os efeitos.
Álcool… Meu Deus. O entendimento vem feito uma bala
perdida em minha cabeça. As incontáveis bebidas nos bares, as
“noites dos meninos”, os dias que acordava de ressaca sem ter
bebido mais do que três copos, o chupão…
“Goza pra mim, beija-flor.” A voz vem a minha mente, e tudo se
encaixa de uma maneira que piora o pânico crescente em meu
peito.
Não…
O que você está fazendo comigo? Tento dizer, mas sinto
minha língua grossa. Não consigo pronunciar uma palavra sequer.
— Aahhh meu doce Gui… hoje você será meu… — diz
quando caio no chão e não consigo mais me mover.
Sua voz ainda está confusa demais para processar. Sei que
está falando mais alguma coisa, mas não entendo. Sinto uma mão
erguer minha cabeça e reabro os olhos pesados.
— Hoje é você quem vai me fazer gozar… Beija-flor.
Minha mente desliga de uma vez e eu apago.

Minha cabeça gira quando volto a consciência.


O quê… tento dizer, mas minha voz não sai. Ouço somente
um gemido sair de minha boca.
— Shiii… Eu estava esperando você acordar. — Ouço alguém
dizer. — Não está tendo graça fazer com você totalmente apagado.
Alberto?
Meu corpo ainda está pesado e meu cérebro está letárgico.
Sinto uma mão grande sobre meu peito e olho para cima. Ele me
observa sorrindo, suas mãos acenando na frente dos meus olhos.
— Toc toc. Tem alguém em casa?
Tento virar, sair dali, mas não consigo.
— Não acredito que não está sentindo nada, meu querido... —
Sei que está rindo, pois sua voz tem tom de riso e sua atenção se
volta para outra coisa.
Desço meus olhos para onde ele olha, descobri estar sem as
calças e o vejo me masturbando. Tento me soltar, mas não consigo
mexer minhas mãos. Meus braços estão acima de minha cabeça.
Olho para cima, as náuseas e enjoos me consumindo. Vejo-as
presas acima de minha cabeça com um tipo de fita adesiva. Minha
atenção é desviada para um abocath preso em meu braço para ele
injetar qualquer coisa direto em minha veia.
Quando volto minha atenção a Alberto, porém, ele não está
mais ali. Tento puxar minhas mãos, porém o enjoo retorna com
força. Meu sequestrador volta ao meu campo de visão e ergue
minha camisa.
— Não gosto de saber que aquele médico te tocou… Só eu
deveria te tocar… — Acompanho, horrorizado, sua boca passear
por meu abdômen. — Eu que deveria cuidar de você, Beija-flor…
Ele para e sinto uma queimação, ele está sugando minha pele,
deixando sua marca em meu corpo.
Não. Não quero.
Me solta.
Não consigo falar, tem algo dentro da minha boca que não me
permite; o efeito do que foi que ele injetou em mim ainda não
passou. Então era isso o que ele fazia comigo quando estava
grogue, mas por que eu não lembrava?
A droga misturada ao álcool…
— O que foi? Não gosta, Beija-flor? Eu sei que gosta… Seu
pau sempre fica duro quando faço isso... — fala, repetindo o
processo, mais uma, duas vezes. Depois me belisca, me arranha e
durante um outro chupão me morde com força, me fazendo gritar
com a dor, a voz abafada. — Eu sei que gosta, pois você sempre
goza pra mim…
Meus olhos enchem-se de lágrimas.
Alguém por favor… socorro…
Alberto coloca as mãos em minha cintura, arranca minha
cueca e começa a me morder com força perto da virilha. Não
consigo impedir que me toque. Suas mãos me causam nojo e
repulsa. Quero fazê-lo parar. Meu corpo está reagindo ao que ele
faz, mas não quero que reaja.
Não! Não sou eu!
Tento me sacudir e, estranhamente, consigo forçá-lo a sair de
cima de mim, o que acabou o irritando. Alberto se ergue com um
sorriso doentio e me desfere um soco no estômago. Outro no peito e
outro no rosto, fazendo minha cabeça girar.
Ele se levanta, em seu rosto há uma expressão de raiva
contida e o vejo caminhar até a mesa e voltar com outra seringa. Ele
injeta alguma coisa pela abocath direto para minha veia. Segundos
depois, o mundo volta a entrar e sair de foco, embrulhando meu
estômago.
Ele volta a me machucar e dessa vez sinto seus dedos me
invadirem, me queimando no processo. Grito de dor, mas o som
abafado somente permite que ruídos baixos saiam de mim.
Deus… vou ser estuprado e depois? Morto? E eu nem tive a
chance de dizer a Saulo que o amava. Que ele havia se tornado
meu mundo. Tento lutar para me livrar dessas mãos imundas.
Alguém por favor…
Eu imploro…
Saulo…
As lágrimas descem pelo meu rosto, não consigo mais conter
o pânico. Me sinto sufocado. Estou gritando sem forças para me
mover.
É quando ouço uma batida. Alberto deve ter se assustado pois
aquele homem doentio não está mais sobre mim, suas mãos estão
longe, para meu alívio. Ouço novamente algo bater de encontro a
uma superfície dura. Pisco. De onde vem isso? Ouço algo ser
derrubado e viro a cabeça na direção tentando ver.
Não sei se é sonho, se meus olhos estão me enganando, ou
se as drogas que aquele louco injetou estão me fazendo ver coisas.
Mas é o homem que amo que está ali, seu rosto congelado em fúria,
me encarando.
Saulo derrubou a porta e entrou na casa.
Ele veio!
Vejo-o saltar sobre Alberto e começarem uma briga violenta.
Pisco novamente e a sala sai de foco. A dosagem que Alberto
aplicou estava fazendo efeito, me impedindo de ver o que está
acontecendo devido à forte vertigem. Ouço grunhidos da luta no
fundo de uma sala. Estou tentando, lutando para me manter
acordado.
Mais gritos. Dessa vez não é Saulo. Conheço aquela segunda
voz, mas não consigo identificar.
Ouço passos. Dessa vez há muitas vozes.
Sinto muitas mãos sobre mim e entro em pânico, tentando tirá-
las. Quero-as longe de mim. Não quero mais ser tocado.
Chega.
Me solta.
Não quero.
De repente, todas vão embora e sinto o toque de duas mãos,
tão conhecidas, enlaçarem meu rosto. Meu corpo se acalma e só
consigo chorar de alívio. Ergo os olhos e vejo seu rosto embaçado,
sei que está preocupado pois ele está falando alguma coisa, mas
não consigo compreender, sua voz está longe demais. Sinto meus
braços afrouxarem, caindo por sobre meu corpo e o sinto me puxar
para um abraço.
Saulo está aqui.
Ele veio por mim.
Está aqui.
Aqui.
Fecho os olhos, minha cabeça em seu peito e respiro de alívio.
Quero falar, dizer que o amo, que estou feliz, porém meu corpo não
reage aos meus comandos. Me sinto tão cansado, dolorido,
machucado e a consciência tão longe que não consigo reagir a mais
nada. Preciso dormir e descansar.
Acabou.
E, ouvindo as batidas de seu coração acelerado se
distanciando aos poucos, me deixo ser tragado pela escuridão.
Quando volto a mim, primeiro vejo um teto branco. Percorro o lugar
com os olhos e percebo que estou em um quarto muito claro. Ainda
me sentia muito cansado, como se tivesse corrido uma maratona,
dolorido e muito enjoado. Observo o lugar e vejo que há cortinas
nas janelas, um sofá de dois lugares e a cama que estou é ampla e
bem espaçosa. Tenho uma vaga lembrança de já ter estado em um
quarto daquele, mas não me recordava, até ver o símbolo do
CADME em um quadro na parede.
CADME? Estou no hospital? Parece um dos quartos
particulares para os planos mais caros que eram reservados para os
pacientes importantes, como artistas e políticos. Tento me mexer e
sinto todo meu corpo protestar, o que me faz gemer.
— Hey! — Reconheço uma voz feminina e uma Hana de
cabelos verdes entra em meu campo de visão. — E aí, garotão?
Me esforço para dar um sorriso fraco ao ver minha colega de
plantão.
— O-oi… — Tento dizer, mas a voz não sai. Minha garganta
está seca e sinto minha língua pastosa. Tento passá-la nos lábios,
porém sinto uma ardência salobra.
— Como está se sentindo?
Como se um rolo compressor estivesse passado por cima de
mim... quero dizer, mas só consigo gemer. Percebo seus olhos se
encherem de lágrimas, porém Hana disfarça com uma tosse ao virar
o rosto por um momento.
— Q-quer água?
Concordo com um movimento leve de cabeça e todo o meu
corpo protesta. Hana sai do meu campo de visão e segundos depois
volta com um copo de água nas mãos. Ela pega um controle ao lado
da cama e aperta o botão, fazendo com que a cama possa me
erguer, me deixando inclinado. Minha colega de plantão leva o copo
aos meus lábios e bebo água quase sofregamente, como se minha
vida dependesse daquilo.
— Calma… — Hana diz sorrindo. — Beba com calma. Se
beber muito rápido vai enjoar e vomitar.
Depois de me sentir satisfeito, deixo minha cabeça cair no
travesseiro e sinto a vertigem me atingir com força.
— Descanse, meu anjo. A Dra. Lethícia logo virá te ver.
Dra. Lethícia Cabral, Diretora adjunta do CADME. Eu não a
vejo desde o dia que me recebeu junto com outros novatos no
primeiro dia de apresentação do hospital. A própria diretora adjunta
estava cuidando de mim? Mas e Saulo? Quero perguntar, saber
onde ele está, mas o cansaço está vencendo.
Por fim, concordo com a cabeça me rendendo, fecho os olhos
e deixo minha mente divagar. Quero lhe perguntar por Saulo, saber
onde ele está, o que fez depois de tudo, mas estou me sentindo tão
cansado que somente inspiro o ar me rendendo. Sinto dedos leves
passearem por meus cabelos, em um carinho contido.
— Descanse, amigo. Você está seguro agora.
E é exatamente o que eu faço.

Acordo no dia seguinte mais descansado, disposto e com uma


estranha fome. Hana entra no quarto segurando uma bandeja
contendo algo tão cheiroso que é impossível não sentir água na
boca e abre um sorriso maravilhoso ao me ver desperto.
— E aí amigão? Como está se sentindo?
— Melhor que ontem. — Digo, enquanto Hana aperta o botão
de um controle. A parte de trás da cama se ergue, me deixando
inclinado de uma forma mais confortável.
— Está com fome? — ela pergunta, conferindo os aparelhos
que estavam conectados a mim.
Hana parecia meio ansiosa. Pegou no celular, digitou algo e
depois voltou a encarar o aparelho que me monitorava, anotando
alguma coisa no prontuário.
— Um pouco. — respondo a encarando. — Hana… por quanto
tempo fiquei desacordado?
Ela para o que estava fazendo e me observa cautelosa.
— Gui… não sei se posso dar essa informação…
— Hana. Há quanto tempo estou aqui? — insisto.
— Você ficou desacordado por cinco dias, Guilherme. — Ouço
outra voz feminina responder e me viro para ver Dra. Lethícia
parada a porta. — Parece que acordou bem mais disposto hoje.
— O que aconteceu? — pergunto, tentando entender porque
fiquei cinco dias apagado. — E onde está o Dr…
— Calma… vou te contar tudo, mas primeiro quero te
apresentar uma pessoa. — ela diz, cortando minha pergunta, e dá
passagem para um homem negro entrar no quarto.
Meus olhos quase saltaram das órbitas quando o reconheci.
Ele usava uma calça preta com coturno, uma blusa de manga
igualmente escura, um distintivo estava pendurado no pescoço e o
velho sorriso branco blindado no rosto.
— Rogério… — sussurrei quase sem voz.
— Já se conhecem? — Dra. Lethícia pergunta curiosa.
Nós dois concordamos com a cabeça ao mesmo tempo.
— História curta, mas para o momento não é importante. — O
investigador responde. — E aí, Gui. Como se sente, parceiro?
— Já tive dias melhores. — respondo, encarando as três
pessoas paradas à minha frente. — Certo… Me pergunto quem vai
começar a me explicar o que está acontecendo?
— Bem… — Rogério toma a frente. — Vim para conversar
com você, amigo.
— Mas aqui não é lugar para um interrogatório! — Hana
interrompe ficando à minha frente. — Guilherme está se
recuperando ainda! Ele nem fez a refeição, Dra. Lethícia!
— Chega, enfermeira Hana! — Dra. Lethícia diz, cortando
minha amiga. Sua voz transmitia firmeza e a dureza de um
profissional. — Eu autorizei o Investigadora interrogar Guilherme.
Somente permiti que você cuidasse do paciente se não colocasse o
pessoal à frente do profissional. Lembre-se disso e espero que
continue assim.
Hana deu dois passos para trás, chocada e em seguida
abaixou a cabeça.
— Sim, senhora. — diz andando até o outro lado da minha
cama. Hana ficou perto o suficiente e senti sua mão agarrar a
minha, como se me desse apoio.
Dra. Lethícia assente com a cabeça e se vira para Rogério.
— Pode continuar.
Rogerio limpa a garganta e começa a explicar sobre como
entrou na investigação sobre os desvios de medicamentos que
estavam acontecendo no CADME e a ligação de Alberto a tudo isso
como um dos principais suspeitos. Segundo ele, o maqueiro
confessou que tinha total acesso aos remédios, então roubava
alguns durante o desvio para ganhar dinheiro vendendo a traficantes
de medicação e, por ter esse conhecimento, utilizava doses
pequenas de Rohypnol misturada a álcool para me drogar quando
precisasse.
— O medicamento funciona como um tranquilizante, mas nas
dosagens administradas por Alberto ela tinha efeitos de um “boa
noite cinderela”. — explica.
— O que… — tento dizer, mas Dra. Lethícia me interrompe.
— O Rohypnol não é somente um medicamento para controlar
a ansiedade ou convulsões, Guilherme. Ele tem a reputação de
“droga para estupro”, sendo usado por muitos para cometer crimes
sexuais, por deixar a vítima incapaz de reagir. A vítima, no caso,
experimenta perda de controle muscular, confusão, sonolência e…
— ela pausa, olha de relance para Rogério, que devolve o olhar
concordando e me encara séria. — Amnésia.
Arregalo os olhos, chocado com aquela informação. Tudo fazia
sentido. Os lugares para onde ele me levava, a troca de palavras às
escondidas com pessoas estranhas e em seguida as bebidas que
me trazia. A sensação de letargia ao acordar e não conseguir
lembrar de nada no dia seguinte. O pior de tudo era ter
conhecimento dos efeitos daquela droga e não associá-la ao que
acontecia comigo.
Como poderia? Eu confiava naquele desgraçado!
— No dia que ele te fez cativo… — Rogério continuou,
atraindo a minha atenção. — Alberto injetou uma dosagem
dissolvida e, segundo Dra. Lethícia, alta demais, direto na sua veia
para lhe manter totalmente inativo enquanto fazia aquelas… — Mas
o investigador não conseguiu completar a frase. Ele tossiu,
engolindo a seco e se calou. A Dra. Lethícia suspirou e, tomando a
frente, continuou a explicação:
— A dose que ele aplicou foi praticamente uma overdose em
seu organismo, que já estava adoecido pelas pequenas dosagens e
isso quase custou sua vida.
Eu poderia ter morrido… Aquela notícia retumbava em meus
ouvidos. As lágrimas que se formaram e queimavam minha retina
eram de repulsa ao lembrar do toque dele em mim, de tudo o que
havia feito e dito me fez sentir imundo. Comecei a tremer
involuntariamente até que senti um aperto forte em minha mão.
Hana se aproximou de mim, sussurrando um “estou aqui”, também
com os olhos marejados.
— Alberto descobriu, de alguma forma que não nos detalhou,
seu caso com Saulo e passou a segui-lo. Pegamos isso do aparelho
de celular que estava com ele. São provas e eu não deveria sequer
ter isso, mas… — Rogério continuou firme me encarando e me
mostrou algumas fotos: Várias eram dos locais que Alberto
frequentava, em algumas eram minhas sentado com um drink, em
outras que não me recordava de quando foram tiradas, eu estava
quase apagado na maioria delas. — Ele confessou que usou
algumas pequenas doses em você para demonstração.
Rogério continuou passando as imagens até chegar em
algumas onde o carro de Saulo estava parado e eu entrando ou
saindo pela porta do carona. O último era um vídeo de Saulo me
beijando dentro do carro. Mesmo com vidros escuros, a luz interna
do carro estava acesa pois eu tinha aberto a porta do carona.
O mesmo dia que ele me entregou a chave de seu
apartamento.
— Com as fotos que tirou de seu celular, foi chantagear o
diretor do CADME, pai de Saulo, que acabou pirando. Por esse
motivo, o Dr. Marques foi ao apartamento de Saulo pra fazê-lo
desistir de você e quando percebeu que não conseguiria separá-los,
decidiu tirá-lo do caminho.
Me tirar do caminho? Ele não queria… Ele não… Meu Deus! O
preconceito dele tinha chegado àquele ponto. Era loucura!
— Eu estava com o Dr. Marques em sua sala quando Alberto a
invadiu exigindo falar com ele. — Dra. Lethícia tomou a frente da
história. — Saulo ainda não havia chegado quando tudo aconteceu.
Dr. Marques me pediu para sair, mas, mesmo assim, tentei ouvir a
conversa. Na hora eu não tinha entendido sobre o que estavam
falando e… Se eu soubesse…
Dessa vez foi ela quem abaixou a cabeça.
— Bem… desconfiamos que foi assim que Alberto soube da
sua demissão, o que o fez ir atrás de você e o interceptar no
apartamento. — Rogério continuou. — Logo que descobrimos onde
estava, fomos imediatamente para lá, mas assim que cheguei no
apartamento encontrei Saulo socando a cara de Alberto. Se não o
tiro de cima de Alberto, ele o teria matado. E sinceramente, depois
que vi você naquele estado… Também o teria matado.
— InvestigadorRogério! — Dra. Lethícia fala, chocada, mas
chocado estava eu ouvindo tudo aquilo.
— Desculpe. — Rogério diz olhando em meus olhos. — Mas
eu faria isso.
Pisco tentando controlar as lágrimas.
— Meu Deus… — Dra. Lethícia continuou. — Bem, eles o
trouxeram de imediato para cá. Infelizmente, a pedido da
administração, tivemos que afastar Saulo da função no CADME por
conta das investigações.
— Alberto está detido sob acusação de desvio de
medicamentos e suspeita de tentativa de estupro. — Rogério diz,
pegando o celular e colocando para gravar. — Agora preciso que
me conte tudo o que acontecia quando morava com Alberto. Para
transformar essa suspeita em confirmação e colocá-lo de uma vez
por todas atrás das grades. Mas Guilherme, sinta-se livre para falar
no seu tempo. Se não quiser falar hoje, vou entender.
Concordo com um menear, ainda tentando absorver toda essa
merda. Estava decidido em contar tudo o que podia e me
lembrasse, porém minha cabeça só um nome explodia dentro dela:
Saulo. Afastado do hospital por minha culpa. Prejudicado por minha
culpa. Enquanto eu estivesse perto do homem que amo, seu pai
poderia tentar contra mim ou até mesmo contra o próprio filho.
E eu não queria destruir sua vida daquela maneira.

Recebi alta três dias depois. No que saía do hospital


acompanhado de Hana, Saulo me ligou, mas eu não o atendi,
desligando o aparelho. Não podia continuar ao seu lado. Entreguei a
chave reserva para Hana pegar minhas coisas na casa do médico.
Rogério acabou nos ajudando, tirando-o de sua casa enquanto
minha amiga pegava tudo e, agora, dirigia seu carro para me levar
até a rodoviária. Eu não ficaria mais no Rio de Janeiro, iria voltar
para minha cidade. O processo ocorreria na capital e, quando fosse
necessária minha presença, eu poderia ir e voltar para as
audiências.
— Tem certeza, Gui? — Hana pergunta ao parar seu Fiat Uno
amarelo na entrada da rodoviária. — Ir embora assim... Acha
mesmo certo isso?
Suspirei, cansado de explicar a mesma coisa.
— Não posso ficar mais. Enquanto eu estiver com Saulo,
nenhum de nós dois estaremos seguros. Não posso fazer isso com
ele. Não posso destruir sua vida. Não é justo.
— Gui…
Ouvimos alguém buzinar e olhamos para trás, alguns carros
estão se enfileirando ali.
— Droga, não posso ficar parada aqui — diz, se virando para
mim, olhos marejados. — Por favor, me dê notícias, me liga pelo
amor de Deus. Se precisar de um lugar pra ficar aqui no Rio, é só
me ligar, mas me dá notícias suas.
— Posso fazer isso. Obrigado por ser uma boa amiga.
— Você é incrível, amigo. Nunca se esqueça disso. Eu amei
estudar e trabalhar com você. E vou te amar como um irmão, pra
sempre!
E nos abraçamos. Inspiro, segurando a vontade de chorar.
Hana tinha sido uma das melhores amigas desde sempre e a mais
incrível companheira de trabalho que já tive. Alguém buzinou e nos
separamos, ela secando as lágrimas do rosto. Abro a porta do
carona, saindo do carro. Vou até o porta-malas e retiro a mala. Me
afasto do carro e Hana acena, saindo com o veículo logo em
seguida.
Eu ia embora da capital do Rio deixando meu coração para
trás.

Duas horas depois do embarque, o ônibus finalmente entra na


cidade de Campos dos Albuquerque. Foram apenas dois meses
fora. Foi o que durei naquela capital. Dois meses.
Levo a mão ao peito. Não sei dizer o que é essa dor que estou
sufocando. A ideia de que estou fugindo dele faz com que essa
sensação pese amargamente. Todo meu peito desaba como se um
terremoto estivesse acontecendo ali. De repente sinto falta da paz
que Saulo me trazia. Da tranquilidade que eu não conseguia
encontrar em lugar algum. Dos momentos de felicidade que ele me
proporcionava. A única certeza que tenho é do amargo sabor do
arrependimento de estar voltando para esse lugar.
Não quero pensar no que vou fazer nessa cidade que tanto me
repudia. Primeiro, quero tirar alguns dias sem nada para fazer e
descansar. Depois? Só o tempo dirá. O veículo dobra à esquerda
para entrar na pequena rodoviária de terra batida. Parte dela está
em obra para ser asfaltada. Finalmente o prefeito estava fazendo
algo produtivo. Aguardo-o parar e vejo todos os passageiros
juntarem seus pertences e descerem do ônibus.
Sou um dos últimos a descer. Engulo a seco aquele dissabor.
Estou evitando pensar. Estou tentando não sentir. Só preciso chegar
lá. Sinto minhas mãos tremerem. Falta pouco. Caminho cansado,
ajustando a mochila no ombro, até o motorista que está liberando as
bagagens. Entrego o ticket e ele devolve a minha bagagem. Sigo
arrastando pelas rodas a mala até a saída da pequena rodoviária e
aceno para um táxi.
— Bairro das Rosas, por favor — digo ao me sentar no banco
de trás, após colocar a mala porta-malas.
O carro está parando a frente de um muro amarelo com um
pequeno portão de ferro, quinze minutos depois. Pago o motorista e
desço do veículo com a bagagem. Estou abrindo o portão quando a
porta da frente da casa abre-se com um supetão.
D. Rita, usando seu velho vestido de tulipas roxas e um
avental sujo de farinha e massa, me encara, seus olhos claros como
os meus lotados de preocupação e surpresa. Ela parece mais
magra do que me lembrava. Está fazendo uma cara de preocupada,
e pudera: não esperava meu retorno tão rápido. Eu preferi não
contar, pois sabia que se não desse certo na capital, aquela casa
seria meu retorno seguro. Tinha recebido a notícia de Hana de que
minha mãe não havia sido comunicada sobre o que me aconteceu
pelo simples fato de eu não ter deixado nenhum telefone de contato
no registro de funcionários e dou graças a Deus por isso. Ela não
merecia saber o quão fraco e inútil seu filho havia sido na capital.
— Guinho… o que… — Mamãe começa a dizer, porém não
completa o questionamento, levando as mãos ao coração, o rosto
se enchendo de compreensão. — Meu Guinho.
Aquilo é o suficiente para me fazer largar a mala e a mochila
no chão. Estava no meu limite, sufocando uma dor que jamais
imaginei ser capaz de suportar e vê-la ali, me encarando com tanto
amor e preocupação, me fez libertar tudo o que carregava.
— M-mãe… — Sufoco um choro, dando um passo à frente.
Ela desce os três degraus a passos rápidos em minha direção
e me puxa para um abraço. Me agarro a ela, chorando como uma
criança ferida que necessita de seu apoio. Ela, a única pessoa que
realmente me entendia. A única pessoa que realmente cuidaria de
mim.
Meu porto seguro, minha amiga.
Eu estava em casa, de volta a segurança.
Duas batidas na porta do quarto me obrigam a abrir os olhos e
encarar o teto.
— Guilherme… venha tomar café. — Mamãe chama do outro lado
da porta. Como não respondi, ela voltou a insistir com mais duas
batidas. — Filho… são mais de nove horas… por favor… Hoje é
sexta. Assim que levantar venha pra cozinha, tá bom?
Ouço seus passos se afastarem e só percebo que prendia o ar
quando o solto. Era estranho imaginar que os dias na capital
passavam rápido demais quando em Campos dos Albuquerque
passam muito lentamente. Eu não sabia que já haviam se passado
somente dez dias, desde quando voltei para cá, até minha mãe
dizer. Sexta... dia de feira. Eu achava que estava há meses naquele
lugar.
Desde quando fui embora da capital, sentia que carregava o
peso do mundo nas minhas costas. Não conseguia comer direito.
Toda vez que tentava colocar algum alimento em meu estômago, ele
tinha gosto de lixo. Eu sentia um embrulho que me fazia desistir de
continuar.
Também não conseguia dormir. Tinha momentos em que
acordava no meio da madrugada em terror noturno ou com minhas
crises de pânico novamente. Em outras vezes sentia as mãos de
Alberto me machucando, me ferindo, me violando e isso me fazia
acordar a noite sufocado pelos gritos que não conseguia soltar.
Outras muitas vezes revirava na cama a procura do corpo grande
que tanto me abraçava e me protegia naquelas noites horríveis e
chorava de saudades chamando por seu nome.
Saulo…
Me sinto extremamente deprimido pensando nele, porém não
conseguia parar de querer saber o que estaria fazendo nesse
momento ou em como estaria seguindo sua vida. O que estaria
pensando? Será que voltou para a CADME? Será que se lembrava
de mim? Será que havia me ligado? Enviado alguma mensagem?
Encaro o celular em cima da mesa de cabeceira. Não tive qualquer
coragem de ativá-lo novamente para ver se o médico havia de fato
feito isso.
Era melhor assim.
Ele estará bem dessa maneira.
Seguro.
Há seis anos, quando me senti assim pela primeira vez depois
do que aconteceu com Fabiano, mamãe me deixou sofrer em meu
cantinho, em paz, me dando tempo para me recuperar e curar
minhas feridas.
Mas dessa vez, Dona Rita não me deu um segundo de
sossego. Me sentia sem forças para ir atrás de algo para fazer,
então ela praticamente me obrigava a ajudá-la nos preparos dos
pedidos semanais dos bolos. Na verdade, eu sequer tentava ajudá-
la, pois muitas dessas vezes eu entrava em uma crise, derrubando
os ingredientes no chão e começava a chorar, me trancando no
quarto e ficando lá por horas a finco. Minha mãe foi o melhor
suporte, batia na porta, falava comigo ali. Não se afastava até eu
voltar a abrir a porta. Me sentia mal por despejar tudo isso sobre ela,
mas só aqui me sentia seguro para me esconder até poder superar
tudo novamente.
Exatamente igual.
Minha mãe, a Dona Rita, é uma mulher muito bonita. Magra,
de rosto jovem, cabelos louros encaracolados. Quem nos visse
juntos jamais imaginaria que somos mãe e filho. Mesmo sendo uma
mulher aposentada, ela faz renda extra vendendo seus bolos na
feirinha que acontece toda sexta na praça da cidade. E hoje não
seria diferente.
Levanto da cama aos tropeços, arrastando meu corpo cansado
para fora daquele quarto, indo até o banheiro, onde lavo o rosto e
escovo meus dentes. Depois sigo em direção a cozinha, sem ânimo
algum, para encontrar minha mãe ao telefone, de um lado para o
outro. Assim que me vê, para de falar e me analisa de cima abaixo,
seus olhos lotados de preocupação. Não tenho coragem de encará-
la com vergonha do estado que estou e caminho até a mesa,
puxando uma cadeira e caindo sentado ali.
— Guilherme…? — Me chama carinhosamente e ergo os
olhos. Vejo-a colocar o telefone na mesa, pegar a jarra de café e
andar até mim. — Você dormiu bem, filho?
Nego com a cabeça. Todos os dias me perguntava a mesma
coisa. Sinto aquelas velhas lágrimas de amargura e tristeza se
formarem em meus olhos. Estou tão esgotado que sugo o ar com a
boca, trêmulo, tentando impedir aquele sentimento doloroso de me
derrubar a sua frente mais uma vez. Dona Rita para ao meu lado e
faz um carinho em minha cabeça, desencadeando em mim um
choro sofrido.
Não sei por quanto tempo estou chorando, mas ela está ali
abraçada a mim, aguardando pacientemente. Logo que consigo me
acalmar, ela deposita um beijo no topo de minha cabeça e coloca o
meu café na mesa.
— Vou pegar alguns embrulhos e já volto — diz, pegando seu
celular e seguindo para a sala.
Mamãe passou quase a manhã inteira naquele telefone,
misteriosa, com algum pedido que ela dizia ser especial.
Cantarolava que precisava entregar esse pedido, e queria que tudo
ficasse perfeito. Eu tentei ajudar, juro que tentei. Mas só conseguia
ficar parado sentindo pena de mim mesmo. Acabei não almoçando e
indo deitar para aliviar o cansaço físico e mental, mas no fim,
somente tirei um cochilo de trinta minutos para acordar suado,
sufocado e chorando em um ataque de pânico.
Eram perto das cinco da tarde quando Dona Rita preparava as
últimas caixas para levar para a praça e eu estava sentado em
frente à mesa, observando-a trabalhar segurando o rolo de fita de
cetim que ela usava para enfeitar as caixas de entrega.
— Preciso que se anime, Guinho — pede com carinho,
embalando mais uma caixa. — Aqui tem os bolos que vou vender,
mas tenho algumas entregas para fazer antes. Por isso preciso que
venha comigo dessa vez e fique na barraca enquanto eu estiver
fora.
Ouvir aquilo me deu arrepios. Sair. Não queria ir, sequer
interagir com algum ser humano.
— Não pode pedir ajuda a alguém? Não ando me sentindo
be…
— Guilherme! — Mamãe grita, a tesoura que usava batendo
na mesa e eu me encolho com o barulho, ciente da bronca que
estava por vir. — Precisa sair disso! Chega de ficar nessa fossa!
Tem que seguir em frente, meu filho. A vida não vai parar por causa
disso.
Suspiro.
— Mãe…
Ela larga a caixa e vem na minha direção, o avental cheio de
farinha branca.
— Filho, olhe para a mamãe — fala com uma voz doce. Ela se
abaixa diante de minha cadeira. Ergo meus olhos para encará-la e
já sinto o nó se formar novamente em minha garganta. — Você é
forte. A vida não vai ser gentil exatamente por causa disso. Precisa
se reerguer sozinho. Começar novamente. E se a vida tentar te
derrubar mais uma vez, erga-se mais forte, mais sábio e de cabeça
erguida. Você é meu filho! Eu te fiz um homem forte.
Concordo, secando as teimosas lágrimas que voltaram a
descer pelo meu rosto.
— Eu te amo, querido. — Ela dá dois tapinhas em meu joelho
e se levanta. — Agora vamos que essas caixas não se fecharão
sozinhas.

Há muito tempo não vinha à feira da praça. O lugar estava


completamente enfeitado e cheio de luzes, as barracas estavam
dispostas nas calçadas, deixando a rua livre para os visitantes e,
espalhados pela rua, havia inúmeras caixas de som que tocavam as
mais variadas músicas para animar os turistas. É um ponto turístico
que muitos visitantes adoraram conhecer. Cheio de produtos de
artesanato, roupas e culinária.
Mamãe tem uma barraca aqui há exatos cinco anos. Lembro
até hoje de como ela começou e acabou ficando famosa por seus
doces finos e caseiros. A barraca está sempre lotada, e o serviço
não para. Estou usando um avental com o nome ‘Doces da Mama
Rita’, para não sujar minhas roupas. Eu não vim para cá vestido
para uma festa, usava apenas um jeans surrado, uma camisa de
manga azul e um velho tênis All Star. Fiquei na barraca da minha
mãe embalando produtos, cortando as fatias de bolo e atendendo
aos clientes enquanto a própria Dona Rita desapareceu no meio da
feira, me deixando sozinho.
Perto das nove da noite, aquele lugar ficou lotado de pessoas.
Por um momento acreditei que não daria conta, porém não foi o que
aconteceu. Ajudar na barraca acabou me fazendo esquecer, por
algumas horas, o que havia me acontecido. Me senti útil novamente,
quase normal. Quanto mais trabalho, menos eu pensava e sentia.
Um casal de adolescentes se aproximou com uma menininha no
meio deles e eu conhecia bem aquele trio.
— Há quanto tempo Hugo, Helena! — Eu tinha visto uma
apresentação deles ano passado e foi incrível. — Nossa, a pequena
Sofia está enorme!
— E aí, Guilherme! — Hugo ergue a mão para um soquinho e
eu retribuo.
— ¡Hola, Guinho! — Lena me cumprimenta com um aceno.
— Oi Tio! — Sofia acenou. — Você voltou!
— Ah sim… Mas é por pouco tempo — respondo sorrindo. E
me abaixo para falar com a pequenina. — O que vai ser hoje
grande Sof?
— Hoje quero o rolinho de chocolate, tio!
— Saindo um caprichado para minha kpopper favorita! — E
bagunço seus cabelos. Sofia ri.
Hugo e Lena escolhem uma fatia de bolo de floresta negra.
Embalo seus pedidos e os entrego. Enquanto me despedia dos três,
mamãe surgiu quase que milagrosamente do nada.
— Nossa, quase não chego a tempo. Ficou atolado, filho? —
pergunta após cumprimentar os adolescentes que saíram para
aproveitar a feira.
— Não, está tudo bem.
— Ah, que ótimo! — fala e olha para a multidão. — O dono da
entrega logo estará chegando.
— É a tal pessoa que a senhora conversou no telefone a
manhã toda?
Mamãe sorri.
— Que isso menino. — Ela belisca minha bochecha com um
aperto de carinho. — Eu falo com muitos clientes, mas esse disse
que gostaria de pegar o sabor que ama aqui na feira.
Sabor que ama? Concordo com a cabeça, achando engraçada
a forma que ela falou. Quem fala assim?
Permaneci de frente para a barraca enquanto mamãe tomava
seu lugar atrás arrumando a mercadoria. A música que saía das
caixas de som era “Mirror” do cantor Justin Timberlake. Atendemos
mais um casal que escolhia um sabor dos que estavam disponíveis
à venda. Acredito que em uma hora tenhamos vendido tudo e
poderia voltar para casa. Minha mãe toma a frente do atendimento
do casal e, por um momento de distração, me concentro em tudo o
que acontecia pela feira.
Eram pessoas de todos os tipos vivendo suas vidas. Inúmeros
casais andam de mãos dadas e aquilo desperta em mim uma
melancolia, uma saudade dele. Meus olhos passeiam pela
diversificada multidão e tenho um vislumbre de uma silhueta que me
desperta, entretanto, quando volto a procurar, ele some de vista.
Sacudo a cabeça, incrédulo.
De fato, sentia saudades, mas passar a ver coisas era demais.
Começo a rir de nervoso. Ele jamais viria para cá. Todavia, como se
fosse o próprio Moisés erguendo o seu cajado, vejo o mar de
pessoas se abrir e o homem que amo ali, parado, usando suas
inconfundíveis roupas sociais, uma calça preta e uma blusa azul
royal com as mangas dobradas até os cotovelos.
A barba havia crescido novamente. Suas mãos estavam nos
bolsos em uma pose relaxada enquanto me observava. Senti seus
olhos me analisarem e meu corpo tremeu quando nossos olhares se
encontraram.
“Yesterday is history, oh
And tomorrow's a mystery, oh
I can see you lookin' back at me
Keep your eyes on me
Baby, keep your eyes on me”[5]
Sou invadido por um turbilhão de sentimentos e meu coração
salta dentro do peito. Não estou vendo coisas. Estou transpirando
de nervosismo e não sei o que fazer. Correr dali e me esconder? Ou
correr até ele?
Todavia, é Saulo quem toma essa decisão por mim. Ele tira as
mãos dos bolsos e vem caminhando a passos firmes em minha
direção. Repentinamente estou ouvindo o refrão da música, na parte
que o cantor canta a capela ao som de palmas e aquilo me invade.
“'Cause I don't wanna lose you now;
I'm lookin' right at the other half of me;
The vacancy that sat in my heart;
Is a space that now you hold [6]”
“Oh, show me how to fight for now (Show me, baby)
; And I'll tell you, baby
, it was easy;
Comin' back into you once I figured it out;
You were right here all along”[7]
Não consigo me mover. Não me atrevo, sequer, a respirar. Ele
diminui nossa distância em segundos. Quando percebo que está
diante de mim, seus olhos ainda estão colados nos meus. Sinto
lágrimas queimarem minhas órbitas e embaçar minha visão.
Não estou acreditando no que está diante de mim, Saulo veio
para Campos dos Albuquerque.
Saulo está aqui.
Aqui!
“It's like you're my mirror;
My mirror staring back at me;
I couldn't get any bigger
With anyone else beside me;”[8]
“And now it's clear as this promise;
That we're making two reflections into one;
Cause it's like you're my mirror;
My mirror staring back at me;
Staring back at me[9]”
Ele ergue sua mão direita e envolve meu pescoço em um
aperto quente e familiar, me puxando para si, anulando todo e
qualquer espaço que houvesse entre nós e cola sua boca na minha
de uma forma febril. Ele se inclina sobre mim, envolvendo minha
cintura com a mão esquerda, tornando aquele beijo mais profundo,
arrebatador e cheio de saudades.
Oh Deus…
Estou perdido em seu aperto, não consigo impedir as lágrimas
de rolarem por meu rosto. Quando, finalmente, se separa de mim,
me sinto tonto. Tão tonto que preciso me apoiar em seu peito para
não cair. Ergo a cabeça, lembrando de onde estamos, e sou
invadido pelo pânico.
Oh meu Deus… Saulo me beijou na frente de todos da feira!
É quando o lugar explode em aplausos, gritinhos e assobios.
Estou tentando controlar a respiração. Novas lágrimas descem pelo
meu rosto e, dessa vez, só consigo chorar de felicidade. Quando
ergo a cabeça, sua mão esquerda presa a minha cintura ainda está
me dando apoio, vejo-o me observando.
— Oi — ele diz baixinho e sua voz vibra em meu corpo.
— O-oi — respondo da maneira mais idiota possível.
— Você é difícil de ser encontrado. — Seu polegar direito seca
a lágrima teimosa que rolar pelo meu rosto. Meu coração acelera
novamente. Então ele estava à minha procura? — Podemos
conversar?
Engulo a seco.
— E-eu não sei… a m-minha mãe… — Olho para trás e sou
surpreendido com Dona Rita. Suas duas mãos estavam pousadas
no peito e havia um sorriso bobo estampado em seu rosto.
— Senhora Rita. — Saulo a cumprimenta com um aceno. —
Vim buscar meu pedido.
O quê?
Olho de minha mãe para Saulo, quase chocado. O cliente
misterioso, o pedido especial…
O quê?
— Claro, meu filho — disse, ainda sorrindo para Saulo e, em
seguida, se virou para mim. — Guinho… vá cuidar do seu coração.
Estou passado, dobrado e guardado na gaveta. Minha mãe e o
cliente misterioso.
Saulo era o cliente misterioso? Como? Quando?
Mas não consigo questioná-la. Saulo enlaça sua mão na
minha e me puxa pela multidão enquanto o cantor sussurra durante
a música:
“Baby, you're the inspiration for this precious song;
And I just wanna see your face light up since you put me on;
So now I say goodbye to the old me, it's already gone;
And I can't wait, wait, wait, wait, wait to get you home;
Just to let you know, you are”
“You are, you are the love of my life”[10]
Eu o sigo, deixando ser levado por aquela força que me atraia
até ele, luto contra as teimosas lágrimas. O calor de sua mão era
tão bom que minha mente se recusava a raciocinar. Desviamos de
muitas pessoas e ele me leva até um carro parado na entrada da
rua onde acontecia a feira.
Sua BMW X3.
— Para onde…? — tento dizer enquanto Saulo abre a porta do
carona.
— Você vai saber. Vamos.
“You're my reflection and all I see is you;
My reflection, in everything I do”
“You are, you are the love of my life”[11]
Entro no carro e ele fecha a porta, dá a volta pela frente e
entra pelo lado do motorista. Liga o carro e sai cantando pneu.
Não fazia ideia para onde iria.
Só que era Saulo quem estava me levando.
“You are, you are the love of my life[12]”
Paramos em frente à entrada da garagem de uma casa, porém não
era uma qualquer. Era uma casa muito grande e com aparência de
ser muito cara no bairro de Campinhos, o mais caro de Campos de
Albuquerque. A maioria dos políticos da cidade moravam ali. Saulo
pega um dispositivo e ao apertar o botão vejo a porta se abrir nos
dando passagem. Assim que entramos ele desliga o carro e abre a
porta. Sai e dá a volta, abrindo a porta do carona para mim.
Onde? Quero perguntar, mas Saulo somente sorri, me
estendendo a mão.
— Vem.
Segurei-a e o deixei me levar. Ainda estava em choque com
tudo o que estava acontecendo. Não tinha forças sequer para
questionar.
Passando pela ampla varanda cheia de verde, depois Saulo
destranca a porta de entrada e clica no interruptor. As luzes acesas
me revelam uma sala gigantesca, totalmente mobiliada. Entro
completamente encantado com a beleza daquele lugar, mas assim
que ouço a porta fechar atrás de mim, me viro para encará-lo.
Permanecemos em silêncio por um tempo. Retiro meu avental
e o dobro, deixando-o nas mãos. Sugo o ar e assim que abro a boca
para falar e questionar, Saulo me interrompe.
— Antes que você fale… — diz, me cortando com um aceno
de mão. — Primeiro quero lhe pedir perdão. Pela minha família. E-
eu jamais imaginei que meu pai chegaria àquele ponto. O maqueiro,
Alberto, o estava chantageando, ameaçando espalhar a notícia.
Meu pai preparou a sua demissão e me tirou do hospital alegando
problemas em casa. Ele fez isso para te obrigar a voltar para minha
casa, mas tudo mudou quando você decidiu ir para seu antigo
apartamento e Alberto já te esperava lá. Nós tivemos uma
discussão, ele insistindo sobre o que era certo ou errado e, na raiva,
contou tudo o que tramou.
Eu ouço atentamente, porém o sangue se esvai do meu rosto
conforme falava.
— Eu entrei em pânico quando ouvi aquilo, principalmente
porque insisti com você para ir direto para minha casa. Voltei até o
hospital correndo contra o tempo, desesperado e te procurei, mas
era tarde demais. Você já tinha ido. Tentei ligar, mas o telefone dava
caixa postal, foi quando ouvi a sua mensagem no whatsapp.
Primeiro fiquei aliviado, só que depois tudo se encaixou. Corri até o
RH, exigindo seu endereço e liguei para Rogério quando já estava
no carro dirigindo feito um louco até aquele apartamento. Eu
derrubei a porta a pontapés e quando o vi daquele jeito... ele em
cima de você… me descontrolei.
Saulo esfrega as duas mãos no rosto. Meus olhos ardem mais
uma vez e meu peito pesa. Aperto o avental nas mãos, tentando me
manter firme.
— Eu… Eu teria matado aquele homem se Rogério não
tivesse chegado com reforços. E quando finalmente fui até você…
Ah meu Deus… — Saulo andava de um lado pro outro esfregando o
rosto com as mãos. — Eu nunca senti tanto medo na minha vida. O
levamos para o CADME. Mandei que dessem a você o melhor
quarto e o melhor atendimento. Só pude vê-lo uma vez, ainda
entubado pois estava tendo uma overdose, e aquilo me destruiu.
Ele se dobra, colocando as mãos nos joelhos e sugando o ar.
Saulo estava pondo tudo para fora. Cruzo o braço, numa forma de
proteção, controlando o máximo que posso para não chorar
enquanto o ouço.
— Na delegacia, Alberto contou tudo, desde o que fazia com
você ao desvio de medicamentos, inclusive sobre o que meu pai
tramou, o que fez com que ele tivesse o mandado de prisão
decretado. Por causa da investigação, ele foi afastado da direção do
CADME e eu fui proibido de me aproximar de você por ser filho do
mandante.
Saulo sugou o ar com dificuldade, tomando fôlego para
continuar. Esfregou as duas mãos nas calças e me fitou com
seriedade.
— Eu não o vi, não foi porque não queria, Guilherme. Eu
estava desesperado para te ver, te abraçar, saber como estava, mas
não me permitiram sequer ter notícias suas. Acabei sendo afastado
do hospital pela própria Dra. Lethícia por mais de uma semana por
conta das minhas insistências e investigações. Quando voltei, soube
que você teve alta e fiquei desesperado, pois não te encontrava em
nenhum lugar. Suas coisas desapareceram do meu apartamento.
Você não atendia minhas ligações, não respondia minhas
mensagens. Conseguiu desaparecer no ar.
Ele anda em minha direção e fica de frente para mim. Não nos
tocamos. Ergo o queixo e engulo o nó que formava em minha
garganta.
— Como… Como me encontrou?
Saulo morde o lábio inferior.
— Vou ser sincero… eu tinha perdido todas as esperanças de
te encontrar. Não conseguia dormir, me concentrar em nada. Tudo
em mim só desejava saber como você estava. Então, para não
enlouquecer, voltei a trabalhar, só que de forma automática. Até
que, três noites atrás, um homem deu entrada na emergência. Ele
havia sido espancado por outros homens pelo simples fato de ser…
gay.
Ouvir aquilo não só me assustou como me feriu. Por que ainda
há tanto preconceito no mundo? Por que nos condenavam só por
amar alguém do mesmo sexo? Por quanto tempo seríamos
massacrados daquela maneira?
— Ele é namorado do rapaz loiro que foi atropelado, lembra
dele? Aquele que você foi me buscar para atendimento no dia do
acidente dos entre os ônibus, se lembra? — Concordo com a
cabeça, ainda processando as informações. Eu lembro
perfeitamente daquele dia, inclusive de Saulo gritando comigo, me
expulsando da emergência e mais tarde me beijando… — Depois
de uma conversa com ele, uma dica, na verdade, lembrei do dia que
eu o levei à minha casa pela primeira vez. Você me contou sobre
sua cidade natal. Eu só liguei os pontos tarde demais. Procurei por
sua colega de plantão, Hana, e foi muito difícil convencê-la a me
ajudar. Aquela menina realmente é sua amiga, muito fiel. Quando
finalmente cedeu, consegui o número de telefone de Dona Rita e a
contactei.
Não consigo mais encarar Saulo e desvio o olhar. Tento, em
vão, disfarçar o tremor de meu corpo. Uma lágrima teimosa escapa,
rolando por meu rosto e a limpo com as costas de uma das mãos,
voltando a cruzar os braços.
— Guilherme…
Saulo me chama e inspiro o ar com o nariz soltando pela boca,
dolorosamente. Em seguida o encaro. Ele se aproxima de mim e
esquadrinha meu rosto. Há uma serenidade em seus olhos que me
quebra por dentro.
— Você… desde aquele dia que o vi na apresentação dos
novatos… eu sabia que não seria mais o mesmo. Nunca tive
dúvidas sobre nada na minha vida, mas você foi a primeira pessoa
que implantou a semente do “e se”. Me torturei por dias antes de
finalmente ceder aos meus próprios desejos. — Ele ergue a mão e
passeia por meu antebraço, sem tocá-lo. — Guilherme, com você,
eu conseguia ser eu mesmo. Relaxar, conversar e sorrir de verdade.
Você me faz feliz, me faz acreditar que posso viver uma vida sem
culpa. Não quero mais me esconder, não quero me preocupar com
mais ninguém além de você. Então me diga, por favor… diga que
não foi embora por ter desistido de nós.
As lágrimas voltam a descer pelo meu rosto e desvio o olhar,
tentando não encará-lo. Sugo o máximo de ar que posso, me
controlando para não desabar. Não podia desabar. Não agora.
— E-eu tive medo. — Passo a língua pelos lábios secos. — P-
por você. A-a sua carreira…
— Carreira? — Me corta em um sussurro. — Foda-se a minha
carreira, Guilherme. Acreditou mesmo que minha vida como médico
seria mais importante?
Concordo com um meneio de cabeça, finalmente entendendo
o quão tolo fui ao pensar naquilo. Saulo passa uma das mãos pelos
cabelos, um gesto claro de frustração.
— E-eu achei… pensei que… — desato a falar, sem saber
mais no que pensar. — Eu…
— Chega Guilherme. Chega! — Ele pega meu pulso e me
puxa colocando minha mão na altura de seu coração. Sinto-o bater
acelerado e ele aperta minha mão sob a sua. — Eu estou aqui. Eu
vim aqui atrás de você. Larguei toda aquela merda por você. Porque
eu te amo, porra!
Ergo a cabeça para encará-lo. Oh meu Deus… O que ele
disse? Seus olhos estavam marejados e vê-lo assim me quebrou
ainda mais por dentro.
— Eu te amo. Amo essa alegria, amo esse seu jeito de ser.
Amo vê-lo se surpreender com o novo, com o diferente. Amo seu
corpo. Amo sua alma. Você me faz querer ser eu, me faz desejar ter
uma vida feliz, de verdade, ao seu lado. Você reflete aquilo que
jamais fui, mas que, agora, poderei ser ao seu lado. Eu mesmo.
Seu.
Perco as forças e, caindo de joelhos, levo as mãos ao rosto
não conseguindo mais conter as lágrimas. Oh Céus… por quanto
tempo eu desejei isso? Por quanto tempo procurei esse tipo de
amor verdadeiro? E agora ele estava ali, finalmente diante de mim,
se declarando, disposto a me amar incondicionalmente. Sinto seus
braços me envolverem e me perco dentro deles. Estou chorando
muito e agora só consigo pensar no quanto sei que vou sujar sua
camisa.
— P-por favor, diga que não é um sonho — digo, me
agarrando a ele, inspirando aquele perfume almíscar de seu corpo
que tanto amo. Estou sendo inundado por um sentimento tão bom
que não consigo controlar o que sinto. — P-por favor… Diga que
nada disso é mentira…
Sinto seus braços me apertarem mais contra seu corpo.
— Nunca foi.
Saulo leva sua mão ao meu queixo, ergue minha cabeça e me
beija, um beijo profundo, com sabor de lágrimas e saudades. Ele
continua me beijando, mergulhando em minha boca e meu corpo o
quer ainda mais perto. Nunca imaginei que precisaria tanto dele.
Saulo se joga sobre mim, seu corpo rígido arrancando gemidos de
minha boca. Sua mão vai até a minha bunda e ele aperta.
Sim…
Não sei como, mas ele me ergue e o envolvo com minhas
pernas. Saulo me leva até algum cômodo, entretanto estou muito
concentrado em sua boca.
— Guilherme… Gui… — diz entre meus lábios e só consigo rir.
— Não vou conseguir levá-lo assim…
Desço de seu colo e Saulo pega em minha mão, me levando
escada acima. Não andamos muito até que ele abre uma porta onde
há um quarto espaçoso, tanto quanto o dele.. Entro admirando a
beleza do lugar e, ao me virar, vejo-o abrindo o colarinho da própria
blusa, seus olhos não desgrudaram de mim um segundo sequer.
— Estou limpo. — Diz ainda abrindo a camisa sem qualquer
pressa. — Eu fiz vários exames, mas deixei a papelada no carro. Eu
juro que estou limpo. Saudável para você.
Pisco meio incrédulo, não entendendo sobre o que falava.
— O que…
— Não tenho camisinha, Gui. E, antes que diga alguma coisa,
eu vi seus exames quando esteve internado no CADME. Você está
bem. Então se quiser que isso aconteça quero que saiba que eu
também estou limpo. Se quiser, posso ir lá embaixo pegar tudo. Mas
se não quiser, eu vou entender.
Dou um passo até ele e assim que estou perto demais o ajudo
a desabotoar sua camisa. Saulo entende aquilo como um “foda-se,
vamos continuar” e agarra a minha blusa, puxando-a pela minha
cabeça enquanto estou tentando desabotoar sua blusa social. Largo
sua camisa, me encarregando de ir ao cinto de suas calças e ao
abri-la para tirá-la de seu corpo, ouço o som de um objeto duro cair
no chão de um dos bolsos. Não tenho tempo para ver o que é e me
abaixo louco para abocanhar seu pau rijo, mas sou impedido por
Saulo.
— Não Gui… Hoje sou eu que vou te dar prazer…
Me ergo surpreso com aquilo e ele me empurra até a cama,
onde me deita espalhando trilhas de beijos pelo meu pescoço
descendo pelo meu peito. Fecho os olhos, me entregando aquele
sentimento. Eu sentia saudades dele, de cada parte e centímetro
dele.
De repente, não sinto mais seus beijos e quando olho para
baixo, vejo-o com a testa colada em minha barriga, seus olhos
fechados e não sei o que está acontecendo. Quero perguntar,
porém sinto que suas mãos estão trabalhando para tirar minhas
calças.
Saulo desce pelas minhas pernas e passa a acariciar minha
pele dando beijos de boca aberta no interior delas subindo
lentamente até alcançar a parte interna de minhas coxas,
exatamente na altura de onde Alberto me feriu. Ele beijava cada
centímetro de minha pele sussurrando palavras como "eu te amo”,
“você é perfeito”, "incrível" e estou tentando controlar o que está
acontecendo em mim. Estou sendo tomado por um sentimento novo
que me engole a cada toque dele. Quando Saulo se aproxima de
meu pau, ele apalpa meu saco e passa a língua pela base de meu
pênis gotejante, não consigo suprimir o gemido arfante e arrastado.
Sinto sua respiração enquanto me diz palavras maravilhosas.
Sua língua passeia por minha glande e solto um gemido alto
que ecoa pelo quarto, a ansiedade crescendo em tê-lo mais uma
vez dentro de mim. Saulo solta meu pau e sobe pelo meu corpo
para me observar, nossos rostos na mesma altura. Ele ergue a mão
e, com um breve sorriso, cospe nela, me fazendo arregalar os olhos
para aquilo, mas em seguida ele passa a massagear meu pau tão
lento e tão gostoso que só posso me render. Ele me observa
maravilhado e encantado ao mesmo tempo.
Estava tão concentrado em Saulo que ergui as pernas em um
convite para mais e quando senti seus dedos me penetrarem… Meu
Deus… Eu quase chorei de felicidade. Eram só meus próprios
gemidos que conseguia ouvir por todo o quarto.
Ele brincava com meu corpo, me proporcionando prazeres que
sequer imaginava existir, me mostrando algo novo, magnífico. Abro
meus olhos para vê-lo passear com sua visão pelo meu corpo, o
que me faz desejá-lo ainda mais dentro de mim. Saulo ajoelha entre
minhas pernas e puxa meu quadril.
— Preciso de você… — sussurro, implorando, quase
desesperado. Saulo se abaixa, esfregando seu nariz em meu
pescoço até lambê-lo em seguida, gerando um curto circuito dentro
de mim. — Por favor… Por favor… me fode.
Até que, de repente, pára, descansando a cabeça em meu
ombro. Sinto-o suspirar profundamente.
— Não vou te foder, Guilherme… — diz com a testa colada em
meu ombro e me surpreendo por um momento. Ele ergue a cabeça
e não há qualquer traço de luxúria em seus olhos. — Eu vou fazer
amor com você.
Meus olhos ardem mais uma vez com as lágrimas enquanto
meu coração derrete. Nossas bocas colam com a mesma força de
um imã potente. Sinto-o me penetrar lentamente e, mesmo
contrariado, solto sua boca, arfando, fechando os olhos, me
deliciando com aquela sensação diferente. Era como se não
houvesse mais barreiras de sentir pele contra pele.
— Abra os olhos — pede e reluto. — Olhe para mim,
Guilherme. Por favor.
Abro-os devagar ao ouvi-lo pedir com tanto carinho. E no
momento que nosso olhar se encontra, sou tomado por uma
emoção descontrolada.
Amor.
É só o que vejo.
Amor.
Voltamos a nos beijar quando Saulo começa a se mover. Um
movimento lento, mágico e tão bonito que sinto meu corpo se fundir
a ele, nos tornando, de fato, um só. Seu corpo grande e másculo se
move controladamente, somente para me proporcionar o melhor do
prazer. O cuidado que tem comigo é tão grande que me desfaz em
milhares de pedacinhos. É tão bom, tão maravilhoso ver o quanto se
preocupa e zela por mim.
Oh Céus…
— Guilherme… — Ouço-o me chamar entre os gemidos de
prazer e minha visão fica enevoada. — Guilherme…
Estou entregue a ele. Meu coração, que um dia foi quebrado e
hoje, com ele, se tornava novamente inteiro. Abraço-o e suas
estocadas se tornam um pouco mais rápidas, mas sem aquele velho
desespero que o sexo entre nós costuma ter. Saulo está sendo
totalmente cuidadoso, arrancando de mim com cada movimento,
com cada beijo, com cada toque, toda mágoa que ainda insiste em
se instaurar em meu peito.
O orgasmo, quando vem, é surpreso, totalmente inesperado.
Não há aquela explosão desesperada ou o grito de liberdade, é algo
natural, quase contemplativo. A boca de Saulo está agarrada à
minha de forma apaixonada, sou capaz de senti-lo vibrar ao se
entregar ao prazer. Sei que está gozando, estamos em uma única
sintonia, prova disso é que sinto a satisfação em seus gemidos
chamando por meu nome. Puxo-o para mim, beijo seu rosto sem
pressa, derramando nele todo o meu amor. Minha mão passando
por seus cabelos.
— Te amo — declaro com a boca colada à sua enquanto estou
entregue aquele sentimento bom e caloroso. — Sou completa e
perdidamente apaixonado por você.
Sinto-o sorrir de satisfação e alívio.
— Eu achei que nunca diria isso — comenta baixo, saindo de
dentro de mim, descendo da cama e caminhando até um local onde
se abaixou para pegar algo do chão. Quando volta, tem uma
pequena caixa de madeira nas mãos. — Não quero me precipitar,
mas…
Sento para observá-lo abrir a caixinha e meus olhos se
arregalaram assim que vejo um par de anéis de prata. Minha boca
se abre em um formato de “O” tão grande e não consigo controlar as
batidas rápidas de mais de meu coração contra minhas costelas. As
batidas eram a combinação perfeita de tudo o que me havia
acontecido hoje e em tudo o que esse homem maravilhoso estava
me oferecendo não só com palavras, mas com gestos e com seu
coração. Tudo isso estava mesmo acontecendo comigo?
— É um anel de compromisso. Estou me comprometendo com
você, Guilherme. Serei sempre seu. Seu suporte, seu amigo, seu
lar. Por favor, deixe-me ficar para sempre.
Oh céus… quanto mais esse homem me fará chorar?
Volto a encará-lo e ele está mordendo o lábio inferior, como se
estivesse ansioso. Seus olhos imploravam por alguma coisa e ergo
a mão direita para passar pela bela joia à minha frente, segurando o
choro em soluços curtos.
Vejo-o retirar e tentar colocar no dedo anelar da minha mão.
Ela não passa da segunda junção do osso.
— Oh droga… — encara minha mão com a testa franzida. — É
pequena.
Sorrio. Retiro-o do anelar e coloco no mindinho. O encaixe é
perfeito.
— Eu amei. — Ergo a mão para o alto vendo-o brilhar.
Saulo ri.
— Depois troco o tamanho e mando gravar nossos nomes.
Concordo, secando as lágrimas de seu rosto e coloco seu anel
no anelar de sua mão direita. Saulo beija meu rosto bebendo as
minhas teimosas lágrimas que ainda espalharam-se, criando rastros
por minhas bochechas. Suas duas mãos seguram meu rosto e sua
boca tomou a minha despejando naquele beijo todo seu sentimento,
me deixando tonto com tanto amor e carinho.
Quando relaxamos, ele ainda está sobre mim, a cabeça em
meu peito, descansando, me deixando dentro de uma pequena
bolha de felicidade.

Uma hora depois, ainda estamos na cama, as costas dele


apoiadas na cabeceira e eu deitado em seu peito, abraçados. Saulo
me conta que a casa que estamos é sua e isso me choca um pouco.
— Você vai morar em Campos dos Albuquerque? — pergunto,
me erguendo.
— Sim. O posto de saúde daqui precisa de um médico. O
CADME está com uma proposta de ampliar suas unidades e uma
delas será aqui na cidade e eu serei o responsável por ela. Tudo
isso arranjado pela própria Dra. Lethícia. — Ele ri com a minha
expressão e logo explica. — Pelo o que ela mesma me disse… é
ex-esposa de um vereador dessa cidade… Acho que Carlos
Carmiello é o nome dele. Então, ele nos colocou em contato com a
prefeitura da cidade e todos os trâmites estão sendo resolvidos.
Minha cabeça vira com toda aquela informação.
— Então, está dizendo que o vereador Carmiello está o
apoiando e que você quem vai comandar o novo posto de saúde da
cidade?
— Sim… — E dá um selinho na ponta do meu nariz. — A
construção começa essa semana e a previsão de conclusão é em
junho de 2019. Enquanto isso, estarei atendendo no antigo posto
e… — toca em meu rosto com muito carinho. — quero você comigo,
me ajudando a cuidar das pessoas daqui. O que acha?
O que eu acho?
— Ah meu Deus. — Levo as mãos na boca, surpreso, a
cabeça explodindo em mil coisas e começo a rir antes de abraçá-lo
novamente, enterrando o rosto em seu pescoço. — É a melhor coisa
que já aconteceu na minha vida!
Meu sonho de trabalhar como enfermeiro seguiria, agora ao
lado do homem que amo e em minha cidade natal. Bem pertinho de
minha mãe.
Saulo me aperta para si e vejo em seu rosto um sorriso sereno
e feliz. Minha vida havia mudado. Eu sei que muita tempestade
estaria por vir, mas eu não estava mais sozinho.
Saulo estará ali comigo e juntos enfrentaremos o mundo.
Sinto sua boca passear por minhas costas, deixando uma trilha de
beijos que começaram em meu pescoço e vão descendo até minha
cintura, me arrepiando por inteiro. É impossível não gemer sentindo
aquela barba rala roçar sobre mim.
— Acorde preguiçoso. — Ouço sua voz vibrar sobre minha
pele. — Preciso que levante ou não vou conseguir sair para ir
trabalhar te vendo assim.
Não tenho como não rir e me viro para ver Saulo todo
engomadinho, naquelas roupas sociais que tanto amo, pronto para
sair. Dou um sorriso de canto, lhe dando minha melhor cara de
safado e ele ri balançando a cabeça.
— Você não me pega com essa, Guilherme — comenta e se
levanta, indo para a cômoda. Sento na cama acompanhando aquela
bunda magnífica na calça justa. — Preciso ir no posto para deixar o
plantonista a par de tudo antes de irmos.
Férias. Tá certo… cinco dias não podem ser considerados
férias, mas era um descanso merecido para nós dois. Os últimos
meses cuidando do postinho e acompanhando de perto os detalhes
do novo hospital nos deixava com tempo escasso demais.
Afinal, há dias ele vinha planejando algo para nosso primeiro
final de ano juntos. O Natal passamos na casa de minha mãe, que
nos empanturrou com suas comidas e doces maravilhosos,
entretanto o final de ano seria só nosso.
— Minha mala está pronta e você nem começou a arrumar a
sua. — Ele se vira para mim enquanto colocava o Rolex no pulso. —
A pior coisa que fez foi deixar para última hora.
— Não sei para onde vamos, por isso não sei o que colocar. —
Fico de joelhos na cama. — Se ao menos me dissesse o lugar para
onde ir… devo levar o que? Sunga? Chinelos? Bermuda? Calça
social…
— Só coloque alguma roupa para sair, Guilherme. Sem
neuras. Só vamos passear. — Andou até a cama. — Coloque a
roupa que comprou para passar o ano novo, algumas peças para
passear e uma sunga. Além de algumas cuecas, claro. Vamos ficar
fora cinco dias e não cinco meses.
Concordo com a cabeça e volto a cair de costas naquela cama
macia e gigantesca de sua casa. O rosto de Saulo entra em meu
campo de visão.
— Esteja pronto até as cinco. — Me deu um selinho rápido,
saindo logo em seguida.
Não sabia o que ele tinha aprontado e isso só aumentava a
minha curiosidade, então me levantei e fui correndo para o chuveiro.
Quando ele voltasse para me buscar tudo estaria pronto.

— Onde eu deixei a porra da roupa do ano novo? — Me


pergunto pela sexta vez revirando o guarda roupa.
Acabei deixando para fazer tudo de última hora, mas não
contava com aquele empecilho. O quarto estava uma bagunça, a
minha mala aberta sobre a cama com algumas peças espalhadas,
porém o conjunto novinho de blusa e bermuda brancos que tinha
comprado para usar no ano novo não estava ali. Abri a parte que
pertencia a Saulo, onde tudo estava impecavelmente arrumado,
dobrado e separado por cor e não vi qualquer sinal do meu novo
conjunto.
Sentei no chão tentando relembrar o que havia feito assim que
voltamos das compras em Petrópolis.
— Chegamos da cidade e fomos almoçar no Vito’s. Não
esquecemos nada no restaurante porque todas as bolsas ficaram na
mala do carro, então… Seguimos para casa da minha mãe onde
levei as peças e vestidos que comprei para ela, que ficou toda feliz,
mas não abriu na hora para ver… será que…
Levantei rápido indo até a cama onde procurei meu celular, fiz
uma bagunça maior ainda procurando o aparelho, que achei dentro
de um compartimento da mala. Nossa, sou muito burro, meu
Deus….
Ativei a tela e liguei imediatamente para Dona Rita, que
atendeu no segundo toque.
— Oi, meu anjo!
— Mãe! Pelo amor de Deus, me ajuda…
— O que houve, Guilherme? — Sua voz ficou imediatamente
preocupada.
— Quando estive aí, assim que voltamos de Petrópolis e te
entreguei seus presentes, por acaso deixei alguma…
— Bolsa com uma blusa e uma bermuda branca? — disse me
cortando. — Eu estava me perguntando porque você me deu isso
sendo que se mudou definitivamente para a casa do seu
namorado…
Suspirei, me deixando cair de costas na cama, aliviado.
— Graças a Deus. Eu achei que tinha perdido isso e o Saulo
iria me matar…
Mamãe riu do outro lado da linha.
— Algumas coisas não mudam né, filho? Que horas vocês
viajam?
— Ele me disse que sairíamos às seis da tarde.
Mamãe ficou momentaneamente em silêncio e limpou a
garganta.
— Então se eu fosse você se apressava. Já vai dar cinco
horas.
Sentei na cama rápido demais e olhei a hora no aparelho de
telefone.
16:55h
Puta merda! Saulo já vai chegar em casa e minha mala sequer
estava pronta!
— Mãe… Separa pra mim, por favor, que eu vou passar por aí
antes de ir pra pegar, tá bem?
Dona Rita começou a rir.
— Você não muda… Tudo bem, vou deixar aqui em uma bolsa
pra você.
— Te amo, Dona Rita!
— Eu sei. Agora vai arrumar sua mala que, com certeza, nem
deve estar pronta.
Olho para a cama bagunçada e a mala aberta, agora vazia,
pois, havia tirado tudo para encontrar meu celular. Minha mãe me
assustava com aquela bola de cristal mágica imaginaria que ela
tinha para saber de tudo sobre mim.
— Vai logo, Guilherme — Ela me apressa, entre risos. — Te
amo, filho.
E desligou.
Arrumei tudo em tempo recorde. Coloquei três blusas, duas
camisas, uma calça jeans e duas bermudas. Além de um par de
chinelo e um tênis branco novinho para usar com a roupa no ano
novo.
Quando Saulo entrou em casa, eu estava na sala arrumado,
amarrando meu tênis e as duas malas, a dele e a minha estavam
colocadas no hall de entrada. Ele encara o relógio e balança a
cabeça, como se estivesse concordando com alguma coisa.
— Pronto? — pergunta indo até as malas e pegando as duas.
— Mais do que pronto! — Pego minha carteira com os
documentos e meu celular, indo em sua direção.
Saulo fecha a casa e guarda as malas na BMW. Sento no
carona assim que ele entra no carro.
— Certo… — digo cauteloso. — Agora vai dizer para onde
vamos?
Meu namorado ri e liga o carro.
— Você vai ver.

Depois de passarmos em minha mãe, seguimos por quase


duas horas de estrada e estamos na capital novamente. Saulo nada
falou na viagem e estou encarando as ruas escuras, tentando não
pensar no que ele estaria aprontando. Já passavam das oito da
noite quando entramos em um túnel e saímos em uma paisagem
iluminada. Encarei o lugar curioso e sentei ereto assim vi um imenso
lago com algo iluminado no meio.
Meus olhos cresciam e o entendimento me batia conforme nos
aproximávamos do ponto luminoso. Saulo diminuiu e entrou em um
estacionamento, parando em uma vaga. Eu não conseguia tirar os
olhos do cone brilhante.
— Você não vem? — Saulo pergunta e assim que me viro,
percebo que o carro estava desligado e as portas destravadas. Ele
já estava descendo, então desafivelo o cinto correndo.
Desço do carro e bato a porta. Saulo, que tinha dado a volta e
me aguardava, pega em minha mão. Cruzo meus dedos ao dele e
caminhamos até o ponto onde poderíamos vê-la. Não havia muitas
pessoas e assim que a vi, soltei a mão de Saulo e encarei a linda
árvore de natal no meio do lago. Ela brilhava em verde e uma
música natalina tocava por todo o ambiente. Era a primeira vez que
eu via a árvore da Lagoa tão de perto.
— Guilherme! — Saulo me chamou e logo assim que virei ele
me mostrou seu celular erguido. — Sorria!
Abri o sorriso mais largo que consegui, tentando não chorar.
Ele lembrou. Lembrou do que disse na primeira vez que me trouxe
aqui. Andei até ele e o abracei, não me importando se alguém ali
nos encararia ou nos reprovaria.
— Obrigado — agradeço com o rosto em seu peito e me
aperto ainda mais a ele. — Você lembrou…
Sinto seus braços me envolverem e não consigo segurar as
lágrimas. Eu amo demais aquele homem. Demais.
— Vem… — Ele me puxa para mais perto do deque e ficamos
parados à frente da árvore. Saulo deu um beijo em minha cabeça.
— Olha.
Levantei a cabeça e vi sua câmera erguida para uma selfie.
Permaneci assim, abraçado ao seu corpo, nós dois sorrindo para a
tela com aquela árvore magnífica atrás de nós.
Ficamos por quase uma hora na Lagoa e depois de muitas
fotos, seguimos para um hotel em Copacabana. Nos dias que
seguiram, ele me levou a vários pontos turísticos que jamais
imaginei que poderia visitar, entre eles o Cristo Redentor, o Pão de
Açúcar e a praia de Ipanema onde ficamos entre o posto 8 e 9.
Havia tantos casais LGBT ali que era impossível não me sentir à
vontade e feliz ao lado daquele homem.
Enquanto Saulo havia se levantado para dar um mergulho, vi
um vendedor de bijuterias passar e corri até ele. Haviam muitas
pulseiras e cordões, mas foi uma pulseira na cor do arco-íris que me
chamou a atenção. Comprei duas e voltei correndo para onde Saulo
e eu estávamos, mas quando cheguei ele ainda não havia voltado.
O procurei pelo o mar e encontrei aquele monumento de homem
sair da água, ajustando sua sunga branca. Seu corpo brilhando pelo
bronzeador era perfeitamente maravilhoso e atraía a atenção. Fiquei
parado aguardando se aproximar, ciente da quantidade de olhos em
seu corpo, mas ele não desviava sua atenção de mim.
Assim que chegou perto o suficiente, coloquei as mãos a volta
de seu rosto e o beijei intensamente. Suas mãos enlaçaram minha
cintura e amei estar daquela forma com ele à frente de todos.
— O que foi tudo isso? — Saulo pergunta assim que nossas
bocas se separam e eu só consigo sorrir feito um idiota sortudo.
— Nada. Erga sua mão esquerda — peço sorrindo com uma
das sobrancelhas erguidas.
Saulo retribui o sorriso, balançando a cabeça e ergue a mão
conforme pedi. Prendo em seu pulso a pulseira arco íris e ele a
encara curioso. Levanto a minha e ele sorri, satisfeito. Foram dias
incríveis, até eu descobrir que nada se compararia ao que ele havia
aprontado para o Ano Novo.
Na véspera da virada, estava pronto às oito da noite em ponto
e descemos até a recepção onde aguardamos um Uber nos buscar.
Depois de meia hora de viagem, eu estava diante de uma enorme
embarcação. Iríamos passar a virada do ano em alto mar!
Haviam muitos casais de todos os tipos e entramos no imenso
iate de mãos dadas. Tinha acabado de entrar quando uma mulher
louca de cabelos verdes pulou em cima de mim e quase nos
derrubando.
— Gui!!!!
— Hana?! — falei engasgado com seus braços agarrados ao
meu pescoço e totalmente surpreso ao ver minha amiga oriental
naquele barco.
Foi então que vi algumas pessoas do CADME ali naquela
embarcação: Saulo conversava com o Dr. Mauro ao lado de uma
mulher negra, que descobri depois ser sua esposa. A Sra. Roberta
estava lá, a Dra. Lethícia também ao lado do filho que soube se
chamar Henrique, alguns outros médicos que conheci, mas nem
todos estavam ali. O hospital não podia parar.
— Fala aí, baixinho! — Ouvi alguém falar e vi o policial, amigo
de Saulo, de mãos dadas com uma garota muito bonita. — Nos
encontramos de novo!
— Rogério! Você também?
— E eu! — Ouvi aquela voz conhecida e quase tive um acesso
ao ver minha mãe ali. — Achei que não iriam chegar mais.
Eu iria passar o ano novo com minha mãe também! Saulo
tinha pensado em tudo.
A embarcação partiu às dez em ponto e chegamos no local
onde ficaríamos ancorados às dez e meia da noite. Garçons nos
serviam bebidas e uma imensa mesa com ceia estava posta para
nossa degustação.
Conversava muito com minha amiga quando o barco tocou a
primeira buzina e outros barcos à nossa volta começaram a fazer o
mesmo.
— Faltam cinco minutos! — Hana disse animada, se afastando
e indo em direção ao namorado.
O tempo entre as buzinas começou a diminuir quando faltava
um minuto. Eu estava ansioso pela queima e não conseguia tirar o
sorriso do rosto.
— Guilherme… — Saulo me chamou alto devido ao barulho
das buzinas e me voltei para ele, que se aproximou, colocando uma
das mãos em minha cintura. — gostando?
Abri um gigantesco sorriso.
— Estou amando tudo! — falei alto o suficiente para ser
ouvido.
— A contagem regressiva vai começar! — Alguém gritou e
olhei para aquele mar enorme, depois encarei a praia lotada. Eu iria
ver os fogos em Copacabana tão pertinho, ao lado de Saulo e minha
bolha de felicidade só crescia.
— Gui… — Saulo sussurrou em meu ouvido e a forma que me
chamou me fez travar no lugar. — Eu te amo. Amo-o agora, amanhã
e sempre.
Virei a cabeça e para meu espanto vi Saulo se agachar,
tirando uma mão do bolso e me mostrando uma caixinha verde
pequena. Estranhamente o barco parou de buzinar e meu coração
batia aos solavancos.
— Quero experimentar com você todas essas novas
sensações e descobertas. Te amar a cada momento. Quero cuidar e
proteger de todas as formas. Por isso, Guilherme Alcântara, eu te
imploro: por favor, me permita mais uma vez acordar todos os dias
ao seu lado, te abraçar e dizer no seu ouvido o quanto você me faz
feliz e que dessa vez seja para sempre. Me dê a honra de ter o seu
sobrenome e de lhe dar o meu.
Abracei meu corpo, tentando não fraquejar. Meu coração mais
uma vez se derretia de amor por aquele homem que não cansava
de me surpreender. Eu não consegui impedir as lágrimas de caírem
e me ajoelhei diante do médico que mudou a minha vida.
— Sim, Saulo Marques. Eu aceito tê-lo ao meu lado todos os
dias, amá-lo e protegê-lo — digo baixo o suficiente para que só ele
me ouça e vejo seus olhos marejaram. Em seguida, aumento o tom
de minha voz. — Sim! Eu quero me casar com você!
É quando os primeiros sons dos fogos ecoam por nós e o
clarão das luzes brilhar por cima de nós. Saulo me puxa e me
abraça, colando a boca dele na minha. O som dos fogos se
misturava à comemoração à nossa volta, gritos de “feliz ano novo” e
de “parabéns" ecoavam por todo o barco.
Saulo me ergue e permanecemos de pé, abraçados, após
colocarmos as alianças. Amava cada segundo com ele ali e amaria
todos os outros que viriam a seguir. Tinha consciência de que, se o
mundo preparasse algo para provar nosso amor, eu seguiria firme
com ele, enfrentando cada prova que viesse.
Aquele era só mais um dos muitos dias felizes em minha vida.
Não… não da minha…
Da nossa vida.
Nossa. Escrever essas linhas está sendo a parte mais difícil,
porque no momento estou sorrindo e chorando feito uma boba. Eu
já tinha um desejo enorme de escrever uma história em que o
personagem principal fosse alguém da comunidade LGBTQIAP+,
mas não sabia por onde começar quando Guilherme veio até mim
em um sonho me contar sua história.
Quando escrevi a primeira versão dessa história foi em
conjunto com minha amiga autora e enfermeira Jana sob título de
duologia e ela me ajudou a ampliar esse enredo, me ajudou com
todas as informações que precisava sobre medicina e
medicamentos. Amiga, foi perfeito fazer aquela duologia com você.
Primeiro quero agradecer a duas pessoas que me
acompanharam desde o início da primeira versão da escrita desse
livro até a essa versão física, ainda me ajudaram em pesquisas,
leitura e crítica: a romancista Janaina Sabidussi (Jana) que assina
esse prefácio maravilhoso e a revisora Natalia Pironi (Nat) que além
de revisar minuciosamente esse livro ainda deixou seu depoimento
no final, por ficarem comigo desde sempre. Duas mulheres mágicas
que surgiram em minha vida e se tornaram apoiadoras
incondicionais de minhas histórias, betas por amor, críticas por
profissão e amigas de coração. Obrigada meninas, sem vocês eu
nunca teria concluído esse livro. Acompanhar o surto e o choro das
duas enquanto escrevia só me faz desejar nunca desistir de criar.
Amo vocês meninas! Amo demais!
A Babi Lacerda, que assina a edição desse livro, figura
carimbada de meus livros físicos e autora maravilhosa que me
inspira muito, obrigada por nunca ter desistido de mim, por sempre
estar me apoiando, por responder minhas perguntas bobas, duvidas
toscas e ser uma amiga maravilhosa. Sou eternamente grata por ser
essa pessoa incrível na minha vida!
A todos os leitores da primeira versão em e-book que foi
primeiramente publicada na Amazon e que se apaixonaram por
Guilherme e Saulo naquelas poucas páginas. Essa versão física
com mais cenas, novos capítulos, muito amor, sedução e lágrimas
foi feita para vocês! Obrigada por acompanharem esse casal
maravilhoso! Eu prometo que teremos mais sim! Até porque se eu
não fizer vou apanhar dessas três mulheres que citei acima. rs
A toda comunidade LGBTQIAP+,da qual eu como Bissexual
faço parte, esse livro é para vocês! Eu creio que logo estaremos em
um mundo sem preconceitos, perseguição e dor! Nossa luta não
para! Somos incríveis!
Toda forma de amor é válida sim!
Aos novos leitores que chegaram aqui pela versão física do
Livro:Obrigada por confiar nesse trabalho e adquiri-lo. Meu coração
é de vocês! Podem vir me procurar a hora que quiserem no
Instagram @autora.angelwolff para conversarmos e surtarmos
juntos! Vai ser incrível demais!
Ah! Visitem a comunidade, ‘Alcateia AW’, será um prazer te
receber e conversar!
E por fim não deixem de conhecer a série “Campos dos
Albuquerque”, nunca se sabe quando personagens que
conhecemos nessa história poderão aparecer novamente. ^. ~v
Até a próxima!
Angel Wolff
Conheça outros da Trabalhos da Angel Wolff

Uma inocente amizade infantil pode se transformar em amor?


Hugo, um rapaz tímido e retraído que enfrenta sérios problemas
familiares, jamais imaginou que isso poderia acontecer ao conhecer
Lena, uma estrangeira ousada e que ama dançar. Mas o destino
decidiu brincar com seu coração e agora ele deverá encontrar na
dança a sua única oportunidade de ser feliz.
Uma competição.
Uma música.
Tudo ou Nada.
Hiroshi, um jovem e atraente executivo japonês, regressa ao
Brasil após cinco anos para assumir uma das filiais da empresa da
família Ishikawa. Ao retornar, ele reencontra Ana, mulher
determinada e de belos olhos, com quem teve um envolvimento
breve.
Apaixonados, Hiro e Ana partem para viver um romance que
transcende até as barreiras do sobrenatural. No entanto, o casal
precisará lidar com a interferência do passado em seu
relacionamento, além do preconceito da família de Hiro e o ex-
namorado obsessivo de Ana.
Até onde o amor deles será capaz de chegar para superar tantos
obstáculos?
Stella Toledo é uma universitária cheia de sonhos, que se muda
para a capital do Rio de Janeiro para estudar e se tornar uma
Design de Moda, mas acaba sendo atropelada por acaso por
Henrique Carniello, um rapaz totalmente fora dos padrões, que se
encanta pela jovem logo de cara.
E, contra todas as possibilidades e obstáculos, esses dois jovens
tão diferentes lutarão para manter a única coisa que existe em
comum entre eles:O Amor.
Mas será que esse amor suportaria a distância imposta pelo
isolamento social?

Atualmente, dramas coreanos arrebatam o coração dos


brasileiros com seus enredos cheios de emoção e ingenuidade.
Extremamente doces e leves, os doramas nos dão uma nova visão
dos romances, em comparação aos que estamos acostumados no
ocidente.
Mas quem disse que nós humildes mortais não podemos viver o
nosso próprio dorama? Com direito a histórias arrebatadoras e
apaixonantes? Ou quem sabe histórias de comédia ou até um
mistério, suspense policial, ação, fantasia… Mas com a palavra
chave sendo o romance!
“Minha vida, um dorama” vem para preencher ainda mais o
coração daquela dorameira que passa madrugadas maratonando
seu casal favorito; shippando um casal improvável ou só para
conquistar aqueles leitores que amam se apaixonar. São histórias
cheias de romance, boas doses de clichês, reviravoltas
emocionantes e cenas dignas das novelas orientais, claro, todos
embalados/baseados por uma música K-pop; J-pop ou C-pop.
Um Trecho do Segundo Livro da Trilogia “Corações em
Conflito”:

— Covarde.
Ele parou diante da porta. Permaneceu ali parado, imóvel. Meu
estresse estava nas alturas. Havia me cansado daquele jogo e de
suas desculpas. Me sentia frustrado, triste e totalmente
desamparado. Depois de um momento ali, se virou sem pressa para
me encarar. Quando ficamos de frente, seus olhos azuis frios me
engoliam.
— Repita. — disse, a voz não demonstrava qualquer emoção.
Engoli o medo repentino e fiz conforme me pediu.
— Covarde.
Ele deu dois passos em minha direção.
— Não sou covarde. — disse e suspirou. — Eu estou
preocupado com você.
— Covarde. — repeti e o vi bufar, irritado. — Eu sei que você
também quer.
— E desde quando você sabe o que eu quero?
Engoli a seco. Não tive coragem de responder. Eu só não
conseguia tirar da minha cabeça aquilo e tudo o que eu senti
quando aconteceu. Estava tudo ali e ele parecia se recusar a ver o
que brilhava diante de seus olhos.
O vi levar a mão direita ao rosto, em seguida passar nas
longas madeixas loiras no topo de sua cabeça e desviar o olhar.
Segurou firme o próprio cabelo, parecendo brigar consigo mesmo e
balançava a cabeça, como se negasse algo.
— Não estou curioso, cara. — Finalmente disse soltando os
cabelos. Sua voz parecia cansada. — Eu sei muito bem o que eu
quero.
Meu coração acelerou pela expectativa. Eu sabia muito bem
que não era curiosidade aquele olhar. Dessa vez não haveria a
desculpa do álcool, pois não tínhamos ingerido nada. Eu tinha a
certeza do que senti antes, mas dessa vez eu queria ouvir sair de
sua boca. Ele deu mais um passo em minha direção.
— E… o que você quer? — perguntei, erguendo o queixo em
desafio.
— Achei que fosse mais inteligente do que isso. — respondeu
dando outro passo em minha direção. E mais outro e outro.
Isso.
Quando ficou de frente a mim, não me movi. Não me atrevi
sequer a respirar. Soquei toda a emoção e confusão de sentimentos
no fundo do meu peito, ergui os olhos e ele esquadrinhou meu rosto.
Eu desejava saber o que passava em sua cabeça.
— Eu acreditei que isso fosse passar, sabe? Que eu pudesse
esquecer. — levou a mão ao meu rosto e passou o polegar por
minha bochecha. — Mas eu não esqueci. Não consigo esquecer…
na verdade não quero esquecer e isso é tão… injusto…
— Injusto…? Por que?
— Porque era para sermos apenas amigos. Simplesmente
assim. Mas depois do que aconteceu, eu o estou confundindo… Por
que quero ser egoísta o suficiente para acreditar que você não está
confuso… Que você também…
— Sim. — Falei rápido demais e segurei sua mão sob a minha.
Sentia as batidas descontroladas dentro do meu peito. Eu nunca tive
tanta certeza do que queria e de como queria aquilo com ele. —
Sim… Vini…
Mas não consegui completar a frase. Sua boca colou na minha
de um jeito febril e desesperado. Senti sua mão agarrar minha
cintura, puxando-me para mais perto e quero abraçá-lo, mantê-lo
preso a mim. Aquilo sim parecia certo. Nunca havia me sentido
daquela forma.
Ele me apertou de encontro ao seu corpo largo e eu me
agarrei ainda mais àquele corpo, àquele desejo, àqueles
sentimentos. Abri a boca para receber sua língua exploratória,
ansiosa e desejosa e senti novamente o sabor que me enlouqueceu
por infinitos dias. Minha cabeça explodiu em mil fogos de artifício
enquanto algo acontecia com meu corpo, eu só conseguia pensar
em querer mais, desejar mais dele.
Ele me empurrou até a cama e caí de costas com ele sobre
mim, sua boca não descolou da minha a nenhum momento. Sua
mão apertou minha cintura por baixo da blusa e, involuntariamente,
gemi sentindo seu toque quente, enquanto se esfregava em mim
quase desesperado e eu abri as pernas para sentir mais dele.
Mais. Mais. Eu quero mais.
Senti sua mão alisar minha virilha sob a bermuda e arfei sob
sua boca. Meu corpo queimava de forma febril, enlouquecido por
seu toque. Minha mente e corpo só o desejavam, cada vez mais.
Não consigo pensar, sentir, ouvir, tudo girava em torno dele. Me
afundava cada vez mais naquele sentimento, em todo aquele
desejo.
Mas antes que qualquer coisa fosse realmente feita, dita ou
sentida, a porta do meu quarto abriu-se em baque violento.
— SAULO!
Nos vemos em breve S2
[1] Medicação que propicia o relaxamento muscular esquelético
em cirurgia ou procedimentos hospitalares
[2] Doença que causa complicação grave na gravidez e é
caracterizada por episódios repetidos de convulsões, seguidos de
coma, e que pode ser fatal se não for tratada imediatamente.
[3] Material utilizado para medir a pressão arterial sanguínea em
seres humanos.
[4] Veículo Leve sobre Trilhos, é um projeto da Prefeitura da
Cidade do Rio de Janeiro que permite a interligação da região
portuária ao centro financeiro da cidade e ao aeroporto Santos
Dumont.
[5] Ontem é história
E amanhã é um mistério
Posso ver você olhando de volta para mim
Mantendo seus olhos em mim
Mantenha seus olhos em mim
[6] Porque eu não quero perder você agora

Estou olhando bem para a minha outra metade


O vazio que se instalou em meu coração
É um espaço que agora você guarda

[7]
Mostre-me como lutar pelo momento de agora
E eu vou lhe dizer, baby, foi fácil
Voltar para você uma vez que entendi
Que você estava aqui o tempo todo

[8]
É como se você fosse o meu espelho
Meu espelho olhando de volta para mim
Eu não poderia ficar maior
Com mais ninguém ao meu lado
[9]
E agora está claro como esta promessa
Que estamos fazendo
Dois reflexos em um
Porque é como se você fosse o meu espelho
Meu espelho olhando de volta para mim
Olhando de volta para mim

[10]
Baby, você é a inspiração para esta preciosa canção
E só quero ver o seu rosto se iluminar quando me desperta
Então agora digo adeus ao velho eu, ele já foi embora
E não posso esperar, esperar para levar você para casa
Só para lhe contar, você é
Você é, você é o amor da minha vida

[11]
Você é o meu reflexo e tudo o que vejo é você
Meu reflexo, em tudo o que faço
Você é, você é o amor da minha vida
[12] Você é, você é o amor da minha vida

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