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- Safo de Lesbos
Prólogo
Nove anos atrás
●
Pauline quase teve uma síncope quando me encontrou
coberta por lama nos corredores. Me puxou pela orelha e me
jogou um balde de água antes de me enfiar dentro da tina.
Mesmo que já fosse uma senhora em seus cinquenta, tinha
uma força impressionante nos braços. Minha pele ficou
avermelhada de tanto esfregar com sabão e meus cotovelos
ardiam como se picados por formigas-fogo. O vestido estava
arruinado para sempre.
— Ah, Diane, o que seus pais diriam se a vissem nesse
estado? — perguntou Pauline, enxaguando a lama dos meus
cabelos e os desembaraçando com uma escova. — Uma
menina não...
— ...deve brincar na lama. Acertei? — Encarei-a com olhos
semicerrados e um sorriso travesso nos lábios.
Ela respondeu à minha irreverência com um puxão um
pouco mais forte da escova.
— Exato. E muito menos uma princesa.
— Foi só uma brincadeira! Mocinhas não podem se divertir?
Pauline resmungou entre dentes.
— Você vai se tornar uma mulher em breve, Vossa Alteza.
Os rapazes vão passar a te olhar diferente e olhará diferente
para eles também. Só então, vai entender o que quero dizer.
Mais do que rapidamente, coloquei a língua para fora e fiz
som de vômito.
— Não quero rapaz nenhum olhando para mim. E não vou
olhar para eles também, posso garantir.
— É o que diz agora, mas mudará de ideia, garanto. A não
ser que queira se tornar uma solteirona como eu, cuja principal
ocupação na vida é tomar conta de uma certa princesinha
malcriada.
— Pensei que gostasse de mim. ― Fingi-me chateada.
— Gosto. Gosto bastante. A última missão que Deus está
me dando é te colocar nos eixos e te educar para ser uma
princesa digna, Diane, e é por isso que amanhã você não sai da
minha vista nem por um segundo.
●
No dia seguinte, fui trancada na sala de estudos com a
minha punição de copiar seis vezes os parágrafos sobre boas
maneiras do Código de Etiqueta para Damas. Pauline sentou-
se numa poltrona a alguns metros da minha escrivaninha com
uma bandeja de chá de camomila para me observar. Ela caiu
no sono alguns minutos depois, mas guardou a chave dentro de
uma almofada sob o seu assento.
Eu devia terminar tudo se quisesse sair dali, mas não
estava nem perto. Eram parágrafos extensos, quase cinco
páginas de linhas e mais linhas sobre como uma mulher deve
se comportar. Muitos deles eu já tinha decorado de tanto ler e
copiar.
“Não correr.”
“Não falar alto demais.”
“Não falar baixo demais.”
“Não sujar suas vestes.”
“Não expor opiniões pessoais quando não solicitadas.”
E mais um monte de outras “regras” que jamais fariam
sentido para mim.
Um hora depois, batidinhas na porta me distraíram da
minha chateação. A voz de Nathaniel, do outro lado, me fez
pular da cadeira com um salto.
— Di, você está aí? — perguntou, murmurando. Pela
vibração da voz, senti que ele estava com o rosto colado na
madeira.
— Estou. De castigo, é claro. — Revirei os olhos e encostei
meu ouvido na porta também.
— O que você pegou dessa vez?
— Código de Etiqueta. Os parágrafos sobre boas maneiras.
Seis vezes para ficar livre. E você?
— Ajudar a limpar os estábulos e carregar lenha por três
dias. Mas já terminei por hoje. Acha que consegue roubar a
chave?
Suspirei. Até mesmo o castigo do meu irmão era menos
tedioso que o meu.
— Não dá. Pauline está com o traseiro em cima dela.
— Droga. Quantas vezes você já copiou?
— Uma e meia.
Ouvi-o bufar, quase tão frustrado quanto eu.
— Bem... Até logo, então.
— Até logo, Nate.
Ouvi seus passos se afastando dali e voltei pesarosamente
para o meu castigo. Aquelas páginas não iam se preencher
sozinhas, afinal.
●
A cachoeira é uma queda d’água que despenca do alto de
um penhasco colossal em forma de arco. A água cobre
parcialmente a entrada de uma caverna rasa, cercada por
vegetação. O rio é de um azul cristalino e corre para as
extremidades do penhasco, envolvendo-o como um abraço. Eu
só a tinha visto em desenhos, mas nada se compara ao que ela
de fato é, vista pessoalmente.
Me aproximando da margem do rio junto à Flora, consigo ver
e ouvir outras mulheres por perto. Elas estão nadando,
tomando sol perto das rochas, se banhando ou lavando suas
roupas na correnteza. É uma cena tão idílica que parece ter
saído direto de uma pintura.
— É bonito, né? — diz Flora, alcançando os botões de seu
vestido para desfazê-lo. — Tomara que a água não esteja tão
fria.
Concordo, balançando a cabeça. Apesar de o dia estar
ensolarado, ainda faz um pouco de frio por conta da brisa.
Minha pele arrepia sob as minhas roupas de baixo quando
começo a tirar a blusa e me juntar à Flora.
É gostoso molhar os pés na beira do rio, onde a água não
passa dos tornozelos. Está fria na medida certa, o suficiente
para deixar meu corpo em alerta e me energizar um pouco.
Gosto do chiado que a água faz, gosto do canto dos
passarinhos que parece ecoar ainda mais alto aqui. É como
estar no paraíso, quando há uma guerra acontecendo dentro da
minha própria cabeça. Tento desligar meus pensamentos à
medida em que sou puxada pelas mãos de Flora e sinto a água
me envolver. Aos poucos, sinto que sou capaz até mesmo de
controlá-los por alguns instantes.
— Eu costumava vir aqui sempre quando cheguei na ilha —
disse Flora, com o tom de voz ligeiramente mais alto por conta
do barulho de água caindo. — E tinha ficado meio monótono,
mas agora que você está aqui, é como ver tudo de novo pela
primeira vez.
Sinto meu rosto esquentando e não tem nada a ver com o
sol sob as nossas cabeças. É naquela fração de segundo que
esqueço tudo de ruim que me aconteceu lá fora e consigo sentir
uma felicidade genuína por estar onde estou, com quem estou.
Tomo alguns segundo para admirar o rosto radiante da garota
diante de mim e agradecer aos céus por tê-la.
— Ainda vamos ver muitas coisas bonitas juntas, loirinha —
digo. — Eu prometo que, assim que tudo se resolver, vai ser
como se todo esses capítulos tristes do nosso passado sequer
existissem.
Aproximo-me dela e jogo meus braços em volta de seu
pescoço. A água está batendo um pouco abaixo dos nossos
ombros. Uso uma de minhas mãos para desfazer o coque em
seus cabelos e assistir os fios dourados caírem em cascata
sobre as suas costas. Ela ri e joga a cabeça para trás, deixando
que as pontas se molhem.
— Eu mal posso esperar — diz.
Flora segura minha cintura e cola a testa na minha. Nossas
respirações se misturam e o sorriso em seus lábios triplica
minha vontade de beijá-la. É o que eu pretendia fazer se, antes,
alguém não tivesse chamado pelo nome dela, lá da beira do rio.
— Ei, Flora! — chama outra vez, uma voz impaciente, mas
amigável.
Ao buscar por ela com o olhar, encontro uma mulher alta de
cabelos castanhos, pele amarelada meio bronzeada de sol e
olhos negros bastante estreitos. Ela está acenando com a mão,
numa parte do rio em que água mal alcança seus joelhos.
— Ei, Liv — Flora finalmente responde, depois se volta para
mim. — Essa é a Olivia, uma das meninas que moram comigo.
Te falei dela nas cartas.
— Só esqueceu de me contar que dividiam uma casa —
respondi, num tom bem-humorado, mas com um sorriso
amarelo.
— Então não era conversa fiada do mulherio da ilha, a
princesa ressuscitou mesmo! — exclama Olivia, me encarando
tão fixamente que me sinto intimidada. — Robin, não é?
Não vi quando ou como ela chegou tão perto, só percebo
que sua voz soou mais alta do que eu esperava.
— Sou eu — respondo, aturdida. — Eu não estava morta.
— Não foi o que pareceu quando você chegou aqui. — Ela
dá uma risada nasalada. — Mas, ei, foi uma brincadeira. Fico
feliz que esteja bem, assim eu finalmente posso conhecer a
garota de quem todos falam tanto. Especialmente a Flora.
Flora faz um movimento com a mão e respingos de água
atingem o rosto da garota. Ela retribui o gesto e as duas riem
juntas enquanto eu ainda estou tentando processar a nossa
primeira interação.
— O que está fazendo aqui uma hora dessas? Não deveria
estar com as crianças? — Olivia pergunta, quando as duas se
aquietam.
— Isis me deu uns dias livres para ficar com a Rob até ela
se acostumar com a ilha — respondeu, olhando para mim.
— E os privilégios de namorar uma princesa continuam —
diz a outra.
— Continuam? Como assim? — pergunto.
— Ah, ela não te contou? A Flora é a garota mais
paparicada da ilha, graças a você.
— Isso não é verdade!
— É sim! É a queridinha da Isis e todo mundo sabe disso —
ela ri. — Morou na casa dela e tudo mais.
Meio que acho graça da situação, porque jamais pensei que
minha relação com a Flora fosse fazer alguma diferença em
como as pessoas a tratariam aqui na ilha. Mas eu deveria saber
— pelo óbvio — que havia pessoas aqui que me conheciam,
mesmo que eu não as conhecesse. Antes de Flora, havia
Sophie e minha amizade com Isis, Nelly, Camilla e Danielle.
— Foi só até eu me enturmar. Agora sou obrigada a dividir
um teto com você, Olivia. Onde está o privilégio nisso?
— Não adianta tentar fingir que não adora a minha
companhia, não vai colar.
Flora revira os olhos e estou zonza de tanto virar a cabeça
para acompanhar o diálogo. E em silêncio, porque tudo que
passa na minha cabeça é: por que Flora não me disse que elas
eram tão íntimas assim? E por que isso importa tanto?
— Mas, ei, agora que a princesa está aqui, não vou mais ter
que tomar conta de você.
— Robin — digo, tentando não soar tão áspera. — Pode me
chamar de Robin.
— Como quiser. — Ela percebe meu desconforto. — Bem,
eu só vim me refrescar um pouco. Preciso voltar para ajudar no
jantar. Vejo você em casa hoje, Flora?
— Hm, eu não sei... O que acha, Rob? Você vai conhecer o
resto das meninas. Prometo que não são todas assim.
Ela segura o riso e Olivia atira água em seu rosto outra vez.
— Por mim, tudo bem — respondo, balançando os ombros.
— Perfeito! Vou pedir para colocarem mais um prato na
mesa, então. Até mais tarde, meninas.
Ela acena e vai embora nadando até a parte mais rasa.
Quando estamos sozinhas outra vez, Flora pergunta:
— E aí? O que achou dela?
— Meio efusiva, né? — digo, sucinta.
— Sim, e... ?
— É cedo demais para ter uma opinião.
— Olha só quem está com ciúmes agora!
— Dela? Pff... Flora, sem chances.
Queria ter certeza de que estou dizendo a verdade, mas
Olivia é bonita e simpática demais. Talvez eu realmente esteja
com ciúmes.
— Que bom. — Ela segura meu rosto com as duas mãos. O
toque é gelado por conta da água, mas me aquece inteira por
dentro. — Porque não é como se eu tivesse olhos para alguém
além de você.
Não há mais nada para ser dito. A sensação dos lábios dela
nos meus é como sentir o chão sob os meus pés outra vez.
Parece que estou em casa, que nada de ruim me aconteceu ou
vai acontecer. Flora me beija com a calma de quem quer
aproveitar cada segundo e eu memorizo todas aquelas
sensações para jamais esquecer outra vez.
VIII
As novas amigas de Flora são... comunicativas. Para dizer o
mínimo. Ou talvez eu seja o problema, já que não consigo me
inteirar sobre nenhum assunto que elas conversam. O que posso
fazer é sorrir e acenar enquanto me contam casos sobre a ilha e
sobre o trabalho que estão fazendo. É bom ouvi-las. Me distrai. Mas,
em certo momento, o fato de eu ser a garota de fora fica impossível
de ignorar, e então preciso achar um outro jeito de me distrair.
Flora está na cozinha com Olivia preparando o jantar, então
eu reparo no que está ao meu redor. A cabana em que elas
vivem é pequena, mas confortável o suficiente para quatro
moças. O lugar se divide em quatro espaços: a sala e a cozinha
conjugadas, dois quartos e um banheiro. A decoração é
simples, rústica e, para cada canto que se olhe, há um livro
repousando.
Estou à mesa com outras duas mulheres e vou, aos poucos,
me acostumando com os rostos e gravando os nomes de cada
uma delas. Tem Olivia, a garota desinibida da cachoeira, que
parece ter nascido com o dom de picar legumes sem cortar os
dedos enquanto conversa olhando direto nos olhos de alguém.
Aqueles braços torneados conseguiriam partir ao meio uma
tábua daquelas maciças e eu estaria mentindo se dissesse que
não fico intimidada.
Elisabeta, uma loira de cabelos crespos e sotaque italiano
carregado. A mais falante das meninas. Sua pele é tão branca
que parece translúcida e ela é rechonchuda feito uma lua cheia.
É encarregada de ensinar as mulheres mais velhas da ilha. Já
deve ter os seus trinta e poucos anos.
E, por fim, Julie. É a mais quieta delas, tem olhos cinzentos,
cabelos castanhos cortados na altura da nuca e toma vinho
como se fosse água fresca num dia quente de verão. Ela me
disse a idade em algum momento da noite, mas me esqueci.
Sei que não é muito mais velha do que Flora e é ela quem
planeja e escreve os livros que as outras usam, já que não tem
muito jeito para o professorado.
— Robin, você tem que nos contar tudo sobre a vida na
realeza — pede Elisabeta, mexendo as mãos mais do que o
necessário para uma solicitação tão curta. — Não é todo dia
que comemos com uma princesa.
Estava mesmo demorando para que trouxessem o assunto à
tona. Em geral, costuma ser a minha primeira interação com
grande parte das pessoas que me conhecessem primeiro pelo
meu título do que pelo meu nome. Só que, nesta noite em
especial, falar sobre a realeza seria falar sobre a minha família
também. E me lembrar que talvez eu nunca mais os veja.
— Quem sabe uma outra hora, Beta? — intervém Flora,
aproximando-se da mesa. E que bom que ela o fez, porque eu
não saberia como responder sem soar arrogante. — Talvez a
Rob precise de um tempo para tocar nesses assuntos. Além do
mais, o jantar está pronto.
— Finalmente! Esse cheiro de frango já estava fazendo
maluquices dentro da minha cabeça — diz Julie.
As garotas riem e não demora para serem postas à mesa
uma variedade de travessas com comidas de aparência tão
convidativa quanto o cheiro. Ajuda a dispersar a tensão que
ficou e eu me sinto, tipo, um milhão de vezes mais confortável
com Flora por perto.
Pequenas coisas, como ela ter captado o meu desconforto e
ter me ajudado a fugir daquela conversa, me fazem ter ainda
mais certeza sobre os meus sentimentos por ela.
— Você já apresentou a Robin para as suas crianças? —
pergunta Olivia, entre uma garfada e outra.
— Ainda não. Passamos o dia pela ilha, para que ela
conhecesse as coisas por aqui — responde Flora, girando o
pescoço para me olhar. — Mas talvez amanhã? Tenho três ou
quatro aulas pela tarde.
Eu balanço a cabeça em concordância, sentindo um frio
desconfortável na barriga.
— Contou para ela que as garotinhas te chamam de ‘tia
Flora’? — O comentário vem de Julie, junto de uma risada.
Não. Ela não me contou. Dentre tantas linhas escritas nas
cartas, esse detalhe escapuliu, assim como tantos outros.
— Tia Flora? — digo. — Vou amar ver isso de perto.
— São crianças. Na cabeça delas, todas as mulheres com
mais de catorze anos são tias — justifica Flora.
— Você precisa ver como ela fica dando aula. Tão
concentrada... Nem parece a garota desajustada que chegou
aqui uns meses atrás e que corava com qualquer comentário
atrevido da nossa parte — continua Olivia. — Tenho quase
certeza de que as horas que ela passava encarando o oceano
na praia era calculando em quanto tempo ela chegaria ao
continente nadando.
As garotas riem e eu também, apesar de estar um tanto
curiosa sobre os tais “comentários atrevidos” que ela
mencionara. Mas opto por não entrar em detalhes.
— Na verdade, — começa Flora. — na maior parte do
tempo, eu estava pensando na minha família. E na Robin.
Há um suspiro coletivo e ela segura a minha mão por
debaixo da mesa. Meu rosto esquenta no mesmo segundo que
nossos olhares se encontram.
— Vocês duas... Parecem mesmo ter saído direto de um
conto de fadas — comenta Beta.
Eu diria que nenhum conto de fadas teria uma sucessão tão
grande de tragédias, mas prefiro não estragar o momento com
meu humor mórbido. Sei que existem histórias trágicas por trás
da maioria das mulheres nesta ilha. Histórias que poderiam ter
tido um fim ainda pior se elas não encontrassem umas às
outras; não serei eu a macular os pensamentos felizes e
esperançosos de alguém.
— A princesa e... — começou Julie.
— A garota que falava com pássaros — completou Olivia.
— Essa história outra vez? — resmungou Flora, após revirar
os olhos. — Nem é tão engraçado assim.
— Ah, então sabem que ela falava com os corvos também?
— digo. — É meio engraçado, sim.
As meninas riem.
— Vocês precisam arranjar outra piada. — Ela dá de
ombros. — Sinto falta do Noir.
— Vamos ter que voltar ao continente uma hora ou outra.
Talvez você consiga vê-lo.
— Quem vai voltar? — A pergunta vem de Olivia.
— Nós duas. Quando... Se... Bom, eu preciso saber da
minha família — explico, com um nó na garganta.
— E Flora também vai? Olha lá... Eu não disse? Privilégios
— retruca Olivia, irreverente.
O tom dela não é agressivo, mas me incomoda. Não porque
soa como um ataque, mas porque ela acredita piamente no que
está dizendo e talvez isso deixe Florence desconfortável em
algum nível. Eu sei que eu fico desconfortável.
— Eu gostaria de ir ao continente outra vez — diz Julie.
— Mas por que motivo? Aquele lugar é horrível — pergunta
Beta, assombrada. — Eu não iria por nada nesse mundo.
— Você não sente falta de ver uns rapazes bonitos? —
perguntou a mais nova.
— Juju, eu já li muitos livros de romance que têm homens
escritos por mulheres para me interessar por algum de verdade.
Julie deu de ombros, muito bem conformada com a
resposta. Nem todas as mulheres da ilha se relacionavam
romanticamente com outras mulheres. Algumas delas só não
sentiam atração. É o caso de Isis, por exemplo. Não é muito
comum, mas vez ou outra acontece de alguém deixar a ilha
para se casar com os homens do continente. Só que é claro
que não é algo que eu entenda.
— Homens são decepcionantes. Quem precisa de um
quando se tem tantas mulheres como esta aqui — Olivia diz e,
enquanto discursa, segura o rosto de Flora com uma das mãos.
— Duvido que algum homem seja tão bonito.
Não faço ideia de quem corou mais rápido: eu ou Flora. Mas
nossos motivos eram diferentes, porque o rubor dela era de
timidez e, o meu, de indignação.
É quando percebo o quão minha mente está exausta. A
Robin de semanas atrás reagiria com uma resposta
atravessada ou comentário sarcástico. Já essa aqui fica
estática, encarando o outro lado do cômodo, sem saber o que
dizer. Estou entre desconhecidas, não quero soar mal-educada
ou desrespeitosa. Não quero deixar ninguém desconfortável,
porque tenho estado assim durante boa parte do tempo em que
estive nesta ilha.
— Olivia, você não pode falar assim na frente da princesa —
diz Beta, quebrando o silêncio que se instaurou.
Há como cortar a tensão com uma faca.
—Está tudo bem. — Flora tenta contornar. — A Rob não se
importa, né?
— Mas é claro que não. Você é mesmo linda.
Respondo rápido e sem pensar, porque é meu jeito tentar
dissimular que tenho confiança nas palavras que saíram da
minha boca. Talvez alguma parte de mim acredite mesmo nisso,
mas minhas inseguranças do passado vêm à tona para engolir
meus sentimentos. Só consigo desejar estar em casa, me enfiar
sob os cobertores e dormir até um outro dia chegar. Mas
preciso me conformar que não estou em mais casa; a chegada
de mais um dia nunca foi tão indesejável.
— Mudando de assunto, o que vocês acharam da comida?
— pergunta Flora.
●
O jantar não dura muito mais tempo depois daquela
conversa. Todas as meninas precisam estar acordadas bem
cedo no outro dia pela manhã, então eu e Flora fazemos o
caminho de volta para a casa de Isis antes da meia-noite.
Ela me enche de perguntas durante todo o percurso e eu
sou monossilábica, mas não sei o quanto quero que a loira
perceba que estou chateada. Tenho estado chateada durante
boa parte do tempo, pelos motivos óbvios causados pelos
últimos acontecimentos, mas é diferente dessa vez. Meu mau
humor está acumulando feito pilhas de folhas secas no outono
e não estou nem um pouco orgulhosa disso.
Isis e Nelly não estão por perto quando entramos na casa,
então suspeito que já estejam dormindo. As tábuas velhas do
piso impedem qualquer tentativa de caminharmos até o quarto
em silêncio e, ao alcançarmos o corredor de cima, uma porta se
abre.
De dentro dos quartos sai uma garotinha miúda, esfregando
os olhos com os punhos cerrados. A camisola clara vai até suas
canelas e sua pele é tão branca quanto a minha; ela tem olhos
de um castanho avermelhado e cabelo castanho-claro. Pelas
feições, deve ter no máximo dez anos de idade.
— Addy, o que você está fazendo acordada? — pergunta
Flora.
— A Nelly disse que a princesa tinha despertado. Eu queria
ver.
A voz da menina é doce e sonolenta. Ela me olha da cabeça
aos pés e de repente estou curiosa para saber o que passa na
cabecinha dela. Ergo a mão em um pequeno aceno, ela sorri e
retribui o cumprimento.
— Bom, aqui está ela. Mas você não deveria ter ficado
acordada, porque amanhã cedo temos aula, então vá se deitar.
— Vamos aprender os verbos do passado?
— Não se você não for dormir. Porque vai passar a aula
inteira com sono.
O tom da loira é quase maternal e a garotinha ri.
— Tem razão. Boa noite, tia Flora. Boa noite, princesa.
— Boa noite, Addy — respondemos juntas.
A menina caminha de volta para dentro do quarto e bate a
porta devagar. Eu e Flora fazemos o mesmo.
— Quem é? — pergunto, referindo-me à garotinha.
Me pergunto por que, durante todo esse dia, ninguém se
preocupou em me dizer que havia uma criança no quarto da
frente. Não que fosse a informação mais relevante do mundo
para se dizer, comparada a tantas outras coisas, mas foi uma
surpresa esquisita, mesmo assim.
— É a Adèle. Ela chegou na ilha há pouco tempo e ainda
estamos tentando fazê-la se adaptar a alguma das famílias da
ilha. Não costuma demorar tanto tempo assim, mas estamos
todas fingindo que Isis não está apegada demais. As duas se
dão bem.
— E por que ela não adota a menina?
Sento-me na cama e estico as pernas. É muito bom falar
sobre algo novo para me distrair.
— Não quer que pensem que está tentando substituir
Nellyne, caso ela realmente deixe a ilha. Bom, ela não diz, mas
sabemos que é isso.
— Faz sentido.
Dou de ombros e largo os sapatos no chão para me deitar. A
cama não foi arrumada, então me agarro aos lençóis e enfio-me
embaixo deles. Flora vem logo em seguida, após apagar todas
as velas, exceto pela que está na mesa de cabeceira. Ela joga
um dos braços sob o meu peito e me puxa um pouco mais para
perto, se aninhando feito um filhote.
Eu me mantenho imóvel, incapaz de corresponder aos seus
toques, porque ainda estou com aquela conversa do jantar
dando voltas em minha cabeça.
— Sobre o que Olivia disse... — começa. É claro que ela
notaria e, agora, estou muito envergonhada. — A gente sempre
flertou de brincadeira, desde que ficamos próximas. Se te
incomoda, eu peço para que ela pare.
— Não quero que você mude por minha causa. Não tenho
direito de querer que mude. Sua vida aqui é só sua.
— Eu vi como você ficou. Não sou tão desligada assim e,
além do mais, quero que seja a nossa vida algum dia.
— Eu fiquei daquele jeito porque... — Mordo o lábio por
dentro, hesitante. Se eu começar a contar, vai acabar saindo
tudo de uma vez e eu realmente gostaria de deixar o passado
para trás. Fazer as pazes com ele. — Além de tudo que está
acontecendo na minha vida agora, eu tenho alguns traumas do
passado que não gostaria que afetassem a nossa relação.
— É sobre Sophie, não é?
— Como você sabe?
— Ah, Robin, é uma ilha pequena. Fofocas aqui correm
como o vento.
— É... Pois é. Então, já que você já sabe, quero deixar claro
que não pretendo deixar o que aconteceu no passado definir
nossa relação agora. O que nós duas temos é único, sim?
— Claro que é, Rob, você é a minha pessoa favorita. Você
ouviu o que Olivia disse, sobre quando eu tirava uns minutos do
dia para ver o mar... Era sobre você também. Eu queria pensar
em você, lá do outro lado, me perguntando se você também
pensava e esperava e perdia noites de sono como...
Encerro seu pequeno monólogo com um beijo em seus
lábios. Ela retribui com tanta avidez que me deixa sufocada,
mas eu facilmente me sufocaria nos lábios de Flora. Os toques
dela são cheios de delicadezas, mas há um tanto de desejo e
tensão sexual acumulada.
Não sei como dizer que não estou com a menor vontade de
fazer nada agora, então, quando ela desce com a boca para a
minha mandíbula e faz menção a tirar minha blusa, preciso
apelar ao clássico:
— Eu... estou muito cansada agora — explico, remexendo
meu corpo sob o dela. — Talvez outro dia. Me desculpa mesmo.
— Não precisa se desculpar por isso, Rob, por favor.
Ela retoma seu lugar na cama e volta a se aninhar em mim.
Se ela se chateou, não deixa isso explícito no tom de voz.
Dessa vez, é mais fácil abraçá-la e trazê-la para perto.
IX
Flora se arrepende de me deixar assisti-la ensinando as
crianças no instante em que a pequena Adèle espalha para as
outras garotinhas que eu sou uma princesa. Num instante,
estou rodeada, sentada sobre uma mesa larga de madeira
diante de rostos pequenos e curiosos que me enchem de
perguntas e questionamentos do tipo:
“Você tem uma coroa?”
“Como se chama a sua fada-madrinha?”
“Achei que princesas só usassem vestidos bonitos, mas
você está de calças.”
Alguns me fazem rir, outros fazem com que eu questione
toda a minha existência — quem diria que crianças sabem ser
tão profundas às vezes? Mas a maioria deles me fazem lembrar
da minha família. Especialmente do meu irmão que, apesar do
medo de ter filhos, sempre foi muito bom com as crianças da
Corte. Muito melhor do que eu.
A escola improvisada fica numa construção parecida com
um celeiro, que é divido em salas pequenas, mas com tamanho
suficiente para acomodarem todas. São, até onde consegui
contar, vinte crianças de todas as idades na ilha inteira para
Flora dar conta. Olivia fica na sala ao lado, ensinando para as
meninas mais velhas; já Beta, na da frente, com as adultas e as
senhorinhas. As outras salas fazem um ruído modesto devido a
fina espessura das paredes, mas essa aqui é barulhenta como
uma orquestra desordenada.
— Agora que você está aqui na ilha, significa que temos
uma princesa? — pergunta a garotinha de cabelos
encaracolados e pele retinta, cruzando os braços curtos.
— Não significa, não — respondo. — Aqui, eu vou ser como
vocês.
Apesar de as últimas horas terem provado que isso será um
desafio, acrescento, só na minha cabeça.
— Minha mãe disse que se você se casar com um príncipe
ou com uma princesa, você se torna uma também. É verdade
mesmo? — Dessa vez, a pergunta vem do fundo, de uma
garotinha ruiva e sardenta com cabelos lisos.
— É mais ou menos verdade.
Mas como eu poderia explicar a sucessão de títulos da
família real para crianças?
— Então, a tia Flora vai ser uma princesa? — rebate ela.
Capto o exato momento em que, do fundo da sala, Flora
levanta o rosto de sua pilha de folhas e percebe que todos os
olhos do ambiente estão sobre ela. Suas bochechas ficam
rosadas e eu mordo os lábios, sem saber o que responder.
Nunca falamos em casamento naquelas longas cartas que
trocamos. A menção da palavra faz meu dedo anelar queimar e
é quando me lembro do anel de Sophie, que está trancado em
alguma gaveta do meu quarto no palácio. Não o usei mais
depois daquela noite em que eu e Flora nos beijamos pela
primeira vez, apesar de ser uma lembrança inofensiva.
Entretanto, eu ainda não tinha parado para pensar no nosso
futuro com tanta especificidade assim. Tudo que sei, é que não
consigo mais me imaginar ao lado de outra pessoa. Talvez,
quando as coisas se acertarem, eu possa fazer alguma coisa a
respeito.
— Bem, se... — começo a dizer, mas batidas na porta me
interrompem.
— Salva pelo gongo — diz Flora, com um sorrisinho,
caminhando para ver quem é.
No corredor, está Isis. Num primeiro momento, ela parece
curiosa com toda a baderna, mas compreende os motivos
assim que me vê diante das garotinhas.
— Bom dia, meninas — ela diz e é respondida com um
longo “bom dia” em uníssono. — Vou ter que roubar a
professora nova de vocês por um tempinho, tudo bem?
Um “não” sonoro é emitido pelo pequeno grupo e acabamos
por rir da reação delas.
— Eu prometo que volto depois. Se a Flora deixar, é claro —
digo, saltando da mesa para acompanhar a líder. — Aconteceu
alguma coisa? — pergunto a Isis, preocupada.
— Nada demais. É só que ainda não tivemos tempo para
conversarmos só nós duas.
Balanço a cabeça em positivo. Depois de me despedir das
crianças, acompanho a mais velha para fora do lugar. Logo
estamos no Núcleo da ilha, caminhando devagar e lado a lado.
Estou curiosa pelo que ela tem a me dizer.
— E então, como tem sido a sua estadia até agora? —
pergunta.
— Tem sido... reveladora.
— Num sentido bom?
Desvio os olhos para a estátua de Lisa, que está logo
adiante, para evitar olhar Isis nos olhos e demonstrar minha
incerteza. Apesar de termos sempre sido o mais francas
possível uma com a outra, não quero que ela saiba o quão
desconfortável tenho me sentido. Ela não precisa de mais
preocupações.
— Estaria sendo melhor se não fosse toda a situação com a
minha família e tudo mais.
Isis balança a cabeça em anuência.
— Tenho certeza que sim. E você sabe que estaremos aqui
para o que der e vier.
— Eu sei. Obrigada.
— Agora, tem outra coisa que precisamos discutir. — Um
calafrio toma conta do meu corpo no mesmo segundo. — Você
sabe melhor do que ninguém sobre os problemas que Sealaena
está tendo com Marselha, certo?
— Uhum.
— Com o rei desaparecido e o trono desocupado, seu reino
está enfraquecido, Rob. Cada dia que passa, a ameaça de uma
invasão ao norte se torna mais palpável.
— Eu... não tinha pensado nisso.
— De que jeito? Você passou por tanta coisa, meu bem. —
Ela para diante de mim e segura meu ombro, apertando-o
ternamente. — Não queremos te pressionar a nada, mas, se
Marselha alcançar a capital de Sealaena e conseguir
transformá-la num porto, a Ilha da Deusa vai correr riscos.
— E como eu poderia ajudar?
— Bom, você é a sucessora natural ao trono na ausência do
seu irmão. Uma rainha coroada poderia unificar tudo o que está
fragmentado.
Chacoalho a cabeça em negação e continuamos a andar.
— Isis, isso é absurdo. Não posso simplesmente chegar no
palácio, colocar uma coroa na minha cabeça e começar a dar
ordens. Seria como dizer a todos que... — Solto um suspiro
dolorido. — Que minha família está morta. E, além do mais,
seria uma responsabilidade enorme para a qual eu não tenho
nenhum preparo.
— A última parte é mentira e você sabe disso. Tenho certeza
de que, quando tinha a sua idade, o seu pai não era a metade
da governante que você poderia ser.
Desvio o olhar outra vez, contrariada.
— Não muda o fato de que eu não posso fazer isso. Seria
traição.
— Seria um jeito de ajudar a todos. Da ilha e do reino. Mas
você tem que querer, porque exigiriam muitos sacrifícios e
jamais te forçaríamos a nada.
Cruzo os braços.
— Minha família vai aparecer.
— É uma possibilidade, mas o contrário também é. E,
independente de qual for, eu e as meninas estaremos com
você.
— Se eu voltasse, teria que abandonar tudo. A ilha, a Flora.
Todas as coisas com as quais eu sonho desde sempre.
— Como eu disse, os sacrifícios são muitos. A escolha tem
que ser só sua.
Engulo a seco. Meu coração bate forte e se aperta dentro do
peito, causando um incômodo terrível e uma falta de ar
compreensível. Viemos parar diante de um pequeno templo. A
estrutura é parecida com uma igreja comum, mas é colorida por
fora por azulejos decorados com arabescos em tons de azul e
verde.
— Não pense que vamos achar que é egoísmo da sua parte
caso decida ficar.
— O que você faria? — pergunto, olhando diretamente nos
olhos dela.
Isis segue o caminho para dentro do templo, que é ainda
mais bonito em seu interior. As quatro paredes são tomadas por
uma pintura deslumbrante repleta de mulheres com todos os
tons de cabelos e de peles, flores rasteiras e um céu azul
estrelado de fundo. No chão, há apenas uma fonte no centro de
uma claraboia abobadada, com uma cascata de água que cai
da parede. O som da água é tranquilizante.
— Sou a pior pessoa para você perguntar isso. — Ela se
ajoelha na beira da cascata e tira do bolso um colar de contas
coloridas. — A Deusa sabe o quanto a minha atual situação tem
me colocado numa posição impossível.
— É sobre Nellyne? — pergunto, sabendo que a resposta é
óbvia, mas quero abstrair do assunto anterior para absorvê-lo
melhor.
— Ela já tomou a decisão dela. Não tem mais nada a se
fazer.
— Isso não te deixa menos aflita.
Isis ri.
— Sabe, quando o assunto foi discutido uma década atrás,
eu fui uma das que era contra essa coisa de não permitirem
meninos na ilha, mesmo os nascidos aqui. Afinal, se
educássemos eles desde pequenos, eles seriam como nós.
— Mas?
— Mas a ilha não é uma prisão. Fica quem quer ficar e,
infelizmente, o mundo lá fora ainda é dominado pelos homens.
E se, algum dia, um desses meninos quisesse conhecer o
continente e visse que, do outro lado, ele pode ditar as regras?
Como faríamos para garantir que ele não tentaria dominar este
lugar também? Conflitos e desentendimentos já acontecem por
aqui o tempo inteiro. Não precisamos de mais preocupações.
— Acho que compreendi. Não sei qual é a minha opinião, na
verdade, é terrível que talvez tenham que se separar.
Ela une a palma das mãos na altura da testa com o colar de
contas entre os dedos e faz silêncio por um longo minuto. Eu
fico de pé, com os braços balançando, sem saber bem o que
fazer. Depois de um tempinho ela se coloca de pé outra vez e
joga o colar na fonte. Ele afunda devagar e só então eu noto
vários outros objetos coloridos sob a água, se movendo
conforme ela é despejada no fundo.
— É como eu estava dizendo. Não podemos forçar nossas
escolhas em outras pessoas. Por isso, quando você me
pergunta o que eu faria, minha resposta é esta aqui: a Isis de
anos atrás, que tinha mais ou menos a sua idade, não pensaria
duas vezes em permanecer aqui onde é seguro. Mas a Isis de
hoje faria o que é melhor para as pessoas que dependem dela.
Quando for tomar a sua decisão, saiba que a melhor delas será
aquela que se sentir pronta para fazer.
X
Passei o resto da semana com as palavras de Isis reverberando
em minha mente. Esperei, durante cada um dos dias que se passou,
que alguém aparecesse com notícias da minha família, como quem
espera por um milagre. Agora, mais do que nunca, tudo o que eu
queria era que eles estivessem vivos e bem. Só que, como é bem
óbvio, isso não aconteceu.
Pedi à Isis que não comentasse nada com as meninas sobre
a coisa toda de voltar ao continente para assumir a coroa.
Especialmente com a Flora. Não há por que deixar ninguém
aflita — como eu mesma já estou — por algo que tem a chance
de nem sequer acontecer. E torço para que não aconteça.
Depois de perceber que seria uma má ideia que eu
acompanhasse as aulas de Flora por distrair as crianças,
decidimos que eu precisava de outros lugares para ficar, outros
jeitos de passar meu tempo. Então dividi meus dias com as
meninas, ajudando-as no que eu podia em suas funções. Fosse
inspecionando os barcos com Milla e Danielle ou organizando,
planejando e ajudando a estudar e desenhar os mapas de
Nellyne. Quando precisavam de alguém na cozinha comunal ou
na limpeza de algum espaço, eu me prontificava também.
Qualquer chance que tive de escapar de dentro dos meus
pensamentos, agarrei como uma tábua de salvação. Funcionou,
em alguma parte do tempo.
O mais importante é que estou conseguindo me sentir mais
à vontade, aos poucos. Não há mais jantares desconfortáveis
ou piadinhas sugestivas por parte de Olivia. Nos nossos breves
encontros, posso jurar que ela se sente desconfortável com o
fato de Flora e ela já não passarem mais tanto tempo juntas.
Não consigo dizer que me importo. É ruim me sentir assim tão
dependente e possessiva, porque desperta sentimentos tão
tóxicos que nem eu mesma sabia que tinha. Só que é mais
complicado me controlar quando me percebo ameaçada.
Me pergunto, com uma frequência maior do que gostaria, se
sou mesmo a pessoa com quem Flora deve ficar ou se ela só
se apaixonou por mim, porque fui a primeira garota que estava
ali quando ela descobriu que gostava de garotas. Agora, com o
caos que se instaurou na minha vida, e tudo que pode vir a
acontecer, me questiono isso mais do que nunca. Não quero
arrastá-la para uma vida carregada de problemas e
complicações só porque, talvez, ela sinta que tem uma dívida
comigo.
— Tem alguém aí dentro? — A voz de Nellyne invade meus
pensamentos. — Ou será que a sua alma abandonou de vez o
seu corpo?
Ela balança os dedos diante dos meus olhos e eu rio.
Estamos sentadas frente a frente numa mesa espaçosa de
madeira, dentro do ateliê da ilha onde são produzidos todos os
tipos de materiais em papel. Livros, mapas, o jornal com
informes da ilha e outras coisas assim. É onde Nelly passa a
maior parte do tempo e estou ajudando-a a melhorar os
desenhos e as legendas com o pouco de cartografia que
aprendi no palácio.
— Me desculpa, eu me distraí mesmo.
Estou segurando um pincel fino que, agora, pinga nanquim
no piso de tábuas. Ao menos eu não arruinei nenhuma das
belas criações de Nelly, que estão espalhadas sobre a mesa,
cercadas de potes de tinta. Estamos trabalhando num mapa
que demarca a distância entre a Ilha da Deusa e Sealaena na
maior escala possível, o que, por ser uma distância grande,
também cobre um bocado do sul da França, incluindo Marselha.
Olho diretamente para a linha disforme que divide meu reino e a
cidade francesa, pensando que, a qualquer momento, pode
acontecer o pior.
— Você tá legal? — pergunta Nelly.
— É o que todo mundo me pergunta desde que eu acordei.
Ainda não sei responder direito. Porque, apesar de ser óbvio
que não estou bem com tudo o que aconteceu, tento pensar na
minha sorte por ter vindo parar neste lugar e ter vocês comigo.
Nellyne sorri.
— Está tudo bem se sentir assim. Notei que você esteve se
esforçando para se adaptar nos primeiros dias, mas, pelo visto,
está funcionando.
— Seria mais fácil se não fossem as circunstâncias.
— Claro que seria. Mas não podemos prever o futuro, né?
Se alguém me dissesse há uns meses atrás que eu teria um
bebê e consideraria abandonar este lugar por causa dele, eu ia
dizer que a pessoa enlouqueceu.
Ela corre as mãos pelo ventre sob o tecido da roupa,
encarando a barriga enorme com os olhinhos brilhando.
— Estou feliz que esteja tão decidida. Eu estaria surtando,
mas... bem, isso nunca vai acontecer comigo, então não é
como se eu pudesse me colocar no seu lugar.
— Eu surtei, no início, mas depois que contei para o Adrian
e ele se mostrou tão disposto a enfrentar tudo comigo, fiquei
mais tranquila por saber que não estava sozinha.
— Você nunca esteve sozinha. Tem a sua mãe, as
meninas...
— Se eu for para o continente, nenhuma delas vai estar
comigo — ela me interrompe. — E está tudo bem. É a minha
escolha, não a delas.
— Bem, talvez você tenha companhia por lá. — Mordo o
lábio inferior, abaixando os olhos. — Não conte a ninguém, mas
sua mãe e as outras líderes estiveram considerando a
possibilidade de me pedir que eu volte para Sealaena para
assumir o trono.
Os lábios da minha amiga formam um “o” perfeito e ela
arqueia as sobrancelhas.
— Uou. Ela me contou dos problemas que estão tendo no
norte, mas não contou que essa seria uma possível solução.
Eu balanço os ombros.
— Loucura, não é?
— Totalmente. Mas não vou mentir, Rob, você seria uma
rainha sem nenhuma igual.
— Não é como se fosse muito difícil. Quantas rainhas que
de fato governaram você conhece?
Ela ri.
— Que engraçadinha. Você entendeu o que eu quis dizer.
— Aquele trono nunca me pertenceu, nem aquela coroa. —
Com a ponta dos dedos, tracejo o contorno das fronteiras de
Sealaena repetidas vezes, encarando aquele pedaço de terra
relativamente pequeno no mapa. — E eu não os quero. Não
mais. Quando eu era mais nova, me sentia terrivelmente
injustiçada por preferirem meu irmão, mas depois percebi que
não ia querer viver confinada num palácio.
— Mas você sente que é seu dever, não é?
Assinto, mexendo com a cabeça, e ergo o olhar.
— Se eu posso fazer algo para ajudar, não fazer seria
egoísmo, certo?
— Não é assim tão simples. Nós ajudamos as pessoas
fazendo favores, oferecendo nossa amizade, emprestando
dinheiro, dando abrigo ou comida. Assumir um reino extrapola
bastante tudo isso.
Dou uma risada nervosa.
— Tem razão. Eu só queria que o fato de eu saber disso me
fizesse sentir um pouco menos péssima. De qualquer jeito,
vamos mudar de assunto, espero ainda ter algum tempo para
pensar sobre.
Ela concorda comigo e, num instante, estamos conversando
sobre possíveis nomes de bebês. O que é um assunto que eu
jamais achei que estaria discutindo com uma das minhas
melhores amigas. Mas, outra vez, é um bom jeito de
interromper o fluxo de pensamentos que acabariam me levando
à insanidade.
●
Encontrar-me com Flora ao entardecer, no caminho para a casa
de Isis, se tornou um ritual. Perto das seis e meia, abandonamos o
que estamos fazendo para jantarmos juntas e depois irmos nos
deitar para falar sobre o nosso dia até dar a hora de dormir. Depois
daquela noite em que paramos nos beijos, não fomos mais adiante.
Graças à minha falta de jeito com as palavras, agora eu acho que
ela espera que a atitude parta de mim. O que é uma decisão terrível,
porque, por mais que eu a deseje com cada parte de mim, estou
sempre cansada e com a mente longe demais. Por isso, acabo
deixando para o outro dia e, bem, consegui completar uma semana
inteira.
Sei que ela entende e que não é o fim do mundo que não
tenhamos feito sexo, mas essas coisas costumavam ser mais
naturais na minha cabeça. No caminho para nos encontrarmos,
penso que talvez seja a culpa imensa que sinto por estar
omitindo algo tão grande. A verdade é que existe bem mais que
um simples motivo.
Flora está esperando por mim no lugar de sempre, entre a
bifurcação que divide o caminho da floresta e o caminho da
casa de Isis. Há algo diferente dessa vez. Ela está com um
vestido que eu nunca a vi usar antes. É azul — como todas as
peças de seu guarda-roupas, pelo visto — com um rendado
branco florido nas mangas que vão até seus cotovelos e na
barra que vai abaixo de seus joelhos. Parece um vestido para
uma ocasião especial; o laço fino de cetim que envolve a
cintura dela deixa isso evidente. A luz dourada do entardecer
toca seu rosto e se infiltra em seus cabelos soltos, fazendo-os
reluzir feito ouro.
— Eu esqueci de alguma coisa? — pergunto, me
aproximando sem conseguir desviar os olhos dela.
Flora ri, alcança meus lábios com os dela e me dá um beijo
que termina rápido demais.
— Achei que a gente pudesse fazer algo diferente hoje. Sair
um pouco da rotina, sabe?
Franzo o cenho, bastante curiosa com o que ela tem em
mente.
— Você é sempre cheia de surpresas assim?
— Quando eu estou inspirada, sim, eu sou. Agora vamos.
Ela toma a minha mão e me guia para dentre as árvores,
tomando o outro caminho da bifurcação.
— Para onde estamos indo?
— Surpresa, se lembra?
E não diz mais nada até que eu mesma acabe
reconhecendo o caminho e escutando o chiado da água
correndo. Estamos indo na direção daquela cachoeira enorme
e, pela primeira vez em muito tempo, me sinto entusiasmada
por algo. Meu coração está acelerado e um sorriso ameaça se
desenhar em meus lábios.
Dessa vez, estamos de um lado do rio em que não há
ninguém. Somos só eu, ela e o barulho dos pássaros e das
cigarras. Flora tira da cesta um lenço grande para estendê-lo
sobre o gramado e me puxa para que eu me sente junto a ela.
Em poucos instantes, há uma garrafa de vinho, taças, pães e
uma lanterna pequena que ela acende com uma pederneira.
Está escurecendo cada vez mais depressa.
— Queria que você se distraísse um pouco. Eu fiz bem? —
pergunta, ao servir as taças com o vinho.
— Você foi incrível, como sempre. Estou adorando isso aqui.
— Que bom. — Ela rasteja mais para perto, até nossos
ombros se encostarem, depois passa uns segundos admirando
a longa queda d’água. — Às vezes eu sinto que você faz de
conta que está bem para todo mundo, sabe? E queria que
soubesse que não precisa ser assim. Não comigo.
Preciso soltar uma longa lufada de ar antes de responder.
— Não acho que vá adiantar alguma coisa. Verdade seja
dita, Flora, as coisas estão feias do lado de dentro. E ainda não
estou pronta para lidar com elas.
Ela assente.
— Ao menos... me diz se algo estiver te incomodando. Eu
quero ajudar.
Lembro das coisas que Isis me disse, mas é claro que eu
não consigo dizer nem uma palavra.
— Você já está me ajudando mais do eu poderia retribuir um
dia. Você é uma pessoa boa, Flora, e acho que eu não
aguentaria metade do que estou aguentando se não fosse por
você. Então, me desculpe se tenho te feito pensar o contrário.
Minhas palavras fazem suas bochechas corarem e seus
lábios se abrirem num sorriso. Não me esforço nem um pouco
para resistir à vontade de beijá-la. Mesmo depois de tantas
vezes, os lábios dela ainda têm gosto dos meus sabores
favoritos: calma e desejo. Sem apartar nossas bocas, a loira
sobe em minhas pernas e me segura pela nuca, enquanto uma
de minhas mãos aperta sua cintura e a outra desfaz os botões
que me impedem de tirar seu vestido.
Eu corro meus dedos pela pele exposta de seu dorso para
senti-la esquentar enquanto tento abaixar as mangas do
vestido. Antes que eu consiga, Flora se levanta de súbito e olha
nos olhos, enquanto morde os lábios e anda de costas para o
rio, deixando um vazio gelado quase insuportável sobre as
minhas pernas. Ela se vira quando alcança a margem, para,
então se livra de uma vez por todas do vestido. Agora, ela está
usando somente as suas roupas de baixo enquanto caminha
para dentro do rio.
Não penso duas vezes em segui-la, mas, antes, me livro das
minhas roupas também. A água está morna e nos envolve feito
um véu de sombras, ao passo em que fica tudo tão escuro.
Alcanço Flora em dois tempos, quando já estamos numa
parte do rio que nos cobre até o colo. O contato de nossas
peles sob a água me arrepia por inteira e desperta um calor
crescente entre as minhas pernas. Ela joga os braços sobre os
meus ombros e envolve a minha cintura com suas pernas. Nos
beijamos outra vez, e outra, numa intensidade cada vez mais
avassaladora.
Minhas mãos começam a subir por sua cintura, traçando o
corpo curvilíneo e alcançando seus seios e Flora deixa escapar
um gemido tímido que me arranca um sorriso involuntário
durante o nosso beijo.
Meus lábios logo deixam os dela e descem, percorrendo a
linha de sua mandíbula até chegarem em seu pescoço. Ela
geme outra vez quando mordo de leve a pele e corro com a
ponta da minha língua no mesmo lugar. É impossível parar
agora. Flora está pressionando seu corpo contra o meu com
cada vez mais avidez e minhas mãos e meus lábios estão
explorando cada parte de seu corpo.
Quando deslizo os dedos para a parte interna de suas
coxas, elas se afastam e provoco a loira com um aperto firme
em sua pele antes de prosseguir. Não me lembro a última vez
em que consegui respirar decentemente.
Eu teria continuado, o que estava prestes a fazer se, tão
bruscamente, Flora não tivesse se afastado de mim. Fico sem
entender coisa alguma quando, então, eu escuto chamarem
meu nome.
— Princesa Robin! — grita a voz na margem do rio. Me viro
para buscar sua dona e me deparo com ninguém menos que
Olivia, com um sorriso irritante no rosto. — Desculpem
interromper, mas as líderes pediram que eu te encontrasse. É
urgente.
XI
Estou sentada, a uma mesa redonda, diante das três líderes
da ilha. Minhas roupas de baixo estão encharcando o resto das
minhas vestes e gotas frias pingam do meu cabelo e escorrem
pelas minhas costas, me causando arrepios esporádicos. Minha
pele está tão gelada que estou estremecendo dos pés à
cabeça. Não quero agravar o meu vexame pedindo roupas
secas ou uma toalha agora.
As três mulheres estão reunidas num outro canto da sala,
que é grande o suficiente para que eu capte apenas algumas
palavras soltas do que elas estão conversando.
Pediram à Flora para que esperasse do lado de fora, no
corredor, o que só me fez ficar ainda mais apreensiva.
Conheci Roksana e Lydia há quatro dias, quando fomos
apresentadas por Isis num jantar comunitário. E não foi muito
difícil entender o porquê elas haviam sido escolhidas para
serem líderes. Tinham todas uma serenidade invejável e um
olhar terno, mas igualmente austero. Além de Isis, nenhuma
delas têm filhas aqui na ilha; apesar de haver boatos que Lydia
teve dois filhos homens no continente. Ela é a mais velha de
todas, com a pele retinta e os cabelos crespos e grisalhos,
armados feito uma coroa em volta da cabeça.
Roksana deve ter seus quarenta anos; é parecida demais
com Danielle na altura, na cor branca da pele e no tom
acobreado dos cabelos. Seu corpo é bastante curvo, salpicado
por sardas que vão das suas pernas até seu rosto, circulando
os olhos verdes e os lábios que parecem estar sempre
esticados num sorriso, de tão largos.
A cada minuto que elas passam conversando entre si, eu
fico mais inquieta. Sinto vontade de roer minhas unhas, mas me
lembro que elas estão sempre curtas. Tento buscar algo com os
olhos para me distrair, como as janelas redondas de vitral claro
que decoram o ambiente, mas, a uma hora dessas, não há
nada que eu consiga enxergar do outro lado. As paredes são
repletas de estantes que contêm porcelana pintada e miniaturas
de animais selvagens, incluindo a figura de um guaxinim mal-
encarado, rosnando e mostrando os dentes afiados sobre duas
patas.
Guaxinins me dão azar. Sempre algo de ruim acontecia
quando eu via um pelos arredores do palácio. E eles sempre
estavam por perto, revirando as lixeiras e roubando comida.
— Princesa Diane Robin — a voz clara e potente de Lydia
chama por mim, à medida que as três vêm se aproximando a
passos lentos.
— Só Robin, por favor. — Peço, tão educada quanto consigo
ser.― Só a minha família me chama de Diane.
— Robin. — Ela assente. — Tem muita força em você,
menina.
Minha cabeça balança para nenhuma direção específica.
— Gostaria de ser mais forte, às vezes — digo, com alguma
hesitação. — E gostaria, também, de saber por que mandaram
me chamar.
As três se entreolham, então Isis dá um passo adiante.
— Aconteceu o que vínhamos temendo há algum tempo:
Marselha avançou com alguns empreiteiros para construir
postos militares no norte de Sealaena. O lugar está
desprotegido, o Conselho do Rei está atordoado. — Meu
coração pula do peito na mesma hora e minhas pernas perdem
a força. Eu teria caído se não estivesse sentada. — Não vai
demorar para chegarem até a costa e construírem cada vez
mais portos.
— Sem um líder, as coisas estão fora de controle por lá —
explica Roksana. — E a tendência é só piorar. Até encontrarem
um sucessor, pode ser tarde mais.
— A ilha corre perigo — completa Lydia. — Não sabemos o
que pode acontecer com um fluxo mais intenso de barcos indo
e vindo pelas rotas que fazemos.
Há um longo silêncio. É quando eu percebo que elas
querem que eu lhes dê uma resposta aqui e agora, mas eu me
sinto incapaz de fazê-lo. Como posso decidir algo dessas
proporções assim tão rápido? A semana que eu tive para
pensar no assunto só serviu para atacar meus nervos e me
fazer perceber o óbvio: não estou pronta para desistir da minha
família e tampouco para governar um reino.
— Eu não sei o que fazer — deixo escapar, como numa
confissão. — Não sei mesmo o que fazer.
— Gostaríamos de poder ter dado mais tempo para você se
decidir, mas não temos. Se você disser que quer voltar,
partiremos amanhã mesmo. Se não, vamos mobilizar a ilha
inteira para planejar estratégias do que faremos caso o pior
aconteça — diz Isis.
— Mesmo que eu vá, não é garantia que eles não consigam
invadir. Eu não poderia fazer muita coisa.
— Você pode ganhar tempo. Mais tempo do que jamais
teríamos — responde Lydia.
— Você não sobreviveu àquele acidente por um acaso,
Robin. Todas temos muita fé que a Deusa tem um propósito
grande para você. Sua vida é uma dádiva — diz Roksana. — E
você pode usá-la para ajudar a salvar todas nós.
Engulo em seco e desvio meu olhar, tentando parar o
turbilhão de pensamentos que corre pela minha cabeça. Parece
humanamente impossível. Controlar minha respiração e os
tremores do meu corpo é uma tarefa ainda mais complicada. Há
muito o que considerar, afinal. No entanto, me conhecendo
como conheço, sei que não suportaria permanecer aqui,
sabendo que me recusei a fazer algo para ajudá-las. Ainda que
tal ajuda mude o rumo da minha vida por completo, ao menos
não vou me corroer em culpa caso alguém se machuque.
E ainda existe uma questão crucial: apesar de ter passado
muitos anos querendo deixá-lo, Sealaena ainda é o lugar onde
eu nasci e cresci. É o lugar que aprendi a amar, apesar das
pessoas ao meu redor tornarem isso um desafio muitas vezes.
— Se vocês julgam que essa é a única saída, então acho
que eu não poderia dizer não — respondo, resignada.
— É claro que poderia. A escolha precisa ser de livre e
espontânea vontade, porque, quando se sentar naquele trono,
se sentará sozinha — diz Lydia.
— Depois de tudo que fizeram por mim, por Sophie e Flora,
minha escolha é mais do que sincera.
Como eu contarei à Flora? Como vou dizer que estou
renunciando a tudo?
— É a sua decisão final? — pergunta Roksana.
Busco o olhar de Isis antes de responder. Ele está centrado
em mim, com um brilho de orgulho, mas também repleto de
preocupação.
— É sim.
Deixo escapulir um longo suspiro de cansaço, ao começar a
raciocinar sobre tudo que vem pela frente. Quero desaparecer
por alguns instantes, para gritar sozinha num lugar onde
ninguém vai me escutar.
— Nesse caso, agora precisamos discutir os detalhes da
viagem e nos preparar. Mande que Danielle e Camilla venham
até aqui. Depois, vá descansar. Amanhã vamos acordar muito
cedo para partirmos e acertar como faremos para te colocar
dentro do palácio outra vez sem chamar atenção — comanda
Isis. — Obrigada por isso, Rob, saiba que estaremos aqui para
o que for preciso.
Eu balanço a cabeça em concordância, sem dizer mais
nada. Quando vou me levantar, percebo minhas pernas moles,
mas não deixo isso me impedir de caminhar para fora daquela
sala claustrofóbica.
Quando alcanço o corredor e fecho a porta atrás de mim,
minha primeira visão é de Flora, esperando por mim, sentada
no chão com uma toalha sobre os ombros e outra nas mãos
para me dar. Sua expressão aflita dá lugar a um sorriso aliviado
por me ver e ela se levanta para vir em minha direção, já
estendendo a toalha para envolver meu corpo. Apesar de já
estar quase seca, ainda estou sentido calafrios. Talvez tenha a
ver com a conversa que estamos prestes a ter.
— E então? O que elas queriam?
Não sei como dizer o que preciso dizer. Gostaria que alguém
contasse em meu lugar, mas sei que o melhor é que ela saiba
por mim, porque será traumático o suficiente.
— Vamos para a casa de Isis e eu te digo no caminho, tudo
bem?
Ela dá de ombros.
— Para você estar fazendo todo esse mistério, deve ser
importante.
Sem dizer mais nada, saímos do QG das líderes para tomar
o caminho para a casa de Isis. Se eu tivesse o mínimo de
energia restante no meu corpo, voltaria para aquela cachoeira
para terminar o que começamos e me despedir desta ilha do
melhor jeito possível. Mas eu não conseguiria. E acho que Flora
também não.
— Pouco tempo depois que eu cheguei aqui, Isis veio
conversar comigo sobre os problemas que Sealaena está tendo
na fronteira com a França — começo, juntando as mãos atrás
do corpo em puro nervosismo. — A coisa está bem feia para
aqueles lados.
— Eu soube. Não deve ser nada fácil para você, não é? De
um jeito ou de outro, ainda é o seu reino. Estar aqui, tão longe e
sem poder fazer nada... Sinto muito por isso.
— Foi para isso que me chamaram. A verdade, é que talvez
eu possa ajudar.
— Pode? Mas como?
— Querem que eu volte e anuncie para todos que estou
viva. Querem que eu assuma o trono para unificar o reino outra
vez e mobilizar as forças militares, que estão dispersas por não
saberem de quem acatar ordens.
Ela para no mesmo instante. E as chamas das tochas que
iluminam o caminho são suficientes para que eu consiga ler a
expressão de surpresa — talvez, de choque — em seu rosto.
— O quê? Mas como assim? — Ela encurta a distância
entre nós e toca meu ombro gentilmente. — E o que você
pretende dizer a elas?
— Meio que já disse. — Protelo a resposta.
— E?
— Eu vou.
— Você vai voltar? Vai embora, tipo, para sempre? Porque
essas coisas são para sempre, né?
As mãos delas estão trêmulas de súbito. Seu rosto está
vermelho e os olhos tão perdidos quanto os de uma criança
numa multidão. Meu coração está divido em cem mil pedaços.
Prefiro não contar que isso já estava sendo considerado há
uma semana.
— Não tenho outra escolha, Flora. Me perdoa —
Praticamente imploro. — Se tivesse, é claro que eu escolheria
ficar. Mas a França é uma ameaça para ilha, eu estaria
colocando todas em risco se não fosse.
— Mas e a sua família? Não sabemos se eles estão vivos,
se... Se vão voltar...
— Não existe mais tempo para esperarmos pela resposta.
— Quando você vai?
Sua voz sugere o quão ela está se segurando para não
chorar. É frágil, engasgada.
— Amanhã, de manhã.
— Amanhã de manhã? Mas nem tivemos tempo para ficar
juntas... E agora você vai embora, para não voltar mais?
Estou sentindo tanta dor que não consigo me mover. Não
consigo fazer nada além de olhá-la e pensar no quão injusto é
isso tudo. E o pior é saber que não posso voltar atrás na minha
decisão.
— Me diz que não é verdade, Robin — ela pede, numa
tentativa de firmar a voz e se acalmar. — Vamos, me diz que
estou tendo um pesadelo.
— Eu queria mesmo dizer. Queria mais do que tudo.
— Não sei o que fazer. Sinto que eu deveria te abraçar
agora, te acalmar e mostrar que entendo tudo, mas estaria
mentindo. Não consigo entender. Não agora. Mas eu vou. Só
que eu preciso conversar com alguém... Alguém que não seja
você, porque, quando eu te olho, só consigo pensar que, em
algumas horas, você vai partir e isso vai acabar comigo.
— Por favor, Flora, vamos ficar juntas. — Seguro sua mão
para que ela não se mova. — Esse pouco tempo é tudo que a
gente vai ter.
Ela desvia os olhos e se desvencilha do meu toque.
— Eu sei. Também sei que não faz nenhum sentindo. Vou
me arrepender depois, mas tudo que eu preciso agora é me
deitar na minha cama e chorar.
— Também preciso. E podemos fazer isso juntas, é tudo que
eu te peço.
— Não consigo. Mesmo. Me deixa ir, Rob.
Demora uns segundos para que eu solte sua mão. Faço isso
sem esconder em meu rosto o quão estou magoada, mas
preciso argumentar comigo mesma que, se eu estivesse no
lugar dela, provavelmente faria o mesmo.
Flora também demora para se virar e tomar o caminho para
a cabana. Eu fico parada assistindo-a desaparecer na
escuridão, enquanto lágrimas escorrem pelo meu rosto em
cascatas.
XII
Durante toda a noite, foi impossível fechar os olhos. Por
isso, quando batem à porta de manhã, ainda estou acordada,
com os olhos vermelhos, inchados e com a sensação de que
alguém acertou minha cabeça com um martelo.
Nellyne está adormecida do meu lado, ocupando a maior
parte do espaço e abraçada num travesseiro. Ontem, quando
entrei na casa, ela veio ao meu encontro e eu contei tudo.
Choramos juntas, como eu gostaria de ter feito com Flora, mas
eu não poderia pedir por um ombro melhor do que o de Nelly.
Ela me deixou deitar em suas pernas como minha mãe fazia
quando eu era criança, deixou que eu molhasse suas roupas
com as minhas lágrimas e deixasse tudo — ou o quanto
consegui — sair de dentro de mim. Por fim, ela acabou
adormecendo e eu continuei aqui, presa, desperta dentro da
minha mente caótica, para dizer o mínimo.
Invejei cada suspiro de sono dela.
Meus pensamentos iam e vinham entre o fato de que, em
algumas horas, eu precisaria estar outra vez em um barco, para
voltar ao continente e usurpar de uma coroa que nunca foi
minha.
Também passavam por Flora. Me perguntei a noite inteira se
ela, assim como eu, também não havia conseguido pegar no
sono. Algo me dizia que ela estava acordada, tentando não me
amaldiçoar por tudo isso. No fundo, sei que ela entende que a
culpa não é minha e penso no quão eu teria reagido mil vezes
pior se estivesse em seu lugar. Eu tendo a partir para a ofensiva
quando estou magoada; sou pouco racional. Não à toa, passei
o começo da noite acusando Flora de coisas terríveis na minha
cabeça e, agora que meu sangue esfriou, fico aliviada por não
ter dito nenhuma dessas coisas em voz alta.
Ainda está um pouco escuro quando Isis chama por nós.
Espero Nellyne despertar com o barulho e, quando está prestes
a acontecer, me ajeito na cama e finjo que estou dormindo. Se
a minha amiga fosse um pouco mais atenta, no entanto, logo
notaria as bolsas escuras que sei que estão sob meus olhos.
Posso senti-las.
— Rob — murmura, enquanto balança meu ombro com
leveza para que eu acorde. — Ei, acho que já está na hora.
— Mmh. — Simulo um gemido de sono pouco depois, me
remexendo sobre o colchão.
Abro os olhos e a vejo se levantando com toda a dificuldade
que a barriga enorme impõe. Isis bate à porta de novo.
— Já vamos — grita Nelly.
Estou dolorida dos pés à cabeça, e é como se houvesse
sacos de areia sobre as minhas pernas; impossíveis de serem
levantados. Minha garganta está seca como uma área
desértica.
— Preciso de água — digo.
— Estaremos cercadas por água daqui a algumas horas.
Quase havia me esquecido de que Nelly decidiu que iria
junto noite passada. Foi um embate feio com Isis, mas ela quer
estar ao lado da mãe quando o bebê nascer e deixar que o pai
da criança a conheça. Se for um menino, está decidido que ela
não voltará mais à ilha. Me sinto triste por esta manhã ser uma
possível despedida para ela também.
— Estamos juntas nessa, né? — pergunta, me jogando
roupas limpas.
É a primeira vez que olho nos olhos de Nelly e vejo que ela
está apavorada, talvez tanto quanto eu, por motivos
inteiramente diferentes.
— Não é como se tivéssemos outra escolha.
●
“Onde está o rei?”
“O que aconteceu?”
“Onde está o príncipe?”
“Quem te trouxe aqui?”
“Cadê o resto da família real?”
Escuto essas mesmas perguntas algumas dezenas de
vezes. Tento responder tudo conforme me lembro, mas, quando
me perguntam como eu fiz para voltar para casa, preciso
mentir, e digo ter despertado num barco de pescadores que
partiram para à Espanha depois de me deixarem aqui.
Combinei com Isis que essa seria a história que eu ia contar
para não precisar revelar nada sobre a ilha; por mais que haja
falhas no meu relato, posso culpar a memória ruim por todo
esse tempo no oceano.
É dispensável dizer que não consigo ficar sozinha nem por
um minuto. Recebo ajuda para comer, tomar banho e até vestir
roupas. Por enquanto, dá para escapar dos vestidos apertados
e pesados, porque me deixam descansar na minha cama.
Meu quarto está exatamente como eu deixei da última vez.
Na verdade, foi uma das serventes quem deixou.
Provavelmente Gillian. Cada móvel, a tapeçaria, os retratos da
família e até a lareira, estava tudo organizado e limpo.
Penso nas coisas que coloquei dentro das malas de viagem
e que perdi para sempre. Malas que, agora, estão no fundo do
oceano. Talvez os peixes gostem mais daquelas joias e
daqueles vestidos do que eu. É uma pena, porque eles valiam
um bom dinheiro, que eu poderia ter usado para ajudar as
meninas da ilha de alguma forma.
— Com licença, princesa Diane — disse Gillian, abrindo a
porta do quarto e colocando nada além da cabeça para dentro.
— O grão-duque está aqui. Ele deseja uma pequena reunião
com a senhorita.
Jean-Pierre Dubois é o braço direito do meu pai. Um homem
diligente e de aparência altiva que viu eu e meu irmãos
crescermos. O rei o deixou no controle antes de viajar por um
motivo. Ele sempre foi de confiança para todos da família, mas
minha relação com a sua figura nunca passou dos limites das
nossas posições sociais, portanto, não sei o que esperar.
— Ele pode entrar — digo, erguendo-me sobre os cotovelos
e recostando na cabeceira.
Gillian sai do caminho e permite a entrada do homem. Seu
semblante ainda está carregado por incredulidade e ele ajeita o
bigode espesso com os dedos antes de se aproximar demais.
Os cabelos castanhos estão repuxados num penteado que
disfarça as entradas em sua testa.
— Sabe, princesa Diane, eu não tenho recebido uma notícia
boa há dias. Minha mãe está adoentada, minha filha agora diz
que quer desistir do casamento — lamenta, arrastando a
cadeira da penteadeira para poder se sentar ao lado da cama.
— Mas, quando vi você naquele portão, senti que a maré está
prestes a mudar.
Ele abre um sorriso cansado; eu retribuo. Gostaria que ele
fosse logo direto ao ponto.
— Isso é bom — digo, incapaz de expressar algo além.
— Andamos tendo problemas na fronteira com a França há
alguns meses. Esses problemas não têm ficado melhores, mas,
depois desta maldita viagem, a situação se agravou bastante.
Houve invasões.
— Eu ouvi dizer... — deixo escapar, mas me corrijo logo em
seguida. — Os serventes comentam sobre tudo, você sabe
como é.
— Tenho certeza de que eles não sabem nem um terço da
coisa toda. Mas o ponto é que as pessoas e, principalmente os
militares, não respeitam uma terra desgovernada. E foi como
Sealaena ficou depois do desaparecimento do rei. O capitão
conseguiu retornar com alguns membros da tripulação
contando aquela história tenebrosa e o caos se instaurou na
Corte e no povo.
Eram palavras que eu me lembrava de ter ouvido, muito
parecidas com as que Isis, Lydia e Roksana haviam me dito.
Engulo em seco ao constatar que a coisa é mesmo tão grave
quanto elas me disseram que é. Sei o que Jean-Pierre vai dizer
em seguida. Sei tão bem que sinto o ímpeto de atropelar suas
palavras por um instante.
— Entendo que tenha dito que não sabe do paradeiro da
sua família e que talvez eles estejam em seus caminhos de
volta agora mesmo. Você não é quem estávamos esperando,
mas foi uma luz no fim do túnel para a nossa Corte e para o
nosso povo. — Tudo o que consigo fazer é balançar a cabeça
em concordância. — Vamos deixá-la descansar, mas gostaria
que soubesse qual é a ordem natural das coisas a partir de
agora.
Concordo outra vez, mesmo sem saber exatamente com o
quê.
— Não vamos pedir que decida nada ainda. Só gostaria que
tivesse ciência do que está sendo discutido entre o Conselho. E
que pense no assunto com muita cautela e responsabilidade.
Você fará isso?
— Farei. — A afirmação desliza pelos meus lábios de
maneira involuntária. — Diga ao Conselho que farei o que for
necessário.
Fica nítido em sua expressão que ele não estava esperando
tanta convicção em minha resposta. É claro que não sabe por
quanto tempo essa decisão já estava rondando a minha
cabeça.
— É tudo o que precisamos saber por enquanto — ele diz e,
então, se levanta. — Vou deixar você descansando. Esperemos
a poeira abaixar.
— Por mim, está ótimo.
Mas, qualquer um que pudesse ler meus olhos, saberia que
estou contando uma mentira das boas.
Não sei a hora que consta nos relógios, mas sei que é muito
tarde da noite quando eu desperto do meu longo cochilo da tarde.
Também não sei qual o milagre que me fez dormir.
O quarto está meio iluminado pela luz enfraquecida e quente
de uma lamparina a óleo suspensa na parede. Meus olhos
buscam o espelho da penteadeira que mostra o reflexo da
minha aparência terrível. Dá pra entender o porquê de muitos
terem levantado suspeitas sobre a minha identidade, uma vez
que sempre me viam com o rosto corado e os cabelos bem
cuidados.
Levanto-me da cama, abandonando qualquer esperança de
pegar no sono outra vez e caminho até a lareira apagada para
alcançar um porta-joias que decora a estante sobre ela. Dentro
dele, está a chave de uma das gavetas da penteadeira. E
dentro da gaveta, encontro algumas lembranças agridoces.
Há uma pequena tiara arruinada e enferrujada que lembra
uma viagem para Marselha que fiz com a minha família quando
tinha uns sete ou seis anos. Eu não sabia na época, porque não
se discutiam as questões da coroa na frente das crianças, mas
a cidade já vinha nos dando dores de cabeça.
Há a cópia do código de etiqueta que meu irmão fez por mim
uma vez; acho que essa é a que mais me dá vontade de chorar.
E há o anel de Sophie. Eu o seguro entre os dedos por
alguns momentos, pensando no que ela diria se estivesse aqui
e como reagiria à minha volta para o continente.
Sei que ela não faria o que Flora fez. Sophie não deixaria
aquela ilha nem sob aviso de morte. E não a ressinto por isso.
Ressinto-a por outras coisas, mas nunca por priorizar a própria
segurança e conforto acima da nossa relação.
Meus pensamentos são bruscamente interrompidos por
batidas na porta. São batidas tão suaves que, se eu estivesse
dormindo, não as escutaria. Considero não atender, porque
pode ser só a Gillian ou outra serviçal vindo checar se continuo
dormindo ou se preciso de alguma coisa. Preciso de mais
descanso e apenas isso, mas pode ser algo importante.
Quando abro a porta, encontro uma figura encapuzada
segurando uma bandeja com um bule fumegante. Ela ergue o
olhar e eu a reconheço no mesmo instante: é Flora, me
encarando de volta com aqueles olhos azuis enfeitiçadores.
— O que você está fazendo aqui? — indago, à beira de um
colapso nervoso.
— Vim trazer o chá que a madame Gillian mandou. — Ela dá
uma piscadinha e move a cabeça na direção de um dos
homens da guarda que está prostrado no corredor. — Posso
entrar?
Meio à contragosto, saio de frente da porta para abrir o
caminho. Ela entra e nos fecha no quarto, depois se livra
daquela capa e coloca a bandeja de chá na minha mesa de
cabeceira.
— Esse foi o quarto onde você cresceu? — Flora olha em
volta, parecendo muito impressionada com o tamanho e a
decoração pomposa. — É muito bonito. Esse lugar inteiro é,
para falar a verdade.
— Isis escolheu você para ficar comigo aqui? — Cruzo os
braços. — Como fez para entrar?
Ela revira os olhos e se senta na cama antes de responder.
— Eu disse que preferia ficar tomando conta da Addy, mas
ela achou que se sentiria melhor se fossem pessoas que você
conhece. A Danny também veio, mas ela ficou lá embaixo para
não chamarmos atenção. Entramos por aquela falha no muro
que você disse, depois seguimos pela passagem de serviço e,
quando perguntaram, dissemos que o grão-duque tinha
contratado mais algumas moças para ajudar, agora que a
princesa está de volta.
— Inteligente. — É exatamente o que eu disse para elas
fazerem. — Mas ainda não mudei a minha opinião sobre você-
sabe-o-que e você estar aqui meio que piora as coisas.
— Quer que eu vá embora? Porque eu posso ir. Agora
mesmo.
Ela se levanta e caminha até a porta a passos pesados, mas
eu a impeço, segurando seu antebraço. Sua reação me causa
um choque como um balde de água fria.
— Não, Flora. Fica. É bom te ver, na verdade.
— Não foi o que pareceu. — A loira se vira para mim outra
vez com uma expressão nada boa. — De qualquer forma, não
posso ficar muito tempo. Só vim trazer um chá, se lembra?
Apenas queríamos que soubesse que estamos aqui. Que você
não está sozinha.
Eu aquiesço.
— Certo... É bom saber que conseguiram. Obrigada. – Ela
dá de ombros e se volta para a porta.
Quando fico sozinha outra vez, me arrependo de cada uma
das minhas palavras; mas, por pior que eu me sinta, ainda acho
que ela não deveria ter voltado. Muito menos estar aqui, dentro
do palácio, onde todos os olhos agora estão voltados para mim.
Antes de me deitar outra vez, escuto um barulho nos
andares de baixo, vindo da minha janela. É um maldito
guaxinim, escalando as treliças por sabe-se lá qual razão que
ele ache legítimo.
Vai ser uma noite terrível.
XVI
Quando o grão-duque disse que me dariam tempo para
descansar, eu não sabia que seria apenas algumas horas. Ao
menos, eu consegui ter uma noite inteira de sono, graças àquele
chá de camomila que Flora levou para mim no quarto.
O fato é que, antes das sete da matina, fui convocada a uma
reunião de apresentação com o Conselho. De volta aos
vestidos apertados e aos grampos prendendo meu cabelo,
percorri os corredores do palácio até a sala oval para encontros
da corte.
Havia me esquecido o quanto esse lugar é imenso e como
podia me fazer sentir sufocada ainda assim.
Antes de passar pela porta — aquela que, do seu lado de
dentro, todos esperavam por sua futura rainha; sem pressão —
tomo algum tempo para respirar fundo e tentar chacoalhar o
peso dos meus ombros para longe. Me sinto uma impostora,
traindo a própria família à luz do dia e diante de toda aquela
gente.
Quando entro, os olhares se direcionam para mim e me
fazem querer encolher. Há expressões de incredulidade,
expectativas e tédio. Mas principalmente expectativas, sejam
elas boas ou ruins.
O Conselho é composto por nove homens e uma mulher. A
única figura feminina dentre eles é a marquesa Sarah, de terras
próximas a Marselha, que ocupa a cadeira por conta do título e
das terras deixadas pelo marido. A predominância masculina no
ambiente me incomoda mais do que nunca, depois de todo o
tempo que passei na Ilha da Deusa cercada por mulheres que
eu sei que têm mais competência do que vários deles juntos. É
difícil me acostumar com a ideia de ter que me reajustar às
regras masculinas.
— Senhores, essa é a herdeira do trono de Sealaena — diz
Jean-Pierre, levantando-se de sua cadeira.
Não sei se consigo mais culpá-lo por interromper meu sono
pela manhã, visto que as bolsas sob os olhos do homem eram
uma evidência de que ele próprio não havia pregado os olhos.
— Gostaríamos de lhe dar as boas-vindas em nome de
todos que representamos; em nome do reino que está sob
nossa vigilância por enquanto — diz um dos homens presentes.
O rosto dele é familiar, mas sou incapaz de lembrar seu nome.
— E prestar nossas condolências.
— Não é um velório — digo, puxando uma das cadeiras
para me sentar, antes que alguém decida fazer isso por mim. —
Não sabemos se a minha família... Não sabemos o que
aconteceu. Agradeço, porém, as boas-vindas e a intenção.
Há um burburinho. Os olhos do grão-duque estão prestes a
saltar para fora das órbitas e suas bochechas estão vermelhas.
Não foi minha intenção ser rude, mas achei que devia deixar
claro que não quero que transformem meu retorno numa brecha
para decretar oficialmente a perda de todos os outros membros
da família.
— Mas é claro. — Ele limpa a garganta e corrige a postura.
— As buscas ainda não se encerraram. Tenhamos esperança.
Acaba sendo uma boa retratação, eu diria. Mas é real o que
dizem sobre primeiras impressões: elas realmente ficam.
— O propósito dessa pequena reunião é apresentá-la
formalmente aos membros do Conselho. Eu disse a eles
exatamente o que conversamos ontem, e ficamos todos muito
satisfeitos com a sua determinação — diz o grão-duque.
— A senhorita estaria mesmo disposta a assumir tamanha
responsabilidade? — pergunta um outro senhor, cujos cabelos
grisalhos estão escondidos por um chapéu esverdeado de
penas. É o visconde Renée, das terras do oeste.
— Você é uma menina muito nova e que vai precisar de
muita instrução — interveio a marquesa, antes que eu pudesse
responder ao duque. — Acha que vai dar conta de lidar com as
pressões de um reinado?
Ela fala tão rápido que sinto pena do escrivão que está do
outro lado da sala. O tom maternal e condescendente me tira
do sério porque sei que, no fundo, é só um jeito de dizer que
não sou forte o suficiente para suportar o peso daquela coroa.
— Meu pai assumiu aos dezoito — relembrei-os. — E não
acho que alguém tenha colocado a capacidade dele em xeque.
— Seu pai foi treinado e preparado para ser rei desde o
berço, já você, foi preparada para...
— Me casar? — interrompia-a num tom cortante.
— Isso mesmo. Sealaena pode estar prestes a entrar numa
guerra contra a França. Como você faria para impedi-la?
— Casamentos, guerras... É tudo muito parecido — brincou
o grão-duque, arrancando risadas dos outros homens. Foi um
jeito muito perspicaz de desanuviar o clima, e talvez eu devesse
aprender um truque ou dois com ele; ainda que aquela mesma
piada não fosse ter a mesma graça se saísse da minha boca.
— Minha esposa que o diga.
— Minha sugestão, por ora, é que retiremos os nossos
soldados da fronteira. Vamos evitar que alguém mais se
machuque. Deixem que eles fiquem responsáveis por proteger
os civis, em caso de alguma invasão ou ataque. Depois disso,
posso enviar uma carta ao rei da França, propondo um acordo
alfandegário para que eles freiem os avanços de Marselha, e
desocupem as nossas terras — sugiro, sucinta. Todos me
olham com curiosidade e perplexidade. — Vamos minimizar os
danos até a coroação.
Maldita hora em que fui dizer “até a coroação”. Por ter feito
isso, acendi uma chama que transformou uma simples
sugestão estratégica, na declaração extraoficial de que
assumirei o trono.
— Tentamos contato com a coroa francesa há meses. Eles
querem fechar os olhos para o que está acontecendo, porque é
uma vantagem muito grande que Marselha tome conta da
região — diz o visconde.
— E agora temos a Suíça, exigindo retratação pela perda da
princesa Anika — diz Jean-Pierre.
A princesa Anika.
Diante de tudo o que aconteceu, acabei me esquecendo que
ela também estava naquele navio e que a família dela devia
estar em pedaços, como eu estou.
— Você devia dizer logo pra ela — resmungou Sarah. —
Quanto antes, melhor.
Eu a olho com um misto de confusão e curiosidade em
minha expressão.
— Me dizer o quê?
— O rei e a rainha têm um segundo filho, um menino mais
ou menos da sua idade. Já que tínhamos uma aliança, talvez
acalmasse os ânimos se ela fosse retomada. Com a sua volta,
as coisas mudam de figura — explica o grão-duque. — Se é
que me entende.
Quanto mais compreendo o que ele está propondo, mais
justos ficam os laços do meu vestido. Desconfortável, me
remexo na cadeira e estreito o olhar. Não posso dizer que é
uma ideia absurda, porque é algo com o que eu já estava
contando quando tomei a decisão de retornar. Se eu pretendo
ser rainha, terei deveres a cumprir, seja pelo povo de Sealaena
ou pela Ilha da Deusa. Preciso fazer alianças. E sei, melhor do
que ninguém nesta sala, que a primeira aliança de um monarca
costuma ser o casamento.
Quero fugir de volta para a ilha nesse mesmo instante.
Nadando. Sei que não posso recusar ou protestar, porque
causaria um alvoroço do qual não precisamos agora, mas
posso tentar adiar a decisão.
— É algo que eu posso considerar — digo, dando meu
melhor para camuflar minha voz trêmula. — Talvez eu possa ter
uma reunião com eles antes?
E tentar, inutilmente, convencê-los de que essa é uma
péssima ideia, apesar de saber que vai ser a primeira coisa que
virá à cabeça quando souberem que estou viva. A política
mostra seu lado feio quando, diante de tragédias, as pessoas
precisam pensar acima de tudo em como não destruir relações
diplomáticas.
— Como preferir — diz Jean. — Vamos escrever para o rei
da França, mas acho cedo para retirar os soldados da divisa.
Veremos como os invasores vão responder ao seu retorno.
— Obrigada pelo voto de confiança. Tenho muito a aprender,
mas ainda sou uma herdeira.
Falando desse jeito, meu pânico mal transparece; assim
como minha vontade de desistir formalmente de tudo.
Eles me agradecem pelo meu tempo e deixam a sala após
cumprimentos formais. Tento memorizar nomes, títulos e as
faces de cada um. Sei que é importante.
Não quero ser a última a permanecer no lugar, mas o grão-
duque insiste para que eu fique até o fim. Sinto que ele quer me
dizer alguma coisa e minha suspeita é confirmada quando
somos deixados sozinhos e ele diz:
— Estou impressionado. Você tem jeito para a liderança,
mas bem que seu irmão dizia que você tinha um temperamento
forte. Precisa medir o seu tom, se não quiser conquistar
desafetos tão rápido.
O comentário dele me deixa emotiva e irritada ao mesmo
tempo. Quero brigar com Nathan por ter falado de mim pelas
costas, mas também desejo que ele estivesse aqui para me
ajudar a lidar com o que virá pela frente, porque ele saberia
melhor do que ninguém.
A grande questão é que, se ele estivesse aqui, nada disso
estaria acontecendo.
●
Após três dias reuniões com o Conselho, líderes militares e
religiosos, ensaios para a coração e lições práticas, finalmente
tive, só para mim, as últimas quatro horas do dia. Me tranquei
dentro da sala de estudos com a pretensão de me debruçar em
alguns tratados dos últimos meses e desvendá-los da forma
que podia e tomar decisões que seriam discutidas dali para
frente.
Precisava de silêncio.
Uma hora e meia de leitura depois e posso dizer com
convicção que metade da minha capacidade de compreender
frases inteiras foi comprometida.
Além de estar me sentindo terrivelmente exausta, também
me senti sozinha. A última vez que vi Flora e Danny foi na noite
passada quando nos encontramos no meu quarto, depois do
horário, para que eu pudesse lhes dar um relatório sobre o que
está se passando no alto escalão e elas enviassem o recado
para as outras meninas no acampamento.
Com o norte se apaziguando, na medida do possível,
estamos garantindo reforços para a fronteira, o que significa
que a segurança pela província está se afrouxando e logo ficará
mais fácil de circular, tanto em terra quanto pela costa. É
importante que elas tenham essas informações para se
organizar internamente, enquanto eu não posso estar por perto
e não tenho a menor ideia de quando poderei.
Talvez nunca. Ao menos, não como antes.
Batem na porta e tudo que eu espero é que não seja
ninguém trazendo más notícias de qualquer tipo. Levanto-me
da poltrona pela primeira vez em muito tempo e meus joelhos
reclamam quando estico as pernas e caminho até a porta para
abri-la.
É a Flora.
Um suspiro aliviado escapa dos meus lábios até eu reparar
em sua expressão mórbida e perceber que talvez eu tenha
comemorado cedo demais.
— Você tem cinco minutos? — pergunta, ajeitando atrás da
orelha os fios que se soltaram do seu penteado.
— Hoje eu tenho um pouco mais do que isso.
Sorri, na tentativa vã de levantar o astral, depois deixei que
ela entrasse e tranquei a porta.
Todas as interações entre mim e Flora se tornaram mornas
desde o nosso passeio até a casa de Madame Tine. Eu deveria
ter criado coragem para, ao menos, assumir que as coisas
estavam sendo menos ruins com ela aqui, mas todas as
ocupações e tarefas que despejaram sobre a minha cabeça me
roubaram o tempo e a energia que eu precisava para conseguir
confessar.
— Talvez não adiante nada, mas preciso tentar — diz ela,
usando as mãos para se apoiar na mesa atrás de si. — As
meninas estão se organizando para voltar para a Ilha depois da
coroação e querem dar notícias sobre o que está acontecendo
por aqui para acalmar as outras. E eu pensei seriamente se
deveria voltar com elas.
Em questão de milésimos, meu coração acelera num ritmo
drástico. Não estava esperando por isso. Apesar de termos
discutido o assunto, tipo, dezenas de vezes, a fala dela me
pega de surpresa.
Esse é o momento em que eu deveria dizer como me sinto.
Confessar tudo, apesar de “tudo” ser apenas uma faísca fraca e
pálida dentre todas as certezas mais inabaláveis que tenho.
— Você sabe o que eu penso — digo, depois faço um leve
balançar de ombros. — Já tivemos conversas demais sobre
isso.
— Me diz para ir então. Se você disser, não vou discutir, não
vou brigar. Só vou sair por aquela porta e não vamos nos ver
outra vez.
Congelo.
Quero abrir a minha boca para dizer que é o melhor a se
fazer, mas minha mandíbula está travada e minha garganta é
incapaz de expelir as palavras que precisam ser ditas.
— Esse não é o seu lugar, Flora. Quer passar a vida presa
entre essas paredes como eu vou passar? Na ilha, você tem
tudo o que precisa. É a vida dos sonhos. Uma família e pessoas
que te amam.
— Eu sei de tudo isso, você já falou a mesma coisa dezenas
de vezes. Não quero saber das consequências, quero que me
mande ir embora.
— Olha só... Estamos aqui há poucos dias e você já não
aguenta mais. Acha mesmo que aguentaria por mais alguns
meses? Por anos?
As sobrancelhas dela se unem, formando um vinco. É
quando sei que disse algo de muito errado.
— Não é a situação que está me fazendo desistir. É você.
Eu aguentaria muito bem se, no fim do dia, eu soubesse que
me quer aqui e que minha presença te faz um pouco menos
miserável.
— E o que vai acontecer se você acordar um dia e descobrir
que só isso não é o suficiente? — Meu tom de voz acaba
saindo mais alto do que eu queria. — Vai ser pior quando for
embora, depois desse lugar ter arruinado uma das melhores
coisas que eu já tive.
Termino de dizer como se tivesse corrido por quilômetros.
Estou arfando e espasmos trêmulos correm por meus
membros.
— Então quer que eu vá embora?
Sim.
Não.
E quase digo dessa vez.
Eu não sei.
— Quero que você entenda que eu não ia suportar te perder
aos poucos e assistir nossa relação ruir. Você tem algo melhor
para viver. As crianças, a ilha, Olivia...
— Olivia?
Meu rosto queima.
— Não finja que não entendeu. Ela claramente é apaixonada
por você e deve estar torcendo para que volte e...
— Robin, o que está tentando me dizer?
O tom de Flora é incrédulo, o que só me deixa ainda mais
irritada.
— Estou tentando dizer que tudo bem se você decidir ficar
com ela, porque é uma opção melhor do que eu.
— Não acredito no que estou ouvindo. — Suspira fundo,
irritada. — Eu juro que não acredito no que estou ouvindo,
você... Acha mesmo que se eu for embora, vou buscar alguém
para colocar no seu lugar? Vou me jogar nos braços da primeira
garota que estiver disponível para lamber as minhas feridas? É
isso que você pensa sobre mim?
Ela gritou comigo todas aquelas palavras e eu senti como se
tivesse me acertado um soco no estômago.
— Não é nada disso, Florence. — Droga, eu não deveria ter
falado desse jeito. — Já... Por conta de... Olha, eu tive
experiências ruins. Vamos chamar assim. Traumas, decepções,
etecetera e tal.
— Eu não sou a Sophie — ela diz, dura, chegando mais
perto de mim.
A raiva que está sentindo faz seu corpo aquecer. Num
milésimo de segundo, tudo está quente. Eu, ela, nossas
respirações que se confundem. Até que ela me empurra contra
a escrivaninha de estudos e encerra a distância entre os nossos
lábios com um beijo que alastra chamas dentro de mim feito um
incêndio de dentro para fora.
Os livros foram ao chão, assim como o que restava da
minha sanidade, quando as mãos da loira sobem pelas minhas
pernas e apertam as minhas coxas por fora e por dentro. Ela
prende meu lábio inferior entre os dentes e puxa com pouca
força, depois os solta e segura em meu queixo para que eu olhe
dentro daqueles olhos azuis. Eles costumam ser doces e
brilhantes, mas agora estão sombrios.
— Ela te traiu, porque foi uma idiota. Não porque você não
era o suficiente ou porque estar com você era difícil. E se ela
achasse isso, o certo teria sido terminar tudo entre vocês e
depois, aí sim, ir pra cama com quem bem entendesse.
Aquelas palavras traziam lembranças dolorosas, mas não
tinham sido ditas para me machucar, por isso preferi deixar que
elas doessem depois. De preferência, num momento em que
Flora não estivesse sobre mim com as mãos e lábios tão
próximos da minha pele.
Ela me beija outra vez, com tanta urgência que eu arfo, mas
soa como um gemido.
Preciso sentir aquela pele ardendo contra a minha, por isso
alcanço as alças de seu vestido e as abaixo, revelando aqueles
ombros nus, dourados como se banhados por mel. O tecido
desliza com facilidade, mas não conseguirei tirar com os braços
dela sobre meus ombros.
— Eu quero você. Eu amo você, Diane Robin.
Sem que ela possa reagir, inverto as nossas posições e,
agora por cima, termino de arrancar o vestido aos poucos, me
aproveitando da costura justa para tocar sua pele em lugares
que sei que são mais sensíveis.
— Não me chame assim. Nunca.
Aperto a parte interna de sua coxa com um pouco de força.
Ela geme e eu dou um sorrisinho pequeno. As roupas de baixo
ainda estão no caminho e faço menção em tirá-las, mas minha
mão é recebida com um leve tapa.
— Você quem começou.
Selo seus lábios com os meus, beijando-a com ainda mais
insaciedade. Mal dá para respirar entre um beijo e outro,
principalmente quando minhas duas mãos estão arrancando as
roupas de baixo de Flora. Puxando sua calcinha, desamarrando
os laços do corpete e correndo os dedos por suas pernas nuas,
o que faz a pele dela arrepiar.
Quando todo o tecido cai no chão e tudo o que resta sobre a
mesa sou eu e Flora, desço meus lábios para seu pescoço,
contornando cada curva do tronco dela com o rastro incendiário
dos meus beijos. O colo, os seios, a barriga e, finalmente,
aquela região do baixo-ventre. Até que as pernas dela se abrem
para mim. Ela quer que eu a toque como a toquei pela primeira
vez, mas faço algo diferente.
Começo beijá-la, depois uso a minha língua em movimentos
circulares no centro. Flora está com as duas mãos entrelaçadas
em meus cabelos e os puxa com mais força cada vez que
aumento o ritmo.
E eu aumento. Depois sugo e deslizo um dedo para dentro
dela. Ela geme tão alto que temo estarmos sendo ouvidas do
lado de fora. Mas é tarde da noite e as paredes são maciças.
Depois de deslizar outro dedo, intensifico os movimentos da
minha língua e dos meus dedos que estão se movendo dentro
dela.
— Rob...
Consigo sentir as contrações, sei que ela está quase lá.
Ergo o corpo para beijá-la, enquanto meu polegar assume a
tarefa que era dos meus lábios. Ela sente o próprio gosto pela
minha boca e arqueja quando está prestes a se desfazer.
Olho para o rosto dela e ela está sorrindo, de olhos
fechados, deitada sobre a mesa. Jogo meu corpo por cima do
dela para cobrir sua nudez, depois a beijo outra vez e ajeito os
cabelos desgrenhados de sua testa.
— Não quero que vá embora — digo, beijando-lhe a
têmpora esquerda. — Quero ficar com você até o último dia das
nossas vidas medíocres. Ou até que você se canse e perceba
que existe a vida dos sonhos te esperando em terras distantes.
XIX
Ouvi dizer uma vez que, quanto mais consciente você está
sobre o tempo, mais ele demora a passar.
E essa é uma mentira das boas.
Depois que eu e Flora nos acertamos, foi como se eu
tivesse piscado e acordado na manhã da minha coroação. Por
mais que eu tenha tentado assimilar cada minuto que se
passou, não consegui fazer os dias desacelerarem.
Assim que as batidas na minha porta começaram, me
arrependi de ter ido dormir tão tarde e de ter bebido tanto vinho.
Mas Flora estava comigo e eu tive uma baita epifania sobre
aproveitar o momento. Ela bem avisou que eu ia me sentir
miserável na manhã seguinte. Dito e feito.
Depois de um esforço sobre-humano para abrir os olhos,
meu olhar foi de encontro à escuridão do outro lado da janela.
Ainda era madrugada.
Cobri minha cabeça com o edredom pesado e isso abafou
os sons do lado de fora, mas não o suficiente para que eu
conseguisse ignorá-los. Ao perceber que nada faria os
chamados cessarem, concluí que não havia nada que eu não
daria por mais cinco minutos de sono. Só que, se eu não
abrisse aquela porta, alguém o faria por mim e não seria nada
agradável. Principalmente porque, ao tentar rolar para fora da
cama, meu corpo é bloqueado por outro.
Flora está adormecida ao meu lado ― sabe-se lá como, com
toda essa barulheira. Nada é tão ruim que não possa piorar,
não é mesmo? Ela deveria ter ido embora. Na verdade, não dá
pra dizer com certeza, porque não me lembro de muita coisa,
mas sei que ela provavelmente tentou e eu insisti que ficasse
mais um pouco. A memória pode falhar, mas os lapsos de
memória depois de três garrafas de vinho não falham nunca.
Agora estávamos com problemas.
Eu deveria acordá-la?
Não há a menor chance de os corredores estarem vazios
hoje, então mesmo que eu mande embora a pessoa do outro
lado da porta, sair daqui seria arriscado.
Por que eu nunca consigo me contentar com os problemas
que eu já tenho?
― Robin, sou eu. ― A voz de Danny trespassa as paredes e
uma sensação de alívio toma conta de mim de súbito. ― Abre
logo essa porta!
Acho que nunca me levantei tão rápido ou fiquei tão feliz por
estar vestida. É a primeira vez que ouço Danny soar tão
apressada e não preciso pensar tanto para saber o motivo.
― Vocês enlouqueceram de vez? ― ela diz assim que entra
no quarto. ― Está uma loucura lá embaixo. Nunca vi tanta
gente ocupando tão pouco espaço e olha que eu já estive em
barcos menores do que esse seu quarto.
― Bem-vinda à minha vida ― retruco com um sorriso
amarelo nos lábios. ― E, acredite, vai ficar pior.
A ruiva revira os olhos e bufa antes de caminhar até o corpo
adormecido de Flora e sacudi-la até que ela acorde. Tento não
rir do pequeno susto que ela leva ao despertar e se deparar
com a expressão exasperada de Danielle, como se estivesse
acontecendo um incêndio em algum lugar do palácio.
Apesar que, levando em conta as circunstâncias, um
incêndio seria uma urgência menos preocupante.
― Levanta. A gente tem que ir ― diz Danny, empurrando as
cobertas para longe.
Flora me encara com um olhar sonolento, mas bastante
acusador, que diz “Isso é tudo culpa sua” e minhas bochechas
queimam. Ao menos, Danny vai arrastá-la para fora antes que
ela possa brigar comigo, por isso me aproximo para deixar um
beijo rápido em seus lábios antes que aconteça.
― Te vejo mais tarde, está bem? ― digo à loira num tom de
promessa. ― Isto é, se eu sobreviver a este dia.
― Se for morrer, antes faz um testamento dizendo que você
deixa a frota da Coroa para sua querida amiga Danielle, sim? ―
brinca Danny, puxando Flora de vez para que ela fique de pé.
― Boa sorte, Rob.
― Sorte? Eu preciso mesmo é de um milagre.
As duas me envolvem num longo abraço conjunto. Não
quero soltá-las, mas os barulhos de passos que ficam cada vez
mais altos e constantes nos corredores não me deixam outra
escolha.
Quando sou deixada sozinha, sinto minhas mãos tremerem.
Por mais que eu tenha me esforçado durante todo esse tempo
para manter minha mente no limiar da sanidade, não posso
controlar as reações do meu corpo com a mesma maestria.
Num espaço tão curto de tempo, as coisas viraram de
cabeça para baixo em um ritmo asfixiante e, por mais que agora
não seja o melhor momento para reflexões, é impossível deixar
de pensar em cada mínimo acontecimento que me trouxe até
aqui. Estou prestes a assistir minha vida mudar para sempre e
ter consciência disso faz com que tudo ao meu redor comece a
formigar.
É real.
Não tenho para onde fugir.
●
●
O burburinho no salão pode ser ouvido a muitas portas de
distância. E a cada passo que eu dou em sua direção, minhas
pernas assumem um ritmo automático. A parte boa é que isso
me poupa do esforço de fazê-lo de forma consciente. O ritmo
das batidas do meu coração aumenta proporcionalmente à
proximidade física entre mim e toda aquela gente, por mais que
eu ainda não consiga vê-los.
Quando tudo o que me separa do meu destino é uma porta,
meus pés travam. O grão-duque ― cujo braço esquerdo está
tomado pelo meu direito ― me olha de soslaio de um jeito
paternal. É o jeito dele de dizer que eu posso usar os próximos
dez segundos para respirar.
Respirar é o que faço. Fundo. O máximo que esse vestido
apertado me permite. Depois, com aceno inconsciente da
minha cabeça, permito que as portas sejam abertas.
Há uma música soando em algum lugar, mas meu coração
batendo em meus ouvidos faz com que eu só consiga sentir a
sua vibração. Há também um tapete vermelho estendido até o
topo da escadaria que leva ao trono. Arranjos de flores e faixas
verde-esmeralda decoram impecavelmente cada canto.
E há pessoas. Muitas pessoas.
Sei que a minha postura é imponente, mas tem a solidez de
um castelo de cartas; se assoprarem forte demais, vai tudo
desmoronar. Jean-Pierre disse durante nossos ensaios que
seria de bom tom da minha parte olhar para os lados de vez em
quando, enquanto caminho, para demonstrar gentileza e
confiança aos nobres que estão presentes. Mas, na prática, eu
os encaro e desvio os olhos tão rápido, que tenho certeza de
que podem ler meu nervosismo feito um folhetim escandaloso.
O maldito altar parece mais distante a cada passo que dou.
Meu estômago e minha cabeça latejam. Por mais que estejam
todos em silêncio absoluto, o zumbido dentro da minha cabeça
faz com que eu escute murmúrios indecifráveis. Quero gritar
para que parem a música e me deixem tentar escutar meus
pensamentos, por isso mordo os lábios por dentro para conter o
impulso.
Quando alcanço a base das escadas, algo ameniza dentro
de mim. Uma aceitação anestésica começa a formigar na ponta
dos meus dedos e se espalhar pelo resto do meu corpo. O
grão-duque se desfaz do meu braço e me olha nos olhos com a
expectativa de que eu consiga chegar até o topo sozinha. Eu
não fazia ideia do quão estive confiando o peso do meu corpo
nele até o momento em que ele me soltou.
Outra longa respiração.
Depois, tudo começa a acontecer de forma automática.
Subo cada degrau, superconsciente de como a barra do
meu vestido se comporta, para não tropeçar, o que acaba
sendo uma ótima distração. Só percebo que completei o trajeto
quando não há mais nenhum outro degrau para eu escalar.
O Arcebispo e eu nos encontramos apenas uma vez para a
leitura do juramento da cerimônia. Ele é um homem de baixa
estatura, mas que me encara como se estivesse a muitos
metros acima de mim. As rugas em seu rosto deixam a
carranca ainda mais assombrosa.
Ele começa a verbalizar cumprimentos e formalidades no
tom mais claro que a voz calejada consegue ecoar. Faz os
cumprimentos, um prelúdio da cerimônia e, então, finalmente
me invoca.
― Vossa Alteza está disposta a tomar o Juramento?
― Sim, eu estou.
O homem caminha até mim com uma Bíblia de tamanhos
desproporcionais em mãos e a estende para mim.
― Você promete solenemente e jura governar os Povos de
Sealaena e dos outros territórios pertencentes de acordo com
suas respectivas leis e costumes?
Sinto meu rosto se contorcer um pouco.
― Sim, eu prometo.
― Em seu poder misericordioso, você fará com que a lei e a
justiça sejam executadas em todos os seus julgamentos?
― Eu farei.
Minhas mãos tremem e seguro aquele livro enorme com
mais força do que o necessário.
― Como uma prova que estas palavras serão honradas,
você deve assinar o juramento agora.
Mesmo sabendo que é impossível que uma caneta pese
mais que algumas gramas, a que eu seguro é pesada feito
chumbo. Meu nome sai torto e quase ilegível, mas é o melhor
que consigo fazer. Uma pessoa que não é o Arcebispo se
aproxima para tirar a Bíblia das minhas mãos e levá-la para
sabe-se lá onde.
É a minha deixa para ficar de joelhos diante do clérigo. Não
depender dos meus pés para me manterem erguida é um alívio.
Resta saber se vou conseguir levantar, quando estiver vestindo
o peso da coroa que está prestes a ser posta em minha cabeça.
Fecho os olhos e espero pelo inevitável. Percebo a óbvia
movimentação ao redor que nada mais é do que o Arcebispo
vindo em minha direção outra vez para que, enfim, eu seja
oficialmente coroada.
Agonizo pelo que parecem ser horas e só torno a abrir meus
olhos quando escuto uma comoção por todo o salão.
Por um momento, me pergunto se estou tão anestesiada
que não senti quando o adorno foi colocado sobre a minha
cabeça. No entanto, ao olhar para cima, a coroa ainda está
imóvel nas mãos do Arcebispo e, ao invés de olhar para mim,
ele está olhando para algo além do altar, sobre os meus
ombros, com a boca entreaberta.
E, quando giro o pescoço para buscar a causa do espanto
do homem, vejo Nathan na base da escadaria, me olhando de
volta com um sorriso idiota.
XX
Primeiro, pensei que fosse uma assombração. Um delírio da
minha cabeça atordoada. Mas as pessoas ao redor estavam
enxergando o mesmo que eu e, depois de um abraço que
poderia esmagar meus ossos, comecei a acreditar no que meus
olhos estavam me dizendo.
Passada a comoção enorme que se instaurou depois que
Nathan ressurgiu do nada, a coroação foi devidamente
interrompida. Além de não existir a mínima possibilidade de eu
ter forças ou sanidade mental para prosseguir com aquilo, o
simples fato de o príncipe estar vivo, virava o jogo de cabeça
para baixo.
Fomos eu, ele e Jean-Pierre para uma saleta afastada. Eu
queria respostas, meu irmão queria se explicar e o grão-duque
queria saber como administraria mais essa reviravolta. Nenhum
de nós precisava estar no salão para saber, com certeza, sobre
o teor das especulações que estavam sendo feitas por todos os
presentes.
Jogada numa poltrona, com todos os laços do corpete do
vestido abertos para que eu pudesse respirar de maneira
decente, encaro Nathan dos pés à cabeça para reafirmar que
não estou mesmo enlouquecendo. A pele do meu irmão está
queimada de sol, ele está definitivamente mais magro e seus
cabelos precisam de um corte. Está sentado diante de mim,
segurando uma de minhas mãos, enquanto a outra está
ocupada com um copo de água com açúcar.
― Já se acalmou? ― ele pergunta, me encarando
profusamente.
― Não. ― Eu e o grão-duque respondemos em uníssono. É
quase cômico.
― Como? ― balbucio, incapaz de controlar o timbre trêmulo
da minha voz. ― Como é possível você estar aqui? O que
aconteceu? Eu lembro... Lembro de nós dois naquele bote...
Depois você sumiu de vez. Eu estava delirando?
― Não, Di. Não foi delírio. Depois que o bote tombou, você
foi a única que eu consegui encontrar. As ondas estavam
engolindo tudo e... Francamente, não sei com que forças eu
consegui virar o bote outra vez. Mas consegui. E te encontrei
logo em seguida, mas você estava inconsciente, então o que eu
fiz foi me jogar na água para não te deixar afundar e tentar levar
seu corpo até as rochas para ficarmos sobre elas até a
tempestade se acalmar. Foi quando eu consegui isso aqui. ―
Ele então ergueu a barra direita da calça e em sua perna havia
uma cicatriz horrenda cortando a panturrilha dele na horizontal.
Tinha, no mínimo quinze centímetros de comprimento. ― Por
sorte, o bote acabou ficando preso entre o rochedo também e,
quando amanheceu, consegui colocar a gente dentro dele para
buscar ajuda. Acho que ficamos uns dois dias flutuando em mar
aberto. Eu sabia que iríamos morrer. Comecei a ter febre, a me
desidratar. Sorte a sua ter estado inconsciente durante todo
esse tempo, porque eu vivi o inferno, tendo a certeza de que
nossos pais estavam mortos e assistindo você morrer aos
poucos.
Os olhos de Nathan estão vermelhos e lacrimosos, perto de
transbordarem. Quero abraçá-lo, mas tenho medo de chegar
perto demais e ele desaparecer outra vez. Ainda estou em
choque, afinal. Tão em choque, que não choro ao escutar as
palavras dele, apenas sinto espasmos de pânico por todo o
meu corpo.
― Mas então eu vi, lá de bem longe, um navio. Uma
embarcação enorme. Era a nossa chance. Não pensei muito
antes de pular e nadar até ela. O plano era gritar por ajuda e,
quando eles me resgatassem, eu os levaria até você e
estaríamos salvos. A verdade é que foi um milagre eu ter
conseguido alcançá-los. Subestimei minha fraqueza. Ao menos,
consegui gritar para que eles me percebessem afogando antes
de apagar. E, quando acordei, dias depois, estava cercado por
viajantes alemães. Eles não me entendiam e eu não os
entendia. Passei todo esse tempo no mar e, quando chegamos
em terra firme, estávamos do outro lado da França. Então, há
duas semanas, me levaram até um viajante que estava a
caminho de Marselha e ele me ajudou a voltar para a casa.
Foram dias terríveis. Tudo em que eu conseguia pensar era em
você, sozinha, flutuando e morrendo aos poucos no meio do
oceano.
― Nate...
― Mas tenho que devolver a pergunta agora. ― Ele se põe
de pé, ansioso. ― Como você sobreviveu?
― Eu...
Não posso dizer a verdade.
Posso confiar em Nathan com a minha vida, mas não sei se
posso confiar a vida de outras pessoas. Portanto, não arrisco
dizer uma palavra sobre a ilha ou sobre as meninas.
Meus olhos caem sobre o grão-duque que está sentado
numa mesa próxima, com a cabeça entre as mãos, repuxando
os poucos fios de cabelo que restam em sua cabeça. Ele está
tão atordoado que duvido que me escute contar a história
mentirosa sobre os “pescadores” que me encontraram. Por
mais que eu me sinta uma pessoa horrível por mentir para o
meu irmão num momento como esse, em que finalmente nos
reencontramos e que estou anestesiada por saber que ele não
está morto, isso não é sobre mim.
― Isso é inacreditável.
Sim. Porque é mentira, penso. Mas a história real também
soaria fictícia, então não é como se ele estivesse perdendo
muita coisa.
― Mas... ― Ele se ajoelha diante de mim e alcança minha
mão outra vez. Mal consigo olhá-lo nos olhos. ― Estamos aqui,
Di, eu e você. Vivos. É tudo que importa para mim. Quando
acordei naquele navio, sozinho, achei que estivesse sozinho
para sempre. Pensei em me jogar no mar e acabar com tudo de
vez, porque a dor que eu estava sentindo era insuportável, mas
que bom que não fiz isso. Por Deus... Que bom que eu ainda
tenho você.
Nate se atira sobre as minhas pernas e me abraça como
pode. Vejo lágrimas molhando meu vestido, mas não são as
lágrimas dele, são as minhas. Um choro compulsivo escapa do
fundo da minha garganta e não para.
Estou feliz. Aliviada. Em êxtase, ou qualquer coisa assim. A
verdade é que não existem palavras para descrever. Ao mesmo
tempo em que quero gritar, também quero que tudo fique em
silêncio, para que eu consiga aproveitar esse momento por
mais tempo.
― Sei que esse é um momento importante para vocês dois,
mas, bem, tem uma centena de pessoas lá fora que vieram aqui
para assistir a uma coroação ― diz Jean-Pierre, destruindo
meu precioso silêncio e nos trazendo de volta à realidade. ― E
elas farão as mesmas perguntas que estou me fazendo agora e
imagino que vocês também.
― Será que podíamos... Não falar sobre isso agora? Só por
hoje. Mande todos para a casa, diga que adiaremos tudo ―
Nathan diz, erguendo-se de pé outra vez. ― A única coisa que
eu quero é um pouco de descanso. Além do mais, gostaria que
Diane e eu pudéssemos discutir sobre... essa decisão a sós.
Ele está se referindo ao fato de que, agora que ele está de
volta, há dois herdeiros. Mas, para mim, é tudo óbvio demais.
Jean-Pierre finalmente nos deixa sozinhos na sala. É um alívio
dos grandes. Ainda estou um pouco aturdida, mas meus
pensamentos começam a desanuviar.
― Não tem decisão nenhuma, Nate. Sabemos que você
deve assumir o trono. É o que todos esperam.
― Sim, mas... É isso que você quer?
A pergunta dele me pega de surpresa. Não achei que meu
irmão fosse, por algum momento, considerar a ideia de que
prosseguiríamos com a minha coroação. O mero pensamento
de isso acontecendo soa absurdo.
Mas o silêncio que se instaura diz muito sobre tudo que eu
tive que enfrentar nos últimos dias para me acostumar com a
ideia de me tornar rainha. A verdade é que tudo que fiz foi num
impulso desesperado para proteger as pessoas que amo. Até
uma hora atrás, Flora, Isis, Danny e as outras meninas da ilha
eram tudo o que havia me restado. Eu estava ali por elas e só
isso. Comigo ocupando o trono de Sealaena, elas estariam bem
mais seguras. Saber disso me ajudava a dormir à noite.
Agora, com essa reviravolta, não estou muito certa do que
devo fazer em seguida.
Queria que Isis estivesse aqui. Preciso falar com ela e as
outras, antes de dar uma resposta final a Nathan.
― Tudo bem se eu não te der essa resposta ainda? ―
pergunto, olhando nos olhos dele pela primeira vez em muito
tempo. ― Preciso de mais tempo para pensar.
― Nada mais justo. ― Sua resposta é rápida e direta, sei
que ele me compreende. ― Desculpe ter chegado sem avisar.
― Eu rio e dou um tapinha em seu braço. ― Mas que bom que
fizeram tanta comida, estou morto de fome.
― Sinta-se em casa ― brinco. ― Vou aproveitar que
estarão todos no seu pé para me livrar desse bendito vestido
enquanto ninguém está olhando.
― Te encontro mais tarde? Quero passar mais um pouco de
tempo com você outra vez, como fazíamos quando a gente era
criança. Você é a única família que eu tenho agora e...
― Ei, não precisa se justificar. Te espero no meu quarto,
está bem? ― Dou dois tapinhas em seu ombro. ― Mas, se não
levar comida, não vou deixar você entrar.
― Está bem, sua chantagista.
Com amor,
Diane
Querida Diane
(ou devo dizer Robin?)
O tempo não passa nada rápido por aqui. Nunca. Como você
pôde adivinhar, é obvio que estou com saudades e gostaria de ter a
minha irmã de volta. Amo você, e é por isso que o que mais importa
para mim é que esteja feliz. Portanto, consigo abrir mão de tê-la por
perto, se isso significa sua liberdade. Não se sinta culpada, sim?
Posso não estar passeando pela praia e beijando garotas como
você, mas encontro meus jeitos únicos de felicidade por aqui. Estar
com Sid é um deles, fazer a diferença na vida das pessoas de
Sealaena — ainda que aos poucos — é outro.
E, por falar em pessoas que estão se dando bem em sua nova
função, devo dizer que a recomendação de Ísis como minha nova
Conselheira foi um daqueles acertos enormes que um rei faz de vez
em quando. É claro que não foi fácil, porque ela não tem nenhum
título ou documentos, mas vale a pena abusar de um privilégio ou
outro, de vez em quando. Só sei que aquela mulher sabe fazer as
coisas funcionarem; de um jeito que não demorou nada para
cessarem os protestos uns dias depois, quando ela sentou naquela
cadeira e começou a desfazer o nó do conflito com Marselha.
E sei que ela vai me entregar sobre pular uma ou duas refeições
e não dormir direito, por isso prefiro não dizer nada. São ossos do
ofício, você sabe como é. Sem emoção, sem diversão, certo?
O que mais me conforta é que eu me encontrei, e sei que estou
no caminho certo. Odeio toda a pressão, e o fato de ter que me
esconder para estar com a pessoa que amo, mas gosto dos
pequenos desafios. Gosto de sair pelas ruas e perceber que não
sou temido, mas sim respeitado. Acho que nossos pais se
orgulhariam.
Sid mandou dizer que também sente sua falta. E, desculpe por
não guardar segredo, mas tive que pedir a opinião de alguém
sensato sobre o lance do pedido de casamento; já que eu
literalmente pedi que ele ficasse comigo para sempre depois de
duas semanas que nos conhecíamos.
Tivemos uma conversa sobre como é importante respeitar o
tempo do outro só que, no fim, entendemos que também é
importante que não guardemos os sentimentos bons só pra nós.
Então acho que, se você sente que quer ficar com ela para toda a
vida, deveria deixá-la saber disso.
E, vamos ser sinceros: qualquer um que passe mais de cinco
minutos com vocês saberia dizer que ela sente o mesmo.
(Pro caso de o fato de ela ter largado a ilha para viver aqui com
você não seja evidência disso o suficiente.)
Você tem um coração bom, Di. Faça o que ele te pedir; sempre.
Com amor,
Nathan
Sobre a autora
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