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O objeto do presente trabalho é o sen do do projeto arquitetônico entre arquitetos, sobre o qual são
lançadas questões a par r de três principais eixos de inves gação: (i) projeto enquanto método pico da
modernidade; (ii) etapas, linguagens e mediação na concepção arquitetônica; e (iii) possíveis impactos
da adoção de tecnologias nos métodos de projetação. Realiza-se uma revisão de literatura para construir
tal ques onário, obje vando iden ficar os traços essenciais que fazem da noção de projeto um símbolo
no campo da arquitetura, bem como notar possíveis alterações em sua função comunicacional, a qual
geralmente expressa uma intenção de modificação espacial através de uma linguagem específica,
antecipando virtualmente a resolução de questões de obra. De certa maneira, o projeto ambiciona
controlar o espaço e o tempo. Observar a adoção de novas tecnologias e o caráter iden tário que a ideia
de projeto representa para os arquitetos possibilita refle r sobre as condições e os desafios da prá ca
profissional.
PALAVRAS-CHAVE: projeto. arquitetura. modernidade. metodologia. computador.
ABSTRACT
The object of the present work is the meaning of architectural design among architects, on which
ques ons are launched from three main research axes: (i) design as a typical method of modernity; (ii)
stages, languages and media on in architectural design; and (iii) possible impacts of the adop on of
technologies in the design methods, with emphasis on the use of the computer. A literature review is
carried out to build such a ques onnaire, aiming to iden fy the essen al features that make the no on
of design a symbol in the field of architecture, as well as to note possible changes in its communica onal
func on, which generally expresses an inten on of spa al modifica on through a specific language,
virtually an cipa ng the resolu on of construc on issues. In a way, the design aims to control space and
me. To observe the adop on of new technologies and the iden ty character that the design idea
represents for architects makes it possible to reflect on the condi ons and challenges of professional
prac ce.
KEYWORDS: design. architecture. modernity. methodology. computer.
RESUMEN
El objeto de este trabajo es el significado del proyecto arquitectónico entre los arquitectos, sobre el cual
se lanzan preguntas desde tres ejes principales de inves gación: (i) proyecto como un método pico de
modernidad; (ii) etapas, lenguajes y mediación en composición arquitectónica; y (iii) posibles impactos de
la adopción de tecnologías en los métodos de proyecto, con énfasis en el uso de la computadora. Se
realiza una revisión de la literatura para construir dicho cues onario, con el obje vo de iden ficar las
caracterís cas esenciales que hacen de la noción de proyecto un símbolo en el campo de la arquitectura,
así como notar posibles cambios en su función comunicacional, que generalmente expresa una intención
de modificación espacial a través de un lenguaje específico, virtualmente an cipando la resolución de
problemas de construcción. En cierto modo, el proyecto apunta a controlar el espacio y el empo.
Observar la adopción de nuevas tecnologías y el carácter de iden dad que la idea de proyecto representa
para los arquitectos permite reflexionar sobre las condiciones y los desa os de la prác ca profesional.
PALABRAS-CLAVE: proyecto. arquitectura. modernidad. metodología. computadora.
O caso brevemente relatado acima evidencia o caráter simbólico conferido à noção de projeto,
a qual assinala as peculiaridades das a vidades dos arquitetos, o que contribui para
mobilizá-los. Esse episódio reverbera um movimento iniciado muito antes e em outro lugar,
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O documento cita pensadores famosos no campo, os quais se dividiram entre a realização de projetos e o ensino
universitário e propuseram delimitações para o trabalho dos arquitetos. Dentre eles encontram-se o brasileiro João
Ba sta Vilanova Ar gas, o italiano Vi orio Grego e o norte-americano Christopher Alexander (Cf. INSTITUTO DOS
ARQUITETOS DO BRASIL, 2013).
Segundo Bou net (2002, p. 33-34), a acepção moderna de projeto (de forma ampla, não
restrita à arquitetura) data do final do século XVII e indica a fusão entre as noções de desígnio
e obje vo, isto é, de propósito e meta. Típico do “tempo técnico” e precursor do Iluminismo, o
termo projeto é desconhecido pela racionalidade medieval, caracterizada pela repe ção do
tempo agrário, no qual o presente pretende ser a reedição de um passado que não se
desatualiza (BOUTINET, 2002, p. 34). Isto posto, a noção de projeto na modernidade está
in mamente ligada à forma de compreensão do tempo, mais especificamente um tempo
prospec vo: trata-se, portanto, de uma maneira privilegiada de antecipação e adaptação a um
futuro, a fim de gerir riscos imanentes (BOUTINET, 2002, p. 27). Para Berman (1986), a própria
noção de modernidade – vinculada à ideia de descon nuidade – indica uma forma específica
de experimentar o tempo e o espaço desde o Renascimento (BERMAN, 1986, p. 15).
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Representação geométrica que consiste em projeções ortogonais de elementos tridimensionais sobre planos
bidimensionais (horizontais ou ver cais), a fim de se obter plantas, cortes e elevações. “O Renascimento introduz a
perspec va com pontos de fuga e a medição precisa das dimensões, permi ndo prever com exa dão a aparência de
volumes e espaços. No século XVIII, a geometria proje va e a geometria descri va, impulsionadas pela engenharia
militar, completariam o domínio da representação exata” (MARTÍNEZ, 2000, p. 12; grifo nosso).
Que nenhum homem deva começar um edi cio apressadamente, mas deve
primeiro tomar uma boa quan dade de tempo para considerar e resolver
em sua mente todas as qualidades e requisitos de tal obra [quer dizer, a
concepção que antecede a execução]: e que ele deve cuidadosamente rever
e examinar, com conselho dos juízes certos, a total estrutura em si mesma, e
as proporções e medidas de toda parte dis nta, (...) em maquetes reais de
madeira ou algum outro material, [a fim de] que quando ele tenha acabado
seu edi cio, ele não se arrependa de sua obra (ALBERTI, mimeo; grifo nosso).
Choay (1985, p. 5) preceitua que a obra De re aedificatoria (Florença, 1452), de Alber , deve
ser observada no contexto de enfraquecimento do teocentrismo medieval e associada a outras
pesquisas sobre a representação do espaço, principalmente de Brunelleschi. Na mesma
direção, Harvey (1998) assevera que a codificação visual desenvolvida pelos arquitetos do
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Qua rocento – vinculada à importação das técnicas ptolomaicas de produção de mapas,
cruciais para as viagens de descoberta do Novo Mundo – propiciou a reconstrução da
compreensão do tempo e do espaço no Ocidente, moldando “as formas de ver por quatro
séculos” (HARVEY, 1998, p. 222). Do mesmo modo como as cartas modernas que, supondo um
observador externo ao objeto, u lizam coordenadas para situar lugares, o método de
representação arquitetural ainda vigente também é possível a par r de uma abstração
geométrica: perspec vas, plantas, elevações e seções possibilitam compor e decompor o
objeto arquitetônico, escru ná-lo antes de materializá-lo. A par r de um olhar que se pretende
antecipador, totalizador e esquadrinhador, o arquiteto pode supostamente se realizar
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enquanto “administrador do espaço ” e sobre ele intervir. Resumidamente, os desenhos do
projeto arquitetônico prescrevem como devem ser executadas as modificações espaciais.
Mar nez (2000) assevera que projetar é a maneira de criar um objeto através de outro que o
antecede: o arquiteto atua sobre este, o projeto, traduzindo suas propriedades em uma
linguagem codificada, a qual necessita ser interpretada pelos responsáveis pela posterior
realização daquele, que é a obra. Projetar é, portanto, um processo cujo produto é “um
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O mapa ptolomaico – importado de Alexandria para Florença por volta de 1400 – se vale de uma grade de
coordenadas matema camente definidas, possibilitando a definição de distâncias proporcionais e relações
direcionais entre localidades, rompendo com a forma medieval de representação cartográfica baseada em
qualidades sensoriais de apreensão do espaço (Cf. HARVEY, 1998, p. 223-225).
4
Expressão u lizada por Michel de Certeau (p. 171) em seu livro A invenção do co diano: 1. Artes de fazer.
Petrópolis: Vozes, 1998.
Apoiado pela representação de ideias através de representações gráficas, pode-se dizer que a
matriz de resolução dos “problemas arquitetônicos”, melhor dizendo, que o método de projeto
arquitetural con nua, em linhas gerais, rela vamente o mesmo desde o Renascimento. Ao
descrever os dilemas enfrentados por Brunelleschi quando de sua par cipação no concurso
para o projeto do domo da basílica Santa Maria del Fiore, em Florença, Bou net (2002, p. 163)
sinte za os “elementos fundadores” da metodologia projetual: (1) o projeto arquitetural
precisa responder – complementar ou opostamente – a uma “demanda social” e ao programa
do solicitante; (2) a resposta a esta questão é dada por um autor, o arquiteto (ou grupo de
arquitetos), cuja subje vidade singulariza determinada solução, de acordo com (3) a análise do
problema “em termos de complexidade, ou seja, de pluralidade de respostas possíveis”,
considerando as diferentes variáveis (lugar, materiais, recursos etc.); (4) elaborada no “ateliê”,
quer dizer, fora do canteiro de obras, a resposta ao problema envolve, primeiramente, o
levantamento de condicionantes; em seguida a realização de uma primeira solução formal
(estudo preliminar), a qual é subme da ao escru nio do solicitante; e, enfim, a apresentação
da configuração formal final (anteprojeto e projeto execu vo), expressa através de desenhos,
maquetes, descrição de serviços, orçamento e cronograma; (5) somado a tudo isso, esta
resposta projetual deve – além de resolver constru vamente – conferir sen do ao lugar,
“resseman zando-o” (BOUTINET, 2002, p. 163-164).
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As normas técnicas NBR 13531 e 13532, ambas elaboradas no ano de 1995, indicam a execução de etapas de
projeto semelhantes às descritas por Grego (1975), Mar nez (2000) e Bou net (2002).
Bou net (2002) assinala a relação entre desenho e projeto arquitetônicos ao apontar a
proximidade das palavras disegno, em italiano, e design, em inglês, as quais servem para
expressar as ideias de projeto interiorizado e desenho exteriorizado. “O desenho arquitetônico
não é, portanto, senão a materialização do desenho mental” (DIDIER-HUBERMAN, 1990 apud
BOUTINET, 2002, p. 108). O projeto, em seu obje vo de representar claramente o objeto
concebido, modela de forma miniaturizada o espaço a ser modificado, u lizando lógicas
antagônicas, porém complementares de projeção e introjeção: “projeção da ideia que
estabelecerá uma materialização aproximada; introjeção da realidade que receberá uma
figuração aproximada” (BOUTINET, 2002, p. 108; grifo nosso). Desse modo, desenvolve-se
diale camente através da apreensão do espaço existente e da expressão de ideias que visam
modificá-lo. Isto envolve exercícios de abstração da realidade, processamento e julgamento,
O desenho arquitetônico é, assim, linguagem codificada u lizada no projeto, que necessita ser
decodificada e compreendida por aqueles que executarão posteriormente as modificações no
espaço (GREGOTTI, 1975, p. 30). Ressalta-se que, do Qua rocento até a década de 1980,
quando se começou a difundir o uso do computador e seus respec vos meios eletrônicos, os
desenhos eram integralmente realizados a mão, na prancheta. Plantas, cortes, fachadas e
perspec vas eram feitas com a u lização de ferramentas rela vamente simples, como réguas,
esquadros, escalas, compassos, lápis e canetas. Grosso modo, nesse período pouco se alterou a
forma de representar a intenção arquitetural. Isto apesar de o Iluminismo ter expressado a
busca da organização racional do espaço enquanto ‘fato’ da natureza e o controle do tempo a
fim de libertar o ‘Homem’ (HARVEY, 1998, p. 227). Ou a despeito de a Revolução Industrial ter
reestruturado a produção e o mundo do trabalho, além de ter propiciado a incorporação de
novas tecnologias e materiais às construções, como o aço, o vidro e o concreto armado. Ou
ainda que o Movimento Moderno do início do século XX tenha rompido com ideias
precedentes, tomando a indústria e a máquina como referências “em oposição ao trabalho
artesanal” (CAVALCANTI, 2006, p. 43), e inserido novos preceitos programá cos e esté cos na
arquitetura, inclusive produzindo construções estandardizadas e empregando elementos
pré-fabricados em larga escala. Não obstante ao exposto acima, só recentemente o desenho na
prancheta foi subs tuído pelo desenho com auxílio do computador. Porém, a realização de
croquis a mão coexiste com os recursos digitais.
Se até poucas décadas não haviam sido alterados significa vamente os modos de
representação, os progressos tecnológicos decorrentes da Revolução Industrial contribuíram
para tornar mais complexa a tarefa de coordenação atribuída ao projeto arquitetural,
ampliando o impera vo de minimizar improvisações e organizar as a vidades de concepção,
bem como as ações necessárias à execução da obra no contexto de sua crescente
industrialização. Nesse sen do, Bou net (2002) assevera que “(...) a arquitetura deixou o
canteiro de obras para tratar isoladamente desses problemas de complexidade. Por meio do
desenho projetado, visualizam-se e comparam-se soluções” (BOUTINET, 2002, p. 37; grifo
nosso).
Frampton (199?, p. 110) indica que a arquitetura dos úl mos dois séculos pode ser observada
sob o prisma das transformações promovidas pelos impactos tecnológicos. Além de materiais
avançados, ocorreu a especialização e a separação entre a arquitetura e a engenharia na
concepção: as invenções (como os trens e outras máquinas a vapor) e os programas inusitados
(como as estações ferroviárias e as grandes exposições) exigiram a par cipação de engenheiros
especialistas em cálculos estruturais, entre outros, na realização de projetos audaciosos
(GREGOTTI, 1975, p. 41). Com isso, tornou-se cogente prever com mais exa dão a execução de
obras industrializadas, nas quais a margem de correção de erros pela improvisação torna-se
menor, impactando o método de concepção.
Provavelmente uma das maiores invenções do século XX, o computador tem influenciado o
método de projeto e a forma com que os arquitetos se relacionam com o desenho (cf.
FRAMPTON, 199?; SEGNINI JR., 2002; SENNETT, 2013). Os primeiros experimentos de desenho
eletrônico e interação gráfica de usuários com o computador ocorreram no início da década de
1960, no Massachuse s Ins tute of Technology (MIT) (SEGNINI JR., 2002; SENNETT, 2013).
Segnini Jr. (2002) narra que a divulgação dos ensaios iniciais foi seguida de um debate a
respeito dos impactos que esta nova forma de representação promoveria no campo
arquitetural: alguns a percebiam como ameaça ao processo de elaboração do projeto; “para
outros, [era] simplesmente uma lapiseira mais equipada, que em nada modificaria a concepção
do projeto” (SEGNINI JR., 2002, p. 63).
No Brasil, apenas no final dos anos 1980 começa a se difundir o uso do microcomputador, ou
personal computer (PC), e de programas informá cos (so wares) para representação gráfica na
arquitetura. Segnini Jr. (2002) nota que nessa época parte dos arquitetos brasileiros percebia
no método CAD, sigla em inglês para computer aided design, ou projeto auxiliado por
computador, a possibilidade de desenhar com rapidez, acelerar a produção e reduzir tarefas
manuais. Alguns alimentavam a expecta va de que através do computador haveria liberação
de tempo para dedicarem-se à cria vidade. Outros, diferentemente, vislumbravam a
oportunidade de alcançar a racionalização do processo de projeto: enxergavam com bons olhos
a subs tuição do projeto realizado a mão na prancheta, ocasião em que a razão supostamente
subjugaria a inspiração:
Senne (2013) descreve o CAD como ferramenta indispensável para o “mundo material”
contemporâneo, “que permite aos engenheiros conceber objetos sicos e aos arquitetos gerar
[e girar] imagens de construções na tela” (SENNETT, 2013, p. 50), possibilitando inúmeras
perspec vas (internas e externas) instantâneas, algo inviável por meio do desenho manual. O
CAD possibilitou a realização de projetos maiores devido à precisão e à rapidez, sobretudo de
correção que proporciona. O método oferece outras vantagens, como a imediata modificação
da escala de visualização e a produção de simulações, permi ndo novas análises do objeto
concebido:
Senne (2013) indica que o CAD demonstra ser uma ferramenta extremamente ú l, repleta de
bene cios, porém mal empregada por arquitetos. Segundo esse autor, há confiança em
demasia nas vantagens que o computador oferece, como a exa dão ou a facilidade de
manipulação do objeto e de alteração da escala de visualização. Com isso, o desenho em escala
feito a mão na prancheta perde força, o que dificultaria o envolvimento do proje sta com o
espaço por ele concebido e o raciocínio escalar, conforme preceitua Grego (1975). Em
consequência, diz Senne , “o CAD também impede o proje sta de pensar em termos de
escala, que é diferente do puro e simples tamanho. O conceito de escala envolve a avaliação
das proporções; [com o CAD, perde-se] o senso de proporção” (SENNETT, 2013, p. 52).
Nesta perspec va, pode-se inferir que desenhar a mão reforça a lógica dialé ca e imediata de
apreender o espaço, julgando-o, e sobre ele projetar, modificando-o. O uso do computador
altera essa relação, tornando-a mediata. Segundo Senne (2013), desenhar no computador
dificultaria a percepção escalar e proporcional do espaço pelo proje sta, que supostamente
sucumbiria por se acomodar com as facilidades oferecidas pelo computador.
Com base no relato do arquiteto Renzo Piano, Senne (2013, p. 52) indica a necessidade de
projetar u lizando um processo cíclico, que envolva visita ao local, execução de esboços a mão,
depois desenhos no computador, realização de modelos, e retorno ao local e aos croquis, de
volta ao início do processo. De outro modo, propõe que os arquitetos retomem a “relação
corpórea” e escalar com o espaço e com objeto concebido através do desenho artesanal, mas
que u lizem, em seguida, todos os bene cios que a informa zação oferece. Recomenda,
contudo, cuidado a fim de evitar que as vantagens convertam-se em defeitos. Em sen do
similar, Frampton (199?) assevera:
Frampton (199?) compreende a artesanalidade como um dos modos de luta e resistência dos
arquitetos diante das pressões, de um lado, da computação pelo monopólio da representação
e, de outro, de incorporadores e construtores em pautar e restringir a liberdade de criação
arquitetônica.
Picon (2013) afirma que “(...) o computador rompe com o imedia smo do gesto humano. Entre
a mão e a representação gráfica, introduz-se uma camada de hardware e so ware” (PICON,
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Em função de limite de espaço, no presente texto não será discu do o ‘pacote de acordos’ mencionado por
Frampton (199?), embora se pretenda inves gar esta questão posteriormente.
Destarte, para Picon (2013) o projeto de arquitetura digital abre mão da noção habitual de
escala fixa a fim de possibilitar a compreensão de complexas geometrias fractais em níveis
variados. Ao mesmo tempo, com suas interligações em rede, o computador viabiliza as
interações “[tanto] entre o global e o muito local [em termos geográficos], [quanto] entre a
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definição geral do projeto e as mudanças às vezes minúsculas pelas variações paramétricas ”
(PICON, 2013, p. 212). Aliás, este autor destaca o papel ao mesmo tempo viabilizador e
paradigmá co que o computador exerce no processo de globalização desde os anos 1980. “O
uso do zoom talvez seja uma simples consequência da crise da noção tradicional de escala,
derivada da u lização do computador e da globalização, uma crise que cria uma forma
específica de instabilidade percep va” (PICON, 2013, p. 215). Instabilidade também
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A noção de parametrização será explicada na próxima seção.
Nesta úl ma década assis mos à divulgação de outro método de projeto por meio do
computador nomeado de BIM, sigla em inglês para building informa on modeling, quer dizer,
modelagem da informação da construção.
Apesar das promessas de exa dão e detalhamento no projeto execu vo, é importante
ressalvar que a metodologia BIM não ex ngue as fases iniciais de projeto presentes em
métodos anteriores, geralmente dedicadas à livre experimentação, nas quais são realizados
desenhos desincumbidos de informações mais específicas, que podem inclusive ser feitos com
o auxílio do computador. No entanto, a forma de interação gráfica do usuário com o sistema
computacional BIM é sensivelmente diferente do CAD: neste, assim como no desenho a mão,
inicia-se a representação da solução arquitetônica por meio da geometria descri va, em outras
palavras, através de representações em duas dimensões, como plantas, fachadas e cortes, a
par r das quais são criadas perspec vas; naquele, diferentemente, é preciso informar ao
computador as caracterís cas volumétricas de cada elemento e por meio do modelo
tridimensional gerado pelo computador são extraídas representações arquitetônicas que
possibilitam a execução da obra, tais como plantas, cortes, fachadas e diversas perspec vas. De
outro modo, inicia-se a concepção com a representação em três dimensões do artefato
arquitetural. Propugnadores do BIM indicam que a metodologia “revoluciona” os modos de
concepção e representação:
Além disso, indica-se que no BIM diferentes proje stas de diversas disciplinas (estruturas,
instalações hidrossanitárias, elétricas, mecânicas etc.) podem atuar colabora va e
simultaneamente sobre um modelo previamente definido pelo arquiteto, o qual passa a se
responsabilizar pelas tarefas de coordenação dos proje stas e verificação de compa bilidade
entre os dis ntos projetos complementares. Os trabalhos dos vários profissionais são
realizados sobre esse modelo-base que fica situado num ambiente virtual, uma “nuvem” de
armazenamento que é atualizada em tempo real. Com isso, não há necessidade de que os
proje stas trabalhem juntos no mesmo local: na verdade, cada um pode realizar a sua parte do
projeto em um lugar dis nto. Tal flexibilização possibilita e ao mesmo tempo espelha arranjos
contemporâneos de relações de trabalho, baseados no que tem sido denominado de
9 10
“pejo zação ”, em alguns casos, e “uberização ”, em outros, expressões do processo de
terceirização e da acumulação flexível (cf. HARVEY, 1998, p. 135).
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Entrevista realizada com um casal de arquitetos que são funcionários de escritórios privados e trabalham com a
metodologia BIM através do programa Revit, produzido pela Autodesk, mesma empresa que comercializa o
AutoCad, bastante difundido no campo da arquitetura desde a década de 1980.
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Grosso modo, “pejo zação” se refere a contratações eventuais de serviços realizados por pessoas sicas, as quais
precisam se caracterizar como pessoas jurídicas (PJ, daí pejo zação), a fim de escamotear relações de emprego e
isentar empregadores de cumprir obrigações trabalhistas para com empregados.
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De forma simplificada, “uberização” é o termo que tem sido u lizado para designar novos modelos de relações de
trabalho propiciados a par r de tecnologias informacionais e de ligações em rede, reduzindo os vínculos e as
obrigações dos contratantes, geralmente empresas de grande porte, em relação aos “parceiros”, via de regra
profissionais individualizados.
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“O BIM também incorpora muitas das funções necessárias para modelar o ciclo de vida de uma edificação (...). O
BIM facilita um processo de projeto e construção mais integrado (...)” (EASTMAN ET AL, 2014, p. 1; grifo nosso).
À GUISA DE CONCLUSÃO
A noção de projeto é fundamental para os arquitetos tanto por sua finalidade de comunicação
da intenção antes de sua materialização no espaço, quanto por seu caráter iden tário.
Formalizada a par r de uma nova codificação visual, a ideia de projeto arquitetônico tem
contribuído para moldar as formas de perceber e modificar o espaço desde o Renascimento.
Os incrementos tecnológicos nos úl mos dois séculos têm adicionado complexidade à tarefa
de coordenação atribuída ao projeto arquitetônico. Todavia, apenas recentemente o modo de
representação arquitetural tem se alterado substancialmente devido, entre outros fatores, à
difusão do uso do microcomputador. Antes imediata, a relação entre apreensão e
representação modificada do espaço pelo arquiteto passou a ser mediada pela máquina: entre
o proje sta e o desenho adiciona-se uma camada tecnológica, a qual possibilita amplificar
certas capacidades humanas e remodelar as compreensões de abstração, concretude, escala,
tempo e espaço na prá ca arquitetônica.
A interação do proje sta com o sistema BIM é diferente de métodos anteriores, pois se baseia
na construção e especificação de um modelo tridimensional vinculado a parâmetros
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Representantes da indústria da construção civil têm influenciado a difusão do BIM no país, como o Sindicato
Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consul va (SINAENCO), que tem se aproximado do Poder
Execu vo e do Tribunal de Contas da União. Este úl mo órgão, o qual auxilia o Poder Legisla vo no controle externo
das ações do Execu vo, tem demonstrado interesse em fomentar a u lização da metodologia BIM nas contratações
que fiscaliza: primeiramente pela possibilidade de reduzir erros, custos e prazos de realização de obras públicas; em
segundo lugar, pela facilidade de análise e controle das contratações de projetos e obras.
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PICON, A. A arquitetura e o virtual: rumo a uma nova materialidade. In: Sykes, K. (org) O campo
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