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DO CANDOMBLÉ*
Dossiê
Resumo: este trabalho propõe fazer uma abordagem filosófica acerca da figura mítica
de Exu, tendo como ponto de partida as indagações sobre o imaginário individual e co-
letivo no Candomblé. A partir de uma visão nativa, portanto “de dentro” tentarei trazer
a complexidade desse mito envolvendo esse Deus que foi tão perseguido e demonizado
pelo cristianismo. Farei uma abordagem interpretativa à luz da literatura e dos estudos
de Candomblé que envolvem a figura de Exu, tendo a encruzilhada como procedimento
político e metodológico para potencializar o meu lugar de fala como voz de dentro.
Abstract: this work proposes to make a philosophical approach about the mythical fi-
gure of Exu, having as a starting point the inquiries about the individual and collective
imaginary in Candomblé. From a native perspective, therefore “from within” I will try
to bring the complexity of this myth involving this God who was so persecuted and de-
monized by Christianity. I will take an interpretive approach in the light of the literature
and Candomblé studies that involve the figure of Exu, having the crossroads as a poli-
tical and methodological procedure to enhance my place of speech as an inside voice.
ENCRUZILHADAS INTRODUTÓRIAS
O
presente texto tem como objetivo apresentar a complexidade da figura de Exu, pedra filo-
sofal que envolve o imaginário individual, coletivo e mítico do Candomblé, religiosidade
da cultura popular de matriz africana que se formou e se consolidou no Brasil no final
É bem verdade que o Mito sempre esteve presente na vida humana. No universo mitológico
dos deuses gregos, na cultura ocidental, se desenrolava o Mito de Apolo como o deus da beleza, signo
da individuação, a luz, o brilho, a medida justa, o resplandecente e o Mito de Dionísio, o Baco, deus
da embriaguez, do vinho, da alegria, da orgia, do prazer. Éramos transportados para um mundo,
onde, para entendermos o Cosmos, necessitávamos compreender a physis, a natureza.
Ensinaram-nos um mundo onde tudo estava irmanado de deuses. Se o mito foi a forma que
encontraram para compreender a realidade, os gregos, certamente optaram em nos mostrar que
tudo, na verdade, começou com o Mito. E, sabemos, que ficou entregue ao homem conhecer o Mito
da Caverna no sétimo Livro da República de Platão, para percebermos que o mundo é pura alegoria.
Dessa forma, o princípio, aquilo que os gregos resolveram denominar arché (princípio), estava dado
a cada pré-socrático a possibilidade de nos testemunhar que tudo surgiu dos elementos da natureza.
O ar, o fogo, a terra e a água foram as formas que encontraram para dizer o mundo em seu eterno
vir-a-ser. Para Tales de Mileto, o princípio era a água. É ela a origem e a matriz de todas as coisas.
Elemento essencial para percebermos que o movimento é o começo de tudo e que no fundo, “tudo
flui”, como acreditou Heráclito de Éfeso.
Assim nos foi ensinado a cultura grega, ou seja, esses mitos foram se impondo em nós e dese-
nhado os rumos de nossos pensamentos como única voz que perpetuou uma tradição no pensamen-
to ocidental. Assim, trazer outras mitologias é fundamental para que possamos ouvir outras vozes
inclusive mais próximas de nós a partir da nossa ancestralidade. Sem dúvidas o feminismo negro foi
fundamental nessa busca de outras vozes e da tentativa de mostrar que por mais que surgem cientis-
tas bem intencionados, a voz de dentro, do nativo deve começar a criar fissuras no discurso europeu
e branco para que de fato o subalterno possa romper com os silêncios e questionar, inclusive, quem
está autorizado a falar, ou seja, que regime de autorização discursiva é esse que sempre esteve auto-
rizado a falar que é a voz do homem branco, cristão e europeu. O fato é que a voz do terreiro quase
nunca é ouvida e chegou a hora do terreiro fazer valer a sua própria voz.
No Candomblé, assim como nas demais religiões de matrizes africanas, tal máxima não foge a
regra, pois os cultos são voltados para os elementos da natureza. Cada Orixá representa a força viva do
universo. Iansã é o fogo, parte quente do nosso corpo que mantém o mundo vivo e ativo, acendendo-
-se e apagando-se na medida como o fogo de Heráclito. Iemanjá é o fluir, a água, o começo, o movi-
mento. A água que está em nossos corpos, na lágrima que choramos, no suor, nos fluxos desejantes
como o esperma, o sangue, a saliva que umidifica o corpo e gera a vida. Iemanjá é a dona do leite, é o
jorro, o fluxo vital da humanidade. É o alimento primeiro. A “modernidade líquida” de nosso tempo.
A placenta recheada de líquido é rompida para dar origem a novos seres. Ali mora Iemanjá:
nesse pequeno mar que acolhe e protege o feto. Obaluaê (Obá= rei; luaê= terra) O deus da terra que
é de onde brota a vida e onde nos metamorfoseamos e nos transformamos em alimentos para outras
vidas. Foi a terra a inspiração primeira para que os homens fossem modelados com a força da argila,
como na antiga expressão, “do pó viemos e para ele retornamos”. A terra como signo do eterno re-
torno de tudo que respira, de tudo que tem vida.
No culto aos deuses do Candomblé, o Mito dos Orixás assume um papel fundamental, inclu-
sive para se compreender o Terreiro como espaço vital e estético, pois testemunham as mais belas
e trágicas estórias dos deuses que representam, por sua vez, os elementos da natureza, assim como
Nanã é a deusa da morte e Ogum, da guerra, Iemanjá da água e Iansã do fogo, como dissemos acima.
É o princípio que mantêm o mundo vivo e ativo, pois apagar e acender na medida revela o equilíbrio
da natureza.
Animado com esse exercício de sabedoria, pactuado com a noção de que o mito tem uma
função mestra, é que Mircea Eliade adverte-nos: “a função mestra do mito é a de fixar os modelos
exemplares de todos os ritos e de todas as ações humanas significativas, como, aliás, já foi constatado
por inúmeros etnólogos” (ELIADE, 1998, p. 334). Para Mircea Eliade, os mitos cosmogônicos servem
de modelos arquetípicos para toda criação, seja no plano biológico, espiritual ou psicológico, pois eles
são, na “festa”, o fundamento em que os atores aparecem mascarados.
Dionísio é o seu emissário na cidade, com a mesma capacidade de jogar com as formas que a
razão estabelece e os limites que a lei fixa. Ele é a figura da subversão no helenismo, da irrupção
selvagem que subverte a ordem social e leva ao paroxismo uma tensão na qual a tragédia tem sua
origem” (BALANDIER, 1997 p. 123).
Foi assim que o mito fixou os modelos exemplares e as ações humanas. Aprendemos a ver o
mundo pela mitologia grega, onde Dionísio se transformou em figura subversiva da ordem social e
instauradora do caos. É o representante da fusão, da confusão, do barulho, da metamorfose. Sem dú-
vidas a figura de Exu tem todas essas características de Dioniso, como tem também algo de Hermes,
deus mensageiro e da comunicação, mas foi retirado de nós, principalmente os negros a sabedoria da
Falar em Exu significa questionar, tencionar e abrir encruzilhadas filosóficas para pensarmos
a pedra filosofal, pedra primeira, princípio dinâmico. Exu é uma palavra polissêmica, plural, contro-
versa e polifônica. É um risco aberto no caos. Tudo cabe, pois abarca a totalidade e a singularidade. É
complexus, pois liga como uma trança, abraça o uno e o múltiplo. Exu significa na linguagem yorubá
“esfera”, ou seja, aquilo que é infinito, que não tem começo e nem fim e representa o todo ou a fusão
das partes. Trata-se de uma esfera que abarca as forças cósmicas e caóticas da natureza. A fusão entre
o alto e o baixo. É um todo em si e por si, aberto e fechado em si mesmo. Representa a totalidade,
o ser em sua plenitude, um telos, ou ontologia fundamental. A Tese de Juana Elbein dos Santos foi,
certamente, uma das mais aprofundadas e que abriu caminhos para outras leituras acerca de Exu
quando a autora o assume como o “princípio dinâmico e princípio da existência individualizada no
sistema nagô”, pois segundo ela,
Por ser o Deus da comunicação, tem o dom da ubiqüidade e pode estar em ação em muitos
lugares. Tem seu lugar em todos os grupos de culto e em todas as casas. É associado aos
lugares de encontro e passagem, as encruzilhadas, os logradores públicos e os portais (BA-
LANDIER, 1997, p. 98).
Desse modo, Exu é o guardião da rua, dos caminhos, da estrada. Logo, para manter um elo
com a Casa de Santo, é preciso entrar na tribo, passar pela porta, pelo portão, pedir licença (agô) para
Exu, para que o Povo do Santo não se meta em encrencas mais tarde e muito menos desarmonia e
contrariedade à tribo. Em outras palavras, Exu é a vida em metamorfose. É o que movimenta e inten-
sifica a vida. É o que mantêm a ordem e a desordem. É a Dobra. Exu é a síntese da Diferença, o que
nos impulsiona a criar. Exu, como signo da individuação, é o poder que gera a ação e começa no jogo
Assim Guattari traz a figura de Legba como expressão da relação, da comunicação e poder
da encruzilhada. Existe a instauração de uma cidade subjetiva marcada pela heterogênese, pelo
paradigma estético, pela desterritorialização, pelo caos e pelo descentramento do sujeito para a da
subjetividade e como potência da desordem e do movimento. Assumir essa forma de pensamento
é assumir a encruzilhada como uma forma de pensamento-acontecimento que subverte a ordem
e a instaura o caos a partir de uma produção de subjetividade que é plural e polifônica. A encru-
zilhada é a afirmação das várias subjetividades e da polifonia das vozes. Legba que embaralha,
age por esperteza e, com isso, transforma-se no poder e no intempestivo. É Legba quem está nas
encruzilhadas de todas as relações. O “assentamento” de Exu é feito de argila, no barro, na terra,
em forma de um O pênis ereto, avantajado. Sua saudação: Laroiê, Exu! As relações com o bando é
sempre uma relação mediada por Exu, ou seja, por movimentos de conversação, diálogos, disparos
de pensamento. A encruzilhada sempre, o meio, o entre e, é claro, a palavra que ativa o pensamen-
to, pois Exu é o poder de comunicação.
De entendimento e, é claro, de desentendimento. É o que desconfia de tudo. Exu é sagaz. É es-
perteza. É estrategista. A pitada de sal e pimenta da relação com o bando. Será sempre necessária
para o transe conceitual e para ativar o jogo da diferença já que Exu é o deus-diabo que nos ensina
jogar pois ele é o Ifá, o jogo que mantém o mundo vivo e ativo e nos ensina também a nos armar
conceitualmente e também a nos desarmarmos. Desse modo, é Exu a vida do fora. É o fora da
clausura. É o fora da representação. É o que não quer morar dentro da casa. É o rebelde no meio
do bando dos Orixás, o que se atrapalha com as palavras e engana a gente. Todo artista tem seu
Exu no corpo. O deus-diabo que incomoda, o azougue maligno que vira o pensamento do avesso,
embaralha e caotiza a vida. É a vontade de poder sempre. É o primeiro sim no Candomblé. É o que
todos temem e todos desejam, pois ele nos inspira ao falo, à fala e à vida.
Dito de outra maneira, Exu, Hermes e Dionísio são deuses na fronteira com o caos, com a
criação, com arte e com a vida. São tentações estéticas por dialogarem com as forças “do fora”, com
a errância, com o nomadismo e com a Diferença. Exu e Dionísio como signos trágicos e caóticos nos
fazem dar sim à vida, mostrando assim que a arte dionisíaca é o signo da rebeldia que potencializa
a vida e nos lança na encruzilhada do imaginário criativo e artístico. Desse modo Exu é, a um só
tempo o imaginário individual e a boca coletiva. Essa será nossa próxima encruzilhada.
Ora, antes de falarmos de Exu como boca coletiva e individual é importante mostrar o que
compreendemos por encruzilhada e para isso é importante compreendermos a essência da Filosofia
de Exu. Em os nagô e a morte: Padê, asese e o culto Égun na Bahia, Juana dos Santos traz uma com-
preensão aprofundada:
a encruzilhada é o espaço regido por Exu, aquele que, segundo mitos, é a boca ávida que devora
tudo o que existe, mas que também regurgita, regenera e recria. Essa encruzilhada é aqui um
espaço de confluência e recriação cultural. É o espaço em que várias culturas africanas trazidas
para o Brasil confluem e são recriadas, devorando e reinterpretando, nesse processo, elementos
culturais indígenas e europeus (CARDOSO, 2008, p. 15-6).
a boca é um órgão muito especial. Ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo, a
boca se torna o órgão da opressão por excelência, representando que as/os brancos querem - e
precisam - controlar e, consequentemente o órgão que historicamente, tem sido severamente
censurado” (KILOMBA, 2019, p. 34).
Foi Gilbert Durand (2002) quem afirmou com toda força que “O imaginário é esta encruzi-
lhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana por
um outro aspecto de uma outra”. Ou seja, pensar a encruzilhada de exu como imaginário individual
e coletivo significa pensar a encruzilhada do humano. O homem existe rodeado de imagens que
constituem seu capital humano. Imaginário e imaginário e imaginação a pesar de serem instâncias
diferenciadas, se interligam, se completam.
No candomblé o imaginário está diretamente ligado ao conjunto de imagens, signos e sím-
bolos que desenham a beleza estética dos terreiros. Assim, estética e imaginário estão intimamente
ligados. No entanto, o terreiro transforma-se em um prodigioso e fecundo espaço de signos e símbo-
los que ativam o imaginário e faz do homem porta voz e intérprete desse complexo Yorubá. Geertz
pondera que: “os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo - o tom, o caráter
e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos” (GEERTZ, 1989, p. 67). É esse
ethos e visão de mundo que povoa a comunidade-terreiro, pois os adornos, os adereços e o modo de
ser sintetizam e contornam a identidade estética, ética e religiosa do Povo- do- Santo.
É a partir desse imaginário que a vida nos Terreiros é desenhada, pois o fenômeno religioso se
contorna nesse complexo de imagens, em que a cultura e os símbolos se fundem formando o espaço
sagrado que é o Terreiro, espaço que acontece toda dramaturgia religiosa entre Pais, Filhos - de -
Santo e simpatizantes. Evidencia-se desse modo, que o homem é um ser seduzido pelas imagens, pois
são elas que têm o poder de ativar a nossa inteligência e nos fazer pensar o homem e a nós mesmos
nessa “encruzilhada antropológica” que é a cultura. Para problematizarmos a noção de imaginário
que povoa a comunidade - candomblé, precisamos perguntar o que compreendemos por isso.
Diz Gilbert Durand:
Em resumo; tal como há dez anos, o Imaginário-ou seja, o conjunto das imagens e relações de ima-
gens que constitui o capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande denominador
fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O Imaginário é
esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência
humana por um outro aspecto de uma outra (DURAND, 2002, p. 18-grifos nossos).
No entanto, o caráter estético do Candomblé deve ser encarado em seu dinamismo, em sua
fluidez, em seu devir, pois é todo um conjunto sagrado integrado à natureza cosmológica dos Orixás
e toda complexidade do ritual, que forma uma obra de arte. No entanto, cada música e cada gesto re-
vela um signo artístico no Terreiro, toda beleza “odara” da vestimenta do Orixá e de toda decoração
do “barracão” recebe esse tom artístico que é típico do Povodo- Santo. Assim, ainda diz Prandi: “O
candomblé é muito confundido com sua forma estética, a qual se reproduz no teatro, na escola de
samba, na novela da televisão - os orixás ao alcance da mão como produto de consumo (PRANDI,
2005, p. 240).
O cotidiano do Povo – do - Santo, dentro dessas complexidades estéticas, revela a beleza,
tanto nos espaços sagrados como nos corpos. São eles que se transfiguram em obra de arte quando
os Orixás estão em terra. No entanto, há no cotidiano do Povo- do- santo uma dimensão ética e es-
tética na valorização da roupa, pois as roupas dos Orixás revelam todo um contorno sagrado, além
de carregarem as cores do santo, elas “vestem” no sentido forte do termo, cada Orixá. A roupa, com
suas cores e adereços, desenham cada Orixá. Nos Terreiros de Candomblé, a roupa e os pertences
esteticamente um ser humano ou um objeto é belo porque traz consigo uma determinada
qualidade e quantidade de axé e realiza assim uma comunicação entre ele e a comunidade
(BARBÁRA, 2000, p. 151).
ENCRUZILHADAS FINAIS
Propôs-se aqui fazer uma abordagem filosófica em torno da epistemologia da arte afro-brasi-
leira a partir da figura de Exu. Como podemos apreender, Exu é um dos Orixás mais complexos da
Literatura africana e da Mitologia afro-brasileira. Próximo a Dionísio, Exu é signo da embriaguez,
vitalidade pura, tropicalmente brasileiro. Funciona como imaginário da Diferença na medida em que
é o signo do “fora”. Fora da representação, fora da clausura, fora da lei, fora da norma, fora do lugar, en-
fim, da “casa”, pois mora na rua. No entanto, é uma vida do “fora” não exterior, pois sendo fora é mais
dentro que o próprio dentro. Criatura de confusão, azougue maligno da Diferença. A terrível, temida e
odiada encruzilhada que fascina, surpreende, aterroriza inquieta e encanta. A encruzilhada é a síntese
da tragédia da vida. Exu é Orixá que não aspira uma morada, nem o centro. Está em toda parte. Mas
não se pode apontar nem cá nem acolá e está cá, estando ali, acolá. Orixá-deus-diabo-confusão. Exu é
trapaceiro de mão cheia, pois finge que vai e volta do meio para trás.
Quando se fala em imaginário no candomblé desenha-se em nossas cabeças todo um comple-
xo de imagens que povoa desde a Mitologia dos Orixás, aos adornos, enfeites, cores e símbolos que
compõem o cenário afroreligioso e faz do Candomblé uma religião artisticamente desenhada. Exu,
que foi um Orixá fortemente demonizado pelo Cristianismo, é desenhado por uma aura que se revela
como signo da vida, da potência da vida, dos fluxos e cortes permanentes da natureza, pois repre-
senta a dialética, o que movimenta tudo e todos, fortalecendo o “véu de maia” da humanidade. Exu,
como todo um imaginário diabólico, que intensifica e fortalece as relações, faz acontecer a comuni-
cação entre os homens. Signo da desordem, por excelência, Exu é o elemento fogo, terra, água e ar
fundindo em um só: a vida em seu devir. É esse imaginário que Exu edifica como signo da confusão,
se transfigurando em imaginário da sexualidade, do erotismo, da virilidade, dos fluxos desejantes,
revelando o lado menino, brincalhão e jocoso do próprio homem, intensificando uma sabedoria em
torno do imaginário fálico que denota o poder do homem diante da sexualidade e da vida. Essa é
apenas uma das maneiras em que o poder se transfigura no Candomblé a partir de um ethos festivo
e dionisíaco e que faz do Terreiro um potente cenário complexo, que faz com que o homem, através
desse imaginário, busque um novo laço com a natureza.
Em outras palavras, quando se fala em encruzilhada, pensamos em ruas que se cruzam, estra-
das e caminhos. Exu, ao morar na rua, recebeu justamente os poderes da encruzilhada. Um espaço
que confunde e desespera por ser uma multiplicidade de caminhos e o homem está sempre em busca
de uma direção, de uma “verdade”, de um caminho seguro que leve a algum lugar. A encruzilhada
rouba a paz e provoca desconforto ou desassossego. Recordemo-nos de Alice, personagem infantil
de Lewis Carrol, que em sua saga, “no país das maravilhas”, ao se deparar com a encruzilhada, per-
guntou ao gato que caminho deveria seguir, ao que seu companheiro disse: “isso depende muito para
onde queres ir”. Alice afirmou: “preocupa-me pouco aonde quero ir”. Nesse caso, replicou o gato,
“pouco importa o caminho que sigas”. A encruzilhada permite pensar as possibilidades de vida e
de novos caminhos. Assim como Alice foi forçada a pensar qual caminho seguir, não seríamos nós
como essa Alice perguntando a todo instante pelo caminho?
De todo modo, como guardião da estrada e dos caminhos, é Exu quem aponta e direciona,
pois, com todo seu nomadismo, astúcia, inteligência e rebeldia, é ele que transporta e comunica os
mundos. O que provoca o encontro e o desencontro. É a parte quente de nosso corpo que deseja,
respira, transpira, chora, dança e ri, aquela que acende e apaga na medida, o fogo-fátuo, chama viva
da existência, aquela que nos dá prazer, nos desperta e nos acorda para a vida. Como Exu tem uma
morada fixa, assim é o pensamento que é nômade, plástico e criativo. Exu é, de certa forma, a parte
maldita e subversiva de todos nós, inspirando o pensamento, ativando o imaginário e colocando-o
em movimento em busca de mundos e encruzilhadas possíveis para assim afirmarmos a vida. Fazer
valer a filosofia como encruzilhada é propor vazar, escapar e apelar para um pensamento em que os
caminhos e descaminhos se fundem e se confundem. A encruzilhada é esse salto para fora do pen-
Nota
1 Ora, a noção de axé deve ser compreendida de forma ampla e complexa, pois axé a abarca o todo e a parte
da cosmologia yorubá. Axé se dá, axé se recebe. É a força, a potência, élan vital do candomblé. É a magia e
a mística que circula nos terreiros. É o que verdadeiramente existe.
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