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22703123, 191 50 ‘AReal Biblioteca Piblica da Corie @ o Eslace Moderna OpenEdition QV Journals @ Cultura Revista de Historia e Teoria das Ideias vol. 36 | 2017 As formas da Historia das Idei Dossier Anténio Ribeiro dos Santos s (em homenagem a José Esteves Pereira) A Real Biblioteca Publica da Corte e o Estado Moderno Jo&o Luis Lispoa E Marta Luisa CABRAL p. 91-101 https:tidoi.org/10.4000/cuttura 3682 Resumos Portugués English Entre Dezembro de 1755 e Fevereiro de 1796, a aspiraglo de erguer em Lisboa uma biblioteca pliblica tem varias expressées, ¢ 0 Alvara de Fevereiro de 1796 que eria a Real Biblioteca Piblica da Corte representa, em certa medida, o culminar desse proceso. Antonio Ribeiro dos Santos, como responsavel pela biblioteca, mostra como se entendia o que devia ser uma Biblioteca da Corte, os seus objectivos, os seus prineipios de organizagio, o cuidado colocado na sua actualizagao, confirmando a centralidade politica de uma instituiglo onde se materializa a relagio entre o poder e o saber, e onde se define como prioridade a abertura das colecgGes A leitura piblica, Neste processo convergem conceitos e politicas distintas, relativamente as nogies de biblioteca pablica e de Biblioteca Real, e percebe-se a importincia politica atribufda a uma Diblioteca pabliea da Corte como elemento central das atribuigies do Estado. Between December 1755 and February 1796, the aspiration to erect a public brary in Lisbon has hhad several expressions. The February 1796 decree setting up the Royal Library represents, to @ certain extent, the culmination of this process. AntGnio Ribeiro dos Santos, responsible for the library, shows how one understood what should be a Library of the Couet, its goals, its principles of organization, the care put into its updating, confirming the political centrality of an institution ‘where the relation between power and knowledge is materialized, and where the opening of the collections to public reading is defined as a priority. In this process, different concepts and policies converge, concerning the notions of what shall be a public library and a Royal Library. The political importance attributed to a public library of the Court as a eentral clement of the attributions of the State is perceived. Entradas no indice Keywords: Libraries, Public library, Antinio Ribeiro dos Santos, National Library of Portugal Palavras chaves: Bibliotecas, biblioteca pitblica, Ant6nio Ribeiro dos Santos, Biblioteca, Nacional de Portugal hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 19 22709128, 19:50 'A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna Texto integral “Salve, 6 meus livros, livros escolhidos Por vossos préprios méritos sublimes, ‘Minha satide e vida, meus prazeres; ‘Mimos dos olhos meus, altas delicias Do meu esp'rito, que vos ama terno: Qu’seria de mim, se 0 iniquo fado ‘Me forgasse a viver de vés ausente!” Poesias de Elpino Duriense, tomo 1, p. 285. Lisboa: Impressio Régia, 1812. Quando Anténio Ribeiro dos Santos (1745-1818) é chamado a Lisboa para dar inicio ao processo de fundagéo da primeira Biblioteca Pablica da Corte (1795), interrompendo © trabalho que vinha fazendo na Biblioteca da Universidade de Coimbra, vem para coneretizar um projecto que ha ja varias décadas se vinha debatendo. Logo apés o terramoto de 1755, fora explicita a vontade de que a Corte de Lisboa passasse a dispor de uma biblioteca pibliea no palécio real e de que o desastre que tivera lugar pudesse ser a oportunidade de a constituir em novos moldes, & semelhanca do que se conhecia noutras capitais europeias, Dissera-o Manuel da Maia ao Marqués, de Pombal na sua Dissertagao (Maia 1755), 0 que seria porventura uma aspiragio partilhada por mais gente, aspiragdo que, no entanto, o volume dos trabalhos de reconstrugdo da capital do reino foi adiando. Interessa-nos entender em que é que esta nova biblioteca era diferente das que antes tinham existido, nomeadamente da Biblioteca Real instalada no Pago da Ribeira desaparecida para sempre em 1755. Neste processo, os anos de 1760 vao ser particularmente agitados porque mostram como, perante uma sucessio de solicitagées, a perspectiva da Biblioteca Real quase se perde. Os varios projectos que entio se discutem partem da perspectiva de aproveitar o riquissimo espélio que resultava da expulsio da Companhia de Jesus em 1759, mas a colee¢o que se foi reunindo foi sendo dispersa, sucessivamente, entre os primeiros passos do Colégio dos Nobres, a criaglo da Imprensa Régia e a Real Mesa Censoria, Entretanto, mostrando as hesitagdes provocadas por se estar a lidar com varias urgéncias ao mesmo tempo, em 1766 Dom. José tera confiado aos dominicanos de Lisboa os livros do Colégio jesuita de Coimbra para que se faga uma biblioteca que deve ser, de acordo com o testemunho de Niccold Pagliarini, em carta de 23 de Dezembro a Giovanni Bottari, “publica come é quella della Minerva costa”. Ou seja, aparentemente, nesse momento, a ideia de restaurar uma Biblioteca Real ndo tinha de coincidir com a ideia de criar uma biblioteca publica. Pagliarini, que est em Lisboa a trabalhar com o Conde de Oeiras em diversos projectos relacionados com livros, estaré associado & criagio da Imprensa Régia e chega a participar em discussdes sobre projectos de bibliotecas. ‘Temos, assim, por esclarecer, o que implica chamar Pablica ¢ Real a uma biblioteca, ‘Ja longe do tempo em que os livros dos reis se contavam apenas como parte dos seus bens pessoais, como as suas jéias, objectos que por sua morte se podiam dispersar, a Biblioteca Real passou a fazer parte das instituigdes de que o Estado nao podia j4 prescindir. Foi dada como adquirida a necessidade de uma Biblioteca da Corte, ainda que nao fosse piblica, A emergéncia desta palavra j4 significava a consciéncia da necessidade de abrir as bibliotecas a leitores exteriores as instituigGes que as possufam, Ou seja, tornara-se presente a ideia de que se devia consagrar institucionalmente essa abertura, que jé existia informalmente em bibliotecas de instituigdes diversas. A palavra “piblica” deveria marcar a ordem da propriedade e da direcgGo, tanto quanto a hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 219 22709128, 19:50 'A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna oy orientagao sobre o seu acesso. Mas, se porventura o projecto de uma biblioteca piblica fosse levada a cabo pela Ordem dos Pregadores, seria este Giltimo elemento apenas a dar sentido palavra. Um espaco no dependente da iniciativa e da autoridade real. Acresce outro elemento importante para as decisdes a tomar. O rei podia promover ou apoiar grandes bibliotecas, como sucedera com as bibliotecas de Mafra ou a Joanina de Coimbra. Mas, num caso e noutro, tratava-se de projectos que ndo respondiam & necessidade de ter, na Corte, uma grande coleccdo. Restava entender a natureza politica e funcional dessa biblioteca, nos moldes em que ja funcionava nas Cortes de Paris ou de Londres, ou na Academia Romana, Do ponto de vista politico, reconhece-se o papel do aparato cultural e institueional na concepgio do Estado Moderno, pelo que uma instituigao onde se recolhe todo o saber projecta sobre a Coroa, pela sua eventual dimensio e riqueza, 0 prestigio do saber que abriga. Do ponto de vista das fungdes do Estado, uma Biblioteca Real obedece a dois propésitos. O primeiro decorre do reconhecimento da nevessidade do saber, aquele que esta dispontvel e ao qual se pode aceder, para o cumprimento eficaz das fungdes da Coroa. A ‘boa administracdo nao é concebivel sem acesso rapido ao conhecimento produzido, segundo propésito a ser cumprido esta na criagdo de condigdes para materializar a reunido de todo o saber disponivel, j4 nao apenas como resposta a necessidades da administrago, mas como conceito de coleegdo necesséria. A constituigéo de uma colegio central é, neste sentido, um objectivo em si, contrariando a potencial dispersio € perda do conhecimento tornado livro. Neste sentido, uma tal colecgo tem como objectivo politico reunir tudo e nao perder nada do que existe. O medo da perda é um elemento relevante até aos nossos dias. Estes aspectos marcam, assim, o cardeter politico da biblioteca, distinto de todas as que, até ai, religiosas ou universitérias, respondiam a necessidades parcelares ou de grupo, mesmo quando facilitavam o seu acesso a leitores exteriores ¢ a sua riqueza Drilhava sobre a instituigdo que a acolhia, independentemente de ter sido patrocinada pela Coroa. A esta distingdo associa-se uma outra, decorrente das priticas de aquisi¢ao € organizagio dos fundos, em consequéncia de perspectivas especificas que fossem. resultado das prioridades de uma ordem religiosa ow dos programas de ensino da universidade, A dupla qualidade de colecgdo “completa” do Reino e de fundo devendo por forga obedecer 2 actualidade politica e filoséfica (cientifica) da Europa estava fora dos horizontes de qualquer biblioteca que nao tivesse o estatuto de Biblioteca Real. Essa diferenca no significa que tal projecto viesse romper radicalmente com a tradi¢do conhecida. Ou seja, o essencial do que era a tradi¢o manter-se-ia, com agrado geral, procurando-se a raridade e a curiosidade, partindo da convergéncia entre 0 olhar do bibli6filo e 0 do responsivel pela formagio de agentes, mediadores e elites (religiosos, politicos ou filoséficos). A estes dois olhares, juntar-se-ia o olhar mais politico que partia da unicidade e centralidade de uma instituigéo real e consagrava, como tarefa dessa nova instituigéo, a abertura que as bibliotecas de outras casas praticavam como acco complementar. Esta & a perspectiva que vai além da mera dimensio real, orientada ento para uma dimensio piblica. Detecta-se aqui uma coloragao iluminista que nfo pode deixar de ser sublinhada. O projecto manteve- latente, sem evolugies assinalveis, pese embora as medidas preconizadas por Frei Manuel do Cenéculo (1724-1814) ¢ coneatenadas na proposta de um imposto sobre bebidas alcodlicas, o “subsidio literdrio”, que deveria ser utilizado na eriagao de escolas menores e na “compra sucessiva e inextinguivel de livros para a biblioteca pablica dirigida pela Mesa Censéria” (Real Mesa Censéria 1772). Esta mengao a uma “biblioteca piblica” merece realee por se tratar da primeira mengio do género na pena de Cenéeulo. A preocupagdo pela “compra sucessiva ¢ inextinguivel de livros” constitui a ideia central e permanente em todos os escritos deste autor envolvendo bibliotecas ¢ & muito mais mareante do que as questdes de ordem organizativa. No ano seguinte, novo documento de Cenéculo, Faz-se indispensdvel... (1773), dé indicagées sobre os espagos hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 39 22709128, 19:50 'A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna necessérios a uma biblioteca, embora nada se adiante quanto aos contetidos da mesma, nem se especifique a que biblioteca se refere. Neste documento so muitas as direetivas para a construgio de uma biblioteca e, no conjunto da obra de Cendculo, trata-se do documento mais acabado sobre a temitica. Dois anos volvidos, em decreto de 1775, volta-se & questéo. Neste decreto pombalino, refere-se a necessidade de novas instalagdes para albergar a livraria da Mesa Censéria que tinha erescido muito: “aumenté-la a ponto de se fazer piiblica em beneficio geral de todos os [...] que nela quiserem instruir” (Pombal 1775). Estes diferentes momentos mostram como, em torno da Real Mesa Cens6ria, se tinha vindo a consolidar a ideia de erguer uma grande biblioteca “em beneficio geral de todos’. Varios testemunhos reforcam a importancia do exame e avaliago que Antonio Ribeiro dos Santos veio a fazer sobre o estado desta biblioteca (Santos 1795). As aspiragdes enunciadas nestes quatro documentos requeriam condigdes que passavam. pela criagdo formal da instituigdo, pela atribuigdo de instalagdes, pela definigéo dos principios organizativos e funcionais e pela escolha de quem pudesse concretizar um tal projecto. As condigées de que ha consciéncia so simultaneamente téenicas e politicas, © podemos pesar bem como as condigées téenicas dependem da visao politica de quem. dirige 0 proceso, aos seus varios niveis, incluindo a indispensavel dimensio orgamental. Tratou-se de um processo longo e lento com fases muito distintas e no qual, © Relatério de Ribeiro dos Santos sobre a Livraria da Real Mesa Cens6ria assumiu importancia capital. Nele, o papel e as concepgdes de Ribeiro dos Santos sobre o que deveria ser uma biblioteca moderna confrontavam-se com obstéculos, mas também com momentos de aceleragio e a oportunidade de outros propésitos e modelos. Daf a inevitabitidade em reconhecer dois momentos distintos na histéria da eriagao da Real Biblioteca: um, de 1796 a 1801, com Ribeiro dos Santos sozinho a projectar; outro, entre 1801 e 1803, correspondente ao curto perfodo em que D. Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812) assume a responsabilidade politica pela Real Biblioteca, Oficialmente, a Real Biblioteca Péblica 6 fundada a 29 de Fevereiro de 1796 por Alvard régio. Esta data serve apenas de referéneia porque, como se tem sublinhado, 0 processo de langamento da Real Biblioteca havia comecado muito antes e, portanto, 0 Alvaré de fundagio, de inegavel importancia, assinala uma nova fase do projecto. & uma fase decisiva, apoiada por um diploma excelentemente estruturado e escrito, por duas razes principais: por um lado, é um documento politico, emanado do poder real, através do qual a hierarquia do Estado reconhece a necessidade de a Corte dispor de um. instrumento daquela natureza; por outro lado, no Alvaré esto contidas ¢ definidas todas as fungées e missio de uma verdadeira biblioteca central. O propésito da nova instituigo € muito explicito e consiste no “estabelecimento de uma Livraria Péblica, a qual sirva como de um tesouro de todas as Artes ¢ Ciéncias com os livros mais preciosos pela sua raridade, os monumentos mais respeitveis das mesmas Artes ¢ Ciéncias” (Portugal. Leis, decretos, ete. 1796a), omitindo, naturalmente, qualquer preocupagao de carfcter téenico, O Alvard é um documento para o presente mas que acautela o futuro. Respaldado por este documento politico e orientador, uma vez nomeado Bibliotecério- Mor, a 4 de Margo de 1796 (Portugal. Leis, decretos, ete. 1796b), Ribeiro dos Santos dispée das condigées e parimetros para avangar. A partir de 1796, entra-se na fase mais dindmica e interessante da Real Biblioteca Pablica da Corte que importa caracterizar porque, através das medidas que vio sendo adoptadas e das parcerias que se vao estabelecendo, se percebe a feicdo que a Real Biblioteca vai assumindo entrando definitivamente na época moderna. Com Ribeiro dos Santos a frente da casa, a ele cabe decidir as medidas e escolher as parcerias. Os dois periodos-chave, de 1796 a 1801 ¢ de 1801 a 1803, muito diferentes entre si, revelam duas facetas institucionais, complementares e a propria adaptagio da Real Biblioteca a novos desafios. faces revelam uma biblioteca em evolugéo, com gostos € visdes opostos. Ribeiro dos Santos, sozinho ou na companhia de competentes parcerias, personaliza ele proprio a charneira entre dois tempos. Nao hesita em deixar a zona de conforto que aleangou em. Coimbra, provando, sem ambiguidades, de que lado esta em relagdo ao modelo de modemnidade. A op¢éo é sua, nada The ¢ imposto. sas duas hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 49 22709128, 19:50 'A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna 6 Ribeiro dos Santos sempre se preocupou com a aquisicao de livros, e as miiltiplas sugestes para aquisicao, alinhadas em listas, so muito frequentes nos eédices.' Nao é possivel daté-los com preciso, pelo que desconhecemos se sio anteriores 4 sua nomeagio como primeiro Bibliotecério-Mor ou se sero, na integra, posteriores. Mas, quaisquer que sejam as suas datas, 0 gosto pelos livros, seja bibliografia ou bibliofilia, ¢ indiscutfvel. E, se estamos a pensar na Real Biblioteca, ento podemos dizer com seguranga que esse gosto e essa preocupagio ja estdo presentes no trabalho que Ribeiro dos Santos desenvolve em torno da Livraria da Real Mesa Censéria, A leitura do seu Relatério, preparado em 1795, evidencia claramente a preocupagao com o estado em que encontrou a Livraria. Nao se trata apenas de apontar o dedo a desarrumacdo, a0 desmazelo. 0 autor preocupa-se com os livros que faltam, a auséncia de catélogos que impede 0 conhecimento do que existe ¢ a organizagio do que resta. Se na Mesa Censéria caiam os exemplares candidatos 4 edigéo na esperanga de obterem a indispensével licenga para impressao e circulacdo, Ribeiro dos Santos aflige-se com as faltas que identifica. E nfio deixa mesmo de comentar os desvios que as obras provenientes das antigas casas da Companhia de Jesus terdo sofrido. Este desmando em matéria de livros causa-Ihe a maior das indignagées, e talvez. possamos sentir a preocupacio que tinha em ndo perder os livros e em evitar a dispersio do saber que custara tanto a reunir. Ha aqui um misto das preocupagdes do biblisfilo e do organizador do conhecimento, uma continuidade que podemos reportar aos tempos da Universidade de Coimbra. ‘A preocupacao de Ribeiro dos Santos com a organizagdo dos livros merece toda a nossa atengio porque ela revela a consciéneia da necessidade de garantir uma actualizagéo permanente ¢ inevitével, um cuidado em “acumular ¢ dispor” (Carvalho 1998, 1, IID) que introduz a modernidade nas bibliotecas. Na verdade, estas bibliotecas organizam o conhecimento de que dispdem, preparam-se para receber leitores, esto dispostas a facilitar 0 acesso e, neste sentido, abrem-se A modemnidade. Ribeiro dos Santos é um bibliéfilo, mas no esquece que a reunido de muitos livros e manuseritos por si s6 nao faz. uma biblioteca, Regista-se aqui uma alteragao substancial e duradoura que deveremos assinalar como mudanga de paradigma. Ribeiro dos Santos esté actualizado, conhece os livros, domina as bibliografias € 0 movimento editorial, mas continua a valorizar os livros raros e tinicos. Nao de espantar, pois, o grande relevo e atengao que vai dar as propostas que Frei Manuel do Cenéeulo Ihe faz de doagdo das suas preciosidades bibliograficas. Entre Setembro de 1796 © Maio de 1808 estabelece-se uma correspondéncia entre as duas figuras denunciando (e satisfazendo) 0 gosto bibliéfilo de Ribeiro dos Santos, centrado sobretudo nas obras que Cendculo envia para a Real Biblioteca, uma correspondéncia cujo aleance ultrapassa em muito 2 questdo da doagao. ‘Neste conjunto epistolografico (Cabral 2014, 397-508) devem considerar-se algumas cartas de outras personalidades entio muito conceituadas, seja no meio literdrio, como 60 caso de Joaquim José da Costa e $4, professor de latim no Colégio dos Nobres, seja na esfera politica, como acontece com D. Rodrigo de Sousa Coutinho. ajudam a esclarecer as condigdes em que a doagao ocorreu. No total, so setenta e cinco documen- tos: trinta e oito de correspondéncia entre Ribeiro dos Santos e Cendculo, trinta e trés de outros intervenientes e quatro anexos. ff no somatério destas trés componentes que se consegue a contextualizagio em que ocorre a doagdi que, naquilo que aqui particularmente nos interessa, e se torna muito claro o conhecimento © 0 gosto de Ribeiro dos Santos pelos livros raros ¢ ‘inicos. Deslumbramento é o termo que melhor desereve a reacgdo de Ribeiro dos Santos & medida que os caixotes provenientes de Beja chegam e so abertos na Real Biblioteca, Merece especial atencio a relagao estabelecida entre Ribeiro dos Santos e D. Rodrigo de Sousa Coutinho. Sousa Coutinho foi ministro plenipotenciério em ‘Turim por um. longo periodo, entre 1778 e 1796. mandado regressar & corte de uma forma brusca e urgente pelo Principe Regente D. Jodo e, no inicio de 1796, jé faz parte do micleo duro da governagio. Aqueles dezoito anos em Turi, apesar das muito frequentes intermiténcias provocadas por deslocagées a Lisboa, moldaram definitivamente a stas cartas de Cendculo e hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 59 22709128, 19:50 'A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna 2» formagéo de Sousa Coutinho, fosse cultural, fosse politica. Dezoito anos longe dos meandros sociais e politicos da corte de Lisboa haviam-Ihe fornecido a distancia indispensivel que Ihe permitiram, sem preconceitos, reflectir sobre a situacio portuguesa, Importa aqui referir duas vertentes significativas do seu perfil cultural com a marea de Turim: os gostos bibliogréficos visfveis na sua biblioteca reunida em Itélia, na qual o pendor secular da colecedo e a curiosidade cientifica sdo bem evidentes, € 0 contacto com a oficina tipografica de Bodoni, em Parma, onde colheu muita informagio sobre as caracteristicas técnicas e estéticas da actividade gréfica e editorial. O que aprenden do ponto de vista desta actividade ajudarao, certamente, nas suas futuras responsabilidades no tocante & Casa Literdria do Arco do Cego, vertente que no abordamos neste artigo. Analisemos, entio, as questdes decorrentes da sua aprendizagem bibli6fila ou bibliogréfica. Um elemento constante da biblioteca que onganizou é a actualidade das edigdes reunidas (dois tergos dos livros so edigdes posteriores a 1775), contempordneas da sua estadia em Turim, revelando claramente a sua percepgio do que deve ser e para que serve uma biblioteca, Sem questionar 0 cardcter erudito do conjunto bibliografico acumulado, as tematicas sto muito variadas (como matemtica, geometria, canais e hidréulica, pobreza e mendicidade, arquitectura militar, historia politica, diplomatica ou genealégica, comércio, agricultura e silvicultura, astronomia, arte, botdnica, zoologia, indiistrias extractivas) e nelas reconhecemos um pendor pragmético ¢ utilitarista que deve ser sublinhado. Esta complementaridade entre erudigao ¢ utilitarismo, muito longe ja da visio museolégica ¢ antiquarista que predominava anteriormente nas bibliotecas, vai também caracterizar a acgo de Sousa Coutinho como Inspector-Geral da Real Biblioteca, assim como a sua relagio com Ribeiro dos Santos, com quem, desde cedo, estabelece uma profunda sinergia com influéncia decisiva sobre o rumo que a Biblioteca iré seguir. perfodo durante o qual Sousa Coutinho tutela a Real Biblioteca é muito breve, de Novembro de 1801 a Setembro de 1803 (Cabral 2014, 289 e segs.), mas essa vigéncia é muito frutuosa altera definitivamente 0 modus operandi da instituigao. A partir de Novembro de 1801, 03 avisos e despachos relativos a Real Biblioteca sucedem-se a um ritmo frenético, tendo alguns deles sido emitidos em resposta a sugestdes de Ribeiro dos Santos. As duas figuras estavam verdadeiramente sintonizadas. Desde o principio da sua tutela, Sousa Coutinho da sinais de que os negécios da Real Biblioteca sto para levar a sério, € Ribeiro dos Santos ndo iré descurar esta perspectiva que ele vé como uma oportunidad. As propostas feitas em Janeiro de 1802 ao Inspector-Geral e que dizem espeito a uma gestio mais légica e equilibrada das colecgées, como é o caso da alienago do duplicado da Biblia Moguntina ou de uma melhor distribuigdo dos manuscritos por outras bibliotecas respeitaveis (Cabral 2014, 326), so imediatamente aceites. Mas 0 que reportamos como mais interessante nesta troca de sugesties é a preocupacio de Sousa Coutinho relativamente a proviso de periédicos sobre cujos titulos pede informagao ao Bibliotecério-Mor. H4 averbamentos do proprio Ribeiro dos Santos deixando entrever a intromissdo do Inspector-Geral no quotidiano da Real Biblioteca. A titulo de exemplo, Ribeiro dos Santos escreveu as “AdigGes que fez 0 Exmo. Snr. D. Rodrigo de Sousa Coutinho encomenda de obras periddicas”e, noutro momento, ja um pouco cansado, insere um. apontamento onde se Ié, “no entendo a nota do lapes [sic]"s O interesse ¢ a preocupacio de Sousa Coutinho sio to genuinos com a orientacio a imprimir & Real Biblioteca que, a 30 de Dezembro de 1801, por aviso régio, ordena que “se mande vir dos reinos estrangeiros todas as obras periédicas que neles houver’.* Muito para além. da ordem de aquisigéo expressa neste Aviso, o mais assinalével é que, a partir desta data, a Real Biblioteca passa a dispor de uma anuidade para aquisicio de bibliografia, configurando um verdadeiro orgamento. Trata-se da profissionalizagio dos assuntos respeitantes & Real Biblioteca que compromete em definitive o Estado, compelido a assumir as suas responsabilidedes. Fica estabelecido um procedimento que implica uma contrapartida: para beneficio do proprio Estado, concede-se uma verba & Biblioteca na esperanca de que esta cumpra as stias obrigagdes. A partir deste Aviso de Dezembro de 1801, ¢ sobretudo a partir de Janeiro de 1803 com outros avisos do hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 ee 22709128, 19:50 'A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna 2 2s mesmo teor, sera langada toda a mecénica indispensdvel ao cumprimento de um programa, com o levantamento das existéncias e uma pesquisa bibliogréfica exaustiva, Como o passo seguinte serd, inevitavelmente, arranjar uma solucdo expedita para aquisigo dos titulos identificados, ¢ montada uma verdadeira operacio de “correspondéncia literdria” (Cabral 2014, 329-330). As listas e apontamentos abundantes nos cédices de Ribeiro dos Santos testemunham o trabalho cuidadoso € pormenorizado que era submetido a tutela. Certamente a hierarquia assim o exigia, mas, para 0 Bibliotecério-Mor, deveria constituir um prazer, j4 que Sousa Coutinho, depois dos conhecimentos e sensibilidade que aprofundara em Turim, detinha a autoridade suficiente para opinar. Em eonsequéncia deste trabalho de identificagao que prossegue na Real Biblioteca, é estabelecida uma rede de contactos com correspondentes sediados nas cortes estrangeiras, testemunhada pelos avisos de Janeiro, Margo e Abril de 1803, para aquisigao de livros. A iniciativa abortou mais tarde por corte de verbas, mas a intenco e as medidas maream a vida da instituigdo naquele perfodo. Sempre medidas em nome do interesse piblico; alias, a fronteira entre a nocio de servigo piblico ¢ o enriquecimento patrimonial da Real Biblioteca € muito ténue porque o que esta sempre presente & a eficiéneia dos servigos e a utilidade dos mesmos. ‘A correspondéncia trocada entre Sousa Coutinho e Ribeiro dos Santos prova uma grande cumplicidade dirigida para o provimento continuo da Real Biblioteca e construida na base da confianga miitua. As medidas subseritas por Sousa Coutinho valorizam o papel ¢ as fungdes da Real Biblioteca, ao mesmo tempo que estreitam as relagdes entre a Real Biblioteca e 0 poder politico, A Real Biblioteca teve a oportunidade de ganhar um novo perfil com as aquisigdes feitas, ou iniciadas, em tempo de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, entre as quais também se devem distinguir as edigdes de Bodoni ou o Monetério de Fontenelle. Para além de ter enriquecido o seu acervo, cumprindo a mis: de fundagio, a Real Biblioteca prestigiava o poder politico tornando-se um elemento fundamental na arquitectura do Estado moderno. Nestes anos iniciais, a Real Biblioteca muniu-se fortemente, tanto com os livros provenientes da Mesa Censéria, como com livros finicos e raros doados por Cenéculo, e ainda com as aquisig6es promovidas por Ribeiro dos Santos. Tanto a acumulagio de livros, como a sua organizagio ¢ a consideracdo de colecgdes exigem uma articulagao entre o reconhecimento da fungdo deste acervo bibliogréfico, destinado a ser utilizado por um eolectivo (em oposigdo ao possuidor de livros), e a compreensdo de que o valor destas coleegdes se prende directamente com a sua actualizagio — tudo assente na indispensével organizagéo, que exigira competéncias técnicas e, portanto, uma profissionalizagao. ‘Ao longo desta exposigo destacémos dois tipos de mudangas interdependentes. O que diz respeito & eoncepgao de uma biblioteca moderna ¢ funcional sustenta qualquer projecto de biblioteca publica e de biblioteca real. A aplicagio de critérios rigorosos de arrumacdo € 0 esforgo de aquisi¢fo estio subordinados ao proposito de eentralidade politica e de abertura dos acervos A consulta piiblica. Daf a importancia de nogdes como funcionalidade e utilidade, mas também actualizagao. Algumas das preocupagdes vém de tras, desde a ateng&o ao curioso ¢ ao raro, ao cuidado colocado nos instrumentos necessérios & formagdo das elites, a todos os niveis, da administragdo ao ensino, da igreja & actividade econémica. Perecbe-se que estes diversos olhares antagénicos. A raridade que o biblidfilo descobre integra-se no esforgo de conservagio geral de todos os saberes, de cumprimento da ideia de colecgao mais completa a que uma Biblioteca Real tem de corresponder. A facilidade em dispor de coleegies completas e organizadas confere & Biblioteca Real 2 possibilidade de se abrir e de corresponder as necessidades do presente, e nio apenas aos caprichos do seu piblico virtual Resulta deste esforgo um instrumento politico, que mostra a relagdo entre saber poder, com o que se torna, nfo apenas necessario, mas imprescindivel para o Estado moderno. hitps:1journals.openediton.orgicultura/3682 719 22109923, 19:50 ‘A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna Bibliografia CABRAL, Maria Luisa, 2014. A Real Biblioteca e os seus criadores, Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal CARVALHO, José Adriano de Freitas (dir.). 1998. Da memBria dos livros as bibliotecas da ‘meméria, Porto: Centro Interuniversitério de Historia da Espiritualidade, 2 vol. CENACULO, Manuel do. 1773. Faz-se indispensavel para a Biblioteca uma casa (..), 4 de Julho de 1779. BPE Céd. CKXVII 2-5, f. 312-313, Copia com nota manuserita de Cenéeulo MAIA, Manuel da. 1755. 1% Dissertagéo sobre a renovagdo da Cidade de Lisboa... 3 de Dezembro de 1755. BPE, Céd. CXIL 2-9, £1. PAGLIARINI, Niecold. 1766. Carta a Botari, Centrale, Firenze, NA 1261. POMBAL, Marqués de. 1775. Decreto 2 de Outubro de 1775. ANT, Ministério do Reino, Mesa da Comissio Geral sobre o Exame e Censura dos Livros, Livro 362. 23 de Dezembro de 1766. Biblioteca Nazionale Portugal. Leis, deeretos, ete. 17968, Alvard de fundago da Real Biblioteca Piblica da Corte, 29 de Fevereiro de 1796. Biblioteca Nacional, Arquivo Histérico, CR/o1/Cx. o1/Doc. 02. Portugal. Leis, decretos, ete. 1796b. [Nomeagdo para Director da RBPC), 4 Margo 3796. Biblioteca Nacional, Arquivo Histérico, CR/03/Cx 01/Doc. 01 Real Mesa Censéria, Parecer Sobre o Estabelecimento dos Estudos Menores, 3 de Agosto de 172. ANTT, Ministério do Reino, Real Mesa Cens6ria, Livro 362. SANTOS, Anténio Ribeiro dos. 1795. Relat6rio sobre o Estado da Biblioteca da Real Mesa Censéria, § de Janeiro de 1795. Biblioteca Nacional, Arquivo Hist6rico, DGA/o4/LIV. 01, f. 2-8. Notas 1 Todos na Biblioteca Nacional de Portugal com as cotas BNP COD. 4583 a 4732. 2 BNP COD. 4631, 317-319. 3 BNP COD. 4615, 146. 4 AHBN CR/03/Cx. 01/Doe. 02. Para citar este artigo Referéncia do documento impresso ‘JoB0 Luis Lisboa e Maria Luisa Cabral, «A Real Biblioteca Pilblica da Corte ¢ o Estado Modernon, Cultura, vol. 36 | 2017, 91-101 Referéncia eletrénica Joao Luis Lisboa e Maria Luisa Cabral, «A Real Biblioteca Piblica da Corte @ o Estado Moderno, Cultura [Online], vol. 6 | 2017, posto online no dia 10 setembro 2019, consultado 0 22 margo 2023. URL: http:jourmals.openedition.org/cultura/3682; DOI: hitps:lidoi.org/10.4000/cultura.3682 Autores Joao Luis Lisboa CHAM e DF, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Portugal. lisboa,jI@gmail.com Professor no Departamento de Filosofia da NOVA FCSH e investigador do CHAM — Centro de Humanidades (NOVA FCSH e UAc), onde coordena o grupo “Leitura e formas da escrta" e uma linha de investigagao sobre “Teoria e metodologia’ Professor at the Department of Philosophy of NOVA FCSH and is a researcher at CHAM — Centre for the Humanities (NOVA FCSH and UAc), where he coordinates the group "Reading and the forms of writing” and the research line on "Theory and methodology” Artigas do mesmo autor As formas da Histéria das Idelas [Texto integral (homenagem a José Esteves Pereira) Publicado em Cultura va. 36 | 2017 hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 ae 22709128, 19:50 'A Real Biblioteca Publica da Corte @ 0 Estado Moderna Manual de Edicdo das Gazetas Manuscritas da Biblioteca Publica de Evora [Texto integral] Eadition handbook of «Gazotas Manuscritas» Publicado em Cultura val. 21 | 2005 Vor @ ler [Texto integral Publicado em Cultura val. 21 | 2005 Uma, duas, quantas edig&es? [Texto integral Os argumentos sobre a contrafaccao de Os Lusiadas no século XVI One, two, how many editions? The arguments about the counterfeiting of Os Lusfadas, in the 16th century Publicado em Cultura, ol 33 |2014 Iconografia do livro impresso (Texto integral] impressores e papeleiros, algumas questées Publicado em Custura, ol. 33 | 2014 Ahiistéria das ideias politicas em contexto (em homenagem a Zilia Osério de Castro) Texto integral] Publicado em Custura, Vol 2212006 Todos os textos. Maria Luisa Cabral CHAM, FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Portugal. e-mail: cabral1946@gmail.com Foi bibliotecdria na Biblioteca Nacional de 1985 até 2011, data da sua aposentagdo, tendo ddesempenhado as fungdes de subdirectora (tesponsdvel pela ctiago da PORBASE) e directora do Servigos (responsdvel pola criagdo do Programa de Preservagdo e Conservacao). Entre 1984 © 2011, leccionou sucessivamente nas Universidades de Lisboa, Evora ¢ Porto e na Universidade Nova, Lisboa. E detentora de um MA in Library Management (Leeds Polytechnic, UK, 1983), le um mestrado em Patriménio (Universidade Nova, Lisboa, 2009) e de um doutoramento om Histéria Modema (Universidade Nova, Lisboa, 2013). Tom publicados alguns livros ¢ artigos sobre biblioteconomia e a hstéra da Real Biblioteca Publica da Corte Librarian at the National Library, from 1985 to 2011, Deputy Director (responsible for the creation of PORBASE), and Head of Department (responsible for the Preservation and Conservation Programme). Between 1984 and 2011 successively lectured at Universidade Classica de Lisboa, Universidade de Evora, Universidade do Porto and Universidade Nova, Lisboa. MA in Library ‘Management (Leeds Polytechnic, UK, 1983), MA in Cultural Heritage (Universidade Nova, Lisboa, 2009), PhD Modem History (Universidade Nova, Lisboa, 2013), A few books, and several articles published both on librarianship issues, and the history of the Public Royal Library Artigos do mesmo autor Os cédices de Ribeiro dos Santos (Texto integral Uma leitura atenta Publicado em Cultura, va. 36 |2017 Uma jornada de Lisboa a Roma [Texto integral] leitura ¢ interpretagao de um manuscrito setecentista Ajoumey trom Lisbon to Rome: reading and interpretation of a eighteenth century manuscript Publicado em Cultura, ol 28 | 2011 Direitos de autor Creative Commons - Atribuigdo 4.0 Internacional - CC BY 4.0 https:licreativecommons.orgllicenses/by/4.O/ hitps:1journals.openedition.orgicultura/3682 99

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