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TEATRALIDADE DO HUMANO seg sca ocowesto ene enn sad de So Palo Presidente do Conse Regional ABRAM SZAJMAN Diretor Regional DDANILO SANTOS DE MIRANDA Superintendents Comunicaca Socal IVAN GIANNINI ‘TéeticoSoval JOEL NAIMAVER PADULA ‘Administracao LUIZ DEOCLECTO MASSARO GALINA Assessoria Técnica e de Planejamento SERGIO JOSE BATTISTELLI edigses: Gerente MARCOS LEPISCOPO ‘Adjunto EVELIM LUCIA MORAES Coordenecdo EitorialCLIVIA RAMIRO Preduc3o Editorial JULIANA GARDIM, ANA CRISTINA F.PINHO Colaboradores desta ediczo MARTA COLABONE. MAGNOLIA MARIA DE ARAUJO, CRISTIANNE LAMEIRINHA Curadoria/Coordenagao ANA LUCIA PARDO Consultoria Técnica STANLEY WHIBBE Consultoria Juridica ERIC DUTT-ROSS. Consultoria Tedvica JOSE DA COSTA e ELIANE PARDO ‘Transrigio SHANA KANAFANT HASSAN e MICHELLE BRONSTEIN Preparaczo MIRO EDITORIAL e ROSANE ALBERT Revsao MARGARET PRESSER, JOSE MUNIZ J. Capa e Projeto Grifico LULA RICAROI.. XYZéesign Assistencia de Arte PHILIPE MARKS e MICHELLE RAMIRO Fotos de CLAUDIA RIBEIRO, exceto paginas 6 7,304 e364, ROBSON MOREIRA; péinas 64 e 65, THAIS STOKLOS; pdgina 161, GUTO MUNIZ; paginas 163 e164, CLAUDIA CALABL pagina 165, NELSON KAO; paninas 166 e 167, JOSE INACIO PARENTE; pagina 168, MARIA ELISA FRANCO; paginas 451 e 453, LEONARDO VIDELA; pagina 454, FELIPE BARBOSA, pina 391, ARTHUR OMAR: pagina 39, LWCAS BANBOZZI pagina 449, ANDRE PARENTE e KATIA MACIEL Copyright © 2011 Etigbes SESC SP Partcipagzo de Augusto Boal GInstituta Augusto Boal, Publicada mediante autorizag3o, Todos 0s direitos reservados. SESC Sao Paulo Esihes SESC SP ‘nv. Alvaro Ramos, 91. (0333-000 Sia Paulo SP Tel: 5511 2607-8000 edicoesedioessesesporgbr warn sescsporgr ee eat F882 —_Ateatralidade do humane /organizagao de Ana Licia Pardo. Séo Paulo: Edigbes SESC SP, 2011,— 482 pI fotografias Referencias Bibliogréticas 1S8N978.85-7995-010.0 A.Teatro, 2 Teatralidade |. Titulo, Il Pardo, Ana Locia con 92 ee 17 Essencialidade e Representagao Danilo Santos de Miranda 21 0 Humano faz Morada no Teatro do 0i Futuro Maria Arlete Goncalves 26 Abertura do Painel Gilberto Git 28 Prefacio: A Pajelanga da Teatralidade 4. Guinsburg e Rosangela Patriota 36 Prologo: Questdes do Humano para Além do Espetaculo Ana Licia Pardo Capitulo 1 0 PODER DO TEATRO E AS TATICAS DE RESISTENCIA 58 Introducdo MESA-REDONDA 68 0 PODER DO TEATRO E AS TATICAS DE RESISTENCIA Participacdo: Kaka Werd e Zé Celso Martinez Corréa Mediac30: Ana Licia Pardo ENTREVISTAS 78 Denise Stokios: CADA UM AQUI ESTA TRANSFORMANDO O MUNDO 81 Joel Rufino: REFLEXOES SOBRE TEATRO E TEATRALIDADE REFLEXOES 90 A NUDEZ DE NOSSA ESSENCIA, por Kaké Werd 91 0 TEATRO COMO INSTRUMENTO DE LIBERDADE, por Alessandra Vannucci 93 QUANDO A VIDA € TEATRALIZACAO, por Julio Adriao 0 Capitulo 2 PROVOCAGOES DA VIDA E DA ARTE 96 Introdugao MESAS-REDONDAS. 106 PROVOCACOES DA VIDA EDA ARTE Partcipago: Célio Turina, Sérgio Bianchi e Antonio Abujamra, MediagSo: Cleise Campos 109 AGENCIAMENTOS E PROVOCACOES: UM DEBATE Partcipagao: Alexandre Dacosta, Edson Barrus, José Da Costa e Ricardo Basbaum Mediacao: José Da Costa e Tato Teixeira 124 136 40 150 156 170 176 190 192 196 202 208 224 234 ENTREVISTAS Célio Turino: TEATRALIDADES Sérgio Bianchi: CONTRADIGOES ENSATOS BIOPOLITICA E TEATRO CONTEMPORANEO, José Da Costa PROVOCANDO AGENCIAMENTOS: RELATO DE UMA NOITE, Tato Teixeira Capitulo 3 O ARTISTA, A CIDADE E A RUA Introducdo MESAS-REDONDAS. O ARTISTA, A CIDADE E A RUA Participagao: Amir Haddad e Adair Rocha Mediagao: Gloria Ferreira TEATRALIDADE E TERRITORIALIDADE Participagdo: Paola Berenstein Jacques, Anténio Araujo eSidnei Cruz Mediacao: Marcia Ferran ENTREVISTAS ‘Amir Haddad: A RUA PARA EU SER QUEM SOU. Gléria Ferreira: ESPECTADOR E 0 PUBLICO ENSAIOS 0 ATOR, A CIDADE E A RUA, Adair Rocha ERRANCIAS URBANAS, Paola Berenstein Jacques TEATRALIDADE E ESPAGO URBANO: INCURSOES A RESPEITO DO HUMANO E SUA ESTETICAS INFAMES, Eliane Pardo & Augusto Amaral Capitulo 4 AS NOVAS SUBJETIVIDADES E A CRIAGAO COLETIVA Introdugao MESAS-REDONDAS AS NOVAS SUBJETIVIDADES E A CRIAGAO COLETIVA Participago: Augusto Boal, Suely Rolnik e Carmem Luz Mediacao: Geo Britto 248 252 255 258 259 261 263 264 274 285 300 310 316 318 322 323 326 330 335 349 (0 PROCESO DE CRIAGAO £ AS SUBJETIVIDADES Participacao: JoBo Falcdo, Peter Pal Pelbart e Cleusa Helena Castell Mediac3o: Antonio Grassi ENTREVISTAS Cleusa Helena Castell: RECRIANDO 0 IMAGINARIO SOCIAL A PARTIR DAS METAFORAS 00 COTIDIANO Peter Pal Pelbart: 0 TEATRO POR UM TRIZ REFLEXOES ‘A NECESSIDADE DE REFLETIR SOBRE A PROPRIA EXISTENCIA, por Joao Falcao A INVASAO FRATERNA DOS ESPAGOS PUBLICOS, por Carmem Luz A INVULNERABILIDADE AO OUTRO € POR SI MESMA MUITO GRAVE, por Suely Rolnik A SENSAGAO DE ESTAR NUM TRAPEZIO SEM REDE, por Antonio Grassi A INTERFACE ENTRE VIDAS PRECARIAS E PRATICAS ESTETICAS, por Peter Pal Pelbart ENSAIOS METAFORIZANDO A LUTA NA TERRA: A MEDIAGAO DO TEATRO-FORUM COMO FERRAMENTA METODOLOGICA NAS PERFORMANCES DOS AGRICULTORES FAMILIARES DE R1O GRANDE, Cleusa Helena Castell GEOPOLITICA DA CAFETINAGEM, Suely Rolnik Capitulo 5 TEATRALIDADES PARA ALEM DO HUMANO Introdugdo MESA-REDONDA TEATRALIDADES PARA ALEM DO HUMANO Participagao: Antonio Januzelle Fatima Saadi Mediacao: Maria Helena Kuhner ENTREVISTAS Fétima Sadi: PRECISAMOS DE MAIS INSTRUMENTOS PARA PENSAR 0 MUNDO Maria Helena Kuhner: TEATRO € TRANSGRESSAO € CONSCIENCIA REFLEXOES TEATRO TEM QUE CAVOUCAR A PELE DO ESPECTADOR, por Henrique Schafer ANTONIN ARTAUD: UM APRENDIZADO SINGULAR, por Samir Murad O LABORATORIO DRAMATICO DO ATOR, por Antonio Januzelli ENSAIOS A TEATRALIDADE, Fatima Saadi A ILIADA, DE ANATOLI VASSILIEV: LITURGIA E TEATRALIDADE, Maria Thais SARAH KANE OU 0 INUMANO DO HUMANO, Daniel Lins Capitulo 6 ARTE E IMAGEM 358 Introdugao MESAS-REDONDAS 372 IMAGENS COMO FORMA DE EXPRESSAO Participacao: Hermano Vianna, Heloisa Buarque de Holland, Evaldo Mocarzel e Marcos Prado Mediagao: Sérgio $4 Leitdo 382. AS ARTES VISUAIS E A TEATRALIDADE: NOVOS CAMINHOS DE CRIAGAO Participagao: Vera Holtz, André Parente, Ivana Bentes e Claudio da Costa Mediagio: Xico Chaves ENTREVISTA 404 Cléudio da Costa: IMAGEM € TEATRALIDADE REFLEXOES 408 JARDIM GRAMACHO E ESTAMIRA, A TEATRALIDADE DO COTIDIANO, por Marcos Prado 412. AUTORIA: QUESTAO-CHAVE PARA COMPREENDER 0 SECULO XX, porHeloisa Buarque de Hollanda 419 0 DESAFIO DE DESNUDAR 0 PERSONAGEM SOCIAL DO DOCUMENTARIO, por Evaldo Mocarzel 421 SOMOS COMO UMA CEBOLA QUE VAI DESCASCANDO MUITOS BASTIDORES, por Hermano Vianna 423 A ATITUDE E 0 COMPORTAMENTO COMO FORMA DE RUPTURA, por Anéré Parente 424 A ARTE COMO INSTRUMENTO DE CONSCIENTIZAGAO, por Xico Chaves 425 A TEATRALIDADE NAO DEPENDE DE ENREDO, por Fernando Guimaraes e Vera Holtz 426 ESTETICAS DA COMUNICAGAO E CAPITALISMO COGNITIVO: ASPECTOS BIOPOLITICOS DA PRODUGAO DE IMAGENS, porivana Bentes ENSAIOS 438 0 DECLINIO DA AUTORIA NA WEB & NAS ARTES, Heloisa Buarque de Hollands 443 ENTRE MARGENS: 0 ESPECTADOR EM TRANSITO, André Parente 450 A CONCORDANCIA DE PROCESSOS NO CAMPO DAS ARTES, DA FOTOGRAFIA E DO PENSAMENTO, Claudio da Costa 455. VIVER COM AS IMAGENS, Ivana Bentes 464 Sobre os autores 480 Agradecimentos Capitulo Ps PROVOCACOES Naa) E DA ART Alexandre Dacosta Anténio Abujamra Célio Turino Cleise Campos Edson Barrus José Da Costa Ricardo Basbaum Sérgio Bianchi Tato Teixeira Ha muitas formas de expressar o sentimento, a inquietac&o, a angdstia, horror, a poesia, 2 injustiga, a inconformidade com o que se apresenta, parece imutavel e intransponivel. Algumas for- mas, aos olhos de alguns, parecero (e talvez sejam mesmo) mais radicais e ousadas, outras nem tanto. 0 fato é que, de diversos modos, provocamos e somos provocados, somos instigados a alhar diferente, a mudar nosso Angulo de vis&o, nossa postura, ver de forma invertida, pelo avesso, na contramao, ver além, nas entrelinhas, nos entrelugares, nos intervalos, no siléncio daquilo que nao foi dito. E algo que subjaz, que se interpde, se insurge, contrasta, incomoda, desestabiliza, reage e modifica o estado e a temperatura do corpo e da alma, Hé um risco iminente que pulsa no instante em que a inquietacao se transforma em ato. 0 risco do imponderavel, do desconhecido, de interromper um fluxo para dar inicio a outro, o risco do vazio e da incerteza, de uma queda livre sem rede, de cair no abismo e no naufrégio dos mares revoltosos de quem ousou se langar, como, alids, ocorre na letra da cancao Cais, de Milton Nascimento, que inventa um cais para se langar: ol Qu, como ocorre com aquele pescador do conto “A terceira margem do rio’, de Guimaraes Rosa, que um dia se despede da familia para viver o resto dos dias numa canoa: ‘Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalgou 0 chapéue decidiu um adeus para a gente, [Nem falou outras palavras, ndo pegou matulae trouxa, ndo fez nenhuma recomendacao [..]Nosso pai entrouna canoae desamarrou, pelo remar, € a canoa saiu-seindo—asom- bra dela porigual,feito um jacaré, comprida longa. Nosso paindo voltou. Ele nd tinha ido anenhuma parte. Sé executava a invengdo de se permanecer naqueles espagos do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela nao saltar, nunca mais. Aestranheza desso verdade deu para estorrecer de todo a gente. Aquilo que nao havio, acontecia,* Essa inquietagao interna que provoca uma mudanga de rumo néo se explica, 0 risco do inesperado esta presente na vida, ainda que se tente definir, projetar o futuro, e se prefira parar o tempo, con- ¢gelar os bons momentos e viver no aconchego e numa paz duradoura, * Joo Guimardes Rose. “Primeiras esti”: Pore gostr dele, ol 10, Contes, Sto Paulo: fic, 1986, p74 7 PROVOCAGDES DA VIDA E DA ARTE J INTRODUCKO 2 Ele, o1isco, também faz parte de todo atode criagdo, esté tantono processo de trabalho queo geroy como nas condigdes de vida do artesao, do artista, do pensador ou do trabalhador que o criou. Esta no calafrio que sente o equilibrista sempre que anda na corda bamba; no trapezista que se lana dg alto da lona; nas pernas de pau de um circense que ameaga cair; no engolidor de fogo, no trabalho do ator, do palhago, na intervengao, na performance, no primeiro trago a ser feito na tela, no passo ‘em falso de um bailarino. 0 risco que esta impregnado no primeiro impeto de propor um novo cami: nho na arte e nao ser aceito e compreendido. Como, aliés, ocorreu com muitos grandes artistas @ pensadores que morreram no isolamento e ostracismo quando, na verdade, estavam criando uma nova linguagem e provocando uma ruptura no pensamento de uma época. 0 risco de nao saber onde vai dar todo 0 esforgo empreendido em sua obrae, sobretudo, orisco diario de vivere de sobre. viver de seu oficio. Por isso, novas e potentes armas de aprisionamento das mentes e corpos sio criadas para abafar, bloquear, disciplinar ou controlar esses impulsos, na vida ou na ant. arte engajada da década de 1960, a contracultura e os artistas marginais, que andavam na dire. ¢40 contraria, parecem agora ‘aceitos” pelo mercado da arte. Hé aqueles que dizem que estamos perdendo 0 exercicio da critica, da polémica, da ousadia, da provocagao, da vaia, da rebeldia e da manifestagao politica Na tentativa de trazer essas questées para o debate é que discutimos a vida, a arte, a cultura, a po Iitica no mundo contemporaneo, dentro deste chamado capitalism cognitivo, cujas forcas esto entradas na informacao e no potencial de criagao. Ao trazer para o debate o tema "Provocagdes da vida e da arte’, a ideia é refletir sobre as angéstias e inquietacdes ou a auséncia delas na atualidade. 0 ator e diretor Anténio Abujamra assume o per. sonagem "o provocador’, em seu espetaculo A voz do provacador encenado no painel A Teatralidade do Humano e também no seu programa Provocagées, veiculado na TV Cultura, Sentado atrés de uma mesa ounas imagens exibidas no palco, Abu declama poesia, fala de teatro e provoca a plateia a pensar sobre a vida, aarte, 0 teatro, a cidade, a cultura, a condig&io humana. 0 documentarista Sérgio Bianchi participa também de forma contundente da discussie e exibe we: cchos de seu polémico filme Quanto vale ou € por quilo?, onde procura mostrar contradicdes, assim como em seu filme anterior, Cronicamente invidvel, sobre as questées sociais, étnicas, culturais. sociélogo e ex-secretario de Cidadania Cultural do Ministério da Cultura, Célio Turina, numa diregao contréria, faz um relato das teatralidades que observou e com as quais conviveu em sua trajetéria de experiéncia vivida com os Pontos de Cultura espalhados pelo pais, dentro do Programa Cultura Viva Nao se pode dizer, entao, que nossa mesa de debate nao tenha sido provocadora, pois Abujamra, Bian- chie Célio Turino, mediados pela atriz e bonequeira, e nao menos provocadora, Cleise Campos, foram enféticos, incisivos e questionadores, inclusive entre sie com a coordenacao do painel. Assim, cada ‘um deles, & sua maneira, foi itima poténcia na ideta de provocar e exigir de todos n6s uma reacdo. Com a proposta de levar o tema para outros caminhos, 0 professor e diretor de teatro José Da Costa e o ator e performer Tato Teixeira conduziram e coordenaram uma noite de misturas de linguagens, de falas e intervengdes de teatro, citco e artes visuais, daquilo que chamaram de “Agenciamentos e pro- vocacdes”. Esses dois provocadores deflagraram um grande processo que se iniciou muito antes do dia marcado para o debate, a0 evar a ideia de teatralidade para o grupo de artistas visuais na internet, ‘ocasionando comentarios e opinides divergentes sobre o tema. Eles trabalharam fundamentalmente ‘com 0 conceito de trabalho em proceso — do momento que antecede a ago na hora marcada e que porisso mesmo jé esté em ago, a esta em acontecimento, ja se expressa e revela, Isso tomou conta de todos os espacos do Centro Cultural Oi Futuro e do teatro, que era o lugar marcado para oencontro. Na entrada do Centro Cultural, o piiblico se deparava com uma performance, nas escadas, interven- gBesno café, noterraco.e dentro do teatro, enquanto.acontecia o debate na mesa, ouseja, estavamos a0 mesmo tempo absorvidos pelas diversas linguagens artisticas e de pensamento. Houve nessa noite uma juncao de experiéncias provocadoras realizadas nos anos 1980 e asinter- vengées atuais de artistas visuais, atores e circenses, como 0 trabalho do ator e circense Joao Ar- tigos, que apresentou uma cena de seu personagem do monélogo Homem-bomba, e dos numeros circenses apresentados pela atriz e palhaca Shirley Britto — 0s dois do grupo Teatro de Anénimo. 0 personagem de Joao Artigos ¢ um palhaco que esté contratado para animar uma festa infantile que nos mostra o desafio da vida de um palhaco e de sua luta para encantare reverter a apatia ea crue!- dade de criancas pertencentes a uma classe que exerce poder e dominio sobre todas as coisas, para 2 qual até mesmo um artista contratado passa a ser um produto a ser consumido e devorado pela gula e pela ganancia daquilo que nunca se satisfaz. Em seu programa Provocades, Abujamra falou do painel A Teatralidade do Humano, exibiu imagens das teatralidades e perguntou em seu bate-bola final se eu preferia 0 caos ou a ordem. Respond: 0 ca0s. Ainda que os herdise rebeldes tenham ficado no pasado, que uma aparente apatia estejanoar; ainda que haja talvez, um encolhimento e ocupagao do espaco piblico nas manifestagoes polticas, fe que alguns se fechem em tribos eilhas, sempre havers brechas a serem abertas por alguns, talvez poucos, undo, incomodados cam aquela aparente paz eardem que Iso provocare nos fazer perce: ber que & preciso ampliar oolhar para além daquilo que se apresentae esténa superficie. E quando esses poucos (oumuitos)gritarem, certamente de outro canto surgiréo0s que se achavam sazinhos na sua inquietacio. Daf talvez possa surgir uma transformagao maior de uma construgao coletiva, na vida, na arte, na cultura, na politica, na vila, no bairo,na cidade, no terrtério,no pals, no mundo, Aproposta deste painel e deste ive é aproximar alguns desses indviduose coletivos que em fe rentes posigdes e lugares esto provocando alguna mudanga 99 ST ne een AMELIA|SAMPAIO na performance Vicios Possiveis MESAS-REDONDAS PROVOCACOES DA VIDA E DA ARTE Célio Turino, Sérgio Bianchi e Anténio Abujamra Cleise Campos AGENCIAMENTOS E PROVOCACOES: UM DEBATE Alexandre Dacosta, Edson Barrus, José Da Costa e Ricardo Basbaum José Da Costa e Tato Teixeira AGDES DA VIDA EDA ARTE J MESAS-R Provo 2 PROVOCAGOES DA VIDA E DA ARTE Célio Turino, Sérgio Bianchi e Anténio Abujamra Sérgio Bianchi — Apés ler a programagao deste seminério, fiz uma lista de possiveis trechos do fil- ‘me?, mas confesso que nao sei o que quer dizer provacagao no meu filme. Para dizer mais, no sei se meus filmes tém provocagdes; hé neles “contradi¢des", e 0 meu prazer é pegar uma situacaoe colocar dela 0s varios lados. Antonio Abujamra — Eles acham que vocé provoca porque eles ndo sabem que voce provocado e reage, nao é isso? Rosane Santiago, da plateia — Eu acho que o mais interessante é como vocé chega a esses assuntos que as pessoas consideram provocacies. Pode explicar? ‘Sérgio Bianchi — Passeando pelo Brasil. A provocacao é dbvia, de um dbvio absoluto. € sé andar na ruae vera cor do brasileiro e ignorar as discussdes bizantinas, Rosane Santiago — Mas como chega a esses temas que vocé aborda, como o racismo? Por qué? Qual o seu interesse nisso? Cleise Campos — Dentro dessa légica que a Rosane esta levantando, na verdade, quando voce coloca isso paraa tela e apresenta, voce esté provocando ouesté trazendo mais uma contradi¢a0 brasileira? ‘Sérgio Bianchi - Acho que eu estou trazendo varias contradiges e indagacdes; é como um mora: lismo as avessas. Eu nao gosto de certas situagées cruéis brasileiras de colocar varios sentidos da prioridade. Eu senti vontade de tratar desse assunto ~ é mais da teatralidade, no sentido de haver um distanciamento — de nao ser nenhum realista, uma coisa que se faz muito; diz-se a coisa mais pela contradico, pelo esforco excessivo ou pelo cliché. A pessoa passa a representar uma ideia, uma forma de mexer melhor com 0 espectador, e nao simplesmente envolvé-lo numa linearidade tradicional, Eu gosto mais das coisas que me deixam intrigado, Por isso eu nao entendo bem a pa lavra provocagao, * Quanto vale ou é por quilo?, de Sérgio Bianchi Ana Licia Pardo, da plateia - Provocagao, como nés idealizamos, ¢ sempre a provocacao para um debate, ¢ provocar reflexdo, inquietaco, contradica0; provocar um olhar diferenciado para olhar as contradigdes ou colocar uma luz sobre algum tema. Provocar é inquietar alguém, é poder indignar- -se com algo. Penso que a arte faz esse processo. Ou nao! ‘Sérgio Bianchi —A arte faz esse processo, 3s vezes sim, 3s vezes nao. Euacho que o trabalho muitas vvezes coloca as contradicdes e as acirra, até mostra esse acirramento, essa coisa caética que pode sera divis3o de classes, das posturas, dos clichés. Eu acho que aqui estao trés ou quatro provo- cadores em areas diferentes, em campos de trabalho diferentes. 0 Célio Turino também, que est aqui, fala sobre ante e cultura: tem um trabalho que mostra essas doencas, essas contradicdes. (Lembrei-me de uma coisa quando eu vinha para cé; numa pega hd o coro que cantava “Primeiro vem a comida, s6 depois vem a moral e depois vem a briga’, nao é isso?) Antonio Abujamra — Vejo aqui uma volta & década de 1960, quando a gente falava sobre esas discusses. Isso é antigo, é uma coisa bem cansativa. Sabe, ocorre que voce anda na rua, pega um. onibus e se pergunta: 0 que esta a frente do dnibus? Que tecido é esse que tem a camisa? Tudo é uma provocaco! Porém essa palavrajé esta gasta, machucada. De repente vocé pega uma pessoa, ela entranna ala de psiquiatria e diz assim: "Eu sou Che Guevara’, isso é louco! “Eu sou Jesus Cristo”, isso é louco! “Eu sou Nossa Senhora", isso é louco! E entao vem uma senhora serenae diz: “Eu quero ‘seruma dona de casa maravilhosa, eu preciso ser uma dona de casa maravilhosa”.Ela se torna uma dona de casa maravilhosa; ai ela contrata uma empregada, pega a facae mata a empregada... Isso 6 provocagao? Sei la. Para falar a verdade, eu no estou entendendo o que vocé quer falar sobre sua produsao, Sérgio. Vocé faz seu trabalho, da liberdade para falarem 0 que quiserem, da liberdade — isso € que é o ne- g6cio. Eu fracassei em mais de cem pegas de teatro, jé fui vaiado, fui proibido, machucado, af eu ‘acho que a decadéncia chegou e eu nao tenho errado mais. E nao estou entendendo o que querem falar sobre voc®. Por exemplo, eu dirigi uma peca, Hamlet, 56 com negros — vacé nao imagina o que foi trabalhar com negros, uma coisa absolutamente fantastica para eu descobrir, por exemplo, as coisas “brancas”. Eu dizia “0! crioulo!", e ouvia de volta: “Nao me chame de crioulo!" “Como é que vocé quer que eu te chame?" “Me chame de preto!” “Nao! Preto, nao! me chame de negro.” *Nao! Negro, nao!” no impasse, fui buscar uma professora negra, nao adiantou, todo mundo brigava com todo mundo. Havia naquele caso uma vontade de discussao que eu acho absolutamente desneces- séria, Eu penso que tudo é racismo: se eu chamo alguém de crioulo, essa pessoa devia saber que eu no sou racista, devia perceber. Agora, Se eu for racista, mesmo que nao chame alguém de ne- {70, esse alguém também vai perceber. Eu queria entender de que esto falando aqui, como estao provocando vocé. 107 108 PROVOCAGOES DA VIDA E DA ARTE / MESAS-REDONDAS 2 Cleise Campos — A partir do trabalho do Sérgio Bianchi, a ideia é que a gente estabeleca o grau da “provocagao" que a arte tem na nossa vida Antonio Abujama - Ora, o Bianchi andar na ruajé 6 uma provocagao. Lembro que o Bianchi me diigiu num filme no qual eu dizia s6 0 seguinte ~"Saia daf!"— e empurrava a atriz Zezé Motta, Muito bem, os, diretores de cinema me levam & loucura, porque eles ficam vendo a luz, a grama. E eu tive de repetir tumas dezoito vezes a cena. E eu sé tinha ido fazer o filme porque era numa cidade chamada Lapinha, lé no Parané, e eu queria conhecer o lugar onde poloneses fizeram um teatro elisabetano; uma cidade fantasticamente doida, onde a prioridade € o suicidio. Ora, isso € que é provocacao, ‘Sérgio Bianchi — Pois é... Enquanto estive la, soube de trés suicidios. Ana Liicia Pardo — Abujamra, num dos poemas apresentados no seu espetaculo 0 provocador, a que acabamos de assistir, vocé disse: ‘Corra orisco!” pois entdo, estamos todos correndo o risco, inciu- sive quanto ao resultado do ciclo da teatralidade. Isso porque nao queremos andar no conhecido, na linearidade de que lembrou o Bianchi Na diregao contréria das fragmentagdes e segmentacdes da atualidade, nos interessa neste mo: mento aproximar esses saberes diferenciados, nos campos linguagens diversas do cinema, do teatro etc. E queremos debater nao nun modelo de debate engessado, mas de forma livre. Nés j vivemos arte engajada, ja vivernos momentos politicos revolucionérios; hoje, queremos discutir a contemporaneidade e, dentro dela, o que é inquietante, o que provoca contradi¢des. Plateia — Bianchi, como é escolher atores negros para seu filme? 0 que vocé acha da tal “estética da pobreza"? Sérgio Bianchi — Quanto a pobreza, hé estéticas e estéticas. Hd 0 Cidade de Deus, que é a estética glamorizada para vender emogées baixas. Hé outros filmes que s6 colocam contradicBes, que ge- ram a miséria, que fabulam em cima dela. E, quanto a escolha de atores, essa coisa de negro, bran- 0, japonés, isso nao me incomoda. E eu escolho meu elenco simplesmente pelo critério de serem bons atores. Os personagens nao eram negros nem brancos, eram personagens com as almas, ¢ que eu escolhi por serem bons atores; entao, havia negros, brancos, tinha de tudo. Anténio Abujamra—Queria dizer, a par de tudo o que esta sendo dito, que o achismo é muito triste, temos de ter consciéncia, tems de saber das coisas; n3o devernos ter medo de errar, devemos falar exatamente o que pensamos, seno o que vai acontecer? Nao se deve pensar por equivocos, Por exemplo: alguém entra para atuar e sente que vai ser feliz apenas no palco, isso porque sente que na vida real nao d4, na vida é causa perdida. Ora, isso nao é para essa pessoa! Primeiro tem que ver o que é ser artista e analisar o que é essa palavra cultura. AGENCIAMENTOS E PROVOCACOES: UM DEBATE Alexandre Dacosta, Edson Barrus, José Da Costa e Ricardo Basbaum José Da Costa — 0 projeto de operar artisticamente nas fronteiras de campos expressivos distintos, de fazer a mistura de meios e a indeterminagao dos limites de territorios especificos, é algo ainda inguietante, mesmo sendo nuclear na experiéncia artistica contemporanea. Num momento como © de hoje, em que estou reunido a pessoas ligadas a outros meios expressivos que nao 0 teatro, me sinto bastante tenso em relago a0 meu propésito de refletir um pouco sobre a nogao de tea- tralidade. Ha pouco tempo, esteve aqui no Rio de Janeiro uma professora francesa, uma pesq dora com muitos livros publicados sobre teatro moderno e contemporaneo. Refiro-me a Béatrice Picon-Vallin. Ela veio dar um curso a partir de uma iniciativa compartihada pela Fundagao Casa de Rui Barbosa e pela Unirio. Picon-Vallin se interessa, entre outros aspectos, por estudar e discutir 0 teatro que se utiliza intensamente de novas tecnologias no contexto atual, Mas ainda que, em seus textos, a ensaista considere que a imagem projetada em cena.cia circunstancias muito novas para as artes cénicas do presente e problematiza tanto 0 trabalho do ator, 0s desafios que ele enfrenta, como a nog de presenga cénica, a pesquisadora parece imaginar também que é legitimo conce- bermos uma especificidade do teatro como campo determinado. Ela parte do pressuposto de que ha certos tracos de singularizago da arte teatral como meio expressivo que é preciso encontrar (ou que se pode, de fato, detectar), em certo niimero e em certo grau, nas manifestagoes cénicas particulares para que as consideremos teatro. Mas seré isso verdade, e até que ponto? Afinal, o que o teatro e, mais particularmente, o que é a teatralidade, se a concebemos como niicleo conceitual do teatro? Sinto-me fragil aqui para en- frentar essa questao e para reconhecer que 0 teatro em si nao é constituido por nenhuma natu- reza particular, por nenhuma substancia definida. Apesar da inquietagao que possa gerar, intuo que esse reconhecimento seja hoje absolutamente necessério. E claro que a teatralidade aponta para muitas coisas e, entre elas, para as manifestacdes teatrais mais tradicionais. Porém, o con- ceito de teatralidade, a consciéncia da teatralidade, surge historicamente como um entendimento 109 110 DA ARTE / MESAS-REDONDAS PROVOCAGOES DA VIDA E 2 que leva & ruptura com a tradicao representacional do teatro, a ruptura com o drama como for. ma de representagao, no final do século XIX. A consciéncia do teatral leva 0 teatro a rejeico das praticas representativas tradicionais, como as do telao pintado, do recurso da perspectiva e da ily 30 de dtica. Ateatralidade, conforme o entendimento que se produz na virada do século XIX para 9 XKe nas primeiras décadas desse tltimo, é pertinente a composi¢ao cénica feita a partir daluz, dos volumes e do seu movimento no espaco. Eessa interacao dos materiais que Gordon Craig propde como pertinentes ao campo especificamente teatral, Quando Artaud propde o palco em circulo ou anel cercando os espectadores, ele pretende atin. girquase que fisicamente 0 observador, aspira a um agenciamento de forcas e energias, e ndoa uma representacao da realidade, fundada no repertério cultural familiar e na lgica narrativa tradicional Tanto em Craig como em Artaud, a nogao de teatralidade gera uma crise no teatro entendido como representac3o. A associagao com uma ruptura em relagdo as fungdes tradicionais de representarao mimética da realidade também aparece na histéria do conceito de literariedade na literatura. Mas a teatralidade no promoveu uma concep¢ao teatral to radical e to amplamente formal e estrutural quanto ocorreu com a concepgao do literério aberto pela consciéncia da lterariedade ou do pictérica na pintura, Além de enfatizar a dimensao estrutural da prépria cena, a teatralidade se afirma também ‘como interagao, como proposta de jogo e de relac3o com o espectador. Nao me parece que 3 tea- tralidade esteja to umbilicalmente ligada ao percurso conceitual constituido pelo formalismo e pelo estruturalismo quanto, por exemplo, a literariedade. A teatralidade nunca se equiparou literariedade ‘como afirmagao intensa e inequivoca de uma condicao textual aut6noma e imanente da composicao poética ou ao pictérico como afirmagao do préprio ou do puro na pintura. Apesar da radicalidade singular das propostas de um Antonin Artaud e de um Gordon Craig, o que se bbuscou predominantemente, por meio da consciéncia da teatralidade, entre os profissionais do teatro moderno, foi certa liberdade do teatro perante procedimentos desgastados da representacao céni- cae dramética. Mas a cena teatral do século XX nunca deixou de se entender como interagao coma realidade externa, como jogo ficcional com ela, com referéncia a ela. Aqui no Brasil, se a gente pensa em Alc&ntara Machado (escritor modemista que atuou como cro- nista teatral nos anos 20 do século XX] e em sua inspiragao de um teatro livre diante de parmetros formais muito definidos, nés vemos que estamos, hoje, extremamente comportados no teatro bra- iro, A teatralidade popular circense que Alcantara Machado queria enfatizar previa aliberdade de comportamento que José de Alencar quis interditarno teatro, em suas campanhas de educac3o do publico no final do século XIX. Mas, de qualquer maneira, se pensamos em diretores tao diferen- tes como José Celso Martinez Corréa, Amir Haddad, Antunes Filho, Gerald Thomas, Enrique Diaz e Ant6nio Araujo, se lembramos os trabalhos que esses encenadores realizam com suas companhias nos dias de hoje, somos levados a compreender que, no contexto contemporaneo, a teatralidade ‘aponta para experiéncias que fraturam e até interditam a concepgao de que o teatro é fundamen: talmente a tradugao cénica de obras dramaticas e a representacao de personagens ficcionais por atores, 0 fendmeno da teatralidade tem a ver com a fic¢ao, sim, mas, em profundidade, se associa 8 ficgao de corpos que se inventam, com a simulacao de jogos do real, com a proposi¢a0 de mundos possiveis, com o exercicio cénico de reinvencao das interagées humanas. Alexandre Dacosta — Eu vou ser breve, como uma performance breve. Estamos aqui para falar de performance das artes plasticas, performance teatral e eu vou dizer o seguinte: acho que ha uma questo de histérico da performance em artes plasticas, de onde veio; de como surgiu a performan: ce, Mas eu queria tentar olhar justamente para essa diferenga, digamos assim, da plastica, da tea- tral, a cinematografica, enfim, da videografica. Porque tem uma diferenca af, quer dizer, eu sou ator também, além de artista plastico, entao eu vejo a performance plastica como um ato do artista. Ele 1n30 deixa de ser um ator ali naquela hora, no instante em que esté fazendo sua performance. Entre- tanto, talvez a maioria esquega um pouco desse lado teatral, negligencie esse trabalho de assumir parcialmente um personagem. Acho que os artistas plésticos, em sua maioria, acabam sendo, um pouco, eles mesmos. E, dependendo da performance, tem que ser ele mesmo, sem divida alguma. Fica até uma postura de atelié. Mas penso que ha certos pontos que merecem reflexao. Estou querendo propor a vocés essa discus- 80. Penso que quando o artista plastico faz uma performance, ele tem que ter a nogo do tempo (do ritmo, da duracao) e tem que ter a nogo de que ele ali, no espaco da acao, é, sim, um objeto da performance também, mas nao é um objeto inanimado. Apesar de estarem sendo usados objetos inanimados na performance, ele mesmo (0 performer, 0 atuador] n3o € objeto inanimado. Entdo, o artista tem que ter presenga, se imbuir de algurva emocdo, mesmo que a emogao seja zerada. Existe a expressao teatral que diz que o ator esté "zerado”, no sentido de que nao expressa nenhuma emo¢30 acima daquilo, zero, emogao zero. Temos um diretor aqui que pode até acrescen- tar alguma coisa sobre isso: vocé nao demonstra nem raiva, nem amor, nem nada, emogao zero, ‘mas mesmo no zero, na cara zero, tem ali sua emo¢ao, 05 nervos estao pulsando ali dentro, Assim, no existe uma emo¢3o menos um, menos dois, cara zero. Na “cara zero", 0 zero tem uma emo¢aoali, est pulsando o nervo, esté pulsando sangue. Eu apenas ‘queria jogar essa questo para que os artistas plasticos tenham essa consciéncia de que quando eles esto em cena devem se imbuir de presenca (pode ser de si mesmo ou de alguém outro, de um quase personagem ficcional). £ preciso também ter uma visao do infinito, e nao somente uma visao chapada de que estd ali fazendo uma aco, que nela se esgota. Tem que haver uma ebuli¢do por dentro, As vezes eu sinto falta, na performance em artes plasticas, de ter essa ebulicao por dentro nna pessoa que esta fazendo; eu digo isso porque Sou um ator e vejo um pouce dessa maneira, Mes: lll 112 PROVOCAGDES DA VIDA E DA ARTE J MESAS-REDONDAS 2 mo que o artista plastico queira mostrar aquele objeto da performance, mesmo como apresentador daquele objeto, ele tem que estar imbuido de alguma emo¢ao para passar ao pablico esse sangue fervendo nas veias, Ricardo Basbaum — Minha contribuigo nesta noite sera um comentario sobre o Egoclip, que voces viram com cores alteradas em um video feito em 1985, portanto, mais de vinte anos atrés, Acho curioso passar um video tanto tempo depois ¢ ele ter uma atualidade, talvez, como fazer funcionar lado do humor, que é sempre algo que dé uma chacoalhada, abre canais, desestabiliza um pouco Nesse desconcerto provocado pelo humor, algumas coisas (ideias, sensagdes, percepcdes naoha- bituais) vao afetando as pessoas. Mas aquilo que o Alexandre Dacosta e eu faziamos juntos tinha a consequéncia também de nos fazer escapar um pouco de uma situa¢3o que tendia a ser muito determinada e determinante naquele momento Em 1985, quando nés dois estévamos com vinte e poucos anos, comecando um trabalho na rea de ar tes visuais, no Rio de Janeiro existia uma situagao com nome e sobrenome muito definidos—como algo aque se fechava dentro desse campinho das artes visuais, fechava-se como espaco muito delimitado Houve uma espécie de moda que capturava as pessoas, os artistas, pelo menos aquino Rio de Janeiro 0 Alexandre escapou para o teatro, para 0 cinema; fomos escapando um pouco da tal Geracao 80, escapando desse rétulo, aplicado sucessivamente aos jovens artistas que passavam pelatal da volta a pintura, Entdo, fizemos o Egoclip porque ndo nos sentiamos muito confortaveis com o estigma e esse cliché da Geracao 80 — e da chamada volta & pintura. Achavamos que algo que tivesse alguma inspirago no rock and roll, com a possibilidade de um sucesso imediato, como a televisio e o video: clipe, podiam proporcionar coisas muito interessantes a serem trabalhadas em arte, Na verdade, os artistas daquele grupo e daquela geracao (que, ao contrério de nés, veiculavam seus trabalhos muito por meio da pintura], bem como a relacdo desses artistas especificos com a instituigao galeria de arte, tomaram-se emblemas dos anos 1980 e da arte no Rio de Janeiro naquele periodo. Alexandre e euachavamos mais interessante tentar abrir umas brechas no que era a tal da Geracao 80 e cistribuir nossas filipetas-manifestos nos 6nibus, colar os cartazes nas ruas, fazendo 0 videoclipe, nos vestir: mos de garcons, invadirmos de surpresa uns vernissages... E a gente discutia muito se era teatro ou nao teatro. Tinhamos posigdes antagonicas, a gente discutia e no concordava nunca, Alexandre Dacosta— Eu ja pensava nisso que falei: 0 performatico tinha que se imbuir de algum per- ‘sonagem, como era com os garcons, por exemplo, Era esse bate-bola que a gente tinha, eu achava que 0 tempo cénico tem um tempo, um ritmo, uma duragao. Achava que era preciso cuidar desse aspecto de uma certa eficiéncia teatral. Eles nunca concordavam comigo e ganhavam de dois a um. essa Ricardo Basbaum — Entao, eu nao sou ator. Mas, enfim, nas performances que a gente fazi questao dos corpos entrando assumia uma funcao, ¢ 0 que nos interessava nos garcons era o fato de que estavam sempre presentes nas exposicdes, em vernissages em que realizavamos nossa ‘ago, de maneiraiinvisivel, desempenhando um papel, digamos assim, um pouco subliminar. Entao, seré que a gente estava fazendo papel de gargom? Era algo teatral? Era um pouco o desempenho da fungo real de garcom? Na verdade, por termos uniformes, éramos identificados como garcons de fato. Chegamos a ser confundidos, algumas vezes, com os garcons que estavam naquele evento no Museu de Arte Moderna: os chefes dos garcons vinham nos questionar, nos convocar. E eu acho que 0 ponto final da nossa atuacao foi quando os garcons resolveram servir seus préprios copos ‘numa exposi¢o. Quer dizer, a gente entroucomo vinho, uma quentinha com comida e copos. Anda- mos bastante pela exposicao, s6 que sem servir ninguém; houve o momento em que se abriu uma clareira, a gente sentou, uma das bandejas tinha toalha, Abrimos a toalha no meio da exposi¢ao € Inés nos sentamos e servimos a nés mesmos, Talvez tenha sido a uitima atuagae. Alexandre Dacosta — A ultima foi vocé sozinho. Ricardo Basbaum — Houve uma vez que resolvemos nao nos vestir de garcons e acorrentamos ov: tros garcons. Trés garcons foram unidos uns aos outros com correntes e ficavam andando por uma galeria [0 Espaco Cultural Sérgio Porto] com as correntes entre as bandejas e iam arrastando as pessoas que estavamn pelo caminho. Mas, enfim, ser ator ou nao ser ator, eu nao sei o que dizer sobre isso. Talvez possa assumir algum papel aqui. A necessidade era assumir outras identidades naquele momento, porque era nos anos 1980, e nao era tao interessante seguir urn modelo do pin: tor bem-sucedido, era mais interessante sermos garcons ou mesmo uma dupla especializada que ninguém conhecia. Ea ideia era ter vindo como produto de massa através da televisdo, presente no radio, nos videoclipes, nas ruas com cartazes e, depois, assumindo algumas identidades paralelas, rn3o sei se € caso, por exemplo, de Heurico Fidélis e Claymara Borges, Alexandre Dacosta — Douglas Webor era um camelé que vendia coisas para Claymara Borges e Heu- rico Fidélis. Era um trabalho que eu fazia com a Lucia de Assis, era um trabalho que veio dat. Eram personagens de um show de musica. Os personagens eram cantores compositores de megassu- cesso, gravamos um CD, criamos uma grife chamada Simulacro, Era. grife deles, desses persona- gens inventados por nés. Houve até uma exposigio no Paco Imperial em homenagem a eles da qual o Ricardo participou. Criaram-se reflexes conceituais para essa dupla do Fidélis que vem da Dupla Especializada, em decorréncia dessa histéria que o Ricardo delineou aqui. € 2 Miriam Ash (também um personage ficcional) foi a autora de uma exposi¢30 que eu fiz de pintura, e eu mesmo, Alexandre Dacosta, nido fui 3 inauguragao. A Miriam foi. La fui eu vestido de mulher, de peruca, e fiquei recebendo as 113 PROVOCACOES DA VIDA E DA ARTE / MESAS-REDONDAS. 2 pessoas. Foi uma loucura total, essa jungao, sempre me preocupei em juntar artes plasticas com misica, teatro e poesia. Wiriam € uma poeta e ertica de arte, ela chegou a escrever alguns textos criticos para alguns artistas que estao em catélogos, entdo vira e mexe ela esté escrevendo alguma coisa. Ela surgiu porque foi pedido um texto para ontem, para entregar amanha, sem sentimento, sem nada, ¢ ai surgiu a Miriam. A Miriam escreveu um texto para 0 Alexandre Dacosta que terminava assim, "Dacosta esté precisando urgentemente usar dculos". Ela, sempre que escrevia para o Alexandre Dacosta, dava uma esculhambadinha. Ricardo Basbaum — Antes de encerrar meu depoimento aqui, lembraria duas referéncias. Acho que foi no dia 27 de novembro de 1960 que o artista francés Yves Klein declarou ser 0 dia do teatro total - todo mundo era um ator para si mesmo, em relago a si mesmo e em relacao avs outros, E uma referencia a isso que nés estamos lembrando aqui, no sentido de que os papéis, as funcoes, as atuagdes jé abrem uma brecha nessa nossa necessidade (também ficticia) de ser uma Gnica pessoa, Esse teatro total desejado por Yves Klein jé indicava a possibilidade dessas atuacies cons- tantes e mUltiplas em diversos lugares e situacdes. Penso também que nossa conversa de hoje pode ser vista como uma homenagem ao recém-falecido Allan Kaprow. Aliés, 0 Kaprow foi, sem 0 saber, langado candidato a presidente do Brasil nas eleicdes de 2002, pela artista Daniela Mattos, ‘em uma agao realizada junto ao projeto Phoder Paralello, intervengao urbana de um conjunto de artistas dialogando com as eleigdes para presidente naquele ano. 0 Kaprow faleceu em 2006, mas ele tinha umas ideias que eu acho bacanas em relagao a autoficcionalizagao do artista sem que se torne ator. Ele estalava os dedos e, de repente, transformava as situagdes em grandes instalacées, e tudo virava movimentos plasticos interessantes e nao as transformava propriamente em teatro, com atores e espectadores, ndo era isso exatamente o que ele constituta. Vocés esto ai, nessa relagao desigual de palco e plateia, relagao tao dificil de quebrar, e nds, aqui, no lugar para o qual 05 olhos se voltam, ficamos sentindo — e eu, que ndo sou ator, mais ainda ~ 0 peso de seis fileiras inclinadas, numa inclinagao vertical para cima, Entao se instala aqui também uma rela¢3o palco e plateia, ainda que se tenha querido quebré-la para este evento. Alexandre Dacosta - J4 que foram duas homenagens, eu queria fazer rapidamente uma terce ra, que é a do Dia Nacional do Artista Plastico, pois temos varios artistas plasticos aqui. Eu e Basbaum fizemos um hino a esse dia: “Nesta data nos reunir 1s / tiramos a roupa, nos med mos / quem somos nés, quem somos nés, quem somos nés / seres humanos com antenas / ou © inconsciente a gozar, apenas / na solidao do atelié / cores competindo com a TV / trocando leo do olhar / pincel lamento cristalino / luz cristal olho retina / nés artistas plasticos / na temos salério fixo / nds artistas plasticos / errantes entre écio e vicio / nds artistas plasticos visionarios no desmamados / nés artistas pldsticos /o vinho é nosso sangue / nosso sangue / nosso sangue..."? Edson Barrus ~ 0 Rés do Chao foi uma experiéncia de quatro anos que se realizou na rua do Lavradio, n® 106, apartamento 302. £ importante o endereco porque fica num condominio residencial, e por quatro anos conseguimos dar uma desequilibrada num circuito com a nossa proposi¢a0, como critica, aia gente chamava de espaco experimental. No Rés do Chao trabalhavamos a ideia da dissoluco do artista na sociedade, exatamente porque nao dé para ficar cortando o tempo todo, descontextualizan- do para poder oferecer um recorte. Sempre nos esforgamos para trabalhar com essa mistura de acon- tecimentos, de eventos, tentando chamar a atengao para essa desordem do cotidiano e mostrando que isso pode produzir saber, ou seja, uma inteligéncia como eu acho que produzimos no Rés do Cho. Esse espaco funcionava de diversas formas, e estévamos no inicio de um monte de coisas que hoje esto presentes em muitos artistas que trabalhavam conosco. Eramos como um grupo de estudos, atuavamos na necessidade do artista, ¢ eu acho que essa coisa de atuar, de se disponibilizar para ‘um piblico que aparecia ali, era algo que safa totalmente dessa esfera do privado que era minha casa, o meu apartamento -, para receber is vezes citenta pessoas, cem pessoas; produziamos um festival de frequéncia muito alta, e, as vezes, ocorriam coisas totalmente diferentes. Nao estvamos preocupados com o artista, estavamos preocupados em deixar passar a arte, entao ‘se misturavam a prostituta, 0 cientista nuclear, 0 psicélogo, o historiador, 0 artista também, 0 estu- dante, a crianca, a dona de casa — e era bacana essa confluéncia de pessoas, Era num condominio, rndo era num espaco de arte. Ao mesmo tempo, unimos diversos mecanismos. Utiizévamos a inter- net, a midia impressa, tinhamos a revista Nés Contemporéneos, que veiculava as nossas atividades. Varias pessoas que esto hoje no evento vieram juntas dessa histéria. Conseguimos, através do Rs 0 Chao, produzir o Actcarinvertido na Funarte. Tudo estava comecando, depois fizemos uns eventos [um em Nova York, outro na Amazonia e outro na Franca] sempre com esses artistas pra ae pra cd, para criar zonas de produtividade bem interessantes, zonas de experimentacao, Com isso entréva- ‘mos, discutfamos todas as questdes que eram pertinentes no momento. Estévamos interessados no conceito de sintoma, nao estavamos interessados na produgo da obra: ocupévamos um lugar que o Estado no ocupava (porque se ele funcionasse no precisaria do nosso trabalho). Entao, com isso, ‘ona de confluéncia, uma zona de afeto, uma zona de carinho, 0 cuidado da pessoa, do levamos uma 2 antsta que estava interessado no artista, no interessado no produto para vender. Edson Barrus — Em Nova York, depois de uns dez dias que Id estavamos, chega uma artista do Rio de Janeiro, Angela Freiberg, com dezesseis performances numa mala. Ela comega a ocupar muito espaco e nao nos davamos conta de toda a performance dela; ela exigia uma certa diregao, e che- >sHino a0 Dia Nacional do AntstaPstico", de Alexandre Dacostae Ricardo Basbaum, 1985. 5 116 PROVOCACOLS DA VIDA E DA ARTE / MESAS-REDONDAS 2 +. *Vocé manda em mim, voce é meu curador’. Poucos dias depois, chega 0 Tat. gou a dizer yerceber que 0 Tato sem nenhuma performance, sem nada... De repente, eu comecei 2p cozinha alimentando as pessoas, estava na limpeza, estava ajudando todas as performances, a dando a construir todos 0s trabalhos; ele apartava brigas, dava ordens 3s pessoas, estava man do em mim. Ele estava “em performance”, nao tinha nenhuma performance a fazer, 0 corpo dele « que estava em performance, e Tato era uma das pessoas que vinham do teatro, Assim foi mais Fc entender essa diferenca de corpo. ‘Quando a gente esté em vivencia, fica o tempo todo atento ao espaca, a quem chegs, atento 20 que 0 outro faz. Hé um espaco de constante troca, de constante atengao, mesmo que voce esteja relaxado. Um outro tempo de atencao, que fala de uma expectativa, que € uma espera em que voce espera vivamente e ativamente para ver em que momento entra, para ver o que vocé vai fazer As sim, dentro do clima, dentro de uma tenso dessas, o outro é percebido ~ e essa figura egocéntnica do artista se dilui um pouco. No existe um centro, qualquer lugar pode ser um panto de atencio um foco, pode ser em qualquer instante, vocé pode passar de ajudante a centro, pode sero e, de repente, estar na cémera filmando, ou voce pode estar servindo bebida para o pessoal Houve algo muito engracado durante a quarentena Actcar invertido em Nova York. Fui para Bu (Norte dos Estados Unidos) quando retorno, vejo que as duas instala¢des (uma instalagio de um arquiteto do Recife que ficava o tempo todo com som e outra instalagao de um artista de Nova York que estava ld e funcionava o tempo todo) estavam reviradas, tudo estava revirado. Perguntel o estava acontecendo, se algo estava ruim, talvez estivesse repressivo? Pois, se mudaram tudo, porque a coisa nao estava legal. Acontece que as instalagdes faziam muito barulho se ficas: ligadas o tempo todo, afetando a convivéncia no espaco. Por outro lado, as pessoas que foram para ‘a quarentena (e, portanto, moravam Ia) tinham 0 compromisso com 0s artistas de manter 2 nt gridade dos trabalhos expostos. Criamos entao uma dindmica. Resolvemos que, quando chegass* a qualquer momento um visitante no espaco de convivéncia, instantaneamente as instalacdes © ‘iam ativadas e tudo voltaria a funcionar. Quero dizer: sempre ha negociagao, nada esta '2500" Negocia-se a dormida, a comida, negociam-se 0s trabalhos, discute-se o trabalho, ¢ ele ¢ 205°" mado, Discutimos as ideias o tempo todo e conversamos muito. Carmem Riquelme, da plateia ~ Frequentadora do Rés do Chao, tenho um filho que, na p03, com uns quinze anos: ele é uma crianga especial. Ele sempre foi para o Rés comigo,fica¥2 52 pre solto, misturado com todas as pessoas. Eu estava na parte de fora do apartament, 2" & varanda, quando estava acontecendo esse trabalho: um artista pregando seus pés em dos IW" (ou Biblias). Alguém chegou para mim e falou: “Seu filho esta la dentro, vocé nao vai tis 100° E eudisse: “Mas por qué?”, e me narraram o que estava acontecendo. Meu filho estava mes perto do cara e falou assim pra mim: "Mae, que absurdo!”. José Da Costa — Bem, quanto a essa questao de uma agao performatica que nao mais constitui representa¢ao, ha também em teatro alguns exemplos bastante significativos. Nao estou me lembrando agora de um exemplo de autossangramento como o que est&o narrando. Entretanto, hd cenas bem fortes de corte com a atuacao mimética ou representacional. Como um exemplo, eu lembraria aqui o espetaculo Para dar fim do jufzo de Deus. Nesse trabalho, alguns dos atores tiravam sangue de si mesmos com uma seringa, despejavam esse sangue extraido num objeto, que era depois distribuido para outras pessoas. Ninguém bebia esse sangue. Nao me lembro como ele era manipulado depois cenicamente, Havia também, nesse espetaculo teatral, um ator que Se masturbava e ejaculava em cena. Outro artista fazia coc®. 0 texto é um roteiro escrito por Antonin Artaud para uma transmissao radiofénica em 1948 na Franca e foi encenado pelo Teatro Oficina soba diregao de José Celso Martinez Corréa. Também no espetaculo do Teatro da Vertigem intitulado Apocalipse 1,11 coisas muito fortes acon- teciam como experiéncias fisicas que sao acdes, atuacdes até, mas que podem ser pensadas como do representacao, Havia cenas de coito totalmente reais, sem que se tratasse de um espetaculo pornogréfico. Havia situagdes como a de um ator que, de pé, urinava na perna de uma atriz pros- trada no chao. Nada disso era exatamente ou propriamente mimese de acdes, mas experiéncias fisicas muito concretas. Eu tenho uma questao teérica em relacao a esses exemplos e & possibilidade de apenas entendé «los simplesmente como nao representagao. Jacques Derrida diz, em uma das entrevistas conti- dasno livro Posigdes, que construlu junto com outros pensadores aideia do “fora” para diminuir um pouco a importancia da identidade, da subjetividade, da interioridade. Entretanto, esse “fora, por vezes, pode se tornar to substancial quanto 0 "dentro", quanto dinterior, quanto urna subjetivida- de substancial. Eo “fora”, diz Derrida, por vezes aparece como o vivo, como a realidade da vida, que no é vista, entdo, como representagao, mas como pura efetividade. A partir disso, eu também me pergunto se no temos muitas formas de recolocar a ideia da es- sencialidade, da substancialidade, no sentido metafisico da verdade, nos espacos em que uma forca desterritorializante havia suprimido os significados transcendentais, isto é, substanciais, essenciais. Eu fico pensando se, no campo da suposta realidade, a aco poderia estar tao externa a toda e qualquer ficcionalidade. Esse lugar de um puro real, destituldo de toda ficgao e de toda representaco, no vern a se constituir, de novo, como uma substancia, uma esséncia natural e quase divina? Edson Barrus —Vocé esté recorrendo a conceitos que acho muito probleméticos, como os de essén- cia e de substéncia, como o de natureza ou natural. Acho isso complicado. José Da Costa —Acho que talvez eu nao tenha sido claro. Eu parto do principio de que nés todos aqui 2 estamos querendo abandonar esses conceitos metafisicos, de realidade substancial, do » de natureza,Porém, eume pergunto se n6s, por meio daquilo aque atribuimnos ums dimenaay, cal de puro ato, de ndo representar, como 0 ugar do vivo, do real, pergunto-me, enfin, se 4. ha uma espécie de retoro involuntario de uma ideia de esséncia, de verdade, de substines, » estou defendendo, é claro, nenhuma esséncia ou substancia. N5o quero afirmar essas ides defender algo que me pareca essencial e que penso que estejamos desprezando Acho que o- ideias de natureza mesma das coisas, de substancia ou de esséncia S30, para todos nés, sem, da alguma, um perigo, Mas estou de acordo com voce. 0 que eu estava indaganda era se, na busey do ato nao representado, ndo estamos recolocando em cena um desejo involuntério substancial, que pretenderiamos, ao contrério, estar suprimindo. erdade Tato Teixeira - 0 encontro desta noite, que chamamos de “Agenciamentos e provacacies”, mos. ‘trou 0 Rés do Chao exatamente como um espaco de agenciamentos, de acontecimentas, como un ambiente provocador de coisas, deflagrador de coisas. Porque existiu por quatro anos, mas ainda existe como disposigao de troca e de discussao, mesmo nao havendo mais o endereca da Rus do Lavradio como um ponto de encontro. Ai, a gente conversava dentro e fora de um circuito de art» Naturalmente, foram acontecendo varias coisas dentro daquele espaco de experimentacio, onde 5 pessoas podiam propor coisas, as coisas se instituiam, ages e performances aconteciam sem uma estrutura de apresentago propriamente dita. E eu queria que alguém me ajudasse a pensar es nocao de teatralidade ou de apresentacao teatral que acabou, sim, diluida no Rés do Chao. As oer formances nao tinham necessariamente um publico, mas havia, antes, um grupo de pessoas 4 compartilhavam certas vivéncias, pessoas que se encontravam gerando experiéncias que se desc bravam, sem necessariamente o interesse de formalizé-las como realizacdes antisticas. Entio, que que falassem mais um pouco sobreisso, como foia experiéncianaquele espaco e o que ela orovacava Ricardo Basbaum — Eu queria contar, fazendo um link entre essas coisas, por que a Dupla Especial» da (que comecou a fazer essas ages em 1981) acabou sumindo no final dos anos 1980: nde 2nco» travamos lugares para fazer coisas. utras situacdes foram se pronunciando como dominantes, 29 gente foi dissolvendo o que era a Dupla Especializada, Mas, depois, o espaco do Rés do Chao sev esses encontros, da Dupla Especializada e também desse personagem chamado Fix Jair, que enc” trou no Rés do Cho um ambiente propicio para algum tipo de atuacao. Essa teatralidade de que se esta falando aqui, teatralidade em um sentido amplo, acho que 32° tecia no Rés do Chao de uma maneira bastante cristalina e expansiva, provendo possibildase> Para que cada um daqueles que passaram por ali pudesse se expandir em muitas outras p055 lidades. Ja que o Tato perguntou ~ fugindo dessa dicotomia muito pobre entre oficial 2 030 ie independente ou dependente, institucional, nao insti fe itucional -, 0 Rés do Chao era, ou ainda é, uma ‘dela muito viva, embora mudada na configuracao, ‘Agente percebe que as pessoas que passaram por lé continuam carregando algo daquela passagem Para outro tipo de formato que nao se sabe bem qual é, mas que vai aparecer em outras cristaizacdes mais @ frente. O Rés do Chao permitia essa atuacao de uma maneira mais generosa do que o chamado Circuito, e entao a teatralidade que eu vejo no Rés do Chio a que permite variados papéis, digamos assim, para diversos personagens, que podem buscar outras configuragdes. Issonao é uma coisa qual quer, eu penso que é o resultado também de a¢des que se dao em varios pianos, passando pela Cecilia Cotrim, pelo Edson Barrus, pelos grupos de estudo que aconteceram la —enfim, pelo Agar invertido:* José Da Costa — Evestava me lembrando aqui da questo do tempo teatral, por causa de uma das edigdes do Unica-Cena-Philme-Vivéncia, uma edi¢ao que aconteceu na Sala Cinza (Sala Glauce Ro- ha) da Escola de Teatro da Unirio e que foi proposta por muitas pessoas que conviviam também no Rés do Chao. A Sala é um espaco mével, de uso teatral multiplo e flexivel Nao é um teatro italiano e nem um teatro de arena fixo. Lembro que a partir do final da tarde as coisas foram se montando ali. A Cecilia Cotrim, que costumava fazer sopas nos encontros do Rés do Cho, mandou sua receita, e Amélia Sampaio fez @ sopa naquele dia. A montagem do ambiente jé era em siuma ocorréncia, A montagem nao era uma preparacao para um evento cénico posterior. Uma vez iniciado 0 processo, a atividade, a experiéncia em comum foi se desdobrando até o dia amanhecer. ‘Adesmontagem também fazia parte da ocorréncia ja na manha do dia seguinte. Participavam, ent&o, quela altura, aqueles que tinham sobrevivido @ noite, que nao tinham ido embora e nem estavam adormecides. A questao do tempo me impressionou muito porque os tempos eram quase sempre muito esgarcados. Fundamentalmente, eles eram lentos. Lembro-me que pessoas diversas entra. vam nas agdes que estavam se processando nos varios trechos da Sala, Mas esas agdes nunca viravam nem uma festa, nem uma apresenta¢ao. Era uma intensidade flutuante, uma espécie de ten- so segurada e mantida pelas pessoas. Era um tempo em suspenso, um tempo distendido, cuja dind- mica interna dependia de um contégio coletivo para que se mantivesse. ‘Ana Liicia Pardo - Todas as performances, projecies de imagens e discussdes que se deram nes ta noite me encantaram muito. Quando pensei este ciclo, a teatralidade foi uma referéncia pen- ‘sada como uma espessura, como conjunto de camadas possiveis, como pluralidade de sentidos. Quando propus o termo teatralidade no titulo A Teatralidade do Humano, foi em fungao de ser uma palavra aberta a interpretacoes, de explodir o campo de possibilidades para além do teatro. N30 como uma ideia que se fechasse em si, mas que provocasse a duivida e estranhamento. E percebi que isso ocorreu fortemente nas artes visuais, seja nas performances, intervencoes “Ease éonome dos eventos de convivéncia que duravam algumas semanas e que foram realizados em alguns locas, como Rio de Janeir, Nova York, Paris, Amaps. ng PROVOCAGOES DA VIDA € DA ARTE J MESAS-REDONDAS. 2 imagens que vimos, seja no debate ocorrido na rede de artistas pela internet em torno da ideia dp teatralidade. Sou atriz, mas minha inten¢ao era falar de uma teatralidade que est muito alm xp espetaculo teatral edo palco, Era mergulhar na existéncia, na condigao humana, nessas formas j, a gente se reinventar, nventar coisas, dizer coisas, inquietar-se com coisas, eeuvinesta note qu conseguimos isso de variadas formas ~ na performance da entrada do Centro Cultural, nas inte, vengdes feitas nas escadas, no terraco, no café, dentro e fora do teatro, na mesa dos palestrantes, ‘naplateiae, antes disso, por cerca de um més nos didlogos da internet ~e que foros atravessado. Pela teatralidade, que se materializou, foi debatida e exposta sob diferentes angulos, olhares « es, téticas dos artistas visuais, circenses e de teatro, Provocar esse espaco de convergéncia, deinquietacao, aqui, dentro de um Centro Cultural, mexer nes te espaco institucional, na configuracao fisica (mas também morale intelectual], é algo que me pare ce especialmente significativo, Embora este seja um espaco transformavel, escapar tao radicalmente da conformagao teatral italiana e propor outras formas de ambiente cénico é em si algo produtor de Significados potentes. Eu vi varios niveis de localiza¢ao dos corpos no espaco. AS pessoas podiam estar nas almofadas, podiam estar no palco, podiam estar nas cadeiras etc. Essa multiplicidade de Possibilidades promoveu varias formas de olhar. Ao mesmo tempo que havia um debate em terno do tema na mesa, simultaneamente vivenciévamos uma série de intervencdes: barquinhos passan: do, baldes, pessoas desenhando nos papéis e se reinventando o tempo inteiro. Entao, é como se a Proposta de teatralidade fosse levada a uma determinada poténcia hoje, numa interac viva, muito organica. £ esse trabalho, tanto artistico como de vida, que me interessa Estou falando muito no ponto de vista pessoal, nao estou nem falando do resultado, acho que tudo 0 que estamos fazendo aqui é processo, ainda que predominantemente se tentem buscar resultados determinados na arte ena vida. Entao, este momento me parece bastante interessante, pelo inesp2 rado, pelo que escapou dquilo que foi programado. A proposta, com 0 ciclo, era exatamente tirar as pessoas dos espacos de isolamento e soliddo (seia atelié ou outro espago fechado da arte ou da vida) e proporcionar a elas a saida de seus ambiente: essoais, seus espacos mais ou menos isolados, para que viessem aqui misturar-se, saindo com 3 gumas questdes que nao buscam respostas, ndo buscam solugdes de forma nenhuma. Nao se 0° tende indicar caminhos a serem seguidos, Penso que a arte e a vida caminham no desconhecido, nessa espécie de abismo, porque isso é que é o interessante. José Da Costa disse que ficava nervoso por tratar neste evento de temas muito abertos, como 0 s2> tido de teatralidade. Eu também fico de certa forma nervosa a cada noite, pois nao temos resposts nem resultados para o que se propde. Embora exista um desenho feito desse caminho, de um c2° ceito, de uma ideia concebida a partir de estudo e experiéncia, a intengio é que ele tome diferentes rumos e até mesmo permita se perder, andar no risco, pois hd, de um lado, um campo mais ou menos conhecido dos saberes, do que se acumulou e aprendeu e, ha por conhecer, ser criado, gerado, ransformado e aprendi as certezas, o que est dado e estabelecido, de outro, hé uma dimensio do que ainda \ io, e que s6se revelaré se abandonarmos Célio Turino TEATRALIDADES Sérgio Bianchi CONTRADIGOES SE SS I er a —— aa, 124 PROVOCACOES DA VIDA £ DA ARTE / ENTREVISTAS 2 TEATRALIDADES ‘Ana Liicia Pardo ~ Cétio, no painel A Teatralidade do Humano nés procuramos discutirnao somants cena contemporanea, do ponto de vista do que é apresentado no palco, por atores profissiony. tem 0 teatro como oficio. Tratamos das artes em seus aspectos estéticos, procuranda trarer abordagem mais ampla, alargando os limites do espetaculo, da representacao, do evento, do sh. para discutirtambém as teatralidades que esto fora desses espacos onde se v8 arte, como oi ‘eatral, o museu, a sala, a galeria, Nesse sentido, qual é 0 seu olhar sobre essas teatraldades, elas revelam ou ocultam? Como elas surgem? Todos slo criadores e protagonistas? Célio Turino - 0 momento fundamental na histéria humana foi quando Leonardo da Vinci resolve um problema matematico bastante complexo, que fora langado ainda antes de Cristo, no século pelo arquiteto romano Vitrt Vitnivio foi oarquiteto que criou as abébadas, os arcos, desenvolveu tado um estudo sabre propor ele levava em conta o homem como medida das coisas, medida da proporcao. Ele lancou 0 co de um problema que era colocar o homem como base de um circulo perfeito. Mil e quinhentos anos depois, esse problema matematico foi resolvido por Leonardo da Vinci, e a solucao ficou conhecisa ‘como 0 “homem vitruviano”. O homem vitruviano é aquele homem aberto dentro de um circulo. ‘As pessoas interpretaram por vezes equivocadamente esse homem vitruviano como 0 home centro, Mas nao se trata disso. Eo humano como medida das coisas. a demonstragio do“ 0°, da potencialidade humana em realizar e transformar. Essa tem sido a esséncia dos Pont Cultura, a busca dessa capacidade de agir do humano e que ¢ inerente a todos 0s sujeitos, que 8 ’ capacidade de transformar a partir de seus sonhos e a partir de sua agao, de sua energia. Su que af é que esté essa teatralidade. ‘Ana Liicia Pardo — Vocé considera, entao, que os Pontos de Cultura seriam lugares onde aparece essas teatralidades? De que forma? Célio Turino — E 0 momento. 0 que o Ministério tem feito é 0 mapeamento a esse espe" induzir e sem colocar a estrutura como a base primeira, e sim 0 fluxo pulsante, 3 vida. 0 4 procuramos com os Pontos de Cultura foi unir 0 conjunto, os conjuntos humanos. 0 Ponto d= ra seria um conjunto, que é também uma rede. E uma base de uma rede que se articula com outras que sao extrenamente diferentes entre si na forma, mas na esséncia muito semelhantes porque elas tém esse sentido do agir. E oagir, por exemplo, de uma india yawalapiti, Wantsu, que de repente comegou a cantar cangdes infantis que ela guardava na meméria, e um povo com apenas cinco falantes comecou a recompor seu idioma, Hoje so duzentos yawalapitis no Parque Nacional do Xingu. E de onde nasce essa forga, essa base de transformagao? Desse canto de Wantsu que saiu de dentro de uma oca enquanto pesquisadores tentavam recompor o idioma, ouvir as musicas do Povo yawalapiti. Também esta presente quando se faz teatro na laje. Um professor de ensino médio do Rio de Janeiro faz Shakespeare na laje de favelas com alunos de escola publica adap- tado a realidade do ambiente — que era exatamente a mesma coisa que Shakespeare fazia, um teatro popular, universal e local ao mesmo tempo. Aliés, Shakespeare tem essa caracterfstica, ele falava de Verona, da Dinamarca, de reinos distantes que ele nunca visitou. Mas 0 que Ihe dava essa forga para que falasse desses lugares, de Veneza, dos mouros e tudo o mais? E que ele bus- cava a esséncia do humano. E ai, quando um grupo de escola publica desenvolve Shakespeare adaptado a realidade das comunidades e favelas do Rio de Janeiro, ele est se reencontrando exatamente com a esséncia shakespeariana, EntBo, os Pontos de Cultura sao essa ampla variedade, essa extensa gama de possibilidades, que esta presente no canto de uma velha india do Parque Nacional do Xingu, esté presente no modo de agir de um professor e de alunos de escola piblica e esté presente em acdes mais instituidas da cultura, mais reconhecidas como tal, em trabalhos de pesquisa, de experimen. taco estética. E, quando ocorre essa experimentacao estética, ha também um processo de aproximacao de outros contetidos, éticos, mais vinculados a valores, a compromissos comuni: trios. E as pessoas percebem que esto muito préximas, estejam elas fazendo uma mascara da commedia dell’arte ou uma ago, ou um teatro de protesto mais préximo de uma realidade Todos falam em esséncia da mesma coisa. Ana Lticia Pardo — Vocé considera que todos somos criadores? Que se rompeu o limite que separa quem faz de quem assiste? Célio Turino — Eu diria que o ponto de rompimento disso foi mesmo com Leonardo da Vinci e 0 ho- mem vitruviano, mas creio que foi pouco percebido. E tenho estudado mais esse aspecto antece- dente, que ver de Vitrivio, que € da Roma Antiga. 0 sentido do agir foi trabalhado também pelos filésofos do lluminismo, cujo ideal acaba desembocando na Revolucao Francesa, quando é explici- tada a capacidade humana de transformar, quando se evidencia a percepgio de que todos somos iguais. Mas o grande salto mesmo foi com Mark na definicao de sujeito histérico. 126\ PROVOCACOES DA VIDA E DA ARTE / ENTREVISTAS 2 nto de Cultura falo de empoderamento ~ € esse conceito € hoje apropriads maic estarlamos querendo ressignificar sujito histérico, agente his ce : isto as pessoas ou grupos d20 um salto no seu process e Quando no Por menos de uma forma geral E um momento em que a humanidade, « rsciéncia, saem do chamado estagio do “em si ese percebem ‘para si". E af que agente romp, também essa distingao entre palco e plateia, Ha necessidade do distanciamento, por vezes hi ne cessidade do mergulho por encantamento, mas hé também anecessidade daquilo que Brecht az como teatro épico Eexatamente isso, vocé mergulha numa determinada historia e, de repente, num determinado mo mento, ela é interrompida e alguém coloca outros elementos na historia ‘Ana Liicia Pardo -Tomando por base Marx, que vocé citou, romper com o limite € se empoderar seria sairdesse estégio de alienagao e ocupar a cena? Célio Turino — E isso, porque a sociedade capitalista se esfor¢a e, em parte, consegue reduzir as pessoas a consumidores. Essa é a ldgica. Inclusive a logica das politicas sociais vai nesse sentido, , endo da poténcia 6 uma l6gica da incluso social a partir do critério da carénc' ‘Ana Liicia Pardo — Nas teorias da alienacao em Marx, interpretadas por Istvan Mészaros, ele diz que co consumo estimula a produgao, e que um e outro alimentam o mercado. Célio Turino — Sem duvida, mas até do ponto de vista tecnolégico a producao esta cada vez mais dis: tante do humano, ela é cada vez mais repartida, é um trabalho repartido, absolutamente alienado E af Marx definiu bem essa questo. 0 consumo passa a ser a razo das coisas. A gente vé hoje que essa derrocada econémica é muito 0 resultado de um consumo alienado da vida, das coisas reais. O consumo que nao vé o que esta em volta, nao vé que o planeta ¢ insuficiente para garantir um determinado padrao de consumo para todos. Nao existe planeta para esse padrao de consumo que se coloca como ideal, esse padrao americano Ena verdade 0 momento de superacao da alienacao, que é 0 momento da emancipacao, é quando as pessoas se percebem como produtores, e, quando isso acontece, elas assumem outro padre de consumo e de reflexao, de reflexao critica, Mas nao é uma reflexao absolutamente racionalizaé ela acontece no processo. Em razao disso tudo é que o reencontro da ética com a estética € funds mental. E mais, eu diria que a sustentagao se da pelo tripé: ética, estética e economia. 0 sentido? cultura se dé na aproximagao desses trés eixos., Ana Lica Pardo ~ Vocé diria que os Pontos de Cultura seriam alternativas contra-hegemonice> da cultura? Célio Turino -Sim, esse é o trabalho. 0 Ponto de Cultura respeita a diversidade plena, mas hd um ele- mento comum que é 0 estudio multimidia, E por que o estudio multimidia é fundamental? Porque @ Ponto s6 se realiza quando ele se articula em rede, quando tem uma predisposicao para receber e irradiar; tem que trocar. Do contrario, 0 trabalho dele continua uma aca isolada, Auténomo, mas restrit; protagonista na sua comunidade, mas alienado do contexto. 0 momento da poténcia é quando a autonomia se soma ao protagonismo e se potencializa na articulacao em rede. Eo que vem a ser o estudio multimidia? E um equipamento de grava¢ao musical, um equipamen- to audiovisual, que € colocado nas maos dos produtores de cultura. Nés colocamos os meios de produce nas maos de quem produz cultura, Mas este é um estagio, e hoje, ao fazer isso ~ e quem disse isso foi Marx, ha muito tempo —, ao colocar os meios de produgao nas maos de quem produz, novas necessidades surgem, buscam-se os meios de difusdo, outros vefculos de traca. £ um pro- ‘cesso que se desencadeia. ‘Ana Liicia Pardo - Mas essas vozes, quando voce cita o exemplo da india que canta a meméria do povo do Xingu, os alunos da escola publica interpretando Shakespeare nallaje das favelas, os meni- nos do hip-hop, elas estavam abafadas, nao tinham espaco, nao é? Célio Turin ~ Na apresentaco dos Pontos de Cultura eu escrevi um texto, “Desesconder o Brasil”. Desesconder porque as vozes existem, elas estdo af, masnés nao percebemos. Como trabalhei me- todologicamente para chegar ao Ponto de Cultura? Olhando uma érvore, fazendo um desenho ré pido sobre ela, voltando alguns dias depois e olhando com mais detalhes, percebendo as nuances de cores, os galhos, as pequenos animais, as flores que esto em tomo dela. Voltando mais tarde e conversando com a rvore, me colocando no lugar dela. Falando na primeira pessoa, na terceira pessoa. Falando sobre a drvore.E, a0 final disso, voltando novamente e fazendo uma sintese disso, procurando encontrar a esséncia ou 0 ponto Eisso nao é nada inventado, nao. € um métado desenvolvido por Goethe, no século XVill, chamado “método cientifico de Goethe", Observagao Goethean(stica — que é esse exercicio de observar o ge- ral, entrarno detalhe, buscar sinteses, colocar-se no lugar do outro. Essa Teatralidade do Humano, ‘tema do semindrio, chamou muito a minha atencao exatamente por isso, porque ela cria uma interagdo dialética que 6 absolutamente necessaria entre identidade e alteridade. E muito comum, trabalhar-se a cultura apenas pelo aspecto da identidade cultural, Sem davida, identidade é funda mental, porque sem ela ndo sabemos quem somos e nao conseguimos nos relacionar com 0 outro, Mas se ficarmos presos somente a identidade nao conseguiremos realizar a solidariedade de fato. Uma das grandes pragas do século XXI eu diria até que reside af. A base do fundamentalismo é a busca das identidades Unicas, fechadas, das verdades acabadas. Eu diria que uma pratica que 12 128 PROVOCACOES DA VIDA E DA ARTE / ENTREVISTAS 2 RR destroi essa separacao entre palco e plateia, entre consumidor e produtor, é a na ago cultural a interacao entre identidade - 0 se reconhecer~e alteridade outro, Desse encontro é que resulta a solidariedade. iquela que promo, Se reconhecorg, Machado de Assis tem um conto chamado 0 espelo", em que ele fala de um nove ratado alma humana. As duas almas que nds temas. Aalma de dentro ea alma defora. alma asa. que diz quem nés somos, mas é a alma de fora que diz quem nés somos também Enty 2. mo jogo de espelhos que 6s conseguimos iralém das aparéncias e encontrar essénca fers. dade de falar com uma drvore, por exemplo,dialogar com um ser, um organismovivo absolnsn te muito diferente de nés e, de repente, perceber que ha muita proximidade Ana Lifcia Pardo — Que questdes na vida e na arte podemos considerar como instigadoras e provocads ras e poderiam ser trazidas para o debate, considerando a temética discutida nesta mesa? Célio Turin - Como tematica, esta mesa é essencial, porque apresenta exatamente a capatids. de de fazer perguntas. Encontrar solucdes s6 é possivel quando as perguntas so benteitas, sen formuladas, e elas s6 acontecem por intermédio de provocagdes. Acho que se perdeu um pour rumo naquele debate. Mas 0 que é necessario provocar? Primeiro, questionar sempre. E busca incessante da humanidade, questionar-se, nao se conformar. Buscar outras saidas, ent2 der melhor 0 que estamos fazendo aqui e o que pretendemos deixar. essasuma Quando se exige, por exemplo, uma mudanca de comportamento em rela¢o ao consumo, comoun consumo consciente, numa busca da realizago nao pelo ter, mas pelo que se é.E nesse ora de provocagio 0 que se busca ¢ produzir uma interacao constante por meio do dislogo. que com os Pontos de Cultura ~ hoje nés temos mais de mil em todo o Brasil e em breve va dois mil -, 0 que a gente faz é isso, é uma quebra constante de hierarquias. Grupos abso) menosprezados, esquecidos, humilhados e ofendidos acabam sendo reconhecides pelo & ganhando novo status; mas, ao obter esse ganho, eles também so chamados a ser chs. constantemente, porque nao da pra manter uma expresso cultural apenas no seu est32) preciso que ela avance na qualidade, avance no apuro estético, experimente linguagens, p20. Porque sem isso nao se rompe com esterestipos, E a provocagaio vem nesse sentido, de mp" esteredtipos, as ideias prontas, ideias acabadas, feitas. ‘Ana Lucia Pardo — Vocé falou de economia nesse tripé: ética, estética e economia. & grande desafio dos Pontos de Cultura seria sua sustentabilidade no futuro? Célio Turino ~ Eu diria que o grande desafio para a humanidade é um novo padrao de eco"? mia que seja solidéria, que envolva trabalho colaborativo, que tenha por base a troca no comércio justo e que se realize num consumo consciente. Essa é a base da sustentabilidade do planeta e a base de sustentabilidade do Ponto também. Nao é na insergao indiscriminada ao mercado, sem questionamento. Porque dai a gente acaba se repetindo. Existem varios projetas sociais até muito interessantes, respeitados, badalados, ou o que sejam, mas que se inserem num processo sem mui toquestionamento, e o que vemos é que ndo mudam muito a realidade em que eles esto colocados. Eu até gostaria de estudar melhor — jé fiz isso no estudo que elaborei sobre o lazer ~ 0 impacto de projetos culturais na reducao da violencia em comunidades de extrema vulnerabilidade. Em al- guns, os dados sao inquestionaveis, houve reducdo. Na Zona Sul de So Paulo, Jardim Angela, em. Heligpolis também. Mas, em outros, nao. Em outros, a violencia até aumenta, aicria-se apenas uma ilha, uma vitrine em que se diz: “Olha como somos bons, como podemos salvar vidas". E, no fundo, indo se salvam, porque a a¢ao cotidiana nao foi tocada. Aprende-se a fazer miisica, a fazer arte, as criangas ocupam 0 seu tempo fora do seu perfodo escolar, mas quando saem dessa atividade elas continuam produzindo, consumindo e desejando exatamente as mesmas coisas que desejavam antes. Entao, esse processo de sustentabilidade envolve uma ressignificacao de valores. ‘Ana Liicia Pardo — Vocé acha que nossas agées ainda se dao de forma fragmentada? Estamos fa- lando de micropoliticas. Estamos falando de sociedade do espetaculo, de espetacularizagao, de midia, de consumo, de mercado, de outras formas de escravismo, que todos nds estamos vivendo e, 3s vezes, nossas acdes nos pequenos coletivos no conseguem dar conta de mexer de verdade na estrutura e mudar esse sistema. Célio Turino - Vocé tem toda a razao. £ necessério juntar os pontos. 0 que a gente faz? Como fun- cionam o Programa Cultura Viva e 0 Ponto de Cultura? 0 Ponto de Cultura ¢ uma microrrede, que pode ser interpretada como um conjunto. 0 Programa Cultura Viva é uma macrorrede de pontos. No meio disso existem as mesorredes, que so redes tematicas, rede de cultura tradicional de grids®, de cultura digital, de audiovisual, de teatro de bonecos, tudo o que mais que se queira criar. Essas redes, essas mesorredes, elas transversalizam outras redes. E onde esta a grande questao? Esta em descobrir a esséncia desse conjunto. Uma rede é no fundo um conjunto. Mas © conjunto tem que ser entendido em sua esséncia. 0 que é comum para estabelecer aquele conjunto? Para isso, precisamos limpar a nossa forma de ver as coisas. Por isso é que eu comecei falando da Observa- ¢80 Goetheanistica, que é um exercicio muito bom. As pessoas podiam experimentar fazer. ‘Ana Liicia Pardo — 0 exercicio de observar a arvore? Célio Turino - €, conversar com a 4rvore ou com uma flor, ou com quem elas quiserem. Ja conversei com uma palmacea, e no final a minha conclusao foi a seguinte: a palmacea tem aqueles ramos em * bri vem da palaveagriot, usada na Aica para designar os narradores. No Brasil significa um mestre da wadigSo oral e da ‘animagio popular que transmite com acilidade a sabedoria da tadigdo oral por meio da fala eda palava, com arte ou magia: ‘epentista, contador de histéria, folio dereis, congadeiro, rovador, capocirista, jongueio, (NE) | \ Ny LL 6 2 Ge oy ee 130 PROVOCAGOES DA VIDA E DA ARTE / ENTREVISTAS, 2 ma abertos eé cheia de espinhos, mas observando mais atentamente euviqueha = de aranha, formigas ~ muitas outras f via Muita vig Bi que ela abrigava gathos,teias de aranha, formig tras formas de vidaestay., thides Ao terminar o meu exercicio de olhar no geral, lhe em detalhes,coloqueimeng yan MO lugar dela fe, 20 tentar fazer uma sintese, cheguel a um haicei.Aliés, haicai € exatamente isso, Eade (eu haicai ficou assim: lensidae ‘maxima numa pequena representacao. M Na verdade, a palmécea absolutamente agressiva tinha aquela forma para acolher outras formas ie ‘Vida que se desenvolviam em torno dela. E essa percepgao a que me refiro, é a gente conseguir er ceber como & a vida de outra pessoa, de outro povo, até compreender que na esséncia¢ tudo gua Por causa dos Pontos de Cultura eu viajo muito, um dia acordo no meio de uma aldeia indigena, cure ‘num quilombo, ¢ outro ainda me dou conta de que estou numa reuniao com urn monte de prottores privados de cultura, discutindo sobre a lei Roaunet, sobre como vo arrumar seu dinheiro suas cap tages. E a gente percebe que na esséncia ha proximidade, mas, como as partes nao querem esse exercicio, olocar-se no lugar do outro, elas nao percebem essa proximidade. Eno Cultura Viva a gente busca aproximar. De repente, um Ponto de Cultura que trabalha com mi sica erudita, como o PIM — Programa de Integragao pela Misica, de Vassouras (RJ) ~ se pe préximo de um quilombo, que trabalha com cultura tradicional, e dali a pouco com varios menn bem maluquinhos que trabalham com a cultura digital. E assim as partes vao se juntando nu grande teia. Aliés, o nome Teia, que é 0 Encontro dos Pontos de Cultura, nao foi escolhido por = Ana Liicia Pardo — Seria a sua arvore imaginéria essa teia, essa rede? A arvore que vacé consti Célio Turino — €, talvez seja. Podem até falar que sou meio maluco ao ficar conversando com 3" ‘mas maluquice é nao perceber para onde estamos levando o planeta. 0 cientista James que escreveu Gaia, defende a tese de que o planeta na verdade é um planeta vivo, pensan) ‘se modo, acho que a Terra se assemelha a uma grande baleia no oceano, Abaleia tame” '*"" ‘monte de parasitas, e 0 triste é perceber que no caso do planeta talvez os parasitas Se”) Na verdade a Terra é também esse ambiente vivo, mas ndo vernos. € uma aliena¢20 9205 {ue num futuro no muito distante nao seré de estranhar se alguém inventar uma pala" © uma forma de ganhar dinheiro com isso, E podemos dizer: “Ah, € impensavel. Como lems _ que €a fonte de vida no planeta poderd se tornar mercadoria?”. Nao, ndo é impensavel. A dgua é 0 fluxo da vida, nbs somos setenta por cento agua, e a Agua virou mercadoria. 0 solo, a terra. Aterra ‘ido era delimitada ha quinhentos anos; mesmo na Europa, os campos nao eram cercados. Quando houve o cercamento dos campos é que se criou outra dimensio. No maximo, havia os campos de aca do senhor feudal, mas eram espacos amplos de uso comum. Isso falando da Europa, sem pen sar no Brasil, onde isso nem era cogitado. Etudo virou mercadoria, foi apropriado de forma privada, fol alienado. Agente embala e vende nossa propria mazela, Assisti no noticiério a respeito dos icebergs que estavam se descolando da Antarti- sda echegando perto da costa da Nova Zelandia. ANova Zelandia é um exemplo de pais civilizado, €0 ‘que as pessoas fizeram? Elas inventaram um jeito de ganhar dinheiro. Criaram passeios turisticos com sobrevoo de helicSptero por esses icebergs cobrando 600 délares por passeio. Quem tinha lum pouco mais de dinheiro podia descer no iceberg, escorregar lé em cima. Eu viisso na televisao, familias brincando naqueles icebergs. E fiquei chocado porque eram imensos cubos de gelo, 0 pla- neta derretendo, se acabando, e as pessoas inventando um jeito de ganhar dinheiro e se divertir ‘com isso. Entdo, veja o absoluto grau de alienacao a que chegamos. Podemos também estar num iceberg descolado que esta derretendo e nem perceber. Precisamos mudar a nossa conduta. ‘Ana Liicia Pardo — Voltando um pouco a questao da teatralidade. Célio Turino - Isso tudo € teatro. ‘Ana Lucia Pardo — Sim, mas gostaria de abordar também a teatralidade do ponto de vista da brasi- lidade. Muitos autores, Gilberto Freyre, Mario de Andrade com Macunaima, Monteiro Lobato com 0 personagem caipira Jeca Tatu. Célio Turino — Monteiro Lobato fez uma autocritica em relago.ao Jeca Tatu, depois. Ele pediu desculpas. ‘Ana Liicia Pardo - E, pediu desculpas para o caipira. Havia uma tentativa de criar uma imagem do ser brasileiro, mas alguns autores criaram uma imagem inferiorizada e subalterna em relagao & Europa. Vocé escreveu Na trilha de Macunaima. Que imagens aparecem do brasileiro na atualida- de? Essas culturas que foram abafadas, aculturadas, colonizadas, catequizadas e escravizadas estariam revelando hoje, redefinindo em suas teatralidades, uma nova imagem do ser brasileiro? Célio Turino - Quando Mario de Andrade sintetizou o brasileiro no heri sem nenhum carater, o que ele queria dizer era que nds temos um carter em formagao. Nao somos um povo consolidado em suas caracteristicas, diferente de outros, como 0 povo mexicano ou 0s povas europeus, Isso nao é nenhuma novidade. Muitos académicos transformam isso numa grande revelacao. Na verdade, M- rio de Andrade disse isso num dos prefacios de Macunaima. Entdo, estava muito explicito. 0 herdi 1 132 PROVOCACOES DA VIDA E DA ARTE / ENTREVISTAS 2 «gem nenhum caréter 6 0 pov brasileiro com o seu carater em formacao, Eu dia que se o pron Maio de Andrade analisasse o Brasil hoje ele indicaria algumas caracteristicas js formadas : teemplfcar, tems os indios. 0 Brasil tia cerca de trezentos mil indiosdeclarados no 1961, pulou para setecentos milem 2000 ena prévia dolBGE de 200? 8chegouaum miso ¢ py que essa diferenga? Porque o Censo passoua definiraetniaapatirda atodeclaracao,0 ques havendo é um processo de orgulho indigena, de etnogénese so de itis também. Na verdade, é uma caracteristica da resiliénca, 5 0s povos indigenas s80 muito resilientes, assim coms pressdo que sofre, ele se reencontra com suas care 1e a gente garimpa muito com 0s Pontos de Cultura e E 0 que eu vi com os indios yawalapi capacidade de brotar de novo. E eu diria que o brasileiro. Apesar de toda a tensao, toda a teristicas primordiais. Outra caracteristica qu que est4 muito presente na cultura tradicional, na cultura popular, é a partiha. E a partilha que far com que uma festa popular sobreviva por séculos, que os caminhantes de uma folia de es possan caminhar dez dias e ter sempre um prato de comida posto na janela de uma casa qualquer para que possam continuar sua caminhada, Essa caracteristica da partilha, da solidariedade dos humildes, de que o Milton Santos falava, é muito presente, mas no é percebida, 0 Brasil é um dos povos mais preendedores e solidarios do mundo. Eincrivel, porque as pessoas as vezes dizem 0 contrario a0 nao perceberem essa dinamica de nosso povo. Isso est no cerne do brasileiro, E se ndo vermos pore agente perdeu o eixo, a esséncia, se alienou demais. ‘Ana Lucia Pardo — Ai esta a transformagao para vocé? Se fossemos falar de uma revolucao, de ums mudanga hoje, seria um caminho? Célio Turino — Esta, est af, sim. Eu diria que é necessaria uma revolugao. Uma revolucao d= per ‘samento, de conduta. Reencontrar a nossa esséncia. Ela nao esta no “deus mercado’, nao esi transformagao de tudo e todos em mercadoria. E hd algumas esséncias da brasilidade que 00 pode perder, esséncias que jé nos foram antecipadas por Mario de Andrade quando ele f3lav 3 seriamos a civilizagao do terceiro milénio, e Darcy Ribeiro ecoava falando da Nova Roma, somos diversos e somos fortes exatamente pela diversidade. E era o mesmo discurso de Jos¢ nifacio de Andrade quando se referia aos atenienses da América, caso nao fossemos carro" E eu completaria, se no formos corrompidos por esse mercado. A rapsédia de Macunaima = uma disputa daquele ser nascido no fundo da mata virgem, as margens do rio Viracoeira, que * a felicidade de visitar, Id em Roraima, na Raposa Serra do Sol ‘Ana Lticia Pardo - Vocé seguiu a trilha de Macunaima? Célio Turino - Sim, fui até a. Toda a narrativa de Macunaima esta na disputa dele com ° S'S Piaima, que é 0 gigante comedor de gente, que é também o regatao da Amaz6nia, ov 0 V2" Pietro Pietra, um grande capitalista de Sao Paulo, que se apropriou daquele sapinho, que pegou 2 muiraquita, amuleto oferecido por Ci, a mae do mato, para Macunaima. E fez isso com brincadeira, com arte, com ginga, com um jeito de ser brasileiro, ‘Ana Licia Pardo — Mas 0s indios questionam essa visto do Macunafma preguigoso. Acham que essa imagem criada por Mario de Andrade é pejorativa. Célio Turino - Nao, essa é uma vise equivocada, também. “Ai, que preguigal” Ai em tupi quer dizer “preguica’. “Ai, que preguica’, do Macunaima, na verdade é um pleonasmo. Pregui¢a, que preguica Eo povo indio se encontrando com 0 povo lusitano, é a mesma coisa. Na verdade, a preguica € a mae das artes e das virtudes nobres, dizia Mario de Andrade. As vezes eu até confundo o Macu- naima com o Mario de Andrade num personagem s6. Mario de Andrade, em 1917, escreveu um artigo chamado “A divina preguica”. E dez anos depois ele colocou isso na sua grande obra, que &Macunaima. A preguica é a mae da filosofia, do conhecimento, Se a humanidade, se Sécrates, Platao e Aristoteles n3o pudessem se deslocar da produsao, a gente nao teria tide a filosofia 0 dental, a criacao artistica. Essa ideia de que o trabalho é que dignifica o homem é uma distorgao absoluta. Haja vista que 0 castigo que Ado e Eva tiveram de Deus foi serem expulsos do Paraiso e viverern uma vida de traba- ho, de labuta, Labor é “curvar-se”. A palavra trabalho vem de tripalio, que é uma estaca de empalar ‘as pessoas, como fazia o Conde Drécula com os turcos, na Roménia, ha quinhentos anos. O trabalho é um empalamento. 0 que a gente busca é outra forma de ser, de interpretar o mundo. E isso ja foi registrado na certidao de nascimento do Brasil por Pero Vaz de Caminha: "Aguas séo muitas", infinitas, “em se plantando tudo da”, e houve todo aquele maravilhamento ao encontrar esta terra da abundancia, da generosidade, em que o alimento esté ao alcance da méo, Achamos que isso € possivel, pois o planeta oferece possibilidades outras de sobrevivencia. Mas ficainviével quando se tema légica da iniciativa humana atuando apenas com 0 objetivo da acumulacao, ‘Ana Liicia Pardo — Depois de tantas perguntas e de tantas questées que vocé abordou a partir das teatralidades numa reflexao critica sobre o momento atual, gostaria de Ihe perguntar: qual é a sua teatralidade? Estamos falando da diversos papéis que o humano veste e se reinventa. Percebo que 0 chapéu faz parte da sua histéria, da sua imagem, da indumentéria, do seu papel. Tem, portanto, tum significado para vacé. Como voce definiria essas teatralidades da sua vida, daquele que mer- gulha na diversidade dos Pontos de Cultura e que certamente se mistura com eles? Deve carregar muitos desses elementos, dessas vivencias. Célio Turin — Obrigado por ter perguntado do chapéu. Eu uso o chapéu porque eu gosto, € porque 6 uma necessidade, pois protege do fri, da chuva, do sol; me ajuda com as condigses climaticas 2 muito variadas que encontro; moro em Brasilia e viajo pelo Brasil todo, Mas o us uma homenagem a um grande brasileiro, que tem a esséncia desse sentido de by Santos Dumont. Eu diria que ele € 0 pai do software livre. Um brasileiro generos avido e doou a planta para a humanidade. Sei que as pessoas hoje condenam: ma Que erro! E fico pensando que ele é um exemplo de como o brasileiro no se preo: Porque ¢ outro padrao de vida, est em nosso cerne, essa capacidade inventiva, rosa. E outra forma de ver 0 mundo, de perceber o mundo e as coisas, e € isso ara que os Pontos de Cultura se multipliquem. 0 também comg rasilidade, que g 2, que inventou g Santos Dumont2 1CUpa eM acumuiar inovadora e pene, que eu tento fazer Entao, veja que até na minha conduta como gestor puiblico, intelectual e militante nao Consigo mais fazer essa separagao. Gestor puiblico? Acho que sou. Um pensador sobre a cultura? Também tento sé-lo, Um militante? Também, Na verdade, esté tudo junto, inter-relacionado, até nas atitudes cs, Fiqueiras. Por isso um Ponto, tudo comega com um pequeno ponto. Ja disse Arquimedes: "Deer, me tum ponto de apoio e uma alavanca ¢ eu moverei o mundo". Sao essas pequenas attudes, esses pe, quenos pontos que podem trazer mudanga, fazer a diferenga. No fundo, essa tem sido a motivacao do meu trabalho. Recentemente estive lé na Raposa Serra do Sol. Vamos criar nove Pontos de Cultura ls, com radio Para os povos indigenas, os ingaricés, wapixanas, macuxis. E qual é 0 objetivo disso? € mudar com Portamentos. Alids, aquela terra sé € brasileira porque tem macuxi. Hé um filme dos macuxis ao lado do Marechal Rondon colocando os marcos de fronteira, Joaquim Nabuco sé conseguiu gerantir a metade leste de Roraima para 0 Brasil porque a regiao era habitada pelos macuxis, isso no século XIX. Ehhoje as pessoas dizem que aquela terra indigena ameaga a soberania nacional. E uma grande mentira. Como se a propriedade privada e a destruigo dos rios com a lavoura indiscriminada levas ‘ema defesa da nacionalidade, Pelo contrario, sé levamn a que esses gigantes Piaima crescam cada vez mais, comam cada vez mais gente, escravizem cada vez mais, Ento €isso, eu uso chapéupara ‘sso. Ej preparando a minha sada, a pensando em outras coisas que eu gostaria de fazer, porque & preciso semear e deixar que as sementes brotem, ‘Ana Lticia Pardo — Voce ja sabe para onde aponta sua saida? Qual o préximo passo? Célio Turino —Ainda nao, mas estou tentando descobrir. Acho. que tenho algumas coisas pela frente. Ana Liicia Pardo—Nesse tripé ética, estéticae economia, vocé nao acrescentaria a politica? 0 Ponto de Cultura nao é um ato politico? Célio Turino — Ea integracao. Asintese da ética, da estética eda economia, que é otripé da culturano sentido emancipador, é 0 salto para a politica. Mas ¢ outra politica, uma politica construida na base dos valores. Eu diria que o grande problema da politica dos sltimos dois séculos, e que ainda esta apodrecida aqui no século XXI, é ela ser uma politica construida na base de interesses. Interesses ‘so legitimos, mesmo uma reivindicacao sindical, uma luta por moradia, S80 interesses. Mas esse interesse resvalar para o interesseiro é comum nessa politica apodrecida, e que nao contamina 56 as instituigdes politicas brasileiras, é uma caracteristica das instituicdes politicas do mundo atual. Entao o que se pretende com a disseminagao dos Pontos de Cultura é a construgao de um novo pensamento, que é essa nova cultura politica alicergada em valores, e nao em interesses. E s6 a cultura pode dara base para essa construgao de valores, pois ela é desinteressada. Na verdade, acho que é ai que esta a chave de uma outra forma de fazer politica. Acredito que o Brasil pode demonstrar para o mundo que é possivel fazer politica de outra forma. Tenho me dedicado ao estudo da axiologia, o estudo dos valores, pois acho que al esta a base de uma outra politica feita com compaixao, E essa equacaozinha da identidade e alteridade, que ¢ igual a solidariedade, que nao tem nada que ver com um discurso religioso. A compaixao tem que ser resgatada no sentido da politica. Eisso. 135 PROVOCAGOES DA VIDA E DA ARTE J ENTREVISTAS 2 CONTRADICOES ‘Ana Liicia Pardo - Como vocé entende a teatralidade? Sérgio Bianchi -Tenho certa difculdade para entendé-la, pois acho que muito do que se fle, peito tem uma carga enorme de contradigdes e de ideias confltantes, Mas acho que, em pos, palavras, seria lancar m&o de certos recursos que podem se tornar proativos para se chegar may, perto das contradigdes, de tudo aquilo que se quer comunicar. £ poder usar mil técnicas pars pressar o significado do pensamento, até que essa comunicagao se torne repleta de sentidos» também carregada de provocagdes e acabe mesmo, depois de um tempo, transformando.se num comportamento meio descartavel. ‘Ana Lticia Pardo — 0 que seriam essas provocagies? ‘Sérgio Bianchi - Provocacdes podem ser atitudes, corporais ou nao, que vocé emprega para causar algum tipo de reacaio em outra pessoa, Ana Liicia Pardo - A arte é capaz de provocar? ‘Sérgio Bianchi — A arte € capaz de qualquer coisa. A beleza é capaz disso? Talvez, ou de alienar tam: bbém. As formas de expresso humanas fazem parte do ser humano e tém a capacidade de provocar reagées. As coisas que eu tenho feito tém esse intuito, e creio que a palavra talvez nem seja prove car, mas explicitar todos os lados da realidade para fazer as pessoas pararem de pensarcomoclch’ Ana Lticia Pardo — Que tipo de ago vocé acha que pode levar as pessoas a sair do cliché? 0 que voce espera? Sérgio Bianchi — Eu nao sei se a arte pode levar a uma mudanga de comportamento. Penso que 2 Conjunturas econémicas podem ser muito mais efetivas nesse sentido, as situacdes de desastie ecolégico também. A arte, para implicar mudanga, teria de levar o ser humano a pensar, e le 2 gosta de pensar. Ele ¢ imediatista quanto aos seus interesses animais, que se resumem 2 come", a se reproduzir. ‘Ana Liicia Pardo —Vocé nao acha entao que a arte talvez devesse ter essa fungo? Sérgio Bianchi ~As vezesetatemuma fang3o que mo misterosa por exemplo, howe uma série de filmes americanos do star system de Hollywood que previu a explosao das coisas, com ataques terroristas, até que um dia isso aconteceu na realidade, Ai pode-se até considerar se é certo que a arte antecede a realidade, ou interpreta a realidade do ser humano. Nao entendo muito bem a arte como provocacao, acho que depende da pessoa que a consome. Um comercial de sabonete pode levar alguém & loucura? Nos meus filmes, nos meus titimos videos, por exemplo, tive uma proposta dos roteiristas de pegar cada fato, cada coisa, cada pedago do filme, cada assunto e tentar pensar 0 maximo possivel, todas as possibilidades. Por que a gente nao pensou na palavra provocacao? As contradicdes fortes, mal- ditas, no sentido popular, do que é dito, do que nao é, essa é uma posigao extraordindria, também. Porque é uma posi¢ao também de ver o mundo de uma maneira um pouco limitada, de aceitar certo poder de dominagao. Para roteirizar, faziamos listas de possiveis situacdes e depois famos lapidando, tentavamos transformé-las em ficgao, tentavamos fazer cinema com histérias, com os personagens da vida, € procurévamos fazer essas contradigdes aparecerem nos didlogos, nas situagbes. Mas acabou ficando complicado transformar o roteiro em ficgao e optei por fazer um documentério, em que 0 fio narrativo é fragmentado, revela situagBes aparentemente contraditérias, que na verdade esto interligadas. 0 filme conta sobre como ganhar dinheiro em cima de sistemas sociais, ensinando a juventude burguesa a pensar no ato de ajudar 0 ser humano e resolver a desigualdade social no sentido do marketing, no sentido da formacao, de um modo novo de ganhar dinheiro; quer dizer, en- tender que a miséria é um produto também e que pode softer intervengdes. A forma como elaborei ‘ofilme é minha prerrogativa daquilo que eu quero dizer, dos elementos que eu uso para comunicar, das provocagdes que quero fazer, ou melhor, das contradigoes que desejo mostrar. ‘Ana Litcia Pardo — Vocé acha que essas contradigdes nao se encaixariam nesta tematica? Sérgio Bianchi — Nao sei. Eu nao entendi muito bem o que se esté propondo, mas estou aqui aberto atodas as novas experiéncias. E 0 propésito de falar do meu filme € esse, com ele posso tratar com mais sinceridade dessas coisas, pois nao sou te6rico. ‘Ana Liicia Pardo — Ganhar dinheiro, explorar esse setor para ganhar dinheiro, nao seria um subter- {gio do contrério, um sistema de contramao, uma saida de sobrevivencia? Sérgio Bianchi — sim, ganhar dinheiro é simples, ¢ uma coisa de mercado, Mas esse € 0 grande pro- blema. Ao transformar certas coisas em mercado, sempre se vai achar alguém que queira ganhar

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