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Os textos aqui reunidos expressam a pre- ANTONIO CARLOS ocupasdo com 0 tratamento dado 4 pro- blemética ambiental nas ciéncias huma- ‘nas. Tal equacionamento ja revela, de imediato, recusa em acatar o paradigma “holistico” no trato da matéria, o qual, na maioria das vezes, em nome de uma viséo integrativa entre os fendmenos noturais & sociais, acaba por gerar um empobreci- ambiente mento significativo na anélise dos proces sos politicos ¢ econémicos. Nao raro, nes- crencias "numanas sa perspectiva, toda a riqueza e complexi- dade davida social é reduzida auma unica ciéncias humanas meio ambiente oEEL $8. 7,00 2.° edigdo Tt Bate velo fodsded £ dea AA HUCITEC Mitt il €DITORA HUCITEC 785527 ANTONIO CARLOS ROBERT MORAES. MEIO AMBIENTE E CIENCIAS HUMANAS SEGUNDA EDIGAO EDITORA HUCITEC Sao Paulo, 1997 © Diteitos autorais, 1994, de Antonio Carlos Robert Moraes. Direitos reservados pela Editora Hucitee Ltda., Rua Gil Eanes, 13 - 04601-0482 Sdo Paulo, Brasil, Telefones:(011)240-9318 ¢ 542.0653. Venda: (O1T)530-4532. Facsimile (011)530-5938, E-mail: huctecomandic.com.br 1SBN85.271,0272-2 Foi feito Deposto Legal Sumério, Apresentagio 9 1. Condicionantes do Planejamento no Brasil: ‘Uma Pontuagio Genética das Dificuldades para a Gestio Ambiental B 2 Interdisciplinaridade € Gestao Ambiental 29 3. Patriménio Natural, Tervitirio ¢ Soberania 35 4 Fundamentos Epistemolégicos para o Estudo do Meio Ambiente 45 5. Meio Ambiente, Sociedade, Estado Universidade 37 6 Bases Epistemolégicas da Questio Ambiental: 0 Método 7 7 Introdugtio da Tematica Ambiental nas Ciencias Sociais 81 1 APRESENTACAO, Os textos reunidos neste livro expressam nossa preacupagio com o tratamento dado & problemtica am- biemtal nas ciéncias humanas. Tal equacionamento ji re- vela, de imediato, nossa recusa em acatar o paradigma “holistica” no trato da matéria, © qual na maioria das vezes, em nome de uma visdo integrativa entre os fend- ‘menos naturais e sociais, acaba por gerar um empobreci- mento significativo na anélise dos processos politicos € econdmicos. Nao raro, nessa perspectiva, toda a riqueza ce complexidade da vida social & reduzida a uma tinica varigvel de estudo denominada de “agio antrépica”. Os rmaleficios desse reducionismo para uma efetiva ¢ eficaz, gestdo do meio ambiente no Pais sao numerosos, indo desde posturas istas e politicamente invidveis no planejamento ambiental até a formulagiio de programas de cunho preservacionista que cansideram © homem como um intruso em certos ecossistemas, Um eixo entre os diferentes textos aqui apresenta- dos reside exatamente na busca de uma perspectiva pr6- pria das ciéncias humanas no teato dessa problemstica, de ‘modo a clarear suas contribuigdes especificas num campo ue necessariamente tem de ser pensado como multidis- ciplinar. A afirmagdo da especificidade dos fenémenos hhumanos e das Formas de sua abordagem foi um processo 9 longo de ultrapassagem dos pressupastos teéricos do po- sitivismo classico, e, a0 nosso ver, deve ser continuamente reiterada para se evitar qualquer possibilidade de retomo de perspectivas naturalizantes no ato dos fendmenos sociais, Nesse senti ambiental como, antes de tudo, um problema tedrico-me- todol6gico. Os textos reunidos nesse volume foram escritos com finalidades distintas ao longo da titima década. Nenhum € inédito, ¢ julgamos interessante deixd-los em suas ver- ‘bes originals pois, assim, atuam como registros de con- Junturas para ajudar na avaliagio do andamento da dis- cussiio ambiental no Brasil. Todos foram polémicos no ccontexto de suas apresentagses, apesar de, aos olhos de hoje, algumas posigdes defendidas parecerem dbvias ou deslocadas ante © avango mesmo da reflexio ambiental no Pais nos siltimos anos, No geral eram textos de dificil acesso, 0 que também animou a presente edigao. Nela, cles estio seqitenciados de forma retrospectiva. Porém, _gostarfamos de apresenté-los numa seqiiéncia evolutiva, © mais antigo, Introducdo da Temética Ambiental nas Ciéncias Humanas, foi redigido para ser um dos do- cumentos de trabalho do Seminério Nacional sobre Uni- versidade ¢ Meio Ambiente, reunido na Universidade de Brasflia em 1986, O seguinte, Bases Epistemoldgicas da Questo Ambiental: 0 Método, foi apresentado numa mesa-redonda no Semindrio Nacional sobre Universidade @ Meio Ambiente, reunido na Universidade Federal do Para em 1987. O texto Sociedade, Estado, Universidade ‘¢ Meio Ambiente foi tedigido para ser 0 relatério da mesa- 10 redonda sobre 0 mesmo tema realizada no Semindrio Na- cional sobre Universidade ¢ Meio Ambiente, reunido na Universidade Federal de Mato Grosso em 1988. 0 texto Fundamentos Epistemolégicos para o Estudo do Meio Ambiente foi apresentado como palestra no Simpdsio Es- tadual sobre Meio Ambiente ¢ Educagio Universitria, realizado pela Secretaria do Meio Ambiente do Estado de Sao Paulo em 1989. O texto Pairiménio Natural, Terri- trio e Soberania foi apresentado numa mesa-redonda do semindrio “Perspectivas da Integragio Latino-America- ra, organizado pelo Parlamento Latino-Americano no Senado Federal em Brasilia no ano de 1991. O texto Interdisciplinaridade e Gesido Ambiental serviu de base para a exposigio realizada no col6quio sobre gestio am- biental, organizado pelo Ibama na Escola Nacional de Administragdo Pablica em Brasilia em 1992. Finalmente, © texto Condicionantes do Planejamento no Brasil: uma Pontuagdo Genéiica das Dificuldades para a Gestio Am- bientad foi apresentado numa mesa-redonda no seminatio “Plancjamento e Gestio das Zonas Costeiras” , organiza- do pelo Programa Nacional de Gerenciamento Costeiro ‘em 1993, Enfim,tratam-se de textos tedricos e ensasticos que podem ser agrupados em dois conjuntos de preocupacbes: tum deles articula reflexdes sobre as bases tesrico-meto- dolégicas para a andlise da problemstica ambiental, outro aborda tépicos atinentes & esfera do planejamento e da gesto do uso do meio ambiente. De um certo tom assis- teinético e descontinuo nao di para escapar numa cole- ‘nea de ensaios. Contudo, se os textos servirem para cstimular uma reflexo mais rigorasa sobre as temas le- vantados, nossas expectativas estardo integralmente atin- idas. ‘Sao Paulo, julho de 1994 > 1 CONDICIONANTES DO PLANEJAMENTO NO BRASIL: UMA PONTUAGAO GENETICA. DAS DIFICULDADES PARA A GESTAO AMBIENTAL EE muito dificil discutir © tema proposto sem re- meter a certas caracteristicas € determinagdes que com- ‘poem a particularidade da formaco brasileira, Daf a ne- cessidade de um resgate histérico que permita entender © quadro no qual tenta operar o planejamento ambiental ‘no Pais hoje. © Brasil teve por bergo uma formagiio colonial, e isso significa que a motivao da conquista de espagos est na génese do Pats. A apropriagio de novos lugares, ‘com suas populagées, riquezas e recursos naturais, era ‘© mével bisico da colonizaedo. Isto imprime uma marca na sociedade gestada na colOnia, uma sociedade que ti- nha na conquista tentitorial um forte elemento de iden- tidade. Assim, uma ética dilapidadora comanda © pro- ceess0 de instalagio do colonizador, a qual se expressa ‘num padiio extensivo (do ponto de vista do espago) intensivo (do ponto de vista dos recursos naturais) de uso do solo. Neste quadro, as populagtes (autéctones ou B transplantadas) sao vistas como apenas um meio de se felirar a riqueza natural. E esta — 0 valor contido na natureze, fas terras americanas — que estimula a agd0 das mettopoles. proceso de independéncia do Brasil — arqué- Lipo de uma modemizagtio conservadora — ndo rompen ccom estas determinagSes da heranga colonial, antes as reciclou num novo ordenamento onde aparece um een- tro interno de comando do movimento colonizador. Co- mando relative, pois persiste a dependéneia externa como elemento estrutural da economia agora nacional Vale lembrar que durante todo o século XIX, e mesmo ainda no presente, hi um horizonte vasto de terras a conquistar no territério brasileiro (basta pensar que a marcha do café avangou sobre terras virgens ainda na década de quarenta do presente século, para nil se falar «do Centro-Oeste ou da, Amazénia). Portanto, a motiva- ‘elo expansionista-colonial tem bases sélidas para se rei- ferar como orientag2o central na estruturago do Pais, Uma idéia-eixo que se vai perpetuar ao longo de nossa histdria & a de construir-o Pais. Tal idéia tem por pressuposto uma aedo colonizadora, isto 6, a ocupagio dos fundos temitoriais no explorados vai ser algada & condigo de projeto nacional bisico, Tal formulagio ser- viu, primeiramente, para aproximar elites tegionais des- ectadas economicamente numa iniciativa politica unitéria, isto €, forneceu-thes um cimento comum que 6 interesses econdmicos imediatos no propiciava, Em segundo lugar, essa idéia em si mesma legitima a exi téncia de um Estado forte e ativo, pois cabers funda- mentalmente a ele a condugdo desse proceso. De ccontrapeso, tal projeto ainda localiza © povo em seu Iv gar subalterno na formagio nacional, posto que ele ¢ af ceoncebido como mero instrumento do processo — rei- (erando, assim, outra determinagdo colonial. Numa pri- reira versio, a idéia de construc 0 Pais € assimilada de levar a “ivilizagto" 20 interior selvagem Fm fungéo do exposto, a formagio do Eitado no Brasil vai estar continvamente marcaa por uma forte orientagao de cunho geopoitico: garantir a soberania ‘integridade dos fundos teritorais sera sempre sua mis- sio bisica, Daf um aparelho de Estado construdo tendo Por referencia 0 dominio do trritrio e noo bem estar do povo, Isso se iustra numa méxia que ata agfo estatal a0 longo de nossa histria:tutela do povo dade do espago. Tal méxima orienta a ago do governo central desde a cepressio aos cha- mados ""movimentos nativstas” do império (com 0 uso de tropas mercendrias) até a doutrina de sezuranga na cional do regime militar (eom a tese do “inimigo inter 10"). Cae lembrar que este Estado € um aparelho po- Ito dos proprietarios deters, um Estado pattimon al este Estado correspond uma sociedade de 1 sida hierarquia, em que a produgdo repousa sobre rela- des eseravstas de trabalho, E uma soviedade com es cravos serd sempre uma sociedade di vigilincia e da violEncia. Mais ainda, onde vigora o escravismo os pre- ceitos liberais da cidadania e da soberania popular nao conseguem enraizar-se, gerando formas Je ientidade negativas (por diferenciagio c exclusio). Em vez da iguaklade perante ale, a diferenga vem ao centro como criti de estruturagao sceial, Ito & a vigencia de re- lagoes eseravistas acaba mareando a etruturagzo de toda 8 sociabilidade reinane, mesmo a relagGes entre os no eseravos. Nesse universo desenvolve'se compadin como relagio bisica, institu de claro pedi patrimo- nial e diferenciador. O mandonismo local ea formagao das redes cientlicas tem seu fundamento no favor e na ago. pessoalizada, campos interditados aos eseravos, logo diferenciadores da condigao restita de cidadao. Is Ante esse Estado e essa sociedade, desenvolve-se no Pais uma cultura politica na qual o poder asoci-se 2 propria fia ena qual o imiteente o paca 0 pivado no fica nitido, De certo modo, toda a vida social fui para a drbitaestatal, © qual se comport no omo wm mediador dos confitos de interes exstentes na socicdade, mas como instrumenta direto de certas partes em disputa na arena politica Data tonearete- Fada dos diferentes governos de trata « cosa pablica como negéeio privad, Uma questo emerge continuanente como proble- initia dentro do processo aqui analisad:trtase da dis tibuigao geogrtic do poder dentro de um pas tio ex- temo, Tal questio dé margem a uma ensto fedratva aque atravesta a histria basic. A cada restruturag do aparelho de Estado se reformula um pacto federatvo, ue regula 0 arranjo da divisdo do poder enue os diferen- tes lugares ¢ a diferentes instincias governativas. Nas ‘vias consituintes, por exemplo esta questo sempre emerge como centrale polemica —scjn no rico debate entre Campos Sales e Roi Barbosa em 1894 (quando este imo dfende o Estado unitério como forma de combatet 0 “egofsmo provincia” da proposa federada do prime 10) saa em 1946 na discussio qu contrape os defen: sores da fedealizato versus a municipalizagSo do ensino bésico (esta dltima proposta capitaneada pelo lobby pri- vatista das escola catlicas). No gel, o Pats conheve tum movimento modal ue entremeia momentos de maior autonomin ou maior centralizagao do poder. A cada um conresponds 0 extabelecimento de um aranjo de telagtes entie as escalas de governo. ‘Antes de avangar na argumentagSo,cabe fazer um balango das carctersticaslstadas como esseneias na formagio brasileira, Sto elas: Conguista Tetra, Pax drio Dilapidadr ds Recursos, Dependéncia Econdmica 16 Externa, Concepetio Estatal Geo nial, Sociedade Excludente, Ti tals earacterisicas que, apds a década de trina, inicia se 0 processo de consttuigSo do Brasil contemporineo, & da sociedade em que vivemos hoje. Essa historia mais recente apresenta novas verses da tradicional concepedo da necessidade de construr 0 Pais, Agora 0 eixo bésico dos argumentos vai sera mo- dernizagdo. Erigir 0 Brasil moderno vai ser a meta de todos os governos a panir de Vargas. Na verdade, uma das faces mais evidentes da dependéneia estrutural ex- tema reside exatamente nessa necessidade de ajustes pe- riddicos da economia brasileira em Fungo das transfor magdes vivenciadas no afvel dos centros mundiais, Hi essa necessidade de compatibilizagio reativa do Pas, ‘que se traduz em sucessivas vagas de inovagGes que atin- gem 0 Brasil de tempos em tempos, conforme o stmo imposto pelo cendtio internacional. Ocome que, apés a década de tint, internacio- nalmente, conhece-se uma aceleragio da fronteira de ‘novagbes, impondo um ritmo sem paralelo no passa, AA velocidade das mudangas, principalmente no que im- porta 8 tecnologia, é creseente ademais de cumulatva Pode-se dizer que nunca a historia havia comido tio ré- pido, a modemizagéo (entendida enquanto 0 processo de assimilagio progressiva da técnica na vida social, inaugurado com a Revolugio Industrial) nunea havia an dado tio depressa. Além disso, nese movimento a mo- demidade (entendida como a experiéncia de viver nese ‘mundo em constants mutagio) se generaliza do ponto de vista geogrfico, isto 6, mundializa-se no bojo de um também crescente e velaz processo de globaizagio da economia. Enfim, revalorizam-se as peiferias no reor- denamento da divistio internacional do trabalho no rad) puerta ' Se 0 modemismo (visto como expressdo te6rica da vivéneia da modernidade) flui no centro de um mo: vvimento articulado e “espontineo” da sociedade, na pe- riferia ele & antes de tudo 0 desenho de um projet. Na periferia a modernizagiio € induzida. E seu principal Indutor € © Estado, posto como agente de difusio de inovagoes em todos os paises do chamado capitatismo tardio. E 0 instrumento estatal bésico para realizar tl fungio serd o planejamento, entendido como a pré-idea- io da intervengio deliberada sobre os diferentes luge res, Nesse sentido, © plano representa fundamentalmente a proposta de distibuigio das inovagdes no espaco na- ional No Brasil 0 aparelhamento do Estado para levar ‘cabo uma proposta de modemnizagio planejada inicia se no primeiro governo Vargas, mais especificamente durante a ditadura do Estado Novo. Nesse periodo so crindos varios érgios piiblicos na esfera federal interes sando a intervengiio sobre o territ6rio (entre estes des tacase a fundagio do Instituto Brasileiro de Geografia ¢ Estatistca, com a fungo perspicua de recolher infor mages para o planejamento estatal), Tal processo se da ‘em meio a uma profunda concentragao do poser no nivel «da Unio, que por sua vez age como gestora de poltticas territoriais nas diferentes escalas. Sao exemplos disso 0 programa “Marcha para o Oeste” de incentivo a coto- nizagdo ¢ o estabelecimento da primeira regionalizaca0 oficial do Brasil (efetuada pelo IBGE, tendo por eritério egites fisiogrificas). Enfim, hi um desejo explicito iado de gerar instrumentos de intervengio plane: Jjada, porém ndo se pode ainda falar de um planejamento governamental propriamente dito, isto ¢, envolvendo bes integradas em diferentes setores. CO primeiro esbago de um plano intersetorial no Pats vai aparecer no segundo governo Vargas, no inicio da Is década de cingiienta, Trata-se do Plano Salt que propoe ‘medidas nas dreas da savide, alimentagdo e transportes. A ele se segue, no governo seguinte, a proposigo do Plano de Metas que orientard a agao do Estado no periodo JK. Apesar da profunda influéncia que ta plano exerceu sobre a cfctiva modernizagio do Pals, ele no pode todavia ser cconsiderado ainda um exemplo pleno de planejamento integrado. Na verdade, tratava-se de um conjunto de me- didas de ordem econdmica interessando basicamente a dotacdo de infraestruturas requeridas pelo erescimento industrial. Destacam-se af, entretanto, um arrojado plano vidrio e 0 projeto da construcao da nova capital. Ainda no que toca 2 intervengio sobre o terit6rio, eabe salientar a ac3o do govern JK na implantagio de politicas de fomento regional. Aqui a iniciativa de maior porte se ‘manifesta na criagdo da Superintendéncia de Descnvolvi- mento do Nordeste, regio definida pelo governo central como o grande problema do Brasil © primeiro exemplo de um planejamento global « imtegrado no Pais vai ocorrer em 1962, no governo Goulatt, com a elaboragio do Plano Trienal que esta: blecia agdes inter-relacionadas nos diferentes setores da administragao pablica. Para articular tais ages é eriado © Ministério do Planejamento, que teve como primeiro titular 0 economista Celso Furtado. Tal plano fundamen: ta-se numa orientagZo do pensamento cepalino, que tinha Por base o estimulo a formagia de um mercado interno dindmico e efetivamente nacionalizado, o que requeria reformas de base na estruturagao da economia brasileira golpe militar de 1964 enterra tais pretenses, inaugu rando uma nova fase de centralizagio do poder na esfera federal e no Executivo. Durante 0 perfodo da ditadura militar, em fungao mesmo da fndole modernizante e do cariter centralizador do governo, foi desenvolvida uma série de ages visando 9 ‘um planejamento globalizante e integrado. Ja em 1964 proposto 0 Plano de Agdo Econdmica do Governo (PAEG), quatro anos depois & a vez do Plano Econdmnico de Desenvolvimento (PED), porém a iniciativa mais completa nesse sentido vem com 0 Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) que conheceu trés verses, a primeira publicada em 1970. Ali, apoiada no grande afluxo de capital internacional, so concebidas estraté- sas e metas que efetivamente expressavam uma articu- lagio intersetorial. Os PNDs contemplavam tanto inicia- tivas de ordenamento tertitorial quanto de dotagio de infra-estruturas ¢ mesmo de formagio de recursos hu- ‘manog/Para sua execusio € também realizada uma tes trutufagio do préprio aparelho de Estado no nivel fede- ral, com a eriagdo de érgios & programas interessando ‘reas postas como priortérias e/ou estratégicas. Obvit mente todo esse esforgo exprime 0 carster autoritétio do regime, fundamentando-se num estilo de planejamento autocritico © hipercentralizado. Um tipo de articulagio presente nesses. planos pode ser exemplificado com a relago entre 0 projeto de desenvolvimento agricola buscado e 0 incentivo e in- vyestimento em determinados setores industriais. A qui- rmificagio da agricultura se faz assim acompanhar da ins- talago de varios pélos petroquimicos no Pais, com a alocugiio destes sendo também pensada como instrumen- to de desenvolvimento regional. Vérias outras articula- {ges entre setores © poliicas poderiam ser mostradas, Contudo, mais importante é destacar 0 caréter anti-social presente no estabelecimento das prioridades e metas ¢ na definigdo dos scus meios de implementagdo. Muitas das determinag6es histérieas apontadas no inicio do tex- to vio aflorar com clareza nesse planejamento tecnocri- tico: a idéia de conquista, por exemplo, exercita-se agora tendo por alvo a Amazénia, a concepgo geopolitica 20 aparece no incentivo a indistria bélica, a tutela do povo na montagem do aparelho repressivo, a cidadania excli- dente nos niveis de concentragio de renda aleangados, a tensdo federativa € tratada através da expansBo dos 6r- .fios ¢ programas de fomento regional, Enfim, mais una vex 0 Pais é pensado como um espago a se ganhar e ‘do como uma sociedade, A diminuigto significativa do afluxo de recursos externos, ocasionada por um reardenamento da econo- ‘mia internacional que tem por estopim a crise do petré- leo, aliada a um mau uso do capital estaral em mega- projetos de finalidades bastante equivocadas (Programa Nuclear, Ferrovia do Ago etc.) leva a um malogro das metas buscadas ¢ faz. do IIT PND uma mera pega de re- Aérica. De todo modo, © Brasil que ingressa nos anos oitenta possui um perfil bastante diferente no que toca a modernizagio. Para ficar apenas num indicador, a taxa de urbanizagio inverte a situagio da distibuigio popu lacional dos anos cingiienta, com a populagao urbana ul trapassando bastante a rural. Vale destacar que a mo- dernizac2o operada acentuou as dispatidades regionais © a concentragio de renda, ao mesmo tempo que con- solidou uma economia efetivamente articulada nacional: mente. A dotacio de infra-estruturas e, prineipalmente, a alocacdo de indkistrias ocorreu de forma altamente se- letiva do ponto de vista espacial, do mesmo modo que 08 beneticios de todo esse processo também foram al tamente seletivos do ponto de vista social. Enfim, o Pais se tomou mais complexo e problemético. No que tange ao planejamento, a crise do regime militar se faz. acompanhar de uma pulverizago de ages © programas, os quais vao espalhar-se pelos diferentes Srgios da administragao federal (cada um gerindo suas estratégias € metas). A perspectiva de integragio e ar- ticulagao se perde totalmente, fato também motivado 21 por uma errdnea identificagio de tal postura com uma prética autoritaria, Assim, na chamada “década perdi da’ 0 planejamento no nivel da Unido vai conhecer uma profunda setorizacdo, ilustrada no progressivo desaps: recimento dos pepries organismos de articulagSo inter setorial, Paralelamente, a ago govemamental passa a centrar seu horizonte maior de intervengzo na clabora- gio de planos econdmicas (estrito senso). Enfim, ao lon- ‘20 dos anos oitenta, observa-se a gradativa substituigao da ética global de inter-relacionamento das politicas pi- erais por uma orientago mais desconectada que prioriza agdes restritas ao campo econdmico, Esse movimento, do ponto de vista institucional, fica claro na progressiva perda de espago dos érgtos de plane- jamento para o Ministério da Fazenda e o Banco Central {estes os organismos gestores da nova orientagéo). No nivel de cada setor da administragdo federal, esta tOnica se repete com a multiplicagao de pr ‘cada vex mais especificos, autnomos e desarticulados centre si Este quadro se completa no limiar dos anos no- venta com a desmontagem dos aparatos estatais de pla- rnejamento remanescentes, durante 0 governo Collor (a comecar do préprio ministério). Isso significow um de~ saparelhamento do Estado para intervir de forma racio- ral sobre a realidade do Pais, 0 que equivale a volta ‘uma situagaio semelhante & anterior A era Vargas (quan ddo essa realidade era bem menos complexa). Além da cextingdo, 0 sucateamento e esvaziamento de tais érgios fj realizado de modo profundo, e aqui a histéria recente do IBGE ou da Sudene serviria bem de exemplificagio. Enfim, hoje ngo se tem sequer uma visibilidade global dos programas existentes na area federal, quanto mais fas condigées de planejar as politicas pablicas de forma integrada, 2 interessante assinalar que a formagio do aparato estatal de politica ambiental no Brasil vem na contea- mao desta tendéncia geral. Sua progressiva estruturagao no nivel da Unido e sua crescente expansio contrasta forte com outros setores do govemo federal, em acele- rado processo de enxugamento e desestruturacdo. E, vale salientar, de uma fadole inicialmente parcial e espectfica, @ dea ambiental conhece ao longo da década de oitenta ‘uma boa ampliagaio de seu campo de atzibuigoes e in- teresses. De uma visio essencialmente preservacionista passa a uma perspectiva bem mais ampla de intervengé ue até ilustra bem o movimento de maturagio teérica do préprio pensamento ambientalista no Pais (que de ‘uma preocupago ecologista evolui para conceitos como qualidade de vida e desenvolvimento sustentado). Enfim, © setor ambiental cresce institucionalmente e em tetmos de competéncia de atuagiio, agreganda érgios afins e $0- mando atribuig6es (Fato bem ilustrado na prépria eriago do bara), Entretanto, numa carae escrito acompanha a tendéncia geral. A rea ambiental {oi montada como mais um setor do aparelho govera: mental, isto é, foi estruturada como gestora de um eon- junto especifico e proprio de politicas, Tal fato é em muito Tesponsivel pela performance ainda insatisfatéria desse “setor”. Na verdadle, por determinagSes intrinsecas a seu ‘campo de atuaedo, um bom planejamento e execugto de politicas ambientais requer dilogos vatiados e una art- culagio de diversos interlocutores na area publica e pri- vada, Assim, o planejamento ambiental est condenado & integragdo setorial e entre escalas de governo, Nesse sen- {ido, 08 drgdos ambientais no podem ser vistes como ‘mais um setor da administragio mas como um elemento de atticulagdo e coordenagio intersetorial, cujas agées perpassam diferentes politicas piblicas. {stica o movimento acima a © ambiental deve ser, assim, coneebido como um vetor que necesita internaliza-se nos diversos progta- mas e agGes estatais dando-Ihes também um elemento ‘de aniculagio. Portanto, a rea ambiental pode ser uma dlavanca da retomada de um planejamento global © ar tieulado no Pais, com a vantagem de partir de antemio com sensibilidade e conhecimento acerca da vulnerabi- Tidade dos diferentes lugares do teritério nacional. Re- tomar-se-ia 0 planejamento intersetoral, e agora com 0 votor ambiental totalmente interalizado na elaboragio dos planos. F bvio que tal proposta teria (eter) adverstios « um drduo processo de viabilizagéo politica. Todavi, Sua justeza para uma efetiva busca de um desenvol mento sustentado € inconteste, assim como sua adequ Gao para uma real gestao ambiental do terstéio bras leiro. F impossivel fazer planejamento ambiental scm uma ariculago intersetorial no nivel de govero i clalmente, nfo se pode pensar o manejo de uma deter mninada Sea sem levar em conta 0s planos € programas Setorais incidents sobre ela. © choque nos uses pro- jetados obstaculiza efou dificulta a implantagio de cada dum dos programas, e, por isso, « compatbilizagao de ges que envolvam propésitos locacionais deve ser buseada a qualquer custo Nesse sentido, um zoneamento ecoldgico-econ6. tnico deve ser visto como um plano de desenvolvimento regional e no como uma agao exclusiva do “setor” a= biental da administraga0 pablica. Um plano de gestio deve serum elemento eatalisador e ordenador das vias politieas e programas existentes para a érea por ele Ebrangida, Una agia de monitoramento 6 tem sentido fe estiver continuamente fornecendo informasSes para © conjunto de érpaos que atuam no espago rasteado. Enfim, os recortes terttoriss fornecem um bor mote 24 para se pensar a implementagdo da politica ambiental, {que na verdade nada mais & do que a internalizagio do vetor ambiental nas vérias politicas territorais. Além da necesséria articulagao intersetorial, uma efetiva gestio ambiental também est condenada a mo- delos institucionais descentralizados. E impossivel g renciar 0 espago sem interfaces s6lidas com a sociedade civil e 0s governos locais. Isto remete a que se tenha uma estratégia de municipalizagdo em qualquer progra- ‘ma da rea, tendo sempre em mente a diversidade dos quadros municipais existente no Pais, Assim, no apenas 2 integragio horizontal deve ser buscada nas virias es- alas, como se tem como fundamental o estabelecimento «de mecanismos propiciadores de uma integrago vertical visando o trabalho conjunto entre Unido, estados © mu- nicipios. Em ambos 0s casos a criagio ou melhor uti zagdo de féruns institucionais de interlocugao aparece ‘como uma iniciativa bésica para 0 bom éxito do plane jamento ambiental Em suma, romper o isolamento da rea ambiental « estabelecer didlogos visando futuras parcerias parece set a principal empresa a ser perseguida no atual mo: ‘mento (em que se aproxima uma revisio constiucional © um ano de eleigdes majoritérias). Uma lula politica de monta & condigtio para a objetivagao das idgias aqui expostas. Cabe buscar aliados e parceiros, construir es- de discussio. E também mudar a dos 6rgios ambientais estatais brasileitos, que deverio Set mais propositores, gerando solugdes viaveis © am- biemtalmente mais adequadas em vez de permanecer com iniciativas restrtivas © no campo do impedimento. Afi nal, a mudanga da matriz energética ou do modo de pro- mtr” € “externa” na eolagso da economia brasileira, ver aio Manvel Cardoso de Mell, O cupialiomo tard, BA. Bra lense, Sio Paso, 1982. 1 Ver Antonio Carlos Robert Mores, Lot cuits espciales de a roduccin y los eirelos de cooperacion en el espacio, porter Pte estat del expec soci econaico 2, Buenos Ares, 1989 » Nr: Luciano Coun, Madang reontes a vst iernacional do tbalho, Contes 2, Ed. Hvotee, Sao Paulo, 1977 © Em outs tents tratamos dictate este topic, ver: “Ios da tenia aventl nae CiBnlas Soo, 1 Seminario Nacional ‘Sobre Universidade Meio Ambiente, Bes, 1986, WE aol remetenas leifor para vm veo gue inode tem es problematic: Wandeley Messits da Costa, O Esta eas plticas ferionais na Bra. Ea, Contexto, Si0 Paulo, 1988 1 Wer: Antonio Calas Robert Morac: (or) Kaze, Bd. Ati, Paulo (988 1 Prnepio que inelizmente nfo es comemplado no programa Nosst Natureza”, elaborag polo govero Sarey. que centaiza ss desisbes no ser na ester do Poder Executive, 4B ae FUNDAMENTOS EPISTEMOLOGICOS PARA O ESTUDO DO MEIO AMBIENTE Nam primeiro momento, os estudos sobre a temé- tica ambiental emergiram num plano bastante téenico © 6 a0s poucos se foi afirmando a necessidade de aprofun- dar a reflexio metodol6gica e epistemoldgica. As carén- cias sio muitas e seria impossivel nesta mesa-redonda sequer enuncis-las de forma exaustiva. Assim, me limita rei a comentar alguns aspectos do tema com base funda- ientalmente nos debates que tenho acompanhado nos, semindrios nacionais sobre universidade ¢ meio ambiente, © primeiro ponto é exatamente 0 resgate da cen- tralidade e da importinia da epistemologia no trabalho cientfico. © avango em qualquer érea do conhecimento demanda um acompanhamento epistemolégico constan- te, Alguns pensam, erroneamente, que ela atuatia apenas nna montagem de uma investigagio e depois sairia de ‘campo. Todavia, nfio € isso que ocorte, pois, a todo mo- mento, 0 trabalho ciemtifico requer uma atuagio de cu- rho epistemol6gico, nio apenas no momento inicial de circunserever o campo de pesquisa, de desenhar um ob- jetivo te6rico para a investigagio, de definit uma meta a que se quer chegar com aquela labuta empirica, Tal 45 tarefa inicial 6, sem divida, muito importante no trato cde uma questo nova, como a problematica ambiental, arredia aos paradigmas tradicionais. Mas o trabalho epis- temol6gico vai além, E através dele que estamos con- tinuamente checando os enunciados gerados num campo de conkecimento, aferindo os instrumentos analiticos gue temos ¢ avaliando os resultados obtidos. Enfim, € 1 epistemologia que permite agregar 0s novos conhe rmentos que 0 desenvolvimento da pesquisa vai trazendo, Isto & quem faz 0 balango critico das novas téoni dos novos paradigmas, das novas teorias, & exatamente esse acompanhamento epistemol Bem, se isso é vilido para qualquer dominio da ciéncia, adquite mais destague quando se aborda uma firea nova que, como ja dissemos, ndo se encaixa tran gililamente nos paradigmas tradicionais; uma érea en que, do ponto de vista tedrico, ainda estamos tateando, Assim, no trato da questo ambiental, as tarefas episte- ‘ndlogicas possuem importineia impar. Poderfamos is tar tapidamente algumas dessas aplicagdes. Por exemplo, no deslindamento ontoldgico desse campo de investi lo, colocando a pergunta: de que ser estamos falando? E esta pergunta no esta respondida, pois geralmente partimos de pesquisas disciplindrias © chegamos a um tuniverso interdisciplinar difuso, cuja delimitagio onto- ogica no esti feita. Isto 6, corecemos de uma identi- ficagio clara e precisa de nosso universo de andlise: quer dizer, uma localizagio filos6fiea dos fendmenos € rel ‘goes que buscamos na investigagiio empitica Este € um primeiro front do trabalho epistemoldgico na rea Uma segunda tarefa seria a reflexdo diretamente metodolégica, Safmos do questionamento sobre © que trabalhamos ¢ passamos para a abordagem do como tra balhamos, Este ponto tratamos em maior detalhe num twabalho de 1987 ("Bases Epistemoldgicas da Que 46 Ambiental: © Método”, texto n° 6 deste livro), que bus: cou mostrar as caréncias existentes nesse plano. Sabe- ‘mos que ha uma grande diversidade de métodos nas ciéncias contemporaneas, cada um trazendo formas prs prins de abordar a realidade, com visdes distintas acerca da natureza, acerea da Sociedade e acerca da relagio so- ciedade-natureza, Nik urge entender as possibiidades de cada um no equa- cionamento da temstica ambiental. Aqui se localiza este segundo front: na pesquisa metodol6gica, Um terceito front fica evidente quando se obser- vam os férans coletivos de discusso dos pesquisadores na direa de meio ambiente, Af vive-se um clima de babel ‘onde cada um fala uma lingua diferente. Isto é, partindo de fteas de formagio disciplindrias dispares, cada um traz uma bagagem conceitual especitica e, muitas vezes, ‘do comunicante, Néo hii em nosso campo uma padro- nizago mfoima de linguagem; aos mesmnos termos se atribuem conteiidos deferentes. © termo ecologia, por exemplo — e ninguém vai negara sua centralidade para a discussao em foco—, aparece em alguns contextos discursivos como um objeto; porém, em outros contex- tos aparece como um métoclo; em outros ainda como cigncia, e mesmo em alguns, como questo politica. Te- ‘mos ento um termo que varia bastante, dependendo do contexto discursive de quem 0 emprega, © exemplo basta para ilustrar as caréncins neste terceiro front © a necessidade dle buscar este aclareamento conceitual mi- nimo, esta padronizagio elementar de linguagem. Esta breve exposigio basta para mostrar que hé muito que fazer em termos de uma reflexdo epistemo- logica a respeito da questao ambiental e seu tratamento analitico. Contudo, a epistemologia ndo deve ser con: cebida como uma espécie de inquisigio para os pesqui- sadores da rea que, em seu aff de sistematizagio, em hi apenas um método na cigneia, 47 sua finsia normativa, faria um index do certo ¢ do errado neste amplo campo de investigagao, Isso seria impos vel, pois if no plano do debate filosdfico existem po- lémicas acerea da definigio da prépria epistemologia, Assim, cla ndo poderia rigidamente definir um caminho ‘inico, uma vez que conhece diferentes significados em sua propria afirmagao. Apenas para ilustrar essa variedade de concep- ‘des, podem-se apontar alguns entendimentos cléssicos do trabalho epistemol6gico. Para alguns autores, como Karnap ou Hempel, a epistemologia se aproxima da 16 ‘gica e da gnosiologia (ou teoria do conhecimento); para outros, como Goldmann ou Kuhn, ela se aproxima da sociologia do conhecimento e da histéria da ciéncia. A idéia mesma de epistemé vai variar bastante, ora enten- dida como padrio I6gico de exposigde — isto 6, como um ordenamento dos enunciados no texto de uma to: rizagio, uma estrutura do discurso cientifico. Em outros autores, a epistemé quase se iguala a0 conceito webe riano de éthos, o espirito de uma época, isto é, a forma ‘mental vigente num dado perfodo histérico. Nesta visio, no se trata da estrutura do discurso, mas da estrutura mesma da mentalidade imperante. Observam-se assim cduas formas antipodas de © problema: uma visio égica (internalista dos textos) © uma visio histérica (atenta aos contextos de formulaao). No geral, todos os autores acatam a idéia de que ‘a epistemologia trata da natureza do conhecimento cien- tifico; este é 0 tema da epistemologia. Mas, quando avangamos um pouco na visualizagso da forma de operar este campo, os caminhos se bifurcam de imediato entre as concepgtes internalistas (em que o trabalho deve cir- cunscrever-se & légica interna do texto) e as contextua. listas (que tomam o texto como um resultado explicivel pela realidade extema que 0 gerou). Existem ainda pro 48 Postas que, numa graduaco bastante extensa, buscam vular as duas concepdes existentes, cada uma en- volvendo diferentes dimensies do trabalho cientitico. Por isso que & mais adequado falar em bases ow funda- rmentos epistemoldgicos — sempre no plural — de uma cigncia ou campo do conhecimento cientifico, pois im- plica diferenciadas dimensSes de trabalho. A ampla gama de tarefas abrigaria desde a avaliagao da coeréncia de um dado diseurso até a aferigo de sua correspon- déncia com processos identificaveis em nivel empiric. Devemos, assim, problematizar desde os enunciados até as priticas ciemtificas; o que abre um vastfssimo campo para abordagens epistemoldgicas. ‘Uma corrente interessante de reflexdo a respeito do trabalho da cigneia origina-se nos autores ageupados na chamada “Escola de Frankfurt”. Adorno, Horkheimer, Marcuse e, no presente, Habermas, desenvolvem uma perspectiva — por eles denominada de “teoria critica” — que, trabalhando 0 plano do diseurso e o plano do con- texto, coloca a epistemologia como uma espécie de mau- vaise conscience do trabalho ciemifico. A este ultimo autor devemos textos densos como “Conhecimento ¢ In- teresse” e “Técnica e Cigneia Enquanto Wolo que o trabalho epistemoligico abrangeria toda uma d menso de questionamento éticos, pastos como centrais na avaliagdo das eigneias. Observamos que falar das bases epistemoligic do trabalho cientfico na dea da pesquisa ambiental in plica a armagao de uma ampla e complexa tela de re- lagdes cujo deslindamemto garante o controle racional — © moral — da peitica cientifiea. A epistemologia como instrumento que possibilita ao pesquisador maior con- ttole sobre os fundamentos, a metodologia, as conceitos 0s resultados de seu trabalho, Trata-se, assim, de mal tiplas dimensies e tarefas que s6 a custa de um grande 49 reducionismo poderiam ser cireunscritas a um padio \inico de procedimento, Em trabalhios anteriores tivemos 4 ocasido de tratar alguns aspectos desta ampla proble~ adtica (além do texto citado, também em “Introdugio dda Tematica Ambiental as CiGneias Sociais”. texto n.° 7 deste livro) ¢ seria interessante resgatar algumas po- sigdes af defendidas (obviamente sem refazer todos os raciocinios © argumentos apresentados, que se encon- tram nos textos & disposigio) ‘Um primeiro juizo diz. respeito & defesa da séria anterioridade do desenvolvimento disciplinar da pesquisa ambiental, ante o trabalho interdiseiplinar. Isto 6, sem uma base disciplinar, a interdisciplinaridade vira ‘uma palavra vazia, € € somente a partir dos resultados obtidos na pesquisa disciplinar que o trabalho interdis- ciplinar pode avangar. Um cabedal (ou vérios) acumu- Jado por diferentes disciplinas constitui a matéria-ptima para uma fértil empresa inter ou transdisciplinar, Por isso, num primeiro momento, a discussdo sobre a ques tio ambiental devers trafegar nos limites de marcos dis ciplinares. Ha uma anterioridade que nao anula as ter: tativas imediatas do trabalho interdisciplinar, mas que, do ponto de vista I6gico, coloea a forma disciplinares como prévias: o interdisciplinar alimenta do-se do disciplinar, Este & um assunto interessante para 6 debate que faremos a seguir Um segundo ju(zo relere-se 2 ni ridade também da reflexio metodolégica ante a inves tigagio empirica. E aqui um Iembrete: discutimos muito ‘em nossos féruns de debate as barreiras disciplinares e ‘questionamos muito pouco as barteiras metodo! Sendo que a falta de dislogo entre diferentes métodos pode ser um empecilho mais forte que a divisto disci plinéria, Aqui, o caminho est na perieita compreensio dos. pressupostos contidos nos diferentes métodos, por ea pesquisa cessria_anterio- 50 cexemplo no significado atribuido as categorias essen ciais para o tratamento da temstica ambiental como na- tureza ou relagio sociedade-nauureza. Assim, urge pes quisar, questionar e entender os préprios métodos antes da aplicagio cega de um instrumental cujos fundamen: tas se desconhecem Um terceito jufzo, retomando algo que ja coloe: mos anteriormente, assume a preméncia de uma padro- nizagio conceitual minima, que propicie 0 patamar de uma Tinguagem comum. Esta & a base para qualquer pos: sibilidade de comunicagdo interdisciplinar. “Concreto” para um filésofo, & um nivel de apreensao do real; para tum engenheito, traa-se de uma massa para edificagoes. Meio”, para um ge6grafo ou um bi6logo, é um habia para um economista, refere-se a um instrumento ou fator (le produgio, de circulagio etc.). Os exemplos poderiam set mulliplicados, mostrando que a questo da lingus- gem mio & secundéria, Uma agao comum entre diferentes reas, ciéneias e pesquisas, pede, como patamar elemen: tar, uma relago comunicativa (Os tr@s juzos que emitimos envolvem investiga cgbes de ordem epistemol6gica no rastreamento dos mé- Jodos, no clareamenso dos conceitos, na desmontagem das teorias, na problematizacdo de furrdamentos filo ficos e oulras. A essas tarefas mais internas (em certo sentido mais metodol starfamos de acrescentar uma nova — outta dimensio das bases epistemol6gicas dda questi ambiental. Trata-se da problematizagio de ccunho Stico, a qual colocamos como dimensdo limite do campo epistemoligico — 0 questionamento moral do trabalho cientifico (no semido da “teoria critica”), AA importineia dessa dimensio se impie pela con: juntura atual vivenciada pelas universidades no trato da tematica ambiental. © advento da politica ambiental es: latal e, notadamente, a obrigatoriedade da elaboragio sl dos Rimas para os grandes projetos, acelerou © deser volveu pesquisa ambiental nas universidades brasilet- ras, A novidade ¢ a velocidade desse processo levaram A criagiio de ndcleas, programas e centros, com modelos de instalagio muito diferenciados. O debate nos encon- tros sobre universidade e meio ambiente mostra que, por exemplo, os modos e 0 papéis pelos quais pesquisa universitéria se relaciona com os Rimas si muito he- terogéneas. Existem programas que se propéem a fazer os Rimas; existem propostas que visam julgé-los; exis tem miicleos que néio desejam nenhuma vinculagio; ha universidades que se proptem a trabalhar nas audi pablicas: ha outras que buscam 0 contato com movimen: tos ambientalistas e comunidades; outras tém os érgdos de Estado como interlocutores privilegiados. Enfim, 0 que chamamos de dimensio moral implica a diseussio dessas opgies, num ponto de vista social Cabe novamente salientar que a problematizaca0 desse campo ético ndo significa, de modo nenhum, um julgamento ideol6gico de posigdes ou instituigdes com vista a normatizar um cédigo de condutas, ou algo assim. elo contrério: esse questionamento estimula a reflextio de nivel sobre os desdobramentos sociais da pesquisa cientifica tirando essa discussio do patamar diretamente politico. O sentido & do aprimoramento da pesquisa do autoconhecimento do pesquisador, o controle racional no apenas de seu modus operandi, mas, também, dos resultados sociais de sua atividade. A discussio sobre a pritica cientifiea passa assim a ser posta num plano finado, onde temos a possibilidade de afctigdes I6gicas das argumentagbes ¢ de encaminhamento objetivo das polémicas, sem o subjetivismo do debate imediatamente ideolégico, marcado pela falta de pardmetros e pelo in pressionismo das argumentagdes. Como uma provocagao para o debate, gostariamos 52 de apontar trés posturas — e o plano ético é basicamente uma discussio sobre posturas, isto é, ages orientadas ppor valores e prineipios — que nos parecem presentes ‘com certa forga na comunidade cientifica gue se dedica a problemética ambiental, © primeiro tema é 0 natwralismo, ou a postuta fi- losofica naturalista perante 0 mundo, perante a histiria, perante a relagiio homem-natureza, que toma a proble- mdtica ambiental numa perspectiva que perde totalmente a sua dimensio social. Tratam-se daqueles diseursos que ‘véem 0 homem apenas como fator de alteragao do equi IMprio de um meio; daquelas andlises que ndo falam de sociedade mas apenas da “ago antrépica’, uma varidvel ‘a mais num conjunto de fatotes basicamente naturais; a relagdo homem-natureza, assim, sendo concebida sem a mediagdo das relagées sociais. A postura naturalista é uma revivéncia que a temética ambiental uaz para as cigncias humanas contemporiineas, pois havia em grande parte sido enterrada — a crise do positivismo clissico nos varios campos de c hecimento. Na antropologia, a erica das teses racistas| levou & separagio entre a Antropologia fisica e a cule tural. Na Geografia, a critica ao determinismo natural Jevou a uma progressiva desnaturalizactio de seu objet. Enfim, todas as cigneias humanas vivenciaram esse pro- cesso de afirmagio de especificidade e qualidade pré- prias do campo social. E hoje, por meio da questo am- biental, notamos certa revivencia de 6ticas naturalist ‘em nome de uma visio holfstica desta temnética. Bis um bom tema para reflexio, ‘Uma segunda postura, presente também amitide nas Pesquisas ambieniais, & 0 fecnicismo. Se 0 naturalismo perde a dimensdo social da questo ambiental, oteenicis- mo dilui as implicagGes politicas de seu manejo — como se as “solugdes técnicas” nao envolvessem decisoes po- deste século — com 33 Iiticas, iteresses, projetos e perspectivas conflitantes etc. Aqui temos 0 tema caro aos frankfurtianos: a emergéncia de uma razdo técnica ¢ a I6gica interna de sua autolegi timagiio (tio bem exposta pelo professor Gerd Borheim ‘no tiltimo semindrio sobre universidade e meio ambiente, ‘em Culaba), © tecnicismo visa, a0 buscar uma legitima- ‘clo integralmente autocentrada, autonomizaraciéncia em relagZo a sociedade que a gerou, pondo a técnica como algo acima dos conflitos ¢ das disputas; enfim, com uma aura de verdade 86 acessivel a seus prptios formuladores. Este processo se acentua ao longo de nosso tempo, um perfodo em que dominacio técnica chegaa se manifestar ras mais diferentes esferas da vida social (como, por cexemplo, a tecnificagiio do lazer). Na drea da pesquisa ambiental, essa postura se manifesta com forga. E inte- ressante até mesmo salientarmos que, por paradoxal que seja, exatamente aqueles pesquisadores mais diretamente envolvidos com 0 planejamento € 0s dtgdos pablicos, ogo, os que mais diretamente podem aferiro peso politico dus decisdes “técnicas" ,sfo os que geralmente professam ‘com maior énfase o ncutralismo tecnicista. Eis outro bom tema para debate. ‘A. terceira postura coloca-se, em certo sentido, como a antitese da anterior. Trata-se do romantismo que ;permeia muitos discursos referentes & tematica ambiental Esta postura peca pelo inverso: se 0 tecnicismo nega a

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