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EXU: O IMAGINÁRIO INDIVIDUAL E COLETIVO

DO CANDOMBLÉ*
Dossiê

Paulo Petronilio Correia**

Resumo: este trabalho propõe fazer uma abordagem filosófica acerca da figura mítica
de Exu, tendo como ponto de partida as indagações sobre o imaginário individual e co-
letivo no Candomblé. A partir de uma visão nativa, portanto “de dentro” tentarei trazer
a complexidade desse mito envolvendo esse Deus que foi tão perseguido e demonizado
pelo cristianismo. Farei uma abordagem interpretativa à luz da literatura e dos estudos
de Candomblé que envolvem a figura de Exu, tendo a encruzilhada como procedimento
político e metodológico para potencializar o meu lugar de fala como voz de dentro.

Palavras-chave: Exu. Mito. Candomblé. Imaginário. Encruzilhada.

EXU: THE INDIVIDUAL AND COLLECTIVE IMAGINARY OF CANDOMBLÉ

Abstract: this work proposes to make a philosophical approach about the mythical fi-
gure of Exu, having as a starting point the inquiries about the individual and collective
imaginary in Candomblé. From a native perspective, therefore “from within” I will try
to bring the complexity of this myth involving this God who was so persecuted and de-
monized by Christianity. I will take an interpretive approach in the light of the literature
and Candomblé studies that involve the figure of Exu, having the crossroads as a poli-
tical and methodological procedure to enhance my place of speech as an inside voice.

Keywords: Exu. Myth. Candomblé. Imaginary. Crossroads.

ENCRUZILHADAS INTRODUTÓRIAS

O
presente texto tem como objetivo apresentar a complexidade da figura de Exu, pedra filo-
sofal que envolve o imaginário individual, coletivo e mítico do Candomblé, religiosidade
da cultura popular de matriz africana que se formou e se consolidou no Brasil no final

* Recebido em: 20.09.2019. Aprovado em: 22.05.2020.


** Phd em Performances culturais. Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Mestre pela UFSC. Professor na Universidade de Brasília. Orientador do Mestrado e Doutorado no PPGCEN
da UnB. E-mail: ppetronilio@uol.com.br.

Revista Mosaico, v. 13, p. 36-50, 2020. e-ISSN 1983-7801 DOI 10.18224/mos.v13i1.7683 36


do século XIX, no final do período escravista. Como bem nos ensinou Vagner Gonçalves da Silva
(2005), tentar reconstituir o processo histórico de formação das religiões afro-brasileiras não é uma
tarefa fácil. Isso se dá, em primeiro momento, pelo fato de ser uma religião marginalizada e perse-
guida durante muito tempo assim como os negros, índios, homossexuais e pobres em geral. Esse
tipo de preconceito foi se alargando na sociedade brasileira de tal modo que a presença da polícia
era constante em Terreiros, obrigando-os a serem fechados por praticarem curandeirismo e char-
latanismo. De toda forma, o Candomblé é considerado a religião dos Orixás. Exú é, sem dúvida,
um dos orixás mais polêmicos e multifacetados dos terreiros. Isso gera até os dias de hoje múltiplas
interpretações.
Exu é, poderia dizer, a um só tempo, o imaginário individual, signo da individuação e do
coletivo. No entanto, tenta-se aqui dar conta de que Exu como expressão dessa boca coletiva nos faz
pensar que o mito não se separa do imaginário. É a partir dessa discussão que Exu sobrevive sob o
signo da diferença e da multiplicidade ao mesmo tempo em que se afirma a potência da individuali-
dade. Para tal empreitada é necessário um desdobramento mais cuidadoso acerca desse mito.
Essas discussões fizeram parte da minha pesquisa de Doutorado defendida na Faculdade de
Educação do Rio Grande do Sul, em 2009, onde tive como foco a estética e a aprendizagem do Can-
domblé. Desse modo, o mito e o imaginário formam uma trança inseparável. O que proponho então
é um olhar filosófico onde tento, a partir da indagação de Exu como a “pedra filosofal” do Can-
domblé, compreendê-lo em sua complexidade mítica e atuação no imaginário coletivo e individual.
Desse modo, a visão de dentro foi fundamental para que eu pudesse dar um contorno melhor a essa
questão, bem como potencializar a metodologia, que chamo de encruzilhada, pois é nela que eu falo
e me posiciono como boca individual e coletiva. Ou seja, fortalecer esse lugar de fala do subalterno
é mais que uma questão política. É uma questão de existência e ao mesmo a busca de visibilidade
enquanto corpo negro candomblecista e marginalizado na sociedade branco - centrada, heteronor-
mativa e cristã.
Os tempos mudaram e estamos buscando outras vozes, outros lugares, outras linguagens e nos
lançando em outras encruzilhadas como um modo de desestabilizar a soberania e o poder do colo-
nizador. Para isso é preciso potencializarmos o nosso lugar de fala tal como foi tematizado e radica-
lizado pela feminista negra Djamila Ribeiro (2009). Esse lugar urge agora, pois como bem salientou
a recém falecida Mãe Stella de Azevedo Santos (1993), uma das mães de santo mais consagradas do
Brasil, do Ilê Opô Afonjá de Salvador, Meu tempo é agora. Em outras palavras, o agora exige a marca
de nosso lugar de fala como uma força política e um modo de vida. O meu lugar é a encruzilhada.
Metodologicamente trabalho com a revisão da literatura que tenta dar conta das questões teó-
rico-epistemológicas e evidentemente da minha vivência, da minha experiência iniciática como pes-
quisador-adepto do candomblé. Enfatizo a experiência iniciática que tive em campo desde a minha
Tese de Doutorado defendida em 2009, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Terei como
aporte teórico/epistemológico a noção de imaginário em Durand (1992), Eliade (1998), Balandier
(1997), trazendo Exu como a boca e a pedra filosofal do candomblé. No entanto, iremos nos debruçar
em pesquisadores que tiveram uma visão de dentro tais como Juana dos Santos (1986), Leda Maria
Martins (2006) e a visão antropológica de Reginaldo Prandi (2001). Nesse sentido, será interrogada a
noção de mito, a pedra filosofal que compõe a complexidade mítica de Exu e o seu contorno acerca
do imaginário individual e coletivo.
Para melhor facilitar a leitura esse artigo está dividido em quatro subtópicos inter-relaciona-
dos de modo a facilitar a compreensão do leitor. O primeiro tópico situa o leitor a complexidade da
visão mitológica do candomblé alargando a natureza dos Orixás e a cosmologia yorubá, trazendo
reflexões filosóficas. O segundo tópico será uma abordagem sobre a encruzilhada, território de exu
como a pedra filosofal do Candomblé, onde trago um embate de leituras e interpretações acerca de
Exu. O terceiro momento é uma reflexão sobre Exu enquanto signo da boca coletiva envolvendo, a
um só tempo, o imaginário individual e coletivo do Candomblé. O último tópico será uma reflexão
mais ampla acerca do que é de fato imaginário do Candomblé e a sua complexidade ética e estética
que compõe o cenário afro religioso. É uma forma de trazer a discussão do imaginário para o todo
do Candomblé.

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O MITO

É bem verdade que o Mito sempre esteve presente na vida humana. No universo mitológico
dos deuses gregos, na cultura ocidental, se desenrolava o Mito de Apolo como o deus da beleza, signo
da individuação, a luz, o brilho, a medida justa, o resplandecente e o Mito de Dionísio, o Baco, deus
da embriaguez, do vinho, da alegria, da orgia, do prazer. Éramos transportados para um mundo,
onde, para entendermos o Cosmos, necessitávamos compreender a physis, a natureza.
Ensinaram-nos um mundo onde tudo estava irmanado de deuses. Se o mito foi a forma que
encontraram para compreender a realidade, os gregos, certamente optaram em nos mostrar que
tudo, na verdade, começou com o Mito. E, sabemos, que ficou entregue ao homem conhecer o Mito
da Caverna no sétimo Livro da República de Platão, para percebermos que o mundo é pura alegoria.
Dessa forma, o princípio, aquilo que os gregos resolveram denominar arché (princípio), estava dado
a cada pré-socrático a possibilidade de nos testemunhar que tudo surgiu dos elementos da natureza.
O ar, o fogo, a terra e a água foram as formas que encontraram para dizer o mundo em seu eterno
vir-a-ser. Para Tales de Mileto, o princípio era a água. É ela a origem e a matriz de todas as coisas.
Elemento essencial para percebermos que o movimento é o começo de tudo e que no fundo, “tudo
flui”, como acreditou Heráclito de Éfeso.
Assim nos foi ensinado a cultura grega, ou seja, esses mitos foram se impondo em nós e dese-
nhado os rumos de nossos pensamentos como única voz que perpetuou uma tradição no pensamen-
to ocidental. Assim, trazer outras mitologias é fundamental para que possamos ouvir outras vozes
inclusive mais próximas de nós a partir da nossa ancestralidade. Sem dúvidas o feminismo negro foi
fundamental nessa busca de outras vozes e da tentativa de mostrar que por mais que surgem cientis-
tas bem intencionados, a voz de dentro, do nativo deve começar a criar fissuras no discurso europeu
e branco para que de fato o subalterno possa romper com os silêncios e questionar, inclusive, quem
está autorizado a falar, ou seja, que regime de autorização discursiva é esse que sempre esteve auto-
rizado a falar que é a voz do homem branco, cristão e europeu. O fato é que a voz do terreiro quase
nunca é ouvida e chegou a hora do terreiro fazer valer a sua própria voz.
No Candomblé, assim como nas demais religiões de matrizes africanas, tal máxima não foge a
regra, pois os cultos são voltados para os elementos da natureza. Cada Orixá representa a força viva do
universo. Iansã é o fogo, parte quente do nosso corpo que mantém o mundo vivo e ativo, acendendo-
-se e apagando-se na medida como o fogo de Heráclito. Iemanjá é o fluir, a água, o começo, o movi-
mento. A água que está em nossos corpos, na lágrima que choramos, no suor, nos fluxos desejantes
como o esperma, o sangue, a saliva que umidifica o corpo e gera a vida. Iemanjá é a dona do leite, é o
jorro, o fluxo vital da humanidade. É o alimento primeiro. A “modernidade líquida” de nosso tempo.
A placenta recheada de líquido é rompida para dar origem a novos seres. Ali mora Iemanjá:
nesse pequeno mar que acolhe e protege o feto. Obaluaê (Obá= rei; luaê= terra) O deus da terra que
é de onde brota a vida e onde nos metamorfoseamos e nos transformamos em alimentos para outras
vidas. Foi a terra a inspiração primeira para que os homens fossem modelados com a força da argila,
como na antiga expressão, “do pó viemos e para ele retornamos”. A terra como signo do eterno re-
torno de tudo que respira, de tudo que tem vida.
No culto aos deuses do Candomblé, o Mito dos Orixás assume um papel fundamental, inclu-
sive para se compreender o Terreiro como espaço vital e estético, pois testemunham as mais belas
e trágicas estórias dos deuses que representam, por sua vez, os elementos da natureza, assim como
Nanã é a deusa da morte e Ogum, da guerra, Iemanjá da água e Iansã do fogo, como dissemos acima.
É o princípio que mantêm o mundo vivo e ativo, pois apagar e acender na medida revela o equilíbrio
da natureza.
Animado com esse exercício de sabedoria, pactuado com a noção de que o mito tem uma
função mestra, é que Mircea Eliade adverte-nos: “a função mestra do mito é a de fixar os modelos
exemplares de todos os ritos e de todas as ações humanas significativas, como, aliás, já foi constatado
por inúmeros etnólogos” (ELIADE, 1998, p. 334). Para Mircea Eliade, os mitos cosmogônicos servem
de modelos arquetípicos para toda criação, seja no plano biológico, espiritual ou psicológico, pois eles
são, na “festa”, o fundamento em que os atores aparecem mascarados.

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Ora, na arte afro-brasileira a Mitologia dos Orixás ganha uma substancial força e, que, infe-
lizmente, a academia pouco conhece, pouco difunde. Isto não é somente por pouco ser divulgada a
Literatura Africana no Brasil, mas por um forte estigma que sempre existiu em torno da figura do
negro e das religiões de matrizes africanas. O que se sabe é que existe todo um ethos e uma visão
de mundo que povoam os Terreiros e que fazem do Candomblé uma religião tipicamente brasileira.
Desenhada e contornada pela Mitologia dos Orixás, a religião de matriz africana carrega em seu seio
todo um imaginário do Brasil que vai testemunhar os vários brasis que existem dentro do próprio
Brasil. As comidas, os bordados, o sincretismo religioso, o hibridismo cultural, tudo isso vai intensi-
ficando uma ética e uma estética partilhada no imaginário do povo brasileiro. As danças, a riqueza
“odara” da mitologia reflete o Brasil complexo e multifacetado. Podemos ir da literatura à cultura
popular e, dessa, ao imaginário social, individual e coletivo.
Jorge Amado, escritor baiano, foi quem soube fotografar a Bahia de todos os santos com
seus usos e costumes, pelo Mito de Iemanjá, que é uma das deusas mais populares e cultuadas no
Brasil. No sincretismo religioso ela é a Nossa Senhora dos Navegantes, protetora dos pescadores.
Em Mar Morto Jorge Amado soube fazer um contorno literário e estético dessa deusa que faz parte
do imaginário da cultura brasileira, principalmente em finais de ano, onde celebram, na beira no
Mar, toda uma dramaturgia religiosa de reverência e devoção à essa deusa através de barquinhos,
acompanhados de presentes como sabonetes, espelhos, perfumes e flores, como forma de agrade-
cimento pelo ano que se passou e pela expectativa do ano que está por vir. Está na literatura, está
na cultura, está na vida.
Daí podemos dizer que a Literatura afro-brasileira tão fotografada por antropólogos e so-
ciólogos é pouco explorada no campo das letras. Desde a riqueza fotográfica de Pierre Verger ao
olhar “de dentro” de Roger Bastide, vários estudos vêm crescendo em torno da cultura afro-bra-
sileira como, por exemplo, só para citar alguns, o valioso e cuidadoso estudo de Reginaldo Prandi
sobre A Mitologia dos Orixás, os estudos antropológicos de Vagner Gonçalves e Rita Amaral, Rita
Segatto sobre o Xangô do Recife, Ari Pedro Oro sobre o Batuque no Sul e muitos outros. Como po-
demos perceber, tais estudos estão nas margens do discurso antropológico e sociológico. O campo
das Letras, especificamente da Literatura que deve ter um olhar mais amplo acerca da Mitologia
dos Orixás, que fazem parte do complexo Yorubá e, acima de tudo, reconhecer esse imaginário
afro como um traço fundamental da cultura brasileira e da identidade nacional.
O olhar que sempre se impôs era uma olhar de fora, branco, europeu, estranho ao campo. Aos
poucos o terreiro vem fazendo valer a sua própria voz. Essa voz nativa, “de dentro” passa a tecer a
sua própria narrativa, a narrativa de si mesmo, pois, mais do que nunca o terreiro está na academia
e ocupa os espaços de pensamento e reflexão a partir da sua própria cultura. Vivemos uma cultura
em que o subalterno cria fissuras no discurso para começar a falar a partir de si, pelas margens.
Vivemos um tempo de encruzilhadas múltiplas em que os exus de “de dentro” querem ser ouvidos.
Desse modo, tento fazer um contorno filosófico em torno desse imaginário que foi sendo construído
a partir da figura de Exu, o primeiro Orixá a ser cultuado no Candomblé, aproximando-o da figura
de Dionísio, da mitologia grega, deus do vinho, da embriaguez, da confusão, do movimento, enfim,
da vida. Como bem salientou Balandier, ao embaralhar as cartas e nos propor pensar a partir dos
dédalos da memória, o autor traz a força das encruzilhadas do imaginário ao buscar no mundo grego
sua compreensão originária a partir do mito de Dionísio. Contanos:

Dionísio é o seu emissário na cidade, com a mesma capacidade de jogar com as formas que a
razão estabelece e os limites que a lei fixa. Ele é a figura da subversão no helenismo, da irrupção
selvagem que subverte a ordem social e leva ao paroxismo uma tensão na qual a tragédia tem sua
origem” (BALANDIER, 1997 p. 123).

Foi assim que o mito fixou os modelos exemplares e as ações humanas. Aprendemos a ver o
mundo pela mitologia grega, onde Dionísio se transformou em figura subversiva da ordem social e
instauradora do caos. É o representante da fusão, da confusão, do barulho, da metamorfose. Sem dú-
vidas a figura de Exu tem todas essas características de Dioniso, como tem também algo de Hermes,
deus mensageiro e da comunicação, mas foi retirado de nós, principalmente os negros a sabedoria da

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mitologia dos orixás e foi tida como linguagem única e universal, a mitologia grega. Exu e todos os
outros mitos afro-brasileiro foram retirados de cena e colocados na margem da cultura.
Acredita-se no Candomblé que nada se faz sem Exu. Isso porque ele representa as paixões, a
virilidade, o movimento, a fusão entre o todo e a parte. O lado criança de todos nós, a rebeldia, en-
fim o lado criativo do homem. A complexidade mitológica e filosófica desse Orixá impulsiona-nos
a perguntar pela sua complexidade enquanto signo mundano e trágico da existência. É ele, Exu, a
pós - modernidade com todos os seus medos, temores e tremores. É Exu quem faz e desfaz tudo e
todos. Assim, a literatura yorubá enraíza-se na encruzilhada do imaginário e faz desse lugar, o “en-
tre lugar” do pensamento. É na encruzilhada que o pensamento se potencializa e se fortalece. Daí
fortalece o imaginário e o poder que existe na figura de Exu, como arte - afro-brasileirada - Dife-
rença por excelência, pois é causador da desordem e porta-voz dos fluxos desejantes. É Exu a erótica
da vida. Instaura aí uma ética e uma estética da multiplicidade, da individuação e do Devir. Exu é a
Diferença por ser, o imaginário coletivo e individual.

EXU: A ENCRUZILHADA COMO PEDRA FILOSOFAL

Falar em Exu significa questionar, tencionar e abrir encruzilhadas filosóficas para pensarmos
a pedra filosofal, pedra primeira, princípio dinâmico. Exu é uma palavra polissêmica, plural, contro-
versa e polifônica. É um risco aberto no caos. Tudo cabe, pois abarca a totalidade e a singularidade. É
complexus, pois liga como uma trança, abraça o uno e o múltiplo. Exu significa na linguagem yorubá
“esfera”, ou seja, aquilo que é infinito, que não tem começo e nem fim e representa o todo ou a fusão
das partes. Trata-se de uma esfera que abarca as forças cósmicas e caóticas da natureza. A fusão entre
o alto e o baixo. É um todo em si e por si, aberto e fechado em si mesmo. Representa a totalidade,
o ser em sua plenitude, um telos, ou ontologia fundamental. A Tese de Juana Elbein dos Santos foi,
certamente, uma das mais aprofundadas e que abriu caminhos para outras leituras acerca de Exu
quando a autora o assume como o “princípio dinâmico e princípio da existência individualizada no
sistema nagô”, pois segundo ela,

além da motivação poderosa provocada pela complexidade e riqueza do símbolo estudado, a


análise de Esu se impõe como imprescindível para a compreensão da ação ritual e do sistema
como totalidade (SANTOS, 1986,p. 130).

No entanto, esse princípio dinâmico é fundamental para compreender a performance e a tota-


lidade do sistema nagô, pois cada um possui seu exu pessoal, formando uma unidade e gerando, por
sua vez, uma multiplicidade. No entanto, exu é a filosofia primeira, a causa material, formal, eficiente
e final. A primazia do ser e do vir-a ser. É a filosofia logocêntrica por carregar a marca da masculini-
dade, arauto do poder, o bastão erótico. Por isso exu representa a força e a potência de criar, de fazer
gerar, de fazer movimentar. Ele é aquilo que é, mas é também o vir-a-ser, o devir. Tem o poder de
gerar a si mesmo e gerar o Outro. Exu, sob o signo do infinito não começa e não termina, é sempre
o caminho, o meio, o intermezzo. Vai da identidade à diferença, do eu, ao outro, princípio material
e imaterial. Exu é o princípio da sabedoria que se estende ao infinito. É o apaziguamento do ser e a
insatisfação do devir. É a pedra filosofal que abarca tudo o que há, tudo o que existe.
De fato no Candomblé, o primeiro Orixá a ser cultuado é Exu. No entanto, o mito desenha o
Orixá, conta suas brigas, suas confusões e marcam os rumos dos homens, pois a Mitologia dos Orixás
se funde e se confunde com o destino dos homens na terra. Reginaldo Prandi (2001), dentro dessa
complexidade mitológica, retoma um dos mitos mais importantes da figura de Exu, onde ele “se
atrapalha com as palavras”. Orunmilá perguntou ao homem onde ele queria morar se era dentro ou
fora da casa e o homem disse “dentro” e, de repente, perguntou “E tu, Exu? Dentro ou fora?”
Exu levou um susto ao ser chamado repentinamente, ocupado que estava em pensar sobre
como passar a perna em Orunmilá. E rápido respondeu: “Ora! Fora, é claro”. Mas logo se corrigiu:
“Não, pelo contrário, dentro”. Orunmilá entendeu que Exu estava querendo criar confusão. Inteli-
gentemente, Exu tenta trapacear Orunmilá com as palavras. Com seu jeito astuto, transforma em
uma criatura de “confusão”. Signo da desordem, Exu mostra seu lado malandro. Com essa confusão

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criada por Exu, ele passou a criar sua morada fora da casa. Diferente dos outros Orixás que moram
dentro. Um “assentamento” de Exu em forma de pedra, dentro de uma vasilha de barro, no tempo,
no aberto, próximo a uma enorme árvore, é o primeiro Orixá a ser cultuado no Candomblé. Desse
modo, o princípio é Exu. O verbo. A palavra. A confusão. A Diferença. A criatividade. É preciso
acionar o exu individual para criar.
Foi a pesquisadora Leda Maria Martins que nos ensinou:

da esfera do rito e, portanto, da performance, a encruzilhada é lugar radial de centramento e


descentramento, intersecções e desvios, texto e traduções, confluências e alterações, influências
e divergências, fusões e rupturas, multiplicação. Operadora da linguagem e de discursos, a
encruzilhada, como lugar terceiro, é geratriz de produção sígnica diversificada e, portanto, de
sentidos plurais (MARTINS, 2006, p. 64-65).

Ora, ao carregar as pulsões de centramento e descentramento, a encruzilhada transforma-se


numa complexidade filosofal por abarcar a um só tempo o texto, tecido da vida com suas fusões e
confusões, metáfora dionisíaca por excelência. Exu e Dioniso são tentações mundanas, pois estão
ligados ao prazer, ao desregramento, à satisfação da carne. Por isso exu é o corpo com todo o seu ape-
tite sexual e criativo. O corpo é capaz de traduzir todos os signos do verbal ao não verbal, produz o
discurso e a ação. O corpo como um texto comunica o sistema, aproxima se distancia, se recolhe em
si e se joga no mundo. É exu que permite que o corpo goze da vida, se enche de prazer e se multiplica.
Daí essa pedra filosofal que é feito de matéria não formada, sente a necessidade de uma forma. Desse
modo, o exu é o arché, princípio originário, a unidade que gera a multiplicidade.
Como princípio originário, ele é também o ápeiron, o infinito ou o ilimitado. Exu não tem
limite por gerar, reproduzir e multiplicar infinitamente. É essa presença que faz unir o caos e o cos-
mo. Se Exu é o signo do caos, e dele sai a sombra, a noite. Essa capacidade de gerar. Exu é a matéria
movediça, a matéria primeira, elemento essencial. Os elementos tais como água, fogo, terra, ar são
conectados para fortalecer a força geradora do universo. O otim (cachaça), a água (omin) molham a
terra e o corpo, trazendo movimento do eterno ascender e apagar-se na natureza, movimentando-a
e não deixando o ciclo parar. A água está e, tudo por ser o princípio de tudo e através dela se chega
a essa consciência de que a essência é o um, o verdadeiro, o em si e ara si. A existência do mundo é
marcada por esse finito-infinito que gera a existência singular e universal.
Se levarmos a cabo a antiga afirmação de que tudo é um, exu como a unidade é gerador da
multiplicidade, é o que torna as coisas reais e verdadeiramente existentes. Como produção sígnica
e tradução intersemiótica, exu é o que gera a ação, pois a palavra tenciona, permite e possibilita
abertura de si para si e de si para o outro e para o mundo. Exu é o guardião da rua, dos caminhos,
da estrada. Logo, para manter um elo com a Casa de Santo o Terreiro, o espaço liso dos deuses-
-demônios, é preciso entrar no bando, passar pela porta, pelo portão, pedir licença (agô) para Exu,
para que o Povo do Santo não se meta em encrencas mais tarde e muito menos desarmonia e
contrariedade ao bando. Augras reconhece: “Tudo o que se une, se multiplica, se separa, se trans-
forma, tudo isso é Exu. Exu é a vida, com todas as suas contradições e sínteses” (AUGRAS, 1983,
p. 104). É animado com esse exercício de sensibilidade antropológica que Georges Balandier nos
dá essa compreensão.

Por ser o Deus da comunicação, tem o dom da ubiqüidade e pode estar em ação em muitos
lugares. Tem seu lugar em todos os grupos de culto e em todas as casas. É associado aos
lugares de encontro e passagem, as encruzilhadas, os logradores públicos e os portais (BA-
LANDIER, 1997, p. 98).

Desse modo, Exu é o guardião da rua, dos caminhos, da estrada. Logo, para manter um elo
com a Casa de Santo, é preciso entrar na tribo, passar pela porta, pelo portão, pedir licença (agô) para
Exu, para que o Povo do Santo não se meta em encrencas mais tarde e muito menos desarmonia e
contrariedade à tribo. Em outras palavras, Exu é a vida em metamorfose. É o que movimenta e inten-
sifica a vida. É o que mantêm a ordem e a desordem. É a Dobra. Exu é a síntese da Diferença, o que
nos impulsiona a criar. Exu, como signo da individuação, é o poder que gera a ação e começa no jogo

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de búzios invocando a sua presença. No Candomblé, o princípio de transformação se dá pelo Jogo de
Búzios, pois é através dele que os Pais de santo dialogam com os deuses e acionam o axé, princípio
dinâmico que faz com que tudo e todos se movem e se comovem. É Exu quem traz, através do jogo,
a informação capaz de manter o movimento entre o Órun e o Aiyê. Sua dança desenha-se com maior
clareza nos rituais onde se “despacha” Exu. Assim, sua dança representa o movimento da vida, pois
Exu joga o corpo para frente, para traz e para os lados como um boêmio, “jogado” no mundo, desgo-
vernado, dando ideia de liberdade, de devaneio, aberto à sexualidade, ao prazer mundano. Faz gesto de
que é o deus da bebedeira e do prazer da carne. Os Exus se desdobram, como todos os demais Orixás.
Todo homem revela seu devir - Exu, seja no excesso, na bebedeira, na orgia, no frenesi, enfim,
Exu está em tudo que se movimenta e tem vida. Como pretendeu Maria José Barbosa (2006), “é con-
siderado uma força motora”, geradora, criativa, onipresente”, “cuja existência se faz nas margens, nos
limites, na liminaridade e nas suas múltiplas caracterizações”. Exu, é, nesse caso a pedra primeira e
filosofal que une e separa, carrega a unidade e a multiplicidade. A capacidade infinita de criar, pois
representa os caminhos. Mais ainda ele representa a parte criativa vê todos nós. A encruzilhada é o
espaço da criatividade e da invenção de novas possibilidades de vida. Ora, assim como Exu é a multi-
plicidade, assim como o demo tem várias máscaras, se desdobram em “qualidades” de Exu: Alaketu,
Tiriri, Ina, Onã, Bará e Legba. Exu-Legba, pode dispensar a felicidade ou a desgraça, perturbar,
construir ou destruir.
Ensinou-nos o filósofo Félix Guattari:

o Legba é um punhado de areia, um receptáculo, mas é também expressão da relação com


outrem. Encontramo-lo na porta, no mercado, na praça da aldeia, nas encruzilhadas (GUAT-
TARI, 1992, p. 59).

Assim Guattari traz a figura de Legba como expressão da relação, da comunicação e poder
da encruzilhada. Existe a instauração de uma cidade subjetiva marcada pela heterogênese, pelo
paradigma estético, pela desterritorialização, pelo caos e pelo descentramento do sujeito para a da
subjetividade e como potência da desordem e do movimento. Assumir essa forma de pensamento
é assumir a encruzilhada como uma forma de pensamento-acontecimento que subverte a ordem
e a instaura o caos a partir de uma produção de subjetividade que é plural e polifônica. A encru-
zilhada é a afirmação das várias subjetividades e da polifonia das vozes. Legba que embaralha,
age por esperteza e, com isso, transforma-se no poder e no intempestivo. É Legba quem está nas
encruzilhadas de todas as relações. O “assentamento” de Exu é feito de argila, no barro, na terra,
em forma de um O pênis ereto, avantajado. Sua saudação: Laroiê, Exu! As relações com o bando é
sempre uma relação mediada por Exu, ou seja, por movimentos de conversação, diálogos, disparos
de pensamento. A encruzilhada sempre, o meio, o entre e, é claro, a palavra que ativa o pensamen-
to, pois Exu é o poder de comunicação.
De entendimento e, é claro, de desentendimento. É o que desconfia de tudo. Exu é sagaz. É es-
perteza. É estrategista. A pitada de sal e pimenta da relação com o bando. Será sempre necessária
para o transe conceitual e para ativar o jogo da diferença já que Exu é o deus-diabo que nos ensina
jogar pois ele é o Ifá, o jogo que mantém o mundo vivo e ativo e nos ensina também a nos armar
conceitualmente e também a nos desarmarmos. Desse modo, é Exu a vida do fora. É o fora da
clausura. É o fora da representação. É o que não quer morar dentro da casa. É o rebelde no meio
do bando dos Orixás, o que se atrapalha com as palavras e engana a gente. Todo artista tem seu
Exu no corpo. O deus-diabo que incomoda, o azougue maligno que vira o pensamento do avesso,
embaralha e caotiza a vida. É a vontade de poder sempre. É o primeiro sim no Candomblé. É o que
todos temem e todos desejam, pois ele nos inspira ao falo, à fala e à vida.
Dito de outra maneira, Exu, Hermes e Dionísio são deuses na fronteira com o caos, com a
criação, com arte e com a vida. São tentações estéticas por dialogarem com as forças “do fora”, com
a errância, com o nomadismo e com a Diferença. Exu e Dionísio como signos trágicos e caóticos nos
fazem dar sim à vida, mostrando assim que a arte dionisíaca é o signo da rebeldia que potencializa
a vida e nos lança na encruzilhada do imaginário criativo e artístico. Desse modo Exu é, a um só
tempo o imaginário individual e a boca coletiva. Essa será nossa próxima encruzilhada.

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EXU: A BOCA INDIVIDUAL E COLETIVA

Ora, antes de falarmos de Exu como boca coletiva e individual é importante mostrar o que
compreendemos por encruzilhada e para isso é importante compreendermos a essência da Filosofia
de Exu. Em os nagô e a morte: Padê, asese e o culto Égun na Bahia, Juana dos Santos traz uma com-
preensão aprofundada:

Exu está profundamente associado ao segredo da transformação de matérias-massas em in-


divíduos iferenciados. Símbolo do elemento procriado, princípio dinâmico e da comunicação,
encarregado de transportar e de restituir o ase dos dois genitores míticos, assegurando a procria-
ção, a existência individualizada, acompanhante de todas as unidades ou seres, possui diversas
representações materiais (SANTOS, 1986. p. 208).

No entanto, para a pesquisadora Exu está relacionado ao segredo da transformação de indi-


víduos e das matérias. É o que transporta e transforma pelo signo da comunicação. Assegura, com
isso, a procriação e a multiplicação. É por isso que Exu se transformou no poder da encruzilhada,
pois é o lugar de conflitos, diálogos e reflexões. Essa sabedoria da encruzilhada é a força e potência
viva dos Terreiros. Recorro-me à sabedoria de dentro, das mais velhas para esclarecermos melhor
a complexidade mítica e mística de Exu. Em um trecho da introdução do livro Caroço de dendê: a
sabedoria dos terreiros, de Mãe Beata, Vânia Cardoso escreve:

a encruzilhada é o espaço regido por Exu, aquele que, segundo mitos, é a boca ávida que devora
tudo o que existe, mas que também regurgita, regenera e recria. Essa encruzilhada é aqui um
espaço de confluência e recriação cultural. É o espaço em que várias culturas africanas trazidas
para o Brasil confluem e são recriadas, devorando e reinterpretando, nesse processo, elementos
culturais indígenas e europeus (CARDOSO, 2008, p. 15-6).

Essa capacidade de transmutação, transformação e transfiguração de Exu abre uma série de


leituras e possibilidades. Esse signo da boca viva que devora tudo regenera e recria é a capacidade que
nos leva a entender e ampliar a encruzilhada como lócus de confluência, espaço híbrido, trans e mul-
tidisciplinar eu permite com que todos os saberes se conectem e dialoguem entre si. A encruzilhada
como espaço de reinvenção do mundo é também o espaço de reinvenção da cultura e de nós mesmos.
A encruzilhada é o lugar da criatividade em demasia onde tudo é possível, onde podemos potencia-
lizar a arte da mixagem a partir de um punhado do caos. Para além do sintagma e do paradigma,
é o espaço do devir. É, em síntese, a boca que tudo devora. A boca é o território que mostramos a
nossa sabedoria e a nossa ignorância. Quando a boca resguarda o silêncio, impõe o conhecimento.
Somos tentados a falar, pois a fala aguça a nossa imaginação e nos permite criar novos rearranjos
discursivos.
Embora exu represente os cinco sentidos, a visão e por ser o olho que tudo vê e tudo observa,
a audição, pois exu é a inteligência para escutar o outro, para acolher em si o caos que vem de fora
e o movimenta. Ele é o tato, pois nos faz aprender através da sensibilidade do toque, ele é paladar,
pois a boca nos faz provar, experimentar os prazeres da vida, repulsar e acolher o alimento, o doce,
o salgado. Pela língua mostramos o que gostamos ou não e discernimos a sensação do gosto. A boca
carrega em si uma complexidade maior, pois além de abrir o caminho da fala, a voz que provoca algo
no outro, repulsa, aproxima.
A boca é o signo mais complexo, pois é através dela que respondemos as indagações de fora
e ali nos permitimos o movimento entre quem fala e quem escuta. Portanto, é o signo da dialética,
da hermenêutica. Não é a toa que Hermes, na Mitologia grega é o que mais se aproxima de Exu
por ser a comunicação, a interpretação, a linguagem, a palavra, o que transporta e transforma. Pela
boca, a voz, a ressonância de nossas palavras nós devolvemos ao outro seus signos, podemos ativar
a maquinaria da conversação e podemos ali também parar, pois o outro nos perturba através dos
ruídos e sons que não são bem acolhidos em nossa parede sonora. Podemos nos simpatizar ou nos
antipatizar com uma pessoa através do som que ela provoca. O olfato é um signo imponente, pois
através dessa sensação podemos trazer memórias afetivas do passado e potencializar o gosto por

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algo. Intensificam-se nossos desejos. A boca o signo do prazer, do desejo, mas também do desprazer.
Foi o que a feminista negra Grada Kilomba nos trouxe ao falar da máscara de Anastácia como um
dos traumas da colonização:

a boca é um órgão muito especial. Ela simboliza a fala e a enunciação. No âmbito do racismo, a
boca se torna o órgão da opressão por excelência, representando que as/os brancos querem - e
precisam - controlar e, consequentemente o órgão que historicamente, tem sido severamente
censurado” (KILOMBA, 2019, p. 34).

Ao dar um estatuto linguístico, ontológico e privilegiado à boca, ela se transforma em um


órgão especial por trazer a ideia da enunciação e da fala e ao mesmo tempo representa o signo da
opressão. Pedir para alguém se calar significa tirar dele seu regime de autorização discursiva. Mais
que isso: significa retirar seu direito de humanidade. Exigir o silêncio de alguém é dizer que a sua
vida, seu corpo, sua história, sua existência, sua voz não importam. É assumir que o outro não pode-
rá ter voz e fortalece com isso a voz una, universal de homem branco, europeu e heterossexual. Exigir
o silêncio de alguém é tirar dela a soberana liberdade enquanto sujeito falante e atuante no mundo.
É aprisionar o outro e fazer questão de dizer que o subalterno não pode falar e que ele viverá
eternamente aprisionado pelo discurso que de fato está autorizado e legitimado a falar. Impedir o
outro falar significa aprisioná-lo e sempre essa a tentativa do colonizador. Juntando-se à boca, que
é a capacidade de falar e ao ouvido a capacidade de escuta, todos os sentidos se fundem e moldam a
inteligência através da memória e geram a experiência particular de cada individuo. Por isso a fala
será sempre da ordem do individual ao passo que a língua será da ordem do social, do coletivo. Exu
é esse “meio” entre a fala individual e a língua, do coletivo, socialmente dramatizada pelos sujeitos.
Todos esses sentidos impulsionam em nós o desejo de conhecer. Provocam sensações múlti-
plas. Esses sentidos se organizam em nossas cabeças e fortalecem a memória. Graças à experiência
dos sentidos que nos levam a conhecer e discernir as sensações. Temos um gosto que é universal, mas
a singularidade do gosto é o que faz de cada um de nós, um ente singular. A memória individual é
construída por que existe uma boca individual que experimenta, mas existe uma boca coletiva que
sente coletivamente por que experimentou individualmente. Essa dialética entre o individual e o
coletivo, o particular e o universal, o todo e a parte, formam um continnum, uma trança. A ideia de
trança talvez abarque melhor a complexidade em questão, uma vez que complexus significa o que
liga, o que funde, o que junta.
Em termos filosóficos, as palavras que mais aproximam da encruzilhada como metodologia e
estratégia de ação são: dispositivo, agenciamento e interseccionalidade. Foucault foi o filósofo que fez
dessa palavra uma estratégia de seu pensamento. É uma palavra aberta que não tem uma definição
pronta. A sua beleza e riqueza consiste em ser uma estratégia de ação, marcada por uma heteroge-
neidade que implica discursos, instituições, práticas, decisões, ou seja, é uma rede que está ligada a
movimentos de poderes e saberes. É uma estratégia marcada pela heterogeneidade linguística e não-
linguística. Ou seja, é um conceito guarda-chuva que não se esgota em uma possibilidade, pois nos
permite arranjos múltiplos discursivos e performáticos. Pensar a encruzilhada como um dispositivo
significa dizer que ela pode ser várias coisas. É um campo de experimentação teórica marcada pela
subjetividade e pelo sentimento. A encruzilhada é um agenciamento político e maquínico. Deleuze, o
pensador nômade da diferença tematizou e problematizou a noção de agenciamento. O agenciamen-
to é uma máquina de guerra que ataca a representação clássica e nos faz criar um plano de pensa-
mento imanente. Se a encruzilhada é o lugar de exu, a pura imanência, a exigência do novo, da cria-
tividade, do atual, do impensado, a encruzilhada é a estratégia de ação e uma forma de pensamento
devastador e desastroso, portanto necessário para desestabilizar as familiaridades do pensamento e
colocar em xeque as regras da representação que veio da herança cartesiana.
Acredito que tanto Foucault quanto Deleuze nos inspiraram modos de vida e a pensar di-
ferentemente do que estamos acostumamos. Para isso, é preciso estranhar o óbvio sacudir as evi-
dências. São dois pensadores pós - coloniais que nos incentivaram e se transformaram, por sua vez,
juntamente com Jacques Derrida, em potentes encruzilhadas de nosso tempo. A interseccionalidade
por sua vez, é um monstro conceitual que vem abrindo frente para pensarmos, pois “nos coloca na

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encruzilhada do pensamento feminista negro” (AKOTIRENE, 2019, p. 86). Carla Akotirene aposta
nessa ideia ao fazer um estudo cuidadoso desse conceito, levanta as poeiras de sua origem que foi
cunhada por Kimberlé Crenshaw. Pensar a encruzilhada como estratégia de ação política significa
trazer a força política da interseccionalidade, pois através de seus trânsitos e múltiplos deslocamen-
tos pensar o sistema de opressão nos dá instrumentos para enxergar a matriz colonial moderna, nos
colocando de vez na encruzilhada do pensamento feminista negro e com isso descolonizar perspec-
tivas hegemônicas. Por isso Carla Akotirene (2009) evoca a força de Exu, signo da comunicação e da
encruzilhada, diz ela, “portanto da interceccionalidade”, pois nos permite “beber da própria fonte
epistêmica cruzada”. É nesse sentido que o cruzamento de pensamentos nos faz diluir as fronteiras
que existem e que foram construídas e edificadas no chão colonial. Assim, o feminismo negro “dia-
loga concomitantemente entre/com as encruzilhadas”. É uma forma potente de colocar em xeque e o
desestabilizar o poder colonial, trazendo a opressão e ao mesmo tempo aponta caminhos, encruzi-
lhadas e novas maneiras ser, pensar e estar no mundo.
Dito de outro modo, é fundamental pensar exu como signo da boca individual e coletiva para
trazer a luz da interseccionalidade, dos múltiplos trânsitos e deslocamentos. Como é importante
pensarmos a noção imaginário a partir da compreensão ética e estética do candomblé. É nessa
encruzilhada antropológica que se ergue o imaginário nos terreiros. Essa será a nossa próxima
travessia.

O IMAGINÁRIO: UMA ENCRUZILHADA ANTROPOLÓGICA

Foi Gilbert Durand (2002) quem afirmou com toda força que “O imaginário é esta encruzi-
lhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência humana por
um outro aspecto de uma outra”. Ou seja, pensar a encruzilhada de exu como imaginário individual
e coletivo significa pensar a encruzilhada do humano. O homem existe rodeado de imagens que
constituem seu capital humano. Imaginário e imaginário e imaginação a pesar de serem instâncias
diferenciadas, se interligam, se completam.
No candomblé o imaginário está diretamente ligado ao conjunto de imagens, signos e sím-
bolos que desenham a beleza estética dos terreiros. Assim, estética e imaginário estão intimamente
ligados. No entanto, o terreiro transforma-se em um prodigioso e fecundo espaço de signos e símbo-
los que ativam o imaginário e faz do homem porta voz e intérprete desse complexo Yorubá. Geertz
pondera que: “os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo - o tom, o caráter
e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos” (GEERTZ, 1989, p. 67). É esse
ethos e visão de mundo que povoa a comunidade-terreiro, pois os adornos, os adereços e o modo de
ser sintetizam e contornam a identidade estética, ética e religiosa do Povo- do- Santo.
É a partir desse imaginário que a vida nos Terreiros é desenhada, pois o fenômeno religioso se
contorna nesse complexo de imagens, em que a cultura e os símbolos se fundem formando o espaço
sagrado que é o Terreiro, espaço que acontece toda dramaturgia religiosa entre Pais, Filhos - de -
Santo e simpatizantes. Evidencia-se desse modo, que o homem é um ser seduzido pelas imagens, pois
são elas que têm o poder de ativar a nossa inteligência e nos fazer pensar o homem e a nós mesmos
nessa “encruzilhada antropológica” que é a cultura. Para problematizarmos a noção de imaginário
que povoa a comunidade - candomblé, precisamos perguntar o que compreendemos por isso.
Diz Gilbert Durand:

Em resumo; tal como há dez anos, o Imaginário-ou seja, o conjunto das imagens e relações de ima-
gens que constitui o capital pensado do homo sapiens – aparece-nos como o grande denominador
fundamental onde se vêm encontrar todas as criações do pensamento humano. O Imaginário é
esta encruzilhada antropológica que permite esclarecer um aspecto de uma determinada ciência
humana por um outro aspecto de uma outra (DURAND, 2002, p. 18-grifos nossos).

Segundo Gilbert Durand, em suas Estruturas antropológicas do imaginário, o imaginário é


esse conjunto de imagens e relações de imagens onde surge toda criação do pensamento humano. É
a imagem que seduz e ativa a imaginação simbólica e criadora. Dessa maneira, a fenomenologia da

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imaginação criadora tem como fundamento a própria imagem, pois é assim que se pode traduzir a
antropologia do imaginário: como relações de imagens que funcionam e ativam a inteligência hu-
mana, seduzindo-a a ponto de fazer do homem um criador e um feitor de suas criações. É a cabeça o
espaço do devaneio, da fabulação, onde as imagens se combinam e o mundo se edifica e passa a ter
sentido. O Candomblé, como espaço da visualidade e da imagem, é o espaço sagrado que coloca o
homem em delírio diante da permanente compreensão e busca de si mesmo. O imaginário no Can-
domblé se configura a partir de toda uma construção mitológica que é interpretada pelo imaginário
das danças e pela riqueza dos movimentos que contornam ética e esteticamente a vida do Povo- do
Santo.
Em Durand (2002) existe uma ontologia da imagem que ativa a imaginação que leva o homem
a um constante e infinito processo de associacionismo. Desse modo, a imagem tem um papel funda-
mental na vida psíquica, pois “o papel da imagem na vida psíquica é rebaixado ao de uma possessão
quase demoníaca” (DURAND, 2002, p. 23). É assim que somos inquietados e seduzidos pelo poder
da imagem que se impõe ao pensamento. O Terreiro como forma de pensamento visual e imagética,
forma toda uma “família de imagem” afro, desenhando uma ética e uma estética no próprio cotidia-
no festivo e religioso. Quando se é convidado a compreender e percorrer os labirintos estéticos do
Terreiro de Candomblé, somos arrastados para todo um complexo de imagens ou uma poética da
imagem afro que funciona e ativa a imaginação criadora.
Bachelard ao propor que “é preciso estar presente, presente à imagem no minuto da imagem”
(BACHELARD, 1984, p. 183), nos fez compreender que somos seduzidos pela imaginação criadora.
É esse minuto da imagem que ativa a imaginação e o homem é capaz de se reconhecer como alguém
que é constantemente seduzido pela imagem. É desse modo que Gilbert Durand (2002), em sua
leitura bachelardiana, assume que a imaginação é um dinamismo organizador e o mesmo é fator
de homogeneidade na representação. Com isso, a imaginação, mais do que fabricar imagens, é uma
potência dinâmica que se transforma em eixo formador de toda vida psíquica.
Com isso, a Antropologia e, de certa forma, a arte literária se fundam nesse complexo imagé-
tico e nesse imaginário que ativa o pensamento e faz da etnografia uma pura interpretação, pois “o
que ela interpreta é o fluxo do discurso social e a interpretação envolvida consiste em tentar salvar o
“dito” num tal discurso da sua possibilidade de extinguir-se e fixa-lo em formas pesquisáveis” (GE-
ERTZ, 1989, p.15). Desse modo, o imaginário afro que povoa a Comunidade - terreiro se desenha
nesse complexo cultural prenhe de interpretações. É essa política do significado que dá um contorno
antropológico à cultura afro-religiosa e se revela como cultura complexa, fundindo o mito, o imagi-
nário, o ritual, o estético e as múltiplas imagens no próprio Terreiro. Daí se pergunta como se confi-
gura esse imaginário estético e ritualístico no Candomblé? Diz Juana Elbein dos Santos:

o conceito estético é utilitário e dinâmico. A música, as cantigas, as danças litúrgicas, os objetos


sagrados quer sejam os que fazem parte dos altares – peji - quer sejam os que paramentam o
orixá, comportam aspectos artísticos que integram o complexo ritual (...) (SANTOS, 1986, p. 49).

No entanto, o caráter estético do Candomblé deve ser encarado em seu dinamismo, em sua
fluidez, em seu devir, pois é todo um conjunto sagrado integrado à natureza cosmológica dos Orixás
e toda complexidade do ritual, que forma uma obra de arte. No entanto, cada música e cada gesto re-
vela um signo artístico no Terreiro, toda beleza “odara” da vestimenta do Orixá e de toda decoração
do “barracão” recebe esse tom artístico que é típico do Povodo- Santo. Assim, ainda diz Prandi: “O
candomblé é muito confundido com sua forma estética, a qual se reproduz no teatro, na escola de
samba, na novela da televisão - os orixás ao alcance da mão como produto de consumo (PRANDI,
2005, p. 240).
O cotidiano do Povo – do - Santo, dentro dessas complexidades estéticas, revela a beleza,
tanto nos espaços sagrados como nos corpos. São eles que se transfiguram em obra de arte quando
os Orixás estão em terra. No entanto, há no cotidiano do Povo- do- santo uma dimensão ética e es-
tética na valorização da roupa, pois as roupas dos Orixás revelam todo um contorno sagrado, além
de carregarem as cores do santo, elas “vestem” no sentido forte do termo, cada Orixá. A roupa, com
suas cores e adereços, desenham cada Orixá. Nos Terreiros de Candomblé, a roupa e os pertences

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da pessoa não devem ser confundidos com os do Orixá. Essa questão das roupas e adereços merece
destaque, uma vez que são eles que compõem, poética e esteticamente, o cenário dos deuses. Diz
Durand: “o jorrar luxuriante das imagens, mesmo nos casos mais confusos, é sempre encadeado por
uma lógica, ainda que uma lógica empobrecida, uma lógica de “quatro vinténs” (DURAND, 2002, p.
30). Por esse viés, pode-se perceber que o Terreiro de Candomblé transforma nesse espaço luxuriante
de imagens e, mesmo em meio às danças, aos conflitos e movimentos dos Terreiros, existe uma lógica
interna que faz do Terreiro uma trama complexa de símbolos. Para compreender tal complexidade, é
necessária uma ética da convivência intensa e participativa com o Candomblé.
Daí, toda uma convivência nos Terreiros é mediada por esses laços estéticos e éticos desde a
maneira de se cumprimentarem, são todos tomados pela irmandade, desde as saudações que for-
talecem e intensificam ainda mais os laços entre as pessoas que convivem nas casas de santo, nos
terreiros, a partir desse ethos do estar - junto. O cotidiano de uma “casa” de santo ou Terreiro se
potencializa a partir desses elos de irmandade. È a família de santo. A família de axé. É na con-fusão,
metáfora dionisíaca por excelência, que nasce um pensar dionisíaco e intensifica essa sinergia social,
fortalecendo mais ainda o laço da sociabilidade e fortalece a ética da estética do estar junto.
Para Michel Mafessoli (1996), há uma efervescência política e estética que emerge no meio de
nós e que serve de cimento para o tecido social. O Candomblé, como espaço das aparências, é uma
família que se revela em sua complexidade. Podemos observar que o Candomblé não deve ser visto
como apenas um espaço de religiosidade e, sim, como um espaço de irmandade, pois existe ali uma
família no sentido forte do termo. Ela é a mãe, a matriarca, aquela que gerou, deu a vida. A Mãe- de-
Santo a serviço da gestão da vida, a que inicia os filhos de santo nos processos ritualísticos. Daí o
mito e o rito estão intimamente ligados. A estética, evidentemente, faz parte desse complexo.
Assim, o cotidiano do Povo- do- Santo se evidencia em seu caráter ontológico ao se afirmar
na cotidianidade. É essa abertura do ser no mundo e para o mundo que dá dimensão ontológica e
compreensão do cotidiano humano. No discurso, na visão e na interpretação que fazemos de nós
mesmos como ser – no - mundo da cotidianidade. A antropologia filosófica e porta voz da cultura
humana nos faz enraizar mais profundamente na complexidade humana. Dito de outro modo, é
no Candomblé, nesse panteão em mudanças, que podemos compreender a cultura brasileira e os
destinos dos homens, que são entes que sentem em comum o êxtase dos deuses e, dessa comunhão,
podem, assim, extrair signos que os ensinam, acima de tudo, que cada toque que sai do atabaque, é
uma forma de testemunhar a vida, pois o coro, que toca para os deuses, re-liga os homens à natureza
e ao axé1 fortalecendo os laços da cultura e fortalecendo ainda mais a comunidade religiosa. Eis um
aprendizado que é passado na oralidade, seja ensinado pela Mãe de santo, pelos mais velhos, seja pe-
los ogãs que, ao tocar os atabaques, promovem o barulho, a confusão e levam todos a experimentar,
em comum, a dança, o movimento, o grito e a leveza dos deuses. Em outras palavras: “o belo não é
concebido unicamente como prazer estético: faz parte de todo um sistema” (SANTOS, 1986, p. 49).
Assim, os terreiros, dentro de sua estrutura ontológico-existencial, somente passa a ter evidên-
cia nessa potência coletiva, onde, é no estar – junto, com os outros homens e com os deuses, que o ser
passa a existir de forma ontológica. Dito de outra maneira é no estar - junto com o Povo - do - Santo
que damos a possibilidade para criarmos pequenos e eternos instantes que somente tem sentido no
estar - junto- uns- com- os- outros. Assim, o processo estético no Terreiro somente passa a ter vi-
sibilidade na coletividade. O mundo dos homens e o mundo dos deuses no pequeno teatro que é o
Terreiro para o grande teatro que é o mundo. Diz Rosamaria Barbára:

esteticamente um ser humano ou um objeto é belo porque traz consigo uma determinada
qualidade e quantidade de axé e realiza assim uma comunicação entre ele e a comunidade
(BARBÁRA, 2000, p. 151).

Em outras palavras, a beleza que se revela no cotidiano e no estar – junto - com-o-povo-


do-santo é visível por trazer essa qualidade e essa quantidade de Axé que mantêm, por sua vez, a
sociabilidade e a comunicação entre o Orixá e a comunidade religiosa. É assim que o imaginário afro-
religioso permite, em tom festivo, fazer do Candomblé um cenário vivo de imagens que transfigura,
não somente o olhar de dentro, numa percepção estética, mas transporta esse olhar de fora para essa

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“encruzilhada antropológica” do imaginário e do poder para apresentar ao homem que o Terreiro se
transformou no imaginário do próprio mundo como obra de arte.

ENCRUZILHADAS FINAIS

Propôs-se aqui fazer uma abordagem filosófica em torno da epistemologia da arte afro-brasi-
leira a partir da figura de Exu. Como podemos apreender, Exu é um dos Orixás mais complexos da
Literatura africana e da Mitologia afro-brasileira. Próximo a Dionísio, Exu é signo da embriaguez,
vitalidade pura, tropicalmente brasileiro. Funciona como imaginário da Diferença na medida em que
é o signo do “fora”. Fora da representação, fora da clausura, fora da lei, fora da norma, fora do lugar, en-
fim, da “casa”, pois mora na rua. No entanto, é uma vida do “fora” não exterior, pois sendo fora é mais
dentro que o próprio dentro. Criatura de confusão, azougue maligno da Diferença. A terrível, temida e
odiada encruzilhada que fascina, surpreende, aterroriza inquieta e encanta. A encruzilhada é a síntese
da tragédia da vida. Exu é Orixá que não aspira uma morada, nem o centro. Está em toda parte. Mas
não se pode apontar nem cá nem acolá e está cá, estando ali, acolá. Orixá-deus-diabo-confusão. Exu é
trapaceiro de mão cheia, pois finge que vai e volta do meio para trás.
Quando se fala em imaginário no candomblé desenha-se em nossas cabeças todo um comple-
xo de imagens que povoa desde a Mitologia dos Orixás, aos adornos, enfeites, cores e símbolos que
compõem o cenário afroreligioso e faz do Candomblé uma religião artisticamente desenhada. Exu,
que foi um Orixá fortemente demonizado pelo Cristianismo, é desenhado por uma aura que se revela
como signo da vida, da potência da vida, dos fluxos e cortes permanentes da natureza, pois repre-
senta a dialética, o que movimenta tudo e todos, fortalecendo o “véu de maia” da humanidade. Exu,
como todo um imaginário diabólico, que intensifica e fortalece as relações, faz acontecer a comuni-
cação entre os homens. Signo da desordem, por excelência, Exu é o elemento fogo, terra, água e ar
fundindo em um só: a vida em seu devir. É esse imaginário que Exu edifica como signo da confusão,
se transfigurando em imaginário da sexualidade, do erotismo, da virilidade, dos fluxos desejantes,
revelando o lado menino, brincalhão e jocoso do próprio homem, intensificando uma sabedoria em
torno do imaginário fálico que denota o poder do homem diante da sexualidade e da vida. Essa é
apenas uma das maneiras em que o poder se transfigura no Candomblé a partir de um ethos festivo
e dionisíaco e que faz do Terreiro um potente cenário complexo, que faz com que o homem, através
desse imaginário, busque um novo laço com a natureza.
Em outras palavras, quando se fala em encruzilhada, pensamos em ruas que se cruzam, estra-
das e caminhos. Exu, ao morar na rua, recebeu justamente os poderes da encruzilhada. Um espaço
que confunde e desespera por ser uma multiplicidade de caminhos e o homem está sempre em busca
de uma direção, de uma “verdade”, de um caminho seguro que leve a algum lugar. A encruzilhada
rouba a paz e provoca desconforto ou desassossego. Recordemo-nos de Alice, personagem infantil
de Lewis Carrol, que em sua saga, “no país das maravilhas”, ao se deparar com a encruzilhada, per-
guntou ao gato que caminho deveria seguir, ao que seu companheiro disse: “isso depende muito para
onde queres ir”. Alice afirmou: “preocupa-me pouco aonde quero ir”. Nesse caso, replicou o gato,
“pouco importa o caminho que sigas”. A encruzilhada permite pensar as possibilidades de vida e
de novos caminhos. Assim como Alice foi forçada a pensar qual caminho seguir, não seríamos nós
como essa Alice perguntando a todo instante pelo caminho?
De todo modo, como guardião da estrada e dos caminhos, é Exu quem aponta e direciona,
pois, com todo seu nomadismo, astúcia, inteligência e rebeldia, é ele que transporta e comunica os
mundos. O que provoca o encontro e o desencontro. É a parte quente de nosso corpo que deseja,
respira, transpira, chora, dança e ri, aquela que acende e apaga na medida, o fogo-fátuo, chama viva
da existência, aquela que nos dá prazer, nos desperta e nos acorda para a vida. Como Exu tem uma
morada fixa, assim é o pensamento que é nômade, plástico e criativo. Exu é, de certa forma, a parte
maldita e subversiva de todos nós, inspirando o pensamento, ativando o imaginário e colocando-o
em movimento em busca de mundos e encruzilhadas possíveis para assim afirmarmos a vida. Fazer
valer a filosofia como encruzilhada é propor vazar, escapar e apelar para um pensamento em que os
caminhos e descaminhos se fundem e se confundem. A encruzilhada é esse salto para fora do pen-

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samento. Mas um fora que não se opõe a um dentro. É um fora que escapa e questiona o território, a
fixidez, a unidade, buscando a multiplicidade. É onde tudo se faz e se desfaz.
Desse modo, a cultura não se separa da subjetividade que é plural e polifônica. Cultivar e
refinar o espírito é se permitir estranhar tudo o que é familiar, se mover e se deslocar na cultura
e no pensamento. Mais uma vez lembrando a saga de Alice, não devemos nos preocupar muito
com o caminho a seguir, pois Exu é o que nos arrasta para fora dos sulcos costumeiros, poten-
cializa a abertura de novos caminhos e turbilhona os vivos. O que dispara novos rumos e nos
faz remexer em busca de novas possibilidades de vida. O caminho está sempre por vir. Desse
modo, Exu transforma-se no ápice do imaginário individual e coletivo pois é, a um só tempo,
construção e desconstrução, individualidade e coletividade. É síntese, sendo ao mesmo tempo
tese e antítese. É dialética. É o vagabundo, o vagamundo, o forasteiro, o rebelde, o transgressor
e o mal dito Deus-Diabo de múltiplas faces que ativa a imaginação criadora e nos faz dar um
eterno sim à vida. Laroiê, Exu!

Nota

1 Ora, a noção de axé deve ser compreendida de forma ampla e complexa, pois axé a abarca o todo e a parte
da cosmologia yorubá. Axé se dá, axé se recebe. É a força, a potência, élan vital do candomblé. É a magia e
a mística que circula nos terreiros. É o que verdadeiramente existe.

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