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94 T. S. ELIOT pode haver transigoes num poema, compardveis aos dife rentes andamentos de uma sinfania ou de um quarteto; hi possibilidade de disposigéo contrapontistica do assunto, E na sala de concertos, mais do que na de épera, que 0 germe de um poema poders receber estimulo. Mais do que isto nao posso afirmar e devo deixar o assunto Aqueles que receberam educagdo musical. Mas quero recordar-vos, uma vez mais, quais sao as duas tarefas da poesia, as duas ditec- ses em que a lingua deve ser trabalhada, em momentos diferentes, de modo que, por muito longe que se chegue na claboracio musical, hé que contar com o dia em que a poe- sia terd de ser chamada novamente ao encontro da Os mesmos problemas voltam a surgir, e sempre sob novas for- mas, € a pocsia tem sempre & sua frente, como E. S. Oliver ! disse da politica, uma «aventura sem fim». ' Frederick Scott Oliver (1864-1934), escritor escocés, autor de obras de caricter politico, AS TRES VOZES DA POESIA primeira voz é a do poeta falando para si mesmo — ou nio falando para ninguém. A segunda é a vor do ta dirigindo-se a um auditério, grande on pequeno. terceira é a voz do poeta quando cle procura criar uma sonagem dramética falando em verso; quando cle diz, (0 aquilo que pessoalmente nos diria, mas aquilo que lhe € ‘vel dizer adentro dos limices de uma personagem ima- dria que se dirige a outra personagem imagindria. A dis- ingao entre a primeira voz ¢ a segunda, entre 0 pocta indo fala para sie 0 poeta quando fala aos outros, aponta problema da comunicagio pottica; a distingo entre 0 ca que fala aos outros, quer pela sua prépria voz quer ser- do-se de uma voz adoptada, € 0 poeta que inventa a fala determinadas personagens imagindrias com outras, snta o problema da diferenga entre 0 verso dramético, e-dramitico € nao dramitico. Desejo antecipar-me a uma pergunta que me pode itimamente ser posta: Nao se podera dar o caso de um: ema ser escrito somente para o ouvido, ou para os olhos, uma tinica pessoa? Podercis dizer simplesmente: Nao é a ia de amor, por vezes, uma forma de comunicagio tre uma pessoa outta, que nao conta com mais nenhum wuditdrio? Ha pelo menos duas pessoas que teriam discordado da minha opiniso a este respeito: o casal Robert Browning '. * Robere Browning (1812-89), 0 mais «modemnista» dos poctas vito- fianos, a quem se deve, sobretudo, a divulgagao do «mondlogo dram: S. ELIOT No poema «One Word rd More» destinado a servir de lege tlen etl Weed + enlecsatoanien Brats marido formula um impressionante juizo de . Browning, 0 Raftel made a century of sonnets, Made and wrote them in a certain volume Dinted with the silver-pointed pencil Fle he only used to draw Madonnas: These, the world might view — but one, the volum Who that one, you ask? Your heart instructs you. You and I would rather read that volume... Would we not? that wonder at Madonnas... Dante once prepared to paint an angel: Whom to please? You whisper «Beatrice» You and I would rather see that angel, Painted by the tenderness of Dante, Would we not? — than read a fresh Inferno * a oncordo que um Inferno, mesmo escrito por Dante, basta; ¢ talvez basta; ¢ taker no set demasiado lamentivel 9 fico de io ter multiplicado @ mimero das suas Madonas; mas 0 que sei dizer que nao sinto curiosidade, quer pelos sonetos de Rafael, quer pelo anjo de Dante. Se Rafael independ, isabeth (1806-61) é a autora dos Sonnets fram the Portuguese Rafael fer. uma centiria de sonietos, Félos e escreveu-os em certo volume Estas, todos podiam ver, s6 um, 0 valum Quem, vés perguntais? Vosso coragio Vés ¢ eu gostariamos mais de ler esse v No ¢ verdade? do que admirarmos Ni ENSAIOS DE DOUTRINA CRITICA 99 reveu, ou Dante pintou, para os olhos de uma tinica oa, respeitemos a sua intimidade. Sabemos que os owning, gostavam de escrevet poemas um para 0 outro que os publicaram, € alguns deles sio belos poemas. abemos que Rossetti julgara compor os sonetos de House Life para uma pessoa ¢ que s6 os seus amigos persua- ram a desenterré-los '. Ora cu nao nego que um poema ssa ser enderecado a uma s6 pessoa: hd uma forma bem: snhecida, nem sempre amaréria no seu contetido, a que 44.0 nome de Epistola. Jamais estaremos de posse de was concludentes porque o testemunho dos poctas, Jativamente Aquilo que julgavam estar a fazer quando mpunham um poema, nao pode ser inteiramente aceite Jo seu aparente valor, Mas, a minha opinido € que um 30m poema de amor, ainda que enderegado a uma detet- ninada pessoa, destina-se sempre a ser ouvide por outras pessoas. Certamente a linguagem adcquada do amor — u seja, de comunicagio com a pessoa amada ¢ mais nin- gm — éa prosa. “Tendo posto de parte como sendo uma jlusio a vor do [pocta falando com uma tinica pessoa, julgo que o melhor proceso de tentar tornar audiveis as minhas vozes ser Dame dispds-se uma ver a pintar ur Para agradar a quem? Vos sepredais Vos ecu 10s mais de ver esse anjo, nferno. .€ pintor inglés, porven- Quando da em 1862, Rossetti sé passados sete anos ura a figura mais de morte de sua mulher. depos na sepultura desta aqui foi udesenterrado» ¢ manuseti 100 T. S. ELIOT procurar seguir a génese da distingio no x épri baeiee 4 neu prdprio pen al fsctitor a eujo espcito a distingso read tn poate ¢ ocorrer seed provavelmente 0 escrton, camo egies ce ssado muitos anos a esctever poesia seer ee msarem 4 jalquer tentativa de escrever para o teatro. E pone que conforme tenho lido, haja um cle- fete dois muito da minha ob E sive que, desde 0 inicio, eu asprasse ao teato sem disso ia — ou, como diriam criticos pouco an veis, aspirasse a Shafic A fesbury Av ca a y Avenue ©’ Broadway GB anterior. E, pos- eeeeecrest Annis anos, fui encarregado de escrever zuma campanha de donativos para a construgio de igrejas ce vey Breas de abitgso — chegou mua altura em aue cjg have xgoido os meus magros dots po eee : , i bras cry ete a numa determinada data, pode ter ® mesmo feito que uiasvigoross vlas de mani Potts Awake atch RE ee ee cared A ratcls es bem define ew taba apenas de Gectever odidlogo em prosa pasa cenas do género habitual Rts dtite, Devi Geadliner one haviam dado um scendtion, Devin igualmente compoc vérias passagens : ma, razodvel, de " Zonas dos teatros, respec ment em Londres e Nova lorque. ENSAIOS DE DOUTRINA CRITICA 101 trada do coro deveria ocupar um mimero exacto de Fnutos na cronometragem do espectaculo. Mas no fempenho desta segunda parte da minha rarefa nada via que me chamasse a atengio para a terceira vor, OW dramatica: era a segunda, a minha vor dirigindo-se — melhor, discursando — a um auditério, aquela que se distintamente se ouvia, Para além do facto, evidente, ¢ escrever por encomenda nao € a mesma coisa que sever para satisfagéo pessoal, apenas aprendi que o verse stinado a set recitado por um coro deve ser diferente do so destinado a ser recitado por uma pessoa; ¢ que anto maior for o ntimero de vozes num coro, fanto ma imples c mais directo deverd ser 0 vocabulrio, a sintaxe ¢ Tontetido dos versos. Este coro de The Rock nao era uma 7 dramatica; ainda que muitos dos versos fossem distri- mnidos, as personagens nao estavam individualizadas. Os vembros do coro falavam por mim, nao proferiam pala- as que de facto representassem qualquer supsto caricter réprio. © coro mente, segundo cre Mdramatico: quer dizer, dispus-me a escrever as dei para um coro anénimo, mas para um coro de mulheres de Canterbury — quase se poderia dizer, de mulheres a dias de Canterbury. Tive de fazer um certo esforgo para me jdentificar com aquelas mulheres, em vez de simplesmente fs identificar comigo. Mas, quanto a0 didlogo da pesa, to tinha o inconveniente (sob o ponto de vista da ica) de apresentar uma flito existente se dar no jramatica, nao em Murder in the Cathedral representa 5, un progresso no desenvolvimento Ss, Nao oargumen minha propria educagio dram: inica figura dominante, ¢ 0 con dessa personagem. A terccira vor, a d espirito ‘divel sendo quando pela primeira vez se me tornou au 102 02 Tr. S. ELIOT ed problema de apresentar diss (ou mas) persona- gem, sum contlco qualquer, desentendend-se ou ten fando entender-s reiprocamente personagcns com cada Tass te tinha de procurar identificar-me eniquanto esrevia as palavris que el, ou ela, deveriam pro 1. Talvez se recordem que Mrs. Cluppins, no mento da aco de Bardell contra Pickwick » declan 4 seu depoimento, que «as vores i scram-se-me ao ouvido» no >alto, ¢ impu- «Bem, Mrs. Cl * : » Mrs. Cluppinss, disse o argento Buzfuz, «a senhora nao estava a escuta, mas ou as vozes», [ porta 3 o : ‘o7es». Foi, portanto, cm 1938 que a terceira vor sou a impor-se ao meu ouvido. vues Nesta altura imagino o leitor 2 murm certeza que ele j4 disse tudo isto noutro lado.» Vo cer » Vo ou Tenh aju forn di 5 > ecendo a referéncia. Numa conferéncia sobre «Poesia ¢ Drama», que pronu ués anos € que foi posterior ce te publicada nose que ada, afirm deans steve verso de outs especie (ou sj, verso no, dramatco)jolgo que escrevemos, por asim dizer, em te 1s da nossa prépria vo: : - ; neira Como nos soa, ao lé. : soa, a0 Ié- lo, €a prova, porque somos nés que falamos. A questio da comunicasao, do que o leitor apreenderd, nao € fund mental...» i precis ___Ha uma certa confusio de pronomes na passage citada, mas julgo que o sentido ¢ claro; to clave. ane como um vislumbre do que ¢ ébvio, Naquela frase eu ape. nas notei a diferenga entre uma pessoa falar por i ¢ fla por uma personagem imaginaria; ¢ pass Donec sideragoes sobre a natureza do drama pc dar-me conta da diferenga entre a pr para outras con- tico. Comegava a neira voz ea terceira, Dore cealle ie toon Ratt de CI slee Paee ai ie ENSAIOS DE DOUTRINA CRITICA 103 cgunda yor, da qual dentro em Procuro neste momento penetrar um pouco mais fundo no problema. Deste modo, antes de considerar as outras vozes, quero dedicar mais alguns momentos as complexidades da terceira vou Numa pega em verso seri provavelmente necessitio encontrar palavras para virias personagens muito diferen tes umas das outras em formagao, temperamento, educa- fo ¢ inteligéncia. Nao se pode identificar uma derermi- nada personagem connosco ¢ confiar-the a rarefa de dizer (ou seja, a linguagem naqueles momentos drami ge intensidade) deve ser tio largamente distribuida quanto a caracterizagao 0 per mitir; ¢ cada uma das nossas personagens, quando Ihe cou- Fercin deixas que sejam poesia € nao apenas verso, devera pronunciat tiradas que Ihe sejam adequadas. Quando sur gir a poesia, a personagem nao deve dar a impres- sao de ser apenas © porta-voz do autor. Desta forma, futor esta limitado pela espécie de poesia, ¢ pelo grau de intensidade adentro da sua espécie, que possa com plausi- bilidade ser atribuida a cada uma das personagens da sua pega. E estes versos tém ainda de justificar-se de acordo com a sua fungio na situacio em que so pronunciados Mesmo que uma tirada de magnifica poesia scja suficiente mente adequada & personagem a que é confiada, é ainda Inecessirio que nos convenga de ser necessiria a acgao; que fos ajude a extrair da situacio o maximo de intensidade emocional. O poeta que escreve para o teatro esti s conforme cu descobri, a cometer dois erros: 0 de distribuir a. uma personagem tiradas podticas que nao convém a essa personagem, ¢ o de Ihe distribuir tiradas que, por muito mas nfo prestei atengao pouco direi mais alguma coisa. ‘toda a «po icos em que m cer toa Tr. 8. ELIOT entanto, pa 4 entanto, para o progress da sco da pega. Hi, ma dor dramarurgos menores do periodo fbabeling pepe os drama ; abelino, passagens agnifica poesia que estio deslocadas sob, smbee pontos de vista — sufi itn P a suficientemente belas para conservarem as pecas Z = Peas para sempre, com literati, mas no entanto tio Peuco apropriadas que nio deixam essas pegas serem obras-pt dramatic ; he bras-primas dramiéticas. Os exemplos mais conhecidos ecorrem no Tamburlaine de Marlowe ' : Seen, Sts 88 maiozespoetas dramiricos oe a Shakesp care, ou Racine — enfre! mM est hiculda c: : ical? Fest um problema evidentemeste, que res peita a toda a ficcéo imaginativa — romance e drama em prosa — na qual se possa dizer 4 Tdealme: i almente, 0 dramaturgo, que em geral tem de manipui Riga ite ko menos personagens do que o romancita, « dspoc apen: z nce fe es d . apenas de crc ce das hora de vida para les disteibui leve simpatizar profundamente : ” toda : nsgenr' tas eae ucncniaclo de pakeder roe ones mento de uma pega, mesmo com pouicas personageen, pode exigir a presenga de uma ou duas figuras em cuje rea dade, pondo de parte o seu contributo para a acgion nio temos interesse especial. Duvido, no entanto. se € possivel tornar perfeiramente real umit Rgura inteiramente md daquelas por quem, tanto © autor como qualquer ou i 3 mo qui a nao podem sentir sendo antipatia. F neces condiment de fagnesn, qr oa vnade herbi, ice ma jade satinica, para a personagem ser plaus * Cristopher M. ing ENSAIOS DE DOUTRINA CRITICA 6 assusta-me mais do que Ricardo Ill; nao sei se les, de AMls Well That Ends Well nia me impressiona tis do que lago. (E tenho a certeza absolura de que samund Viney, em Middlemarch ', me assusta muito is do que Goneril ou Regan) *, Parece-me que o que se quando um autor eria uma personagem vial, € uma fie de troca. E possivel que o autor dé a essa persona- alé dos atributos préprios, qualquer trago seu, uma aldade ou uma fraqueza, uma tendéncia para a vi mesmo uma excentricidade, jén- ‘ou para a indecisio, talv riu em si proprio, Talver seja algo que na sua izar-se, ¢ que mesmo aque SAO ele descob: pria vida nunca chegou an Jhor conhecem ignorem, algo cuja transm 4s personagens dotadas do mesmo tempe- ento, da mesma idade ¢, muito menos, do mesmo sexo. Ima porcio qualquer de si proprio que o autor dé 3 perso- mn pode ser o germe de onde parte a vida dessa perso- vem. Por outro lado, uma personagem que consiga inte- far o seu autor podera despertar potencialidades larentes ser do proprio autor. Creio que © autor dé algo de si prio As suas personagens, mas ereio ambém que cle ¢ Auenciado pelas personagens que cria. Seria muito facil feemo-nor fim labirinto de conjecturas sobre © pro- 9 pelo qual uma figura imagindria se pode tormar tao al, para nds, como as pessoas que conhecemos. Penetrci peste labirinco apenas para indicar as dificuldades, as limita- para um poeta habituado ‘goes, a fascinagio que constitui, screver poesia falando por si, o problema de fazer persona- gens imagindrias falarem poesia. E a diferenga, o abismo, fentre o escrever para a primeira vor.¢ para a terceira. que mel jo est restrita Mamarice de George Eliot (1819-80). 106 T. S. ELIOT A particularidade da minha terceira voz, a voz do drama pottico, € posta em evidéncia de outro modo, com- parando-a com a vor do poeta na poesia nao dramatica que contém um elemento dramético — e de maneira conspi- cua no monélogo dramatico. Browning, num momento em que foi falho de critica, dirigiu-se a si préprio como «Robert Browning, tu, autor de pecas». Quantos de nés teremos lid alguma das pegas de Browning mais de uma ver; € se o fizemos, foi na expectativa de satisfacio? Qual das personagens das pegas de Browning & que permanece viva no nosso espfrito? Por outro lado, quem poder esque- cer Fra Lippo Lippi, ou Andrea del Sarto, ou 0 Bispo Blougram, ou o outro bispo que encomendou a sua sepul- tura? Sem examinar mais profundamente a questio, apenas comparando a mestria de Browning no mondlogo drams- tico ¢ 0 seu modesto éxito no drama, parece que as duas for- mas sao essencialmente diferentes. Haverd ainda outra voz, que eu nso tenka podido ouvis, a vor do posta dramtico cujos dons dramiticos se exercem melhor fora do teatro? E se ha alguma poesia, fora do teatro, que meresa a desig icto de ecetiniitcas, cttamente qe €a de Browning Numa pega, como disse, o autor tem de distribuir a sua solidariedade; tem de simpatizar com personagens que poderao nao scr nada simpaticas umas as outras. E. tera de distribuir a «poesia» tao largamente quanto as limitagées de cada personagem imaginivia 0 permitirem. Esta neces- sidade de dividir a poesia implica uma variagio do estilo da pocsia, de acordo com a personagem a quem é distribufda. © facto de certo ntimero de personagens de uma pega exercerem direitos sobre o autor, para a atribuigo das falas posticas, obriga-o a tentar extrait a poesia da personagem mais do que @ impor-Ihe a sua. Ora no mondlogo drama. ENSAIOS DE DOUTRINA CRITICA 107 ico nfo existe semelhante limiragio. O autor tanto poder lentificar a personagem consigo, como identificar-se com Ja, pois falta o limite que tho impediria — limite esse que onstituido pela necessidade de se identificar com outra personagem que responde & primeira. O que de facto nor- Fralmente ouvimos, no mondlogo dramatico, é a vor do poeta, que assumiu 0 trajo € a maquilhagem de uma per~ fonagem hist6rica, ou de uma personagem extraida da fic- ‘Go. A personagem tera de nos ser identificada, como indi- Miduo ou pelo menos como tipo, antes de comegar a falar. Se, como frequentemente sucede com Browning, 0 poeta fala no papel de personagem histérica, como Lippo Lippi, 1a personagem de ficgio, ‘ou no papel de uma conhecid: como Caliban ', ela apossou-se dessa personagem. Ea dife- fenca é particularmente evidente no seu poema «Caliban tupon Seteboss. Em The Tempest & Caliban que fala; em Caliban upon Setebos & a vor de Browning que ouvimos, Browning falando em vor alta, pela boca de Caliban. Foi o maior discipulo de Browning, Ezra Pound, quem adoprou 9 termo «personan para indicar as varias personagens his- t6ricas pela boca das quais falava: ¢ o rermo é preciso. ‘Artiscarei também a generalizacao, talver na verdade que o monélogo dramitico nao pode demasiado vasta, fagem. Porque a personalidade ¢ criada ¢ criar uma perso: tornada real apenas por meio da acgao, comunicagio entre pessoas imagindrias, Nao vem fora de propésito recordar gue, quando 0 mondlogo dramitico nao € posto a boca de uma personagem jé conhecida do leitor — quer seja da histéria, quer da ficgio — surge provavelmente a per gunta: «Quem seria o original» No caso do Bispo Blougram, as pessoas tém sempre sido levadas a perguntar ' Personagem de The Tempest de Shakespeare coi T. 8. ELIC até que ponto o poeta teria tentado retratar 0 Cardeal Manning ', ou outro eclesidstico qualquer. O poeta que fala, como Browning, pela sua prépria voz, nao pode dat vida a uma personagem: pode apenas imitar, por mimic uma personagem j4 nossa conhecida. E 0 interesse da imi- facdo nao reside precisamente em reconhecer a pessoa it tada ¢, portanto, na deficiéncia da ilusio? Temos de man- ter consciéncia de que o imitador e a pessoa imitada sao pessoas diferentes: se formos realmente iludidos a imitacio tornou-se personificagao. Quando escutamos uma pega de Shakespeare, nao escutamos Shakespeare mas as suas perso- hagens; quando lemos um mondlogo dramético de Browning, ‘no podemos supor estarmos a ouvir outta voz senao a do pré- prio Browning. No monélogo dramitico, portanto, é seguramente a segunda voz, a vor do poeta falando as outras pessoas, aquela que predomina. O simples facto de ele desempenhar um papel, de falar por detras de uma msscara, implica a presenga de um auditério: porque haveria alguém de vestir tum trajo de fantasia © mascara s6 para falar consigo pré- prio? A segunda voz é, na realidade, a que mais vezes ¢ mais claramente se ouve na pocsia que ndo pertence ao teatro: certamente, em toda a poesia que possui uma finalidade social consciente — pocsia destinada a divertir ou a ins= truir, poesia que conta uma histéria, poesia que prega ou aponta uma moral, ou sitira, que € uma forma de prega- $0. Pois para que serve uma histéria sem auditétio, ou um sermao sem assembleia? A voz do poeta que se dirige aos outros ¢ a voz predominante do poeta da epopeia, mas no @ sua tinica voz. Em Homero, por exemplo, ouve-se de ' Henry Edward Man 1g (1808-92), catolicismo em 1851 wcerdore anglica RINA C ENSAIOS DE DOU pos a tempos a vox dramética; hd momentos ae vimos nao Homero relatando-nos 0 que disse 0 pes a vor do proprio herdi. A Divina Comédia nao & pi mas também aqui ouvimos nao temos razao para ds fosse tao jamente uma epopeia, mens ¢ mulheres que nos fal : por que a simpatia de Milton por ae clusiva que 0 marcasse como sendo do@r Ho. de abo. Mas a epopeia ¢ essencialmente uma sndria co jaa. um auditério, enquanto o drama ¢ essencialme a acgao exibida perante um auditério. en E quanto & poesia da primeira vor — aquela que, Devo esareer que et i livremente chamamos «poes os cm verso para ser cantado — desde as ee < ampion ¢ Shakespeare ¢ Burns até as ist ie ilbert, ow letra do imo emsimero musicale, Mas api mos fambém o sermo a poesia que nunca se destinou +r musicada, ou que dissociamos da miisica: f: " mos cc faverso liticor dos poctas metafisicos', de Vash ne Marvell, assim como de Donne ¢ de Herbert prépria definigao de hrieno Oxford Dictionary indica que o te io pode ser definido satisfaroriamente: J Act mente os p¥ mentos ¢ sentimentos do préprio poet i 05, normalmente nente designa pocmas curtos, i . directa- 4 ema para Qual sera a extensio maxima de um poema par: poder ser chamado «fries? A énfase dada & brevidade ¢ a 10 assumida 1 Refere-se aos representantes seiscentistas de eerta fic pelo barroco inglés em poesia LIOT sugestio quanto a divisio em esti ncias parecem ser rest duos da associagio da voz. com a miisica. Mas nao ha rela- ao nece i entre a brevidade e a expressio dos pensa mentos ¢ sentimentos do prdprio pocta. Come unto Jellow sands’ ou Hark hark! the lark * sao «lyrics» — no é ver- dade? — mas que sentido ha em dizerse que exprimem directa- ‘mente os pensimentos ¢ sentimentos do proprio poeta? Landon, The Vanity of Huanan Wises? © The Deserted Village si0, todos cles, poemas que parecem expressar os pensamentos e sentimentos do préprio poeta, mas alguma vez pensamos neles como sendo liti- cos? Certamente que no sio curtos. Todos os poemas que refe parece nfo poderem ser classificados como liricos do mesmo modo que Mr. Daddy Longlegs e Mr. Floppy Fly niio podem ser consi- deracos como cortestos One never more can go to court, Because his legs have grown too short; The other cannot sing a song, Because his legs have grown too long! « Evidentemente que é poema lirico, no sentido de «que expressa ditectamente os pensamentos ¢ sentimentos do proprio pot, ¢ nao no sentido, totalmente distinto, de Le2. ta, Gynbeline, a. I, 3 son (1709-84), lex Su * Pocmas de tio dom rafo c critico liver do romance Daddy Longley, da escrivora norte ameri- e Jean Webster (1876-1916). poeta alemao Gottfried Benn | numa conferéncia muito A CRITICA M1. ENSAIOS DE DOUTR' pema curro destinado a ser musicado, aquele que esté rela- onado com a minha primeira vor, — a voz do poeta do para si — ou para ninguém. f neste sentido que 0 eressante, intitulada Probleme der Lyric, encara a lirica pino endo pocsia da primera vor: tenho a certeza que cle lui nesse mimero poemas como as Elegias de Duna le ke, ¢ La Jeune Parque de Valery. Portanto, quando cle «poesia irica» eu preferia falar de «poesia meditativy Pergunta Benn na sua conferéncia, por onde comers ° or de um dessestais poemas «no enderecados». Hi pri- neiramente, segundo cle, um embrido inerte ou perme iadors (cin duonpfrshipfericher Keim) e por outzo Indo, Linguagem, os recursos das palavras 2 disposigio do ponto dep ido como uma emocao em qualquer sentido comurns eer tamente que ainda menos é uma idcia; é — adaptando dois vyersos de Beddoes ? com sentido diferente — um bodiless childful of life the gloom , Crying with frog voice, «what shall I be?» * Gottfried Benn (1886-1959), poe um dos grandes repre- antes do Expressionismo. i _ aot Lovell Beddoes (1803-49), dramaturgo ingles * sem-corpo, prenke a vida, no escut 2 T. S. ELIOT Concordo com Gottfried Benn, ¢ iria mesmo mais longe Num pocma que nio seja diddctico nem narrativo, nem animado por qualquer outra finalidade social, 0 po poderé estar interessado apenas em expressar por meio do vvets0 — servindo-se de todos os seus recursos em pal com a sua histér tsica as suas implicagées, a su © seu impulso oculto.@Qa0SabEGueR ter ditoye no esforso de o dizer nao esté interessado em fazer as outras pessoas compreenderem alguma coisa. Nesta ae ouvir ou nao, ou se alguém jamais as enten- Jeri, contanto que cle as entenda. Opri peso . Oprime-o um peso que cle deve dar & luz para conseguir imagem, ele € persegut por um demonio contra 0 qual se sente indefeso, porque na sua primeira manifestagao nao apresenta rosto, nem nome, nem coisa © poema que fizer, serao como que um exorcismo contra esse demsnin (Ainda por outras'palavras, todo o esforgo do _poeta no € para comunicar com ninguém, mas para con- seguir alivio de um profundo incémodo}e quando as pala- vras estiverem por fim convenientemente arrumadas — ou da maneita que ele vier a considerar como a melhor que pode encontrar —, talvez ele experimente um momento de exaustao, de apaziguamento, de absolvigio ¢ de qualquer coisa muito parecida com aniquilamento, que serd, ela prd- ePriay indeseritively!* encac podera dizer a0 poema: «Vai-te! Procura lugar num Livro — e nao-esperey GUE Ga me forne eressar por ti.» Nao ercio que se possa estabelecer com mais clareza a linha que vai do poema até As suas origens. Podereis ler os ma; as palavras, ENSAIOS DE DOUTRINA CRITICA 13 os de Paul Valéry, que estudou os processos do seu pirito com maior perseveranga do que qualquer outro ppoeta. Mas se, partindo daquilo que os poctas vos rentam i pela investigasio biografica, com ou sem os ins- lizer, ou Tmentos do psicdlogo, tentarmos explicar um poema, da vex mais do festaremos provavelmente a afastar-nos ca Jpoema, sein atingir qualquer outro destino. A tentativa para explicar um poema indo até as suas origens desviaré a frengao do poema, fazendo-a convergir para outra coisa uc, na forma em que pode ser apreendida pelo critico € pelos seus Iecitores, nao tem qualquer relagéo com 0 poema t nao lanca luz sobre cle. Nao quero que se julgue que estou a tentar transformar a composigao de um poema lidade ¢ @IGWEReRER> Se num mistério maior do que na real _ =| = = “A mais falhada forma de obscuridade éa do poet io; a mais falsa é 0 ‘tem algama coisa para dizer, ¢ nao tem. Pee aq arena Cee RITE voz, a bem da simplicidade, como se fossem teciprocamente exclusivas: como se 0 poeta, em qualquer poema determinado, falasse on. pata si, ou para os outros, € como se nenhuma das dss primeiras vozes fosse audivel no verso dramsatico bom. F € eya, na verdade, a conclusio a que 0 argumento de Herr Ja como se a poesia da primeira idera como sendo, de Benn o parece levar: cle fal vor — que cle, ainda para mais, con modo geral, um produto do nosso tempo — fosse uma teiramente diferente da voz. do poeta espécie de poesia int que se ditige a um auditério. Mas, para mim, as vores ua pS. ELIOT encontram-se na maioria dos casos juntas — quero dizer a primeira e a segunda na poesia no dramAtica, ¢ as duas, juntamente com a terceira, na pocsia dramética também. Ainda que, conforme defendi, 0 autor de um poema o tenha escrito inicialmente sem pensar num audit6rio, cle querer também saber o que é que 0 poema que o satisfer a ele dird a outras pessoas. Havers, em primeiro lugar, aquele punhado de amigos a cuja critica ele podera querer submeter 0 poema antes de 0 dar por terminado. Podem ajudar bastante, sugerindo uma palavia ou frase que autor nao tenha conseguido achar pelos seus proprios meios; embora melhor servigo que possam prestar seja, tal- vex, 0 de dizerem simplesmente: «este passo nao serve» — confirmando deste modo uma suspeita que © autor vinha climinando da sua prépria consciéncia. Mas nao estou a pensar principalmente nos poucos amigos criteriosos euja opinio o autor preza, mas sim no auditério maior ¢ des- conhecido — gente para quem 0 nome do autor apenas significa aquele seu poema que leram. A entrega final, por assim dizer, de um poema a um auditério desconhecido, para esse auditorio dele se servir, parece-me ser a consuma- 40 do processo iniciado na solidao e sem pensar no audi- tério, do longo processo de gestagao do poema, porque marca a separagao final do poema, do seu autor. Deixemos © autor, nesta altura, descansar em paz, Isto quanto a0 poema que € essencialmente um poema da primeira vor. Julgo que em todo 0 poema, desde a meditagao privada até & epopcia c ao drama, se pode ouvir mais de uma vor. Se o autor nunca falasse para si, 0 resultado jamais seria poesia, ainda que fo espléndida retérica, ¢ uma parte do prazer que encontramos na grande poesia ¢ o pra- ENSAIOS DE DOUTRINA CRITICA de ouvirmos palavras que nao nos eram dirigidas Mas =o poenia fosse exchusivamente para 9 auton envio seria poema numa linguagem privativa e desconhecidla,¢ un penas para o seu autor, acabaria por nao ie 0 fosse " Fpoer 2 poético inclino-me a acre- ema de todo. F no dram: o-me ie que todas as trés vozes sio audiveis. Em pe pe aivor de cada personaget — uma vor individual diferente da de qualquer outra personager, de eal modo que, de cada fala, possamos dizer que no poderia ter vindo senso ucla personage. Poderio soar, de tempos a tempos ¢ talver, mesmo quando menos disso nos aperecbamos, 3s sores do autor ¢ da personagem em unfssono, dizendo alg rsonagem, mas dizendo ao mesmo tempo deria dizer ele proprio, embora mente mesmo signi er uma coisa muito dife- personagem um mero que convenha 4 pe! alguma coisa que 0 autor po as palavras talvex nao renham prec ficado para os dois. Isso poder’ rente do ventriloquismo que torna a as ou sentimentos do autor. porta-vor das ide: To-morrow and to-morrow and to-morrow. que © a surpresa perpétuos destas Shakespeare e Macbeth pro- m_ sentido Nao constituiro o cho palevras bans a prova de que Shakespears ¢ Ma ferem palavas em unison, embora talver com sencid uum tanto diferente? E, por fim, temos aqueles versos, ce pegas de um dos supremos poctas draméticos, ein duc podemos ouvir uma voz ainda mais impessoal do q tanto a da personagem como a do autor Ripeness is all * ou \ Macbeth, a. V.c.5- 2 Amadurez é tudo (King Lear, a. V, © 2) 116 S. ELIOT Simply the thing Lam Shall make me live wend B80 gostarn de volar por momento » Gosied € a0 seu material psiguico, desconhecido e sombrio — poderiamos dizet, o anjo ou o polvo com o qual o poeta se debate. Eu sugiro que, entre as urés espécies de poesia que correspondem as minhas trés vozes, existe uma certa diferenga de proceso. No poema em que predomina a pri- meira voz, de pocta falando para si, o «material psiquicos cende a crara sua prépra forma —a forma eventual ct em maior ou menor gra, a forma para esse pocma ¢ nenhum outro. E equivoco, evidentemente, falar do mate rial como criando, ou impondo, a sua prépria forma: 0 qu se dd Ein dcrenvoliieneno iinlnco de fortaa eaves rial; porque a forma afecta 0 material em todas as fases; ¢ talver.que o material se limite a dizer «isso no! isso nao!s, em face de cada tentativa mal sucedida para a organizaca formal; ¢ por fim o material identifica-se com a sua forma, Mas na poesia da segunda e da terceira vozes a forma est em certa medida, jé dada de antemSo. Por muito que possa ser transformada até poema estar concluido, pode dade inicio ser representada por esquemas ou «cenirion. Se resolvo escrever uma histbria, devo ter alguma ideia do argu mento da hstia que me proponho comtar, se me lingo na sétira, na moralizagao ou na invectiva, jé existe algui Re que eu sou capaz de reconhecer e que existe para outros além de mim. E se me decido a eserever uma pega, comeso po um acto de escola: eoncentrorme numa determinada stu ago emocional, da qual hio-de emergir personagens e argu- ' Apenas a coisa que sou / Me is Well That E> ea 1 Me fara viver. (AU's Well That Ends Well INA CRITICA 7 ENSAIOS DE DOU mento, ¢ posso de antemao fazer um esquema em pros — por muito que o esquema venha a ser alterado até eu com- plerar a peca, devido a0 comportamento das personagens ty desenvolvimento. FE, provavel, evidentemente, que de inicio seja a pressio de um rude ¢ desconhecido material ‘pslguico que oriente 0 poeta no sentido de contar aquela historia, de desenvolver aquela situagio em especial. E, por outro lado, a estrurura adentto da qual o auror preferiu tra- balhas, poders, uma ver escolhida, cla propria evocar outro material psiquico; ¢ entio, poderio surgir versos, nao oti- undos do impulso original, mas de um estimulo secundrio do espirito nao consciente. O que interessa € que, no final, as vozes sejam ouvidas em harmonia; e, como ja disse, duvide que em qualquer auténtico poema se possa ouvir apenas uma voz. Por esta altura talvez os leitores jé tenham perguntado a si mesmos onde é que eu quis chegar, com todas estas espe- ou estado a tecer uma tcia laboriosa de inge- culagées. Terei nuidade inti? Bem, procurei conversar, ni comigo — como poderiam ser tentados a julgar — mas com o leitor de poesia, Gostaria de pensar que talver interesse ao Heitor de poesia por & prova as minhas afirmagbes nas suas leitura. Serio os leitores capazes de distinguir estas trés vozes na poesia que léem ou que ouvem recitar, ou que ouvem no Featro? Se vos queixais de que um poeta € obscuro, que aparentemente ignora o leitor, ot que fala apenas para um ntimeto limitado de iniciados de que nio fazeis parte — lembrai-vos de que o que o poeta pretendia fazer talvez fosse exprimir por palavras aquilo que nao poderia ser posto de nenhuma outra forma, ¢ portanto numa lingta- gem que pode valer 0 trabalho de @ aprender. Se o leitor se queixa de que certo poeta ¢ demasiadamente retérico, ¢ 118, T. 8. ELIOT. que se nos dirige como se se dirigisse a uma reuniao pabl tente pr-se A escuta daqueles momentos em que ele nao fala para si, mas em que apenas consente que o ougam: pode ser um Dryden, um Pope ', ou um Byron. F se tiverdes de ouvir uma pega em verso, aceitai-a primeiramente pelo seu valor nominal, como um entretenimento, com cada uma das per- sonagens a falar por si propria, com o grau de realidade que 0 seu autor porventura lhe tenha podido conferir. E possivel que, se se tratar de uma grande pega, € se nao vos esforgardes demasiado por ouvi-las, consigais distinguir também as outtas vores. Porque a obra de um grande dramaturgo poe tico, como Shakespeare, constitui um mundo. Cada perso- nagem fala por si, mas nenhum outro poeta teria sabido encontrar aquelas palavras para ela pronunciar. Se buscais Shakespeare, apenas o encontrarcis nas figuras que criou; pois a caracteristica que as suas personagens tém de comum é que ninguém, sendo Shakespeare, teria podido criar qualquer delas. O mundo de um grande dramaturgo poético € um mundo cm que o criador esta presente em toda a parte, eem toda a parte oculto. " Alexander Pope (1688-1744), o mais representative poeta inglés do neo-classicismo ¢ fiel apologista das «rcgras» que o informavam. AS FRONTEIRAS DA CRITICA

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