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Isto não é Filosofia

CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 2 – Cap. 1 – Filosofia Antiga: estoicos
Prof. Vitor Lima

ENCONTRO 2
FILOSOFIA ANTIGA: ESTOICOS
Sumário
1 Filosofia Antiga ........................................................................................................................ 2
1.1 Cronologia ......................................................................................................................... 2
1.2 Contribuições dos gregos ............................................................................................... 2
1.2.1 Conceito de cidade................................................................................................... 2
1.2.2 Conceito de cidadania ............................................................................................. 2
1.2.3 Conceito de escola ................................................................................................... 2
1.3 Contribuição dos romanos.............................................................................................. 3
1.3.1 Conceito de Direito ................................................................................................... 3
2 Estoicos .................................................................................................................................... 4
2.1 Contexto histórico ............................................................................................................ 4
2.2 Origens .............................................................................................................................. 5
2.3 Theoria: ordem cósmica ................................................................................................. 5
2.4 Ética: do polites ao kosmopolites .................................................................................. 6
2.4 Sabedoria: exercícios ...................................................................................................... 7
2.4.1 Abandonar o passado, e confiar o futuro à providência ..................................... 8
2.4.2 Esperar um pouco menos, amar um pouco mais ................................................ 9
2.4.3 Cultivar o não-apego .............................................................................................. 10
2.4.4 Preparar-se para a catástrofe ............................................................................... 10
3. Guia de leitura para o Encontro 4...................................................................................... 12
Bibliografia ................................................................................................................................. 12

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1 Filosofia Antiga
1.1 Cronologia

Período pré-socrático Período clássico Período helenístico


600 a.C 550 a.C 500 a.C 450 a.C 400 a.C 350 a.C 300 a.C 250 a.C 200 a.C
Tales Parmênides Diógenes Crisipo Arcesilau
Xenófanes Zenão de Eleia Aristóteles Arquimedes Carnéades
Anaximandro Heráclito Teofrasto
Anaxímenes Empédocles Pirro
Pitágoras Anaxágoras Epicuro
Sócrates Zenão de Cítio
Aristipo
Demócrito
Antístenes
Platão

Período romano
150 a.C 100 a.C 50 a.C 1 50 100 150 200 250
Antíloco Sêneca Epiteto Marco Aurélio Sexto Empírico Plotino
Cícero

Período romano
300 350 400 450 500 550
Agostinho

1.2 Contribuições dos gregos


1.2.1 Conceito de cidade

• Coletivização do poder
• Espaço público (ágora)
• Arte do discurso – dialética e retórica
• Igualdade perante a lei – sophrosine (prudência) no lugar da areté
(excelência) homérica
• Religião subordinada à política
• Distinção phýsis (princípios e normas naturais) e nómos (princípios e
normas convencionais)

1.2.2 Conceito de cidadania

• Governo da lei e igualdade jurídica – base cívica


• Ideia de regra geral, pública e impessoal, contraposta à ordem pessoal,
discricionária, geralmente associada a um antepassado ou a uma
hierarquia social e cósmica

1.2.3 Conceito de escola

Os povos antigos com domínio da escrita conheciam as escolas para os


escribas, que se caracterizavam por ser práticas e direcionadas à formação

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especializada em uma função social delimitada. No contexto grego, surge a ciência


desinteressada, com atividade unicamente intelectual e desobrigada de produção
técnica – esportiva, militar, artística etc.
A fase inicial é a de confrarias de pensadores – como é o caso dos pitagóricos.
No mesmo sentido, Platão funda a Academia; Aristóteles, o Liceu; Antístenes, o
Cinosargo; Epicuro, o Jardim. É bem verdade que, nessa mesma época, os sofistas
forneceram um ensino puramente privado. Após essa fase, porém, os gregos passam a
organizar instituições de ensino para crianças, para jovens e para adultos. Primeiro
ensinam a ler, escrever e contar. Posteriormente, lecionam gramática e cultura geral,
por assim dizer – o que chamaríamos hoje de literatura talvez. Na fase adulta, os
estudos eram os de filosofia, retórica e medicina principalmente. Se essa prática não
era difundida a todos os habitantes da cidade, para a elite certamente se tratava de uma
prática cultural.
Esse costume se resume no ideal de paideia. Trata-se de uma palavra, cujo
alcance não se restringe a uma só de nosso léxico. É, ao mesmo tempo, civilização,
tradição, literatura e educação. Marco Terêncio Varrão (116-27 a.C) e Cícero (106-43
a.C) traduziram esse termo para humanitas – de onde veio o termo humanismo. A
tradução mais adequada – em vez de educação, o que poderia remontar à educação
formal de nossos dias apenas – é cultura. O sentido de cultura aqui, entretanto, não é
o da Antropologia, que é meramente descritivo, no sentido de designar toda produção
material e simbólica de uma coletividade. O significado de cultura no sentido de paideia
é valorativo e visa a alcançar um ideal de humanidade que remonta aos helenos:
“O homem que se revela nas obras dos grandes gregos é o homem político. A educação grega
não é uma soma de técnicas e organizações privadas, orientadas para a formação de uma
individualidade perfeita e independente. Isso só aconteceu na época helenística, quando o Estado
grego já havia desaparecido – época da qual deriva em linha reta a pedagogia moderna.”
(JAEGER, Paideia, p. 14)

1.3 Contribuição dos romanos


1.3.1 Conceito de Direito

Enquanto a Grécia clássica cultivava um conjunto de normas não escrito


(lembra-se do julgamento de Sócrates? A lei não era prévia, como é hoje, o crime e a
pena foram delineados à medida que corria o julgamento), Roma produziu códigos de
leis e uma tradição jurídica que se consolidou como a base do Direito ocidental. A
premissa para esse acontecimento foi o caráter multiétnico do império romano, o que
demandava, para resolver os litígios que surgiam, um procedimento jurídico muito
rigoroso.
O Direito romano evoluiu em moldes gerais da seguinte maneira. Primeiro, veio
o “Direito dos Quirites” (Lei das Doze Tábuas). Depois, veio a tradição dos pretores –
magistrados encarregados de aplicar as leis não só na capital, mas também em lugares
distantes. Por essa distância e pela variedade de casos concretos com que lidavam,
produziram uma vasta obra, comumente denominada de éditos, que muitas vezes
substituam a norma mais geral. Passada a fase dos pretores, vieram as constituições
imperiais. Por fim, consolidou-se o famoso Corpus Juris Civilis de Justiniano.

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Outro marco do modo como se desenvolveu o Direito romano foi seu encontro
com a filosofia estoica, principalmente a partir de Cícero:
“Existe uma verdadeira lei que é a razão em conformidade com a natureza, disseminada em todos
os seres, sempre de acordo consigo mesma, imperecível, que nos leva de forma imperiosa a
cumprir nossa função, nos proíbe de cometer fraudes e, até mesmo, nos afasta disso. [...] Esta lei
não admite nenhuma correção, nem é lícito ab-rogá-la, total ou parcialmente. [...] Esta lei é idêntica
em Atenas, em Roma, hoje e amanhã; trata-se de uma só e mesma lei eterna e imutável que rege
todas as nações e em todos os tempos. [...] Quem desobedece a esta lei ignora-se a si mesmo e,
por ter desconhecido a natureza humana, sofrerá o maior castigo, mesmo que escape aos outros
suplícios” (Cícero, Da República, III, XXII In: NEMO, p. 35)

O Império macedônico e, posteriormente, as monarquias helenísticas já haviam


sido Estados multiétnicos. Em decorrência desse contexto sócio-histórico, criou-se o
conceito de cosmopolitismo, utilizado para designar uma nova concepção de
homem, não mais político (no sentido de vinculado a uma polis), mas sim cosmopolita
(de modo a designar um habitante da polis não mais delimitada à cidade-estado grega,
mas ao kósmos, vale dizer, ao mundo como um todo).
“[...] a humanidade constitui uma comunidade única, que compartilha uma natureza humana
idêntica; no âmbito dessa comunidade, as regras das relações humanas pertencem a uma única
‘lei natural’, da qual as leis positivas de cada cidade não passam de um decalque e uma
aproximação.” (NEMO, p. 34)

Trata-se da noção estoica de que cada um é um microcosmo que deve


corresponder a uma macrocosmo. Conhecer a si mesmo não é conhecer uma natureza
individual, mas conhecer a natureza humana que estrutura cada um, de modo a
corresponder de bom grado a esta lei natural e alcançar a vida sábia. O resultado jurídico
dessa assimilação da cultura helênica passou a ser que a fonte do Direito já não eram
os mitos, nem a tradição, mas a natureza humana objetiva inscrita no kósmos.

2 Estoicos
2.1 Contexto histórico

Estoicismo (assim como Epicurismo, Cinismo e Ceticismo) pertence ao


chamado Período Helenístico, que se passa principalmente após a morte de
Aristóteles e compreende as conquistas territoriais e culturais de seu famoso estudante:
Alexandre, o grande.
Em História, helenismo denota a influência da cultura grega em toda a região
do Mediterrâneo Oriental e do Oriente Próximo desde as conquistas de Alexandre,
o grande (332 a.C) até a conquista romana do Egito em 30 a.C, que passa a marcar
a influência de Roma nessa mesma região.
Em Filosofia, trata-se de uma periodização imprecisa que compreende cerca
de 1.000 anos, podendo ser estendida do início do Império Macedônico (332 a.C) até
o início da Filosofia Medieval com Santo Agostinho (354-430 d.C) e Boécio (480-524),
dado que a influência da Filosofia Grega e das escolas fundadas no início do
helenismo permaneceu durante o Império Romano.

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2.2 Origens

As Escolas filosóficas, helenísticas ou não, frequentemente eram designadas


pelo nome dos lugares em que se estabeleciam. O fundador da escola estoica, Zenão
de Cítio (cerca de 334-262 a.C) ensinava sob arcadas recobertas, em locais que, em
termos arquitetônicos, chamam-se pórticos (em grego, stoa). O nome estoicismo deriva
desse vocábulo. Os ensinamentos do fundador ganharam repercussão e foram
difundidos por meio de seus discípulos.
O primeiro foi Cleantes de Assos (cerca de 331-230 a.C). O segundo foi Crisipo
de Solos (cerca de 280-208 a.C). Juntos com o fundador, formam o que conhecemos
como estoicismo antigo. De seus pensamentos – fora um breve poema, Hino a Zeus,
de Cleanto –, não se conservou muita coisa original. Do que professavam, conhecemos
de maneira indireta o que deles disseram outros autores posteriores – entre eles, Cícero
já no Império Romano, que é considerado um pensador eclético, isto é, que mescla
diferentes influências em seu modo de filosofar.
Em seguida, veio o que se chama de médio estoicismo, com Panécio (cerca
de 180-110 a.C) e Posidônio (135-51 a.C). Essa fase foi marcada pelo que a tradição
chama de ecletismo, isto é, a tendência de mesclar as diferentes doutrinas – platonismo
e aristotelismo incluídos –, o que pareceu ser uma tendência no período helenístico.
Por fim, o estoicismo novo já em Roma. As obras desse período, diferente dos
anteriores são bem conhecidas, sendo estes os principais nomes: Sêneca (cerca de 4
a.C - 64 d.C), Epicteto (cerca de 50-130 d.C) e Marco Aurélio (121-180 d.C). Os livros
que utilizaremos para mencionar serão principalmente dos estoicos novos, ainda que
fazendo referência aos antigos.

2.3 Theoria: ordem cósmica

O estoicismo concebe os estudos filosóficos a partir de três disciplinas


fundamentais: a Física, a Lógica e a Ética. É comum designar essa concepção de modo
metafórico, utilizando uma árvore como comparação:

• Raízes: Física
• Tronco: Lógica
• Frutos: Ética
Há de haver uma relação íntima, portanto, entre a modo correto de conceber o
mundo, o modo correto de pensar a seu respeito e o modo correto de agir conforme
esses pressupostos. Numa expressão conhecida, o homem é um microcosmo que deve
refletir o macrocosmo.
Na essência da tradição grega, apropriada pelo estoicismo, a essência da
realidade é ordem, harmonia e beleza – o que os pré-socráticos davam o nome de
kósmos. Para os estoicos, a ordem cósmica pode ser entendida como um ser vivo,

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estruturado e animado1. Esse ser é chamado pelos gregos e pelos estoicos


especificamente de divino (theion). Nas palavras de Cícero:
Que Epicuro caçoe tanto quanto quiser [...] não deixa de ser verdade que nada é mais perfeito que
o mundo [...] O mundo é um ser animado, dotado de consciência, inteligência e razão (Sobre a
Natureza dos deuses, I, 425)

A estrutura de tudo o que existe é ordenada, harmônica, bela. Justamente por


esses aspectos, é racional, isto é, funciona conforme o logos. Como já vimos em
Heráclito, esse conceito se refere, concomitantemente, à ordem intrínseca da realidade
e à capacidade racional do homem em apreendê-la. Naquela citação de Cícero, fica
claro como uma ordem lógica – por assim dizer – governa o caos aparente das coisas.
Há uma harmonia cósmica, ainda que haja catástrofes e acidentes, provisórios por
natureza. Essa ordem é racional e, além disso, também é justa e boa, como Menciona
Marco Aurélio:
Tudo o que acontece, acontece justamente; é o que descobrirás se observares as coisas com
exatidão [...] como se alguém vos concedesse vossa parte segundo o que mereceis. (Meditações)

2.4 Ética: do polites ao kosmopolites

As escolas helenísticas de pensamento constituíram, em muitos aspectos, o que


costumamos chamar de filosofias de vida. Isso quer dizer que o objetivo primordial a
que se propuseram foi alcançar um modo sábio de conduzir as circunstâncias
cotidianas, isto é, de dominar a arte de viver. Para utilizar o vocabulário aristotélico,
buscavam antes a phrónesis (a virtude da alma intelectiva com vistas à moderação das
paixões), que a sophía (a virtude da alma intelectiva com vistas à própria intelecção).
A filosofia que não busca medicar alguma paixão da alma é vã, é o que pensava
Epicuro, com quem concordavam, cada um ao seu modo, todos os outros filósofos do
período. A compreensão fundamental de todos esses pensadores é a de que a
felicidade é alcançada via controle das paixões humanas. Concordavam que tais afetos
só são acalmados quando moderados – e não quando incentivados. Assim, o remédio
consiste em um reenquadramento do papel das paixões ou, a depender da escola
analisada, em sua total supressão. Nesse duplo sentido, a felicidade plena não consiste
especificamente, como dizia Aristóteles, em conduzir a vida humana conforme a virtude
da alma com vistas à intelecção pela intelecção (sophía), mas a direcionar-se a práticas
que conduzem à tranquilidade mental, à paz de espírito, à imperturbabilidade da alma,
o que era por eles designado por ataraxia.

1
Essa ideia dará origem outras tantas a ela assemelhadas.
1. Animismo (do latim anima, alma): termo geral que designa as doutrinas que afirmam que todas
as formas identificáveis de natureza possuem uma alma e se comportam como um organismo
vivo.
2. Hilozoísmo (do grego hylè, matéria, e zoon, animal): doutrina de que toda a composição do
universo é viva, sendo o próprio kósmos um organismo integrado, com características animadas,
sensíveis e conscientes.
3. Panteísmo (do grego pan, tudo, e théos, Deus): doutrina que identifica deus à totalidade das
coisas que há, de modo que todas as partes perceptíveis fazem parte de um todo divino
integrado.

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Mas em que consiste a diferença primordial entre as opções?


É preciso que você se recorde de que, para Aristóteles, estudar ética é
indissociável de estudar política, justamente porque não é possível avaliar o
comportamento humano fora da consideração da coletividade:
“Sem dúvida, o bem também é desejável quando diz respeito a uma só pessoa, mas é mais belo
e mais divino quando se refere a um povo e às cidades”. (Ética a Nicômaco, A 2, 1.094 b 7-10)

Com a derrocada da polis – empreendida principalmente pelo império


macedônico, com Alexandre à frente –, caíram progressivamente todos os seus valores
cívicos, base de sua estrutura social. Enquanto o cidadão aristotélico não se concebia
fora de sua organização política – afinal, o homem é um animal político –, o homem
helenístico defende que pode bastar a si mesmo como governante soberano de si.
Essas diferenças implicam que, para retomar a pergunta anterior, a tese
helenística de base é a de que os caminhos que conduzem à felicidade residem no
homem e não em suas circunstâncias externas. É difícil imaginar Aristóteles
concordando com essa afirmação, sem fazer muitas ressalvas, tantas a ponto de
desfigurar a premissa e torná-la irreconhecível.
Dessa maneira, para ser feliz, em maior ou menor medida, o homem helenístico
não precisa de sociedade politicamente organizada, riquezas, dotes físicos especiais,
deuses, alma imortal etc. O que é necessário é sua razão adequadamente orientada, o
logos que lhe indique o correto caminho, que, como já visto, consiste em cultivar a
ataraxia. A verdadeira felicidade se encontra em reconhecer o que é externo e renunciar
a buscá-lo e habituar-se a não sofrer por não o controlar. A verdadeira felicidade está
em voltar-se para si e para o que depende de si.

2.4 Sabedoria: exercícios

Os estoicos, de fato, derivam uma ética a partir da theoria – vale dizer, da


maneira como concebem a phýsis, a totalidade das coisas que há. Em outras palavras,
os estoicos entendem como devemos nos comportar com base no modo como se
estrutura o kósmos. Nas palavras de Cícero:
Aquele que viver de acordo com a natureza deve partir da visão de conjunto do mundo e da
providência. Não é possível emitir juízos verdadeiros sobre os bens e sobre os males sem
conhecer todo o sistema da natureza e da vida dos deuses, nem saber se a natureza humana está
ou não de acordo com a natureza universal. E não se pode ver, sem a física, que importância (e
ela é imensa) têm as antigas máximas dos sábios: “Obedece às circunstâncias!”, “Segue Deus!”,
“Conhece-te a ti mesmo!”, “Nada em excesso!” etc. Somente o conhecimento dessa ciência pode
nos ensinar o que pode a natureza na prática da justiça, na conservação de nossas amizades e
de nossos apegos... (Cícero, Dos fins dos bens e dos males, III, 73)

Tal visão é oposta e pode chegar a ser ofensiva à visão atual de que é a vontade
dos homens, em contraposição à força da natureza, que deve predominar quando
precisamos estabelecer as reflexões éticas. É amplamente aceita a tese de que a
natureza não é boa em si mesma. Tendemos a pensar que fenômenos naturais não são
bons, nem maus – simplesmente não escolhem acontecer e todo o dano que causam e
todo o benefício que trazem são fatos, não valores.

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Diferentemente, o que está em jogo aqui é um aspecto moral na realidade. Dessa


maneira, é bom aquilo que está conforme a ordem cósmica, independentemente da
vontade humana. O bom e o mau se constituem a despeito de agradar os homens. O
dever-ser – o correto moralmente – não está dissociado do ser – da totalidade das coisas
tais quais são.
Contrariando Aristóteles, o conhecimento que vale a pena ser buscado passa a
ser encarado não mais como algo completamente desinteressado, mas com vistas a
alcançar um critério para guiar a vida humana. As escolas da época preocupavam-se
menos com os conceitos e mais com exercícios práticos de sabedoria – diferentemente
do que ocorre hoje. Tais práticas estão presentes, direta ou indiretamente, em
pensadores e movimentos diversos: de Lucrécio a Nietzsche, com similaridades
inclusive com o budismo tibetano.
Diz Marco Aurélio:
Assim como os cirurgiões têm sempre à mão as lancetas e bisturis para as súbitas urgências de
sua arte, também tu deves ter os teus princípios sempre prontos para a compreensão das coisas,
tanto as humanas quanto as divinas, nunca esquecendo, mesmo na mais trivial da ações, como
as duas estão tão intimamente ligadas. Porque nada de humano pode ser feito com acerto sem
referência ao divino, e reciprocamente. (Meditações, III, 13)

É preciso, dada a analogia estabelecida por Marco Aurélio com o médico e o


bisturi, ser humano, mas ser humano profissional. Isso implica ter as ferramentas à
mão quando surgirem os problemas inevitáveis da vida. Eis algumas delas.

2.4.1 Abandonar o passado, e confiar o futuro à providência

O apego ao passado e a preocupação com o futuro são os dois males que


impedem o homem de alcançar a plenitude. Tanto os impedem de aproveitar o que
acontece, quanto de agir para que aconteça algo que planejam. Nas palavras de Marco
Aurélio:
Tudo o que desejas alcançar por um longo desvio, podes tê-lo desde já, se não o recusares a ti
mesmo. Basta abandonar todo o passado, confiar o futuro à providência e dirigir a ação
presente para a piedade e a justiça; para a piedade, para a amar a parte que a natureza te
atribui; pois ela a produziu para ti, e tu para ela; para a justiça, para dizer a verdade livremente e
sem desvio e para agir segundo a lei e segundo o valor. (Meditações, XII, 1)

É necessário aprender a se libertar desses pesos. Ainda Marco Aurélio:


Que a imagem de tua vida inteira não te perturbe jamais. Não sonhes com todas as coisas
dolorosas que provavelmente te aconteceram, mas, a cada momento presente, pergunta: o que
há de insuportável e de irreversível neste acontecimento? Lembra-te, então, de que não é nem o
passado, nem o futuro, mas o presente que pesa sobre ti. (Meditações, XIII, 36)

Nesse ensinamento está presente tanto o conselho de evitar a nostalgia, que


pode paralisar, quanto a esperança, que pode angustiar.

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2.4.2 Esperar um pouco menos, amar um pouco mais

A esperança implica que algo falta, portanto incentiva que sintamos uma tensão
insaciada. A sensação de falta de saciedade aponta para a infelicidade, dado que
felicidade é plenitude. O perigo da esperança, então, é a de adiar a felicidade de modo
indefinido, seja em prol de um paraíso aqui ou além.
É conhecida a fábula de La Fontaine (1621-1695) da Leiteira e o balde de leite.
Uma moça, chamada Perrette, voltava do campo com um balde de leite cheio. Enquanto
caminhava, imaginava o futuro e não só: ansiava por ele. Tudo o que produziria com o
leite, as riquezas que a partir dele seriam produzidas. Ela poderia comprar ovos. Dos
ovos, nasceriam pintinhos. Os pintinhos seriam vendidos para a compra de um vestido
novo. Nesses pensamentos distraída, deixou o balde cair e perdeu todo o leite que
derramou no chão. A lição estoica é a de que, por mais que o futuro seja ansiado, é o
presente que importa. Sendo o presente que importa, também não adianta chorar pelo
leite derramado.
A vida boa é a vida sem esperanças, sem apegos e, assim, sem temores: a vida
em reconciliação com a realidade tal qual ela é. Como diz Epicteto:
É preciso conciliar nossa vontade com os acontecimentos de tal maneira que nenhum
acontecimento ocorra contra nossa conveniência, e que também não haja nenhuma acontecimento que
ocorra quando não o desejamos. A vantagem para aqueles que estão assim prevenidos é de não falhar em
seus desejos, de não se deparar com o que detestam, de viver interiormente uma vida sem dificuldade,
sem temor e sem perturbação [...] (Entretiens, II, Discurso II, XVI, 45-47)

Embora tais considerações pareçam absurdas2, tal doutrina pode ser


interpretada também como uma tentativa de adequação da vontade humana aos
desígnios do kósmos, da phýsis, do lógos. Pode ser que se trate de um
reenquadramento do conceito de liberdade, que não significaria mais fazer aquilo que
se quer, mas identificar-se com aquilo que acontece. Tanto Espinosa, quanto Nietzsche
parecem ter pensado algo semelhante. Este, por exemplo, lança mão do conceito de
amor fati, o amor ao real tal qual ele é.

2
Por vezes, o estoicismo é acusado de quietismo e fatalismo. Quietismo é uma prática espiritual cujas
origens remontam ao séc. XVII, na figura do religioso espanhol Miguel de Molinos. Segundo essa doutrina,
o fiel alcançaria a Deus mediante a oração contemplativa, de modo que, uma vez nesse estado de
quietude, a mente humana se inativaria e já não teria vontade própria, abrindo caminho para somente
Deus nela operar. A doutrina foi considerada herética pelo Papa Inocêncio XI. Fatalismo é uma concepção
filosófica que remonta ao período greco-romano de que os acontecimentos passam de modo irrevogável,
de acordo com uma ordem cósmica. Ambos, quietismo e fatalismo, são termos usados de modo
pejorativo, sendo atribuídos a quem aceita de modo passivo os acontecimentos, não acreditando que
pode exercer algum papel em sua modificação.

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2.4.3 Cultivar o não-apego

Uma vez que a única dimensão da vida é o presente (passado é nostalgia; futuro
é esperança) e que o presente não é garantia de nada possuir (dado que nada está
assegurado), é sábio habituar-se ao não-apego. Novamente Epicteto:
O primeiro e principal exercício, o que conduz de imediato às portas do bem, consiste, quando
uma coisa nos prende, em considerar que ela não é daquelas que não nos podem ser tiradas; que
ela é como uma panela, ou uma taça de cristal, que quando se quebra não nos perturba porque
lembramos o que ela é. O mesmo acontece aqui: se abraças um filho, um irmão ou um amigo, não
te abandones sem reservas à imaginação... Lembra-te que amas um mortal, um ser que não é
absolutamente tu mesmo. Ele te foi concedido para o momento, mas não para sempre, nem sem
que te possa ser tomado... que mal existe em murmurar entre dentes, enquanto se abraça o filho:
“Amanhã ele morrerá?” (Entretiens, III, 84 ss.)

Tais conselhos podem parecer pregar a indiferença perante a vida e a falta de


compaixão. De fato, muitos o acusaram exatamente de defender essas duas ideias.
Ainda assim, é possível interpretá-lo por outra via: a de que é preciso se preparar para
a impermanência das coisas (conceito, inclusive, muito usado no budismo tibetano e
que pode também ser encontrado na interpretação platônica de Heráclito no pantha
rhei, tudo flui). Nada é estável, tudo muda, tudo passa. Não compreender essa verdade
fundamental é submeter-se novamente às amarras da nostalgia e da esperança. É
preciso amar o presente e nada desejar além dele, nem lamentar o que quer que tenha
ficado no passado.

2.4.4 Preparar-se para a catástrofe

O tempo passará. O corpo se tornará mais fraco. Teremos algumas decepções


na vida. Seremos traídos. Cometerão injustiças conosco. Ficaremos doentes.
Eventualmente, cairemos na ruína financeira. Morreremos. Os males da vida
acontecerão. Por que não estar preparado quando os acontecimentos inevitáveis da
vida vierem?
Diz Epicteto:
Que estejam diante dos teus olhos, a cada dia, a morte, o exílio e todas as coisas que se afiguram
terríveis, sobretudo a morte. Assim, jamais ponderarás coisas abjetas, nem aspirarás à coisa
alguma excessivamente (Encheirídion, III, 21)

Marco Aurélio também disse algo semelhante: “é preciso realizar cada ação da
vida como se fosse a última” (Meditações, II, 5, 2). É preciso se despojar do apego ao
passado, ao futuro e às posses do presente. Viver cada ação como se fosse a última
implica ter a consciência de que o momento passará, não voltará e que, portanto, deve
ser fruído enquanto dura. Há momentos de plenitude na vida, em que nos reconciliamos
com o mundo. Você imagina o melhor exemplo que se lhe enquadra. Mergulhar no mar.
Correr no campo. Trilhar pela floresta. Pular de paraquedas. Escutar a canção preferida.
Quando há esses momentos de harmonia entre nós e o mundo, parece haver uma
dilatação do presente, cuja serenidade não é rompida, nem pelo que passou, nem pelo
que virá. Com a habilidade de permanecer no presente, seja ele qual for, quando o
desastre acontecer, estaremos preparados.

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Isto não é Filosofia
CLUBE DO LIVRO
Aprender a viver (2006), de Luc Ferry
Encontro 2 – Cap. 1 – Filosofia Antiga: estoicos
Prof. Vitor Lima

Muita associação confusa acontece com essa noção e a de carpe diem


(aproveite o dia), que remonta ao poeta – e não filósofo – Quintus Horacius Flacus (65
a.C – 8 a.C), mais conhecido como Horácio. Sua lira é associada ao verso “carpe diem,
quam minimum crédula postero” (goza o dia, confie o mínimo possível no futuro). Trata-
se do verso 11, do Livro 1 de suas Odes. No contexto da frase, o poeta tenta dissuadir
um interlocutor, Leuconoe, de fornecer crédito a astrólogos e mestres da adivinhação.
Seria vão tentar adivinhar o futuro, restando apenas aproveitar o presente, que é o que
se pode controlar. O penúltimo verso do livro é “Nunc est bibendum” (agora é a hora de
brindar!). O contexto, portanto, é de festa.
O verso, porém, também é associado à morte, a única certeza do homem. Como
viver em face da morte? A partir da consciência de que cada minuto pode ser o último.
Logo, deve-se aproveitar cada instante da vida presente. Nesse sentido, o verso do
poeta latino se transformou nas mãos de outro, desta vez renascentista: Robert Herrick
(1591-1674), no poema To The Virgins, To Make Much of Time, especialmente neste
trecho:
Gather ye rosebuds while ye may,

Old times is still a-flying:

And this same flower that smiles to-day

To-morrow will be dying

(Reúnam os seus botões de rosa enquanto podem,

Tempos antigos continuam correndo:

E esta mesma flor que hoje sorri

Amanhã morrerá)

Uma simbologia que se apresenta é de que as jovens precisam aproveitar a


juventude enquanto é tempo, já que a morte é certa. Por mais que a expressão carpe
diem não esteja contida no poema, sua semântica é comumente a ele associada.
A expressão também foi popularizada pelo filme Sociedade dos Poetas Mortos,
querendo denotar algo como “Torne sua vida extraordinária enquanto é tempo”.
Na internet, a frase ganhou força, muito em decorrência de justificar um impulso
juvenil e desregrado para cometer excessos – seja em bebidas alcoólicas, seja com
práticas não recomendadas a suas idades. Nada mais longe do ideal estoico.

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3. Guia de leitura para o Encontro 4

Leia o Cap. 3 “A vitória do cristianismo sobre a filosofia grega”, tentando


responder às perguntas abaixo. Escreva-as em seu caderno de anotações.
1. Para Ferry, a religião é exemplo de uma busca da salvação não filosófica,
porque é realizada por Deus, pela fé – e não pelo indivíduo e pela razão.
Então por que é importante estudar o cristianismo como uma etapa do
desenvolvimento da Filosofia, segundo Ferry?
2. Quais são os 5 traços de ruptura entre Cristianismo e Filosofia Grega?
3. Por que é preciso dizer “não” e “sim” à pergunta sobre a existência de uma
filosofia cristã, segundo Ferry?
4. De que maneira a Filosofia como disciplina escolar e não mais como busca
da salvação nasce com o cristianismo, segundo Ferry?
5. Quais são os 3 traços da ética cristã?
6. Quais são os 3 traços da sabedoria cristão?

Bibliografia

CORDERO, Néstor Luis. A invenção da Filosofia: uma introdução à Filosofia Antiga.


Tradução: Eduardo Wolf. São Paulo: Odysseus Editora, 2011.
FERRY, Luc. Aprender a viver. Tradução de Vera Lucia dos Reis. Rio de Janeiro:
Objetiva, 2007.
MARCONDES, Danilo. Iniciação à História da Filosofia: dos pré-socráticos a
Wittgenstein. 2ª ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
NEMO, Philippe. O que é Ocidente? (Coleção Dialética). 1ª ed. Tradução de Guilherme
João de Freitas Teixeira. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
REALE, Giovanni. Estoicismo, ceticismo e ecletismo (História da Filosofia Grega e
Romana, v. 6). Tradução de Marcelo Perine. 2ª ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015.

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