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MULHERES TRANS QUE OPTARAM POR NÃO SE SUBMETEREM À

CIRURGIA DE REDESIGNAÇÃO DE GÊNERO E O ACESSO AOS SERVIÇOS


DE SAÚDE: UMA QUESTÃO DE INTERSECCIONALIDADE

Kelly Cristina Paranhos

Este ensaio pretende promover uma discussão teórica acerca dos embargos
sociais e econômicos que atravessam vivências de mulheres travestis e
transexuais não redesignadas, quando em foco a acesso aos serviços de saúde.
Para elucidar as questões nas quais o tema está envolto, faz-se necessária,
inicialmente, uma análise que apresente conceitos atuais de gênero, passando
por perspectivas corpóreas e psicológicas.

Em continuidade, será necessário apresentar também diferenças entre sexo e


gênero, além de conceituar, em breve resumo, aspectos sobre disforia de
gênero. Tais elucidações serão basilares para ponderar as particularidades
enfrentadas pela população em xeque, quando buscam os serviços de saúde,
tornando possível explanar a respeito do seguinte questionamento: quais os
aspectos interseccionais impedem ou dificultam o acesso de mulheres trans não
redesignadas aos serviços de saúde.

O contexto social atual permite desbravar campos intelectivos pouco explorados.


Dentre tais campos, cumpre observar as questões de gênero. Este, complexo
fator de caracterização, não encontra definição com a observação sexual de
aporte analógico dualista, ou seja: masculino e feminino, de acordo com a
anatomia genética. Para entender o gênero e suas nuances, faz-se necessário
um complexo estudo que se dirige não somente a conceituação, mas a
formações psíquicas: aquela, consequência destas.
Sob este viés, cabe destacar, em apertada síntese, como se dá a construção
típica de gênero. Lattanzio (2011) alega que os adultos não só oferecem os
cuidados iniciais a criança, mas exerce o papel de designar o gênero ao qual
essa deve pertencer. Tal designação ocorre de forma continuada e pode ser
percebida e exteriorizada de forma consciente e inconsciente, não só pela
linguagem falada, como também através do aporte comportamental. Como
consequência, conforme apresenta o autor supracitado, há uma passividade da
criança quanto ao gênero designado pelo adulto. Sendo assim, o gênero
precede o sexo e o sexo organiza o gênero.

Frente a um possível engessamento doutrinário na definição de gênero, surge à


tona um desafio relativamente atual para a medicina moderna: a questão da
identidade transexual; vez que esta subverte a conceituação da conduta social
majoritária, visto a descontinuação anatômica do sexo e do gênero.

A transexualidade, em aspecto amplo, pode ser entendida como a certeza de


pertencimento ao sexo distinto do aporte anatômico sexual, sem que com isso
estejam caracterizadas quaisquer espécies de delírios.

Ainda, na completa definição da Associação Americana de Psiquiatria (1995), o


ser transexual deverá apresentar quatro elementos. Quais sejam: crença
continuada de pertencimento ao sexo diferente do anatômico; não deve estar
ligada a vantagens culturais de pertencimento a dado sexo e precisa estar
acompanhada de uma inadequação no que tange ao sexo e ao gênero; não cabe
a sujeitos intersexuais (hermafroditos, exemplo) e a “inadequação” deve gerar
sofrimento e prejuízo no contato social do indivíduo.

Urge salientar que a identificação com o gênero não está ligada,


necessariamente, a redesignação cirúrgica, ou, como socialmente apresentado,
um horror ao sexo anatômico, a disforia de gênero. Ao contrário, conforme relata
Bento (2006), após pesquisa realizada em um hospital especializado no
atendimento transexual, revelou-se que:
[...]há uma pluralidade de interpretações e de construções de
sentidos para os conflitos entre o corpo e a subjetividade nessa
experiência. O que faz um sujeito afirmar que pertence a outro
gênero é um sentimento; para muitos transexuais, a
transformação do corpo por meio dos hormônios já é suficiente
para lhes garantir um sentido de identidade, e eles não
reivindicam, portanto, as cirurgias de trasgenitalização. (BENTO,
2006, p. 44-45).

Desta forma, segundo Bento (2006), a questão transgênica não se restringe


apenas ao desejo de “adequação” a identidade sexual, mas a percepção social
da existência da condição humana de acordo com a “nova” característica de
pessoa. Entretanto, o quesito não encontra aval social.

Cabe destacar que a redesignação do sexo anatômico é o processo pela qual o


sujeito se submete a procedimentos hormonais e cirúrgicos, no intuito de
estabelecer compatibilidade entre o sexo psíquico e o anatômico. O processo
redesignatório visa adequar a identidade de gênero ao sexo físico, portanto, não
se trata de reconstituir um erro da natureza, como tende a apontar a cultura
heteronormativa (JESUS, 2012).

Em atenção a essa demanda, existe hoje, através do sistema único de saúde,


procedimentos médicos multidisciplinares que visam fornecer ao transexual
aporte hormonal e, se necessário, cirúrgico, para redesignação. O intuito de tais
procedimentos é adequar a anatomia da pessoa transexual à sua apresentação
social e concepção psíquica, entendimento que pode ser extraído da Portaria
2.803 de 2013, elaborada pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2013).

Apesar de o Estado fornecer tais aparatos para procedimentos de alterações


físicas, é possível encontrar resistências variadas no que tange ao acesso aos
serviços citados, principalmente, nos casos de transexuais que não se
submeteram a cirurgia.

Os sistemas de saúde brasileiros, por exemplo, possuem protocolos de cuidados


da população trans inadequados. Iniciando pela questão dos pronomes de
tratamento e nome social, direito de personalidade garantido pelo Supremo
Tribunal Federal por intermédio do recurso extraordinário 670.422 (BRASIL,
2014). Ainda que exista aparato legal, são comuns as queixas de não
observância desse direito de personalidade.

Além disso, há o determinismo heteronormativo que impulsiona mulheres que


não desejam passar por cirurgias rederignatórias fora do sistema, uma vez que
não há larga explanação social a respeito da possibilidade, dita como
controversa, de uma mulher possuir genitália masculina (JESUS, 2012).

Sendo assim, as mulheres trans não redesignadas, encontram somados


problemas quando tentam acessar o serviço de saúde. Seja o direito ao
tratamento a partir do pronome correto, seja por transfobia, seja o aspecto
redesignatório visto como indubitável, os serviços de saúde contribuem para a
marginalização de um público já marginalizado.
REFERÊNCIA

Associação Americana de Psiquiatria. DSM-IV-TR Manual diagnóstico e


estatístico dos transtornos mentais. 4 ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995.

BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na


experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006.

BRASIL. Constituição (1988). Vade Mecum Acadêmico de Direito Rideel,


São Paulo, p. 21, jan/fev. 2014.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 2.803, de 19 de novembro de 2013.


Diário Oficial [da] União, Brasília, DF, 20 nov. 2013. Seção 1, p. 3.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 670.422.


Disponível em:
<Http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoAndamento.asp?incidente=4
192182> Acesso em 05 de abr. 2015.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rcl 15820 MC. Medida Cautelar na


Reclamação Constitucional. Disponível em:
<www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=146895036> Acesso
em 01 de abr. 2015.

JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero:


conceitos e termos. Brasília: 2012

LATTANZIO, Felippe Figueiredo. O lugar do gênero na psicanálise: da


metapsicologia às novas formas de subjetivação. 2011. 195 f. Dissertação
(Mestrado em psicologia) – Curso de Psicologia, Universidade Federal de
Minas Gerais, Minas Gerais, 2011. Disponível em: <
http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/handle/1843/VCSA-8J9G7E>.
Acesso em: 01 mar. 2015.

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