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UFR) Reitor Coordenador de Forum de Citncia e Culture EDITORA UFR] Diretora Ecditora Bsccutiva Coordenadtora de Produsdo Eitora Assstente Consethe Edizovial Pré-Historia da Terra Brasilis Organizagio de Maria Cristina Tenbrio José Henrique Vilhena de Paiva Afonso Carlos Marques dos Santos Yeonne Maggie Maria Teresa Kopschitz de Bareos Ana Carrciro Cectlia Moreira Ywonne Maggie (presidente), Afonso Carlos Marques do: ‘Ana Cristina Zahar, Carlos Lessa, Fernando Lobo Carneiro, Editora UFRJ Pecet Fry, Silviane Santiago 1999 Copyright by © Maria Cristina Tenéria Ficha Catalogrifica claborada pela Divisio de Processamento Técnico ~ SIBUUFR] 934 Pré-Histiria da Térca Brailt / Organiaado por Maria Ces Rio de Janeiro: Editors UFRJ, 1999, 380 p20 x 20 era i 1. Tendrio, Maria Brasileira scina 2. PréHiscéria - Brasil 3. Arqueologia DD 573.3098 ISBN §5-7108-215-4 Esigio de Tasso Maria Teresa Kopschitz de Busros Revise Ana Paula Mathias de Paiva Cecilia. Moreira ‘Matia Teresa Kopschite de Barros Gaps Adriana Moreno Ecitoragae Fleroniea ‘Ana Cacti ‘Alice Brito Universidade Federal do Rio de Janciro Forum de Cigneia ¢ Cultura Edicars UFR) ‘Av, Pasteus, 250/sala 107 - Rio de Janeieo CEP: 2295-900 Tels (021) 295 1595 x 124 a 127 ‘Tel/Fax: (021) 542 3899 e 542 4901 Sumario Incodugio 9 Maria Crissine Tenério Paste I - Detinicio & HISTORICO Da ARQUEOLAGIA Arqucologia, Pré-Historia ¢ Histéria 19 André Pros Panre II — A Enreana bo Howes a AMERICA 0 Poveamento das Américas: 0 Panorama Brasileiro 35 Anna Roosevelt Pare [IT ~ A Paé-Histona Baasiteina Os Cagadores mais Antigos A Questio do Paleoindio 55 Pedro Ignacio Schmitz Pré-Historia da Regito do Parque Nacional Serca da Capivaca 61 Anne-Marie Pessis Os Cagadores-Coletores Os mais Ancigos Cagadores-Colecozes do Sul do Brasil 75 Pedro Auguste Mente Ribeiry Cagedores-Coletores do Brasil Central 89 Pedro Tgnésio Schmits As Primeiras Populagdes do Estado de Minas Gersie 10 André Prous © Lajedo Soledade: um Estudo Interpretative 115 Leila Maria Serafim Pacheco ¢ Paulo Taden de So ci Albuguergue adores-Calctores de Roraima 136 Pedro Augusia Mentz Ribcire 0s Pescadores-Coletores-Caradores © Guarani: Historia e Pré-Histéria 285 Pescadores-Cagadores-Coletores do Pantanal do Mato Grosso do Su! dra [gnécio Schmitz Regido de Corumbi 149 Diversidade Cultural entte os Grupos Ceramistas do Sul-Sudesee Brasileiro: Pedro [gndeia Schmitz © Caso do Vale do Ribeita de Iguape 293 Brita Marion Robraba-Gonzélez A Caltura Tupinambé no Estado do Rio de Janeiro 307 Os Ocupantes Pré-Histéricos do Litoral Brasileiro 159 Angela Buargue Maria Dulce Gaspar As Aldsias dos Agricultores Cecamiseas do Centro-Oeste Brasileiro 321 Anemia ¢ Adaptabilidade em um Grupo Costeito Pré-Histérico Irmbitd Wise uma Hipétese Patocendtica 171 Sheila Maria Ferraz Mendonga de Senza Os Pescadores-Colerores-Cagadores do Litoral Os Horticulsoees de Roraima 339 Pedro Auguits Mente Ribeiro Priticas Funerdrias Pré-Hiscéricas do Litoral de Sao Paulo 189 Verinica Wesolosky Agricultores de Minas Gerais 345 André. Pros Economia/Alimentagia nz Pré-Histéria do Litoral de Sio Pasle 197 Levy Figati Duss Incerpretagées para Explicar 2 Ocupagéo Pré-Histérica na Amazénia 359 Féusrdo Gées Neves Reconstituigéo Espacial de um Assentamento de Pescadores-Coletores-Cacadores Pré-Histéricos no Rio de Janciro 205 Pane LY = © Paraiaoyio AR@uEOLOGICO BuasiteiRa Marcia Barbosa Como Preservar os Sitios Arquecldgicos Brasileicos 371 Peé-Hiscoria de Saquarema, RJ 223 Edoa June Morley Lina Maria Keeip Os Fabricantes de Machados da Ilha Grande 233, Maria Crirtine Tenério Os Pescadores-Coletores-Casadores do Litoral Norte Brasileiro 247 Maria Dulce Gaspar ¢ Maura Imazio Os Horticultores Coleta, Processamento ¢ Inicio da Domesticagéo de Plantas no Brasil 259 i Maria Cristina Tenério Indicadores da Transicéo do Arcaico para o Formativo na Regiée Montanhosa do Médio Vale do Rikeiea, SP 273 Paulo A, D. De Blasis Introdugio Esca publicasao € dedicada a todos que quiscram ser arqueélogos um dia, mas que, ou nao tiveram coragem, ou pensaram que essa profissio no existia no Brasil, Para a arganizagio de seu contetido, procurei imaginar uma viagem em uma maquina do tempo, tendo arquedlogos como guia, © germe da idéia deste livro parece ter surgido simultancamente na mente de vitios arquedlogos, pertencentes a diferentes linhas tedricas que. em dererminada mamentn, tiveram consciéncia de que sua produgio estava restrita & comunidade cientifica ¢ que a falta de divulgaczo de suas pesquisas, de certa forma, incentivava a destruigio de sitios arqueoldgicos, na medida em que © pubblico nao era informado de sua existéncia. A primeira iniciativa no sentido de conciliar os esforcos dos pesquisadores preocupados com a falta de visibilidade da Pré-Histéria brasileira foi a criagio do Programa para Implantagéo da ‘Temética Pré-Histéria nos cursos de 1%, 2° e 3° graus. Este programa’, apoiado por um convénio firmado entre 0 Ministério de Educagio e Cultura e a Universidade Federal do Rio de Janeiro, teve como primeiza atividade a realizagao de um semindrio cujo principal objetivo era reunir arqueslogos em torno de uma reflexio sobre o que ja poderia ser informado ao publico em geral a respeito da Pré-Histéria brasileira Neste seminério foi constatada a demanda existente por esse tipo de informagio, bem como a divulgacéo fragmentada dos dados fornecidos pela Arqueologia, uma vez que os meios de comunicacio, principais responsaveis pela disseminagio da informagio atqucolégica, muitas veres, Pre-Historis ds Tersa Bresifis em conseqiiéncia da falta de intimidade com o aspecto cientifico da noticia, auxiliam na propagagio de interpretagdes € resultados de pesquisa distorcidos. Para contornar a pouca divulgagio constarada, os participantes do semindrio pensaram cm at, ja executada, ¢ com duas edigdes promover algumas modalidades de publicagées. A prim esgotadas, ttatow-se de um livo de baixo custo, apresentando os trabalhos expostos no semind A segunda proposta foi a de se realizar uma publicagio que apresentasse os cemas dentro de uma contextualizagZo temporal/espacial/econémica, dividida em capitulos com muitas ilustragdes dedicada a informar um piiblico bastante amplo. Embora seja inquestionavel a necessidade de se concretizar também esta proposta, as im: plicagées acarretadas por um tipo de publicagio regida por uma grande preocupacio visual e pelo uso de uma linguagem atraente ao grande piiblico em detrimento do dado cientifico fizeram com que predominasse a opcio de se reunir um conjunto de textos acessiveis tanto a “curiosos” como a pesquisadores pertencentes a cigncias que esto sempre “tocando figurinhas” com a Arqueologia. Este live procura também responder 3 demanda existente par uma histiria mais referida 2 identidade americana e as raizes de seu povoamento, acteditando ser 0 conhecimento da Histéria fundamental para o fortalecimento da identidade nacional, Dentro deste contexto ¢ por entender que sé a Arqueologia é capaz de resgatar esse passado, os autores, colaboradores deste empreendimento, aproximaram novamente a Arqueologia da Historia, di Arqueologia americana. Nesse sentido, a arqueologia brasileira foi utilizada como cine: pata obtengio de dados organizados num tempo linear, com o objetivo de facilitar sua compreensao, ‘embora tenha existido a preocupagio de nao se cair no abismo da proposta evolucionista, em especial io promovida na década de 60 pela Nova strumento da corrente do materialismo histérico. Embora camuflados em textos acessiveis cuja proposta principal privilegia mais os dados do que as questées, € possivel vislumbrar 0 desenvolvimento de virias arqueologias para a obtengio esses resultados. Talvez até pela falta de verbas, que inviabiliza 0 acesso as modernas tecnologias utilizadas pela atqueologia americana, a arqueologia brasileira muitas vezes se aproxima da arqueologia pés-processual, na qual a ciéncia interpretativa sobrepGe a ciéncia positivista postulada lateoducie Marie Cristina Tenorio pela arqueologia processual. £ com esta concepgio que apresentamos interpretagbes sobre 0 passado, tendo por preocupagio também uma contextualizagio histérica, na medida cm que sempre nos atemos a questées tais como: Onde ¢ como teria vivido determinado grupo? Ou, o que teria acontecido naqueles lugares hi alguns mil anos? Estas sto as perguntas as quais se procurou responder. Em muitos dos textos apresentados serio fornecidas, a0 leitos, pistas dos fatos ocortidos, representadas por vest 8 arqueolégicos que podem ser desde sepultamentos, com ricas acompanhamentos represeatando complexos rituals, até vestigios de lixo composto por restos descartados e revolvidos. No primeiro caso, temos © que 0 homem procurou eternizars no segundo, temos 0 “ndo sendo”, 0 que deixou de ter valor para determinada cultura, Nos dois casos estaremos nos defrontando com um momento pré-histérico. E, como em uma viagem na méquina do tempo, estaremos vendo um momento ocortido em época remota. Na interpretacao de seu significado, ralvez haja tantas verses quanto 0 nimeto de leitores ou “de pessoas presentes na maquina do tempo”. E com tal concepeio que este livro tem por pretensio razer & tona a Pré-Histéria brasileira, Embora a Arqucologie no Brasil s6 tenha se fortalecido a partir da metade deste século, atualmente um grande mimero de arquedlogos desenvolve importantes pesquisas, e muitas, por diferentes motivos, ndo puderam ser contempladas neste liveo. Tal fato faz com que esta publicagio nio configure uma sintese ¢ sim um empreendimento pioneio no sentido de abrir novas possibilidades a0 desenvolvimento da Arqueologia e divulgacio da Pré-Histéria brasileira A publicagao foi dividida em quatro partes: Na primeira parte, André Prous, arquedlogo francés radicado hi muitos anos em Minas Gerais, onde desenvolve suas pesquisas, define Arqueologia, seus métodos e técnicas ¢ a contextualizagio teérica do desenvolvimento dessa ciéncia no Brasil, Considerou-se fundamental iniciar-se o livro falando de Arqueologia, uma vez que ¢ a responsivel pela obrencio dos dados que permicem a reconstituigio da nossa Pré-Histéria, Iniciando a segunda parte, Anna Roosevelt, arquedloga americana, discorre sobre a entrada do homem nas Américas e sua chegada ao Brasil. Como a teoria mais accita para explicar o inicio Pre-Hiseoess da Terce Brasilis do povoamento do territério brasileiro esté profundamente relacionada & Pré-Histéria americana, resolvemos convidar uma pesquisadora americana para apresentar os dados existentes nos Estados Unidos ¢ discutir essa relagao to alardeada envre a Pré-Histéria americana e a brasileira, Sendo o primeiro habitante das Américas um personagem denominado paleoindio, na terceira parte, quando entramos na Pré-Histéria brasileira, iniciamos 0 tema com uma reflexdo sobre 2 conceituagio de Paleoindio. Nesse artigo, Pedro Igndcio Schmita apresenta sua posigaio quanto & utilizagdo deste conccito na arqueologia brasileira, Inicialmente, para facilitar a compreensio do leitor, pretendfamos separar os temas a partir de periodizagées. No entanto, os dados obtidos pela arqucologia brasileira indicam que a diversidade encontrada na cultura material e a alternancia cronolégica rorna inadequada a utilizacio da tradicional periodizagdo americana para explicar nossa realidade Evitamos nos deter nas evidéncias que forneceram datagdes muito antigas pois, provavel- meme por setem provenientes de pesquisas relativamente reventes, proporcionam resultados que ainda destoam do contexte geral da arqueolagia brasileira, caracterizado pela grande quantidade de manifestagses arqueoldgicas pertencentes a grupos de cagadores-coletores holocénicos, relacionados ao Arcaico, se quisermos utilizar a verminologia americana, Os grupos cagadores-coletores holocénicos, tio encontrados na bibliografia arqueolégica brasileira, parecem ter surgide no momento em que o clima ficou m: quence ¢ Gmido, pro porcionando o apatecimento de novos ambientes e uma grande diversificagao dos recursos explorados. So definidos como cagadores némades de caga pequena, fo especializada. Posteriormente, esses grupos tenderam a acercar-se de grandes corpos d’gua, iniciando a atividade da pesca ¢ da coleta de vegetais. Comecaram a fixar-se mais tempo nos locais de assentamento. No litoral essa intensificacio do tempo de permanéncia torna-se mais visivel e a ocupagio de pontos estratégicos para a exploragso de vérios nichos ecolégicos, aliada a uma intensa coleta de moluscos, parece ter permitido a existéncia de assentamencos mais permanentes, concentrando grandes contingentes humanos ¢ permitindo io de também uma exploragio conjunta do ambiente que, por veres, pode ser confundida com o i um processo de complexificagio. letrodeste Marie Cristine Tenorio Representando a classe dos ve igios arqueolégicos muito antigos no Brasil, apresentamos © artigo de Anne Marie Pessis, que nos informa sobre uma das manifestagées arcisticas mais remotas, ou scja, a arte estampada nas paredes das grutas de Sao Raimundo Nonato, no Piaui, O trabalho desenvolvido pela professora Anne Marie Pessis juntamente com a professora Nitde Guidon tem obtido provas concretas da presenga humana ne solo brasileiro ha 50 mil anos. ‘Numa época mais recente, hi cerca de 12 mil anos, aparecem os vestigios dos mais antigos cacadores-coletores portadores de poncas de projécil. Tiata-se da Tradiggo Umbu, muito estudada por Pedro Menez Ribeiro, que em seu artigo descreve os artesios das mais bonitas pontas de flecha encontradas no terrivério brasileito. Marcando bem a passagem do Paleoindio, no caso Paleoindio Defasado, segundo 0 autor, para o Arcaico, Pedro Ignicio Schmitz apresenta os “Cagadores-Coletores do Brasil Central” Nos uabalhos de Menez Ribeito ¢ de Pedro Ignacio Schmitz pode-se observar que os autores tiveram como formacio uma linha da arqueologia americana fundada na escola histérico- cultural, que chegou ao Brasil na década de 60, através do Programa Nacional de Pesquisas Arqueolégicas (PRONAPA), na qual os dados culeurais obtidos nos ttabalhos arqueolégicos eram “organizaclos” em “Fases” e “Tiadigées”, Esta sistematizagao teve como um de seus principais obje tivos a realizagzo de um levantamento diagndstico dos vestigios arqueoldgicos encontrados no Brasil, naquele periodo. Atualmente, esses autores estio mais istantes dessa proposta de pesquisa, se prcocupando mais com 0 desenvolvimento da arqueologia interprecativa que, embora ainda baseada na escola histético-cultural, incorpora a abordagem ecolégica Depois do panorama do povoamento do sul ¢ do centro do Brasil, as primeiras populacées de Minas Gerais sio introduzidas por André Pr Este autor, formado pela arqueologia francesa, desenvolve seu trabalho no Estado de Minas Gerais ¢ se catactetiza por estar aberto a influéncias de diferentes linhas ceérico-merodolégicas, Prous apresenta dados inéditos sobre os famosos cacadores- coletores de Lagoa Santa e Pedto Leopoldo, inicialmente estudados por Lund no século passado e depois por Muse, Emperaire, na década de 70, Esses locais sio conhecidos pela beleza das pinturas upestres encontradas em suas grutas. Nesse artigo também, Prous apresenta resultados de suas pesquisas desenvolvidas na Serra do Cipé © no Aleo Médio $0 Francisco. Pre-Historis ds Terce Brasifis Demonstrando, ainda, a dificuldade da periodizagio cronolégica da arqueologia brasileira, Paulo De Blasis, a partir de abordagem embasada no estudo de padrées de assentamento, prope a contemporaneidade 0 contato esporédico entre cagadores-coletores responsdveis pelos sitios liti- cos do Vale do Ribeira e grupos horticultores que teriam habitado os sitios cerdimicos também en- contrados neste vale. ‘Terminando a parte relativa aos cagadores-coletores, apresentamos os resultados de uma pesquisa arqueolégica re inéspita 20 desenvolvimento do trabalho arqueoldgico. A diferenca quancitati ida em Roraima que revelam dados inéditos de uma tegido bastante dos dados obtidos nessa pesquisa, em relagdo aos divulgados nos outros artigos, faz com que este trabalho pertenga @ um contexto mais arqueoldgico do que pré-histérico propriamente dito. No entanto, é imporrante sua incluso nesta publicagéo nao apenas no sentido da divulgaco de dados inéditos, mas também porque ilustra o desenvolvimento da pesquisa arqueolégica. A segunda parte do terceito capitulo é dedicada aos pescadores-coletores-cagadores. Com a inuwdusio da pesca ou com a sua intensificagio, observa-se 0 surgimento de um novo tipo de assentamento, mais visivel na paisagem, formado tanto por pequentos monticulos quanto por grandes clevagées. & constituldo por grande quantidade de restos alimentares, esté sempre relacionado a grandes corpos d’égua ¢ parece indicar que se trataria de assentamenco de grupos maiores, que teriam se fixado de man: mais permanente do que os cagadores-coletores tratados nos textos anteriores. Organizar as informagGes referentes aos pescadores-coletores-cagadores sempre foi objeco de polémica. Até o final da década de 70, os sitios arqueolégicos deixados por esses grupos cram chamados genericamente de “sambaquis’, como se fossem decorrentes de um mesmo tipo de ocupagio, com excegio dos que eram encontrados na regio amazénica e que se distinguiam por apresentarem cerimica em todos os seus substratos. A parcir da década de 80 comecou-se a discutir se esses sitios fariam parte de um Unico sistema sociocultural, surgindo propostas que diferenciavam os grandes sambaquis de Santa Catarina dos encontrados no Estado do Rio de Janeiro, rendo-se iniciado uma longa e inconclusiva discussio sobre o que seria de fato um “sambaqui”. Para nao entrar nessa discussio, @ artigo de Pedro Ignicio Schmitz, que relara os resultados de recent lnitodnge Moria Cristina Tendrio _pesquisas realizadas no Pantanal Mato-Grossense, ¢ destacado dos textos que abordam os pescadores- coletores-cacadores do litoral. Devido ao grande niimero de pesquisas ¢ também a grande quantidade de material arqueolégico preservado nos sitios, foi possivel apresentar varios artigos relacionados aos pescadores- coletores-cagadores do litoral, procurando-se reconstituir seu modo de vida ¢ relatar suas variagbes regionais. Iniciamos essa parte com uma conceituagio e caracterizagio Feita por Maria Dulce Gaspar uc, utilizando-se da abordagem esteucuralista, propée que os “sambaquis” teriam pertencido a um Sinica sistema sociocultural Em seguida, apresentamos artigos que detalham aspectos dessa ocupagio que teria ocorrido por todo o litoral brasileiro hé mais de 6 mil anos. Maria Dulce Gaspar retoma o tema caracterizando sambaquis do livoral norte brasileiro. Lina Kneip enfoca detalhadamente, seguindo sua formagio metodolégica da arqueologia francesa, a Pré-Histéria de Saquarema, Municipio do Estado do Rio de Janeiro, Marcia Barbosa utiliza como abordagem o estudo da ordenagao e da delimitacdo das unidades habitacionais para inferit a estrutura da organizacio social dos grupos pescadores-coletores-cagadores que ocuparam 0 litoral do Estado do Rio de Janeiro, A parte dedicada aos pescadores-coletores-cagadores do litoral conta também com 0 apoio da abordagem apoiada em pressupostos da Biologia e da Ancropologia Fisica. Levi Figuty, arquedlogo com format jo em Biologia, discorte sobre a dieta alimentar e a economia destes grupos no litoral de Sio Paulo, Sheila Mendonga de Souza ¢ Verdnica Wesolosky, com formagio em Antropologia Fisica, reconstituem aspectos relacionados & satide ¢ aos rituais, respectivamente, a partir do estudo de restos esquelerais recuperados nos sitios arqueoldgicos. Objetivando a constituigéo de um elo entre os pescadores-coletores-cagadores do litoral € introduzindo © perfodo Formativo, apresento um artigo de minha autoria, sobre as origens da agriculrura, propondo o entendimento da introducio de técnicas agricolas dentro de parametros brasileiros. Embora utilize de mancira intensa dados etnograficos, no cenho por objetivo a reconstituigéo do modo de vida de determinados grupos, mas sim 0 questionamento de um dado cristalizado pela arqueologia curopéia, ou seja, a importincia da agriculrura dentro de parametros Pre-Hisroeis dy Terre Brosilis evolucionistas. Além deste questionamento, 0 dado etnogeifico é associado ao registro arqueoligico na elaboracao de hipéteses para sanar a escassez de colecées borinicas € a ma preservagio dos restos vegetais nos sfcios arqucoldgicos, grandes responsiveis pela falta de informagdo quanto ao inicio da domesticacéo de plantas no Brasil. Continuando com os horticultores, procurames apresentar panoramas arqueolégicos regionais. O Sul aparece representado pelo guarani, caracterizado por Pedro Igndcio Schmitz e pelo trabalho de Erika Robrahn-Gonzélez em Sao Paulo. Em relagao a0 Centto-Ocste, Inmhild Wrist apresenta uma situago na qual o dado arqueolégica questiona o relato etnogréfico, 0 que parece indicar um momento de reflexiio da pesquisadora, que softeu forte influéncia das iddgias de Binford no desenvolvimento de suas pesquisas. Concluimos esta publicagio com esperanga de que se tenha iniciado mais um caminho para a divulgacéo de nossa pré-histéria, ¢ para isso ter jamos este livro com o artigo “Como preservar 6s sitios arqueoldgicos brasileiros”, pois, sem isso, logo no teremos mais sobre o que esctever Maria Cristina Tenério Nota » Programa coordenado por Maria Cristina Tendrio e Teresa Cristina de Borges Franco. Parte | Definicio e Histérico da Arqueologia Arqueologia, Pré-Histéria e Histéria André Prous E freqiiente as pessoas confundirem-se quando se trata de definir as relagées entre disciplinas conexas como Arqucologia, Histéria, Pré-Histéria, Paleontologia, etc. A Paleontologia ¢ © ramo da Biologia (estuda as formas de vida) que trata dos seres (vegetais, animais ou homens) extintos; preocupa-se, portanto, essencialmente com os corpos. A Historia tem por objeto de estudo as sociedades, numa perspectiva diacrénica, abordando essencialmente as que possuem escrita. As sociedades sem escrita do passado sio, pois, o campo da Pré-Histéria, enquanto as culturas dos povos grafos atuais ou recentes sf principalmente investigadas pela Antropologia Cultural. Embora 0 objetivo de todas estas disciplinas seja 0 conhecimento abrangente do homem como ser social, a diversidade de condigao de estudo levou ao desenvolvimento de métodos ¢ técnicas diversificados enquanto os historiadores estudam preferencialmente os textos, os pré-historiadorcs analisam os vestigios materiais conseguidos através de métodos especificos, ¢ os antropélogos, o discurso e as imagens das pessoas vivas, conseguidos através de uma longa convivéncia. Os pré-historiadores tém de dispor de métodos especificos para estudar os vestigios matcriais fornccidos pela Arqueologia, a qual disp6e de um conjunto de métodos e eécnicas (procura também desenvolver um corpo teérico préprio) que permice localizar, analisar ¢ interpretar os indicios materiais da presenga ¢ da atividade dos homens no seu quadro natural e artificial, Vemos, pois, que ‘Museu de Histéria Natural ~ Universidade Federal de Minas Gerais, Pre-Historis ds Terre Brosilis a Arqueologia é essencial para o pré-historiador que dela nfo pode prescindir e pode também ser utilizada por outros pesquisadores da rea das chamadas ciéncias humanas: o historiador © 0 antropélogo tém, através dela, acesso a informacées nio mencionadas — ou deturpadas pelos textos Como exemplo podemos citar os quilombos do século XIX, até ha bem pouco tempo conhecidos exclusivamente através de documentos escritos que mencionam apenas a existéncia dos mesmos, os danos por cles causados & estrutura escravista ¢ as expedigdes punitivas; ow seja, s6 0 ponto de vista € 08 aspectos que interessavam aos adversérios dos negros fugitives. Apenas a partir de 1980, através de trabalhos pioneiros, como os desenvolvidos pela Universidade de Minas Gerais (UFMG), de escavagées ¢ levancamentos realizados em quilombos, iniciou-se 0 resgate de alguma parte da vida cotidiana dos quilombos ¢ péde-se conhecer a diversidade estrutural dessas povoagées. Mais recente nistérios ainda, a andlise realizada, a pedido de uma revista brasileira, do lixo alimentar de varios m em Brasilia constitui-se numa verdadeira operagio arqueolégica que permite comparar de maneira objetiva a realidade da pritica alimentar das elites burocriticas e politicas & de outras categorias socioecondmicas. A Arqueologia, portanto, é praticada por pesquisadores que tanto podem atuar na rea da Pré-Histéria quanto na da Historia ou da Sociologia. Desca forma, os historiadores lidam com o discurso consciente deixado pelos autores dos escritos ¢ tém de descobrir as razSes ocultas ¢ os aspectos por eles deixados em siléncios por sua vez, © arquedlogo rem de se preocupar menos com distorcies voluntirias causadas pelos homens que estuda (quase ninguém se preocupa com 0 préprio lixo, pois nao imagina que alguém ird estuds-lo!), mas deve analisar 0 papel das forgas naturais que selecionam os vestigios (a madeira preserva-se bem menos do que a pedra, por exemplo), enquanto o antropélogo maderno se interessa tanto pelo discurso consciente que os homens claboram sobre sua prépria cultura quanto pelos modelos ‘onscientes que regem a sociedade. Outrossim, por abordar a vida material ¢ quotidian, estudando freqiientemente socie~ dades mais dependences dos sitmos naturais € dos seus quadros geogeificos (climas, estagoes, disponibilidade dos recursos naturais) que a nossa, os arquedlogos preocupam-se em. ins. sociedades que investigam no seu contexto ambiental, dando grande importincia & interagio entre ir as a cultura e a natuteza. Assim sendo, aproximam-se de certos antropélogos (nesta perspectiva, a At- queologia pré-histérica € considerada como um ramo da Antropologia na tradi¢o americana) Arqueologis, Peé-Hietasis e Historia André Prous enquanto, até hd bem pouco tempo, 0s historiadores tendiam a esquecer-se dos aspectos materiais da vide quotidiana. Na atualidade, a diferenga entre historiadores, antropélogos e arqueslogos tende a diminuir € se percebe que cada disciplina desenvolveu abordagens titeis para as outras, revertendo a tendéncia 2 ultra-especializagao desenvolvida durante o século XIX e a primeira metade do século XX; exemplos disto so 0 sucesso da “histéria das mentalidades” e os estudos estruturais da micologia cléssica, que consagraram a penetragio da Antropologia nos meios histéricos brasileiros nos tilrimos decénios. A Arqueologia, de qualquer forma, apresentou desde cedo uma vocasio interdisciplinar, pois sua meta é a mesma das ciéncias humanas, ou seja, entender as adapragbes, o desenvolvimento, © funcionamento ¢ as representagies simbdlicas das sociedades. Precisa, entretanto, para tentar alcangar estes objetivos, lancar mao de recursos desenvolvidos por outras disciplinas, tanto nas éreas das cigncias da terra, quanto das ciéncias da vida ¢, até, das cincias ditas exatas. Desta forma, 0 arquedlogo, além da propria especialidade (capacidade de estudar os sitios ¢ os vestigios da cultura material), deve crabalhar com numerosos especialistas de outras dreas, tendo de dispor de conhe- cimentos gerais suficientes para dialogar com pesquisadores normalmente pouco acostumades a lidar com a problematica das ciéncias do homem. Quadro 1 ~ Respectivas tendéncias da Histéria, da Antropologia ¢ da Argucologia Diserrusas | Historia Antropologia Arqueologia Varsivsis 7 | Unidades de estudo cronologias, modos | caracteristicas éenicas cultura. material definidas ateavés de de producio nio-materiais Principais locais gabinete/biblioceca ‘campo/gabinece campoilaboratério | de estudo arguivas Relagio com a duragio diacronia | I ‘ia diacror Tecniva ce abordagem texto observagio direta vestigios materials discurso verbal - Percepeio da relasgo feaca/ausente varidvel fone culturalambiente Pee-Wistovia da Terre Brasilis A Arqueologia ¢ as ciéncias conexas Sem nos preocupar em esgotar o assunto, tentaremos apresentar uma amostra da variedade dos métodos ¢ técnicas ucilizados pela Arqueologia (muitos dos quais envolvem pesquisadores de reas conexas) através de alguns exemplos sugestivos da pritica arqueolégica. Podemos dizer que esta ¢ constivuida por varias facetas: preparagio documental preliminar 20 tabalho de campo, idensificicto de sitios (prospecsio, sur), estudo dos sitios em campo (sondagens, escavagoes, regiseros diversos), andlise da documentacio levantada (vestigios diversos € documentos grificos) em laboratérios de arqueologia, assim como anilises complementares realizadas em laboratérios de oueras éreas; enfim, divulgagio (em congressos ou através de publicagdes para especialistas e para o grande ptblico). 4J4-na fase preliminas, 0 arquedlogo pode langar mio da interpretacio de mapas clissicos, de Fotografias aéreas ou imagens de satélites, para adequar suas buscas 3s condigées topogrificas € ambientais atuais ou passadas. Por exemplo, quem pretende estudar grupos de agricultores deve lem ay egies de solos fetes ¢ inigndos; deverdvestcar os sinais de mudancas dos cursos de gua desde 0 passado, eventualmente visiveis nos mapas, gragas a interpretagdes de eunho geomorfolégico. Quem pretende estudar as populagiies mais antigas de um vale ou de uma regio rica em calcério e em grucas deve evitar perder tempo em errenos de formagées mais recentes, que do contém sitios antigos; desta forma, precisa conhecer as feigGes caracteristicas ¢ a geologia da regido. Quem nao tem condigées de percorter todo o tertitério a ser estudado precisa optar por uma técnica de amostragem adequada & sua problemitica. Na hora de procurar os sitios, o percurso a pé e a procura de informagdes entre os moradores locais continuam sendo métodos to pouco sofisticados quanto eficientes; no entanto, diversas outras técnicas estio também disponiveis. Desde a Primeita Guetta Mundial, a prospecgio aétea tornou-se um precioso auxiliar para localizar certas formas de sitios (com fossos ou muros énterados, por exemplo), Esta técnica ¢ ainds pouco utlizada no Brasil, emboratenhamos verificado na década de 70, em Séo Paulo, sua validade para identificar sitios de habitacio tupi-guaranis, cujo solo, entiquecido pelo refugo orginico, evidenciava uma vegetagio com feig6es distintas da dos Arqueologia, Pré-Historia ¢ Historia André Prous arredores. Estruturas enterradas podem também ser detectadas desde a superficie por eécnicas Beofisicas, pois provocam microperturbagSes nos eampos elétrco ¢ gravitacional locas que podem St tegitradas, Variagdes de rsistvidade foram desta forma utilizadas por pesquisadores do’ Mase Goeldi para analisar os aterros de Marajé; a presenga de grandes urnas de certmics enterradas também pode ser notada através das alteragses gravitacionais que acarrecam Durante os trabalhos de escavacio, os arquedlogos usiicam, na medida do possive, téenicas de “decapagem” que permnitem sepatar entre si os diferentes niveis sedimentares de deposigao; estas, adaptadas dos métodos estratigrificos dlos geslogos, posibilitam distinguir os vestigios mais recentes ddos mais antigos. Além deste método para scparar vestigios de idades diver (cronologia relativa), o aetuedloges contam com os fisicos para conseguir uma cronologia abvluta (idade caleulads co, mimero de anos, com certa margem de ctro). O mais conhecide mede a atividade resideal ch radiocarbono (14C) nos restos organicos de setes vivos, a qual decresce regularmente com 0 tempo (existem laboratérios especializados em Sio Paulo e Belo Horizonte), sendo patticularmente valerie para datar carves de foguciras de até 40 mil anos (Fig. 1); mas eaiswein outros métodos, como a imedigio da cermoluminescéncia residual de particulas de silica qu até periodos muito recuados Ouerossim, os arqueslogos mapeiam as ocorréncias pare analisar em laboratério as relages nize vestigis de uma mesma época, da mesma maneira que os policiais ¢ legstas reconstiscemn a cena de um crime a partir do registro cuidadoso dos indicios no local do delite Os vestigios arqueolégicos (Codos os tetermunhos da presenca e da atividade do homem, bem como do ambiente no qual esteve atuando) incluem restos ain apenas esquelecas), sobras de inscrumentos ou de alimentasao, rituais, ete. ientais ou corporais (geralmente, indicios de atividades estéticas ou Os restos esquelerais so confiados a bioantropélogos (no Brasil, quase todes catiocas ¢ Paulistas) ¢ a qufmicos que estudam as caraetetsticas das popu lagoes: determinam as “racas” pré- histéricas a partir da medigio dos ossos, da presenca ou nao le caracteristicas ditas epigencticas; Feouaa 1 ~ Laboratério de radiocarbono do Centro de Desenvolvimento de Tecnologia Nuclear (CDTN), Belo Horizonte Preparacio de uma amostra para daracio. (Fora: Setor de Arqucologia/Maccia Costa) atualmente vém sendo realizadas as primeiras tentativas de andlise de DNA micocondrial de es- queletos pré-histéricos (Belo Horizonte). Os paleoantropélogos avaliam também a demografia das populagées antigas através da andlise dos corpos encontrados em cemitérios; determinam idade ¢ ico intenso ¢ as posturas habituais do coxpo que deixaram marcas nos oss0s; bioguimicos procuram identificar os parasitas sexo, estudam as doengas ¢ 0s acidentes, as tatefas que exigiam esforgo intestinais (através dos copriliros — feres fossilizadas ~, uma especialidade dos pesquisadores do Instituco Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro) € descobris quais eram os alimentos principais -, por exemplo, plantas como o milho ¢ a mandioca determinam a presenca de formas diferentes de carbono nos ossos. Ao escudar os instrumentos fabricados pelo homem, o primeito passo é a identificacéo das matérias-primas com as quais foram elaborados; a andlise petrogrifica da rocha em que foi feico um Arqucologis, Prt-Historis ¢ Historia Andre Prous objeto de pedra pode indicar o local de extragio (desta forma, pode-se verificar as relagses de roca ou movimentos de populagio através da repartisio dos machados de silimanita ou de hematita em Minas Gerais); a andlise quimica por ativagio neutrénica dos minerais que entram na composigéo das argilas utilizadas para fazer cerimica fornecem informag6es similares (esta iiltima técnica, ainda pioneira, foi introduzida no Brasil hd alguns anos). A seguir, os arquedlogos eseudam as técnicas com as quais os instrumentos foram produzidos; para tanto, pratican a experimentagio, passando a fabricar eles mesmos réplicas dos instrumentos de pedea lascada e pedra polida, de osso ou de cerimica, comparando os seus resultados com os artefatos arqueolégicos, Também existe em Belo Horizonte um laboratério que analisa os vestigios microscépicos deixados pelo uso nos gumes de pedra, o que permite conhecer as matérias trabalhadas ¢ o tipo de trabalho efetuado (Fig, 2, 3 4). Pata reconstituir o clima, a paisagem e a vegetagio do passado, os arquedlogos contam com a ajuda dos geomorfélogos ¢ dos palindlogos (estes tltimos estudam os microscépicos gros de pélen a Trouna 2 Laburatécio Ue tsaeulogia do Museu de Historia Nacuval (MHN), UFMG. Andlise dos vestigios de utilizagio num insteumento de pedra. (Foto: Setor de Arqueologia/Mircia Costa) Pré-Histsria Froura 4 ~ Experimeneaséo: preparando tum instrumento de madeira com uma raspadeira de silex, (Foto: Setor de Arqueologia/Mércia Costa) — ———— Terra Brasilis Figuaa 3 ~ Abrigo de Santana do Riacho. Gume de um raspador de quartzo. Marcas de utilizagio para raspar madeira (praias de abrasio tipicas, estrias indicando a diregio do movimento € microestilhagamento} Fotografado com aumento x 100. (Foto: Arqueologia/Marcio Alonso) Arqreologis. Pré-Histéris © Histéria André Prous fossilizados que se conservam em certos sedimentos); desta forma e trabalhando em conjunto, arquedlogos, gedlogos e bidlogos conseguem identificar e datar as mudangas ambientais ocorridas 20 longo dos milénios. ‘A meta do arquedlogo consiste em propor um quadro da vida quotidiana das populagdes dentro do seu relacionamento com o meio, interpretando as milciplas observagbes e andlises realizadas dentro dos quadros tedricos que 0 momento histérico coloca & sua disposico, Assim sendo, suas conclusées nao sio nem mais nem menos definitivas do que as dos historiadores e refletem no a realidade do passado, mas a viséo que dele podemos conseguir hoje. A arqueologia brasileira no contexto mun Podemos considerar que a Arqueologia nasceu com as escavagées de Pompéia, no século XVIII. Nesta época, procuravam-se essencialmente objetos de arte para colegées ¢ museus; aos poucos, os pesquisadores passaram a procurar até 0 lixo. No século XIX, os naturalistas interessavam-se indiscriminadamente pela Geologia, pela Zoologia, pela Botanica... ¢ pelos indigenas, considerados como fésseis vivos do ponto de vista cultural; com efeito, antes que 0 conceito evolucionista se firmasse em biologia, tinha sido introduzido pelos estudiosos das culturas, passando-se a denominar os povos nao-curopeus de “primitivos”, conceito inexistente até o final do século XVII. Desta forma, o naturalista dinamarqués P, Lund, trabalhando em Lagoa Santa por volta de 1840, notou que ossos humanos encontravam- se misturados com ossos de animais extintos (considerados entio “antediluvianos”), sendo o primeiro a postular a grande ancestralidade do homem americano. No final do século XIX, com 0 incentivo de D. Pedro Il, reuniram-se as primeiras colegBes arqueolégicas (ccrimicas amaz6nicas, objetos de pedra dos sambaquis) ¢ realizaram-se os primeiros trabalhos de escavagées (K. von den Steinen em Santa Catarina e R. Krone em So Paulo). Nesses tempos de colonialismo e racismo, os estudiosos, certos da inferioridade dos indigenas brasileiros, procuravam explicar as realizagbes artisticas achadas nos sitios por supostas migragGes de povos da antigiiidade mediterranica (daf as histérias sobre a vinda dos fenfcios ao Brasil). Praticada sobretudo no ambito dos museus (Museu Paulista, Museu Prée-Histseia da Terre Bresilis Goeldi, Museu Nacional), a arqueologia pré-histérica parecia ter como tarefa essencial aplicar as idéias européias e confirmar a inferioridade tecnolégica dos antigos habitantes do Pais; no entanto, vale destacar o cardver pioneizo de certas andlises ambientais feitas por R. Krone ¢ das experimentagdes praticadas por H. von Ihering, A primeira metade do século XX foi pobre em trabalhos arqueolégicos, pois os universitdrios estavam mais interessados em estudar as populagbes negras (um componente numeroso na formagio da nova populagio brasileira) do que os ancestrais dos indios. Também, ninguém acreditava que os indios tivessem penetrado nas Américas senfio poucos milénios antes da chegada dos europeus. No inicio da segunda metade do século, pesquisadores estrangeiros vieram testar no Brasil tcorias claboradas por pesquisadores curopeus ¢ norte-americanos; anos mais tarde, estes pesquisadores orientaram a primeira geragio de arquedlogos profissionais brasileiros Em 1949/1950, B. Meggers ¢ C. Evans realizaram os primeitos trabalhos sisteméticos no Paré, procurando caracterizar as culturas da Floresta Amazénica. Segundo as idéias do seu mestre, J. Steward, o ambiente amazdnico néo permitiria 0 desenvolvimento de civilizagées elaboradas; desta forma, a brilhante cultura Marajoara foi interpretada como conseqiiéncia de uma migragio de populagées de origem andina. Em 1954-1956, J. Emperaire e A. Laming estudaram os sambaquis do Parand e de Sio Paulo, com a idéia de verificar as hipéceses do seu orientados, P. Rivet, sobre a possibilidade de migracbes para a América do Sul a partir da Austrélia; introduziram as técnicas de escavacdo com estratigrafia natural e conseguiram as primeiras radiodatag6es para o Brasil. Durante virios decénios, as publicagbes dos Evans dos Emperaire foram as principais referéncias para a arqueologia litorinea € amazonica. Também em 1954-1955 uma missio brasileiro-americana chefiada por W. Hurt tornava, sem sucesso, a procurar provas da associagio da fauna extinta com 0 homem em Lagoa Santa. A década de 60 marca o inicio da fase moderna da arqueologia brasileira, ao mesmo tempo que P. Duarte, criador do Instituto de Pré-Histéria da Universidade de Sio Paulo, Castro Faria, do Acqueologis, Pre-Histéria ¢ Histéria André Prous Museu Nacional do Rio de Janeiro, e Loureiro Fernandes, criador do Centro de Pesquisa ‘Arqueolégica da Universidade Federal do Parand, conseguiam uma lei federal de protegio aos sitios pré-hist6ricos (em 1961) e procuravam formar arquedlogos brasileiros e introduzir a Arqucologia nas instituigées universitérias. A Universidade Federal do Parand teve papel relevante neste processo, promoyendo cursos de formagio: escavagio ¢ andlise de material Iitico sob a ditegao de A. Laming- Emperaire; prospecso ¢ andlise de material ceramico com B. Meggers e C. Evans. Em Santa Catarina, W. Hurt também treinou uma equipe local em escavagéo de sambaquis. Coordenado pelos Evans, foi montado um ambicioso programa que reunia 11 arquedlogos de oito estados: 0 PRONAPA (1965/1970), destinado a fornecer uma primeira visio sintética da Pré- Histéria dos estados costeiros brasileiros a partir de uma pesquisa integrada gragas & utilizagao de ”, como foram uma metodologia tinica e de uma mesma perspectiva teérica. Os “pronapis chamados, continuaram aplicando a mesma metodologia apés o fim do programa; varios deles participaram de um projeto semelhante para a Bacia Amazénica (0 PRONAPABA) e seu modelo foi seguido por outros pesquisadores a0 longo das décadas de 70 ¢ de 80. Estudando sobretudo as culturas dos povos ceramnistas (os unais recentes € considerados horticultores uibais en opesiggo as populagées sem cerimica, supostamente formadas por “bandos” de cacadores-coletores, na nomenclatura neo-evolucionista americana) através de prospeccdes intensas (mais de 1.500 sitios cadastrados em cinco anos) ¢ sondagens répidas para caracterizar a evolugio da cerdmica nos locais testados, criaram um quadro de tradigdes arqueolégicas que ainda nao foi substituido, apesar das suas insuficiéncias. Paralelamente, outros pesquisadores ~ principalmente da Universidade de Sio Paulo e do ‘Museu Nacional — preferiam trabalhar numa perspectiva paleoctnogrifica que privilegiava o estudo detalhado de sitios-tipo dos vestigios neles contidos, sob uma visio mais préxima da tradigio curopéia ilustrada na década de 60 por A. Leroi-Gouthan. Esta linha foi representada no Brasil pelos alunos de A. Laming-Emperaire, que, em 1971, iniciou um programa de pesquisa na regio de Lagoa Santa, para estudar as mudangas ambientais no Brasil central desde o Pleistoceno (periodo geolégico anterior a 10 mil anos) ¢ as adaptagdes do homem a estes eventos e treinou nas longas escavagoes de Lagoa Santa um grande niimero de pesquisadores até sua morte acidental, em 1977. Foi também Pre-Wistacia da Terre Brosilis A. Laming-Emperaire que trouxe para 0 Brasil 0 autor deste texto, que Pré-Histéria na Universidade de Sao Paulo, em 1971. jou ensino regular da Durante a década de 70 ¢ parte da década de 80, a maioria dos arquedlogos nacionais foi se enquadrando num dos dois “clis” principais, chamados no Brasil de “escola francesa” e de “escola americana’, com objerivos, mécodos ¢ habilidades diversos. Poucos pesquisadores, percebendo que ambas as escolas eram em parte complementares, tentaram escapar a essa dicotomia; polarizou-se enti de maneira negativa 0 panorama arqueolégico do Pais, 0 que dificultou a reflexio critica € atrasou a penetragio de outras tendéncias inovadoras, como a da chamada “arqueologia processual” ou “New Archaeology”, triunfante no mundo anglo-saxdnico na década de 70, que pretendia, a partir de um rigor maior na definigio dos objetivos e dos métodos, levar a Arqueologia & condigg0 de uma ciéncia preditiva, capaz de enunciar leis sobre o comportamento humano e testar rigorosamente as hipéteses ¢ modelos propostos pelos pesquisadores, Esta “nova arqueologia” comegou a influenciar a jovem getacio da década de 80, no mesmo momento em que suas pretenses exageradas € seu sectatismo estavam sendo criticados no exterior. Hoje em dia, verifica-se a existéncia de abordagens mais ecléticas (“pds-processualismo”) que permitem aproveitar 09 pontos positives de was ws tendéncias anteriores € valorizam as perspectivas histéricas © as particularizagées, desprezadas pela New Archaeology em beneficio da busca de leis permanentes. Ao mesmo tempo, a criagdo na década de 70 de um curso particular de bacharelado em Arqueologia no Rio de Janciro (e de cursos de pés- gtaduagio em vérias universidades do Pais, na década de 80) facilitava a formagdo de centenas de profissionais; seu campo de trabalho dirigiu-se cada vez mais para a arqueologia de contrato (pesquisas “preventivas” financiadas por empresas privadas em regides destinadas a serem desfiguradas por grandes obras) em oposisiio as pesquisas bésicas desenvolyidas tradicionalmente pelas universidades. As restrigées de créditos governamentais acabaram criando uma competicio entre as instieuig6es puiblicas ¢ entre estas ¢ 0s grupos particulares, enquanto a disputa por espago e as novas perspectivas abertas por um ensino mais estruturado e diversificado provocaram o surgimento de uma geracio inquieta ¢ critica € um verdadeiro confronto entre geracbes. Em 1980, uma primeira tentativa de aproximar os arquedlogos entre si foi a criagdo da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), que promove reunises cientificas a cada dois anos, cujas Acgveofogia, Pee-Historia ¢ Historia Aedee Prous Aras fornecem uma radiografia atualizada das discusses e das pesquisas em curso. Em 1995, criow- se 0 Férum de Arqueologia, com o objerivo de promover debates metodolégicos e cursos avancados. Dentro do clima de crise, a arqueologia brasileira, jé reconhecida no exterior, busca agora uma personalidade prépria, a0 mesmo tempo que procura nio se isolar desse mundo cientifico; mas, numerosos so os pesquisadores americanos e franceses que trabalham com equipes brasileira agora, menos como mestres do que como parceiros, num clima de cooperacio para benefi miituos. ' Referéacias bibliogréficas Arqueologia em geral ¢ téenicas : Fatt, Pedro Paulo de Abreu. Anpucolagis, Séo Paulo: Atica, 1988 (Sétie Principio. Meccess, Berry: Evans, C. Como interpretar a linguagem de cerémiea. Washington, D. C.: Smithsonian Institu tion, 1970. 111 p. Mosexo, A. Insroduséo & Arqueclogia. Lisboa: Edigées 70, 1980. Pausranst, Luciana; Monts, J. L. de. Arqueclogia pré-bistorica brasileira, Sio Paulo: Fundo de Pesquisa do Museu Paulista, 1980. 78 p, Prous, André, A experimentagio em Arqueologia. Revista da CEPA, Santa Cruz do Sul, v. 17, 9. 20, p. 17-31, 1990. 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A disponibilidade dos animais de grande porte | diminuia com rapidez devido a facores climéticos ¢ talver também em razdo da caga excessiva (Fagan, 1987)..A colonizacio completa até o extremo da América do Sul foi datada em torno de 10 mil anos atris, Paleoindios norte-americanos As primeiras evidéncias geralmente accitas sobre os americanos mais antigos dacam do infcio deste século, com a descoberta de sicios nos planaltos norte-americanos onde foram encontradas pontas de langa cuidadosamente lascadas em ambos os lados com caneluras associadas a ossos de | * Field Muscum of Natural History ¢ University of Illinois at Chicago. Pre-Histssia da Terea Brasilis megafauna, ‘ais como mamute ¢ bisonte. Desde essas primeiras descobertas, encontraram-se divetsos sitios apresentando pontas com canelura na América do Norte, em sta maioria acidentalmente. AAs culturas palcoindias setentrionais parecem ter comesado entre 11.200 ¢ 10,900 anos ¢ terminado no comego do Holoceno, por volta de 8.500 anos atrés. A cultura mais antiga dos sitios de matanca, a cultura Clévis, foi datada pela escavacio de dez sitios onde foram obtidas datagies radiocarbénicas entre 11.200 e 10,900 anos. A ourra cultura da América do Norte bem caracterizada ‘ipalmente entre 10.900 € 10.200 anos. Apesar de essas culturas serem bem aceitas, seu estudo arqueoldgico tem sido de certa forma problemético, pois existem poucas informagSes, nesses sitios, quanto ao modo de vida de seus ais. Também é dificil obter daragies porque hi pouco carvdo cultural. Os sedimentos © ossos de animais tém produzido datagées radiocarb6nicas duvidosas. Ainda nao é sabido se a escassez de restos nos sitios é devida ao modo € a Folsom, resultante da escavacio de mais de 20 sitios com datagées pri habitantes: apenas ossos de animais, pontas e fogueiras super de vida altamente ndmade decorrence da perseguicao aos rebanhos de animais de grande porte, ou simplesmente porque ainda ado foram encontrados 08 sitios de moradia dos paleoindios. A maioria dos sitios de matanga foi encontrada em leitos de antigos riachos, onde a construgio de estradas ou de ferrovias desterrou matcrial arqueolégico. Os sitios, em sua maioria, tém poucos instrumentos de pedra, pequena quantidade de lascas e alguns te trabalhos “artisticos” encontrados so as lindas pontas de projétil, os ossos talhados, em pequena quantidade, as contas de osso e também pedagos de pigmento vetmelho {duos da fabricagao destes insteumentos. Os tinicos Talver o fato de as culturas Folsom ¢ Clavis terem sido as primeiras encontradas ¢ serem significativamente expressivas explique a grande incidéncia das pesquisas nos territérios desses palcoindios do Norte, em especial nos Estados do Novo México, Arizona, Colorado, Texas, Okla homa, Montana, Wyoming ¢ Dakota do Norte. As reas mais bem pesquisadas depois destas so 0 extremo Norte, 0 Alasca ¢ as provincias do Canadd. Porém, nestas tiltimas os resultados arqueolégicos io sio consistentes ¢ & dificil saber seu significado para a hist6ria da colonizagio. Estranhamente, as pontas com caneluras so mais recentes no extremo Norte do que no centro da América do Norte. Existem outras culeuras norte-americanas aparentemente contemporineas as de Folsom e Clovis que aptesentam pontas «riangulares ou lados paralelos sem caneluras, porém a forma de 0 Povormento das Américas subsisténcia dessas culturas & desconhecida por falea de restos dsseos ¢ de plantas que possam ser identi parecam, pois a drea onde foram encontrados é prédiga em pettéleo, carvao, ow calcério, todos ricos adas nos sitios. No entanto, € possivel que alguns destes nio sejam to antigos quanto em carbono antigo, 0 que pode contaminar datacées radiocarbénicas Os paleofndios tém sido considerados, com base na navureza das culturas Clovis e Folsom, cagadores especializados em animais de grande porte, altamente adaptados a ambientes terrestres abertos, de clima temperado das Amér , ambiente que tem servido de foco de pesquisas. Pouco trabalho foi realizado nas costas pleistocénicas, a maioria das quais hoje esta submersa. As flotestas tropicais ¢ temperadas cram consideradas barreiras ecolégicas para os paleoindios adaptados a areas abertas. Alguns antropélogos explicaram a impossibilidade de sobrevivéncia nas florestas tropicais em rentares, desenvolvendo teorias sobre a inviae bilidade da ocupasgo humana neste ambiente antes do advento do culkivo, rario da relativa falta de caga e de outros recursos ali A hipétese pré-Clovis Houve questionamento por parte de alguns antropélogos sobre a teoria migratsria da cultura Clovis, Para eles, cagadores-colerores generalizados, com instrumentos menos sofisticados ¢ um modo de subsisténcia baseado na coleta de plantas, na caga de animais menores na pesca, teriam se espalhado pelas Américas bem antes dos cagadores especializadlos em animais de grande porte (Bryan, 1991). Esses antropélogos ha muito defendem que as florestas tropicais e temperadas tém recursos de maior variedade e abundancia do que os desctitos pelos tedticos, ¢ que as zonas costeiras € os rios oferecem alimentos tais como peixes ¢ moluscos, especialmente valiasos para as cagadores-colerores, A evidéncia que se tem para cagadores-coletores generalizados pré-Clévis, no entanto, pode ser questionada (Lynch, 1990). Tém-se obtido datagdes consistentes pré-Clévis de carvao € ossos de animais associados a pedras lascadas, entretanto, carvio e pecras lascadas se formam também naturalmente, € 0s povos antigos podem ter escavado ss0s ji fossilizados, numa época posterior. As “Iévis raramente estio relacionadas a ossos humanos associados a restos indiscu- dacagées pr Pre Historia 4: Terre Brovilis tivelmence culturais. E mesmo quando tal acontece, estas datagSes esto em flagrante minoria quando comparadas as datagGes existentes para um periodo mais recente. As datagoes mais antigas podem ser fruto de sitios perturbados ou da contaminagio das amostras por carbonato de cilcio, carvio ou petréleo, 0 que também é uma hipétese provavel. Para que se aceite a evidéncia de ocupagso de um sitio, € necessirio haver numerosas datas concordantes, relacionadas a uma série de materiais, eais como artefatos, esqueletos humanos ¢ restos alimentares, em uma seqiiéncia cultural vinda de depésitos estratificados, intacros. Paleoindios da América Central Apesar de sabermos que os primeiros americanos devem ter passado pela América Central, existem poucas evidéncias concretas dessa trajet6ria. A despeito da importincia dada a achados de superfic , de pontas consideradas portadoras de caneluras, segundo alguns arqueéloges, foram obtidas datacoes em apenas dois sitios, um nas terras altas mexicanas ¢ outro na Guatemala, A imaioria dessas datagdes estd relacionada a0 Holoceno, ou seja, & era moderna, ¢ no a época dos paleoindios, Nao foram encontrados restos vegetais ou animais passiveis de identificagao e nfo hd dados que permitam a reconstituigéo do ambiente ou do modo de vida dos responsiveis. pela formagio desses sitios. Outros achados, também de superficie, de supos s pontas com caneluras, no Panamé ¢ no sul da América Central, ainda nao foram datados. £ mais provavel que as evidéncias venham, finalmente, de escavagies st Pleistoceno tardio. aquticas das planicies férteis que beiravam 0 mar durante © Paleoindios da América do Sul Artefatos provavelmente paleoindios foram identificados em sitios por toda a América do Sul. Estes artefatos variam de simples pedras lascadas, ossos ¢ madeira com provaveis marcas de trabalho a elaborados inserumentos liticos bifaciais ow unifaciais, As mais antigas datagdes aceitas para culturas sul-americanas so contemporineas a complexos paleoindios norte-americanos, mas provém de sitios com industrias ¢ padrbes de sub- 28 © Povorments das Americas Anna Roosevelt sisténcia distintos. Os poucos conjuntos com restos biolégicos abundances sio. comumente caracterizados por possutirem variadas espécies de animais modernos. Na maioria dos casos, a megafauna € rara ou ausente, Seus instrumentos diagnésticos sio as pontas rabo-de-peixe, as pontas fol de lesma). Os primeiros dois tipos de instrumentos sio associados por arquedlogos a tradigies ceas, as pontas triangulares com pediinculo e as lesmas (raspadores unifaciais de ponta, em forma paleoindias do Norte, mas as pontas triangulares ¢ as lesmas ndo sio. Pontas triangulares sto comuns em complexos de cagadores-coletores generalizados arcaicos do inicio do Holoceno nas Américas, portanto esperava-se que os exemplos da América do Sul fossem pés-pleistocénicos. No entanto, pontas triangulares ocorrem também durante © Pleistoceno tardio na Eurdsia ¢ no Alasca, prdximo ao Estreito de Bering Apesar da variedade das culturas paleoindias sul-americanas, faltam as pontas de flechas com canelura ¢ ligacao exclusiva com megafauna, como ocorre na Amética do Notte. O noroeste da América do Sul ‘A situago do noroeste da América do Sul é semelhante & do palcoindio da América Central. Nio foram encontrados sitios que se encaixem na reoria de migeagio Clévis ou pré-Clévis, No Equador, temos apenas datagdes radiocarbénicas de culturas pré-cerdmicas relacionadas 20 Holoceno recente: as tinicas datagées pré-Clivis sio de achados superficiais e discordantes. Nas terras altas da Colémbia (Ardilla Calderon, 1991), sitios pré-cerimicos, com raros instrumentos liticos lascados unifaciais, abundante flora ¢ fauna modernas ¢ raza megafiuna, tém apenas duas datagies radiocarbonicas pré-Clévis que, no entanto, apresentam éreas perturbadas, alm de ter sido encontrado carvao pré-humano, Pontas de projétil triangulares bifaciais, finamente lascadas ¢ portando canelura e pediinculo, foram encontradas em toda a Colémbia, mas faltam datagées radiocarbénicas. Os mais antigos bifaces foram datados em dois sitios em rorno de 10.300 anos atrés. Taima Taima, famoso sitio venezuelano de megatauna, descoberto em uma fi te, tem fragmentos de pontas raras em forma de folha de louro, com datagdes entre 14.400 11.900 anos, Pré-Historia di Terre Brasilis feitas a partir de material dsseo de megafauna e plantas (Bryan ct al., 1978). © sitio tem, porém, sinais de contaminagéo © uma estratigrafia complexa ¢ descontinua devido 4 agéo da agua. No restante da Venezuela, a maioria dos achados ¢ de supericie ou tem datagGes altamente variantes. No Peru (Keatinge, 1988) existem numerosas datagées radiocarbénicas para sftios com Pontas triangulares, outros instrumentos e restos de fauna e flora modernas entre 11 mil e 7.100 anos AP nos altiplanos, ¢ entre 10.400 ¢ 7.700 na costa, As datacées pré-Clévis existentes so raras ¢, 0u no apresentam uma seqiiéncia cronolégica ou so provenientes de niveis no aceitos por no possufrem artefatos considerados como tais, in situ. A flora ea fauna do Alto Puna sugerem uma casa especializada no Guanaco © uma caga € coleta mais generalizada nas bacias intermontanas ¢ nas regides costeiras. Importantes enterramentos foram recuperados em sitios relacionados & cultura Paijan da costa norte, com datagoes de 11 mil © 9 mil AP. Semelhante aos restos humanos encontrados em sitios brasileiros, datados do mesmo periodo, esses esqueletos pertencem a individuos robustos, altos, com cabegas compridas, provavelmente de origem asidtica, porém, diferentes de outros povos amerindios mais tardios. 0 Cone Sul Ainda mais ao sul, 0s possiveis complexos pré-Clovis no Uruguai vém de coleras superficiais sem datagées. No Chile e na Argentina si encontradas raras lascas liticas, possiveis artefatos em ‘0850 ou madcira ocorrem em sitios com megafauna, as vezes também portadores de arte rupestre, mas as datagdes pré-Clvis sio excepcionais ou associadas & contaminagio ou pertutbagao dos sitios. Os conjuntos mais ricos, com pontas rabo-de-peixe, que aparecem nestes € em outros sitios apresentam fauna variada, moderna ¢ extinta, com datagées predominantemente relacionadas a0 Pleistoceno tardio, entre 11 mil ¢ 9.500 anos AP (Politis, 1991), e néo a épocas pré-Clévis. A ponta rabo-de- peixe anteriormente considerada como derivada da ponta Clévis é hoje vista como pertencente a um processo recnolégico de fabricagao muito distinto das pontas clissicas de caneluras como as Clévis e as Folsom. O famoso sitio do Riacho Monte Verde no Chile apresenta dois fragmentos bifaciais de pontas folidceas ¢ seis datagbes entre 13.500 ¢ 11.800 anos atrds, A amplitude das datag6es se opde 40 _— O Povormento dis Américas Anse Roosevelt 2 hipétese de ocupacio breve formulada pelos arquedlogos, e parte do material encontrado nos sitios pode originar-se de inclusdes naturais ¢ nfo de restos culturais. Do mesmo modo que em Taima Taima, existem possiveis agentes de contaminacio. Pelo menos os complexos do Sul mostram que existia uma cultura diversa jé bem estabelecida na area em 11 mil anos AP, cedo demais para serem descendentes da cultura Clévis, E posstvel que os dados mais abundantes sobre paleoindios sul-americanos venham de sitios brasileitos (Dillehay et al. 1992). Varios destes, com arte rupestre e a cfu aberto, apresentando pedras lascadas, pareddes de pintura rupestre e possiveis fogses, rm numerosas € consistentes datagbes radiocarbénicas pré-Clévis que remontam 2 50 mil anos AP, mas a presenga humana em datas téo recuadas tem sido questionada. O sitio da Pedra Furada € 0 mais famoso dentre estes (Guidon ¢ Delibrias, 1986) Nestes ¢ em outros sitios os niveis mais recentes apresentam pontas triangulares retocadas por presso, pontas bifaciais pedunculadas ¢ lesmas, fogées, flora e fa correlagées estratigréficas com a arte rupestre (Prous, 1986). Algumas regiSes parecem carecer dessas antigas pontas triangulares ¢, em seu lugar, apresentam abundancia de ferramentas unilfaciais, que possivelmente seriam usadas para cavar ¢ cortar madcira (Schmitz, 1987). Os dois complexos tém 1a atuais variadas, corantes ¢ muitas datagdes entre 11.500 ¢ 8 mil anos AP; datagdes mais antigas que essas sio raras e pouco consistentes. Diversos estilos bem definidos de pintura rupestre foram associados a esses antigos sitios arqueolégicos brasileiros. A grande quancidade de restos vegetais ¢ animais encontrada nesses sitios evidencia uma caga e uma coleta de amplo espectro baseada em frutos silvestres, caga mitida, moluscos € peixes oriundos de ambientes um pouco mais imidos e talvez um pouco mais frios do que os acuais, As importantes colegdes de esqueletos da Lagoa Santa, em Minas Gerais, foram datadas pelo carbono 14 ¢ cambém analisadas por antropélogos fisicos. Os resultados revelam que hé 10 mil anos AP teria existido na regio uma populagio robusta de asidticos nfo mongoldides generalizados, de certo modo semelhantes aos paijan, mencionados anteriormente. Pre-Historia da Terre Brasilis ‘A imporcancia desses achados em areas subtropicais brasileiras € a evidenciacdo da existéncia de elaboradas tradigdes culturais regionais contemporineas as tradigées Folsom e Clovis ¢ de uma populacdo humana diferente dos amerindios mongol6ides posteriores. Amaz6nia Embora haja a »écese de que parte da Amazénia em tempos remotos fosse coberta por sayana € nfo por florestas subtropicais, durante © Pleistoceno glacial, os dados mais recentes demonstram que as florestas tropicais ¢ os niveis altos dos rios predominaram no centro e no oeste da Amazénia durante 0 final do Pleistoceno. Apesar de alguns arquedlogos suporem que cagadores-coletores néo pudessem viver nas florestas tropicais, numerosas pontas de projétil pedunculadas triangulares foram encontradas na Amaz6nia, nos iiltimos 150 anos. Grande ntimero de cavernas e abrigos sob rocha também foi registrado por naturalistas, espeledlogos e arquedlogos. Muitos deles sio pintados com figuras estilizadas de animais, seres humanos e desenhos geométricos (Fig. 5 ¢ 6). Como 0s sitios paleoindios da América do Norte nfo possu‘am nem pontas triangulares nem cram conhecidos por suas pinturas rupestres, esta arte era considerada por arquedlogos norte-americanos como datando do Holoceno, porém, nenhum desses sitios foi escavado, nem tampouco datado. Seguindo os passos dos primeiros exploradores, arquedlogos pesquisaram diversos sitios relacionados a paleoindios na Amazénia. Em uma érea do Baixo Amazonas, no sitio arqueolégico Caverna da Pedra Pintada, em Monte Alegre, Pard (Fig. 7 € 8), os morros calcérios apresentam uma grande quantidade de paineis pintados. Além de figuras geomeétticas, que podem muito bem ter sido mérodos para contagem, foram pintados seres astrondmicos, animais de todos os tipos e contornos de figuras humanas, cagando ¢ parindo. Ha ainda figuras compostas de seres miticos tais como insetos com bragos ¢ pernas de gente, ¢ também seres humanos com cabecas solares. As impresses de mios deixadas por estes artistas eram tanto de adultos quanto de eriancas. Descobrimos nesta drea de arte rupestre de Monte Alegre um acampamento paleoindio estratificado sob um nivel estéril e uma série de culeuras ceramistas do Holoceno. Foram feitas 56 © Povormento das Américzs Ansa Rooseuelt Ficura 5 - Painel do Pilio, Monce Alegee, Brasil. Deralhe de pinrura eupestre. Estas pinturas rupestres de animais, figuras humanas © geométricas ¢ seres asirondmicos foram feitas hé mais de 11 mil anos ¢ tstio entre as mais antigas pinturas de cavernas jd enconcradas nas Américas 43 © Porormento das Américas Anno Roosevelt da Terea Brosilis Pre-Histovis Oceano Ailintico BRASIL Testor Piven Monte Alegre Manaus Santarém’ - - & 200 milfs & & é 200 quilémetros Ficuea 7 - Caverna da Pedta Pintada, Localizagio, Fioues 6 ~ Painel do Pilko, Monce Alegee, Brasil. Pintusa rupestre. Estas pinturas de animais ¢ de figuras humanas e inaturais acompanhadas de desenhos geométricos © possivelmente astronémicos podem cer sido feitas hi mais de 11 mil anos e estar encre as mais antigas pincuras de cavernas encontradas nas Américas 45 a4 Ficues 8 - Caverna da Pedra Pintada, Monte Alegre, Amazonas, Brasil. Nesta caverna uma equipe internacional de arquedlogos encontrou cvidéncias de habitacio humans - pinturas rupesties, arcefatas, animais ¢ plantas carhonizadss ~ datadas de mais de 11 mil anos. ; © Povosmento daz Américas Anno Roosevelr datagbes radiocarbénicas a partir de restos vegetais carbonizados, revelando uma antigtiidade entre 11.200 ¢ 10 mil anos atris e 13 datagSes de termoluminescéncia em liticos © sedimentos, que indicaram uma idade pertencente ao Pleistoceno tardio, contemporinea dos paleoindios norte- americanos, No entanto, as pinturas, as pontas de lanca bifaciais triangulares (Fig. 9) e as ferramentas unifaciais, encontradas nos sitios, indicam uma cultura distinta das culeuras norte-americanas. O cistal de quarteo era o principal material litico utilizado pelos paleoindios mais antigos; os mais recentes usavam, preferencialmente, a calcedénia. O pigmento utilizado nas pinturas estava concentrado na camada relacionada 4 ocupagio paleoindia inicial Fruros carbonizados, madeita ¢ restos faunisticos revelam uma economia de floresta tropical de amplo espectro c caga e coleta ribeirinha (Roosevelt et al., 1996). Muitos vegerais eram con- sumidos, incluindo os frutos da palmeita, de castanha-do-pard ¢ leguminosas. O alimento animal incluia peixes, roedores, morcegos, moluscos, jabutis, cobras, anfibios, péssaros grandes mamiferos terrestres (acima de 65 quilos, possivelmente ungulados). Nozes, frutas ¢ pequenos peixes constirufam 0 alimenco mais comum. Na Amaz6nia atual, as mulheres ¢ criancas fazem a maior parce deste tipo de wabalho. A Gaga de auimais de giaude porte, atualneme use atividede desenvolvida pelos homens, no era comum entre os paleoindios que ocuparam essa regio, Na gruta foram encontrados apenas assos de animais menores ¢ de peixes grandes; estes tiltimos, até os dias de hoje, sao pescados pelos homens com o auxilio de barcos ¢ axpbes. Os paleoindios desenvolyeram na Amazénia uma adaptagio a longo prazo & floresta tropical timida, Mesmo que as pontas de langa encontradas na caverna cenham sido presumivelmente utilizadas para caga de uma fauna de grande porte, especialmente os peixes grandes, 0s restos alimentares nao indicam uma especializacao na caga desse tipo de animais, mas sim na caga e coleta generalizadas. A biota da cavemna e sua quimica de isétopos de carbono sugerem que, no periodo inicial da ocupagio de Monte Alegre, existiria uma cobertura florestal mais completa ¢ maior pluviosidade, antes que o desmatamento para a agricultura e a domesticagio de animais tivessem destruido a Mloresta ¢ reduzido a densidade de chuvas an Pré-Historia da Terra Brasilis Ficuna 9 ~ Ponta de projétil feita de caleedénia, uma das muitas encontradas no Rio Tapajés; & um indicador da ocupagio humana na Floresta Amazénica hd mais de 10 mil anos. A deseoberta de pontas de pedra semelhantes associadas a vestigios de fracos ¢ fauna tropicais na Caverna de Monte Alegre indica a existéncia de cayadores-coletores muito ancigos em territdrios anteriormente consideradas inabitaveis. Os paleoindios devem ter usado pontas como estas para pescar grandes peixes cujos raros estos foram encontrados na caverna, acompanhados de vestigios de peizes pequenos, réptcis, anfibios, passaros, roedores ¢ animais de porce maior. (Cortesia do Maseu Goeldi ¢ do Banco Safra,) —_— O Poverments das Américss Aveo Roosevelt © povoamento das Américas Todas as novas descobertas de diferentes culturas paleoindias na América do Sul confirmam ‘0 ponto de vista tebrico pré-Clovis de que 0 povoamento das Américas foi mais complexo do que prope a teoria de migragdo Clévis. Estas descobertas mudam a compteensio das migracées ¢ adapragbes ecolégicas dos primeiros cagadores-coletores. Os paleotndios vigjaram grandes distancias ¢ desenvolveram culturas diversas. Mesmo que algumas das outras culturas partilhassem da tecnologia litica dos paleoindios norte-americanos, elas possuiam ferramentas, estilos artisticos e préticas de subsisténcia distintas. A existéncia de varias tradigdes culturais sul-americanas contemporaneas mas distintas da tradicéo Clévis no corrobora a hipétese de que os cagadores de animais de grande porte norte-americanos fossem os ancestrais dos sul-americanos. A énfase na caga de grande porte raramente é encontrada na América do Sul, onde a pesca, a coleta de moluscos ¢ de plantas ¢ a caga de animais menores eram mais importantes para a subsisténcia das pessoas. Alguns arquedlogos acreditam que, mesmo na América do Norte, a subsisténcia tenha sido mais gencralizada do que a caca especializada indicada pelos sitios de matanca. E provavel que os acampamentos-base, ainda no encontrados nas planalros, também mastrem uma fonte de subsisténcia mais ampla, O reconhecimento de economias mais amplas ¢ diversificadas pertencentes aos paleoindios da América do Sul é importante para a compreensio do papel que a caga ¢ a coleta generalizada tiveram na evolucéo humana. As pesquisas exnografica e arqueoldgica sugerem que 0 trabalho de mulheres ¢ até de criancas € muito importante em tais economias, especialmente na coleta de moluscos ¢ de plantas na pesca, podendo prover a maior parte do alimento necessério & populacdo. Nossas idéias sobre a estrutura das mais antigas sociedades podem cer de ser reavaliadas quando comarmos os antigos sul-americanos como modelos novos para os primeiros hominfdeos. Nota 1 Antes do Presente (AP) ¢ uma expressio usada para a datacio de perfodos arqueolégicos. Convencionou-se como data inicial para o inicio do Presente o ano de 1950. A indicagio aC. (antes de Cristo) continua também a ser utilizada. (N. do E) Pre-Historia da Terre Brasilis Referéncias bibliograficas Brvan, Alan L. The fluted-point tradition in the Americas: one of several adaptations to late Pleistocene American cavironments. In; Bontcustx, Rs Tunnstet, K. L. (org) Clo otigins and adaptations. Corvallis, Oregon: Center for the Study of the First Americans, 1991. p. 15-34, Brvan, Ay Casaatquers, R. Mis Cruxenr, J. Ket al, An El Jobo mastodon kill at Taima Taima, Science, n. 200, pe 1.2751.277. 1978 Coun, Bs Ouveins, BE Moreno, J. B. et al. 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Um deles ¢ a aplicago do conceito de paleoindio as culcuras mais antigas do Brasil Central. No Velho Mundo, os nomes geralmente usados na periodizagio universal sio: Paleolitico (inferior, Médio e Superior), Mesolitico, Neolitico e Civilizagio ou Urbanismo (Pré-Clissico, Cléssico € Pés-Clissico). Os nomes americanos aproximadamente correspondentes so: Periodo Litico, que pode ser usado com sentido semelhante ao Paleolitico ¢ dividido em um perfodo Pré-Pontas © outro Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS, Sao Leopoldo, RS. Pré-HistSeis da Terre Brasilis Paleoindio; Perfodo Arcaico (em vez. de Mesolitico); Perfado Formative (em vez. de Neolitico); Chefias, Florescente ¢ Expansivo ou Militarisca. Os arquedlogos brasileiros pouco tém usado, em suas pesquisas recentes, tanto a classificagéo européia quanto a americana, organizando seus dados em periodizacées menos abrangentes, ou no insistindo nestes conceitos. Mas nao escapam desse enquadramento quando cles ou colegas estran- geiros buscam incorpori-los em quadros mais amplos Os termos nos quais nos deteremos so Perfodo Paleoindio ¢ Perfodo Arcaico. A wtlizagao destes termos nfo € uma questio meramente formal, estd ligada as opinises sobre a cronologia do povoamento, em paralelismo ou néo com a evolugio no Velho Mundo, origem do homem americano, ritmo e forma de sua adaptacio ao Novo Continente. Como a maioria dos arquedlogos americanos (entenda-se principalmente norte-ameticanos) situa © povoamento da América no finalzinho do Pleistoceno, que corresponde ao final da dltima glaciagao, o enquadramento das culturas antigas costuma set feito no Perfodo Paleofndio ou no Arcaico. Este enquadramento nio estd livre de discussao - e de discussio acirrada O conceito de cultura do Paleoindio contém, entre outros, os seguintes elementos: popu- lagées que teriam vivido predominantemente de caga grande, também chamada megafauna; sitios principalmente de matanga, néo de acampamentos residenciais; artefatos identificadores, pontas bifaciais, especializadas, de projétil, geralmente acompanhadas de lascas usadas como facas, raspadores ¢ raspadeiras; o ambiente, um periodo frio e seco; populacéo, pouco numerosa, dispersa e némade, organizada em bandos frouxos. Os animais cagados seriam predominantemente os que se extinguiram com o final da slaciagZo e que, em termos populares, poderiamos denominar de bisontes, cervideos e camelideos, antigos cavalos, elefantes, preguigas © tatus gigantes, antas, tigres-dente-de-sabre, etc. O conceito de Arcaico se refere a uma cultura de progressiva adaptagao ao clima pés-glacial, ‘mais quente, mais timido, que vai se aproximando do nosso ambiente atual. A cultura desse perfodo se diversificaria com o homem buscando novos recursos alimentares nas savanas, nas estepes, na beira AQuestio do Paleoindio Pedro Ignécio Schmitz do mar e dos lagos; a casa nio seria mais especializada em megafauna, mas getal ¢ diversificada; a coleta animal ¢ vegetal aumentaria ¢ a experimentagio e o conhecimento acumulado levariam 3 domesticagéo de plantas ¢ de animais que, no Formativo, jé se transformaria em sustento confidvel, mesmo se ainda complementar. Nas primeitas tentativas de sintese da arqueologia do Brasil Central ¢ reas vizinhas foi usado (Schmitz et al., 1977-1979) © conceito de Paleoindio para as culturas mais antigas, encontradas em Goids, Minas Gerais, Piaul, Pernambuco ¢ Rio Grande do Notte, e 0 conceito de Arcaico para as outras culturas de cagadores pré-cerimicos. Os dados ainda eram escassos, dispersos, € 05 conjuntos, pouco definides, mas era urgente uma organizacio. Por isso’ muitos arquedlogos brasileiros opraram pelo sistema de periodizagZo mais préximo, que era 0 americano. © fandamento para usar 0 termo Paleoindio baseava-se nas datas de um horizonte indus- trial caracterizado especialmente por unifaces bem acabadas que teriam a fungéo de raspadores, raspadciras © facas, mas scm pontas de projéril. Um nome bastante usado para este complexo tecnolégico, que parecia coextensivo com a savana tropical brasileira, era Tradicin Ttaparica, nome ctiado pelo PRONAPA, a partir de material da Bahia (Calderdn, 1969). Este complexo se estende de aproximadamente 9 mil a 6,500 anos a.C., em alguns lugares alcangando datas ainda mais recentes, isto é, predominantemente dentro do Holoceno. Por isso, na discusséo, surgiu a idéia de chamé-lo Paleoindio Defasado. Isto porque parecia haver elementos paleoliticos, mas que extrapolavam o perfodo ¢ talvez 0 ambiente caracteristica do Pleistoceno. Um elemento é hoje bem claro: nao se realizava nestes sitios 0 conceito cléssico, estrito, de Paleoindio, criado para culturas de ambientes abertos de clima frio ou temperado. Apesar de, na érea, existirem animais pleistoctnicos contemporaneos 20 homem, nfo eram utilizados como base alimentar, motivo pelo qual os sitios de matanca nfo caracterizam a arqueologia do periodo. A alimentago, a0 contrario, era baseada na caga generalizada de animais pequenos, médios e grandes, caracteristicamente holocénicos, ¢ no consumo, ainda pouco estudado, de produtos vegetais. Os principais sitios localizam-se em abrigos rochosos, grutas ¢ cavernas ¢ indicam certa estabilidade de (re)ocupagio, tanto nas camadas sedimentares quanto nas pinturas das paredes. Os bem-acabados artefatos no s6 apresentam uso intenso ¢ reutilizagio dos gumes ¢ das formas. Més ativas ¢ passivas, suportes ¢ percutores sugerem alguma intensidade de exploracao vegetal. Existe certa densidade de ocupacao em alguns territérios. Esta cultura arqueolégica, com suas caracteristicas bisicas, se estende, em Gois, de 9 mil 6.500 anos 2.C., quando ocortem importantes mudangas na tecnologia, na alimentagio e no ritual funeritio. A partir dese momento (fise Serranépolis), temos, sem divida, um Arcaico muito caracteristico. ‘A fase Paranatba, de Golds, € uma cultura arqueolégica em que as pontas de projétil estio ausentes, mas isto nfo nos autoriza a chamé-la de Pré-Pontas; nem as datas, nem 0 contexto cor- respondem ao conteddo expresso no conceito. As pesquisas realizadas até agora revelam que as culturas arqueolégicas dos cagadores das savanas tropicais mantém, como identidade, ainda por milénios, a unifacialidade de seus artefatos, sendo as raras pontas bifaciais verdadeiras excegbes Talvez em outras reas, que néo as estudadas no Brasil Central, tivesse algum sentido a aplicagio do termo Pré-Ponta, como em Sio Raimundo Nonato, no Piaut, mas com a mesma ressalva acima, Passados 20 anos da sintese mencionada inicialmente, os dados no Brasil Central nao mudaram substancialmente; houve apenas acréscimos quantitativos Certamente os materiais do Brasil Central no. preenchem o conceito de Paleoindio, como € utilizado tradicionalmente pelos arquedlogos norte-americanos, quando estudam dreas temperadas ¢ frias. A pergunta que resta € se estes materiais contém suficientes elementos paleoliticos para que se Ihes possa aplicar 0 conceito, adequando melhor o contetido do mesmo, com a incluséo também das culturas das areas tropicais. periodo de 9 mil a 6.500 anos a.C., nas savanas do Brasil Central, apresenta, de fato, uuma cultura arqucolégica tipica de adaptasio ao espaco tropical. Sem o actimulo de dados ¢ a experigncia adquirida pelos arquedlogos nas areas temperadas ¢ frias, permanece dificil, primeiro, aplicar o modelo tradicional a um material totalmente diverso , segundo, estabelecer os limites entre tum periodo e outro em termos da periodizagio pan-americana. A Questio do Paleoiadia Pedro Ignacio Schmitz Referéncias bibliogréficas Bayan, A. L. (org.). Early man in America: ftom a circumpacific perspective. Edmonton: Archaelogical Researches International, 1978, (org). New evidence for the Pleistocene peopling of the Americas. Orono: University of Maine, 1986. Dincavze, D. 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Estas caracteristicas climéticas favorecem um tipo de vegetagio, a caatinga, que perde suas folhas durante o periodo de seca e as recupera com o inicio das chuvas, resultando em uma verdadeira mecamorfose da paisagem. Em épocas pré-histéricas as condigdes ambientais eram diferentes. Um clima tropical timido perdurou até hé cerca de 12 mil anos, permitindo o desenvolvimento de abundance vegetacio, perenifdlia, que garantia a alimentagio de uma fauna majoritariamente herbivora. Durante milénios, esp povoaram. As espécies da megafauna mais representadas eram a preguica gigante (Catonyx cuvieri e a Eremotherium lundi), 0 tigre-de-dente-de-sabre (Smilidon populator), 0 mastodonte (Haplomastodon ies da megafauna existiram na regio ¢ coabitaram com os grupos humanos que também a waringi) © 0 tatu gigante (Glyptedon clavipe:). Junto a esta fauna gigante, existiam também as espécies de pequeno porte, fontes de alimentagio das populagées que Id viviam, Fundagio do Homem Americano. Pre-Historia du Terre Ficura 10 ~ Parque Nacional Serra da Capivara, sudeste do Pia Bresilis Pré-Historia da Regito do Parque Nacional Serra di Capivara Anne-Marie Pessis Nesta regiio existem evidéncias da presenga humana que remontam a 50 mil anos. Outros testemunhos, no sul do Chile, confirmam a antigiidade da presenga humana no continente sul- americano. O sitio arqueolégico Monte Verde permite afirmar que grupos humanos habitavam essa regifo hé 33 mil anos. As pesquisas arqueoldgicas na América do Sul, para esse perfodo da Pré- Historia, sé0 ainda pouco numerosas, mas os resultados confirmam, de maneira reiterada, 0 recuo das datas da presenga humana. As pesquisas nfo permitem ainda precisar as vias de penetragio do ‘continente nesse petfodo, nem construir teorias que expliquem o processo do povoamento americano. Existem propostas explicativas em toro das quais os pesquisadores procuram maiores evidéncias, O perfodo mais recuado da presenca dos primeiros grupos humanos na‘ regio abrange uma faixa de 50 mil a 12 mil anos, Essa extensa faixa cronolégica corresponde ao perfodo timido na regio do Parque Nacional, onde as populagées do Pleistoceno se instalaram muito lentamente, desenvolvendo uma cultura adaptada as condigSes do meio ambiente. Os vestigios da cultura material descobertos indicam a existéncia durante milénios de uma finica cultura, que inovou tetnicameute © fez esvulhas entre os recursos naturais disponiveis. Os instrumentos cortantes ¢ pontiagudos, como facas, raspadores ¢ perfuradores, foram feitos em quartzo quartzito, com caracteristicas similares &s enconttadas no Paleolitico da Austrilia ¢ do Japao. Séo pecas liticas pouco trabalhadas, ralhadas segundo as necessidades do momento, utilizadas ¢ logo abandonades. Os instrumentos sio feitos de maneira a serem utilizados em fung6es gerais tais como cortar ou raspar e portanto sem existir a procura de especializagao. Os artefatos foram achados nos solos arqueolégicos junto a estruturas de fogueiras (Fig. 11). Dessas foguciras foram extraidos os carves de lenha que, submetidos & anilise de 14C, forneceram as datagbes. “Muitos vestigios da cultura material desse periodo se desintegraram pela fragilidade de seu cuporte. A cestaria e 0 trangado, tecnologias que devem ter existido, no suportaram os efeitos do tempo e da umidade. © mesmo aconteceu com todas as outras matérias-primas. Em seus albores, a recnologia humana no foi inventada: era apenas fruto da observagio de técnicas utilizadas por ‘outras espécies copiadas, inovadas e adaptadas as necessidades humanas. Pré-Hietoria da Terre Brasilis Figura 11 ~ Fogueica, Sitio Perna 1 Os abrigos sob rochas das serras nao eram utilizados como lugares de habitagao (Fig. 12) Muitos deles tinham depressdes rochosas onde se acumulava égua da chuva, localmente denominadas caldeirées, sendo freqiientados para outros usos como pontos de caga, aproveitando a vinda de animais para beber. Como lugares de moradia foram escolhidos outros espacos, independentemente do grau de nomadismo ou sedentarismo: locais mais abertos, como na desembocadura de boqueirées, em vales largos, no alto das chapadas, perto de fontes de dgua, de rios ou cérregos que eram abundantes nessa época timida, No perfodo Pleistocénico, as populagdes jd praticavam atividades gréficas (Fig. 13). Frag- mentos de parede, com tragos de pincura, foram achados caidos sobre solos arqueolégicos. Neles as figuras desenhadas nio sio identificdveis, mas confirmam a pritica de uma atividade que se tornaria Pre-Historia di Regito do Parque Nacional Serca du Capivara Figuns 12 - Rocha da Serra. Abrigos sob a rocha. ne-Marie Persix Pre-Histeria da Terre Ficus 13 - Parque Nacional ds Capivata, Toca do Caboclo Bresilis Pre-Historia da Regito do Parque Nacionsl Serca dx Capivara — Ange-Mavie Pessis um verdadeiso sistema de comunicagio. Sobre as paredes dos abrigos do Parque Nacional existe uma densa quantidade de pinturas rupestres realizadas durante milénios. As representacées de animais si0 muito diversificadas, sendo possivel reconhecer espécies inexistentes hoje na regio ¢ outras totalmente extintas, como camelideos e preguicas gigantes. Existem também reprodugées de capivaras, veados galheiros, caranguejos, jacarés e certas espécies de peixes, hoje desaparecidas na érea, extremamente érida para poder abrigé-las. Organizados em pequenos grupos, dotados de grande mobilidade, os primeiros habitantes estavam em melhores condicées para adaptar-se aos condicionamentos do meio ambiente. A falta de tecnologia sofisticada exigiu das primeiras populagées um alto grau de observacao para se adapcarem a situagbes novas. © clima tropical timido perdurou até cerca de 12 mil anos atris, correspondendo 20 Pleiscoceno final. A partir de 10 mil anos AP as chuvas diminuiram e o clima semi-étido se instalou. A vegetagéo também diminuiu, as fontes de alimentagao se tornam escassas ¢ a megafauna desapareceu totalmente da regido, junto com as espécies dos ecossistemas iimidos. As transformagées da vegetago © a extinggo de uma parre da fauna nio afctaram a sobrevivéncia dos grupos humanos, que tinham como fonte de alimentagio as espécies de pequeno porte que sobreviveram. Um novo perfodo cultural comesou a ser desenvolvido pelas populagdes instaladas na regiao entre 12 mil ¢ 3.500 anos AP. Trata-se dos mesmos grupos étnicos que a povoaram durante 0 perfodo pleistocénico e que se adapraram 3s novas exigencias do meio ambiente. Essas populagées so conhecidas como povos da Tradigao Nordeste. Durante 9 mil anos desenvolveram uma cultura material com técnicas cada vez mais aprimoradas. A estrutura econdmica des grupos da Tradigio Nordeste permancceu a mesma que dominou durante 0 perfodo pleistocénico. As fontes alimentares eram a caga de animais de pequeno porte ea coleta de frutos e folhas. A caca era assada e os restos alimentares apareceram nas estruturas de fogueiras. A técnica de fabricacao das ferramentas liticas se transformou lenta porém marcadamente Apesar de prosseguir utilizando as matérias-primas da industria Ifica pleistocénica, 0 nimero ¢ a diversidade das ferramentas aumentaram. A manufatura dos instrumentos se tornou mais especiali- Pre-Historis da Terra Brasilia zada e adequada A sua fungéo. Essa procura da especificidade ¢ uma das grandes diferengas da tecnologia pleistocénica. S40 comuns os raspadores, facas, lascas retocadas, seixos lascados ¢ percutores. Alguns artefatos apresentam marcas de intensa utilizagéo permitindo observar o desgaste diferenciado. Nesse perfodo em que a tecnologia litica se tornou mais complexa e precisa, apareceram inscrumentos feitos com outras matérias-primas. O silex, de origem exégena, tornou-se a matéria- prima privilegiada, pelo fato de ser muito favordvel para o trabalho de lascamento. Este material nio era lascado e depois abandonado como 0 quartzo no periodo pleistocénico: eram instrumentos muito trabalhados que interessava conservar. Observa-se também a utilizagio da calcedénia, Junto & tecnologia cada vez mais utilizada de lascamento apareceram técnicas de polimento por volta de 9.200 anos AP, datagio de um machado de pedra polida descoberto nas escavages arqueolégicas da Toca do Sitio do Meio. A utilizagio da argila apenas seca ao sol para a realizacao de artefatos ceramicos, que devia carcterizar a tecnologia pleistocénica, tornou-se mais complexa; foi substituida pelo emprego de procedimentos de queima, o que deu lugar ao aparecimento da cerimica. A descoberva, na Toca do Sitio do Meio, de um caco de cerimica datado cm 8.900 anos AP situa cronologicamente esta técnica € envelhece o aparecimento da ceriimica no continente american. A ocupagio do espago manteve as mesmas escolhas feitas durante © perfodo pleistocénico Os aldeamentos de pequeno porte permaneceram perto de fontes de gua nos vales abertos. A utilizagio dos abrigos sob racha das serras se produzi de acampamentos regularmente freqiientados de maneita continua através da implantagio A mais importante caracteristica cultural dos grupos étnicos da Tradigao Nordeste foi o fato de cles cere desenvolvido um sistema de comunicagio social através de um registro grifico, de cardter narrativo, Esse registro, formado por pinturas rupestres desenhadas nas paredes dos abrigos sob rocha, foi encontrado nos boqueirdes © na chapada do Parque Nacional. Durante milénios as paredes dos sitios foram pintadas, deixando testemunho de aspectos da vida cotidiana e cerimonial das populagoes dessas épocas. Independentemente da significagZo que podiam ter essas representagies graficas, 0 mais importante do ponto de vista histérico € a existéncia de um acervo documentério pré-histérico que permite realizar verdadeiras pesquisas de historia visual, viabilizando sua reconstituigao. Pré-Histéris du Regito do Parque Nacional Serres da Capivare Anne-Marie Pessis As ptimeiras pinturas pertencentes & Tradigio Nordeste esto datadas em 12 mil anos AP, correspondendo ao inicio do perfodo holocénico. A permanéncia desta tradigao ¢ de 6 mil anos. As pinturas caracterizam-se pela escolha de temas que salientam os aspectos Iidico e exploratério da vida social. A presenga da figura animal ocupa lugar destacado, sendo freqiientemente representada como se assumisse comportamentos similares aos humanos. Assim como as figuras humanas, certas figuras de veado sdo representadas em ages de danga. Aparecem documentados todos os componentes do entorno: figuras animais, humanas, plantas e artefaros. Os temas tratados sfo a caga de animais de pequeno porte, representagbes sexuais, ritos cerimoniais, dangas lidicas, séries de animais como veados ¢ emas, cenas de caga ritual de animais de grande porte ¢ cenas misticas Uma caracteristica dessa primeira etapa, conhecida como estilo Serra da Capivara, é a eclosio do movimento, do dinamismo e da encenagio esfuziante de alegria e de ludismo. [As preocupases temiticas dessa primeira cultura holocénica eram essencialmente ligadas & vida. Os temas tratados definem os tragos de identificagio de todas as figuras da Tradigao Nordeste. Os principais ritos foram retomados no decorter dos milénios ¢ dos estilos posteriores. A persisténcia dos ritos nao cottesponde uma igual persisténcia do mito, de modo que é muito provavel que as primeiras representac6es rituais correspondessem ao contetido temstico que representavam. Assim, a trilogia rito, imagem e mito mantinha uma relagio estruturada a partir de um sujcito comum. ‘A matéria-prima utilizada cra 0 ocre (6xido de ferro) que a natureza oferecia sob a forma de blocos incrustados no arenito da serra. Aprimoraram-se procedimentos de preparo para obter uma tinta com a plasticidade suficiente para ser utilizada com instrumentos que foram primeiro escolhidos entre os elementos da natureza e depois trabalhados ¢ aprimorados segundo as necessidades récnicas. Esta atividade pictérica que no inicio reve uma fungao individual e Iidica tornou-se um proce- dimento com fungi social Durante 0 primeiro perfodo a regio foi pouco habitada; por volta de 10.500 anos AP apareceram outros povos que possufam caracteristicas culturais especfficas, manifestadas principalmente nas pinturas rupestres. Nada indica que essa coexisténcia tenha gerado conflitos de importancia. A ocupagio de territérios vizinhos por povos exégenos, conhecidos como da Tradigio Pré-Historia da Terre Bravilis Agteste, se mantém durante milénios na regio ¢ ainda depois do desaparecimento dos grupos da Tiadigo Nordeste. Os povos da ‘Tradi¢éo Agreste ndo possufam aprimorada técnica grifica e ignoravam os procedimentos de preparagio das tintas e a técnica de contorno. Faziam suas pinturas nos mesmos sitios que os povos da Tradigio Nordeste. Seus tragos aparecem como intrusdes nos conjuntos srificos pré-existentes, procurando um efeito ético percebido como grandes manchas do corpus gtifico. As figuras sio de tamanhos maiores que as da Tradigéo Nordeste, grosseiramente preenchidas, quase negligenciadas, As modificagées do meio criaram novas condigSes ambicntais, aumentando a populagéo a partir de 9 mil anos AP. O infcio deste periodo corresponde ao aparecimento, dentro da Tradigao Nordeste, de registros gréficos que caracterizam um complexo estlistico de transiggo, conhecido com © nome de Serra Talhada, As modalidades desse registro, muito préximas do estilo Serra da Capivara, as diferentes com referéncia aos temas escolhidos ¢ as técnicas utilizadas, so a manifestaggo de uuma transiggo no interior de uma mesma etnia. O erescimento demogrifico se produziu no seio de um mesmo grupo de origem, que se teria fragmentado, formando novos grupos devido as novas necessidades de adaprasio ao meio. Tratando-se de cacadores-coletores, sew sistema de organiza¢éo social era adaptado as limitagdes do contexto, ¢ 0 niimero reduzido de membros do grupo constitula um componente de resposta cultural da comunidade. O tronco de origem se teria fragmentado, formando gradualmente grupos, de culturas andlogas, mas funcionando de maneira auténoma, A cultura material permaneceu em esséncia a mesma. Os registros graficos experimentaram modificagdes gerando uma diversidade de modalidades de registros, apesar de conservarem as caracteristicas essenciais da ‘Tradigao Nordeste. Sio variagées muito diversificadas que no chegam, entretanto, a caracterizar um novo estilo. Tudo acontece como se esses grupos humanos, origindios de um mesmo tronco cultural, partilhando os mesmos conhecimentos e desenvolvendo as mesmas atividades, procurassem um meio de se diferenciarem pela introdugio de variagées na pritica grifica ‘Trata-se de um longo periodo que testemunha transformagSes gradativas que se produziram nas diferentes comunidades. Pre-Historcia dx Regite do Parque Nacionil Sersa da Capivars Anne-Marie Pessi O crescimento demogrifico nao gerou apenas a necessidade da diferenciagio cultural mas também o aparecimento de motives de atritos prdprios da procura de uma nova adaptagao, de um equillbrio ecol6gico € social. A multiplicagao e diversificagdo dos grupos criou problemas de coa- bitacio no ineeriar de um espaco antes compartilhado por um mimero resrto de pessoas. Surgiram problemas de comportamento ¢ psicossociais. A ocupagéo do territrio e a diferenciagio culcural provocaram rivalidades e inimizades, gerando enfrentamentos, testemunhados pelas pinvuras rupes- tres. O aparecimento do tema da violéncia foi uma caracteristica dessa transigio. A necessidade de auto-afirmagio ¢ de distinggo cultural se traduziu em procedimentos de encenaséo € apresentagao grifica. A valorizagio dos conjuntos grificos foi substituida pela valorizagio das individualidades grificas, das particularidades Essa época corresponde as primeiras migragBes dos povos da ‘Tradigo Nordeste. Existem vestgios grifcos da sua passagem pela Bahia por Pernambuco, ¢ uma importante concentragio na regio do Seridé, no Rio Grande do Norte. Ai, a 1.200 quilémetros, a véo de péssaro, achamos a Tiadigio Nordeste de pinturas, que testemunha uma linha diferente de desenvolvimento cultural A fase final dessa transicao, representada pelo complexo estilistico Serra ‘Lalhada, dew lugar a.um novo estilo: Serra Branca. Os autores pertencem a uma comunidade que logrou se diferenciar do tronco cultural de origem pela adogio de um sistema de apresentacao gréfica diferente. Nele se privilegiaram os componentes ornamentais, a vestimenta € 0s cocares, 0 que gerou uma decoracéo gréfica muito particular que persiste ¢ contrasta com as caractersticas do estilo inicial. Adotaram- se formas de tipo retangular, muito decoradas. Os grupos do estilo Serra Branca escolheram o caréter ornamental como seu trago de identificagio éxnica E posstvel caracterizar a evolugio cultural dos grupos da Tradigo Nordeste de acordo com a histéria da evolugio de sua pintura, Existe primeiro uma modificagio gradativa da valorizagao do grupo em beneficio dos individuos. Constata-se também a passagem de um registro gréfico de natureza lidica a um registro de comunicagio com fungio social. A evolucio grafica no modifica © cardter essencialista dos registros da tradigao, que caracteriza o sistema de comunicagio. O que varia a escolha do que se estima como essencial na encenacio. Pode-se observar uma evolusao remécica: no comeso, muito venue, trata de temas vitais e hidicos, depois se torna mais diversificada ¢ aborda

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