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Copyright © 2022 by Victoria Mendes

Capa Victoria Mendes


Ilustrações Victoria Mendes
Diagramação Victoria Mendes
Revisão Hillary Lancaster
Fotografia Iris Arruda (@photo.iriss)

Os personagens e acontecimentos narrados neste livro são


inteiramente fictícios. Qualquer semelhança com a realidade é mera
coincidência e não intencional por parte da autora.

Todos os direitos desta edição são reservados à autora.


Fica terminantemente proibida a reprodução total ou parcial,
através de quaisquer meios.
“Alguns homens dizem que uma frota de navios é a coisa mais
bela.
Digo que é o amor.”

- Safo de Lesbos
Prólogo
Nove anos atrás

“Mocinhas não devem empunhar espadas.”


A voz fanha e aguda de Pauline, minha babá, ressoava em
minha mente entre uma investida ou outra. O fato de ser um
escândalo que eu fosse vista brincando com uma “arma” era
um dos motivos pelos quais meu irmão e eu precisávamos nos
esgueirar para além dos limites do palácio para nos divertir.
Passando por uma falha no muro e dentre as árvores, havia
uma clareira pequena e silenciosa. O nosso esconderijo
secreto.
A ponta cega da curta espada de Nathan estava a pouco
centímetros do meu rosto, bloqueada pela minha. Ele me
direcionou um olhar frustrado e eu sorri de canto. Mesmo
usando um vestido apertado, ainda era mais rápida que ele.
Minha arma era mais velha e mais leve, portanto, menos firme.
Eu precisava me esquivar da posição antes que o metal
acabasse se partindo em dois. Nathan vinha ficando mais alto e
forte nos últimos meses e o jeito com o qual ele estava
debruçado sobre a lâmina a fazia abaular.
De tão perto, dava para reparar na penugem escura que
crescia em torno da boca e se espalhava pelo rosto do meu
irmão, que era tão pálido quanto o meu. Ele viu que notei e se
encolheu, envergonhado. Aproveitei-me de sua distração para
me abaixar bruscamente e deixá-lo cair sobre a terra úmida e
avermelhada do gramado. A grama era bastante rasa nessa
parte do terreno, então as chuvas constantes faziam formar
grandes poças lamacentas e escorregadias. Nathan por pouco
não se afundou numa dessas, mas seus joelhos e suas mãos
ficaram tão sujos quanto a barra do meu vestido.
Não consegui segurar o riso quando ele se pôs sentado e
me encarou de longe com aquele semblante derrotado.
— Você é uma trapaceira, Di — resmungou, balançando a
cabeça e rindo também, por fim. — Se fosse um torneio de
verdade, estaria desclassificada.
— Se fosse um torneio, meu oponente teria uma barba de
verdade e não um monte de fiapos.
— Espere alguns anos e verá. Você vai desejar ter uma
barba como a minha.
Fiz uma careta.
— Não mesmo, obrigada.
Ele riu outra vez.
— Vem, me ajuda a levantar.
Aproximei-me de Nathan, mas me lembrei de que as mãos
dele estavam imundas antes de estender a minha.
— Limpe as mãos.
Ele olhou as palmas e consegui ver a ideia diabólica surgir
em sua mente. Meu irmão se colocou de pé com a agilidade de
uma raposa e passou a correr atrás de mim, com as mãos sujas
de terra. Estávamos rindo tanto que acabei descuidando e
escorregando numa poça rasa de lama. Tive certeza de que
ralara meus cotovelos, mas meu corpo estava tão quente e
Nathan se debruçou sobre mim tão rápido que não houve
tempo para sentir dor. Ele levou as mãos sujas direto para as
minhas bochechas e retribuí o favor agarrando um punhado de
lama e espalhando por seus cabelos. Nós dois sabíamos que
estávamos encrencados, mas parecia tarde para se arrepender.
Havia lama por todas as partes, e nem o mais sagrado dos
milagres seria capaz de remover as manchas avermelhadas de
nossas roupas.
— Nós nunca mais vamos poder voltar pra casa — disse
Nathan, quando as risadas cessaram. Minha barriga doía.
Me coloquei sentada ao seu lado e abracei meus joelhos.
— O que você sugere? Que desçamos para cidade e
passemos a viver como pedintes?
— Ou ladrões.
— Nate, você não consegue nem me vencer numa luta de
espadas! Acha que conseguiria enfrentar meia dúzia de
guardas se fôssemos pegos roubando?
Ele revirou os olhos e deu um soquinho no meu ombro
direito.
— Eu já te venci. Algumas vezes...
— Poucas.
— Não importa, tá bem? Sou bom em outras coisas.
— Claro que... Au! — soltei um gritinho quando meus
cotovelos ralados começaram a arder sob a lama meio seca.
Nathan me olhou assustado e eu mostrei os ferimentos. O tule
do vestido abrira-se em rasgos feios, agora sangrentos e
enlameados. — Pauline vai me matar.
— Sorte a sua. Papai vai me pendurar pela gola da camisa
numa lança e me jogar no lago quando souber que estou
faltando às aulas de Geografia Política.
— Queria ter aulas de Geografia Política.
— Bobagem. É só um monte de histórias sobre pessoas
brigando por causa de território e religião. Guerra, guerra e
mais guerra.
— Pode ser, mas bordado e Literatura Romântica são um
saco!
Revirei os olhos e me coloquei de pé. O sol cada vez mais
próximo do horizonte indicava que era hora de voltar se
quiséssemos aproveitar a claridade. Recolhi do chão a minha
espada e a levei até o monte de folhagens secas que eu usava
para mantê-la longe dos olhos da minha família. Nathan veio
logo atrás de mim e começamos a caminhar de volta para a
casa, pela trilha dentre as árvores.
— Sinto falta de quando podíamos trocar de lugar. Mas você
tinha que cortar o cabelo e deixar crescer essa penugem
terrível, não é? — reclamei.
— E ficar mais alto e mais forte, não se esqueça. — Ele riu e
deu uma piscadinha, cutucando-me com o cotovelo. — Eu
gostava de usar seus vestidos. Era refrescante... lá embaixo.
— Que comentário desnecessário.
Nate riu outra vez.
— Acha que um dia pode ser como era quando éramos mais
novos? Quero dizer, sinto que temos cada vez menos tempo
juntos, Di.
Ele abaixou o olhar, chateado. Nathan e eu éramos
parecidos em muita coisa, mas inteiramente diferentes em
outras. Ele sempre fora o mais sentimental de nós dois, porém
a ligação que tínhamos desde quando dividíamos o berço, fazia
com que eu soubesse dizer quando ele se sentia incomodado
ou triste. Aquele era um dos momentos, por isso, joguei um dos
meus braços sobre os ombros dele e o trouxe para mais perto.
— Estão te preparando para se tornar rei, certo? Pois então,
quando você for coroado, e mandar em tudo igual o nosso pai,
vamos poder ficar juntos o quanto quisermos.
Nate recebeu minhas palavras com um sorriso largo.
— Vai ser meu segundo decreto.
— Ah, é? E qual vai ser o primeiro?
— Vestidos para garotos, sem sombra de dúvidas.
Nós demos uma última gargalhada antes de passarmos
outra vez pela pequena falha no muro e retornarmos para o
palácio, conscientes dos castigos inevitáveis que viriam.


Pauline quase teve uma síncope quando me encontrou
coberta por lama nos corredores. Me puxou pela orelha e me
jogou um balde de água antes de me enfiar dentro da tina.
Mesmo que já fosse uma senhora em seus cinquenta, tinha
uma força impressionante nos braços. Minha pele ficou
avermelhada de tanto esfregar com sabão e meus cotovelos
ardiam como se picados por formigas-fogo. O vestido estava
arruinado para sempre.
— Ah, Diane, o que seus pais diriam se a vissem nesse
estado? — perguntou Pauline, enxaguando a lama dos meus
cabelos e os desembaraçando com uma escova. — Uma
menina não...
— ...deve brincar na lama. Acertei? — Encarei-a com olhos
semicerrados e um sorriso travesso nos lábios.
Ela respondeu à minha irreverência com um puxão um
pouco mais forte da escova.
— Exato. E muito menos uma princesa.
— Foi só uma brincadeira! Mocinhas não podem se divertir?
Pauline resmungou entre dentes.
— Você vai se tornar uma mulher em breve, Vossa Alteza.
Os rapazes vão passar a te olhar diferente e olhará diferente
para eles também. Só então, vai entender o que quero dizer.
Mais do que rapidamente, coloquei a língua para fora e fiz
som de vômito.
— Não quero rapaz nenhum olhando para mim. E não vou
olhar para eles também, posso garantir.
— É o que diz agora, mas mudará de ideia, garanto. A não
ser que queira se tornar uma solteirona como eu, cuja principal
ocupação na vida é tomar conta de uma certa princesinha
malcriada.
— Pensei que gostasse de mim. ― Fingi-me chateada.
— Gosto. Gosto bastante. A última missão que Deus está
me dando é te colocar nos eixos e te educar para ser uma
princesa digna, Diane, e é por isso que amanhã você não sai da
minha vista nem por um segundo.


No dia seguinte, fui trancada na sala de estudos com a
minha punição de copiar seis vezes os parágrafos sobre boas
maneiras do Código de Etiqueta para Damas. Pauline sentou-
se numa poltrona a alguns metros da minha escrivaninha com
uma bandeja de chá de camomila para me observar. Ela caiu
no sono alguns minutos depois, mas guardou a chave dentro de
uma almofada sob o seu assento.
Eu devia terminar tudo se quisesse sair dali, mas não
estava nem perto. Eram parágrafos extensos, quase cinco
páginas de linhas e mais linhas sobre como uma mulher deve
se comportar. Muitos deles eu já tinha decorado de tanto ler e
copiar.
“Não correr.”
“Não falar alto demais.”
“Não falar baixo demais.”
“Não sujar suas vestes.”
“Não expor opiniões pessoais quando não solicitadas.”
E mais um monte de outras “regras” que jamais fariam
sentido para mim.
Um hora depois, batidinhas na porta me distraíram da
minha chateação. A voz de Nathaniel, do outro lado, me fez
pular da cadeira com um salto.
— Di, você está aí? — perguntou, murmurando. Pela
vibração da voz, senti que ele estava com o rosto colado na
madeira.
— Estou. De castigo, é claro. — Revirei os olhos e encostei
meu ouvido na porta também.
— O que você pegou dessa vez?
— Código de Etiqueta. Os parágrafos sobre boas maneiras.
Seis vezes para ficar livre. E você?
— Ajudar a limpar os estábulos e carregar lenha por três
dias. Mas já terminei por hoje. Acha que consegue roubar a
chave?
Suspirei. Até mesmo o castigo do meu irmão era menos
tedioso que o meu.
— Não dá. Pauline está com o traseiro em cima dela.
— Droga. Quantas vezes você já copiou?
— Uma e meia.
Ouvi-o bufar, quase tão frustrado quanto eu.
— Bem... Até logo, então.
— Até logo, Nate.
Ouvi seus passos se afastando dali e voltei pesarosamente
para o meu castigo. Aquelas páginas não iam se preencher
sozinhas, afinal.

Algum tempo mais tarde, quase no fim do dia, quando eu


estava iniciando a quarta cópia, folhas e mais folhas foram
passadas por debaixo da porta. Eram todas com a caligrafia
bonita, porém apressada de Nathan. Ele havia feito metade das
cópias para mim e, por mais que Pauline fosse desconfiar, o
gesto do meu irmão fez meu coração aquecer.
I
Ventos fortes anunciam tempestades. Sei disso porque Elle
me disse uma vez. Ela navega como ninguém. Há histórias e
mais histórias sobre como a ruiva já conduziu viagens
arriscadas e desviou de redemoinhos e rochedos marinhos,
sem nunca perder o controle do barco, mesmo durante intensas
tempestades.
Mas o capitão do Achille não é Danielle e a ventania sulista,
que assopra a proa, me preocupa um tanto. Achille é um dos
navios da coroa, o mais bonito deles. Suas velas claras
contrastam com a madeira negra que o reveste por inteiro e
com as flâmulas verde-esmeralda hasteadas em cada um dos
mastros. É uma visão de tirar o fôlego, especialmente do lado
de fora. Se o olhá-lo de frente, enxergará a guirlanda de
narcisos esculpida e pintada por um tom reluzente de dourado.
Faz três dias que estamos em alto-mar, a caminho da Itália,
para uma negociação de acordos militares. O casamento do
meu irmão foi há apenas uma semana e minha família decidiu
sair às pressas, para retornarem o quanto antes e se ocuparem
com outros assuntos diplomáticos que exigiam a atenção do rei.
O norte estava com problemas outra vez, na fronteira com a
França. Marselha quer transformar nosso reino em seu porto
particular, mas jamais permitiremos que aconteça.
Quero dizer, eles não permitirão. Meu pai — o rei Henrich
—, o príncipe, o Conselho e os militares. Não posso me
envolver em assuntos políticos que vão além de alianças por
casamento ainda que, vez ou outra, meu irmão me peça
discretamente para ajudá-lo a lidar com algumas estratégias de
contenção. Graças a uma ideia minha, a coroa conseguiu
incentivar a migração de pessoas para habitar a fronteira e
controlar as terras que estavam sendo vendidas para
marselheses. Me pareceu meio óbvio que, se você reduzir
impostos e criar empregos numa região, as pessoas vão se
sentir propensas a ir para lá e, as que já estão, vão querer
permanecer.
Mas ninguém jamais saberia que isso saiu da minha cabeça
e não da de Nathaniel. Mesmo que ele seja um cara decente
demais para se orgulhar de levar crédito pela ideia dos outros,
concordamos que era melhor que ninguém soubesse que o
príncipe estava se aconselhando com a irmã para tomar suas
decisões. O futuro rei poderia ficar desmoralizado, afinal.
Além do mais, não poderia me importar menos com o que a
Corte e a nobreza pensam sobre mim. Agora, é só uma questão
de poucos meses para que eu vá para a Ilha da Deusa e
ninguém no reino inteiro, além de Madame Tine, saiba para
onde foi a princesa.
— Acho que vamos enfrentar uma tempestade — diz meu
irmão. Ele está de pé ao meu lado e estive tão dispersa em
pensamentos que não o ouvi chegar. — Não gosto nada desse
vento.
Viro o rosto para enxergá-lo tentando se livrar dos fios que a
ventania insiste em assoprar para o seu rosto. O cabelo dele
não é grande o suficiente para ser preso, nem pequeno o
suficiente para não cobrir os olhos quando bagunçado. Ainda
que Nathan seja mais alto e uma barba curta cubra parte de
seu rosto, temos os mesmos olhos claros, a mandíbula pontuda
e o maxilar marcado. Não é como me olhar no espelho, mas é
algo bem perto disso.
— Você parece mesmo preocupado — digo, voltando meu
olhar para as linhas agitadas do oceano. — Mas eu diria que
não é só por conta da tempestade.
— Intuição de gêmea? — Ele arqueia as sobrancelhas
grossas.
— Sim. E sua perna direita, que você não para de balançar
desde que embarcamos. Sempre faz isso quando está nervoso.
Ele fica estático no instante em que digo, então abaixa a
cabeça para que eu não veja que seu rosto está vermelho e
deixa escapar uma risada baixa.
— Agora que sou um homem casado, as pessoas esperam
ainda mais de mim. Preciso agir como o sucessor que vou ser.
Ter mais seriedade, imponência...
— Filhos.
— Filhos. — Nathan ri. — Muitos deles, para compensar que
nós dois demos um fim a extensão dos Aubert.
Depois que eu e Nathaniel nascemos, nossos pais não
puderam conceber outros filhos. A rainha teve uma gravidez
difícil e um parto, mais difícil ainda, que a deixou estéril. O rei
sempre dizia aos quatro cantos que “ao menos havia vindo um
menino junto, como compensação divina”.
— Boa sorte com isso.
— Vou me lembrar desse seu tom de deboche quando for a
sua vez.
Torço o nariz para ideia. Ele não faz a mínima ideia de que
estarei a mares de distância antes que isso seja sequer uma
possibilidade.
— Quanto rancor. — Suspiro. — Você não era assim.
Há muito sobre meu irmão que, nos dias de hoje, mal
consigo reconhecer. Já faz um tempo que não temos a mesma
relação que tínhamos, porque os anos nos afastaram
gradualmente conforme nos esforçávamos para cumprir com as
expectativas impostas em cada um pelo mundo ao nosso redor.
E, ainda que isso me ajude a me distanciar emocionalmente da
figura que ele jamais voltará a ser, também é doloroso saber
que um dia já significamos tanto um para o outro.
— Vê aquilo ali? — Aponto para o horizonte, onde há um
punhado de nuvens cinzentas. Estamos navegando na direção
delas, o que faz com que se aproximem cada vez mais rápido.
— É a nossa tempestade.
— Vou avisar o rei, mas acho que o capitão Matthieu tem
tudo sob controle.
— Tudo, exceto o rei — brinco.
— Seria mais fácil controlar a tempestade. — Ele ri junto
comigo e, em seguida, volta para o compartimento interno.
Nosso pai tem pressa para chegar em Toscana e mais
pressa ainda para retornar para Sealaena. Não vai gostar nada
de saber que as nuvens estão conspirando contra os planos
dele.
A grande massa cinzenta avança sob o céu e está próxima o
suficiente para que eu consiga ouvir o eco de trovoadas. O fato
de estarmos na água, e não em terra firme, torna o som ainda
mais ameaçador. Mas tenho também memórias boas com
tempestades. É inevitável que eu me lembre de Flora e de
como nosso primeiro beijo aconteceu durante essas mesmas
circunstâncias climáticas. O mundo estava cinzento ao nosso
redor, mas nossos rostos corados como nunca. Se me
concentrar, consigo sentir os lábios dela nos meus outra vez e,
agora, tudo em que consigo pensar é em como estou
desesperada para beijá-la de novo.
A capital de Toscana é Florença, que não é o nosso destino,
mas talvez eu consiga convencer meu irmão a me acompanhar
para que eu conheça a cidade que inspirou o nome da garota
por quem eu sou apaixonada. Claro que eu não usaria esse
argumento para introduzir o assunto, porque Nathan jura de pés
juntos que meu desejo secreto por mulheres morreu depois dos
quinze anos. Foi na época em que percebi que a nossa relação
começou a ruir, e alguns segredos se tornaram delicados
demais.
É quando o navio começa a balançar com uma intensidade
crescente que eu percebo o quão próximos estamos de sermos
cobertos pelas nuvens. A água está escura e agitada, atirando-
se contra as laterais da embarcação como se quisesse subir a
bordo.
— Peço que Vossa Alteza se junte aos outros na cabine —
diz o capitão Matthieu, pousando uma de suas mãos sobre o
meu ombro. Há membros da tripulação por todos os lados, mas
é claro que, para uma princesa, aqui fora ficará perigoso
demais. — Vai chover.
Seguro um sonoro “Não brinca!” na ponta da minha língua e
entre meus dentes. O vento está uivando e soprando respingos
nos nossos rostos, as nuvens estão escuras e há o som de
trovões. Ainda assim, ele sentiu a necessidade de me explicar o
óbvio.
— Já vou — respondo, calma.
Ele me observa enquanto me debruço sobre o guarda-corpo,
curioso e espantado. Inspiro fundo, mas não há nenhum cheiro
que não o da maresia. Não é como quando chove na terra. A
chuva no mar não traz nenhuma sensação nova além da
umidade, do frio e um tanto de medo. Só me dou por satisfeita
quando os primeiros pingos grossos começam a correr pelo
meu rosto e por todo o convés.

— Você deveria ter entrado antes da chuva começar —


resmungou minha mãe, cobrindo meus ombros com uma toalha
felpuda. — Vai acabar resfriada.
— Eu nem me molhei tanto — digo, erguendo a toalha para
secar meu cabelo. — Já vi chuvas piores.
A cabine principal está silenciosa demais para um lugar com
tanta gente. É um compartimento largo, com uma escrivaninha
de madeira fixa ao piso, lamparinas de teto nos quatro cantos,
cujas chamas se agitam pelo sacolejar do navio. O som das
ondas se chocando contra o casco nunca fica menos
assustador, mesmo que essa não seja a minha primeira vez
passando por uma tempestade em alto-mar. A maior parte dos
itens soltos estão guardados em baús para que não se
quebrem ou acabem nos atingindo. O rei, meu irmão e o
marechal Thibaud Cartier encaram um mapa pregado à mesa e
se equilibram de pé como podem, enquanto Anika — a esposa
de Nathaniel — está sentada num banco de tábua atado ao
piso e tenta ler um livro, cujo título não consigo decifrar, porque
está em alemão. Ela é uma moça quieta, de cabelos tão ruivos
quanto eram os de Sophie, e branca como se só tivesse visto o
sol através de pinturas. Vez ou outra, ela troca olhares com
Nate e depois volta para sua leitura com um pequeno sorriso.
Ao menos os dois parecem se gostar, penso, sozinha. Eles
trocaram cartas antes de se verem naquelas noites de baile e
ela veio da Suíça para conhecê-lo. Não tivemos muitas
oportunidades para conversar, mas ela me parece ser uma
daquelas garotas, boas até demais, que não ousariam
transgredir uma regra nem que suas vidas dependessem disso.
Não é um defeito, só que não desperta exatamente o meu
interesse em iniciar uma conversa.
— Tempestades são a parte mais terrível dessas viagens
longas — diz a rainha Elise, sentando-se perto de Anika. —
Sabe-se lá quando vai passar, ou quando enfrentaremos outra.
— Espero que um dia exista um jeito de prever esse tipo de
coisa — suspirou a ruiva, sem tirar os olhos do livro.
— Aposto que as bruxas conseguem — brinco, e elas me
olham espantadas.
— Diane Robin! Isso é coisa de se dizer? — diz mamãe. —
Que Deus não te escute.
Anika deixa escapar uma risada baixa, mas é interrompida
por um solavanco forte do navio que atira uma das lamparinas
contra o chão. Ela não se quebra, mas apaga e deixa a cabine
¼ mais escura. Minha mãe me olha como se a culpa fosse da
minha boca suja.
É possível, por milissegundos, assistir, pelas escotilhas, um
raio cortando as nuvens. O estrondo vem logo em seguida,
indicando que ele está mais perto do que imaginamos.
Há uma batida urgente na porta da cabine, fazendo com que
toda atenção se direcione a ela.
— Quem está aí? — pergunta meu pai. — Capitão
Matthieu?
— Vossa Majestade. — Arquejando, o homem abre a
passagem. Ele está encharcado dos pés à cabeça, seu rosto
branco se tornou azul por conta do frio. — Não dá mais para
seguir. Vamos ter que ancorar.
Com a fala dele, lembro-me de Danielle explicando os
motivos pelos quais a decisão mais sábia durante uma
tempestade é se manter ancorado num lugar em mar aberto. As
ondas são traiçoeiras e com a embarcação em movimento é
mais fácil perder o controle; além do mais, há pouca visibilidade
e pode haver obstáculos no caminho que, quando avistados
pela tripulação, seja tarde demais para desviar.
— Bobagem, capitão. Devemos estar quase no fim da
tempestade. Vamos seguir.
— Mas, Majestade... — protesta o capitão.
— Escute, Matthieu, não há o porquê perder tempo.
Precisamos estar em solo italiano o quanto antes. Toque o
barco até que chegue à noite e, aliás, é só uma chuvinha —
respondeu, impassível.
No plano de fundo, um trovão estrondoso ruge, como se a
tempestade protestasse por estar sendo tão subestimada.
— Ele tem razão — intervenho, levantando a voz, para o
espanto de todos na sala. — Se o temporal piorar, o barco pode
virar ou bater em algum...
— Se piorar, — o rei me interrompe — então ancoramos.
Essa é uma rota mapeada e o que diabos você sabe sobre
navegação, Diane?
Seu tom é impaciente, raso e cortante.
— O suficiente para saber que devemos escutar a
autoridade a bordo.
— Muito bem. A autoridade sou eu, e eu digo que
seguiremos até a noite. Capitão, retome o leme imediatamente.
— Matthieu então se retira como se evaporasse em fumaça. —
E você — o rei Henrich aponta em minha direção — não faça
isso novamente. Não se intrometa nos assuntos dos homens.
II
Meu pai não poderia estar mais enganado. O temporal não
dá nenhuma trégua e, em poucos minutos, a água do convés
começa a escorrer para as cabines superiores e os solavancos
do barco ficam cada vez mais intensos e frequentes. Mesmo do
lado de dentro, dá para escutar e ver de relance, pelas
escotilhas, o quão furiosos estão o céu e o oceano. Um raio
caiu tão perto que causou um zumbido insistente em meu
ouvido.
Temos que nos segurar por partes fixas na parede e no chão
para não nos machucarmos e minha mãe já está rezando
baixinho, de olhos fechados. As barras dos nossos vestidos
estão encharcadas e, em breve, a parte de dentro dos nossos
sapatos também vai estar. Mas o rei não toma nenhuma atitude,
até que uma das lamparinas cai sobre a cabeça calva do
marechal Cartier e abre um corte em sua testa. Agora, estamos
mais 1/4 no escuro.
— Já basta. Vou ordenar ao capitão que ancore — anuncia
o monarca, contrariado. Com a embarcação chacoalhando, é
complicado se locomover, então seu esforço para pisar firme
até a porta parece meio cômico. — Continuaremos o curso pela
manhã.
Falta pouco para que todos suspirem aliviados. A rainha até
interrompe suas preces de súbito.
— Deus nos ouviu — ela diz, assim que meu pai deixa a
cabine e a porta se fecha.
— E teria nos ouvido mais cedo se Diane tivesse ficado
quieta — diz meu irmão, com um sorrisinho ordinário brincando
nos lábios. Eu reviro os olhos. — Você sabe que o velho
detesta ser contrariado.
— Bom, eu também detestaria ter virado comida de peixe,
então...
— Quanto exagero, Diane — resmunga mamãe. — O pai de
vocês é teimoso, mas não colocaria a família e a tripulação em
perigo dessa maneira.
Balanço os ombros, desviando meu olhar para qualquer
outro canto. Não quero discutir o assunto, porque o problema já
está sendo resolvido. Meus braços e minhas pernas estão
exaustos de tanto me manter segura. Tudo que eu preciso é me
esticar sobre um colchão. Um que não esteja ensopado, de
preferência.
— Tivemos muita sorte — diz o Marechal, pressionando um
lenço úmido contra sua testa cortada. — Se encontrássemos
rochas...
A fala dele é cortada por um baque estrondoso de tábuas se
partindo. O impacto do que parece ser uma batida atira todos
dentro da cabine contra uma das paredes e tomba o barco num
ângulo que quase alcança a horizontal; a tempestade ruge tão
alto lá fora que abafa os gritos da rainha. Tudo acontece rápido
demais e logo estamos no escuro, sem nenhuma outra luz além
da penumbra cinzenta que atravessa os vidros das escotilhas.
Na tentativa de amortecer o impacto, meus punhos tomaram a
frente do meu corpo e agora estão doloridos.
À medida que a embarcação vai retomando prumo, nos
entreolhamos para certificar que ninguém está machucado. É
um alívio quando conseguimos ficar de pé outra vez, mas estou
com medo pela batida, posso sentir meu coração em meus
ouvidos.
— Estão todos bem? — pergunta Nathan. Estamos
petrificados de medo, nenhum de nós está bem, mas ninguém
se machucou, e acho que foi isso que ele quis dizer. — Vou lá
fora ver o que aconteceu. Me certificar de que ninguém foi
atingido por uma retranca ou algo assim.
O tom descontraído de meu irmão serviu para quebrar o
clima aterrador por alguns segundos. Até mesmo a pobre
Anika, que estava quieta feito um passarinho, deixou um riso
baixo e breve escapar.
— Alguém deveria checar se estão todos bem lá embaixo —
digo, ao mesmo tempo em que me prontifico.
Nos compartimentos inferiores, estão as pessoas que
trabalham na cozinha, com a limpeza e manutenção do barco.
Ao todo, há 35 pessoas a bordo além da minha família e o
Achille é seguro e projetado para suportar tempestades e
turbulências; logo, o que acabou de acontecer não é nada
comum.
— De jeito nenhum. — Minha mãe se coloca na minha
frente. — Vai ficar aqui, onde está segura.
Abro a boca para protestar, mas Thibaud Cartier é mais
rápido do que eu.
— Eu vou buscar uma pederneira ou uma vela para acender
as lamparinas outra vez. — Ele caminha até a porta. — Vejo se
está tudo bem eu mesmo.
— Nós agradecemos, Cartier — diz a rainha. — E, por favor,
tome cuidado.
Ele deixa a cabine, caminhando sobre as tábuas
encharcadas. O som molhado de seus passos me deixa em
estado de alerta, mas vão sendo abafados à medida que ele se
afasta, até que desapareçam por completo.
— Por que estão demorando tanto? — pergunta Anika.
Ela se manifesta tão poucas vezes que até me esqueço do
quão sua voz é baixa e suave como a de uma criança.
— Eles provavelmente foram ajudar com a âncora ou
qualquer outro problema assim. Ouvimos o barulho de algo se
quebrar, afinal — respondeu mamãe. — Logo voltarão. E então
vamos para as cabines, dormir.
— Deus te ouça — diz a princesa.
Há um instante em que o barco parece ter parado de vez; é
difícil dizer com as ondas tão agitadas, porque ainda balança e
vicia meus sentidos. Quando tenho certeza de que o Achille
está se movendo outra vez, é um movimento desordenado para
trás, como se fosse arrastado por uma corrente e não guiado
por uma pessoa. E então ele volta e tomba para o lado oposto
de antes. Mais uma vez, há um baque, não tão forte, mas muito
mais barulhento. Tábuas se partido outra vez. Quando me
recupero da queda, corro até uma das escotilhas e abro para
tentar enxergar o que está do lado de fora. Estamos perto
demais de um monte de rochas pontiagudas, mas é impossível
ver a proa daqui. De qualquer maneira, sei que estamos com
problemas.
Não há tempo para reagir porque, numa questão de
segundos, Nathan está na porta da cabine com as roupas
enxarcadas e branco feito um fantasma.
— Estamos presos — diz ele, numa só lufada de ar. — A
âncora atravancou lá embaixo e as ondas estão destruindo o
barco, jogando ele contra as rochas.
Não sei como reagir. Uma névoa cerca meus pensamentos,
só que ainda consigo ouvir algo lá dentro dizendo que temos
que fugir, mas é o meio do oceano, não existem rotas de fuga.
Sinto minhas pernas fraquejarem enquanto o medo paralisante
me impede de dizer ou fazer qualquer coisa. É só quando
escuto os soluços ininteligíveis de minha mãe que sou trazida,
aos poucos, de volta à realidade.
— Os botes — grita Elise. — Vamos embarcar nos botes
antes que fiquem inundados e remar de volta à costa.
— Venham rápido. O convés se tornará um caos em
questão de minutos quando o restante da tripulação for avisado
— comanda Nathan, recuperando o ar. — Tiraremos vocês
primeiro.
Não hesitamos. Mamãe, Anika e eu seguimos meu irmão até
o convés, onde há homens por todos os lados, puxando cordas
e se segurando firmes para não caírem. É impossível me
decidir para que lado olhar, se foco em não escorregar ou em
não ser atingida por alguma tábua solta voando pelo vento
gélido. A mão gelada da rainha toma o meu braço e me puxa
em direção à proa, onde estão os botes. Em meio ao uivo do
vento, ao estrondo dos trovões e às furiosas ondas se atirando
contra o barco, é impossível escutar meus próprios
pensamentos.
Uma onda mais alta, e mais forte do que as anteriores,
invade o interior do barco, fazendo-o bater outra vez contra o
rochedo. Mais água sobe e os escoadores não cumprem sua
função rápido o suficiente. Aos poucos, a tripulação que
permanecia abaixo começa a surgir das escotilhas internas. Dá
pra ver que estão todos em pânico por seus olhares
desesperados e perdidos, mas acontece tudo tão rápido que
sequer escuto o alvoroço de onde estou.
Os marinheiros ajudam meu irmão a enfiar minha família
num bote e ele vem seguida. Dois dos homens descem a
pequena embarcação pela corda, balançando-a de um lado
para outro, atiçando meu estômago. Nathaniel assume o
controle dos remos quando alcançamos a água e não é nada
fácil estabilizar o bote; ainda chove e as pedras estão perto
demais. Quero tentar ajudar, mas não há nada que eu possa
fazer, apenas torcer para que ele nos tire dali o mais rápido
possível e que os outros também consigam escapar vivos.
Leva um tempo até que minha cabeça processe o fato de
que estive perto da morte. Quando acontece, começo a tremer
ainda mais. Faz um frio insuportável e perceber que a água,
ensopando meu vestido, dificulta meus movimentos é como um
estalo que me atinge bem no meio do nariz. Estou dentro de um
vestido verde-claro e longo, com mil e uma camadas de tecido
e acabamento em pedrarias. Encaro a banheira infinita de água
cinzenta chacoalhante sob os meus pés, e torço para que não
nos encontremos.
— Vamos ficar encurralados — grita meu pai, olhando para
todos os lados, percebendo que nenhuma força braçal seria
capaz de impedir as ondas e o vendaval de nos arrastarem
para dentre as pedras. — Maldito rochedo, maldita tempestade!
— esbraveja ele contra a chuva, como se seus apelos
pudessem ser ouvidos por uma força maior, e porem um fim
àquele pânico.
Nada disso estaria acontecendo se tivéssemos ancorado
quando o capitão sugeriu, mas ninguém ousaria confrontá-lo
com tal fato. Os esforços para não cairmos do bote já nos
tomavam energia o suficiente.
Perto de mim está minha mãe; seus lábios se movem
murmurando uma prece e ela está fazendo o sinal da cruz com
uma das mãos enquanto a outra segura firme numa das
beiradas. Meus braços estão doendo por tentar me equilibrar na
borda. Nathan está no centro, lutando sozinho contra a corrente
intensa. Eu o ajudaria com um dos remos, mas seria impossível
me deslocar de onde estou sem perder o equilíbrio. Atrás dele
está Anika, que o agarra pela cintura como se ele fosse sua
tábua de salvação. Meu pai está logo atrás e, se esse não fosse
um momento muito inoportuno para o trocadilho, eu diria que
ele está se afogando em ira e em sua própria culpa. Seus lábios
arroxeados pelo frio estão curvados para baixo e seu rosto
inteiro está tomado por um semblante tão nublado e cinzento
feito o céu sobre as nossas cabeças.
A correnteza nos engole para trás do rochedo e esconde o
barco. Outros botes com mais gente vão alcançando a água e,
os que não tombam, são arrastados em nossa direção. A
tempestade faz um trabalho medíocre ao abafar gritos de
pessoas se afogando e de tábuas se partindo contra as rochas.
— Era só ter ancorado a merda do barco — Nate diz, com a
voz trêmula. Soa como um murmúrio, mas é alto o suficiente
para que todos escutem. — Mas Vossa Majestade não suporta
ser contrariado, e agora vamos todos morrer.
Ele está ofegante, exausto. Sua fala é como receber um
soco no estômago, um soco que te atira direto para o abismo.
— E o que você espera que eu faça agora, Nathaniel? —
retruca meu pai, impassível. — Já não é mais hora de procurar
culpados.
— Ah, mas eu vou te culpar sim. E espero que algum de nós
viva, assim, as famílias dessas pessoas que estão morrendo
por causa da sua estupidez, também culpem a pessoa certa.
Me surpreende de um jeito assustador ouvir Nathan falar
daquele jeito com o nosso pai. Os dois sempre foram próximos
e se conectavam de uma forma que eu jamais conseguiria ou
entenderia. Agora, estavam ali, prestes a voar na garganta um
do outro.
— Ninguém aqui vai morrer! — grita o rei, colocando-se de
pé num impulso impensado.
A força que ele usou para dar o impulso chacoalhou o bote e
o inclinou um pouco, dando a deixa precisa para que uma onda
imensa o tombasse e arremessasse todos nós para fora. Num
instante, estou submersa em águas congelantes.
A primeira coisa que me atinge é o reflexo imediato de me
livrar do meu vestido, cujo a água já apossou por inteiro, e me
puxa cada vez mais para baixo. Consigo alcançar as amarras
nas minhas costas e, quando as desfaço, minhas mãos brigam
contra o frio para que meu corpo deslize para fora de todo
aquele tecido. Estou ficando sem fôlego e cada vez mais
submersa, porque meu desespero é um péssimo aliado.
Mas consigo. Logo só me restam as roupas de baixo, que
consistem num corpete frouxo e bermudas finas. Com eles,
consigo flutuar até a superfície outra vez e procurar pelos meus
pais e meu irmão. No entanto, tudo o que encontro do lado de
fora da água é um monte de destroços flutuantes e rochas
pontiagudas.
A correnteza me arrastou para longe.
Não há ninguém ao meu redor.
Sinto uma pancada violenta em minha têmpora esquerda. É
quando tudo fica escuro e silencioso.
III
Há um zumbido insistente em meus ouvidos na primeira vez em
que acordo.
Na segunda, ainda não consigo abrir os olhos, mas já não
sinto meu corpo submerso. Estou flutuando sobre algo sólido,
porém molhado. O zumbido já começa a perder o vigor.
Pela terceira vez, minhas pálpebras cansadas se esforçam
para abrir.
Há luz demais. A tempestade cessou e já é outro dia. Estou
num bote pequeno outra vez e, do outro lado, Nathan me
assiste despertar com olhos aflitos e ansiosos. Suas roupas
estão em frangalhos, uma faixa de tecido empapada de sangue
está enrolada em volta de uma de suas pernas, há arranhões
em seu rosto. Meu irmão está arruinado por fora e por dentro,
mas, ainda assim, se aproxima de mim, usando das últimas
forças que lhe restam.
— Graças a Deus — ele murmura, próximo ao meu rosto.
Enfim consigo enxergá-lo direito e, quando sua mão alcança
meu rosto, a sinto gelada. Nathan está suando frio. — Nos
perdemos dos outros, Di, mas vamos ficar... Vai ficar tudo bem.
Não consigo reagir. Meu corpo está tomado por uma
paralisia profunda. É impossível falar ou me mover e, quanto
mais eu tento, mais as coisas esmaecem ao meu redor.

Na quarta vez, estou sozinha. Há uma lua cheia e nada


além de águas profundas e escuras ao meu redor.
Para onde Nathaniel foi, afinal? Teria ele caído do bote
enquanto eu estava inconsciente outra vez?
Dessa vez, sou tomada por um tipo diferente de paralisia.
Estou imobilizada de medo, fraca, sentindo dores
insuportáveis, frio e minha pele ardendo.
Eu apago de novo.
IV
Minhas memórias são turvas e inconsistentes a partir dali.
Lembro-me de acordar outra vez, exasperada, com o coração
na garganta. Estava definitivamente sozinha, desidratada
demais para conseguir reagir de acordo com meu próprio
pânico e tentar me salvar de alguma maneira.
Me recusei a beber água do mar, porque ouvi dizer que te
faz alucinar e acelera a morte.
Horas se passaram, ainda sem o menor sinal de terra firme
ao meu redor, nem mesmo de muito longe. Vez ou outra
apareciam gaivotas dentro do meu bote e, como eu não me
mexia, elas se sentiam confortáveis o suficiente para me
cutucarem com seus bicos curiosos. Lembro-me de pensar que,
se elas fossem pacientes, uma hora ou outra, meu cadáver
podia se tornar um grande banquete.
Todos esses pequenos fragmentos de memória voltam aos
poucos, à medida que me encontro despertando outra vez —
coisa que não pensei que fosse voltar a acontecer. Só que é
diferente agora. Não estou mais sobre as águas, nem sobre a
madeira pútrida do pequeno bote. Estou sob lençóis finos e em
cima de um colchão confortável e quente, que acolhe meu
corpo feito um abraço.
Tento abrir os olhos e a luz fraca de uma lamparina de teto
me ajuda a perceber onde estou. É um pequeno quarto, com
móveis simples e cortinas finas que cobrem uma janela larga e
redonda. A porta do outro lado do cômodo está fechada, assim
como a janela. Mas a escuridão externa me permite constatar
que é noite lá fora.
Não dá para juntar as peças do quebra-cabeça e entender
onde estou ou como vim parar aqui, mas sei que há uma ou
mais pessoas que têm essa resposta e que, ela ou elas, estão
do outro lado da porta. Entretanto meu corpo dói. Tento gritar
por alguém, mas minha voz soa tão forte quanto o miado de um
gato filhote.
Para minha sorte, há num cantil na pequena mesa de
cabeceira ao lado da cama.
Alcanço-o e bebo a água com tanta vontade que uns goles
escapam para fora da boca e escorrem pelo meu queixo. A
sensação de molhar minha garganta com água fresca outra vez
é parecida com o céu. Tenho certeza de que é a melhor coisa
que já me aconteceu, mas só até a porta do quarto ser aberta.
O rosto que vejo do outro lado me causa um choque
instantâneo, como um delírio mirabolante do meu cérebro
cansado, tentando me pregar peças. Não pode ser real.
Não tem como ser real.
Flora é incapaz de segurar o impulso de vir em minha
direção com um sorriso que é estonteante e cheio de alívio ao
mesmo tempo, me fazendo apaixonar por ela outra vez. Juro
que sinto tudo de novo. O mesmo frio na barriga, o calor em
minhas bochechas e o coração flutuante.
É agora que eu descubro que morri?
Ela se aproxima e, tocando meu rosto como se eu pudesse
quebrar, senta-se ao meu lado na cama.
— Rob — diz ela, entre um meio-sorriso. — Graças à Deusa
você acordou.
Ainda estou tentando recobrar em minha consciência como
pode ser possível ela estar aqui comigo. Onde estamos, afinal?
Minha mente se encontra num estado de caos tão labiríntico
que só percebo que ela está me abraçando quando o perfume
dos seus cabelos toma conta dos meus sentidos. Aí eu sorrio e
a envolvo com meus braços fracos.
— Como está se sentindo? — pergunta, se desvencilhando
do abraço para olhar em meus olhos.
— Estou... — Minha voz sai por um fio. — Não faço ideia, na
verdade.
— Eu vou chamar as outras!
Florence faz menção a se levantar, mas a impeço,
segurando sua mão com toda pouca força que me resta.
— Espera, Flora. — Ela então me olha, curiosa com o que
tenho a dizer. — Me conta o que aconteceu. Onde estamos?
Como eu cheguei aqui?
Ela então se ajeita outra vez ao meu lado, sem soltar a
minha mão. É tão reconfortante ver seu rosto outra vez, mesmo
que me pareça um pouco diferente. Flora está inegavelmente
mudada. Sua pele está mais corada, ela ganhou um pouco de
peso e está mais enérgica. Os olhos parecem mais azuis e os
cabelos mais dourados. Está mais linda do que nunca.
— Do que você se lembra? — pergunta.
— De um navio. Eu estava a bordo dele com a minha família
e, de repente, uma tempestade aconteceu. Tudo começou a
ruir. Escapamos num bote, mas a correnteza era forte demais e
então eu caí. — Pauso para suspirar. — A partir de então é tudo
confuso. Me lembro de estar com meu irmão num bote outra
vez, ele estava sangrando demais. Depois ele sumiu e eu fiquei
sozinha. Lembro também de sentir muito, muito medo.
Meus olhos ardem, mas não tenho forças para chorar. Acho
que perdi meu irmão.
— As pescadoras te encontraram flutuando, no bote, perto
do Atol dos Corais. Foi difícil te reconhecer, por conta das
roupas e do seu estado e ninguém entendeu o que tinha
acontecido. Você chegou aqui quase morta, Rob. — Sua voz
soa trêmula na última frase, como se estivesse revivendo uma
memória dolorosa. — Havia queimaduras na sua pele, você
estava tão magra que parecia que ia desmontar se te
movêssemos do jeito errado.
— Então estamos na ilha?
Mal posso acreditar na minha própria sorte. Tudo parece
surreal, desde o momento em que abri os olhos.
— Sim. Estamos na Ilha da Deusa. Faz três dias que te
encontramos e, durante esse tempo, fizemos o que podíamos
para te manter viva.
— Pelo visto funcionou — digo num tom bem-humorado
para dispersar a tensão e ela ri. — Mas... preciso saber... Tem
alguma notícia da minha família?
Ela abaixa os olhos e já sei a resposta.
— Ainda não sabemos de nada. Mas as garotas vão voltar
ao continente em três semanas. Elas trarão notícias.
— Três semanas? — questiono, num grunhido. — Não sei
se vou suportar ficar todo esse tempo sem saber como todos
estão, se conseguiram se salvar como eu consegui.
— Talvez Isis possa intervir, abrir uma exceção para que
alguém vá e tente descobrir alguma coisa.
É algo que Isis faria por mim. Mas não depende só dela.
— Não quero causar problemas.
— Tenho certeza de que Roksana e Lydia não se oporiam,
Rob, é a sua família.
Roksana e Lydia são as outras duas líderes da ilha. Isis é
quem toma as decisões e controla o que diz respeito ao
continente, mas certa vez me explicou que tudo é acordado em
conjunto entre elas.
— Não quero parecer ingrata... Estou no lugar onde mais
quis estar nos últimos anos e agora sinto que preciso voltar...
Flora franze o cenho.
— Voltar? Mas do que você está falando?
— Bom, eu quero vê-los se... — Engulo em seco, como se
minha garganta se recusasse a pronunciar as palavras. — Se
estiverem vivos.
— Ah...
Ela não parece contrariada. Sei que me compreende melhor
do que ninguém. Seus olhos encontram os meus com um ar
resignado. Flora está extasiada demais por me ver bem outra
vez; deve ter sido um baita de um choque. Sinto que a loira está
exausta e, se eu estivesse em seu lugar, também estaria. Há
muito o que se acertar agora, bem mais do que está sendo dito.
Minha vinda à ilha não deveria ter acontecido de um jeito tão
traumático.
— Você está com fome? — pergunta. — Já é madrugada,
melhor falar com as outras de manhã, mas posso roubar um
prato de sopa na cozinha se tiver sobrado do jantar.
A ideia me parece ótima.
— E se deitar aqui comigo para conversarmos até eu
dormir?
— E me deitar com você para conversarmos até você
dormir. — Sorri. — É o que eu tenho feito nos últimos três dias,
de qualquer forma.
Em passos acelerados, ela me deixa sozinha no quarto
outra vez. A ausência de Flora traz de volta o turbilhão dos
meus pensamentos. É tudo tão confuso e escuro, que todo o
meu corpo formiga em inquietude. Estou contente por estar na
Ilha da Deusa, mesmo sabendo-se lá os céus como eu vim
parar tão próxima da costa.
Talvez fossem os ventos, o destino. Alguma força maior que
decidiu que ainda não era a minha hora de fazer a passagem
para o mundo dos mortos.
O que quer que seja, espero que tenha decidido também
que não era a hora de Nathan, nem do rei ou da rainha. Não é
nenhum segredo que eu pretendia deixá-los em breve, só que
isso não me faz querer que nada de ruim os aconteça. Eu os
queria vivos e bem, seguindo suas vidas em Sealaena,
enquanto eu seguiria a minha aqui na ilha.
— Sobrou um pouco, mas eu trouxe pão, também, para
compensar — diz Flora, anunciando sua chegada. — E vinho
quente.
Meu estômago remexe, exigindo urgência, assim que o
cheiro dos legumes e da carne alcançam meu olfato. A loira se
senta ao meu lado outra vez, estende para mim o copo com
vinho e ergue a colher com sopa na altura dos meus lábios,
como se eu fosse uma criança.
— Consigo comer sozinha. — Só não consigo segurar o
riso. — Você não precisa...
— Shhh. Eu sei. Mas quero cuidar de você. — Seu tom é ao
mesmo tempo autoritário e carinhoso. Não ouso contestar,
então apenas aquiesço. — Os últimos dias... Pensei que você
não fosse sobreviver. Você não faz ideia...
— Faço sim. Foi mais ou menos o que eu senti quando
pensei que tivesse te perdido naquele incêndio. Se lembra? —
digo, assim que termino de engolir minha sopa.
Tenho certeza de que o gosto estava melhor quando
acabaram de preparar. Ou talvez seja meu paladar
desacostumado com sabores, tornando todos os gostos
agressivos demais.
— Justo. — Ela balança a cabeça e dá uma risada fraca,
depois suspira como se deixasse ir um peso enorme. — Mas
agora acabou. Não foi como nenhuma de nós esperava, mas
estamos aqui, Rob. Vamos encontrar sua família e depois ficar
juntas, não é?
Assinto com um movimento da cabeça, entregando-a toda a
minha sinceridade. É o que eu espero que aconteça, que minha
família esteja bem e que eu fique livre. Mas só eu sei, tendo
estado lá e visto como tudo aconteceu, quais são as chances
de esse ser um caminho longo e tortuoso, dependendo do que
encontrarmos do outro lado.
— Como está todo mundo? — pergunto, quando termino de
comer e começo a bebericar o vinho. — Você não disse muito
na última carta.
Flora deixa o prato de sopa na mesinha de cabeceira e se
deita ao meu lado, no canto perto da parede. Sob os lençóis,
ela entrelaça nossas pernas e joga um dos braços sobre o meu
colo. É o suficiente para que eu esqueça o vinho e me aninhe
mais para perto, deixando o calor dos nossos corpos se
encontrarem. É como estar dentro de uma pequena redoma,
segura e sossegada.
— Vamos falar sobre isso amanhã, sim? Quero que você
descanse. Temos que falar com a Isis e o resto das meninas.
Vou te levar para conhecer a ilha, afinal, é a sua primeira vez
aqui.
Sinto que ela foge do assunto de propósito. Talvez haja algo
que não quer me contar, mas não vou insistir.
— Está bem. — Fecho os olhos e sinto Flora me beijar na
bochecha. Eu sorrio. — Senti sua falta, garota dos corvos, mais
do que eu consigo dizer.
— Não existem corvos aqui na ilha. Vossa Alteza vai ter que
arranjar outro apelido.
— Tipo garota da Robin? Eu gosto desse.
Ela ri e aperta o corpo contra o meu um pouco mais.
— Gosto como você não mudou nem um pouco, mesmo
depois de meses e uma experiência de quase-morte.
Não vou contradizê-la, porque estamos exaustas demais
para qualquer tipo de debate, mas Flora está errada. Os meses
podem não ter me mudado tanto, mas esse acidente... Bem, eu
acho que nunca mais serei a mesma.
V
Acordo, e ainda sem abrir os olhos, não sinto Flora ao meu
lado, o que me faz pensar que a noite passada foi um sonho ou
uma alucinação. No entanto, à medida que minhas pupilas se
acostumam com a luz incômoda, reconheço muito bem as
paredes ao meu redor. Passei longos minutos – talvez horas –
me familiarizando a elas enquanto não conseguia dormir na
noite passada. As cenas daquele acidente iam e vinham em
looping. Algo em minha memória fazia meu corpo acreditar em
alguns momentos que eu estava no bote outra vez, flutuando
sobre o oceano, sendo arrastada pelas ondas.
Por mais que reviver o que aconteceu seja doloroso e
desesperador, talvez seja o único jeito de tentar me lembrar e
entender o que aconteceu com os outros.
Desde que despertei, venho tentando provar a mim mesma
que não enlouqueci. Mesmo estando onde estou, ainda há
muito para colocar minha sanidade à prova. Nos últimos anos,
me perguntava como eu ia me sentir quando finalmente
conhecesse esta ilha. Agora, isso está a uma porta adiante de
acontecer e tudo em que eu consigo pensar é sobre como eu
não queria que fosse desse jeito.
Esse é o lugar onde Sophie morava. Sinto a energia dela
aqui, como uma sombra à espreita, esperando para revelar-se
boa ou ruim.
Meu corpo já não suporta mais que eu fique deitada, então
me livro dos lençóis e salto da cama de uma só vez. É quando
vejo que subestimei a minha fraqueza, porque minhas pernas
não estão nem um pouco firmes. Preciso de algum tempo para
me acostumar, mas a sensação de estar de pé outra vez é tão
satisfatória que não consigo conter um sorrisinho.
A janela está aberta e, o que ontem era breu, agora é um
monte de árvores altas, carregadas de folhas verdes e vivas.
Estou no andar de cima do que parece ser uma casa bastante
grande. Quero descer e encontrar todo mundo, conhecer o
resto desse lugar, mas não sei se estou pronta para responder
todas as perguntas, ser gentil e fingir que estou bem.
Caminho em direção à porta e só percebo que há um
pequeno espelho pendurado nela quando tomo um susto com o
meu próprio reflexo. Meus olhos estão fundos, os ossos da
minha face estão mais em evidência do que nunca e minha pele
está mais escura em algumas partes, mas descamando
terrivelmente, desde o topo da cabeça até os meus pés,
retomando o tom pálido de sempre. Minhas roupas de baixo
foram trocadas por uma camisola longa e fina, mas deve servir
para uma pequena aparição no andar de baixo.
Estou prestes a sair, mas antes que eu alcance a maçaneta,
a porta é aberta do outro lado e teria me acertado se eu não
estivesse atenta.
— Rob? — A voz suave de Flora preenche o quarto. Ela
demora um pouco para me enxergar. — Ah, você já se
levantou.
Ela sorri. Seus cabelos estão presos num coque e ela está
usando um vestido azulado de mangas curtas que vai até um
pouco abaixo dos joelhos. A luz do dia a deixa ainda mais
estonteante.
— Eu ia criar teias de aranha se ficasse naquela cama por
mais tempo — digo, aproximando-me dela.
— Está se sentindo melhor? Combinei com as meninas que
te daríamos um tempo para ficar confortável, sabe? Com tudo
que está acontecendo, não queremos que se sinta sufocada.
— Acho que estou, sim. Só minhas pernas que ainda não
entenderam que a função delas é sustentar o resto do meu
corpo.
— Posso trazer seu café da manhã e descemos mais tarde.
— Nada disso. Esse quarto fica menor a cada segundo que
eu passo dentro dele — respondo, mexendo as mãos num
estado de ansiedade.
— Me deixa pelo menos te arranjar roupas novas, para você
se parecer menos com um fantasma.
Flora segura meu rosto entre as mãos e faz uma expressão
engraçada. Não consigo não rir.
— Quem precisa de inimigos quando se tem você, não é
mesmo? — brinco, enquanto ela revira as gavetas à procura de
algo para eu vestir. — Estou tão ruim assim?
— É a fantasma mais bonita que eu já vi, se te faz sentir
melhor.
Uma blusa larga de mangas e calças de algodão são
estendidas para mim. É o tipo de roupa que costumava usar no
continente, quando não me enfiavam dentro de vestidos
pesados e quentes. Começo a tirar a roupa pelos ombros; é
quando vejo que algumas partes do meu corpo não ficaram tão
queimadas quanto meu rosto e meu colo, por conta do pouco
de tecido diáfano que o cobriu enquanto fiquei sob o sol.
— Isso não conta como elogio, a menos que você seja
algum tipo de médium.
— Termina logo de se vestir! — Ela revira os olhos.
A roupa fica um tanto mais larga do que achei que ficaria,
meu rosto não foi o único que diminuiu de tamanho, afinal. Mas
nada que algumas semanas não recuperem. Ao menos, é o que
eu espero.
— Está pronta? — pergunta Flora.
— Meu corpo está pronto. Minha cabeça? Impossível dizer.
— Só a Isis, a Nelly, a Milla e a Danny estão lá embaixo
porque achamos que você ia ficar mais à vontade. Vai ser bom
para você, rever todo mundo.
Enfim, abro a bendita porta num impulso e, do outro lado
dela, está um estreito corredor com outras portas e pequenas
telas de paisagens que o decoram.
— Que lugar é esse? — pergunto à Flora enquanto
caminhamos até a escada. — Tipo, essa casa.
— É a casa da Isis. Na verdade, é uma das três casas das
líderes. Ela mora aqui com a família dela e, como é bastante
grande, serve como um tipo de lar temporário. Foi aqui que eu
fiquei nos primeiros meses.
— É mesmo? E onde você está agora?
Estou mesmo muito curiosa e, além do mais, essa conversa
está me distraindo do fato de que estou mais perto do que
nunca de conhecer o lugar que sempre sonhei em conhecer –
mesmo que esteja acontecendo dentro de um pesadelo.
— Bom, eu acabei ficando muito próxima das meninas que
estão ajudando a ensinar a ilha a ler. Vivemos eu e mais três
delas numa casinha menor, das que ficam dentro da floresta.
São informações demais para meu raciocínio lento
interpretar. Eu sabia que ela estava ajudando a Isis com a coisa
toda de ensinar as garotas a ler, mas não sabia o quão próxima
ela era das outras meninas que não são as que eu já conheço.
E é tão óbvio que isso acabaria acontecendo, que não sei o
porquê de eu estar me sentindo tão estranha com essa
informação.
— Você nunca disse nada sobre elas nas cartas. — Limpo a
garganta; estamos no meio das escadas. — As outras meninas.
— Não disse? — Ela morde o lábio e desvia o olhar. — Acho
que eu só... esqueci. Sempre tem tanta coisa acontecendo e
você sabe como eu sempre deixo para escrever as cartas de
última hora.
A resposta dela me convence, apesar de soar um pouco
engessada demais. Não quero pensar sobre isso agora e todo
resto das coisas que só vão se tornar uma questão quando eu
estiver aqui para ficar. Por enquanto, tudo que eu preciso é
saber que nada mudou entre nós duas, que posso contar com
ela para me segurar caso eu precise, porque não sei o quão
perto estou de assistir tudo desmoronar ao meu redor.
— Rob. — A voz de Danielle surge de outro cômodo, assim
que meus pés deixam a escada. — Pela Deusa, você está
mesmo viva!
A ruiva de quase um metro e noventa atravessa o que
parece ser uma sala de estar para chegar até nós. Não tenho
muito tempo para reagir, porque ela me abraça em seguida e
me puxa para dentro da cozinha da casa, onde estão Nellyne e
Camilla sentadas à mesa. É um espaço pequeno, mas há
cadeiras vagas para Flora e eu nos sentarmos com elas. As
meninas sorriem ao me ver, especialmente Nelly, que fica de pé
para vir ao meu encontro.
Eu teria me apressado para abraçá-la, mas, no instante em
que ela se levantou, percebi a proeminência de seu ventre e
seu rosto arredondado. Nellyne está grávida. E, pela distensão
da barriga, a criança não deve demorar para vir ao mundo.
É impossível esconder o quão estarrecida estou, e é claro
que todas no cômodo também percebem.
— Surpresa! — diz Nelly, como se tivesse acabado de me
contar que adotou um cachorro ou coisa assim. Ela corre as
mãos pela barriga enorme e eu não faço a menor ideia de como
reagir. — Desculpa, Rob, a gente deveria ter contado antes,
mas aconteceu tudo tão rápido. E, ei, não precisa me olhar
como se eu fosse um monstro marinho, é só um bebê.
— Você... vocês — gaguejo. — Então foi por isso que você
parou de fazer as viagens para entregar as cartas?
— Eu disse que ela ia entrar em choque — diz Camilla.
Busco Flora com o olhar, perplexa por ela não ter me dito
nada. Sei que deve ter sido um pedido de Nelly, então não
estou chateada, só que ela me olha de volta e move os lábios,
murmurando um “desculpa”.
— Sim — responde ela. — Minha mãe achou que seria
melhor que eu ficasse aqui durante todo o tempo, sabe? Por
segurança. Nunca se sabe como essas coisas podem ser.
— Eu fiquei preocupada com você! Achei que estivesse
doente ou...
— Não estou doente. Estou ótima. Isso se você não contar
as minhas costas, que estão me matando. — Ela ri e a tensão
aos poucos se dissipa. — Nada mudou.
— Quero saber de tudo! — digo, atropelando as palavras.
Tomo as mãos dela e nos sentamos frente a frente à mesa.
— E eu vou contar tudo o que você quiser saber, mas,
primeiro, quero saber como você está. A Florence nos contou
sobre o navio e sua família. Queremos saber como podemos
ajudar.
— Nada disso. Primeiro ela vai comer. — Quem diz isso é
Isis. Ela passa pela porta feito um furacão, segurando uma
cesta com pães, deixa a cesta sobre a mesa e para diante de
mim. — E, então, depois vamos conversar todas juntas.
Isis pousa uma das mãos em sua cintura e usa a outra para
segurar meu queixo. Ela é tão alta que preciso olhar para cima
se quiser encarar seu rosto e, poxa, é bom vê-la outra vez. É
bom ver todas as meninas outra vez, ainda que eu preferisse
tê-lo feito em circunstâncias diferentes. Mas de todos os lugares
onde eu poderia ter ido parar depois de dias e mais dias
sozinha no oceano, este é o melhor deles.
— Não acredito que você está mesmo viva, princesa — diz a
mais velha. — Mas estou muito feliz por isso. Agora vê se come
um pouco, porque vai precisar ter forças para encarar tudo que
está por vir.
O tom dela é severo, e eu me pergunto se está omitindo
algo importante. Minha mente está ainda mais inquieta agora,
mas confio em Isis o suficiente para deixar que ela tome o
controle da situação, ao menos por enquanto. As meninas
também não dizem nada, apenas engatam uma conversa sobre
assuntos da ilha, na qual eu não conseguiria prestar atenção
nem mesmo se quisesse. Há centenas de interrogações em
minha cabeça e, quanto mais eu tento respondê-las, mais delas
surgem.
VI
— As notícias não são nada boas, Rob — diz Isis, no
instante em que a louça do café é retirada da mesa por Elle e
Flora. — Roksana, Lydia e eu enviamos algumas garotas para o
continente logo depois que encontraram você. Já
desconfiávamos de um naufrágio, então precisávamos saber
dos riscos de acabarem encontrando a ilha durante as buscas.
— Eu não sabia de nada disso — intervém Flora, falando
diretamente comigo. — Teria dito a você se soubesse que já
tinham mandado alguém para investigar.
Balanço a cabeça em compreensão e volto meu olhar para
Isis, ansiando pelo desfecho do que ela tem a dizer. Ainda
estamos sentadas à mesa e o silêncio reina ao redor enquanto
conversamos.
— Elas chegaram agora pouco e, apesar de não terem
conseguido nada muito concreto, disseram que parte da
tripulação já foi encontrada — Isis continua. — Mas nenhuma
dessas pessoas era da família real.
Sinto minha garganta fechar, dificultando minha respiração.
Meus olhos ardem e meu coração bate forte e descompassado
enquanto minhas mãos suam frio. Estou com medo outra vez.
— Sei o que você está pensando, meu bem, mas olhe só,
você está aqui conosco, não está? Viva. Pode ter acontecido o
mesmo com a sua família.
— Ou eles podem não ter dado a mesma sorte. — Deixo
escapar. — E, agora, estão todos mortos.
As mãos de Flora pousam sobre meus ombros, seu polegar
correndo pela pele do meu dorso, o que teria sido o suficiente
para me acalmar se eu não tivesse acabado de receber a
notícia de que posso ter sido a única da minha família a
sobreviver.
— Essa também é uma possibilidade. — As palavras de Isis,
apesar de duras, me dão o choque que eu precisava levar. —
Mas vamos esperar. Você ainda precisa se recuperar e vai ter
toda a nossa ajuda para que isso aconteça o mais rápido
possível. Continuaremos buscando notícias e fazendo com que
se sinta em casa até decidir o que deve ser feito, está bem?
A única resposta que consigo dar é um balançar de cabeça
desordenado. Ela se põe de pé e bate as mãos na saia de seu
vestido para alinhá-lo outra vez. Me olha de cima, com os olhos
repletos de compaixão, e ajeita meus cabelos para longe do
meu rosto.
— Agora eu preciso voltar e pensar como vou substituir
minha informante do palácio. — Ela se refere a mim e eu abro
um pequeno sorriso. — Para o bem ou para o mal, as coisas
vão se encaminhar como têm que ser.
Balanço os ombros, sem ter a mínima ideia do que ela
espera que eu responda. Isis caminha até a porta, mas troca
um olhar cúmplice com Flora e as meninas antes de sair. Não
consigo interpretar, ainda estou dormente demais para assumir
qualquer coisa que seja.
O silêncio perdura por instantes a fio depois que ela se vai.
Acho que as outras esperam que eu o quebre quando me sentir
confortável. Só que se eu for esperar até eu me sentir
confortável para dizer alguma coisa, não vai acontecer tão
cedo. E já passei tempo demais olhando fixamente para o rosto
de Nellyne, à espera de que ela me diga alguma coisa antes
que eu comece a me corroer de curiosidade.
— Agora você já pode me contar — digo, arqueando as
sobrancelhas no tom mais leve que consigo encenar. — Como
diabos isso aconteceu?
— Você sabe como aconteceu. Você já é bem grandinha —
Nelly brinca, numa tentativa tosca de desanuviar a tensão do
assunto. Quero acertar seu ombro com um soquinho, mas ela
está longe. — Quer mesmo saber?
A pergunta é séria dessa vez e eu mal acredito no que estou
ouvindo.
— Mas é óbvio que eu quero saber. Me conta tudo.
— Não tem muito para contar, sendo sincera. — No instante
em que ela diz isso, o primeiro pensamento que me ocorre e
que não há a menor chance de ser verdade. — Foi em
Sealaena, é claro, já que aqui na ilha seria impossível. O pai é
um rapaz que conheci ano passado, numa das nossas visitas; o
nome dele é Adrian. A família tem um mercado de peles e a
gente acabou flertando quando fui pega nos fundos da loja
negociando com a irmã dele. O resto da história você já sabe...
— Não sei, não — protesto. — Ele sabe da gravidez? Vocês
se gostam ou foi só um casinho? Não me diga que contou para
ele sobre a ilha...
— Ele sabe do bebê, mas eu disse que venho de uma
cidade ao norte. Trocamos cartas e nos vimos algumas vezes.
Adrian me pediu em casamento e a coisa toda, mas minha
mãe... Bom, ela se preocupa comigo. Acha que a família dele
pode não aceitar tão bem a ideia do filho se casando com uma
estranha sem família e sem dinheiro.
— Ela tem razão em se preocupar. Sealaena é tradicional
demais.
— Eu sei. Mas talvez seja o que eu quero, sabe? E vai ser
minha única opção se o bebê for um menino.
— Não é sua única opção, Nelly — Milla interrompe, nem
um pouco sutil.
— Vocês enlouqueceram se acham que eu vou deixar meu
bebê num orfanato. Não é uma possibilidade — responde
Nellyne, a irritação em sua voz pode ser sentida a metros de
distância. — Minha mãe não quer me perder, só que ela vai ter
que se acostumar com a ideia se não quiser escolher a filha ao
invés da ilha, como eu vou fazer.
— Nós temos tudo aqui. Você é maluca só de pensar em
voltar para o continente — retruca Milla, nada paciente.
— Não é maluquice, Camilla. Se chama arcar com as
consequências dos meus atos. Você deveria tentar alguma vez.
— Vocês duas não vão começar, né? — intervém Danielle. A
voz potente e o tom autoritário são suficientes para não haver
objeções. — Pela Deusa, Camilla, você consegue ser
insensível às vezes.
Milla dá de ombros e cruza os braços, jogando os pés sobre
uma das cadeiras de um jeito irreverente. Eu ainda estou
atordoada demais com todas as informações e aquela cena
para pensar ou dizer qualquer coisa. Por fim, Nelly se levanta –
com toda a dificuldade que seu peso atual impõe – e me olha.
— Eu até levaria você para um tour na ilha, mas meus
tornozelos não dariam conta, então vou deixar essa missão
para a Florence.
Ela caminha para fora do cômodo, deixando atrás de si uma
atmosfera de tensão.
— Vocês vêm? — perguntou Flora que, até então, estava
quieta como eu, colocando-se na cena com a graciosidade
indiferente de quem não havia acabado de presenciar nada
daquilo. — Depois de mostrar a ilha para a Robin, pensei da
gente tomar um banho de cachoeira.
— Não vai dar, Flora, algumas de nós têm muito trabalho a
fazer hoje — disse Danny, praticamente empurrando Camilla da
cadeira. — Eu e a Milla encontramos vocês mais tarde para o
jantar.
Danielle e Camilla me disseram certa vez que um dos
trabalhos delas na ilha é cuidar dos barcos. Inspecionar as
construções deles, garantir que eles estejam seguros e
protegidos. Mas as duas também ajudam na construção de
outras estruturas da ilha, tipo as casas, refeitórios comunitários
e todo o tipo de espaço comum. O que eu acho incrível, porque
é algo que eu não saberia nem mesmo como começar a fazer.
— Até mais tarde, então — despede-se Flora.
— Até mais tarde, meninas — me despeço também.
— Comportem-se — brinca Milla.
Elas se vão também e logo somos só eu e Flora na pequena
cozinha. Por mais que a minha vontade honesta seja de voltar
para o quarto e me isolar lá dentro até que tudo se resolva
magicamente, sei que há muitas coisas aqui fora que vão
ajudar a me manter distraída. Flora é uma delas.
A loira me puxa pela mão, fazendo com que eu me levante.
Não é muito difícil arrastar meu corpo na atual condição física
em que me encontro.
— Desde que eu cheguei aqui, não teve um só dia que eu
não sonhei com o momento em que estaríamos juntas e eu te
apresentaria aos meus lugares favoritos. — Ela morde os lábios
e me puxa um pouco mais para perto, juntando nossos corpos e
enlaçando minha cintura com os braços. — Mas eu vou
entender se você não estiver bem. Se quiser se trancar no
quarto e dormir pelo resto do dia.
Eu até aceitaria a sugestão, mas não consigo resistir
àqueles olhos. Não consigo não querer estar perto dela. Já
aconteceram coisas ruins o suficiente e sei que a companhia de
Flora vai me fazer bem, mais do que me entregar a um luto que
pode ser meramente especulativo.
— Está brincando? Quero que você me mostre
absolutamente tudo.

A casa de Isis é construída no alto de um pequeno monte,


de modo que é possível ter uma boa visão de toda a ilha.
Surpreendo-me ao notar o quão é tudo bem maior do que
imaginei. Apesar da imensidão azul que se estende depois da
praia, há uma porção imensa de terra, árvores, campos de
plantio, celeiros e outras construções antes da areia.
Existem outras casas em construção ao redor. Pelo que as
meninas disseram durante o café, a projeção é que a Ilha da
Deusa dobre sua população em alguns meses, com tantas
garotas novas chegando de toda a Europa e refugiadas das
colônias. Sei que fiz muito pouco para ajudar, se comparado ao
trabalho das outras, mas me orgulho muito em pensar que, de
alguma forma, cooperei para manter este lugar seguro por
algum tempo, da forma que pude.
— A descida é meio longa — diz Flora. — Mas vale a pena,
eu juro.
Estamos caminhando por uma espécie de trilha demarcada
por um chão de terra batida que serpenteia sob árvores de
copas altas e uma mata baixa. Daqui, não dá nem para dizer
que estamos num pequeno pedaço de terra no meio do oceano.
— Já que vai demorar, então a gente podia aproveitar o
caminho para falar sobre aquilo que aconteceu mais cedo na
cozinha entre a Nellyne e a Camilla.
Pelo tom da discussão, ficou claro que aquele é um tema
sensível. Não é difícil entender o porquê, mas as duas
costumavam ser melhores amigas.
— Não tem muito pra dizer. Nellyne não está disposta a
abandonar o bebê no continente para ficar aqui e a Milla acha
que isso é loucura.
— O que a Isis acha?
— Ela não diz. Mas sabemos que ela prefere que a Nelly
fique.
— Não dá para abrir uma exceção?
— E falar o que para as outras que foram embora ou se
separaram dos filhos? Não seria justo.
— Tem razão. É complicado.
— É. Já perdi algumas noites de sono tentando pensar
numa solução. Acho que todas nós.
— Menos eu. Porque não sabia de nada e agora estou me
sentindo meio apavorada por elas.
— É por isso que Nelly preferiu não contar. Você estava
longe e não havia muito o que fazer a não ser ficar agoniada.
Assinto, balançando a cabeça. Não sei o que pensar, mas
sei que não estou magoada. Talvez eu ficasse se, ao mesmo
tempo, não estivesse acontecendo tanta coisa, se houvesse
menos em minha cabeça para eu me preocupar. É tudo tão
opressivo que a omissão sobre Nellyne parece bobagem.
— Aqui é um dos campos — diz Flora.
É quando percebo que estamos diante de um descampado
largo, repleto de mulheres trabalhando com machados e serras,
cortando árvores e partindo tábuas. A maioria delas mal nota a
nossa presença enquanto passamos entre os troncos cerrados
e todo o monte de madeira espalhada pelo caminho. Não
reconheço nenhum rosto, mas é porque elas não fazem parte
das que vão ao continente com as outras. O trabalho delas é
extração de madeira para construções e outros trabalhos de
marcenaria. É tudo tão bem coordenado e rápido que me
impressiona. Mais à frente, há mesas com sombra e água, onde
algumas descansam.
Depois de atravessarmos, caminhamos por um pequeno
trecho coberto por grama e percebo que estamos no topo de
uma pequena colina, onde mais abaixo está o que parece ser o
grande centro da ilha. Toda a sorte de construções em madeira
ou alvenaria se ergue em círculos ao redor do que parece ser
uma praça. Um monumento em cobre de uma mulher nua de
cabelos encaracolados enfeita um pedestal coberto por flores,
tigelas de prata com vinho e colares coloridos.
Quem vê pela primeira vez, pensa que é Margery, a mulher
que dá nome à comunidade, mas Danny me explicou uma vez
que, na verdade, é a estátua de uma mulher chamada Lisa. Ela
era a mulher que Margery amava, mas Lisa faleceu antes que
as duas pudessem fugir para a ilha e Margery a esculpiu
sozinha. Ela morreu meses depois de terminar, já bem velhinha.
— A gente chama essa parte da ilha de Núcleo — explica
Flora, me tirando do meu transe. — É aqui que acontece tudo.
Ou quase tudo.
Mais perto, consigo reconhecer alguns lugares sobre os
quais já ouvi em histórias que as meninas sempre me contam.
A padaria, sempre exalando um cheiro maravilho, a casa das
ferreiras, a pequena escola e a enfermaria.
Esta última me causa um arrepio ruim. Foi onde Sophie
esteve viva pela última vez. Seria só mais um espaço comum,
que eu adoraria conhecer, não fosse a energia ruim que ele
emana.
— Você quer visitá-la? — pergunta Flora, ao perceber que
estou encarando as portas do lugar por tempo demais. — O
túmulo, eu quero dizer. Sei onde fica.
Não digo nada, apenas faço que sim com a cabeça e deixo
que ela me guie pelo resto do caminho outra vez, como se
qualquer esforço da minha parte fosse dispensável.
VII
Quando conheci Sophie, ela já morava na Ilha da Deusa. Eu
tinha os meus quinze anos e estava fugindo de algum
compromisso real qualquer quando dei de cara com ela na
floresta, armando uma armadilha de coelhos. Foi uma conexão
instantânea, nós duas, amor à primeira vista. Ela era a garota
mais diabolicamente inteligente que eu conheci e parecíamos
ser tão iguais em tudo, que tive certeza que éramos almas
gêmeas.
Foi ela quem me fez descobrir que mulheres podem gostar
de outras mulheres e que eu nunca daria certo vivendo entre a
realeza. Sophie me apresentou às meninas, à ilha e a um
mundo novo de possibilidades além do confinamento que é um
palácio e uma família de mentira.
Nos víamos a cada seis meses, religiosamente, quando ela
ia ao continente. Passávamos todo o tempo que podíamos
juntas, porque eu sabia o quão entediante seria o intervalo de
tempo que estaríamos separadas.
Não que nosso relacionamento fosse perfeito. Longe disso.
Mas eu estava apaixonada e, mesmo quando vieram
problemas, eu não pensava em desistir. Quando ela veio ao
continente pela última vez, tivemos uma discussão nada bonita.
Estávamos meio que brigadas quando, dois meses depois, eu
recebi a carta de Nellyne dizendo que ela havia adoecido. Era
uma febre desconhecida, que acabou infectando muitas
mulheres da ilha na época e algumas delas não resistiram.
Sophie foi uma delas.
Escrevi uma carta imensa, molhando o papel com as minhas
lágrimas, sobre como eu estava disposta a colocar certas
coisas de lado para fazer com que a gente desse certo, mas ela
nunca leu.
E agora, a coisa mais próxima que eu tenho de uma
segunda chance é uma lápide de epitáfio improvisado. O
memorial é apenas simbólico. Os corpos das mulheres que
morrem na ilha são jogados ao mar, mas todas recebem
pequenas lápides com seus nomes entalhados, que ficam
cercadas por pedras num descampado perto da areia.
Canteiros de flores muito bem cuidados indicam que não é um
lugar esquecido pelas pessoas que vivem aqui.
— Como você soube desse lugar? — pergunto à Flora, que
está parada a uns dez passos de mim.
Ela esteve ali durante todo o tempo que passei encarando o
túmulo falso de Sophie. Viu quando limpei as lágrimas que
escorreram num momento de distração.
— Pouco depois que eu cheguei, uma das curandeiras
morreu — responde, sem rodeios. — Aconteceu uma cerimônia
e, então, enquanto todas voltavam para os seus afazeres, eu
fiquei aqui, caminhando entre todas essas lápides,
procurando...
— Você procurou pelo nome da Sophie? — Faço a pergunta
enquanto caminho de volta para perto dela a passos
demorados. — Mas por quê?
— Sinceramente? Não sei dizer. Acho que fiquei
impressionada com o quanto as pessoas falavam dela para
mim, especialmente quando seu nome era mencionado numa
conversa. Me perguntava se talvez eu não fosse sentir algum
tipo de conexão ou coisa assim... Ou se, algum dia, nós duas
teríamos algo parecido.
O rosto de Flora está inteiramente vermelho e ela falha em
manter seus olhos nos meus. É adorável que ela se sinta
envergonhada por algo tão bobo, mas me incomoda que a loira
pense que o que sinto por ela seja, de alguma forma, menos
importante do que o que eu sentia por Sophie.
— Nós nunca vamos ter algo parecido com o que eu tive
com ela, Flora. É impossível. Sophie era a minha melhor amiga
e vivemos coisas inesquecíveis juntas. — Reduzo a distância
entre os nossos corpos, envolvendo-a carinhosamente com
meus braços. — Mas isso não muda o fato de que eu sou e
sempre vou ser louca por você e que nós duas vamos viver
coisas que eu jamais vivi ou viveria com ela. São pessoas
completamente diferentes. Isso porque você não é a Sophie e
eu não sou a mesma Robin de anos atrás.
— Está me fazendo parecer uma boba, mas, tudo bem,
pode continuar, estou gostando — ela brinca e nós duas rimos.
Os olhos dela estão marejados.
— Bom, eu poderia ficar aqui citando os milhares de motivos
pelos quais você não precisa se sentir insegura sobre o meu
passado, mas acho que faria isso melhor durante um banho
fresco de cachoeira. O que você acha?
De uma só vez, toda a carga emocional daqueles últimos
momentos despencou sobre mim como nuvens carregadas de
chuva e a consequência foi sentir o corpo inteiro dolorido.
Precisava me refrescar e sentir a água levando embora toda
aquela energia pesada.


A cachoeira é uma queda d’água que despenca do alto de
um penhasco colossal em forma de arco. A água cobre
parcialmente a entrada de uma caverna rasa, cercada por
vegetação. O rio é de um azul cristalino e corre para as
extremidades do penhasco, envolvendo-o como um abraço. Eu
só a tinha visto em desenhos, mas nada se compara ao que ela
de fato é, vista pessoalmente.
Me aproximando da margem do rio junto à Flora, consigo ver
e ouvir outras mulheres por perto. Elas estão nadando,
tomando sol perto das rochas, se banhando ou lavando suas
roupas na correnteza. É uma cena tão idílica que parece ter
saído direto de uma pintura.
— É bonito, né? — diz Flora, alcançando os botões de seu
vestido para desfazê-lo. — Tomara que a água não esteja tão
fria.
Concordo, balançando a cabeça. Apesar de o dia estar
ensolarado, ainda faz um pouco de frio por conta da brisa.
Minha pele arrepia sob as minhas roupas de baixo quando
começo a tirar a blusa e me juntar à Flora.
É gostoso molhar os pés na beira do rio, onde a água não
passa dos tornozelos. Está fria na medida certa, o suficiente
para deixar meu corpo em alerta e me energizar um pouco.
Gosto do chiado que a água faz, gosto do canto dos
passarinhos que parece ecoar ainda mais alto aqui. É como
estar no paraíso, quando há uma guerra acontecendo dentro da
minha própria cabeça. Tento desligar meus pensamentos à
medida em que sou puxada pelas mãos de Flora e sinto a água
me envolver. Aos poucos, sinto que sou capaz até mesmo de
controlá-los por alguns instantes.
— Eu costumava vir aqui sempre quando cheguei na ilha —
disse Flora, com o tom de voz ligeiramente mais alto por conta
do barulho de água caindo. — E tinha ficado meio monótono,
mas agora que você está aqui, é como ver tudo de novo pela
primeira vez.
Sinto meu rosto esquentando e não tem nada a ver com o
sol sob as nossas cabeças. É naquela fração de segundo que
esqueço tudo de ruim que me aconteceu lá fora e consigo sentir
uma felicidade genuína por estar onde estou, com quem estou.
Tomo alguns segundo para admirar o rosto radiante da garota
diante de mim e agradecer aos céus por tê-la.
— Ainda vamos ver muitas coisas bonitas juntas, loirinha —
digo. — Eu prometo que, assim que tudo se resolver, vai ser
como se todo esses capítulos tristes do nosso passado sequer
existissem.
Aproximo-me dela e jogo meus braços em volta de seu
pescoço. A água está batendo um pouco abaixo dos nossos
ombros. Uso uma de minhas mãos para desfazer o coque em
seus cabelos e assistir os fios dourados caírem em cascata
sobre as suas costas. Ela ri e joga a cabeça para trás, deixando
que as pontas se molhem.
— Eu mal posso esperar — diz.
Flora segura minha cintura e cola a testa na minha. Nossas
respirações se misturam e o sorriso em seus lábios triplica
minha vontade de beijá-la. É o que eu pretendia fazer se, antes,
alguém não tivesse chamado pelo nome dela, lá da beira do rio.
— Ei, Flora! — chama outra vez, uma voz impaciente, mas
amigável.
Ao buscar por ela com o olhar, encontro uma mulher alta de
cabelos castanhos, pele amarelada meio bronzeada de sol e
olhos negros bastante estreitos. Ela está acenando com a mão,
numa parte do rio em que água mal alcança seus joelhos.
— Ei, Liv — Flora finalmente responde, depois se volta para
mim. — Essa é a Olivia, uma das meninas que moram comigo.
Te falei dela nas cartas.
— Só esqueceu de me contar que dividiam uma casa —
respondi, num tom bem-humorado, mas com um sorriso
amarelo.
— Então não era conversa fiada do mulherio da ilha, a
princesa ressuscitou mesmo! — exclama Olivia, me encarando
tão fixamente que me sinto intimidada. — Robin, não é?
Não vi quando ou como ela chegou tão perto, só percebo
que sua voz soou mais alta do que eu esperava.
— Sou eu — respondo, aturdida. — Eu não estava morta.
— Não foi o que pareceu quando você chegou aqui. — Ela
dá uma risada nasalada. — Mas, ei, foi uma brincadeira. Fico
feliz que esteja bem, assim eu finalmente posso conhecer a
garota de quem todos falam tanto. Especialmente a Flora.
Flora faz um movimento com a mão e respingos de água
atingem o rosto da garota. Ela retribui o gesto e as duas riem
juntas enquanto eu ainda estou tentando processar a nossa
primeira interação.
— O que está fazendo aqui uma hora dessas? Não deveria
estar com as crianças? — Olivia pergunta, quando as duas se
aquietam.
— Isis me deu uns dias livres para ficar com a Rob até ela
se acostumar com a ilha — respondeu, olhando para mim.
— E os privilégios de namorar uma princesa continuam —
diz a outra.
— Continuam? Como assim? — pergunto.
— Ah, ela não te contou? A Flora é a garota mais
paparicada da ilha, graças a você.
— Isso não é verdade!
— É sim! É a queridinha da Isis e todo mundo sabe disso —
ela ri. — Morou na casa dela e tudo mais.
Meio que acho graça da situação, porque jamais pensei que
minha relação com a Flora fosse fazer alguma diferença em
como as pessoas a tratariam aqui na ilha. Mas eu deveria saber
— pelo óbvio — que havia pessoas aqui que me conheciam,
mesmo que eu não as conhecesse. Antes de Flora, havia
Sophie e minha amizade com Isis, Nelly, Camilla e Danielle.
— Foi só até eu me enturmar. Agora sou obrigada a dividir
um teto com você, Olivia. Onde está o privilégio nisso?
— Não adianta tentar fingir que não adora a minha
companhia, não vai colar.
Flora revira os olhos e estou zonza de tanto virar a cabeça
para acompanhar o diálogo. E em silêncio, porque tudo que
passa na minha cabeça é: por que Flora não me disse que elas
eram tão íntimas assim? E por que isso importa tanto?
— Mas, ei, agora que a princesa está aqui, não vou mais ter
que tomar conta de você.
— Robin — digo, tentando não soar tão áspera. — Pode me
chamar de Robin.
— Como quiser. — Ela percebe meu desconforto. — Bem,
eu só vim me refrescar um pouco. Preciso voltar para ajudar no
jantar. Vejo você em casa hoje, Flora?
— Hm, eu não sei... O que acha, Rob? Você vai conhecer o
resto das meninas. Prometo que não são todas assim.
Ela segura o riso e Olivia atira água em seu rosto outra vez.
— Por mim, tudo bem — respondo, balançando os ombros.
— Perfeito! Vou pedir para colocarem mais um prato na
mesa, então. Até mais tarde, meninas.
Ela acena e vai embora nadando até a parte mais rasa.
Quando estamos sozinhas outra vez, Flora pergunta:
— E aí? O que achou dela?
— Meio efusiva, né? — digo, sucinta.
— Sim, e... ?
— É cedo demais para ter uma opinião.
— Olha só quem está com ciúmes agora!
— Dela? Pff... Flora, sem chances.
Queria ter certeza de que estou dizendo a verdade, mas
Olivia é bonita e simpática demais. Talvez eu realmente esteja
com ciúmes.
— Que bom. — Ela segura meu rosto com as duas mãos. O
toque é gelado por conta da água, mas me aquece inteira por
dentro. — Porque não é como se eu tivesse olhos para alguém
além de você.
Não há mais nada para ser dito. A sensação dos lábios dela
nos meus é como sentir o chão sob os meus pés outra vez.
Parece que estou em casa, que nada de ruim me aconteceu ou
vai acontecer. Flora me beija com a calma de quem quer
aproveitar cada segundo e eu memorizo todas aquelas
sensações para jamais esquecer outra vez.
VIII
As novas amigas de Flora são... comunicativas. Para dizer o
mínimo. Ou talvez eu seja o problema, já que não consigo me
inteirar sobre nenhum assunto que elas conversam. O que posso
fazer é sorrir e acenar enquanto me contam casos sobre a ilha e
sobre o trabalho que estão fazendo. É bom ouvi-las. Me distrai. Mas,
em certo momento, o fato de eu ser a garota de fora fica impossível
de ignorar, e então preciso achar um outro jeito de me distrair.
Flora está na cozinha com Olivia preparando o jantar, então
eu reparo no que está ao meu redor. A cabana em que elas
vivem é pequena, mas confortável o suficiente para quatro
moças. O lugar se divide em quatro espaços: a sala e a cozinha
conjugadas, dois quartos e um banheiro. A decoração é
simples, rústica e, para cada canto que se olhe, há um livro
repousando.
Estou à mesa com outras duas mulheres e vou, aos poucos,
me acostumando com os rostos e gravando os nomes de cada
uma delas. Tem Olivia, a garota desinibida da cachoeira, que
parece ter nascido com o dom de picar legumes sem cortar os
dedos enquanto conversa olhando direto nos olhos de alguém.
Aqueles braços torneados conseguiriam partir ao meio uma
tábua daquelas maciças e eu estaria mentindo se dissesse que
não fico intimidada.
Elisabeta, uma loira de cabelos crespos e sotaque italiano
carregado. A mais falante das meninas. Sua pele é tão branca
que parece translúcida e ela é rechonchuda feito uma lua cheia.
É encarregada de ensinar as mulheres mais velhas da ilha. Já
deve ter os seus trinta e poucos anos.
E, por fim, Julie. É a mais quieta delas, tem olhos cinzentos,
cabelos castanhos cortados na altura da nuca e toma vinho
como se fosse água fresca num dia quente de verão. Ela me
disse a idade em algum momento da noite, mas me esqueci.
Sei que não é muito mais velha do que Flora e é ela quem
planeja e escreve os livros que as outras usam, já que não tem
muito jeito para o professorado.
— Robin, você tem que nos contar tudo sobre a vida na
realeza — pede Elisabeta, mexendo as mãos mais do que o
necessário para uma solicitação tão curta. — Não é todo dia
que comemos com uma princesa.
Estava mesmo demorando para que trouxessem o assunto à
tona. Em geral, costuma ser a minha primeira interação com
grande parte das pessoas que me conhecessem primeiro pelo
meu título do que pelo meu nome. Só que, nesta noite em
especial, falar sobre a realeza seria falar sobre a minha família
também. E me lembrar que talvez eu nunca mais os veja.
— Quem sabe uma outra hora, Beta? — intervém Flora,
aproximando-se da mesa. E que bom que ela o fez, porque eu
não saberia como responder sem soar arrogante. — Talvez a
Rob precise de um tempo para tocar nesses assuntos. Além do
mais, o jantar está pronto.
— Finalmente! Esse cheiro de frango já estava fazendo
maluquices dentro da minha cabeça — diz Julie.
As garotas riem e não demora para serem postas à mesa
uma variedade de travessas com comidas de aparência tão
convidativa quanto o cheiro. Ajuda a dispersar a tensão que
ficou e eu me sinto, tipo, um milhão de vezes mais confortável
com Flora por perto.
Pequenas coisas, como ela ter captado o meu desconforto e
ter me ajudado a fugir daquela conversa, me fazem ter ainda
mais certeza sobre os meus sentimentos por ela.
— Você já apresentou a Robin para as suas crianças? —
pergunta Olivia, entre uma garfada e outra.
— Ainda não. Passamos o dia pela ilha, para que ela
conhecesse as coisas por aqui — responde Flora, girando o
pescoço para me olhar. — Mas talvez amanhã? Tenho três ou
quatro aulas pela tarde.
Eu balanço a cabeça em concordância, sentindo um frio
desconfortável na barriga.
— Contou para ela que as garotinhas te chamam de ‘tia
Flora’? — O comentário vem de Julie, junto de uma risada.
Não. Ela não me contou. Dentre tantas linhas escritas nas
cartas, esse detalhe escapuliu, assim como tantos outros.
— Tia Flora? — digo. — Vou amar ver isso de perto.
— São crianças. Na cabeça delas, todas as mulheres com
mais de catorze anos são tias — justifica Flora.
— Você precisa ver como ela fica dando aula. Tão
concentrada... Nem parece a garota desajustada que chegou
aqui uns meses atrás e que corava com qualquer comentário
atrevido da nossa parte — continua Olivia. — Tenho quase
certeza de que as horas que ela passava encarando o oceano
na praia era calculando em quanto tempo ela chegaria ao
continente nadando.
As garotas riem e eu também, apesar de estar um tanto
curiosa sobre os tais “comentários atrevidos” que ela
mencionara. Mas opto por não entrar em detalhes.
— Na verdade, — começa Flora. — na maior parte do
tempo, eu estava pensando na minha família. E na Robin.
Há um suspiro coletivo e ela segura a minha mão por
debaixo da mesa. Meu rosto esquenta no mesmo segundo que
nossos olhares se encontram.
— Vocês duas... Parecem mesmo ter saído direto de um
conto de fadas — comenta Beta.
Eu diria que nenhum conto de fadas teria uma sucessão tão
grande de tragédias, mas prefiro não estragar o momento com
meu humor mórbido. Sei que existem histórias trágicas por trás
da maioria das mulheres nesta ilha. Histórias que poderiam ter
tido um fim ainda pior se elas não encontrassem umas às
outras; não serei eu a macular os pensamentos felizes e
esperançosos de alguém.
— A princesa e... — começou Julie.
— A garota que falava com pássaros — completou Olivia.
— Essa história outra vez? — resmungou Flora, após revirar
os olhos. — Nem é tão engraçado assim.
— Ah, então sabem que ela falava com os corvos também?
— digo. — É meio engraçado, sim.
As meninas riem.
— Vocês precisam arranjar outra piada. — Ela dá de
ombros. — Sinto falta do Noir.
— Vamos ter que voltar ao continente uma hora ou outra.
Talvez você consiga vê-lo.
— Quem vai voltar? — A pergunta vem de Olivia.
— Nós duas. Quando... Se... Bom, eu preciso saber da
minha família — explico, com um nó na garganta.
— E Flora também vai? Olha lá... Eu não disse? Privilégios
— retruca Olivia, irreverente.
O tom dela não é agressivo, mas me incomoda. Não porque
soa como um ataque, mas porque ela acredita piamente no que
está dizendo e talvez isso deixe Florence desconfortável em
algum nível. Eu sei que eu fico desconfortável.
— Eu gostaria de ir ao continente outra vez — diz Julie.
— Mas por que motivo? Aquele lugar é horrível — pergunta
Beta, assombrada. — Eu não iria por nada nesse mundo.
— Você não sente falta de ver uns rapazes bonitos? —
perguntou a mais nova.
— Juju, eu já li muitos livros de romance que têm homens
escritos por mulheres para me interessar por algum de verdade.
Julie deu de ombros, muito bem conformada com a
resposta. Nem todas as mulheres da ilha se relacionavam
romanticamente com outras mulheres. Algumas delas só não
sentiam atração. É o caso de Isis, por exemplo. Não é muito
comum, mas vez ou outra acontece de alguém deixar a ilha
para se casar com os homens do continente. Só que é claro
que não é algo que eu entenda.
— Homens são decepcionantes. Quem precisa de um
quando se tem tantas mulheres como esta aqui — Olivia diz e,
enquanto discursa, segura o rosto de Flora com uma das mãos.
— Duvido que algum homem seja tão bonito.
Não faço ideia de quem corou mais rápido: eu ou Flora. Mas
nossos motivos eram diferentes, porque o rubor dela era de
timidez e, o meu, de indignação.
É quando percebo o quão minha mente está exausta. A
Robin de semanas atrás reagiria com uma resposta
atravessada ou comentário sarcástico. Já essa aqui fica
estática, encarando o outro lado do cômodo, sem saber o que
dizer. Estou entre desconhecidas, não quero soar mal-educada
ou desrespeitosa. Não quero deixar ninguém desconfortável,
porque tenho estado assim durante boa parte do tempo em que
estive nesta ilha.
— Olivia, você não pode falar assim na frente da princesa —
diz Beta, quebrando o silêncio que se instaurou.
Há como cortar a tensão com uma faca.
—Está tudo bem. — Flora tenta contornar. — A Rob não se
importa, né?
— Mas é claro que não. Você é mesmo linda.
Respondo rápido e sem pensar, porque é meu jeito tentar
dissimular que tenho confiança nas palavras que saíram da
minha boca. Talvez alguma parte de mim acredite mesmo nisso,
mas minhas inseguranças do passado vêm à tona para engolir
meus sentimentos. Só consigo desejar estar em casa, me enfiar
sob os cobertores e dormir até um outro dia chegar. Mas
preciso me conformar que não estou em mais casa; a chegada
de mais um dia nunca foi tão indesejável.
— Mudando de assunto, o que vocês acharam da comida?
— pergunta Flora.

O jantar não dura muito mais tempo depois daquela
conversa. Todas as meninas precisam estar acordadas bem
cedo no outro dia pela manhã, então eu e Flora fazemos o
caminho de volta para a casa de Isis antes da meia-noite.
Ela me enche de perguntas durante todo o percurso e eu
sou monossilábica, mas não sei o quanto quero que a loira
perceba que estou chateada. Tenho estado chateada durante
boa parte do tempo, pelos motivos óbvios causados pelos
últimos acontecimentos, mas é diferente dessa vez. Meu mau
humor está acumulando feito pilhas de folhas secas no outono
e não estou nem um pouco orgulhosa disso.
Isis e Nelly não estão por perto quando entramos na casa,
então suspeito que já estejam dormindo. As tábuas velhas do
piso impedem qualquer tentativa de caminharmos até o quarto
em silêncio e, ao alcançarmos o corredor de cima, uma porta se
abre.
De dentro dos quartos sai uma garotinha miúda, esfregando
os olhos com os punhos cerrados. A camisola clara vai até suas
canelas e sua pele é tão branca quanto a minha; ela tem olhos
de um castanho avermelhado e cabelo castanho-claro. Pelas
feições, deve ter no máximo dez anos de idade.
— Addy, o que você está fazendo acordada? — pergunta
Flora.
— A Nelly disse que a princesa tinha despertado. Eu queria
ver.
A voz da menina é doce e sonolenta. Ela me olha da cabeça
aos pés e de repente estou curiosa para saber o que passa na
cabecinha dela. Ergo a mão em um pequeno aceno, ela sorri e
retribui o cumprimento.
— Bom, aqui está ela. Mas você não deveria ter ficado
acordada, porque amanhã cedo temos aula, então vá se deitar.
— Vamos aprender os verbos do passado?
— Não se você não for dormir. Porque vai passar a aula
inteira com sono.
O tom da loira é quase maternal e a garotinha ri.
— Tem razão. Boa noite, tia Flora. Boa noite, princesa.
— Boa noite, Addy — respondemos juntas.
A menina caminha de volta para dentro do quarto e bate a
porta devagar. Eu e Flora fazemos o mesmo.
— Quem é? — pergunto, referindo-me à garotinha.
Me pergunto por que, durante todo esse dia, ninguém se
preocupou em me dizer que havia uma criança no quarto da
frente. Não que fosse a informação mais relevante do mundo
para se dizer, comparada a tantas outras coisas, mas foi uma
surpresa esquisita, mesmo assim.
— É a Adèle. Ela chegou na ilha há pouco tempo e ainda
estamos tentando fazê-la se adaptar a alguma das famílias da
ilha. Não costuma demorar tanto tempo assim, mas estamos
todas fingindo que Isis não está apegada demais. As duas se
dão bem.
— E por que ela não adota a menina?
Sento-me na cama e estico as pernas. É muito bom falar
sobre algo novo para me distrair.
— Não quer que pensem que está tentando substituir
Nellyne, caso ela realmente deixe a ilha. Bom, ela não diz, mas
sabemos que é isso.
— Faz sentido.
Dou de ombros e largo os sapatos no chão para me deitar. A
cama não foi arrumada, então me agarro aos lençóis e enfio-me
embaixo deles. Flora vem logo em seguida, após apagar todas
as velas, exceto pela que está na mesa de cabeceira. Ela joga
um dos braços sob o meu peito e me puxa um pouco mais para
perto, se aninhando feito um filhote.
Eu me mantenho imóvel, incapaz de corresponder aos seus
toques, porque ainda estou com aquela conversa do jantar
dando voltas em minha cabeça.
— Sobre o que Olivia disse... — começa. É claro que ela
notaria e, agora, estou muito envergonhada. — A gente sempre
flertou de brincadeira, desde que ficamos próximas. Se te
incomoda, eu peço para que ela pare.
— Não quero que você mude por minha causa. Não tenho
direito de querer que mude. Sua vida aqui é só sua.
— Eu vi como você ficou. Não sou tão desligada assim e,
além do mais, quero que seja a nossa vida algum dia.
— Eu fiquei daquele jeito porque... — Mordo o lábio por
dentro, hesitante. Se eu começar a contar, vai acabar saindo
tudo de uma vez e eu realmente gostaria de deixar o passado
para trás. Fazer as pazes com ele. — Além de tudo que está
acontecendo na minha vida agora, eu tenho alguns traumas do
passado que não gostaria que afetassem a nossa relação.
— É sobre Sophie, não é?
— Como você sabe?
— Ah, Robin, é uma ilha pequena. Fofocas aqui correm
como o vento.
— É... Pois é. Então, já que você já sabe, quero deixar claro
que não pretendo deixar o que aconteceu no passado definir
nossa relação agora. O que nós duas temos é único, sim?
— Claro que é, Rob, você é a minha pessoa favorita. Você
ouviu o que Olivia disse, sobre quando eu tirava uns minutos do
dia para ver o mar... Era sobre você também. Eu queria pensar
em você, lá do outro lado, me perguntando se você também
pensava e esperava e perdia noites de sono como...
Encerro seu pequeno monólogo com um beijo em seus
lábios. Ela retribui com tanta avidez que me deixa sufocada,
mas eu facilmente me sufocaria nos lábios de Flora. Os toques
dela são cheios de delicadezas, mas há um tanto de desejo e
tensão sexual acumulada.
Não sei como dizer que não estou com a menor vontade de
fazer nada agora, então, quando ela desce com a boca para a
minha mandíbula e faz menção a tirar minha blusa, preciso
apelar ao clássico:
— Eu... estou muito cansada agora — explico, remexendo
meu corpo sob o dela. — Talvez outro dia. Me desculpa mesmo.
— Não precisa se desculpar por isso, Rob, por favor.
Ela retoma seu lugar na cama e volta a se aninhar em mim.
Se ela se chateou, não deixa isso explícito no tom de voz.
Dessa vez, é mais fácil abraçá-la e trazê-la para perto.
IX
Flora se arrepende de me deixar assisti-la ensinando as
crianças no instante em que a pequena Adèle espalha para as
outras garotinhas que eu sou uma princesa. Num instante,
estou rodeada, sentada sobre uma mesa larga de madeira
diante de rostos pequenos e curiosos que me enchem de
perguntas e questionamentos do tipo:
“Você tem uma coroa?”
“Como se chama a sua fada-madrinha?”
“Achei que princesas só usassem vestidos bonitos, mas
você está de calças.”
Alguns me fazem rir, outros fazem com que eu questione
toda a minha existência — quem diria que crianças sabem ser
tão profundas às vezes? Mas a maioria deles me fazem lembrar
da minha família. Especialmente do meu irmão que, apesar do
medo de ter filhos, sempre foi muito bom com as crianças da
Corte. Muito melhor do que eu.
A escola improvisada fica numa construção parecida com
um celeiro, que é divido em salas pequenas, mas com tamanho
suficiente para acomodarem todas. São, até onde consegui
contar, vinte crianças de todas as idades na ilha inteira para
Flora dar conta. Olivia fica na sala ao lado, ensinando para as
meninas mais velhas; já Beta, na da frente, com as adultas e as
senhorinhas. As outras salas fazem um ruído modesto devido a
fina espessura das paredes, mas essa aqui é barulhenta como
uma orquestra desordenada.
— Agora que você está aqui na ilha, significa que temos
uma princesa? — pergunta a garotinha de cabelos
encaracolados e pele retinta, cruzando os braços curtos.
— Não significa, não — respondo. — Aqui, eu vou ser como
vocês.
Apesar de as últimas horas terem provado que isso será um
desafio, acrescento, só na minha cabeça.
— Minha mãe disse que se você se casar com um príncipe
ou com uma princesa, você se torna uma também. É verdade
mesmo? — Dessa vez, a pergunta vem do fundo, de uma
garotinha ruiva e sardenta com cabelos lisos.
— É mais ou menos verdade.
Mas como eu poderia explicar a sucessão de títulos da
família real para crianças?
— Então, a tia Flora vai ser uma princesa? — rebate ela.
Capto o exato momento em que, do fundo da sala, Flora
levanta o rosto de sua pilha de folhas e percebe que todos os
olhos do ambiente estão sobre ela. Suas bochechas ficam
rosadas e eu mordo os lábios, sem saber o que responder.
Nunca falamos em casamento naquelas longas cartas que
trocamos. A menção da palavra faz meu dedo anelar queimar e
é quando me lembro do anel de Sophie, que está trancado em
alguma gaveta do meu quarto no palácio. Não o usei mais
depois daquela noite em que eu e Flora nos beijamos pela
primeira vez, apesar de ser uma lembrança inofensiva.
Entretanto, eu ainda não tinha parado para pensar no nosso
futuro com tanta especificidade assim. Tudo que sei, é que não
consigo mais me imaginar ao lado de outra pessoa. Talvez,
quando as coisas se acertarem, eu possa fazer alguma coisa a
respeito.
— Bem, se... — começo a dizer, mas batidas na porta me
interrompem.
— Salva pelo gongo — diz Flora, com um sorrisinho,
caminhando para ver quem é.
No corredor, está Isis. Num primeiro momento, ela parece
curiosa com toda a baderna, mas compreende os motivos
assim que me vê diante das garotinhas.
— Bom dia, meninas — ela diz e é respondida com um
longo “bom dia” em uníssono. — Vou ter que roubar a
professora nova de vocês por um tempinho, tudo bem?
Um “não” sonoro é emitido pelo pequeno grupo e acabamos
por rir da reação delas.
— Eu prometo que volto depois. Se a Flora deixar, é claro —
digo, saltando da mesa para acompanhar a líder. — Aconteceu
alguma coisa? — pergunto a Isis, preocupada.
— Nada demais. É só que ainda não tivemos tempo para
conversarmos só nós duas.
Balanço a cabeça em positivo. Depois de me despedir das
crianças, acompanho a mais velha para fora do lugar. Logo
estamos no Núcleo da ilha, caminhando devagar e lado a lado.
Estou curiosa pelo que ela tem a me dizer.
— E então, como tem sido a sua estadia até agora? —
pergunta.
— Tem sido... reveladora.
— Num sentido bom?
Desvio os olhos para a estátua de Lisa, que está logo
adiante, para evitar olhar Isis nos olhos e demonstrar minha
incerteza. Apesar de termos sempre sido o mais francas
possível uma com a outra, não quero que ela saiba o quão
desconfortável tenho me sentido. Ela não precisa de mais
preocupações.
— Estaria sendo melhor se não fosse toda a situação com a
minha família e tudo mais.
Isis balança a cabeça em anuência.
— Tenho certeza que sim. E você sabe que estaremos aqui
para o que der e vier.
— Eu sei. Obrigada.
— Agora, tem outra coisa que precisamos discutir. — Um
calafrio toma conta do meu corpo no mesmo segundo. — Você
sabe melhor do que ninguém sobre os problemas que Sealaena
está tendo com Marselha, certo?
— Uhum.
— Com o rei desaparecido e o trono desocupado, seu reino
está enfraquecido, Rob. Cada dia que passa, a ameaça de uma
invasão ao norte se torna mais palpável.
— Eu... não tinha pensado nisso.
— De que jeito? Você passou por tanta coisa, meu bem. —
Ela para diante de mim e segura meu ombro, apertando-o
ternamente. — Não queremos te pressionar a nada, mas, se
Marselha alcançar a capital de Sealaena e conseguir
transformá-la num porto, a Ilha da Deusa vai correr riscos.
— E como eu poderia ajudar?
— Bom, você é a sucessora natural ao trono na ausência do
seu irmão. Uma rainha coroada poderia unificar tudo o que está
fragmentado.
Chacoalho a cabeça em negação e continuamos a andar.
— Isis, isso é absurdo. Não posso simplesmente chegar no
palácio, colocar uma coroa na minha cabeça e começar a dar
ordens. Seria como dizer a todos que... — Solto um suspiro
dolorido. — Que minha família está morta. E, além do mais,
seria uma responsabilidade enorme para a qual eu não tenho
nenhum preparo.
— A última parte é mentira e você sabe disso. Tenho certeza
de que, quando tinha a sua idade, o seu pai não era a metade
da governante que você poderia ser.
Desvio o olhar outra vez, contrariada.
— Não muda o fato de que eu não posso fazer isso. Seria
traição.
— Seria um jeito de ajudar a todos. Da ilha e do reino. Mas
você tem que querer, porque exigiriam muitos sacrifícios e
jamais te forçaríamos a nada.
Cruzo os braços.
— Minha família vai aparecer.
— É uma possibilidade, mas o contrário também é. E,
independente de qual for, eu e as meninas estaremos com
você.
— Se eu voltasse, teria que abandonar tudo. A ilha, a Flora.
Todas as coisas com as quais eu sonho desde sempre.
— Como eu disse, os sacrifícios são muitos. A escolha tem
que ser só sua.
Engulo a seco. Meu coração bate forte e se aperta dentro do
peito, causando um incômodo terrível e uma falta de ar
compreensível. Viemos parar diante de um pequeno templo. A
estrutura é parecida com uma igreja comum, mas é colorida por
fora por azulejos decorados com arabescos em tons de azul e
verde.
— Não pense que vamos achar que é egoísmo da sua parte
caso decida ficar.
— O que você faria? — pergunto, olhando diretamente nos
olhos dela.
Isis segue o caminho para dentro do templo, que é ainda
mais bonito em seu interior. As quatro paredes são tomadas por
uma pintura deslumbrante repleta de mulheres com todos os
tons de cabelos e de peles, flores rasteiras e um céu azul
estrelado de fundo. No chão, há apenas uma fonte no centro de
uma claraboia abobadada, com uma cascata de água que cai
da parede. O som da água é tranquilizante.
— Sou a pior pessoa para você perguntar isso. — Ela se
ajoelha na beira da cascata e tira do bolso um colar de contas
coloridas. — A Deusa sabe o quanto a minha atual situação tem
me colocado numa posição impossível.
— É sobre Nellyne? — pergunto, sabendo que a resposta é
óbvia, mas quero abstrair do assunto anterior para absorvê-lo
melhor.
— Ela já tomou a decisão dela. Não tem mais nada a se
fazer.
— Isso não te deixa menos aflita.
Isis ri.
— Sabe, quando o assunto foi discutido uma década atrás,
eu fui uma das que era contra essa coisa de não permitirem
meninos na ilha, mesmo os nascidos aqui. Afinal, se
educássemos eles desde pequenos, eles seriam como nós.
— Mas?
— Mas a ilha não é uma prisão. Fica quem quer ficar e,
infelizmente, o mundo lá fora ainda é dominado pelos homens.
E se, algum dia, um desses meninos quisesse conhecer o
continente e visse que, do outro lado, ele pode ditar as regras?
Como faríamos para garantir que ele não tentaria dominar este
lugar também? Conflitos e desentendimentos já acontecem por
aqui o tempo inteiro. Não precisamos de mais preocupações.
— Acho que compreendi. Não sei qual é a minha opinião, na
verdade, é terrível que talvez tenham que se separar.
Ela une a palma das mãos na altura da testa com o colar de
contas entre os dedos e faz silêncio por um longo minuto. Eu
fico de pé, com os braços balançando, sem saber bem o que
fazer. Depois de um tempinho ela se coloca de pé outra vez e
joga o colar na fonte. Ele afunda devagar e só então eu noto
vários outros objetos coloridos sob a água, se movendo
conforme ela é despejada no fundo.
— É como eu estava dizendo. Não podemos forçar nossas
escolhas em outras pessoas. Por isso, quando você me
pergunta o que eu faria, minha resposta é esta aqui: a Isis de
anos atrás, que tinha mais ou menos a sua idade, não pensaria
duas vezes em permanecer aqui onde é seguro. Mas a Isis de
hoje faria o que é melhor para as pessoas que dependem dela.
Quando for tomar a sua decisão, saiba que a melhor delas será
aquela que se sentir pronta para fazer.
X
Passei o resto da semana com as palavras de Isis reverberando
em minha mente. Esperei, durante cada um dos dias que se passou,
que alguém aparecesse com notícias da minha família, como quem
espera por um milagre. Agora, mais do que nunca, tudo o que eu
queria era que eles estivessem vivos e bem. Só que, como é bem
óbvio, isso não aconteceu.
Pedi à Isis que não comentasse nada com as meninas sobre
a coisa toda de voltar ao continente para assumir a coroa.
Especialmente com a Flora. Não há por que deixar ninguém
aflita — como eu mesma já estou — por algo que tem a chance
de nem sequer acontecer. E torço para que não aconteça.
Depois de perceber que seria uma má ideia que eu
acompanhasse as aulas de Flora por distrair as crianças,
decidimos que eu precisava de outros lugares para ficar, outros
jeitos de passar meu tempo. Então dividi meus dias com as
meninas, ajudando-as no que eu podia em suas funções. Fosse
inspecionando os barcos com Milla e Danielle ou organizando,
planejando e ajudando a estudar e desenhar os mapas de
Nellyne. Quando precisavam de alguém na cozinha comunal ou
na limpeza de algum espaço, eu me prontificava também.
Qualquer chance que tive de escapar de dentro dos meus
pensamentos, agarrei como uma tábua de salvação. Funcionou,
em alguma parte do tempo.
O mais importante é que estou conseguindo me sentir mais
à vontade, aos poucos. Não há mais jantares desconfortáveis
ou piadinhas sugestivas por parte de Olivia. Nos nossos breves
encontros, posso jurar que ela se sente desconfortável com o
fato de Flora e ela já não passarem mais tanto tempo juntas.
Não consigo dizer que me importo. É ruim me sentir assim tão
dependente e possessiva, porque desperta sentimentos tão
tóxicos que nem eu mesma sabia que tinha. Só que é mais
complicado me controlar quando me percebo ameaçada.
Me pergunto, com uma frequência maior do que gostaria, se
sou mesmo a pessoa com quem Flora deve ficar ou se ela só
se apaixonou por mim, porque fui a primeira garota que estava
ali quando ela descobriu que gostava de garotas. Agora, com o
caos que se instaurou na minha vida, e tudo que pode vir a
acontecer, me questiono isso mais do que nunca. Não quero
arrastá-la para uma vida carregada de problemas e
complicações só porque, talvez, ela sinta que tem uma dívida
comigo.
— Tem alguém aí dentro? — A voz de Nellyne invade meus
pensamentos. — Ou será que a sua alma abandonou de vez o
seu corpo?
Ela balança os dedos diante dos meus olhos e eu rio.
Estamos sentadas frente a frente numa mesa espaçosa de
madeira, dentro do ateliê da ilha onde são produzidos todos os
tipos de materiais em papel. Livros, mapas, o jornal com
informes da ilha e outras coisas assim. É onde Nelly passa a
maior parte do tempo e estou ajudando-a a melhorar os
desenhos e as legendas com o pouco de cartografia que
aprendi no palácio.
— Me desculpa, eu me distraí mesmo.
Estou segurando um pincel fino que, agora, pinga nanquim
no piso de tábuas. Ao menos eu não arruinei nenhuma das
belas criações de Nelly, que estão espalhadas sobre a mesa,
cercadas de potes de tinta. Estamos trabalhando num mapa
que demarca a distância entre a Ilha da Deusa e Sealaena na
maior escala possível, o que, por ser uma distância grande,
também cobre um bocado do sul da França, incluindo Marselha.
Olho diretamente para a linha disforme que divide meu reino e a
cidade francesa, pensando que, a qualquer momento, pode
acontecer o pior.
— Você tá legal? — pergunta Nelly.
— É o que todo mundo me pergunta desde que eu acordei.
Ainda não sei responder direito. Porque, apesar de ser óbvio
que não estou bem com tudo o que aconteceu, tento pensar na
minha sorte por ter vindo parar neste lugar e ter vocês comigo.
Nellyne sorri.
— Está tudo bem se sentir assim. Notei que você esteve se
esforçando para se adaptar nos primeiros dias, mas, pelo visto,
está funcionando.
— Seria mais fácil se não fossem as circunstâncias.
— Claro que seria. Mas não podemos prever o futuro, né?
Se alguém me dissesse há uns meses atrás que eu teria um
bebê e consideraria abandonar este lugar por causa dele, eu ia
dizer que a pessoa enlouqueceu.
Ela corre as mãos pelo ventre sob o tecido da roupa,
encarando a barriga enorme com os olhinhos brilhando.
— Estou feliz que esteja tão decidida. Eu estaria surtando,
mas... bem, isso nunca vai acontecer comigo, então não é
como se eu pudesse me colocar no seu lugar.
— Eu surtei, no início, mas depois que contei para o Adrian
e ele se mostrou tão disposto a enfrentar tudo comigo, fiquei
mais tranquila por saber que não estava sozinha.
— Você nunca esteve sozinha. Tem a sua mãe, as
meninas...
— Se eu for para o continente, nenhuma delas vai estar
comigo — ela me interrompe. — E está tudo bem. É a minha
escolha, não a delas.
— Bem, talvez você tenha companhia por lá. — Mordo o
lábio inferior, abaixando os olhos. — Não conte a ninguém, mas
sua mãe e as outras líderes estiveram considerando a
possibilidade de me pedir que eu volte para Sealaena para
assumir o trono.
Os lábios da minha amiga formam um “o” perfeito e ela
arqueia as sobrancelhas.
— Uou. Ela me contou dos problemas que estão tendo no
norte, mas não contou que essa seria uma possível solução.
Eu balanço os ombros.
— Loucura, não é?
— Totalmente. Mas não vou mentir, Rob, você seria uma
rainha sem nenhuma igual.
— Não é como se fosse muito difícil. Quantas rainhas que
de fato governaram você conhece?
Ela ri.
— Que engraçadinha. Você entendeu o que eu quis dizer.
— Aquele trono nunca me pertenceu, nem aquela coroa. —
Com a ponta dos dedos, tracejo o contorno das fronteiras de
Sealaena repetidas vezes, encarando aquele pedaço de terra
relativamente pequeno no mapa. — E eu não os quero. Não
mais. Quando eu era mais nova, me sentia terrivelmente
injustiçada por preferirem meu irmão, mas depois percebi que
não ia querer viver confinada num palácio.
— Mas você sente que é seu dever, não é?
Assinto, mexendo com a cabeça, e ergo o olhar.
— Se eu posso fazer algo para ajudar, não fazer seria
egoísmo, certo?
— Não é assim tão simples. Nós ajudamos as pessoas
fazendo favores, oferecendo nossa amizade, emprestando
dinheiro, dando abrigo ou comida. Assumir um reino extrapola
bastante tudo isso.
Dou uma risada nervosa.
— Tem razão. Eu só queria que o fato de eu saber disso me
fizesse sentir um pouco menos péssima. De qualquer jeito,
vamos mudar de assunto, espero ainda ter algum tempo para
pensar sobre.
Ela concorda comigo e, num instante, estamos conversando
sobre possíveis nomes de bebês. O que é um assunto que eu
jamais achei que estaria discutindo com uma das minhas
melhores amigas. Mas, outra vez, é um bom jeito de
interromper o fluxo de pensamentos que acabariam me levando
à insanidade.


Encontrar-me com Flora ao entardecer, no caminho para a casa
de Isis, se tornou um ritual. Perto das seis e meia, abandonamos o
que estamos fazendo para jantarmos juntas e depois irmos nos
deitar para falar sobre o nosso dia até dar a hora de dormir. Depois
daquela noite em que paramos nos beijos, não fomos mais adiante.
Graças à minha falta de jeito com as palavras, agora eu acho que
ela espera que a atitude parta de mim. O que é uma decisão terrível,
porque, por mais que eu a deseje com cada parte de mim, estou
sempre cansada e com a mente longe demais. Por isso, acabo
deixando para o outro dia e, bem, consegui completar uma semana
inteira.
Sei que ela entende e que não é o fim do mundo que não
tenhamos feito sexo, mas essas coisas costumavam ser mais
naturais na minha cabeça. No caminho para nos encontrarmos,
penso que talvez seja a culpa imensa que sinto por estar
omitindo algo tão grande. A verdade é que existe bem mais que
um simples motivo.
Flora está esperando por mim no lugar de sempre, entre a
bifurcação que divide o caminho da floresta e o caminho da
casa de Isis. Há algo diferente dessa vez. Ela está com um
vestido que eu nunca a vi usar antes. É azul — como todas as
peças de seu guarda-roupas, pelo visto — com um rendado
branco florido nas mangas que vão até seus cotovelos e na
barra que vai abaixo de seus joelhos. Parece um vestido para
uma ocasião especial; o laço fino de cetim que envolve a
cintura dela deixa isso evidente. A luz dourada do entardecer
toca seu rosto e se infiltra em seus cabelos soltos, fazendo-os
reluzir feito ouro.
— Eu esqueci de alguma coisa? — pergunto, me
aproximando sem conseguir desviar os olhos dela.
Flora ri, alcança meus lábios com os dela e me dá um beijo
que termina rápido demais.
— Achei que a gente pudesse fazer algo diferente hoje. Sair
um pouco da rotina, sabe?
Franzo o cenho, bastante curiosa com o que ela tem em
mente.
— Você é sempre cheia de surpresas assim?
— Quando eu estou inspirada, sim, eu sou. Agora vamos.
Ela toma a minha mão e me guia para dentre as árvores,
tomando o outro caminho da bifurcação.
— Para onde estamos indo?
— Surpresa, se lembra?
E não diz mais nada até que eu mesma acabe
reconhecendo o caminho e escutando o chiado da água
correndo. Estamos indo na direção daquela cachoeira enorme
e, pela primeira vez em muito tempo, me sinto entusiasmada
por algo. Meu coração está acelerado e um sorriso ameaça se
desenhar em meus lábios.
Dessa vez, estamos de um lado do rio em que não há
ninguém. Somos só eu, ela e o barulho dos pássaros e das
cigarras. Flora tira da cesta um lenço grande para estendê-lo
sobre o gramado e me puxa para que eu me sente junto a ela.
Em poucos instantes, há uma garrafa de vinho, taças, pães e
uma lanterna pequena que ela acende com uma pederneira.
Está escurecendo cada vez mais depressa.
— Queria que você se distraísse um pouco. Eu fiz bem? —
pergunta, ao servir as taças com o vinho.
— Você foi incrível, como sempre. Estou adorando isso aqui.
— Que bom. — Ela rasteja mais para perto, até nossos
ombros se encostarem, depois passa uns segundos admirando
a longa queda d’água. — Às vezes eu sinto que você faz de
conta que está bem para todo mundo, sabe? E queria que
soubesse que não precisa ser assim. Não comigo.
Preciso soltar uma longa lufada de ar antes de responder.
— Não acho que vá adiantar alguma coisa. Verdade seja
dita, Flora, as coisas estão feias do lado de dentro. E ainda não
estou pronta para lidar com elas.
Ela assente.
— Ao menos... me diz se algo estiver te incomodando. Eu
quero ajudar.
Lembro das coisas que Isis me disse, mas é claro que eu
não consigo dizer nem uma palavra.
— Você já está me ajudando mais do eu poderia retribuir um
dia. Você é uma pessoa boa, Flora, e acho que eu não
aguentaria metade do que estou aguentando se não fosse por
você. Então, me desculpe se tenho te feito pensar o contrário.
Minhas palavras fazem suas bochechas corarem e seus
lábios se abrirem num sorriso. Não me esforço nem um pouco
para resistir à vontade de beijá-la. Mesmo depois de tantas
vezes, os lábios dela ainda têm gosto dos meus sabores
favoritos: calma e desejo. Sem apartar nossas bocas, a loira
sobe em minhas pernas e me segura pela nuca, enquanto uma
de minhas mãos aperta sua cintura e a outra desfaz os botões
que me impedem de tirar seu vestido.
Eu corro meus dedos pela pele exposta de seu dorso para
senti-la esquentar enquanto tento abaixar as mangas do
vestido. Antes que eu consiga, Flora se levanta de súbito e olha
nos olhos, enquanto morde os lábios e anda de costas para o
rio, deixando um vazio gelado quase insuportável sobre as
minhas pernas. Ela se vira quando alcança a margem, para,
então se livra de uma vez por todas do vestido. Agora, ela está
usando somente as suas roupas de baixo enquanto caminha
para dentro do rio.
Não penso duas vezes em segui-la, mas, antes, me livro das
minhas roupas também. A água está morna e nos envolve feito
um véu de sombras, ao passo em que fica tudo tão escuro.
Alcanço Flora em dois tempos, quando já estamos numa
parte do rio que nos cobre até o colo. O contato de nossas
peles sob a água me arrepia por inteira e desperta um calor
crescente entre as minhas pernas. Ela joga os braços sobre os
meus ombros e envolve a minha cintura com suas pernas. Nos
beijamos outra vez, e outra, numa intensidade cada vez mais
avassaladora.
Minhas mãos começam a subir por sua cintura, traçando o
corpo curvilíneo e alcançando seus seios e Flora deixa escapar
um gemido tímido que me arranca um sorriso involuntário
durante o nosso beijo.
Meus lábios logo deixam os dela e descem, percorrendo a
linha de sua mandíbula até chegarem em seu pescoço. Ela
geme outra vez quando mordo de leve a pele e corro com a
ponta da minha língua no mesmo lugar. É impossível parar
agora. Flora está pressionando seu corpo contra o meu com
cada vez mais avidez e minhas mãos e meus lábios estão
explorando cada parte de seu corpo.
Quando deslizo os dedos para a parte interna de suas
coxas, elas se afastam e provoco a loira com um aperto firme
em sua pele antes de prosseguir. Não me lembro a última vez
em que consegui respirar decentemente.
Eu teria continuado, o que estava prestes a fazer se, tão
bruscamente, Flora não tivesse se afastado de mim. Fico sem
entender coisa alguma quando, então, eu escuto chamarem
meu nome.
— Princesa Robin! — grita a voz na margem do rio. Me viro
para buscar sua dona e me deparo com ninguém menos que
Olivia, com um sorriso irritante no rosto. — Desculpem
interromper, mas as líderes pediram que eu te encontrasse. É
urgente.
XI
Estou sentada, a uma mesa redonda, diante das três líderes
da ilha. Minhas roupas de baixo estão encharcando o resto das
minhas vestes e gotas frias pingam do meu cabelo e escorrem
pelas minhas costas, me causando arrepios esporádicos. Minha
pele está tão gelada que estou estremecendo dos pés à
cabeça. Não quero agravar o meu vexame pedindo roupas
secas ou uma toalha agora.
As três mulheres estão reunidas num outro canto da sala,
que é grande o suficiente para que eu capte apenas algumas
palavras soltas do que elas estão conversando.
Pediram à Flora para que esperasse do lado de fora, no
corredor, o que só me fez ficar ainda mais apreensiva.
Conheci Roksana e Lydia há quatro dias, quando fomos
apresentadas por Isis num jantar comunitário. E não foi muito
difícil entender o porquê elas haviam sido escolhidas para
serem líderes. Tinham todas uma serenidade invejável e um
olhar terno, mas igualmente austero. Além de Isis, nenhuma
delas têm filhas aqui na ilha; apesar de haver boatos que Lydia
teve dois filhos homens no continente. Ela é a mais velha de
todas, com a pele retinta e os cabelos crespos e grisalhos,
armados feito uma coroa em volta da cabeça.
Roksana deve ter seus quarenta anos; é parecida demais
com Danielle na altura, na cor branca da pele e no tom
acobreado dos cabelos. Seu corpo é bastante curvo, salpicado
por sardas que vão das suas pernas até seu rosto, circulando
os olhos verdes e os lábios que parecem estar sempre
esticados num sorriso, de tão largos.
A cada minuto que elas passam conversando entre si, eu
fico mais inquieta. Sinto vontade de roer minhas unhas, mas me
lembro que elas estão sempre curtas. Tento buscar algo com os
olhos para me distrair, como as janelas redondas de vitral claro
que decoram o ambiente, mas, a uma hora dessas, não há
nada que eu consiga enxergar do outro lado. As paredes são
repletas de estantes que contêm porcelana pintada e miniaturas
de animais selvagens, incluindo a figura de um guaxinim mal-
encarado, rosnando e mostrando os dentes afiados sobre duas
patas.
Guaxinins me dão azar. Sempre algo de ruim acontecia
quando eu via um pelos arredores do palácio. E eles sempre
estavam por perto, revirando as lixeiras e roubando comida.
— Princesa Diane Robin — a voz clara e potente de Lydia
chama por mim, à medida que as três vêm se aproximando a
passos lentos.
— Só Robin, por favor. — Peço, tão educada quanto consigo
ser.― Só a minha família me chama de Diane.
— Robin. — Ela assente. — Tem muita força em você,
menina.
Minha cabeça balança para nenhuma direção específica.
— Gostaria de ser mais forte, às vezes — digo, com alguma
hesitação. — E gostaria, também, de saber por que mandaram
me chamar.
As três se entreolham, então Isis dá um passo adiante.
— Aconteceu o que vínhamos temendo há algum tempo:
Marselha avançou com alguns empreiteiros para construir
postos militares no norte de Sealaena. O lugar está
desprotegido, o Conselho do Rei está atordoado. — Meu
coração pula do peito na mesma hora e minhas pernas perdem
a força. Eu teria caído se não estivesse sentada. — Não vai
demorar para chegarem até a costa e construírem cada vez
mais portos.
— Sem um líder, as coisas estão fora de controle por lá —
explica Roksana. — E a tendência é só piorar. Até encontrarem
um sucessor, pode ser tarde mais.
— A ilha corre perigo — completa Lydia. — Não sabemos o
que pode acontecer com um fluxo mais intenso de barcos indo
e vindo pelas rotas que fazemos.
Há um longo silêncio. É quando eu percebo que elas
querem que eu lhes dê uma resposta aqui e agora, mas eu me
sinto incapaz de fazê-lo. Como posso decidir algo dessas
proporções assim tão rápido? A semana que eu tive para
pensar no assunto só serviu para atacar meus nervos e me
fazer perceber o óbvio: não estou pronta para desistir da minha
família e tampouco para governar um reino.
— Eu não sei o que fazer — deixo escapar, como numa
confissão. — Não sei mesmo o que fazer.
— Gostaríamos de poder ter dado mais tempo para você se
decidir, mas não temos. Se você disser que quer voltar,
partiremos amanhã mesmo. Se não, vamos mobilizar a ilha
inteira para planejar estratégias do que faremos caso o pior
aconteça — diz Isis.
— Mesmo que eu vá, não é garantia que eles não consigam
invadir. Eu não poderia fazer muita coisa.
— Você pode ganhar tempo. Mais tempo do que jamais
teríamos — responde Lydia.
— Você não sobreviveu àquele acidente por um acaso,
Robin. Todas temos muita fé que a Deusa tem um propósito
grande para você. Sua vida é uma dádiva — diz Roksana. — E
você pode usá-la para ajudar a salvar todas nós.
Engulo em seco e desvio meu olhar, tentando parar o
turbilhão de pensamentos que corre pela minha cabeça. Parece
humanamente impossível. Controlar minha respiração e os
tremores do meu corpo é uma tarefa ainda mais complicada. Há
muito o que considerar, afinal. No entanto, me conhecendo
como conheço, sei que não suportaria permanecer aqui,
sabendo que me recusei a fazer algo para ajudá-las. Ainda que
tal ajuda mude o rumo da minha vida por completo, ao menos
não vou me corroer em culpa caso alguém se machuque.
E ainda existe uma questão crucial: apesar de ter passado
muitos anos querendo deixá-lo, Sealaena ainda é o lugar onde
eu nasci e cresci. É o lugar que aprendi a amar, apesar das
pessoas ao meu redor tornarem isso um desafio muitas vezes.
— Se vocês julgam que essa é a única saída, então acho
que eu não poderia dizer não — respondo, resignada.
— É claro que poderia. A escolha precisa ser de livre e
espontânea vontade, porque, quando se sentar naquele trono,
se sentará sozinha — diz Lydia.
— Depois de tudo que fizeram por mim, por Sophie e Flora,
minha escolha é mais do que sincera.
Como eu contarei à Flora? Como vou dizer que estou
renunciando a tudo?
— É a sua decisão final? — pergunta Roksana.
Busco o olhar de Isis antes de responder. Ele está centrado
em mim, com um brilho de orgulho, mas também repleto de
preocupação.
— É sim.
Deixo escapulir um longo suspiro de cansaço, ao começar a
raciocinar sobre tudo que vem pela frente. Quero desaparecer
por alguns instantes, para gritar sozinha num lugar onde
ninguém vai me escutar.
— Nesse caso, agora precisamos discutir os detalhes da
viagem e nos preparar. Mande que Danielle e Camilla venham
até aqui. Depois, vá descansar. Amanhã vamos acordar muito
cedo para partirmos e acertar como faremos para te colocar
dentro do palácio outra vez sem chamar atenção — comanda
Isis. — Obrigada por isso, Rob, saiba que estaremos aqui para
o que for preciso.
Eu balanço a cabeça em concordância, sem dizer mais
nada. Quando vou me levantar, percebo minhas pernas moles,
mas não deixo isso me impedir de caminhar para fora daquela
sala claustrofóbica.
Quando alcanço o corredor e fecho a porta atrás de mim,
minha primeira visão é de Flora, esperando por mim, sentada
no chão com uma toalha sobre os ombros e outra nas mãos
para me dar. Sua expressão aflita dá lugar a um sorriso aliviado
por me ver e ela se levanta para vir em minha direção, já
estendendo a toalha para envolver meu corpo. Apesar de já
estar quase seca, ainda estou sentido calafrios. Talvez tenha a
ver com a conversa que estamos prestes a ter.
— E então? O que elas queriam?
Não sei como dizer o que preciso dizer. Gostaria que alguém
contasse em meu lugar, mas sei que o melhor é que ela saiba
por mim, porque será traumático o suficiente.
— Vamos para a casa de Isis e eu te digo no caminho, tudo
bem?
Ela dá de ombros.
— Para você estar fazendo todo esse mistério, deve ser
importante.
Sem dizer mais nada, saímos do QG das líderes para tomar
o caminho para a casa de Isis. Se eu tivesse o mínimo de
energia restante no meu corpo, voltaria para aquela cachoeira
para terminar o que começamos e me despedir desta ilha do
melhor jeito possível. Mas eu não conseguiria. E acho que Flora
também não.
— Pouco tempo depois que eu cheguei aqui, Isis veio
conversar comigo sobre os problemas que Sealaena está tendo
na fronteira com a França — começo, juntando as mãos atrás
do corpo em puro nervosismo. — A coisa está bem feia para
aqueles lados.
— Eu soube. Não deve ser nada fácil para você, não é? De
um jeito ou de outro, ainda é o seu reino. Estar aqui, tão longe e
sem poder fazer nada... Sinto muito por isso.
— Foi para isso que me chamaram. A verdade, é que talvez
eu possa ajudar.
— Pode? Mas como?
— Querem que eu volte e anuncie para todos que estou
viva. Querem que eu assuma o trono para unificar o reino outra
vez e mobilizar as forças militares, que estão dispersas por não
saberem de quem acatar ordens.
Ela para no mesmo instante. E as chamas das tochas que
iluminam o caminho são suficientes para que eu consiga ler a
expressão de surpresa — talvez, de choque — em seu rosto.
— O quê? Mas como assim? — Ela encurta a distância
entre nós e toca meu ombro gentilmente. — E o que você
pretende dizer a elas?
— Meio que já disse. — Protelo a resposta.
— E?
— Eu vou.
— Você vai voltar? Vai embora, tipo, para sempre? Porque
essas coisas são para sempre, né?
As mãos delas estão trêmulas de súbito. Seu rosto está
vermelho e os olhos tão perdidos quanto os de uma criança
numa multidão. Meu coração está divido em cem mil pedaços.
Prefiro não contar que isso já estava sendo considerado há
uma semana.
— Não tenho outra escolha, Flora. Me perdoa —
Praticamente imploro. — Se tivesse, é claro que eu escolheria
ficar. Mas a França é uma ameaça para ilha, eu estaria
colocando todas em risco se não fosse.
— Mas e a sua família? Não sabemos se eles estão vivos,
se... Se vão voltar...
— Não existe mais tempo para esperarmos pela resposta.
— Quando você vai?
Sua voz sugere o quão ela está se segurando para não
chorar. É frágil, engasgada.
— Amanhã, de manhã.
— Amanhã de manhã? Mas nem tivemos tempo para ficar
juntas... E agora você vai embora, para não voltar mais?
Estou sentindo tanta dor que não consigo me mover. Não
consigo fazer nada além de olhá-la e pensar no quão injusto é
isso tudo. E o pior é saber que não posso voltar atrás na minha
decisão.
— Me diz que não é verdade, Robin — ela pede, numa
tentativa de firmar a voz e se acalmar. — Vamos, me diz que
estou tendo um pesadelo.
— Eu queria mesmo dizer. Queria mais do que tudo.
— Não sei o que fazer. Sinto que eu deveria te abraçar
agora, te acalmar e mostrar que entendo tudo, mas estaria
mentindo. Não consigo entender. Não agora. Mas eu vou. Só
que eu preciso conversar com alguém... Alguém que não seja
você, porque, quando eu te olho, só consigo pensar que, em
algumas horas, você vai partir e isso vai acabar comigo.
— Por favor, Flora, vamos ficar juntas. — Seguro sua mão
para que ela não se mova. — Esse pouco tempo é tudo que a
gente vai ter.
Ela desvia os olhos e se desvencilha do meu toque.
— Eu sei. Também sei que não faz nenhum sentindo. Vou
me arrepender depois, mas tudo que eu preciso agora é me
deitar na minha cama e chorar.
— Também preciso. E podemos fazer isso juntas, é tudo que
eu te peço.
— Não consigo. Mesmo. Me deixa ir, Rob.
Demora uns segundos para que eu solte sua mão. Faço isso
sem esconder em meu rosto o quão estou magoada, mas
preciso argumentar comigo mesma que, se eu estivesse no
lugar dela, provavelmente faria o mesmo.
Flora também demora para se virar e tomar o caminho para
a cabana. Eu fico parada assistindo-a desaparecer na
escuridão, enquanto lágrimas escorrem pelo meu rosto em
cascatas.
XII
Durante toda a noite, foi impossível fechar os olhos. Por
isso, quando batem à porta de manhã, ainda estou acordada,
com os olhos vermelhos, inchados e com a sensação de que
alguém acertou minha cabeça com um martelo.
Nellyne está adormecida do meu lado, ocupando a maior
parte do espaço e abraçada num travesseiro. Ontem, quando
entrei na casa, ela veio ao meu encontro e eu contei tudo.
Choramos juntas, como eu gostaria de ter feito com Flora, mas
eu não poderia pedir por um ombro melhor do que o de Nelly.
Ela me deixou deitar em suas pernas como minha mãe fazia
quando eu era criança, deixou que eu molhasse suas roupas
com as minhas lágrimas e deixasse tudo — ou o quanto
consegui — sair de dentro de mim. Por fim, ela acabou
adormecendo e eu continuei aqui, presa, desperta dentro da
minha mente caótica, para dizer o mínimo.
Invejei cada suspiro de sono dela.
Meus pensamentos iam e vinham entre o fato de que, em
algumas horas, eu precisaria estar outra vez em um barco, para
voltar ao continente e usurpar de uma coroa que nunca foi
minha.
Também passavam por Flora. Me perguntei a noite inteira se
ela, assim como eu, também não havia conseguido pegar no
sono. Algo me dizia que ela estava acordada, tentando não me
amaldiçoar por tudo isso. No fundo, sei que ela entende que a
culpa não é minha e penso no quão eu teria reagido mil vezes
pior se estivesse em seu lugar. Eu tendo a partir para a ofensiva
quando estou magoada; sou pouco racional. Não à toa, passei
o começo da noite acusando Flora de coisas terríveis na minha
cabeça e, agora que meu sangue esfriou, fico aliviada por não
ter dito nenhuma dessas coisas em voz alta.
Ainda está um pouco escuro quando Isis chama por nós.
Espero Nellyne despertar com o barulho e, quando está prestes
a acontecer, me ajeito na cama e finjo que estou dormindo. Se
a minha amiga fosse um pouco mais atenta, no entanto, logo
notaria as bolsas escuras que sei que estão sob meus olhos.
Posso senti-las.
— Rob — murmura, enquanto balança meu ombro com
leveza para que eu acorde. — Ei, acho que já está na hora.
— Mmh. — Simulo um gemido de sono pouco depois, me
remexendo sobre o colchão.
Abro os olhos e a vejo se levantando com toda a dificuldade
que a barriga enorme impõe. Isis bate à porta de novo.
— Já vamos — grita Nelly.
Estou dolorida dos pés à cabeça, e é como se houvesse
sacos de areia sobre as minhas pernas; impossíveis de serem
levantados. Minha garganta está seca como uma área
desértica.
— Preciso de água — digo.
— Estaremos cercadas por água daqui a algumas horas.
Quase havia me esquecido de que Nelly decidiu que iria
junto noite passada. Foi um embate feio com Isis, mas ela quer
estar ao lado da mãe quando o bebê nascer e deixar que o pai
da criança a conheça. Se for um menino, está decidido que ela
não voltará mais à ilha. Me sinto triste por esta manhã ser uma
possível despedida para ela também.
— Estamos juntas nessa, né? — pergunta, me jogando
roupas limpas.
É a primeira vez que olho nos olhos de Nelly e vejo que ela
está apavorada, talvez tanto quanto eu, por motivos
inteiramente diferentes.
— Não é como se tivéssemos outra escolha.

Durante todo o tempo que leva para tomarmos café da


manhã, espero que Flora apareça e venha se despedir. No
caminho até o navio, continuo esperando, mas não acontece.
As meninas se certificaram de que eu não tivesse nenhum
trabalho que não fosse caminhar, o que foi muito atencioso da
parte delas, porque acho que não teria forças para carregar
nem uma mala de mão. Não há nada que me pertença na ilha,
então tudo o que levo comigo são as roupas do corpo.
O barco que vai nos levar está ancorado numa balsa velha,
mas firme, que se estende por parte da areia até alcançar a
água numa parte bem mais funda. O mar parece agitado, mas
ao menos o céu está limpo e azul, sem nenhum sinal de
tempestade pela frente ainda que, pela extensão da rota, ainda
seja cedo demais para dizer.
Minhas pernas estremecem só de ouvir o barulho das ondas
batendo contra o casco.
— Já podem embarcar, porque vamos partir em minutos —
diz Danielle.
Nelly, Isis e eu estamos na ponta da balsa. Algumas das
garotas que vão conosco estão espalhadas pela praia,
despedindo-se entre si, enquanto outras já estão se
acomodando dentro do barco. Eu olho para trás de maneira
compulsiva, esperando encontrar a figura de Flora, torcendo
para que ela venha se despedir, mas não acontece.
— Talvez ela precise de mais tempo. — Isis percebe e toca
meu braço. — Foi tudo muito rápido.
— O tempo acabou — respondo, minha expressão se torna
dura e impassível. No fundo, estou sentindo uma dor que
aumenta exponencialmente a cada batida do meu coração. —
Vamos acabar logo com isso.
Dou o primeiro passo à frente, depois de um longo suspiro
frustrado, e elas me acompanham.
— Robin!
Na metade do caminho, meus pensamentos estão tão altos
que mal ouço quando, de longe, Flora chama meu nome.
Reconheceria aquela voz em qualquer lugar, de olhos fechado,
no meio de centenas de outras vozes.
Giro nos meus calcanhares no mesmo instante. É quando a
vejo na areia e minhas pernas ganham vida própria para
caminharem até ela o mais rápido que consigo. Ela faz o
mesmo. Quando nos alcançamos, nos enlaçamos nos braços
uma da outra e consigo sentir o quão rápido seu coração está
batendo. O meu também está.
— Você veio — murmuro, sem afrouxar o aperto. — Me
desculpe por fazer você ter que se despedir.
— Eu vou com você.
— O quê? — Seguro-a pelos ombros, afastando para olhá-la
nos olhos e entender o que está acontecendo.
— Vou para o continente. Decidi durante essa madrugada.
— Não vai, não.
— Vou, sim. Logo vão embarcar com as minhas coisas.
— Você não pode, é perigoso.
— As meninas estão indo também.
— Elas têm motivos para ir.
— Eu também tenho. Você.
—Mas... Aqui você tem tudo. Está segura, tem amigos, uma
vida inteira. Em Sealaena, não existe nada parecido. Não posso
te pedir uma coisa dessas.
— Você não me pediu. Estou tomando uma decisão.
— E eu estou pedindo que fique. É uma viagem arriscada, e
estar no continente é ainda mais arriscado. Não me perdoaria
se algo acontecesse.
— Pensei que você fosse ficar feliz.
— Nada me fez tão feliz quanto o dia em que você decidiu
que viria para cá. Porque eu sabia que estaria segura, que
estaria bem. É isso que importa para mim.
— Bom, eu não vou ficar feliz se estivermos longe por uma
vida. Não quero viver trocando cartas para sempre.
— Vou falar com Isis. Ela vai concordar que isso é loucura e
vai te impedir.
Entretanto, quando vou até Isis para protestar, ela responde
da seguinte forma:
— Flora, você tem certeza de que quer mesmo ir? Não
temos previsão de volta. Podem ser semanas, até meses. E
suas alunas?
— Julie disse que cuidaria delas por mim.
— Nesse caso...
Meu queixo cai.
— O quê? Isis, por favor, você deveria fazê-la ficar.
— Eu não posso. Lembra que eu te disse que a ilha não é
uma prisão? Se ela quer ir, não cabe a mim ou a você permitir.
Flora me encara com os braços cruzados e um ar de quem
venceu. Ela passa por nós com a cabeça erguida e sobe na
rampa para embarcar no navio.
— Isso é insano — digo. — Achei que ela estivesse bem
aqui.
Nellyne deixa escapar um riso.
— Ela estava. Mas não me surpreende nem um pouco,
sabe? Se você tivesse visto como ela ficou quando você
chegou aqui quase morta... Acho que Flora não quer passar
nem perto da sensação de pensar em perder você outra vez.
Dê um crédito a ela.
Engulo em seco algumas vezes antes de dizer:
— E como acha que eu me sinto com ela se colocando em
risco desse jeito?
— Respeitar as escolhas das pessoas que amamos é um
passo importante para entender como o amor funciona — diz
Isis. Mas ela não está olhando para mim, está olhando para
Nellyne.
Sinto cada palavra reverberar dentro da minha mente, mas
ainda estou inconformada.
— Vamos subir. Agora só falta a gente — diz Nelly,
esboçando um pequeno sorriso.

Flora e eu não trocamos nem uma palavra durante as


primeiras três horas de viagem. É um barco espaçoso e a
tripulação e as passageiras somam um número baixo de
pessoas, o que me deixa livre para ficar afastada. Das vezes
que a olho, ela está conversando com Milla e não parece se
importar nem um pouco com meu incômodo.
Agora, além de todos os problemas que pairam sobre mim,
também preciso me preocupar com a segurança dela. Mas
devo admitir que, no fundo, estou secretamente feliz por tê-la
em meu campo de visão e não a quilômetros de distância.
Talvez seja a loucura começando a tomar conta por causa da
noite inteira sem dormir. Isis sugeriu que eu cochilasse nas
cabines inferiores, mas, da última vez em que estive em alto
mar, toda a minha família desapareceu, por isso, mesmo
cansada, estou em estado de alerta, encarando o horizonte e
pronta para surtar ao menor sinal de nuvens escuras.
— Você precisa dormir — disse Nellyne, sentando-se ao
meu lado no convés. — Estou falando sério.
— Não consigo, não enquanto não estivermos em terra
firme.
— Ainda vai levar horas. Você vai acabar desmaiando.
— É, esse seria o único jeito. Sinto muito.
Ela me acerta um soquinho no ombro.
— Vamos pelo menos ficar onde você não consegue ver a
água. Ou a Flora.
Sou arrastada para os compartimentos inferiores à força. É
mais reconfortante do que eu pensei que seria, já que as águas
estão menos agitadas e sequer parece que estamos
navegando. É mais escuro também, então meus olhos relaxam
e o sono começa a dar os primeiros sinais de que vou perder a
luta.
— Estou tão irritada com ela! — exclamo, quando nos
afastamos mais. — Acha que eu tenho razão?
— A garota deixou a casa, as amigas e a vida inteira dela na
ilha para vir atrás de você e está preocupada em ter razão?
Não é meio tarde pra isso?
Eu bufo.
— Não quero que nada de ruim aconteça. Eu tenho azar,
Nelly, você não vê? Sophie morreu. Minha família morreu. Eu
quase morri.
— Você não sabe sobre a sua família e, calma, ninguém
mais vai morrer. Acho que está exagerando. Deve ser o
cansaço.
Estamos perto do lugar onde guardam as bagagens, no
penúltimo compartimento. É um grande corredor, com portas
que dão na cozinha do navio e cabines apertadas. Além do
porão, onde estão as nossas coisas.
— Você não vai me forçar a dormir, Nellyne.
— Ei, está ouvindo esse barulho?
— Não tenta mudar de assunto!
— Não, é sério, escuta.
Fazemos silêncio e, aos poucos, começo a escutar o
barulho de maçaneta rodando. Depois, batidinhas na madeira
que vêm do fim do corredor. É da porta do compartimento de
bagagens.
— Será que alguém ficou preso? — questiona Nellyne.
Nós chegamos mais perto. A porta está trancada e a chave
para o lado de fora. Quando Nelly a abre, nos deparamos com
uma criança do outro lado. É Adèle, que Isis pensava ter
deixado dormindo lá na cabana de uma moça da ilha que cuida
de outras crianças.
— Estou com fome — diz a garotinha, passando pelo
batente.
Minha amiga e eu estamos embasbacadas, nos
entreolhando e pensando o mesmo:
— Isis vai ter um infarto — dizemos juntas.
XIII
Isis não tem um infarto, mas sei que seu coração chega
perto disso, no instante em que ela percebe que eu e Nellyne
estamos acompanhadas por Adèle no convés.
A mais velha arregala os olhos e leva as mãos à cabeça. Eu
nem sabia que aquela parte branca dos olhos das pessoas era
tão grande assim. Quando a criança percebe a expressão
indignada sobre si, ela se esconde atrás das minhas pernas.
Estamos perto o suficiente para que Isis ainda consiga vê-la
muito bem.
— Me digam que estou tendo uma alucinação causada pela
maresia! — exclama Isis, sem saber onde enfiar as mãos. — Eu
não acredito no que está acontecendo.
Ela despenca sentada no banco de tábuas atrás de si.
Aquela cena chama a atenção das outras meninas e, num
instante, estão todas se perguntando por que tem uma criança
a bordo. E sabem que esse é o motivo de Isis estar à beira de
uma síncope. Até mesmo Danny parou o que estava fazendo e
olhou em nossa direção por cima do leme.
— Encontramos essa mocinha no compartimento de
bagagens — Nelly tenta explicar. — Ela deve ter se esgueirado,
enquanto guardávamos as coisas.
— Addy, pela Deusa... — diz Isis, incapaz de controlar o
descontentamento. — O que deu em você?
Ao ser diretamente questionada, a menina criou coragem
para sair do “esconderijo” e encarar a fera. Para ser bem
franca, eu acho que teria uma reação muito parecida se fosse a
matriarca. Quero dizer, eu mal consigo me colocar no lugar
dela, mas me sinto indignada com tamanha ousadia da
garotinha. É mesmo desesperador ver alguém que a gente ama
se colocando em situações arriscadas. Não é como se eu não
estivesse vivendo isso na pele.
— Não queria me separar de vocês. — É a explicação de
Adèle, aproximando-se com as mãos atadas atrás do corpo e
as bochechas rosadas. — Eu não ia subir no barco, eu juro.
Mas aí eu vi a Flora indo junto com vocês e achei que não fosse
ficar brava se eu viesse também.
Mas é claro, penso. Faz todo o sentido.
— Isso não é verdade. Você sabia que eu ia ficar brava, se
não, não teria feito escondido — rebateu Isis.
A menina tapou os olhos com as mãos.
— Vão me levar de volta? — perguntou Adèle, com voz de
choro.
A líder suspirou alto, depois puxou a garotinha pela mão e a
envolveu num abraço para tentar confortá-la e aliviar um pouco
de toda aquela tensão que o momento trouxe.
— Não. Mas eu deveria — resmungou. — O que eu vou
fazer com você agora? Não tem ninguém para te vigiar e
garantir que não se meta em problemas, como fez quando
decidiu se infiltrar aqui.
— Eu posso ficar com ela. — A voz de Flora surgiu dentre
as meninas, que formavam uma roda para assistir ao que
estava acontecendo. — Já que as minhas razões para fazer
esta viagem não parecem convincentes para alguns. Ao menos
vou me sentir útil.
O tom dela era planejadamente provocativo. Eu quase abri a
boca para rebater, mas estava tão absorta em meus próprios
pensamentos nada coesos, que preferi apenas revirar os olhos.
Não ia cair naquela armadilha verbal. Antes de sair de perto,
pude assistir quando ela tomou a menina pela mão e se afastou
outra vez.
Sei que problemas costumam ter a tendência de se
acumular, mas, do jeito que está acontecendo, é a primeira vez
que me faz questionar até onde pode ir a minha sanidade.

A tarde correu bem. E, quando digo que correu bem, o que


quero dizer, é: não aconteceu mais nenhum imprevisto. Mesmo
eu e Flora estando nos mesmos termos de quando estávamos
quando a viagem começou. Consegui me distrair com a
companhia de Nellyne. Jogamos jogo da velha, nos sentamos
no convés para assistir ao pôr-do-sol — e eu fiquei hipnotizada,
ainda mais porque o céu estava limpo e claro. Nelly fez com
que eu adormecesse por algumas horas depois disso, mas
acordei tendo pesadelos com afogamentos quando a noite
avançou.
A cabine onde nos acomodamos é para quatro pessoas.
Tem dois beliches e eu estou na parte de cima de um deles,
enquanto Nelly está na parte de baixo.
Não quero acordá-la, por isso fico bem quieta, olhando vez
ou outra pela escotilha para me certificar de que a lua crescente
ainda está bem visível sob as águas e que o mar está calmo. É
uma paranoia que não consigo conter, apesar de saber da
inutilidade da minha preocupação, já que não controlo o tempo.
Se tiver que acontecer uma tempestade, vai acontecer comigo
vigiando ou não. Ainda assim, ver que não está acontecendo
me tranquiliza.
Outras duas mulheres que conheço apenas de vista estão
ocupando o outro beliche. Elas, assim como Nelly, já estão
adormecidas há muito tempo. Sinto uma pontada de inveja.
Queria acordar só quando estivéssemos em terra firme.
Cruzo os braços sobre meu torso e encaro as tábuas do teto
da cabine, encontrando algo ainda tedioso, mas distrativo para
fazer: procurar desenhos na textura desigual. Um deles parece
formar o rosto de um homem assustado; já outro, as raízes de
uma árvore velha. Não demora a ficar repetitivo, mas é melhor
do que encarar o vento soprando a água.
— Rob?
A voz de Nellyne soa tão alta e repentina que dou um
pulinho e bato com a cabeça nas mesmas tábuas que estive
encarando esse tempo inteiro. Quando olho para a minha
amiga, ela está com uma expressão contorcida de dor em seu
rosto. Isso me faz esquecer da minha própria dor e focar toda a
minha atenção no que pode estar acontecendo.
— Chama a minha mãe... Acho que vou ter o bebê... Tipo,
agora... — A fala dela sai entrecortada, competindo com
gemidos que parecem ser de muita dor.
Não sei dizer com certeza, porque é a primeira vez que me
acontece, mas, se eu tivesse que dar um palpite, diria que
aquela é mesmo a expressão facial e corporal de quem está
prestes a dar à luz. Nelly está se contorcendo de todas as
formas e minha cabeça demora uns segundos para processar o
que está acontecendo e o que ela acabou de me pedir. Dá
tempo de seus gemidos acordarem as outras antes que eu me
mova.
Com o coração prestes a sair pela boca, me levanto e
caminho depressa até o corredor. O problema é que ele está
pouco iluminado e todas as portas parecem iguais. Não me
lembro onde é o quarto de Isis.
Entretanto, antes que eu arrisque um primeiro palpite, a líder
surge da outra extremidade do compartimento, escancarando a
porta como se lhe desse um golpe.
— O que são esses gritos? — pergunta, já na porta da
cabine em que eu estava com Nelly. — Ah, minha Deusa!
Ela adentra o espaço pequeno imediatamente. Depois disso,
tudo acontece rápido demais.
Outras mulheres saem de suas camas para ver o que está
acontecendo. Eu sequer consegui me aproximar outra vez, e
acho que minhas pernas não deixariam, porque estavam fracas.
— Tem alguém aqui com alguma experiência em partos? —
gritou uma mulher de lá de dentro.
É claro que não teria nenhuma parteira ali. Não é como se
esperassem que Nelly fosse ter a criança em alto-mar. Mas
estava acontecendo e, por mais que eu quisesse estar ao lado
dela para dar apoio, não consigo criar coragem. Se já me sinto
em puro desespero com aqueles gemidos, tenho certeza de
que desmaiaria se assistisse à cena.
Em pouco tempo, há uma mobilização para tirar Nelly do
quarto. Vejo tudo por alto, na ponta dos pés, bem atrás na
multidão.
— Você está aí. — Flora me chama, surgindo do meu lado.
— Fique com a Addy por mim. Ela está naquele quarto. — A
loira aponta na direção de uma porta entreaberta. — Se ela
acordar, diga que está tudo bem e que eu já volto.
— Mas eu não...
Não vou conseguir ficar quieta e nem sei lidar com crianças.
Era o que eu ia dizer, se ela não sumisse da minha vista, o
que não me deixou muitas escolhas.
Me fecho na cabine com a menina adormecida. O barulho
do lado de fora é consideravelmente abafado, o que é um alívio,
mas minha cabeça ainda trabalha a todo vapor.
Me pergunto se Nelly está bem.
Claro que ela não está bem, está gritando de dor.
Partos são arriscados. Sei disso. A maioria das mulheres
sabe, eu acho. Espero que esteja correndo tudo bem e que Isis
esteja mais confiante do que estou.
Por pensar em Isis, me lembro que, em breve, saberemos o
sexo da criança e que isso vai ser decisivo para o destino da
mãe e da avó dela.
Seria errado torcer para que seja uma menina e elas não
tenham que se separar? Se é doloroso para mim, só de pensar,
para elas deve ser ainda mais.
— Cadê a Flora? — pergunta Adèle, com a voz sonolenta,
se revolvendo entre os lençóis.
Nos últimos minutos, já é a quarta vez que alguém me
empurra para fora dos meus próprios pensamentos.
— Ela foi... — Quando não consigo elaborar uma resposta
rápida, percebo que deveria ter pensado nisso antes. — Foi
ajudar a Nelly com uma coisa. Está tudo bem. Ela já vai voltar.
Digo, repetindo as palavras de Flora, tendo plena certeza de
que a garotinha consegue sentir o cheiro do meu nervosismo e
que ela sabe que sou uma péssima tapeadora.
— Que coisa? — Ela se senta na cama. — Está tudo bem
mesmo?
— Claro que está! A Nellyne só precisou de alguém para...
— Ela está tendo um bebê, não está?
A menina arqueou as sobrancelhas e me deixou atônita.
— O quê? De onde você tiraria uma coisa dessas? — Dou
uma risada nervosa.
— Já vi acontecer isso uma vez, na minha outra família.
Minha mãe estava com uma barriga enorme igual a Nelly,
então, uma noite, eu acordei com toda essa mesma barulheira
e, na manhã seguinte, eu tinha um irmão. Um bebê.
A resposta da menina me deixa atônita. Eu não estava
pronta para essa saia justa. Mas claro que ela ouviria a
agitação irromper o silêncio de dentro da cabine.
— Você venceu. Ela está tendo um bebê. Mas não diz para
a Flora que te contei e fique aqui bem quietinha comigo até ela
voltar.
— Não vou dizer. — Ela se aninha outra vez sob os lençóis.
— Se for esperar, acho melhor se deitar. Essas coisas
demoram.
Adèle rola para o outro lado da cama, me deixando algum
espaço. Me rendo e deito com ela, encaixando-me na cama no
espaço que coube. Sinto as mãos pequenas puxarem um dos
lençóis para jogarem ele sobre mim. E, depois, Addy joga um
travesseiro sobre a cabeça, na intenção de abafar ainda mais o
barulho.
Eu teria feito a mesma coisa se tivesse um travesseiro
sobressalente, mas tudo o que me resta é fechar os olhos e
esperar que, lá fora, as coisas se acalmem e que tudo corra
bem.

Não sei dizer quando peguei no sono. Minha última memória


é de ter vindo me deitar com Adèle e ficar me remexendo sobre
o colchão até a menina perder a paciência comigo e sugerir que
contássemos raposas passando por debaixo de cercas para
adormecer. Ela contou uma, eu contei duas, ela contou três e
assim sucessivamente. Não demorou para que eu pegasse no
sono depois disso e me mostrasse uma péssima babá.
Sorte a minha que ela parece ter ficado bem quieta. Sei que,
quando desperto, Addy está adormecida e tem uma garota na
porta da cabine, dizendo que Nelly pediu para me chamar.
Meu corpo inteiro esfria na mesma hora. A barulheira já
terminou, o que significa que o parto deve ter terminado
também e a criança está, oficialmente, entre nós. Em alguns
momentos, vou saber o que vai acontecer com uma das
famílias que eu mais amo e, por isso, me atraso de propósito
para levantar da cama. Ultimamente, tem se tornado um hábito
receber notícias que me deixam, no mínimo, chateada.
Sou levada até a outra ponta do corredor pela moça que me
indica a porta da cabine para onde levaram Nellyne. É a cabine
de Isis, a maior do navio. Quando entro, a primeira visão que
tenho é de Nelly deitada na cama, com a mãe ao lado. Não vejo
nenhum bebê, o que me parece estranho no começo, mas, ao
abrir um pouco mais a porta, vejo que Flora está segurando um
pacote embrulhado em panos, com Danielle de pé ao lado dela,
como uma torre. Ambas estão sorrindo para o amontoado de
tecido, então julgo que, entre ele, está a criança. Apesar dos
sorrisos, todas as mulheres têm olhos muito cansados. Devo ter
dormido por muitas horas.
Quando me vê, Nelly faz um gesto com a mão para que eu
me aproxime e caminho até ela devagar, evitando fazer barulho
demais, porque tenho a impressão de que vou quebrar alguma
coisa caso faça.
No caminho, consigo enxergar de relance o rosto
avermelhado e franzido do bebê. Mas, à primeira-vista, parece
só um como qualquer outro. Sinto o olhar de Flora sobre mim e
quase tropeço em meus próprios pés antes de chegar perto da
cama.
— Me desculpa por não ter ficado aqui com você? — digo,
sentando-me ao lado dela. — Não sirvo para essas coisas,
você sabe. Mas estou aqui agora.
A julgar pelos lençóis ensanguentados no cesto perto da
cômoda, sei que não aguentaria muito tempo, ainda mais no
meio de toda a tensão.
— Flora me disse que você estava com a Addy. E,
francamente, que bom que não estava aqui. Seria só mais uma
pessoa para me deixar irritada — brincou, rindo baixo. — É um
menino, Rob. Vamos chamar ele de Bes.
De uma vez só, Nellyne quebra todas as minhas esperanças
como quem estilhaça uma vidraça com um tijolo. É um menino.
É isso. Ela vai ficar no continente e, ao que tudo indica, eu
também vou. Estaremos atadas lá, por laços muito diferentes,
mas que, ainda assim, serão inquebráveis à sua própria
maneira.
— Nelly... — Soluço, segurando o meu tom embargado.
— Não soe tão triste. Eu estou muito feliz pelo meu filho e
não o trocaria por nada nesse mundo. Soube disso assim que vi
aquele rostinho e não quero que isso faça vocês o ressentirem.
Fiquem felizes com ele também.
Isis aperta a mão da filha e deixa um beijo ali. Há lágrimas
nos olhos dela, mas a líder as controla com firmeza para que
não rolem por seu rosto.
— Quer segurar ele? — pergunta Flora.
— Não sei se saberia, mas quero conhecê-lo.
Forço um sorriso e me levanto para olhar a criança. As
bochechas de Flora estão coradas pelo cansaço, mas um
sorriso enorme traz leveza à sua expressão.
Nunca entendi o encanto em torno de bebês recém-
nascidos, mas Bes tem cabelos escuros e traços muito doces
que lembram Nelly, o que o torna adorável. Acho que posso
aprender a gostar dele. Por ela.
XIV
Quando o dia amanheceu, sabíamos que, apesar do cansaço
por conta da noite agitada, precisávamos nos organizar para
entrarmos no continente sem sermos notadas. Ainda mais agora,
que todos os acessos estão dificultados por conta das buscas pela
família real — a minha família.
Enquanto explica as circunstâncias e como despistaremos a
guarda costeira, Isis está altamente focada. Não saberia dizer
como ela pode parecer tão serena, quando eu mesma não
consigo pensar em outra coisa que não seja Nellyne e o bebê
Bes, que fará as duas se separarem.
Ela é líder por um motivo, afinal.
— Vamos desembarcar longe da praia aos poucos —
explica, do alto das escadas do convés. — Esperaremos a troca
de turnos, que acontece ao meio-dia, e passaremos por uma
área remota. Vou lembrar para que tenham cuidado com os
movimentos dentro dos botes, porque tem muitas pedras e
corais em volta. Uma barricada deles.
A situação toda tirou minha mente do que estava
acontecendo antes, por um tempo. Mas as falas de Isis me
trazem de volta à realidade como um espiral que me puxa para
o centro de todos os problemas. A cena que vem à mente
quando ela menciona o bote e as pedras é aquela em que
fomos todos arremessados ao mar. Num instante, a água gélida
está envolvendo meu corpo por inteiro; estou submersa. Arrepio
com a memória.
— Depois, vamos seguir para o acampamento e nos
acomodar, para pensar em como faremos para levar Robin até
o palácio e dar a notícia que ela está viva.
Do lado de fora, estou concordando veementemente com
tudo que ela diz. Por dentro, minha mente está maquinando
sobre os mil jeitos de tudo dar errado. O que, levando em conta
os últimos acontecimentos, é mais provável de acontecer do
que o contrário.

Por mais surreal que isso soe: dá tudo certo.


É esquisito pensar que, daqui a algumas horas, vou estar de
volta em casa. Depois daquela viagem aterrorizante, depois dos
meus dias na ilha e tudo o que aconteceu lá. Quando eu me via
retornando a Sealaena, por alguma razão, meus pais e meu
irmão estavam em todas as cenas. Porque, por mais que
houvesse outras coisas para eu sentir falta, eles eram o grande
elo que eu sempre teria. E espero que exista a ínfima chance
de eu voltar a ter.
Logo estamos dentro do acampamento; aquele mesmo onde
estive pela última vez, quando trouxe Flora para conhecer as
meninas. Pode ter sido uma das minhas melhores decisões e
me orgulho muito dela, por mais que agora esteja tudo tão
revirado.
Flora tem uma vida muito boa naquela ilha. Aqui, não tem
nada.
Não sei por quanto tempo ela vai conseguir se convencer de
que eu sou um motivo bom o suficiente. E quando perceber no
que se meteu, sairemos as duas machucadas. Pode ser que
seja tarde até lá.
Encarrego-me de ajudar Nellyne a se acomodar com o bebê,
junto de Isis e Flora. Elas ficarão no primeiro andar, num dos
quartos mais afastados e quietos da casa. Coberto por um
lençol e muitas camadas de poeira, tem um berço velho, com
um colchão que precisa ser batido na janela, para ser limpo e
se tornar utilizável outra vez.
Enquanto uma nuvem de poeira é enxotada para fora por
mim, uma das meninas bate à porta e diz que tem uma visita
para Nelly e Bes.
— É ele! — Nelly vibra. Ela está sentada na cama com o
bebê aninhado em seus braços. É uma cena tão idílica que
sinto vontade de pedir que pintem um retrato. — É o Adrian.
— Como ele nos encontrou? — pergunta Isis, estupefata.
— Eu pedi que o chamassem.
— Nellyne, você deu a nossa localização para esse rapaz?
— Não é contra as regras receber visitas de homens, mãe.
Confio nele.
— Sabe que essas coisas têm que ser discutidas e
aprovadas.
— Você aprova?
— Não é só minha a decisão. O que as outras vão pensar
quando virem ele?
— Acho que todas concordam que ele precisa conhecer o
filho. E que você deveria conhecer o homem com que eu vou
passar a viver depois que forem embora.
— Nellyne!
— Pode mandar ele entrar — diz Nelly à garota da porta.
Isis aquiesce. Não diz mais nada, só continua tirando as
roupas da maleta e as enfiando no guarda-roupa.
Flora e eu tínhamos parado o que estávamos fazendo para
acompanhar a breve discussão, mas logo em seguida nossa
atenção é capturada pela figura do rapaz que passou pelo
batente da porta.
Adrian dá seu primeiro passo para dentro do quarto como
um ratinho assustado, olhando para todos os cantos. O cabelo
castanho encaracolado cobre um pouco da testa e dos olhos;
ele é magro, de altura mediana, tem a barba cerrada e a pele
pálida. Um típico sealaenense que, com toda certeza, trabalha
com algo que exige bom porte físico, porque os braços dele têm
músculos de sobra. O que só torna a cena mais cômica, porque
ele caminha até Nelly olhando de relance para nós como se
pudéssemos atacá-lo a qualquer momento.
Minha amiga está sorrindo, ansiosa para estender os braços
e apresentar o filho ao pai. Quando Adrian a alcança, ele se
inclina sobre ela e junta suas testas. Ambos fecham os olhos
por alguns instantes. É algo bonito de presenciar, porque fica
nítido quão sentiram saudades um do outro.
Eu reconheceria esse sentimento em qualquer lugar.
— Não dormi a noite toda. Acho que eu estava sentindo —
diz ele. — Se eu soubesse que estavam vindo, teria te
encontrado no meio do caminho.
Nelly ri e eles se separam.
— Você não saberia para qual direção ir.
— Eu ia saber. De algum jeito.
— Claro que sim — brinca. — Bom, acho que está na hora
de fazer as apresentações. Essas são algumas das minhas
amigas, Flora e Robin. — Ela aponta para nós duas. — E essa
é a minha mãe, Isis.
A matriarca se coloca de pé e caminha até o rapaz para lhe
estender a mão. Ele a cumprimenta com um sorrisinho tímido
nos lábios.
— E esse é o Bes. Nosso filho — diz Nelly, estendendo a
criança em seus braços na direção do pai.
— É um menino, então. — Ele sorri, satisfeito. — Tomara
que se pareça mais com você do que comigo.
Deixamos os dois sozinhos no quarto para terem o momento
de privacidade que precisam.
Isis parece desconfortável demais ao sair do cômodo, mas
não diz nada a respeito, apenas chama eu e Flora para os
andares de cima, onde começamos a limpar e a mover os
móveis para acomodar as outras.
Passamos um longo tempo apenas com os barulhos das
coisas sendo levadas de um canto para o outro e janelas
abrindo entre nós, até que a mais velha quebra o silêncio.
— Vocês precisam se resolver logo. Estão me deixando
maluca. Não preciso de mais nada me enlouquecendo no
momento.
— Da minha parte, está tudo resolvido — diz Flora. Eu reviro
os olhos. — Não é comigo que você tem que falar.
Antes que eu ou Isis possamos dizer qualquer coisa, ela
atravessa a porta e a bate atrás de si.
— Olha só como ela está agindo! Como se eu não tivesse
motivos para estar chateada! — resmungo.
— Seus motivos já não são muito razoáveis agora que já
estamos aqui. O que quer que ela faça?
— Que ela perceba a loucura que fez. E volte. Aqui não é o
melhor lugar para ela.
— Essa escolha não é sua, Rob.
— Nellyne também fez uma escolha. Isso não te faz ficar
chateada? Não te faz ter medo por ter que deixar ela aqui?
— Estou chateada. Estou com medo, sim. E, veja, as duas
estão dispostas a renunciar a uma vida confortável por pessoas
que elas amam. É claro que o amor de uma mãe é diferente do
amor entre amantes, o que torna a decisão da Nellyne mais
fácil de entender, mas, ainda assim, está doendo muito em
mim. Só que eu aceitei.
— Não aceitou, não. Pode falar a verdade comigo, não vou
contar pra ninguém.
— Como te disse há uns dias, é uma posição impossível. No
entanto, acha mesmo que eu pediria para ela se afastar do filho
porque eu quero? Por que é mais fácil para mim? A vida é dela.
Sempre foi.
Aproximo-me dela e aperto seu ombro com delicadeza.
Depois suspiro longamente.
— Acho que podemos concordar que foi uma comparação
falha. Mas, se te faz sentir melhor, acho que Adrian será um
bom pai e um bom parceiro.
— É bom que seja. Vou me certificar disso todas as vezes
em que voltar aqui.
— Espero que ele não vá à coroação. Imagina só o quão
confuso seria — brinco.
Isis arregalou os olhos.
— Ainda temos esse problema para lidar... Nellyne não tem
juízo mesmo.
— Não se preocupe, você vai tomar um susto quando ver o
quão diferente eu fico usando vestidos com pedrarias, joias e
uma tiara.
Nós duas rimos e a tensão é dissipada aos poucos. Mesmo
que por um instante, é muito bom conseguir fazer piada da
situação que tem me deixado tão aflita nas últimas horas. Nos
últimos dias, para falar a verdade.
Dentre os risos, Danny abre a porta do quarto com tanta
sutileza que só a vejo ali por conta do cabelo ruivo e pelo fato
de ela ter dois metros de altura e ser impossível de ignorar.
— Isis, estão precisando de você lá embaixo — ela diz,
entrando no cômodo.
— O que foi desta vez?
— Não me disseram. Tem a ver com os containers.
— Certo. — Ela leva a ponta dos dedos até as sobrancelhas
e as ajeita, num gesto de cansaço. — Descanse aqui hoje, Rob.
Amanhã será um dia importante.
Quando ela diz isso, sei que está se referindo à minha volta
ao palácio. No mesmo instante, me vem uma vontade esquisita
de vomitar e um arrepio sobe minha espinha dorsal.
— Nervosa? — pergunta Danny, depois que Isis se vai.
— Está tão óbvio assim?
Caminho até o espelho que está do outro lado do quarto,
encarando meu rosto, que está pálido e possui olheiras fundas.
Já vi pessoas doentes com uma fisionomia melhor do que a
minha.
— Não é isso. — Ela ri. — Eu também estaria nervosa.
Danny corre os dedos sobre a superfície de uma cômoda e
depois limpa a poeira em seu vestido roxo. Ela olha para mim
em seguida e dá um sorrisinho.
— Você? Que grande mentira! Te vi no leme daquele barco.
Navega tão bem que parece não ter medo de nada.
— Ter medo é um dos motivos que me obriga a fazer isso
direito. Medo de tempestades, medo de ferir as pessoas que eu
amo, medo de morrer...
— Ao menos, não dá pra ver isso só de olhar para você.
— Claro que não! Embarcaria num navio em que a capitã
está com cara de quem quer saltar dele pelas escotilhas?
Tenho que passar confiança pra quem está comigo. E você
deveria fazer o mesmo ao entrar pelos portões daquele palácio,
porque, se não aspirar confiança, então qual é o propósito de
estar deixando tudo para trás?
Mordo meu lábio por dentro, tomando um tempo para
absorver as palavras dela.
— Tenho esperanças de que algo aconteça e eu não precise
fazer nada disso. Que tudo volte ao normal, sabe?
— Nada vai voltar ao normal. Algumas coisas são para
sempre. A Nellyne e a Milla por exemplo... Não acho que algum
dia vão se recuperar e, agora que a Nelly vai ficar por aqui,
talvez nem tenham mais uma chance.
— Elas ainda não estão se falando?
— Camilla é uma grande cabeça-dura. Não aceita perder a
amiga para o que, agora, é a família dela. — Danny suspira. —
Além do mais, Sophie já te contou alguma vez que ela era
apaixonada pela Nelly?
Meu queixo cai.
— Não acredito.
— Tem muito tempo. Mesmo. Coisa de quando elas tinham,
sei lá, treze anos? Nem sei por que isso está na minha cabeça
agora, sei que não é mais uma questão. Mas o laço entre as
duas sempre foi muito forte.
— Esse é o meu ponto por estar tão irritada. Sentimentos
mudam. Um dia você está apaixonada e no outro não está.
Gostar muito de alguém não é o suficiente para tomar decisões
às vezes.
— Está tentando me dizer alguma coisa? Porque, se sim, eu
ainda não peguei.
Ela me dá um olhar confuso.
— Deixa pra lá. Já reclamei disso aos quatro ventos, não vai
adiantar.
— Está bem, Rob, mas saiba que você é a pessoa que mais
toma decisões impulsivas por causa das pessoas que você
gosta. Se está falando da Flora, tenho certeza de que, se fosse
ela no seu lugar, você faria a mesma coisa.
Reviro os olhos e desvio meu olhar para longe, mas isso não
impede que ela veja o quão vermelho está meu rosto.
— Talvez. — Balanço os ombros, sabendo que a resposta
honesta é que eu, definitivamente, faria o mesmo. — Mas ter
segurança do que eu sinto não adianta muito nesse caso.
— Ela fez alguma coisa para te deixar insegura?
Lembro-me de Olivia no mesmo instante. Em como as duas
têm tanta intimidade, como são próximas uma da outra. Com
ela, Flora estaria bem, num lugar que ela ama, vivendo uma
vida de sonhos.
— Não. Nunca.
É a mais pura verdade. Tudo o que me traz dúvidas são
coisas da minha própria cabeça e experiências ruins do
passado.
— E, além de ela estar aqui, qual outra certeza você quer?
— perguntou Danny, com um sorrisinho astuto nos lábios.
Eu, como de costume, não encontrei nenhuma resposta à
altura, então engoli minhas convicções.
XV
Passei o resto do dia trancada no quarto tendo, como
companhia, meus próprios pensamentos e, na manhã seguinte,
organizamos uma pequena reunião para decidir como eu faria para
retornar ao palácio.
Acabou ficando decidido que eu iria sozinha, por segurança
e para manter a discrição, depois duas garotas escolhidas por
Isis dariam um jeito de se esgueirar para dentro. Deixei
algumas instruções para elas burlarem a segurança, já que
conheço melhor do que ninguém os jeitos mais sutis de entrar e
sair dali.
Sou deixada por Danny e Milla nos fundos do lugar, perto da
entrada de mercadorias. De onde estou, não consigo ver nada
por dentro, apenas as torres e o muro, mas posso sentir a aura
caótica que cerca o ambiente feito um domo. Só que eu sei que
outras pessoas não sentiriam o mesmo, e que é mais sobre a
minha conexão com a minha casa do que algo tangível.
E, além do mais, é quase dez da manhã e não existe
nenhum fluxo de mercadorias. Isso estaria repleto de gente em
outros tempos e a escassez de almas vivas demonstra o estado
de calamidade que devem rondar as coordenações internas
mais simples.
Aproximo-me do pórtico, constatando que, de fato, não há
ninguém por perto. Preciso bater com força e muitas vezes
antes que comecem a girar a roldana para abrir a cobertura do
gradeado.
O guarda do lado de dentro demora um tempo para me
reconhecer, mas, quando acontece, seu rosto empalidece e ele
coça os olhos para se certificar de que está enxergando direito.
— Princesa Diane? — grita ele, como se eu não pudesse
ouvi-lo de onde estou. — É a princesa Diane!
Dessa última vez, ele grita para qualquer um que esteja num
raio de 100 metros ouvir e caminha a passos apressados na
minha direção.
Em poucos instantes, surgem alguns curiosos de todos os
cantos do jardim do palácio, das portas e das janelas. E todos
eles fazem uma expressão muito parecida quando me veem e
percebem que eu sou, bem... eu. Reconheço a maior parte dos
rostos, sejam os dos serventes do palácio ou de gente da corte.
Meu coração está tão acelerado que sequer consigo perceber
que meus pés estão se movendo.
— Diane, é você mesmo? — pergunta o grão-duque,
ajeitando as roupas que se amarrotaram na corridinha que ele
deu. — Será possível estarmos todos vendo um mesmo
fantasma?
Agora, ele está suando frio. Eu dou uma risada nervosa.
— É ela, sim, não é? — A esposa dele, Marie, o cutuca no
ombro. — Está magricela e com os cabelos desgrenhados, mas
é a princesa.


“Onde está o rei?”
“O que aconteceu?”
“Onde está o príncipe?”
“Quem te trouxe aqui?”
“Cadê o resto da família real?”
Escuto essas mesmas perguntas algumas dezenas de
vezes. Tento responder tudo conforme me lembro, mas, quando
me perguntam como eu fiz para voltar para casa, preciso
mentir, e digo ter despertado num barco de pescadores que
partiram para à Espanha depois de me deixarem aqui.
Combinei com Isis que essa seria a história que eu ia contar
para não precisar revelar nada sobre a ilha; por mais que haja
falhas no meu relato, posso culpar a memória ruim por todo
esse tempo no oceano.
É dispensável dizer que não consigo ficar sozinha nem por
um minuto. Recebo ajuda para comer, tomar banho e até vestir
roupas. Por enquanto, dá para escapar dos vestidos apertados
e pesados, porque me deixam descansar na minha cama.
Meu quarto está exatamente como eu deixei da última vez.
Na verdade, foi uma das serventes quem deixou.
Provavelmente Gillian. Cada móvel, a tapeçaria, os retratos da
família e até a lareira, estava tudo organizado e limpo.
Penso nas coisas que coloquei dentro das malas de viagem
e que perdi para sempre. Malas que, agora, estão no fundo do
oceano. Talvez os peixes gostem mais daquelas joias e
daqueles vestidos do que eu. É uma pena, porque eles valiam
um bom dinheiro, que eu poderia ter usado para ajudar as
meninas da ilha de alguma forma.
— Com licença, princesa Diane — disse Gillian, abrindo a
porta do quarto e colocando nada além da cabeça para dentro.
— O grão-duque está aqui. Ele deseja uma pequena reunião
com a senhorita.
Jean-Pierre Dubois é o braço direito do meu pai. Um homem
diligente e de aparência altiva que viu eu e meu irmãos
crescermos. O rei o deixou no controle antes de viajar por um
motivo. Ele sempre foi de confiança para todos da família, mas
minha relação com a sua figura nunca passou dos limites das
nossas posições sociais, portanto, não sei o que esperar.
— Ele pode entrar — digo, erguendo-me sobre os cotovelos
e recostando na cabeceira.
Gillian sai do caminho e permite a entrada do homem. Seu
semblante ainda está carregado por incredulidade e ele ajeita o
bigode espesso com os dedos antes de se aproximar demais.
Os cabelos castanhos estão repuxados num penteado que
disfarça as entradas em sua testa.
— Sabe, princesa Diane, eu não tenho recebido uma notícia
boa há dias. Minha mãe está adoentada, minha filha agora diz
que quer desistir do casamento — lamenta, arrastando a
cadeira da penteadeira para poder se sentar ao lado da cama.
— Mas, quando vi você naquele portão, senti que a maré está
prestes a mudar.
Ele abre um sorriso cansado; eu retribuo. Gostaria que ele
fosse logo direto ao ponto.
— Isso é bom — digo, incapaz de expressar algo além.
— Andamos tendo problemas na fronteira com a França há
alguns meses. Esses problemas não têm ficado melhores, mas,
depois desta maldita viagem, a situação se agravou bastante.
Houve invasões.
— Eu ouvi dizer... — deixo escapar, mas me corrijo logo em
seguida. — Os serventes comentam sobre tudo, você sabe
como é.
— Tenho certeza de que eles não sabem nem um terço da
coisa toda. Mas o ponto é que as pessoas e, principalmente os
militares, não respeitam uma terra desgovernada. E foi como
Sealaena ficou depois do desaparecimento do rei. O capitão
conseguiu retornar com alguns membros da tripulação
contando aquela história tenebrosa e o caos se instaurou na
Corte e no povo.
Eram palavras que eu me lembrava de ter ouvido, muito
parecidas com as que Isis, Lydia e Roksana haviam me dito.
Engulo em seco ao constatar que a coisa é mesmo tão grave
quanto elas me disseram que é. Sei o que Jean-Pierre vai dizer
em seguida. Sei tão bem que sinto o ímpeto de atropelar suas
palavras por um instante.
— Entendo que tenha dito que não sabe do paradeiro da
sua família e que talvez eles estejam em seus caminhos de
volta agora mesmo. Você não é quem estávamos esperando,
mas foi uma luz no fim do túnel para a nossa Corte e para o
nosso povo. — Tudo o que consigo fazer é balançar a cabeça
em concordância. — Vamos deixá-la descansar, mas gostaria
que soubesse qual é a ordem natural das coisas a partir de
agora.
Concordo outra vez, mesmo sem saber exatamente com o
quê.
— Não vamos pedir que decida nada ainda. Só gostaria que
tivesse ciência do que está sendo discutido entre o Conselho. E
que pense no assunto com muita cautela e responsabilidade.
Você fará isso?
— Farei. — A afirmação desliza pelos meus lábios de
maneira involuntária. — Diga ao Conselho que farei o que for
necessário.
Fica nítido em sua expressão que ele não estava esperando
tanta convicção em minha resposta. É claro que não sabe por
quanto tempo essa decisão já estava rondando a minha
cabeça.
— É tudo o que precisamos saber por enquanto — ele diz e,
então, se levanta. — Vou deixar você descansando. Esperemos
a poeira abaixar.
— Por mim, está ótimo.
Mas, qualquer um que pudesse ler meus olhos, saberia que
estou contando uma mentira das boas.

Não sei a hora que consta nos relógios, mas sei que é muito
tarde da noite quando eu desperto do meu longo cochilo da tarde.
Também não sei qual o milagre que me fez dormir.
O quarto está meio iluminado pela luz enfraquecida e quente
de uma lamparina a óleo suspensa na parede. Meus olhos
buscam o espelho da penteadeira que mostra o reflexo da
minha aparência terrível. Dá pra entender o porquê de muitos
terem levantado suspeitas sobre a minha identidade, uma vez
que sempre me viam com o rosto corado e os cabelos bem
cuidados.
Levanto-me da cama, abandonando qualquer esperança de
pegar no sono outra vez e caminho até a lareira apagada para
alcançar um porta-joias que decora a estante sobre ela. Dentro
dele, está a chave de uma das gavetas da penteadeira. E
dentro da gaveta, encontro algumas lembranças agridoces.
Há uma pequena tiara arruinada e enferrujada que lembra
uma viagem para Marselha que fiz com a minha família quando
tinha uns sete ou seis anos. Eu não sabia na época, porque não
se discutiam as questões da coroa na frente das crianças, mas
a cidade já vinha nos dando dores de cabeça.
Há a cópia do código de etiqueta que meu irmão fez por mim
uma vez; acho que essa é a que mais me dá vontade de chorar.
E há o anel de Sophie. Eu o seguro entre os dedos por
alguns momentos, pensando no que ela diria se estivesse aqui
e como reagiria à minha volta para o continente.
Sei que ela não faria o que Flora fez. Sophie não deixaria
aquela ilha nem sob aviso de morte. E não a ressinto por isso.
Ressinto-a por outras coisas, mas nunca por priorizar a própria
segurança e conforto acima da nossa relação.
Meus pensamentos são bruscamente interrompidos por
batidas na porta. São batidas tão suaves que, se eu estivesse
dormindo, não as escutaria. Considero não atender, porque
pode ser só a Gillian ou outra serviçal vindo checar se continuo
dormindo ou se preciso de alguma coisa. Preciso de mais
descanso e apenas isso, mas pode ser algo importante.
Quando abro a porta, encontro uma figura encapuzada
segurando uma bandeja com um bule fumegante. Ela ergue o
olhar e eu a reconheço no mesmo instante: é Flora, me
encarando de volta com aqueles olhos azuis enfeitiçadores.
— O que você está fazendo aqui? — indago, à beira de um
colapso nervoso.
— Vim trazer o chá que a madame Gillian mandou. — Ela dá
uma piscadinha e move a cabeça na direção de um dos
homens da guarda que está prostrado no corredor. — Posso
entrar?
Meio à contragosto, saio de frente da porta para abrir o
caminho. Ela entra e nos fecha no quarto, depois se livra
daquela capa e coloca a bandeja de chá na minha mesa de
cabeceira.
— Esse foi o quarto onde você cresceu? — Flora olha em
volta, parecendo muito impressionada com o tamanho e a
decoração pomposa. — É muito bonito. Esse lugar inteiro é,
para falar a verdade.
— Isis escolheu você para ficar comigo aqui? — Cruzo os
braços. — Como fez para entrar?
Ela revira os olhos e se senta na cama antes de responder.
— Eu disse que preferia ficar tomando conta da Addy, mas
ela achou que se sentiria melhor se fossem pessoas que você
conhece. A Danny também veio, mas ela ficou lá embaixo para
não chamarmos atenção. Entramos por aquela falha no muro
que você disse, depois seguimos pela passagem de serviço e,
quando perguntaram, dissemos que o grão-duque tinha
contratado mais algumas moças para ajudar, agora que a
princesa está de volta.
— Inteligente. — É exatamente o que eu disse para elas
fazerem. — Mas ainda não mudei a minha opinião sobre você-
sabe-o-que e você estar aqui meio que piora as coisas.
— Quer que eu vá embora? Porque eu posso ir. Agora
mesmo.
Ela se levanta e caminha até a porta a passos pesados, mas
eu a impeço, segurando seu antebraço. Sua reação me causa
um choque como um balde de água fria.
— Não, Flora. Fica. É bom te ver, na verdade.
— Não foi o que pareceu. — A loira se vira para mim outra
vez com uma expressão nada boa. — De qualquer forma, não
posso ficar muito tempo. Só vim trazer um chá, se lembra?
Apenas queríamos que soubesse que estamos aqui. Que você
não está sozinha.
Eu aquiesço.
— Certo... É bom saber que conseguiram. Obrigada. – Ela
dá de ombros e se volta para a porta.
Quando fico sozinha outra vez, me arrependo de cada uma
das minhas palavras; mas, por pior que eu me sinta, ainda acho
que ela não deveria ter voltado. Muito menos estar aqui, dentro
do palácio, onde todos os olhos agora estão voltados para mim.
Antes de me deitar outra vez, escuto um barulho nos
andares de baixo, vindo da minha janela. É um maldito
guaxinim, escalando as treliças por sabe-se lá qual razão que
ele ache legítimo.
Vai ser uma noite terrível.
XVI
Quando o grão-duque disse que me dariam tempo para
descansar, eu não sabia que seria apenas algumas horas. Ao
menos, eu consegui ter uma noite inteira de sono, graças àquele
chá de camomila que Flora levou para mim no quarto.
O fato é que, antes das sete da matina, fui convocada a uma
reunião de apresentação com o Conselho. De volta aos
vestidos apertados e aos grampos prendendo meu cabelo,
percorri os corredores do palácio até a sala oval para encontros
da corte.
Havia me esquecido o quanto esse lugar é imenso e como
podia me fazer sentir sufocada ainda assim.
Antes de passar pela porta — aquela que, do seu lado de
dentro, todos esperavam por sua futura rainha; sem pressão —
tomo algum tempo para respirar fundo e tentar chacoalhar o
peso dos meus ombros para longe. Me sinto uma impostora,
traindo a própria família à luz do dia e diante de toda aquela
gente.
Quando entro, os olhares se direcionam para mim e me
fazem querer encolher. Há expressões de incredulidade,
expectativas e tédio. Mas principalmente expectativas, sejam
elas boas ou ruins.
O Conselho é composto por nove homens e uma mulher. A
única figura feminina dentre eles é a marquesa Sarah, de terras
próximas a Marselha, que ocupa a cadeira por conta do título e
das terras deixadas pelo marido. A predominância masculina no
ambiente me incomoda mais do que nunca, depois de todo o
tempo que passei na Ilha da Deusa cercada por mulheres que
eu sei que têm mais competência do que vários deles juntos. É
difícil me acostumar com a ideia de ter que me reajustar às
regras masculinas.
— Senhores, essa é a herdeira do trono de Sealaena — diz
Jean-Pierre, levantando-se de sua cadeira.
Não sei se consigo mais culpá-lo por interromper meu sono
pela manhã, visto que as bolsas sob os olhos do homem eram
uma evidência de que ele próprio não havia pregado os olhos.
— Gostaríamos de lhe dar as boas-vindas em nome de
todos que representamos; em nome do reino que está sob
nossa vigilância por enquanto — diz um dos homens presentes.
O rosto dele é familiar, mas sou incapaz de lembrar seu nome.
— E prestar nossas condolências.
— Não é um velório — digo, puxando uma das cadeiras
para me sentar, antes que alguém decida fazer isso por mim. —
Não sabemos se a minha família... Não sabemos o que
aconteceu. Agradeço, porém, as boas-vindas e a intenção.
Há um burburinho. Os olhos do grão-duque estão prestes a
saltar para fora das órbitas e suas bochechas estão vermelhas.
Não foi minha intenção ser rude, mas achei que devia deixar
claro que não quero que transformem meu retorno numa brecha
para decretar oficialmente a perda de todos os outros membros
da família.
— Mas é claro. — Ele limpa a garganta e corrige a postura.
— As buscas ainda não se encerraram. Tenhamos esperança.
Acaba sendo uma boa retratação, eu diria. Mas é real o que
dizem sobre primeiras impressões: elas realmente ficam.
— O propósito dessa pequena reunião é apresentá-la
formalmente aos membros do Conselho. Eu disse a eles
exatamente o que conversamos ontem, e ficamos todos muito
satisfeitos com a sua determinação — diz o grão-duque.
— A senhorita estaria mesmo disposta a assumir tamanha
responsabilidade? — pergunta um outro senhor, cujos cabelos
grisalhos estão escondidos por um chapéu esverdeado de
penas. É o visconde Renée, das terras do oeste.
— Você é uma menina muito nova e que vai precisar de
muita instrução — interveio a marquesa, antes que eu pudesse
responder ao duque. — Acha que vai dar conta de lidar com as
pressões de um reinado?
Ela fala tão rápido que sinto pena do escrivão que está do
outro lado da sala. O tom maternal e condescendente me tira
do sério porque sei que, no fundo, é só um jeito de dizer que
não sou forte o suficiente para suportar o peso daquela coroa.
— Meu pai assumiu aos dezoito — relembrei-os. — E não
acho que alguém tenha colocado a capacidade dele em xeque.
— Seu pai foi treinado e preparado para ser rei desde o
berço, já você, foi preparada para...
— Me casar? — interrompia-a num tom cortante.
— Isso mesmo. Sealaena pode estar prestes a entrar numa
guerra contra a França. Como você faria para impedi-la?
— Casamentos, guerras... É tudo muito parecido — brincou
o grão-duque, arrancando risadas dos outros homens. Foi um
jeito muito perspicaz de desanuviar o clima, e talvez eu devesse
aprender um truque ou dois com ele; ainda que aquela mesma
piada não fosse ter a mesma graça se saísse da minha boca.
— Minha esposa que o diga.
— Minha sugestão, por ora, é que retiremos os nossos
soldados da fronteira. Vamos evitar que alguém mais se
machuque. Deixem que eles fiquem responsáveis por proteger
os civis, em caso de alguma invasão ou ataque. Depois disso,
posso enviar uma carta ao rei da França, propondo um acordo
alfandegário para que eles freiem os avanços de Marselha, e
desocupem as nossas terras — sugiro, sucinta. Todos me
olham com curiosidade e perplexidade. — Vamos minimizar os
danos até a coroação.
Maldita hora em que fui dizer “até a coroação”. Por ter feito
isso, acendi uma chama que transformou uma simples
sugestão estratégica, na declaração extraoficial de que
assumirei o trono.
— Tentamos contato com a coroa francesa há meses. Eles
querem fechar os olhos para o que está acontecendo, porque é
uma vantagem muito grande que Marselha tome conta da
região — diz o visconde.
— E agora temos a Suíça, exigindo retratação pela perda da
princesa Anika — diz Jean-Pierre.
A princesa Anika.
Diante de tudo o que aconteceu, acabei me esquecendo que
ela também estava naquele navio e que a família dela devia
estar em pedaços, como eu estou.
— Você devia dizer logo pra ela — resmungou Sarah. —
Quanto antes, melhor.
Eu a olho com um misto de confusão e curiosidade em
minha expressão.
— Me dizer o quê?
— O rei e a rainha têm um segundo filho, um menino mais
ou menos da sua idade. Já que tínhamos uma aliança, talvez
acalmasse os ânimos se ela fosse retomada. Com a sua volta,
as coisas mudam de figura — explica o grão-duque. — Se é
que me entende.
Quanto mais compreendo o que ele está propondo, mais
justos ficam os laços do meu vestido. Desconfortável, me
remexo na cadeira e estreito o olhar. Não posso dizer que é
uma ideia absurda, porque é algo com o que eu já estava
contando quando tomei a decisão de retornar. Se eu pretendo
ser rainha, terei deveres a cumprir, seja pelo povo de Sealaena
ou pela Ilha da Deusa. Preciso fazer alianças. E sei, melhor do
que ninguém nesta sala, que a primeira aliança de um monarca
costuma ser o casamento.
Quero fugir de volta para a ilha nesse mesmo instante.
Nadando. Sei que não posso recusar ou protestar, porque
causaria um alvoroço do qual não precisamos agora, mas
posso tentar adiar a decisão.
— É algo que eu posso considerar — digo, dando meu
melhor para camuflar minha voz trêmula. — Talvez eu possa ter
uma reunião com eles antes?
E tentar, inutilmente, convencê-los de que essa é uma
péssima ideia, apesar de saber que vai ser a primeira coisa que
virá à cabeça quando souberem que estou viva. A política
mostra seu lado feio quando, diante de tragédias, as pessoas
precisam pensar acima de tudo em como não destruir relações
diplomáticas.
— Como preferir — diz Jean. — Vamos escrever para o rei
da França, mas acho cedo para retirar os soldados da divisa.
Veremos como os invasores vão responder ao seu retorno.
— Obrigada pelo voto de confiança. Tenho muito a aprender,
mas ainda sou uma herdeira.
Falando desse jeito, meu pânico mal transparece; assim
como minha vontade de desistir formalmente de tudo.
Eles me agradecem pelo meu tempo e deixam a sala após
cumprimentos formais. Tento memorizar nomes, títulos e as
faces de cada um. Sei que é importante.
Não quero ser a última a permanecer no lugar, mas o grão-
duque insiste para que eu fique até o fim. Sinto que ele quer me
dizer alguma coisa e minha suspeita é confirmada quando
somos deixados sozinhos e ele diz:
— Estou impressionado. Você tem jeito para a liderança,
mas bem que seu irmão dizia que você tinha um temperamento
forte. Precisa medir o seu tom, se não quiser conquistar
desafetos tão rápido.
O comentário dele me deixa emotiva e irritada ao mesmo
tempo. Quero brigar com Nathan por ter falado de mim pelas
costas, mas também desejo que ele estivesse aqui para me
ajudar a lidar com o que virá pela frente, porque ele saberia
melhor do que ninguém.
A grande questão é que, se ele estivesse aqui, nada disso
estaria acontecendo.

Não vejo Flora há muitas horas. O que só é mais uma coisa


para eu me preocupar, mas Danny me enviou um bilhete de
tarde para dizer que estavam ocupadas na cozinha. Passei o
dia empilhando presentes e respondendo cartas que recebi de
membros da Corte e toda a gente da nobreza. Foi uma
distração útil. Meu quarto está repleto de caixas, flores e
vestidos que fazem minha pele coçar só de olhar para eles.
Gillian me ajudou para que eu não acabasse perdida naquela
bagunça e acabei deixando-a ficar com algumas das coisas que
tenho certeza de que jamais usaria.
A noite chega se arrastando e, depois de tomar um banho
quente, tudo o que quero e me esticar na cama e dormir.
Aquela história de casamento consumiu minhas energias,
porém estou determinada a não acrescentar mais isso à lista de
coisas que tiram meu sono.
Um chá de camomila talvez resolvesse o problema, por isso
me esgueiro até a cozinha para descobrir como eu posso
conseguir uma xícara. Os guardas me olham torto, desejando
que eu não tornasse o trabalho deles tão difícil.
Para a minha surpresa — ou nem tanto —, encontro Flora
assim que passo pela porta da cozinha. Ela é a única alma viva
ali, e tem em mãos justamente o que vim procurar. Fico aliviada
ao perceber que ela não pretendia beber e sim levar no quarto
para mim.
— Ei — ela diz, empurrando o pires com a xícara em minha
direção.
— Ei.
Encaro a bebida como se fosse água fresca num dia
escaldante.
— Estive pensando em visitar Madame Tine, agora que
estamos de volta. Sinto falta dela.
Entre um gole e outro do meu chá, eu balanço a cabeça, de
acordo.
— Eu posso ir junto?
— É você quem não está falando comigo, não o contrário.
— Me importo demais com você para fingir que está tudo
bem enquanto você coloca sua vida em risco. Uma vida que
podia ser muito boa.
— Minha vida não está em risco aqui. Nossa relação, pelo
contrário...
— Shhh... Ei, será que você pode falar baixo? Já ouviu dizer
que as paredes têm ouvidos?
Quando ela menciona um nós, lembro-me que precisarei
contar que posso ficar noiva de um desconhecido a qualquer
momento. É sobre isso que estou falando quando digo que,
quando a realidade bater à porta, talvez ela se assuste e se
arrependa amargamente.
— Eu vou amanhã pela manhã. — Ela ignora meus
protestos.
— E como você faria para sair do palácio sem mim?
Arqueio as sobrancelhas e ela ri.
— Eu posso ir e vir pelos portões na hora que eu bem
entender. Não sou a princesa.
Mas é claro que sim! Como eu sou idiota. Depois de tantos
anos saindo escondida, eu havia me habituado a achar que
entradas e saídas tinham que ser sempre furtivas.
— Poder eu também posso, agora que, em tese, sou a
pessoa no topo da hierarquia por aqui, mas seríamos seguidas.
Então ainda vou precisar usar as velhas passagens. Seria legal
da sua parte não me deixar sozinha nessa, já que quer tanto
ficar comigo.
— Agora você quer minha companhia?
Meu rosto queima.
— Por favor?
— Me procure amanhã. Mas, se for alguma coisa muito
complicada, vou deixar você para trás.
— Uma pessoa com esse rosto angelical não deveria
guardar tanto rancor.
Não consigo resistir à provocação. Ela me olha como quem
vai quebrar uma garrafa na minha cabeça, e me permito dar um
sorriso sincero pela primeira vez em muito tempo.
— Flertar comigo agora não vai funcionar.
Dou de ombros.
— Eu não estava flertando. — Termino meu chá e enxaguo
a xícara vazia na pia para, depois, virar na direção dela outra
vez. — Boa noite, Flora.
Ela me responde com um murmúrio mal-humorado e nos
separamos outra vez.
XVII
Com o pretexto de estar indisposta — e, dependendo do
sentido que derem à palavra, é a mais pura verdade — escapei
do palácio para me encontrar com Flora nos jardins, onde uma
passagem nos levaria para fora dos muros. Alguns hábitos
nunca mudam, mas sei que preciso estar de volta antes do
almoço.
Flora me trouxe roupas mais simples e confortáveis, que
vesti por baixo da velha capa que eu costumava usar em meus
passeios pela cidade. A camada de poeira sobre o tecido irrita
meu nariz, mas seria arriscado não a vestir, agora que meu
nome estava correndo pelos burburinhos de todo o reino com a
notícia do meu retorno. Eu nunca tive o costume de fazer
aparições públicas, mas começou a acontecer com mais
frequência desde o baile de noivado e o casamento do meu
irmão. Todos sabem como eu me pareço ou, ao menos, a
grande maioria das pessoas sabe.
— Já te disse que você fica muito diferente usando vestidos
chiques? — pergunta a loira, no caminho de arbustos altos para
o estábulo.
— Diferente como?
É cedo, tudo está deserto e o céu ainda está meio
alaranjado. Sinto que, em pouco tempo, vai começar a ficar
quente demais sob essa capa, então quero alcançar a floresta
logo, porque vai ser mais fresco entre as sombras das árvores.
— Não parece você. — Ela me lança um olhar divertido
sobre os ombros e segue caminhando em seguida. — Mas até
que fica bem.
— É quem eu sou aqui dentro, nesse lugar. Não é minha
versão favorita, mas vou ter que me acostumar.
Um silêncio incômodo se sustenta até chegarmos ao
estábulo. Meu cavalo, Toulouse, parece sentir minha presença,
porque estica o pescoço para fora da baia e se agita. A crina
está aparada e brilhando, e sua cor escura contrasta com a
mancha esbranquiçada que faz um triângulo do focinho até a
testa. Estava com saudades dele, e me sinto culpada por não
tê-lo visitado antes. Espero que o passeio de hoje estreite
nossos laços outra vez.
— Acho que esqueci como se anda a cavalo — comenta
Flora, acariciando o dorso de Toulouse.
— É por isso que eu vou guiá-lo.
Ela não discorda. Antes de montar, eu jogo os braços ao
redor do pescoço do equino e o envolvo no que seria um
abraço se tivéssemos o mesmo tamanho. Ele ainda está
agitado quando subimos.
Sinto que Flora hesita antes de se segurar em minha cintura.
É o mais próximo que ficamos em muito tempo e um arrepio
percorre meu corpo inteiro. O calor é bem-vindo, é
reconfortante. Só percebo que estive prendendo a respiração
quando falta ar e é uma deixa para puxar as rédeas e fazer
Toulouse caminhar; o solavanco talvez tenha disfarçado meu
nervosismo.
Sair foi mais fácil do que vai ser entrar. Ao menos, pude
perceber que os horários de trocas de turnos ainda eram os
mesmos. O que não é surpreendente, mas as semanas que
fiquei longe pareceram anos em termos de cansaço mental.
O caminho para casa de Tine nos faz passar,
inevitavelmente, pela antiga casa de Flora. Ela me pede para
fazer uma parada breve pelo lugar, que está abandonado e em
ruínas. Muito pior do que eu me lembrava.
Toda a estrutura principal está enegrecida e frágil. As janelas
não passam de buracos vazios e fundos que dão todos no
mesmo lugar. O que era o jardim da entrada agora é um terreno
tomado por ervas-daninhas, encobrindo qualquer traço de que,
um dia, houve pessoas morando ali. Flora e eu ficamos algum
tempo em silêncio, encarando aquele esqueleto escurecido e
deprimente até que um corvo voa pela janela e se refugia
dentro da floresta.
— Será que era o seu corvo? — pergunto, numa tentativa de
deixar o clima mais leve.
Estou alguns passos atrás e não vejo seu rosto, mas sei
exatamente como se parece o seu semblante triste. Quando ela
se vira para cerrar os olhos para mim, eles ainda estão opacos.
— Não era de estimação, Robin, ele só morava na minha
janela, porque eu deixava sobras de comida lá de vez em
quando.
— Mas vocês conversavam! Eu não converso com o
guaxinim que escala meu telhado. Na verdade, eu o quero bem
longe.
Ela ri e eu tenho a sensação de dever cumprido.
— Você sabia que os corvos arranjam um companheiro e
vivem com ele para o resto da vida? — ela pergunta, sem
esperar que eu lhe dê uma resposta. — Eles são monogâmicos.
— E como raios eu saberia disso? Como você sabe disso?
— Lembra que eu disse que li um livro sobre corvos que era
do meu pai? Você ficaria impressionada com tudo que eu
aprendi.
— O quão impressionante pode ser a vida de pássaros?
Tombo a cabeça para o lado com a minha melhor expressão
de descrença. Não estou interessada nas aves, mas quero
ouvir Flora falar sobre elas, porque parece distraí-la da visão
terrível que temos — o espectro do que um dia foi sua casa. E
porque eu amo profundamente quando ela fala das coisas que
gosta.
— Eles vivem de dez a quinze anos e fazem “a corte” antes
de decidirem com quem vão ficar. Depois escolhem um território
para construir o ninho.
— No seu livro falava alguma coisa sobre parceiros do
mesmo sexo?
Ela assentiu, para a minha surpresa.
— Tinha um parágrafo ou dois sobre os pares cuidarem dos
filhotes que ficam órfãos.
— Isso é muito fofo, na verdade.
A loira balança os ombros e se vira para dar meia-volta. Eu
a sigo.
— Não quer entrar? Talvez algo tenha se salvado.
— Nada que eu queira levar comigo. Não mais.

Eu saberia fazer o caminho para a casa de Madame Tine de


olhos fechados. Claro que teria sido mais rápido se eu
estivesse sozinha e não fossem pelas distrações que Flora
causava sempre que se ajeitava na traseira, mas sei que isso é
mais sobre mim do que sobre ela.
A expressão no rosto de Tine quando nos vê é adorável. Ela
estava cuidado da pequena horta de temperos quando Ernest,
o marido, apontou em nossa direção. Por pouco, a pequena
tesoura de poda não cortou a ponta dos dedos dela.
— Minhas meninas voltaram! — ela diz, exultante, saltitando
em nossa direção.
Recebo ajuda para desmontar de Toulouse e, em seguida,
ela ajuda Flora. Damos um abraço conjunto apertado e
demorado que, é claro, é incapaz de traduzir o quão senti falta
dela.
— Você não sabe o quanto eu me preocupei depois de
saber das notícias sobre a sua família. Só quando soube que
você apareceu que consegui ter uma noite de sono decente —
diz Tine, apertando meus ombros e me chacoalhando de leve.
— Mas ainda quero saber de tudo! O que aconteceu? Como
vocês se encontraram?
— É uma história longa, cansativa e eu a contaria mil vezes
melhor se fosse durante um café. Saímos do palácio cedo, e
precisamos voltar antes do almoço.
— Acho que eu adivinhei que viriam. Tem café quente e bolo
no forno!
A frase soa como música pros meus ouvidos.
No caminho para dentro, eu e Flora tentamos explicar toda a
história sobre o naufrágio e como eu fui parar na Ilha da Deusa
por um golpe de misericórdia do destino. É claro que ela fica
admirada; eu também ficaria se a história fosse contada para
mim e não por mim. Quando paro para refletir quais as chances
de aquilo ter acontecido, é impossível não pensar numa
interferência divina.
— Não era mesmo a sua hora — ela diz, servindo o café
para nós três. — Espero que tenhamos notícias da sua família
em breve.
— Falando em família, acho que você já sabe o que vou
dizer, mas agora que estou de volta e o trono está vazio...
— Sim. Todos estão especulando na cidade; é a única coisa
sobre a qual as pessoas comentam. Significa, então, que estou
tomando café com a futura rainha de Sealaena?
— Acho que sim. — Dou de ombros. — Mas não é como se
fosse o que eu queria para mim, a senhora sabe bem.
— E como fica a ilha? Como ficam as meninas?
Sem saber, ela toca num ponto sensível para mim e Flora. A
loira desvia o olhar e leva sua xícara até os lábios. Mexo os pés
sob a mesa, desconfortável demais para falar qualquer coisa.
— Não temos outra escolha senão ficar por aqui — Flora
diz, com a mesma determinação de sempre.
— Você tem — rebato.
— Minha escolha é ficar com você por mais que,
ultimamente, você esteja tornando isso bem difícil.
— Não sou eu, são as circunstâncias. E elas não vão
melhorar.
Penso naquele casamento do qual tenho poucas chances de
me livrar. Minha experiência da realeza, tendo convivido com
monarcas desde que nasci, é que as responsabilidades e todo
o estresse são verdadeiros mestres em afastar pessoas que
amamos. É uma vida inerentemente solitária. Meu pai sempre
foi sozinho, por mais que não faltassem pessoas à sua volta.
Nem mesmo a minha mãe conseguia torná-lo menos apático na
maior parte do tempo.
— Rob, eu já me decidi. — O tom dela é calmo e irritante, de
propósito.
— Vocês estão brigando? — pergunta Tine, soando
muitíssimo decepcionada. — Não acredito que estão brigando!
— A Flora, ela... — começo, mas minha indignação faz eu
me perder entre tudo que quero dizer. — Tine, diga que você
concorda comigo sobre ela estar melhor e mais segura na ilha!
É quase uma súplica.
— Ela tem razão, filha. A ilha é mesmo mais segura.
É um alívio perceber que ela está dizendo isso para Flora e
não para mim. Não sinto mais que estou enlouquecendo. Ao
menos, não sozinha.
— Mas é muito corajoso da sua parte. E muito bonito
também. A gente não encontra esse tipo de amor em qualquer
esquina, Diane Robin, então você deveria, pelo menos, ser
grata.
Flora olha para mim como se tivesse acabado de me ganhar
numa queda de braço. As palavras de Tine são muito
verdadeiras; reconheço isso.
— Eu sou. Mesmo. — Dou um suspiro longo antes de
prosseguir. — Mas depois de perder tanta gente, dá para me
culpar por estar com medo?
— Então o seu jeito de não me perder é me convencendo
que preciso te abandonar? Não faz muito sentido.
— Ao menos, eu ia saber que você está bem.
— Não importa que eu esteja do outro lado sem saber se
você está bem? — ela eleva o tom da voz.
— Ei, já chega — Madame Tine nos interrompe. — As duas
têm suas razões e elas são muito justas, então tenho certeza
de que vão conseguir chegar num acordo.
Abro a boca para dizer que estou me esforçando, mas não
seria a verdade. Não estou me esforçando nem um pouco; não
consigo dedicar energia para sequer tentar fazer as pazes com
a ideia. Estou lidando como se isso tivesse só uma solução,
porque estou sufocada e sobrecarregada.
— É o que eu espero — diz Flora de braços cruzados. — De
verdade.
Paira um inevitável clima de tensão. Não queria ter tido essa
discussão outra vez. Parece um maldito círculo e todas as
vezes damos voltas, passando pelos mesmos lugares, sem
chegar a lugar nenhum.
Mas eu estaria mentindo se dissesse que estaria me
sentindo melhor se ela não estivesse aqui. Só que é egoísta e
meu orgulho ainda não me deixa confessar.
XVIII
De volta ao palácio, tudo corre como planejado. Ninguém
está por perto para ver quando eu me tranco em meu quarto,
fingindo que estive lá a manhã inteira.
Demora pouco — quase nada, na verdade — para baterem
à minha porta. É o grão-duque em pessoa me convidando para
almoçar com a Corte hoje, porque ele tem anúncios importantes
a fazer e que requerem a minha presença. Com “anúncios
importantes” ele quer dizer que o dia da minha coroação fora
decidido entre o Conselho. Ao que me consta, eles não
estavam muito interessados na minha opinião.
Não é como se eu tivesse uma de qualquer forma. Se eles
decidissem me tornar rainha amanhã, eu estaria de acordo.
Pauline, a babá, costumava dizer que quem está na chuva é
para se molhar; aceitei aquela coroa no momento em que deixei
a Ilha da Deusa e pouco me importa a partir de qual data ou
qual o alinhamento dos astros do dia em que vou começar a
usá-la.
— No próximo domingo — anuncia Jean-Pierre. — Daqui a
cinco dias, teremos oficialmente a nossa rainha.
Não há muita comoção entre os presentes quando ele fala.
A mesa extensa está recheada por membros da nobreza, da
corte e do Conselho. Talvez eu tenha mesmo alguma aptidão
para o título de monarca, já que consigo distinguir perfeitamente
pela expressão de cada um ali quem são os bajuladores, os
opositores e os que só estão esperando que eu cometa um erro
ou um acerto para se decidirem do lado de qual desses dois
primeiros grupos eles vão ficar.
No meu campo de visão, não há uma alma viva por quem eu
tenha meia dúzia de afeto. Exceto por uma, que está lá por
acidente, e é Flora, carregando uma bandeja de taças sujas de
volta para a cozinha. Sei que veio até aqui com o pretexto de
me ver nesse vestido púrpura que pinica.
Quase dou um sorriso. Ela é uma das poucas pessoas com
quem ainda me importo de verdade aqui e eu meço isso pelo
quão eu sei que ficaria devastada por perdê-la.
Gostaria de poder controlar a minha dependência
emocional.
— Serão dias cheios e intensos, para que possamos dizer
tudo o que a senhorita precisa saber — diz o visconde Renée.
— Te deixaremos a par de todas as questões possíveis,
discutiremos juntos e pediremos a sua opinião também.
Eu quase agradeço por depositarem em mim tanta
confiança, mas me lembro que é o mínimo que deve ser feito,
uma vez que estou a poucos dias de ocupar o cargo mais alto
do reino. Não é nenhuma gentileza da parte deles, por mais que
tentem fazer soar assim.
Cinco dias.
É pouco tempo para quem espera um milagre, como eu.
Prevejo dias longos e cansativos que nunca vão terminar do
jeito que eu queria, porque eu queria ter um jeito de escapar.
— Eu agradeço imensamente — digo, me direcionando a
ninguém específico. — Espero cumprir com todas as
expectativas. Com as boas, pelo menos.
Os olhares que recebo de volta parecem esperar ansiosos
por algum tipo de pronunciamento revelador da minha parte, já
que é a primeira vez que me apresento diante de toda a Corte,
mas eu não tenho nada a dizer. Nada que valha a pena ser
ouvido. Então eu saio da mesa quando termino de brincar com
a comida no meu prato.
Meus pés me levam até o salão de arte dessa ala do
palácio. Tenho algum tempo antes de começarem todas as
reuniões que terei que atender. Quadros enormes estão
dispostos nas paredes e em cavaletes ornamentados, a maioria
deles com retratos da família real e suas gerações centenárias.
Eu também estou em alguns.
O que eu mais gosto é o de moldura prateada no fundo da
sala, onde meu irmão está colocando uma tiara na minha
cabeça. A cada aniversário, e datas comemorativas, temos que
ter o nosso retrato pintado. É tipo um código da realeza.
Eu e Nathaniel estávamos prestes a completar dez anos e
tínhamos tido um desentendimento. Antes do esboço da
pintura, nós ficamos lado a lado, como deveríamos ser pintados
e ele me deu um esbarrão proposital que fez a tiara que eu
estava usando cair. Minha mãe mandou que ele a colocasse de
volta na minha cabeça, mas o pintor deu um gritinho no mesmo
momento, dizendo que tinha achado adorável e queria pintar
aquela exata cena.
Meu irmão teve que ficar horas com os braços estendidos
para o alto. Tivemos que parar várias vezes porque eu não
conseguia controlar o riso quando olhava para trás e via o rosto
mal-humorado de Nathan.
Sempre tive sérias crises de riso ao olhar para esse quadro,
mas, agora, meus olhos ardem e quero chorar.


Após três dias reuniões com o Conselho, líderes militares e
religiosos, ensaios para a coração e lições práticas, finalmente
tive, só para mim, as últimas quatro horas do dia. Me tranquei
dentro da sala de estudos com a pretensão de me debruçar em
alguns tratados dos últimos meses e desvendá-los da forma
que podia e tomar decisões que seriam discutidas dali para
frente.
Precisava de silêncio.
Uma hora e meia de leitura depois e posso dizer com
convicção que metade da minha capacidade de compreender
frases inteiras foi comprometida.
Além de estar me sentindo terrivelmente exausta, também
me senti sozinha. A última vez que vi Flora e Danny foi na noite
passada quando nos encontramos no meu quarto, depois do
horário, para que eu pudesse lhes dar um relatório sobre o que
está se passando no alto escalão e elas enviassem o recado
para as outras meninas no acampamento.
Com o norte se apaziguando, na medida do possível,
estamos garantindo reforços para a fronteira, o que significa
que a segurança pela província está se afrouxando e logo ficará
mais fácil de circular, tanto em terra quanto pela costa. É
importante que elas tenham essas informações para se
organizar internamente, enquanto eu não posso estar por perto
e não tenho a menor ideia de quando poderei.
Talvez nunca. Ao menos, não como antes.
Batem na porta e tudo que eu espero é que não seja
ninguém trazendo más notícias de qualquer tipo. Levanto-me
da poltrona pela primeira vez em muito tempo e meus joelhos
reclamam quando estico as pernas e caminho até a porta para
abri-la.
É a Flora.
Um suspiro aliviado escapa dos meus lábios até eu reparar
em sua expressão mórbida e perceber que talvez eu tenha
comemorado cedo demais.
— Você tem cinco minutos? — pergunta, ajeitando atrás da
orelha os fios que se soltaram do seu penteado.
— Hoje eu tenho um pouco mais do que isso.
Sorri, na tentativa vã de levantar o astral, depois deixei que
ela entrasse e tranquei a porta.
Todas as interações entre mim e Flora se tornaram mornas
desde o nosso passeio até a casa de Madame Tine. Eu deveria
ter criado coragem para, ao menos, assumir que as coisas
estavam sendo menos ruins com ela aqui, mas todas as
ocupações e tarefas que despejaram sobre a minha cabeça me
roubaram o tempo e a energia que eu precisava para conseguir
confessar.
— Talvez não adiante nada, mas preciso tentar — diz ela,
usando as mãos para se apoiar na mesa atrás de si. — As
meninas estão se organizando para voltar para a Ilha depois da
coroação e querem dar notícias sobre o que está acontecendo
por aqui para acalmar as outras. E eu pensei seriamente se
deveria voltar com elas.
Em questão de milésimos, meu coração acelera num ritmo
drástico. Não estava esperando por isso. Apesar de termos
discutido o assunto, tipo, dezenas de vezes, a fala dela me
pega de surpresa.
Esse é o momento em que eu deveria dizer como me sinto.
Confessar tudo, apesar de “tudo” ser apenas uma faísca fraca e
pálida dentre todas as certezas mais inabaláveis que tenho.
— Você sabe o que eu penso — digo, depois faço um leve
balançar de ombros. — Já tivemos conversas demais sobre
isso.
— Me diz para ir então. Se você disser, não vou discutir, não
vou brigar. Só vou sair por aquela porta e não vamos nos ver
outra vez.
Congelo.
Quero abrir a minha boca para dizer que é o melhor a se
fazer, mas minha mandíbula está travada e minha garganta é
incapaz de expelir as palavras que precisam ser ditas.
— Esse não é o seu lugar, Flora. Quer passar a vida presa
entre essas paredes como eu vou passar? Na ilha, você tem
tudo o que precisa. É a vida dos sonhos. Uma família e pessoas
que te amam.
— Eu sei de tudo isso, você já falou a mesma coisa dezenas
de vezes. Não quero saber das consequências, quero que me
mande ir embora.
— Olha só... Estamos aqui há poucos dias e você já não
aguenta mais. Acha mesmo que aguentaria por mais alguns
meses? Por anos?
As sobrancelhas dela se unem, formando um vinco. É
quando sei que disse algo de muito errado.
— Não é a situação que está me fazendo desistir. É você.
Eu aguentaria muito bem se, no fim do dia, eu soubesse que
me quer aqui e que minha presença te faz um pouco menos
miserável.
— E o que vai acontecer se você acordar um dia e descobrir
que só isso não é o suficiente? — Meu tom de voz acaba
saindo mais alto do que eu queria. — Vai ser pior quando for
embora, depois desse lugar ter arruinado uma das melhores
coisas que eu já tive.
Termino de dizer como se tivesse corrido por quilômetros.
Estou arfando e espasmos trêmulos correm por meus
membros.
— Então quer que eu vá embora?
Sim.
Não.
E quase digo dessa vez.
Eu não sei.
— Quero que você entenda que eu não ia suportar te perder
aos poucos e assistir nossa relação ruir. Você tem algo melhor
para viver. As crianças, a ilha, Olivia...
— Olivia?
Meu rosto queima.
— Não finja que não entendeu. Ela claramente é apaixonada
por você e deve estar torcendo para que volte e...
— Robin, o que está tentando me dizer?
O tom de Flora é incrédulo, o que só me deixa ainda mais
irritada.
— Estou tentando dizer que tudo bem se você decidir ficar
com ela, porque é uma opção melhor do que eu.
— Não acredito no que estou ouvindo. — Suspira fundo,
irritada. — Eu juro que não acredito no que estou ouvindo,
você... Acha mesmo que se eu for embora, vou buscar alguém
para colocar no seu lugar? Vou me jogar nos braços da primeira
garota que estiver disponível para lamber as minhas feridas? É
isso que você pensa sobre mim?
Ela gritou comigo todas aquelas palavras e eu senti como se
tivesse me acertado um soco no estômago.
— Não é nada disso, Florence. — Droga, eu não deveria ter
falado desse jeito. — Já... Por conta de... Olha, eu tive
experiências ruins. Vamos chamar assim. Traumas, decepções,
etecetera e tal.
— Eu não sou a Sophie — ela diz, dura, chegando mais
perto de mim.
A raiva que está sentindo faz seu corpo aquecer. Num
milésimo de segundo, tudo está quente. Eu, ela, nossas
respirações que se confundem. Até que ela me empurra contra
a escrivaninha de estudos e encerra a distância entre os nossos
lábios com um beijo que alastra chamas dentro de mim feito um
incêndio de dentro para fora.
Os livros foram ao chão, assim como o que restava da
minha sanidade, quando as mãos da loira sobem pelas minhas
pernas e apertam as minhas coxas por fora e por dentro. Ela
prende meu lábio inferior entre os dentes e puxa com pouca
força, depois os solta e segura em meu queixo para que eu olhe
dentro daqueles olhos azuis. Eles costumam ser doces e
brilhantes, mas agora estão sombrios.
— Ela te traiu, porque foi uma idiota. Não porque você não
era o suficiente ou porque estar com você era difícil. E se ela
achasse isso, o certo teria sido terminar tudo entre vocês e
depois, aí sim, ir pra cama com quem bem entendesse.
Aquelas palavras traziam lembranças dolorosas, mas não
tinham sido ditas para me machucar, por isso preferi deixar que
elas doessem depois. De preferência, num momento em que
Flora não estivesse sobre mim com as mãos e lábios tão
próximos da minha pele.
Ela me beija outra vez, com tanta urgência que eu arfo, mas
soa como um gemido.
Preciso sentir aquela pele ardendo contra a minha, por isso
alcanço as alças de seu vestido e as abaixo, revelando aqueles
ombros nus, dourados como se banhados por mel. O tecido
desliza com facilidade, mas não conseguirei tirar com os braços
dela sobre meus ombros.
— Eu quero você. Eu amo você, Diane Robin.
Sem que ela possa reagir, inverto as nossas posições e,
agora por cima, termino de arrancar o vestido aos poucos, me
aproveitando da costura justa para tocar sua pele em lugares
que sei que são mais sensíveis.
— Não me chame assim. Nunca.
Aperto a parte interna de sua coxa com um pouco de força.
Ela geme e eu dou um sorrisinho pequeno. As roupas de baixo
ainda estão no caminho e faço menção em tirá-las, mas minha
mão é recebida com um leve tapa.
— Você quem começou.
Selo seus lábios com os meus, beijando-a com ainda mais
insaciedade. Mal dá para respirar entre um beijo e outro,
principalmente quando minhas duas mãos estão arrancando as
roupas de baixo de Flora. Puxando sua calcinha, desamarrando
os laços do corpete e correndo os dedos por suas pernas nuas,
o que faz a pele dela arrepiar.
Quando todo o tecido cai no chão e tudo o que resta sobre a
mesa sou eu e Flora, desço meus lábios para seu pescoço,
contornando cada curva do tronco dela com o rastro incendiário
dos meus beijos. O colo, os seios, a barriga e, finalmente,
aquela região do baixo-ventre. Até que as pernas dela se abrem
para mim. Ela quer que eu a toque como a toquei pela primeira
vez, mas faço algo diferente.
Começo beijá-la, depois uso a minha língua em movimentos
circulares no centro. Flora está com as duas mãos entrelaçadas
em meus cabelos e os puxa com mais força cada vez que
aumento o ritmo.
E eu aumento. Depois sugo e deslizo um dedo para dentro
dela. Ela geme tão alto que temo estarmos sendo ouvidas do
lado de fora. Mas é tarde da noite e as paredes são maciças.
Depois de deslizar outro dedo, intensifico os movimentos da
minha língua e dos meus dedos que estão se movendo dentro
dela.
— Rob...
Consigo sentir as contrações, sei que ela está quase lá.
Ergo o corpo para beijá-la, enquanto meu polegar assume a
tarefa que era dos meus lábios. Ela sente o próprio gosto pela
minha boca e arqueja quando está prestes a se desfazer.
Olho para o rosto dela e ela está sorrindo, de olhos
fechados, deitada sobre a mesa. Jogo meu corpo por cima do
dela para cobrir sua nudez, depois a beijo outra vez e ajeito os
cabelos desgrenhados de sua testa.
— Não quero que vá embora — digo, beijando-lhe a
têmpora esquerda. — Quero ficar com você até o último dia das
nossas vidas medíocres. Ou até que você se canse e perceba
que existe a vida dos sonhos te esperando em terras distantes.
XIX
Ouvi dizer uma vez que, quanto mais consciente você está
sobre o tempo, mais ele demora a passar.
E essa é uma mentira das boas.
Depois que eu e Flora nos acertamos, foi como se eu
tivesse piscado e acordado na manhã da minha coroação. Por
mais que eu tenha tentado assimilar cada minuto que se
passou, não consegui fazer os dias desacelerarem.
Assim que as batidas na minha porta começaram, me
arrependi de ter ido dormir tão tarde e de ter bebido tanto vinho.
Mas Flora estava comigo e eu tive uma baita epifania sobre
aproveitar o momento. Ela bem avisou que eu ia me sentir
miserável na manhã seguinte. Dito e feito.
Depois de um esforço sobre-humano para abrir os olhos,
meu olhar foi de encontro à escuridão do outro lado da janela.
Ainda era madrugada.
Cobri minha cabeça com o edredom pesado e isso abafou
os sons do lado de fora, mas não o suficiente para que eu
conseguisse ignorá-los. Ao perceber que nada faria os
chamados cessarem, concluí que não havia nada que eu não
daria por mais cinco minutos de sono. Só que, se eu não
abrisse aquela porta, alguém o faria por mim e não seria nada
agradável. Principalmente porque, ao tentar rolar para fora da
cama, meu corpo é bloqueado por outro.
Flora está adormecida ao meu lado ― sabe-se lá como, com
toda essa barulheira. Nada é tão ruim que não possa piorar,
não é mesmo? Ela deveria ter ido embora. Na verdade, não dá
pra dizer com certeza, porque não me lembro de muita coisa,
mas sei que ela provavelmente tentou e eu insisti que ficasse
mais um pouco. A memória pode falhar, mas os lapsos de
memória depois de três garrafas de vinho não falham nunca.
Agora estávamos com problemas.
Eu deveria acordá-la?
Não há a menor chance de os corredores estarem vazios
hoje, então mesmo que eu mande embora a pessoa do outro
lado da porta, sair daqui seria arriscado.
Por que eu nunca consigo me contentar com os problemas
que eu já tenho?
― Robin, sou eu. ― A voz de Danny trespassa as paredes e
uma sensação de alívio toma conta de mim de súbito. ― Abre
logo essa porta!
Acho que nunca me levantei tão rápido ou fiquei tão feliz por
estar vestida. É a primeira vez que ouço Danny soar tão
apressada e não preciso pensar tanto para saber o motivo.
― Vocês enlouqueceram de vez? ― ela diz assim que entra
no quarto. ― Está uma loucura lá embaixo. Nunca vi tanta
gente ocupando tão pouco espaço e olha que eu já estive em
barcos menores do que esse seu quarto.
― Bem-vinda à minha vida ― retruco com um sorriso
amarelo nos lábios. ― E, acredite, vai ficar pior.
A ruiva revira os olhos e bufa antes de caminhar até o corpo
adormecido de Flora e sacudi-la até que ela acorde. Tento não
rir do pequeno susto que ela leva ao despertar e se deparar
com a expressão exasperada de Danielle, como se estivesse
acontecendo um incêndio em algum lugar do palácio.
Apesar que, levando em conta as circunstâncias, um
incêndio seria uma urgência menos preocupante.
― Levanta. A gente tem que ir ― diz Danny, empurrando as
cobertas para longe.
Flora me encara com um olhar sonolento, mas bastante
acusador, que diz “Isso é tudo culpa sua” e minhas bochechas
queimam. Ao menos, Danny vai arrastá-la para fora antes que
ela possa brigar comigo, por isso me aproximo para deixar um
beijo rápido em seus lábios antes que aconteça.
― Te vejo mais tarde, está bem? ― digo à loira num tom de
promessa. ― Isto é, se eu sobreviver a este dia.
― Se for morrer, antes faz um testamento dizendo que você
deixa a frota da Coroa para sua querida amiga Danielle, sim? ―
brinca Danny, puxando Flora de vez para que ela fique de pé.
― Boa sorte, Rob.
― Sorte? Eu preciso mesmo é de um milagre.
As duas me envolvem num longo abraço conjunto. Não
quero soltá-las, mas os barulhos de passos que ficam cada vez
mais altos e constantes nos corredores não me deixam outra
escolha.
Quando sou deixada sozinha, sinto minhas mãos tremerem.
Por mais que eu tenha me esforçado durante todo esse tempo
para manter minha mente no limiar da sanidade, não posso
controlar as reações do meu corpo com a mesma maestria.
Num espaço tão curto de tempo, as coisas viraram de
cabeça para baixo em um ritmo asfixiante e, por mais que agora
não seja o melhor momento para reflexões, é impossível deixar
de pensar em cada mínimo acontecimento que me trouxe até
aqui. Estou prestes a assistir minha vida mudar para sempre e
ter consciência disso faz com que tudo ao meu redor comece a
formigar.
É real.
Não tenho para onde fugir.

Estou num quarto que não é o meu, rodeada de pessoas


que conversam alto demais. Mas não me esforço para prestar
atenção no que estão dizendo, porque isso só faria minha
ansiedade aumentar. Quando noto que estão falando comigo,
finjo que entendi e aceno levemente com a cabeça.
O vestido que estou usando é um amontoado de tecidos e
pedrarias que pesam, no mínimo, uma tonelada. Ao menos, é
assim que me sinto. Pode ou não ter a ver com a fraqueza
incorrigível das minhas pernas. Ele tem um tom amarelado de
branco, com detalhes em dourado na saia e no corpete que
impede meus pulmões de se expandirem demais. É bonito, mas
parece que foi feito para a minha mãe e não para mim. Por um
momento, consigo enxergá-la perfeitamente dentro dele quando
me olho no reflexo do espelho que está a minha frente e, ainda
que a visão me apavore, vê-la outra vez não é de todo ruim.
Meu rosto está soterrado por incontáveis camadas de
maquiagem e sinto que vai tudo cair em pedaços caso eu
intensifique alguma expressão facial. Talvez tenham feito de
propósito, para que eu mantenha meu melhor semblante blasé
durante a cerimônia e aja como se fosse só mais um domingo
qualquer; sem transparecer o pânico latente que faz meu
estômago revirar. Pegaria mal com a corte e com o Conselho.
É só quando o grão-duque passa pela porta do quarto que
acordo do meu transe. Ele se aproxima, ajeitando os poucos
fios que lhe restam no topo da cabeça e olha para mim feito um
pintor orgulhoso da sua obra de arte. De alguma forma, saber
que tudo está indo conforme ele planejou faz com que eu me
tranquilize um pouco.
Bem pouco mesmo.
― Você está magnífica, Diane. Seus pais se orgulhariam
muito ― ele diz, como se meus pais tivessem sonhado alguma
vez sequer com outra pessoa além do meu irmão usando
aquela coroa. ― O salão principal está abarrotado de gente e
todas elas olharão para você. Sabe disso, não é?
Assinto e entrelaço as minhas mãos na frente do corpo para
que ele não veja caso elas comecem a tremer. É quando noto o
quão suadas e frias elas estão.
― Não consigo pensar em outra coisa desde que levantei da
cama de manhã ― confesso, soltando todo ar que esteve preso
esse tempo inteiro. ― Mas acho que é normal, não é?
Ele não responde. Ao invés disso, apenas caminha à minha
volta, examinando minuciosamente cada detalhe da minha
roupa. Sinto a ponta de seus dedos tocarem meu ombro e
pressionarem a minha pele de leve para que eu conserte minha
postura.
― Se lembra das suas palavras? ― Faço que sim. ― Se
fizer tudo conforme nós ensaiamos, não há o porquê ficar
nervosa.
Seu tom é calmo e tolerante, mas ele está perto o suficiente
para que eu consiga notar as olheiras profundas em seu rosto
que denunciam as noites de sono que ele também perdeu nos
últimos dias. São parecidas com as minhas, só que numa pele
mais enrugada e áspera.
― É mais fácil falar do que fazer ― resmungo, torcendo
para que ele não tenha prestado atenção o suficiente.
― Escute, Alteza, eu sou um homem velho que dedicou
anos da minha vida a este reino; ainda assim, não aceitaria esta
coroa nem que eu fosse a sua última esperança. Por isso,
admiro sua coragem. Você ainda é uma menina jovem demais
para compreender a verdadeira dimensão do que está prestes a
fazer ― diz ele num tom condescendente. Eu estremeço por
dentro, porque suas palavras são soam mais sinceras do que
qualquer coisa que já ouvi vindo de alguém da corte. ― Mas
confio que, com o tempo, entenderá.
Jean-Pierre segura a minha mão e gesticula para o espelho
diante de nós.
― Se despeça da pessoa que você vê no espelho enquanto
pode, porque tudo vai mudar a partir daqui.


O burburinho no salão pode ser ouvido a muitas portas de
distância. E a cada passo que eu dou em sua direção, minhas
pernas assumem um ritmo automático. A parte boa é que isso
me poupa do esforço de fazê-lo de forma consciente. O ritmo
das batidas do meu coração aumenta proporcionalmente à
proximidade física entre mim e toda aquela gente, por mais que
eu ainda não consiga vê-los.
Quando tudo o que me separa do meu destino é uma porta,
meus pés travam. O grão-duque ― cujo braço esquerdo está
tomado pelo meu direito ― me olha de soslaio de um jeito
paternal. É o jeito dele de dizer que eu posso usar os próximos
dez segundos para respirar.
Respirar é o que faço. Fundo. O máximo que esse vestido
apertado me permite. Depois, com aceno inconsciente da
minha cabeça, permito que as portas sejam abertas.
Há uma música soando em algum lugar, mas meu coração
batendo em meus ouvidos faz com que eu só consiga sentir a
sua vibração. Há também um tapete vermelho estendido até o
topo da escadaria que leva ao trono. Arranjos de flores e faixas
verde-esmeralda decoram impecavelmente cada canto.
E há pessoas. Muitas pessoas.
Sei que a minha postura é imponente, mas tem a solidez de
um castelo de cartas; se assoprarem forte demais, vai tudo
desmoronar. Jean-Pierre disse durante nossos ensaios que
seria de bom tom da minha parte olhar para os lados de vez em
quando, enquanto caminho, para demonstrar gentileza e
confiança aos nobres que estão presentes. Mas, na prática, eu
os encaro e desvio os olhos tão rápido, que tenho certeza de
que podem ler meu nervosismo feito um folhetim escandaloso.
O maldito altar parece mais distante a cada passo que dou.
Meu estômago e minha cabeça latejam. Por mais que estejam
todos em silêncio absoluto, o zumbido dentro da minha cabeça
faz com que eu escute murmúrios indecifráveis. Quero gritar
para que parem a música e me deixem tentar escutar meus
pensamentos, por isso mordo os lábios por dentro para conter o
impulso.
Quando alcanço a base das escadas, algo ameniza dentro
de mim. Uma aceitação anestésica começa a formigar na ponta
dos meus dedos e se espalhar pelo resto do meu corpo. O
grão-duque se desfaz do meu braço e me olha nos olhos com a
expectativa de que eu consiga chegar até o topo sozinha. Eu
não fazia ideia do quão estive confiando o peso do meu corpo
nele até o momento em que ele me soltou.
Outra longa respiração.
Depois, tudo começa a acontecer de forma automática.
Subo cada degrau, superconsciente de como a barra do
meu vestido se comporta, para não tropeçar, o que acaba
sendo uma ótima distração. Só percebo que completei o trajeto
quando não há mais nenhum outro degrau para eu escalar.
O Arcebispo e eu nos encontramos apenas uma vez para a
leitura do juramento da cerimônia. Ele é um homem de baixa
estatura, mas que me encara como se estivesse a muitos
metros acima de mim. As rugas em seu rosto deixam a
carranca ainda mais assombrosa.
Ele começa a verbalizar cumprimentos e formalidades no
tom mais claro que a voz calejada consegue ecoar. Faz os
cumprimentos, um prelúdio da cerimônia e, então, finalmente
me invoca.
― Vossa Alteza está disposta a tomar o Juramento?
― Sim, eu estou.
O homem caminha até mim com uma Bíblia de tamanhos
desproporcionais em mãos e a estende para mim.
― Você promete solenemente e jura governar os Povos de
Sealaena e dos outros territórios pertencentes de acordo com
suas respectivas leis e costumes?
Sinto meu rosto se contorcer um pouco.
― Sim, eu prometo.
― Em seu poder misericordioso, você fará com que a lei e a
justiça sejam executadas em todos os seus julgamentos?
― Eu farei.
Minhas mãos tremem e seguro aquele livro enorme com
mais força do que o necessário.
― Como uma prova que estas palavras serão honradas,
você deve assinar o juramento agora.
Mesmo sabendo que é impossível que uma caneta pese
mais que algumas gramas, a que eu seguro é pesada feito
chumbo. Meu nome sai torto e quase ilegível, mas é o melhor
que consigo fazer. Uma pessoa que não é o Arcebispo se
aproxima para tirar a Bíblia das minhas mãos e levá-la para
sabe-se lá onde.
É a minha deixa para ficar de joelhos diante do clérigo. Não
depender dos meus pés para me manterem erguida é um alívio.
Resta saber se vou conseguir levantar, quando estiver vestindo
o peso da coroa que está prestes a ser posta em minha cabeça.
Fecho os olhos e espero pelo inevitável. Percebo a óbvia
movimentação ao redor que nada mais é do que o Arcebispo
vindo em minha direção outra vez para que, enfim, eu seja
oficialmente coroada.
Agonizo pelo que parecem ser horas e só torno a abrir meus
olhos quando escuto uma comoção por todo o salão.
Por um momento, me pergunto se estou tão anestesiada
que não senti quando o adorno foi colocado sobre a minha
cabeça. No entanto, ao olhar para cima, a coroa ainda está
imóvel nas mãos do Arcebispo e, ao invés de olhar para mim,
ele está olhando para algo além do altar, sobre os meus
ombros, com a boca entreaberta.
E, quando giro o pescoço para buscar a causa do espanto
do homem, vejo Nathan na base da escadaria, me olhando de
volta com um sorriso idiota.
XX
Primeiro, pensei que fosse uma assombração. Um delírio da
minha cabeça atordoada. Mas as pessoas ao redor estavam
enxergando o mesmo que eu e, depois de um abraço que
poderia esmagar meus ossos, comecei a acreditar no que meus
olhos estavam me dizendo.
Passada a comoção enorme que se instaurou depois que
Nathan ressurgiu do nada, a coroação foi devidamente
interrompida. Além de não existir a mínima possibilidade de eu
ter forças ou sanidade mental para prosseguir com aquilo, o
simples fato de o príncipe estar vivo, virava o jogo de cabeça
para baixo.
Fomos eu, ele e Jean-Pierre para uma saleta afastada. Eu
queria respostas, meu irmão queria se explicar e o grão-duque
queria saber como administraria mais essa reviravolta. Nenhum
de nós precisava estar no salão para saber, com certeza, sobre
o teor das especulações que estavam sendo feitas por todos os
presentes.
Jogada numa poltrona, com todos os laços do corpete do
vestido abertos para que eu pudesse respirar de maneira
decente, encaro Nathan dos pés à cabeça para reafirmar que
não estou mesmo enlouquecendo. A pele do meu irmão está
queimada de sol, ele está definitivamente mais magro e seus
cabelos precisam de um corte. Está sentado diante de mim,
segurando uma de minhas mãos, enquanto a outra está
ocupada com um copo de água com açúcar.
― Já se acalmou? ― ele pergunta, me encarando
profusamente.
― Não. ― Eu e o grão-duque respondemos em uníssono. É
quase cômico.
― Como? ― balbucio, incapaz de controlar o timbre trêmulo
da minha voz. ― Como é possível você estar aqui? O que
aconteceu? Eu lembro... Lembro de nós dois naquele bote...
Depois você sumiu de vez. Eu estava delirando?
― Não, Di. Não foi delírio. Depois que o bote tombou, você
foi a única que eu consegui encontrar. As ondas estavam
engolindo tudo e... Francamente, não sei com que forças eu
consegui virar o bote outra vez. Mas consegui. E te encontrei
logo em seguida, mas você estava inconsciente, então o que eu
fiz foi me jogar na água para não te deixar afundar e tentar levar
seu corpo até as rochas para ficarmos sobre elas até a
tempestade se acalmar. Foi quando eu consegui isso aqui. ―
Ele então ergueu a barra direita da calça e em sua perna havia
uma cicatriz horrenda cortando a panturrilha dele na horizontal.
Tinha, no mínimo quinze centímetros de comprimento. ― Por
sorte, o bote acabou ficando preso entre o rochedo também e,
quando amanheceu, consegui colocar a gente dentro dele para
buscar ajuda. Acho que ficamos uns dois dias flutuando em mar
aberto. Eu sabia que iríamos morrer. Comecei a ter febre, a me
desidratar. Sorte a sua ter estado inconsciente durante todo
esse tempo, porque eu vivi o inferno, tendo a certeza de que
nossos pais estavam mortos e assistindo você morrer aos
poucos.
Os olhos de Nathan estão vermelhos e lacrimosos, perto de
transbordarem. Quero abraçá-lo, mas tenho medo de chegar
perto demais e ele desaparecer outra vez. Ainda estou em
choque, afinal. Tão em choque, que não choro ao escutar as
palavras dele, apenas sinto espasmos de pânico por todo o
meu corpo.
― Mas então eu vi, lá de bem longe, um navio. Uma
embarcação enorme. Era a nossa chance. Não pensei muito
antes de pular e nadar até ela. O plano era gritar por ajuda e,
quando eles me resgatassem, eu os levaria até você e
estaríamos salvos. A verdade é que foi um milagre eu ter
conseguido alcançá-los. Subestimei minha fraqueza. Ao menos,
consegui gritar para que eles me percebessem afogando antes
de apagar. E, quando acordei, dias depois, estava cercado por
viajantes alemães. Eles não me entendiam e eu não os
entendia. Passei todo esse tempo no mar e, quando chegamos
em terra firme, estávamos do outro lado da França. Então, há
duas semanas, me levaram até um viajante que estava a
caminho de Marselha e ele me ajudou a voltar para a casa.
Foram dias terríveis. Tudo em que eu conseguia pensar era em
você, sozinha, flutuando e morrendo aos poucos no meio do
oceano.
― Nate...
― Mas tenho que devolver a pergunta agora. ― Ele se põe
de pé, ansioso. ― Como você sobreviveu?
― Eu...
Não posso dizer a verdade.
Posso confiar em Nathan com a minha vida, mas não sei se
posso confiar a vida de outras pessoas. Portanto, não arrisco
dizer uma palavra sobre a ilha ou sobre as meninas.
Meus olhos caem sobre o grão-duque que está sentado
numa mesa próxima, com a cabeça entre as mãos, repuxando
os poucos fios de cabelo que restam em sua cabeça. Ele está
tão atordoado que duvido que me escute contar a história
mentirosa sobre os “pescadores” que me encontraram. Por
mais que eu me sinta uma pessoa horrível por mentir para o
meu irmão num momento como esse, em que finalmente nos
reencontramos e que estou anestesiada por saber que ele não
está morto, isso não é sobre mim.
― Isso é inacreditável.
Sim. Porque é mentira, penso. Mas a história real também
soaria fictícia, então não é como se ele estivesse perdendo
muita coisa.
― Mas... ― Ele se ajoelha diante de mim e alcança minha
mão outra vez. Mal consigo olhá-lo nos olhos. ― Estamos aqui,
Di, eu e você. Vivos. É tudo que importa para mim. Quando
acordei naquele navio, sozinho, achei que estivesse sozinho
para sempre. Pensei em me jogar no mar e acabar com tudo de
vez, porque a dor que eu estava sentindo era insuportável, mas
que bom que não fiz isso. Por Deus... Que bom que eu ainda
tenho você.
Nate se atira sobre as minhas pernas e me abraça como
pode. Vejo lágrimas molhando meu vestido, mas não são as
lágrimas dele, são as minhas. Um choro compulsivo escapa do
fundo da minha garganta e não para.
Estou feliz. Aliviada. Em êxtase, ou qualquer coisa assim. A
verdade é que não existem palavras para descrever. Ao mesmo
tempo em que quero gritar, também quero que tudo fique em
silêncio, para que eu consiga aproveitar esse momento por
mais tempo.
― Sei que esse é um momento importante para vocês dois,
mas, bem, tem uma centena de pessoas lá fora que vieram aqui
para assistir a uma coroação ― diz Jean-Pierre, destruindo
meu precioso silêncio e nos trazendo de volta à realidade. ― E
elas farão as mesmas perguntas que estou me fazendo agora e
imagino que vocês também.
― Será que podíamos... Não falar sobre isso agora? Só por
hoje. Mande todos para a casa, diga que adiaremos tudo ―
Nathan diz, erguendo-se de pé outra vez. ― A única coisa que
eu quero é um pouco de descanso. Além do mais, gostaria que
Diane e eu pudéssemos discutir sobre... essa decisão a sós.
Ele está se referindo ao fato de que, agora que ele está de
volta, há dois herdeiros. Mas, para mim, é tudo óbvio demais.
Jean-Pierre finalmente nos deixa sozinhos na sala. É um alívio
dos grandes. Ainda estou um pouco aturdida, mas meus
pensamentos começam a desanuviar.
― Não tem decisão nenhuma, Nate. Sabemos que você
deve assumir o trono. É o que todos esperam.
― Sim, mas... É isso que você quer?
A pergunta dele me pega de surpresa. Não achei que meu
irmão fosse, por algum momento, considerar a ideia de que
prosseguiríamos com a minha coroação. O mero pensamento
de isso acontecendo soa absurdo.
Mas o silêncio que se instaura diz muito sobre tudo que eu
tive que enfrentar nos últimos dias para me acostumar com a
ideia de me tornar rainha. A verdade é que tudo que fiz foi num
impulso desesperado para proteger as pessoas que amo. Até
uma hora atrás, Flora, Isis, Danny e as outras meninas da ilha
eram tudo o que havia me restado. Eu estava ali por elas e só
isso. Comigo ocupando o trono de Sealaena, elas estariam bem
mais seguras. Saber disso me ajudava a dormir à noite.
Agora, com essa reviravolta, não estou muito certa do que
devo fazer em seguida.
Queria que Isis estivesse aqui. Preciso falar com ela e as
outras, antes de dar uma resposta final a Nathan.
― Tudo bem se eu não te der essa resposta ainda? ―
pergunto, olhando nos olhos dele pela primeira vez em muito
tempo. ― Preciso de mais tempo para pensar.
― Nada mais justo. ― Sua resposta é rápida e direta, sei
que ele me compreende. ― Desculpe ter chegado sem avisar.
― Eu rio e dou um tapinha em seu braço. ― Mas que bom que
fizeram tanta comida, estou morto de fome.
― Sinta-se em casa ― brinco. ― Vou aproveitar que
estarão todos no seu pé para me livrar desse bendito vestido
enquanto ninguém está olhando.
― Te encontro mais tarde? Quero passar mais um pouco de
tempo com você outra vez, como fazíamos quando a gente era
criança. Você é a única família que eu tenho agora e...
― Ei, não precisa se justificar. Te espero no meu quarto,
está bem? ― Dou dois tapinhas em seu ombro. ― Mas, se não
levar comida, não vou deixar você entrar.
― Está bem, sua chantagista.

Quando voltei para o meu quarto, encontrei um bilhete de


Flora sobre a minha cama, dizendo que ela e Danny haviam
voltado para o acampamento para contar sobre o retorno de
Nathan para as meninas.
Era uma notícia que mudava tudo afinal. Exigia certa
urgência.
Não quis despender muito tempo pensando sobre como
aquilo ia se desenrolar. Mesmo porque, duvidei que a minha
cabeça cansada conseguiria formular um raciocínio coerente.
Então, tudo que fiz foi deslizar para fora do meu vestido e me
atirar na cama.
Não me lembro de quando ou como peguei no sono, o que
aconteceu foi que meu cansaço físico e mental se uniram num
só para me derrubar. Horas depois, fui despertada por Nathan
batendo à porta e, agora, estamos os dois sobre o carpete. Meu
irmão está deitado, encarando o teto com as mãos entrelaçadas
sobre o torso. Um segundo depois, os olhos dele estão em
mim.
― Como você se sentiu quando caiu a ficha? ― pergunta.
― Quando se deu conta de que tudo o que você tinha foi por
água abaixo? ― Ele deu uma risadinha nasalada. ― Que termo
péssimo, saiu sem querer.
Eu ri também e foquei na pergunta depois. É claro que
houve um momento em que a ficha caiu, mas não sei se posso
dizer que são sentimentos que partem do mesmo lugar. Afinal,
por mais que ambos tenhamos perdido pessoas importantes e
visto a vida virar de cabeça para baixo, ainda existem, para
mim, pessoas tão importantes quanto ― e, arrisco dizer, talvez
mais ― do lado de fora desse palácio.
Então, sim, foi infernal. Mas, para Nathan, deve ter sido bem
pior.
― Não dá pra explicar. ― Inconscientemente, comecei a
brincar com os fiapos do carpete para evitar olhá-lo nos olhos.
― Depois que minha consciência voltou, comecei a lembrar de
tudo meio borrado e caótico. A única coisa que me impediu de
achar que havia sido só um pesadelo, foi o fato de que eu não
estava na minha cama quando acordei.
― Você teve tanta sorte! Nós dois... Caramba, ainda não
consigo acreditar. Quando me disseram que você estava viva
eu achei que era mentira ou um engano.
― Ainda me pego pensando se eu não morri mesmo e, na
verdade, estou presa num limbo, porque minha alma é teimosa
demais para fazer a passagem.
Ele ri.
― Isso seria tão você.
― Do que está falando? Eu não sou tão teimosa assim.
― Ah, você é sim. Sempre foi. É tão teimosa que me
surpreendeu o fato de você ter sequer cogitado a ideia de
assumir o trono. Mas, bem, talvez alguém como você seja
exatamente o que Sealaena precisa, afinal. Teimosia e
tenacidade andam juntas às vezes.
― Nate, eu...
Ele ergue a cabeça do chão e busca meu olhar.
― O que foi?
Eu sabia que, em algum momento da conversa,
chegaríamos nesse assunto. Não quero mentir para o meu
irmão, ainda mais agora que acabei de reencontrá-lo. Mas
como vou dizer a ele que não quero coroa nenhuma? Que
nunca quis e, a única razão para eu ter aceitado vai muito além
do que algum senso de responsabilidade ou pertencimento.
Amo Sealaena, mas há outras coisas que eu amo bem mais e é
só por causa dessas coisas que eu estou aqui.
― Você é quem deve ser o rei. Não faz nenhum sentido que
eu...
― Faz todo o sentido para mim. Na verdade, considerando
que você sempre foi a mais inteligente de nós dois, o que não
fazia sentido é quererem colocar um cara como eu naquele
trono. ― Ele ri, mas eu ainda estou séria.
― Você se preparou para isso a sua vida inteira.
― Bem, não é como se eu tivesse tido outra escolha.
Ele suspira.
― E se pudesse escolher?
Dentre os segundos de silêncio, consigo ver como os olhos
dele se tornam reflexivos enquanto ele escolhe as palavras
certas.
― Ao mesmo tempo que é uma responsabilidade tremenda,
eu só queria tentar fazer a diferença, entende? É mais fácil
mudar as coisas do lado de dentro do que do lado de fora.
Então, me esforcei para me encaixar e aprender tudo o que eu
podia sobre como as coisas funcionam. Eu odiava todas
aquelas regras e a hipocrisia que cercava a monarquia, mas
fazia mais sentido para mim me habituar a elas e tentar mudar
na medida do possível, do que me rebelar e deixar tudo como
está. E, francamente, a possibilidade de ver você naquele trono
é uma mudança e tanto. Porque, no fundo, você é um dos
maiores motivos para eu querer que as coisas fossem
diferentes por aqui.
Preciso de um tempo para absorver a fala dele porque,
depois de muitos anos, ele soa como o Nathan de quem eu me
lembrava, antes da gente crescer e a vida na realeza entrar no
caminho.
― Então você não quer a coroa? ― pergunto. ― Nunca
quis?
― Eu quero, mas existem outras coisas que quero mais. Ver
você usando ela é uma delas. Então, sei que disse que
precisava de um tempo para decidir, e respeito isso, mas, cá
entre nós: você quer ser a rainha de Sealaena?
Um silêncio confortável impera por alguns momentos. Não
consigo mais esconder a verdade, não com ele sendo tão
sincero comigo.
Droga, eu vou mesmo dizer.
Só que, de súbito, falamos ao mesmo tempo:
― Eu conheci alguém...
― O quê? ― ele diz.
Risadas nervosas ecoam pelo quarto e, num lapso, estamos
sentados de frente um para o outro com os rostos vermelhos e
olhos arregalados.
― Você fala primeiro ― digo. Ele revira os olhos. ― Anda.
― Está bem, está bem... Lembra que eu disse sobre ter
vindo da França até aqui? ― Faço que sim. ― Tinha... alguém
me ajudando. E essa... essa pessoa veio comigo até aqui.
― Espera, mas você não disse que era um viajante? Quem
mais estava... ― Os olhos dele, tão fixos nos meus, e as
sobrancelhas erguidas me dizem tudo que eu preciso saber. ―
Ah...
Estou aturdida demais para reagir e, num instante, Nathan
fica cabisbaixo.
― Sei que não é... normal ou... Enfim, qualquer coisa que
dizem por aí. Sei que se descobrirem, vamos ter problemas
sérios. Então, se estou te contando, é porque confio em você
com a minha vida. Literalmente. Queria que soubesse disso.
― Mas a princesa Anika e você... Eu achei de verdade
que...
― Você achou certo. Eu gostava mesmo dela. Também.
― Ah. ― Limpo a garganta, buscando as melhores palavras
para o que eu quero dizer. Jamais esperaria uma confissão
como essas nem em um milhão de anos. ― E ele foi o
primeiro... Tipo assim... O primeiro cara?
Ele ri, desconcertado.
― Se está perguntando se foi o primeiro homem pelo qual
me apaixonei, a resposta é não. Mas foi o primeiro que me
deixou confortável o suficiente para fazer algo sobre isso. Eu
tinha medo do que eu sentia antes.
― Ah.
― “Ah?” ― Ele faz aspas com os dedos. ― Só vai dizer
isso? Não vai dizer que sou doido ou coisa assim?
A situação é tão comicamente irônica que, por pouco, não
caio na gargalhada. Estou me sentindo culpada por ter mentido
para ele esse tempo inteiro e escondido minha vida dupla, mas
a verdade é que eu não tinha como saber até onde a lealdade
dele ainda estava comigo e até onde estava com a coroa.
Agora sei. Estava comigo esse tempo todo. Sempre esteve.
― Eu devia ter ficado calado, não é? Olha, eu não queria
despejar isso em você assim e...
― Quieto. Estou tentando pensar.
― Pensar em quê?
Coisas demais para serem ditas de uma vez só e sem um
contexto adequado.
Antes de responder, me coloco de pé.
― Veste uma roupa decente e me encontra nos estábulos
daqui a meia-hora. Quero te mostrar uma coisa.
XXI
Por mais que tenha soado como uma boa ideia confiar na
minha intuição e arrastar Nathan floresta adentro para contar a
verdade sobre as meninas e a ilha, eu esqueci de considerar a
realidade de que talvez Isis e as outras não compartilhassem do
mesmo sentimento que eu. Então, um pouco antes de
chegarmos ao acampamento, precisei convencer Nathan a me
esperar numa clareira com o cavalo e segui andando sem ele.
Era quase madrugada, então quando apareci na casa sem
avisar, as meninas ficaram todas muito atordoadas antes que
eu explicasse a situação. E, bem, algumas delas se mantiveram
assim mesmo depois, porque a ideia de deixar o príncipe
descobrir sobre a ilha parecia ser boa só na minha cabeça.
― Você enlouqueceu de vez? ― perguntou Isis, pousando
as mãos na cintura e me encarando com os olhos flamejando.
― Quer que alguém da realeza saiba sobre a gente? É como
colocar uma raposa para tomar conta do galinheiro, Robin.
― Eu sei que parece absurdo, mas...
― Ah, você acha?
― Isis, me escuta, está bem? ― Me aproximo dela
enquanto as outras a nossa volta observam com certa
incredulidade. ― Algum de nós dois vai ter que sentar naquele
trono e começar a tomar decisões. E, por mais que eu não
queira que seja eu, quero que essa pessoa seja alguém que vai
fazer de tudo para proteger as pessoas que eu amo. E sei que
Nathan faria isso, sei que podemos confiar nele.
Olho à nossa volta por um instante, tentando enxergar
algum apoio nos rostos das meninas, mas elas parecem
atordoadas demais para ter uma opinião e consigo
compreender. Até mesmo Flora tem suas dúvidas.
― Ele quer que você desista da coroação? ― Isis cruza os
braços.
― Não. Sou eu quem quero desistir e você sabe disso, não
sabe?
― Sei. Mas ainda assim você espera que a gente confie
nele com algo dessa magnitude? Como eu posso acreditar que
não é você tentando se sentir menos culpada por querer
desistir?
― Eu abri mão da minha liberdade por vocês. Abri mão da
melhor vida que eu poderia ter. Se isso não são provas de
lealdade boas o suficiente, não sei mais o que posso fazer.
― Robin, você precisa entender que...
― Dá uma chance pra ele. ― A voz de Camilla atravessou a
conversa, para a surpresa de todo mundo. ― Como você deu
pra Robin quando a Sophie apresentou ela para a gente. Ela
também era da realeza.
― É diferente. Ele é um homem.
― Adrian também. Mas você confiou, porque Nellyne, ele e
o bebê são uma família. A Robin é a família do príncipe.
― A única que ele tem ― completo, franzindo os lábios. ―
Não preciso dizer o quanto ele vai se sentir abandonado se eu
for embora sem dar nenhuma explicação.
Depois de longos segundos em silêncio, Isis correu os
dedos pelos cabelos longos e os repuxou de leve antes de olhar
bem no fundo dos meus olhos e dizer:
― Eu ia dizer que é melhor eu não me arrepender, mas vou
colocar uma maneira melhor: é melhor você não se arrepender,
Diane. ― O suspiro de alívio que sai pela minha boca é audível,
mesmo que ela tenha me chamado pelo primeiro nome. ―
Traga ele até aqui.
― Mesmo? Achei que fosse querer encontrá-lo.
― Melhor não. Quero que ele conheça os rostos das
pessoas que ele vai prometer proteger. Porque é o que você
disse que ele vai fazer não, é? ― pergunta Isis, sem esconder o
ceticismo no tom de voz.
― Estou dando a minha palavra.

― Me lembra de nunca mais te seguir para o meio da


floresta outra vez ― resmunga Nathan, assim que me vê
chegar. ― Onde raios você estava?
― Você vai descobrir. Vem comigo.
Sinalizo com o braço a direção do caminho de onde vim e
ele me segue a passos apressados.
― Acho bom você não ter se metido em nada perigoso!
Quase perguntei qual era definição de “perigoso” para ele,
mas, considerando que meu irmão confessou estar envolvido
romanticamente com um cara momentos atrás, duvido que o
que estou prestes a mostrar vá além do que ele considera como
perigo.
― Primeiro, você precisa saber que eu menti ― digo,
quando estamos a poucos passos de avistar a casa do
acampamento.
― Mentiu? ― As linhas do rosto dele se contorcem em
confusão. ― Sobre o quê?
― Sobre como eu sobrevivi ao naufrágio. Como voltei para
casa.
― O quê? Mas por quê?
― Porque, se eu dissesse a verdade, colocaria pessoas em
perigo. Pessoas que eu amo. ― Paro de caminhar e toco o
ombro de Nathan para que ele preste atenção em mim. ― E,
agora, estou confiando que você não dirá nada também.
― Você está me assustando.
― Eu conheci uma pessoa há uns anos atrás. E essa
pessoa me apresentou a um mundo do qual eu comecei a fazer
parte, mesmo sem perceber e, bem, esse é o motivo de eu
estar aqui hoje. Viva.
― Não precisa falar em códigos comigo, Di. Se me trouxe
até aqui, é porque confia em mim, certo? ― Eu faço que sim. ―
Então me mostra logo.
― Certo, você tem razão. ― Rio de mim mesma. ― Vou te
mostrar e deixar você reagir do seu jeito; é idiotice ficar
prologando isso.
Enlaço o meu braço no dele e sigo o caminho. Logo
estamos na porta e dou uma encarada demorada no rosto de
meu irmão, percebendo como os olhos dele analisam o lugar
com curiosidade e ânsia.
Quando entramos, há só duas pessoas na sala de estar:
Flora e Isis. Elas estão de pé alternando os olhares entre mim e
Nathan que, assim como eu, não sabe bem como deve reagir.
― Então? ― Isis quebra o silêncio e desfaz o transe em que
estive nos últimos segundo, enquanto buscava as palavras
certas. ― Não vai nos apresentar?
― Nathan, essas são as pessoas de quem te falei. Algumas
delas, na verdade. Flora, Isis, esse é o príncipe Nathaniel, meu
irmão.
Nate toma a dianteira e estende a mão para a matriarca. Sei
que ele está nervoso, porque seus passos são desajeitados.
― Ouvi dizer que ajudaram a minha irmã e cuidaram dela
por mim ― diz ele, ainda com a mão suspensa no ar. ― Tenho
que agradecê-las por isso.
Isis finalmente retribui o cumprimento e Flora faz o mesmo
em seguida, sem tirar os olhos de mim.
― E o que mais ela te disse? ― pergunta Isis, sem
cerimônias.
― Não disse muito, mas, se vocês são pessoas importantes
para a Diane, é o suficiente para que tenham a minha
confiança; não preciso saber de mais do que isso. Porém... se
me permite confessar, estou bastante curioso para ouvir mais.
― A princesa é muito importante para nós também, alteza.
Ela tem sido uma aliada valiosa e uma grande amiga para todas
nós e, por mais que eu adore falar sobre a nossa gente, vou
deixar que ela faça isso.
Ela me olha como quem diz “Vá em frente”, e sinto que essa
é a minha deixa para provar que não coloquei tudo a perder.
Sentamos no sofá e eu começo a contar a história para
Nathan do começo. Conto como conheci Sophie e como ela me
trouxe até aqui e acabei me enturmando. Conto sobre a Ilha da
Deusa e como nos envolvemos e como eu fiquei devastada
quando soube que ela tinha morrido. É uma das partes mais
difíceis para mim; não consigo não me emocionar. Mas então
chega a hora de contar sobre a minha história com a Flora e
minha voz chorosa dá lugar a um sorriso bobo e incontido.
Nathan escuta tudo em silêncio, balançando a cabeça
copiosamente, mesmo que com um semblante bastante
expressivo.
― Quer dizer que você está apaixonada por uma garota?
Tenho certeza de que os Aubert estão se revirando no túmulo
agora mesmo, por saber que nós dois estamos dando um fim à
linhagem da família ― brinca Nathan, nos arrancando risadas.
Até Isis deixa escapar um risinho. ― Mas eu deveria saber que
nenhum homem poderia ser bom o suficiente para você.
Flora está ao meu lado e minha mão alcança a dela para
que eu a segure e entrelace nossos dedos.
― Agora chegamos na parte em que eu menti. Se lembra
que eu disse que fui encontrada por pescadores? ― Ele
assente. ― É meio verdade, porque foram pescadoras da ilha.
Elas me levaram até as outras e me mantiveram segura até que
eu me recuperasse. O plano era que eu ficasse na ilha
esperando por notícias da nossa família, mas então soubemos
que os problemas com Marselha tinham ficado piores e como
isso podia ser uma ameaça para a Ilha e que, talvez, um trono
desocupado só tornasse as coisas piores.
― Por isso você aceitou a coroa então ― ele diz, como se
estivesse pensando alto. ― Isso faz muito sentido.
― Está decepcionado? ― pergunto.
― Essa não é a palavra. Talvez eu tenha achado que, com
você no trono, as coisas pudessem mudar de figura nesse
reino. Mas sabendo sobre o que você encontrou, sejamos
sinceros, o reinado seria uma prisão. Por isso sou eu quem
devo assumir o lugar do nosso pai.
― O quê? ― A declaração dele me pega de surpresa. ― Do
que você está falando?
― Você sabe. Nunca ia ter sua liberdade se fosse rainha e
sabemos que é o que você quer, então nada mais justo que eu
faça isso por nós dois. É claro que eu gostaria de uma
revolução, mas a sua felicidade é o que mais importa.
― Mas... mas e o...
― Didi, eu não seria o primeiro rei a manter um amante
escondido.
Rimos juntos e meus olhos estão cheios de lágrimas. Jogo
meus braços em volta do pescoço de Nathan para abraçá-lo e
ele me aperta forte contra o peito.
― Odeio que tudo isso tenha tido que acontecer por causa
de uma tragédia tão grande, mas estou feliz em saber que
confia tanto em mim e que ainda temos um ao outro ― Nate
diz. ― Mesmo que você vá para uma ilha no meio do oceano.
Antes que eu possa desfazer o abraço, sinto Flora se juntar
nele. Consigo perceber o quão contente ela está por saber que
vamos poder ficar juntas, como era para ser.
O abraço coletivo dura alguns segundos antes que Isis enfim
se pronuncie:
― Desculpem interromper o momento família feliz, mas
acho que vocês têm uma plateia.
Ela aponta com a cabeça para o corredor, onde as meninas
estão reunidas e nos observando, curiosas. Acabei me
esquecendo de que não estávamos sozinhos.
― Acho que é uma boa hora para fazermos as
apresentações.

As meninas gostam de Nathan. Todas elas. Bem, excet0 Camilla,


mas não seria Camilla se não tivesse um pé atrás com qualquer
indivíduo do sexo masculino.
Aproveitamos as horas que temos antes de precisarmos
voltar para o palácio para que meu irmão conheça melhor sobre
a Ilha e conte as histórias constrangedoras de quando éramos
crianças. É estranho assistir esses dois mundos, que lutei por
tanto tempo para manter separados, interagirem assim. Mas é
algo bom, porque, ao que parece, eles se dão muito bem.
― A Diane já contou para vocês da vez que ela mordeu um
cachorro para me salvar de um ataque? ― ele diz, empolgado
para contar a história. Meu rosto queima no mesmo instante
enquanto as meninas riem.
― Em minha defesa, a gente tinha 6 anos e o cachorro
estava prestes a mastigar sua bochecha!
― Tem razão. Mas a cena de você com os dentes cravados
na orelha do bicho foi tão engraçada que eu esqueci que
deveria estar apavorado. Era um Buldogue Inglês com metade
do nosso tamanho.
― Era de estimação da marquesa Sarah. Talvez por isso ela
não goste muito de mim.
― Não é estranho que estejamos aqui sentadas ouvindo o
príncipe e a princesa contarem fofocas da realeza? ― Nelly fala
para mim e Nathan. ― Eu estou adorando cada segundo.
― Eu também, mas... Quando ele a chama de Diane,
parece que está falando de outra pessoa ― diz Elle.
― Pensei que fosse só eu! ― Camilla concorda.
― Preferi me apresentar como Robin, já que no palácio todo
mundo me chamava de Sua Alteza Real Princesa Diane de
Sealaena o tempo inteiro, era bom ser essa outra pessoa entre
vocês.
― Já li num livro que pessoas com nomes compostos
podem desenvolver uma personalidade para cada nome ― diz
Flora. ― Será que é esse o caso?
― Considerando que, na família real, todos temos nomes
compostos, dá pra entender o porquê ninguém é mentalmente
estável ― brinco, fazendo todas rirem. ― Isso inclui você, Sua
Alteza Real Príncipe Nathaniel Philip de Sealaena.
― Nunca mais me chama assim, eu te imploro. ― Ele toca
meu ombro. ― Mas, mesmo para mim você sendo sempre a Di
ou Didi, estou feliz por ter me deixado conhecer a Robin.
Também estou feliz depois de tantas coisas ruins terem
acontecido e más notícias sucedendo más notícias, estou feliz
de verdade. E, por mais que ainda haja muito a se acertar e
decidir para que as coisas voltem a se acalmar nas nossas
vidas, esse é um momento do qual sei que vou guardar boas
memórias.
XXII
3 meses depois

A coroação de Nathan foi há dois meses. Meu irmão é,


agora, oficialmente, o rei de Sealaena. Decidimos, juntos, por
fazer uma pequena cerimônia fúnebre para os nossos pais uns
dias antes. Algo simbólico. O grão-duque disse que nos
ajudaria a “internalizar o processo da perda”. Como nenhum
corpo havia sido encontrado, ainda parecia tudo distante e
irreal. Lápides foram encomendadas e colocadas no cemitério
da família real juntas das dos nossos outros antepassados.
Ajudou. Encontramos um espaço para compartilhar a dor, já
que estávamos a ignorando tanto tempo por sempre haver
preocupações maiores para lidar.
A proclamação oficial da morte do rei e da rainha fez com
que as famílias do restante da tripulação, que não sobreviveram
ao naufrágio, pudessem reclamar providências por parte da
coroa; compensações pela perda de seus familiares. Então, por
mais que eu estivesse animada com a ideia de voltar para a Ilha
da Deusa, não podia abandonar Nathan aqui para lidar com
tudo isso sozinho.
Decidimos que eu partiria quando as coisas estivessem mais
estáveis por aqui e, coincidência ou não, elas estavam
começando a ficar, justo na hora que as meninas estavam
preparando-se para desmontar o acampamento e voltar para a
Ilha da Deusa.
― Você parece tensa ― diz Sid que, sem que eu
percebesse, passou pela porta da sala de estudos e se
aproximou. ― Aconteceu alguma coisa?
Siddartha Kulkarni foi apresentado a mim como o viajante
que ajudou meu irmão a voltar para casa e, também, o homem
por quem ele está apaixonado. Demorou umas semanas para
que ficássemos confortáveis um com o outro, mas, quando
aconteceu, nos tornamos amigos de infância. Ele nasceu na
Índia, mas viajava por toda a Ásia e Europa com os pais desde
cedo. Ele conta as melhores histórias e sabe um pouco de tudo,
inclusive como ler as pessoas como ninguém.
― Te conto se prometer não contar para o meu irmão ―
barganho, empurrando para longe a papelada que eu estava
redigindo, ou melhor, rabiscando.
― Minha boca é um túmulo.
Ele puxa uma cadeira para se sentar.
― Acho que já está na hora de deixar vocês. Começar a
minha vida, entende?
― Por mais que vá ser uma pena não ter mais você e a
Flora por perto, é claro que eu entendo. Mas por que o Nate
não pode saber?
― Tenho medo de que meu irmão pense que estou
abandonando-o para sempre.
― Ele não vai pensar. Sabíamos que esse momento ia
chegar um dia e seria terrível pensar que está aqui contra a sua
vontade, então acho que deve falar com ele.
Sid toca o dorso da minha mão e eu o abraço.
― Promete que vai cuidar dele por mim?
― Vamos cuidar um do outro. Como quando estávamos
viajando e nos revezávamos para dormir.
Saber disso me tranquilizava, mesmo sabendo que a
monarquia podia ser mais perigosa do que uma estrada escura
e deserta no meio da floresta. Principalmente para quem está
usando a coroa.

― Tem certeza de que não quer ficar? Ainda não escolhi


minha indicação para o Conselho depois que o Grão-Duque se
aposentou ― diz Nathan, segurando-me pelos ombros,
enquanto tenta não chorar.
Estamos terminando de levar as últimas caixas para dentro
do navio que vai partir rumo à Ilha da Deusa em alguns
momentos. Meu irmão e Sid vieram ajudar e, bem, se despedir.
Mas Nate nunca foi bom com despedidas.
― Tenho certeza. E também tenho certeza que existe algum
código de ética sobre colocar gente da família no seu Conselho.
― Posso dar um jeito nisso e, depois, num reino pequeno
como Sealaena, todo mundo é pelo menos primo de alguém.
Eu rio.
― Estou indo, Nate. Mesmo.
Ele finalmente se entrega e deixa algumas lágrimas rolarem.
Eu o abraço forte.
― Eu te amo ― dizemos juntos, depois suspiramos
longamente.
― Mande notícias. Cartas. Sinal de fumaça. Qualquer coisa
― ele pede, quando desfazemos o abraço. ― Vou esperar.
― Digo o mesmo para você.
Antes de ele responder, sinto enlaçarem meu braço direito e
darem um beijo no meu rosto. Flora recosta a cabeça no meu
ombro da maneira que pode e, o modo com o qual meu corpo
todo esquenta, só me faz estar mais certa de que a decisão de
estar com ela num lugar seguro é a única que eu poderia tomar.
― Vou sentir falta de você, Flora, mesmo que esteja
roubando a minha irmãzinha de mim ― diz Nathan num tom
sarcástico.
― Eu sou mais velha.
― Quieta.
― Também vou sentir saudades de ter um adversário
decente para jogar xadrez, mesmo que você seja um péssimo
perdedor ― diz Flora.
― Admita que você mexeu as peças enquanto eu não
estava olhando daquela última vez e eu te deixo em paz. ― Ele
ergue as mãos em rendição e depois pega a mão dela. ―
Venham nos visitar sempre que possível, está bem?
― Combinado ― ela diz.
― Meninas, não quero apressar, mas tem um navio
esperando vocês ― diz Isis, acompanhada por Nelly e pelo
bebezinho Bes.
― Vocês? Mas como assim? ― pergunto, sem ter certeza
do que ouvi.
― Eu não vou voltar.
― Mas... Isis... E a Ilha? ― diz Flora.
― Dediquei metade minha vida àquele lugar. Tenho muito
orgulho de tudo que construímos e das pessoas que ajudamos.
Mas a Ilha estará em boas mãos. Tem muita gente em que
confio para cuidar daquele lugar, mas só eu posso cuidar da
minha família agora.
Ela troca um olhar com Nellyne que diz mais do que
qualquer outra coisa. Nós quatro nos abraçamos e eu aproveito
para me despedir de Nelly e do bebê. Flora faz o mesmo e, sem
que percebamos, estamos chorosas.
― Acho que é isso, então... ― digo, voltando-me para o
meu irmão. ― Agora tenho mesmo que ir.
― Espero que, quando voltar, eu tenha conseguido fazer as
coisas serem diferentes por aqui. Quero te deixar orgulhosa ―
ele diz.
― Não existe ninguém nesse mundo de quem eu me
orgulhe mais.
E nos abraçamos de novo, uma última vez.

Assistindo o punhado de terra se afastar aos poucos na


costa, vivo meus últimos dias todos de uma vez só. Me lembro
do exato momento em que estávamos eu e Nathan no convés
do Achille, quando eu me inclinei sobre o guarda-corpo e senti
os primeiros pingos daquela tempestade no meu rosto.
Tempestade que viraria todo o meu mundo de cabeça para
baixo.
Parece irônico. É como se a vida estivesse tentando me
passar uma mensagem e talvez eu tenha conseguido, depois
de tanto tempo, decifrá-la. Estamos buscando o tempo todo por
calma e permanência nas coisas que são impermanentes em
sua mais pura essência. Mas o lado reconfortante disso tudo é
que, por mais que as coisas boas nunca sejam permanentes,
as ruins também não são. E nada como o desconforto dos
momentos ruins para nos levarem de uma ponta a outra.
― Será que finalmente acabou? ― pergunta Flora,
sentando-se ao meu lado nas escadas da proa. ― É isso?
Vamos ficar juntas?
― Já ouvi dizer que quem comemora a vitória no momento
errado é derrotado no momento certo ― brinco. ― Mas, é, acho
que podemos comemorar. Pelo menos pelas próximas horas.
Ela pega a minha mão, enlaçando nossos dedos e meu
coração vibra um tanto quando nossos olhos se encontram,
porque tudo parece perfeito demais para ser real.
― Isso tudo que aconteceu fez com que eu conhecesse um
outro lado de você. E de mim também. É esquisito, mas acho
que acabamos nos tornando pessoas diferente das que éramos
seis meses atrás.
― E qual é a sua conclusão?
― Bom, vai precisar de mais do que uma coroa e um reino
inteiro para eu desistir de você.
― Pensei que fosse dizer isso, mas, acredite, eu tenho
outras cartas na manga.
Ela ri e segura meu queixo para me beijar, como quem sela
um contrato tácito. Quando partimos o beijo, a pequena Adèle
está diante de nós duas com uma expressão caricata de
desgosto que todas as crianças fazem quando veem adultos se
beijando.
― A tia Danny disse que era para eu ficar com vocês ― ela
diz. ― Por que eu não posso ficar com a Isis e a Nelly?
― Bom, porque... ― Flora tenta achar a explicação mais
simples. ― Porque você tem que voltar para não perder mais
nenhuma aula e aprender a ler e a escrever como as outras.
― Mas quem vai cuidar de mim?
― Nós vamos ― diz Flora e eu tomo um sustinho por achar
que ela está falando de nós duas. ― Todas nós da ilha. E você
vai cuidar da gente também.
A garotinha salta para cima das pernas de Flora e se ajeita
ali, satisfeita com a resposta da loira. Ela não tem nenhuma
dúvida, mesmo tão pequena, de que é capaz de fazer
exatamente o que foi dito. Ninguém a ensinou que sua única
função é servir a um homem, ser dócil e ter um monte de filhos.
Posso não ser nenhuma intelectual especializada no assunto,
mas acho que esse é um bom jeito de começar a vida; sabendo
do monte de outras coisas importantes e grandes que você
pode fazer sem ninguém impondo limites na sua existência.
Sei que estou indo para o melhor lugar onde eu poderia
querer estar, mas ressinto o fato de existirem tantas mulheres e
meninas do lado de fora que não terão a mesma chance.
E, como a Ilha da Deusa é pequena demais para todas elas,
espero que um dia todas as garotinhas possam crescer num mundo
que as faça conscientes do próprio poder.
As Cartas
Querido Nate
(ou devo dizer Vossa Majestade?)
O tempo passou rápido demais, ou fui só eu? Sei que gostaria
que estivéssemos juntos, e eu também, mas, a cada dia que passa,
tenho certeza de que estou mais em casa do que nunca. Mas eu
ainda te amo, tá? A vida aqui é boa para mim, posso ser livre,
passear pelos lugares que eu quiser, falar sobre o que eu quiser e
beijar a garota dos meus sonhos quando eu bem entendo. Não
posso sequer imaginar como seriam as coisas se eu não pudesse e,
sendo sincera, isso era o que me impedia de respirar em Sealaena.
O medo nos restringe, e sufoca as chances de sermos nós mesmos.
Sei que sabe disso também, e gostaria que, um dia, você também
conseguisse provar dessa sensação.
Se lembra de quando eu disse que tive dificuldades para me
adaptar quando cheguei aqui depois do naufrágio? Fique feliz em
saber que, agora que sei que vim pra ficar, as coisas ficaram mais
fáceis. Tenho amigas novas, porque graças ao meu ótimo trabalho
de vigia noturna da ilha, agora ajudo a cuidar da segurança de todo
mundo. Quem diria que todos esses anos estudando a guarda do
palácio para encontrar falhas serviriam de alguma coisa?
E isso significa que vamos poder matar as saudades de vez em
quando, quando eu começar a integrar a equipe de viagens para o
continente. Pois é, irmãozinho, você não vai ficar livre de mim assim
tão fácil.
A minha memória é péssima, e eu deixei para escrever minha
carta de última hora — você me conhece —, então, por mais que eu
saiba que está ansioso para saber de todos os pequenos detalhes
(você sempre gostou de ler aqueles livros enormes e altamente
descritivos bem mais do que eu), só consigo pensar no que é mais
importante. E o mais importante é que eu estou melhor do que
jamais estive.
Sinto saudades profundas de você e dos nossos pais, mas
estaria mentido se dissesse que sinto falta de ser a princesa de
Sealaena. É bom ser só a Robin.
Quando escrever de volta, quero que me conte absolutamente
tudo sobre a sua nova vida também. Você está bem? Está se
alimentando direito? Como é ser o rei?
Ah, diga ao Sid que estou com saudades, e espero que ele
esteja fazendo bom proveito do meu quarto.
E, falando sobre pessoas que amamos, preciso de um conselho
de irmão:
Quero pedir a Flora em casamento, mas ainda não sei como
fazer, ou se é cedo demais. Apenas sei que ela é a pessoa com
quem imagino estar durante o resto da minha vida, por que não
tornar isso oficial?
O que você acha?

Com amor,
Diane
Querida Diane
(ou devo dizer Robin?)
O tempo não passa nada rápido por aqui. Nunca. Como você
pôde adivinhar, é obvio que estou com saudades e gostaria de ter a
minha irmã de volta. Amo você, e é por isso que o que mais importa
para mim é que esteja feliz. Portanto, consigo abrir mão de tê-la por
perto, se isso significa sua liberdade. Não se sinta culpada, sim?
Posso não estar passeando pela praia e beijando garotas como
você, mas encontro meus jeitos únicos de felicidade por aqui. Estar
com Sid é um deles, fazer a diferença na vida das pessoas de
Sealaena — ainda que aos poucos — é outro.
E, por falar em pessoas que estão se dando bem em sua nova
função, devo dizer que a recomendação de Ísis como minha nova
Conselheira foi um daqueles acertos enormes que um rei faz de vez
em quando. É claro que não foi fácil, porque ela não tem nenhum
título ou documentos, mas vale a pena abusar de um privilégio ou
outro, de vez em quando. Só sei que aquela mulher sabe fazer as
coisas funcionarem; de um jeito que não demorou nada para
cessarem os protestos uns dias depois, quando ela sentou naquela
cadeira e começou a desfazer o nó do conflito com Marselha.
E sei que ela vai me entregar sobre pular uma ou duas refeições
e não dormir direito, por isso prefiro não dizer nada. São ossos do
ofício, você sabe como é. Sem emoção, sem diversão, certo?
O que mais me conforta é que eu me encontrei, e sei que estou
no caminho certo. Odeio toda a pressão, e o fato de ter que me
esconder para estar com a pessoa que amo, mas gosto dos
pequenos desafios. Gosto de sair pelas ruas e perceber que não
sou temido, mas sim respeitado. Acho que nossos pais se
orgulhariam.
Sid mandou dizer que também sente sua falta. E, desculpe por
não guardar segredo, mas tive que pedir a opinião de alguém
sensato sobre o lance do pedido de casamento; já que eu
literalmente pedi que ele ficasse comigo para sempre depois de
duas semanas que nos conhecíamos.
Tivemos uma conversa sobre como é importante respeitar o
tempo do outro só que, no fim, entendemos que também é
importante que não guardemos os sentimentos bons só pra nós.
Então acho que, se você sente que quer ficar com ela para toda a
vida, deveria deixá-la saber disso.
E, vamos ser sinceros: qualquer um que passe mais de cinco
minutos com vocês saberia dizer que ela sente o mesmo.
(Pro caso de o fato de ela ter largado a ilha para viver aqui com
você não seja evidência disso o suficiente.)
Você tem um coração bom, Di. Faça o que ele te pedir; sempre.

Com amor,
Nathan
Sobre a autora

Victoria Mendes nasceu em 2000, cursa Direto na Universidade


Federal de Minas Gerais e lê e inventa histórias desde que se
entende por gente. A escrita surgiu pra ela em 2013 como um
hobby, mas seu sonho é um dia poder transformá-lo em profissão de
tempo integral. Ama cachorros, os jogos da Riot Games, a Taylor
Swift, um bom thriller e histórias de crimes reais.

Instagram: @vicmendesverso

(https://www.instagram.com/vicmendesverso/)

Twitter: @victsmendes

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