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Oratio - Meditatio - Tentatio.

1
Teologia e Espiritualidade em Lutero

Apontamentos sobre o texto “Uma forma correta de se estudar teologia” (1539)


P.Dr. Paulo Afonso Butzke

Para Nelso Weingãrtner, em gratidão por uma vida dedicada a cativar as novas gerações ao
Evangelho e à Confessionalidade Luterana

Introdução

Uma das questões centrais da teologia é a relação entre fé e conhecimento, coração e razão,
espiritualidade e ciência. Esta relação está posta pela natureza da própria fé, que não é muda, mas
deseja articular-se para tornar-se compreensível, comunicável e convincente (veja-se Salmo 116.10; 2
Coríntios 4.13). O “orar com o espírito” vem acompanhado pelo “orar com a mente” (1Coríntios
14.15, 19). O Shema Israel (Deuteronômio 6. 4-5), confirmado por Jesus como resumo dos
mandamentos (Marcos 12. 29-30), prevê o amor a Deus “de todo coração”, “de toda alma”, “de
todo entendimento”, “de todaforça”. O amor a Deus inclui amá-lo, portanto, com nossa
compreensão racional, intelectual. A relação construtiva ou tensão criativa entre fé e conhecimento,
espiritualidade e ciência, coração e razão, emoção e intelecto é constitutiva para a fé cristã e, portanto,
para a teologia e para a educação teológica. Durante mais de 1.000 anos de história da fé cristã, esta
relação permaneceu estável. Apenas no século XII, com o reforescimento da teologia latina, a ciência
teológica começa a distanciar-se da espiritualidade. Teologia, no sentido estrito, passa a ser apenas
aquela elaborada nas universidades nascentes da alta Idade Média, a teologia escolástica.

Apenas há poucas décadas, a teologia vai novamente tomando consciência de que ao lado da Teologia
Escolástica, havia uma Teologia Monástica que seguia suas próprias regras e conjugava ciência e
espiritualidade em seu labor teológico2. No momento em que cresce a autocrítica da própria teologia
quanto aos limites do método acadêmico e científico, especialmente quanto à primazia do uso da
razão no fazer teológico, a redescoberta da Teologia Monástica suscita esperança quanto à
possibilidade de recuperar a relevância da teologia para a vida e para a espiritualidade. Não se trata,
pois, de substituir uma pela outra, mas sim de reatar um diálogo construtivo. No intuito de contribuir
no restabelecimento deste diálogo interrompido há séculos, apresentamos esta reflexão. Iniciamos,
procurando aclarar o surgimento e as principais características destas duas formas de se fazer teologia
no século XII, tipificando brevemente os seus métodos de trabalho. A exposição da Teologia
Monástica ocupa maior espaço por ser o método teológico a ser redescoberto. Após, apresentamos a
análise de um escrito de Lutero de 1539, intitulado “Oratio-Meditatio-Tentatio: forma correta de se
estudar teologid”, no qual ele apresenta seu método teológico, elaborado a partir das premissas da
Teologia Monástica, recebendo, porém, novos acentos a partir da teologia reformatória. Em seguida,
expomos resumidamente como o binômio teologia- espiritualidade se desenvolveu historicamente no

1
Palestra apresentada em setembro de 2012 no “I Simpósio Internacional de Lutero” organizado pela Faculdade
Luterana de Teologia de São Bento do Sul/Brasil e pelo Departamento de História Eclesiástica da Faculdade de
Teologia da Friedrich Schiller Universitat de Jena/Alemanha.
2
Veja especialmente LECLERCQ, Jean. Wisenschaft und Gottverlangen. Zur Monchstheologie des Mittelalters.
Düsseldorf : Patmos Verlag, 1963. 339 p. BAYER, Oswald. Theologie (HST 1). Güterloh: Güterloher Verlagshaus,
1994. p. 55-105. BAYER, Oswald. Monastische und scholastische Theologie. In: LANDAU, Rudolf; SCHMIDT,
Günter R. „Das allen Menschen geholfen werde...“ Festschrift für Manfred Seitz Stuttgart: Calwer Verlag, 1993. p.
11-16. BERGER, Klaus. Was ist biblische Spiritualitat? Gütersloh: Gütersloher Verlagshaus, 2003. p. 223-227.
meio protestante-luterano. Encerramos esta secção demonstrando os esforços de Dietrich Bonhoeffer
por uma formação teológica capaz de manter unidos o estudo acadêmico da teologia e a prática da
espiritualidade. Esta questão, aliás, está subjacente em toda reflexão. Algumas teses conclusivas
encerram o artigo.

Teologia Monástica e Teologia Escolástica

O século XII foi extremamente profícuo para a teologia. O continente europeu vivia tempos de paz e
prosperidade econômica. A igreja, por sua vez, experimentava os benefícios da reforma gregoriana
ocorrida no século anterior, promovendo a vida eclesiástica e a renovação espiritual, visível
especialmente na criação de novas ordens religiosas e na reforma das existentes. Neste contexto,
também a teologia tomou novo impulso. No século XII, cristalizam-se dois ambientes distintos de
produção teológica: a) os mosteiros e b) as scholae, escolas que surgem nas cidades ao lado das
catedrais e que logo darão origem às universidades. A partir destes dois ambientes surgem dois
modelos distintos de se fazer teologia: a teologia monástica, geralmente representada por Abades
como Bernardo de Claraval, e a teologia escolástica, geralmente representada por teólogos-filósofos
como Pedro Abelardo.

Teologia Escolástica

Contexto do surgimento da Teologia Escolástica é a preparação teológica para o sacerdócio nas


paróquias. Após o estudo das artes, desdobrado no trivium (gramática, lógica e retórica) e no
quadrivium (aritmética, geometria, astronomia e música), estuda- se teologia.

Além de denotar um determinado espaço, o termo “escolástico” refere-se, pois, ao método científico
elaborado a partir da recepção das teses de Aristóteles, especialmente pela utilização do instrumental
da lógica e da retórica aristotélica. Esta metodologia também é aplicada à Escritura, à sacra pagina.
A busca por conhecimento dá-se pelo questionamento, pela questio. Assim, pesquisa-se a Escritura de
forma neutra e objetiva como qualquer outra obra literária a partir das perguntas por autoria,
autenticidade, datação, contexto histórico, motivação e objetivos. Para cada pergunta são arroladas
autoridades e suas opiniões, e do seu embate, a disputatio, estabelecem-se posições, soluções e
sínteses, compiladas nas summas, tratados teológico-escolásticos caracterizados pela sistematização
clara e pela lógica.

A assimilação da filosofia aristotélica com sua cosmovisão sóbria e profana significou marco decisivo
no desenvolvimento da Teologia Escolástica. Como já aludimos acima, a Teologia Escolástica
suplantou a Teologia Monástica a ponto de somente ela ser considerada teologia. Sendo desde suas
origens teologia acadêmica, ela parecia ter muitas vantagens sobre a vertente monástica: ela é racional
e estruturada; e, desde os primórdios, estava aberta ao profano, não precisando primeiro ser
secularizada para adequar-se às exigências do método científico.

Teologia Monástica

O estudioso beneditino Jean Leclercq intitulou do seguinte modo o ensaio no qual apresenta as
características da teologia monástica: “O amor às letras e o desejo de Deus”3 4. Este título descreve

3
LECLERCQ, Jean. L'amour des lettres et le désir de Dieu. Paris : Les Editions du Cerf, 1957.
Utilizamos a tradução alemã desta obra : LECLERCQ, Jean. Wisenschaft und Gottverlangen. Zur Monchstheologie
des Mittelalters. Tradução de Johannes e Nicole Stober. Düsseldorf : Patmos Verlag, 1963. 339 p.
4
Desde as origens, a lectio divina fazia parte da vida monástica. Na Regra de São Bento (480-547) o dia- a-dia no
perfeitamente o programa da Teologia Monástica: O desejo de conhecer e experimentar Deus, que
vem ao encontro do ser humano em sua Palavra e leva o teólogo a aprofiondar-se na compreensão
exata do texto da Escritura com o auxílio da gramática e da filologia, porém, mantendo sempre uma
atitude de oração e meditação.

A teologia monástica acontece no ambiente do mosteiro. Além do estudo das disciplinas do trivium e
do quadrivium, os monges recebem formação espiritual individual sob a supervisão mistagógica do
Abade ou do respectivo diretor espiritual, sendo introduzidos na leitura e meditação da Escritura, na
literatura patrística e na liturgia. A Teologia Monástica é pessoal e parte da busca por crescimento na
fé e aprofundamento da experiência espiritual. Motivação é a santificação da vida na presença de
Deus. O aprendizado vem de Deus e de seu Espírito e é pedido em oração. Assim, a teologia é
atividade orante com consequências para a vida de fé, desembocando na santificação e na
contemplação, envolvendo o ser humano de forma integral.

A Teologia Monástica fundamenta-se em três pilares: a Escritura, a tradição patrística e a literatura


clássica. A formação literária é importante porque prepara para a exegese, que, por sua vez, está a
serviço da meditação da Escritura. Dentre as disciplinas do trivium, a gramática é a mais importante.
A partir do estudo da literatura clássica, mas também a partir dos Salmos e dos comentários bíblicos,
o teólogo aprende a ler, escrever, compreender e interpretar textos. Assim, está pronto para
envolver-se com o texto maior: a Escritura.

A Lectio Divina

Teologia Monástica é totalmente teologia bíblica e seu método de trabalho é a Lectio Divina4,
ocorrendo na interrelação de Lectio - Meditatio - Oratio - Contemplatio. Estes passos formam uma
unidade inseparável, envolvendo o ser humano integralmente. Mesmo que a disposição dos passos
evoque a impressão de etapas subsequentes, é imprescindível ressaltar que a Teologia Monástica
entendia todo seu fazer teológico como oração. Guigo II, Abade da Grande Cartuxa, no escrito
clássico sobre a Lectio

Divina (1150) intitulado “A Escada dos Monges”, descreve o método a partir dos degraus da referida
escada: “A leitura procura a doçura da vida bem-aventurada, a meditação a encontra, a oração a pede,
a contemplação a experimenta. A leitura ... leva à boca o alimento sólido, a meditação o mastiga e
tritura, a oração consegue o sabor, a contemplação é a própria doçura que regala e refaz”5.

A lectio não era simplesmente a leitura muda das palavras. Lia-se formando as palavras com a boca e
os lábios, em uma recitação em voz baixa. Surge, assim, a impressão vocal e acústica das palavras e
frases da Escritura, indispensável para impregnar pro&ndamente o texto na memória. Este “texto”

mosteiro constava de tempos para as orações litúrgicas comuns, para o trabalho e para a lectio divina individual.
Segundo a regra 48, que trata do “trabalho manual cotidiano”, as melhores horas do dia estavam reservadas para a
lectio (“As regras dos monges. São Paulo: Edições Paulinas, 1993. p. 113-115). Diz o texto desta regra: “A
ociosidade é inimiga da alma. Devem, portanto, os irmãos ocupar-se, em certos momentos, com o trabalho manual, e
em outras horas fixas, aplicar-se à leitura espiritual (Regra 48,1). Além destas horas de leitura e meditação individual,
havia a possibilidade de compartilhar impressões e dúvidas surgidas na leitura individual. A instituição dos colóquios
que ocorriam antes ou depois das orações vespertinas ou das noturnas, oportunizavam o compartilhar e o aprendizado
mútuo (LECLERCQ, Jean. Weisen des Gebetes und der Kontemplation in der westlichen Kirche. In: Geschichte der
christlichen Spiritualitãt Bd. 1. Würzburg: Echter, 1993. p. 418).
5
GUIGO II, Cartuxo. Carta sobre a vida contemplativa ou a escada dos monges. In: Lectio Divina: ontem e hoje.
a
2 . ed. Juiz de Fora: Mosteiro de Santa Cruz, 1999. p.15.
geralmente era “uma palavra curta, mas cheia de suaves sentidos para o repasto da alma.”6 Guigo a
compara a palavra da Escritura a um cacho de uvas: “a alma, depois de o examinar com cuidado, diz
em si mesma: ‘pode haver aqui algum bem, voltarei ao meu coração e tentarei, se possível entender e
encontrar esta pureza’ ... Desejosa de explicar mais plenamente ... começa a mastigar e a triturar essa
uva, e a põe no lagar, enquanto excita a razão a procurar o que é e como pode ser adquirida tão
preciosa pureza”. Fica claro que a leitura é, antes de tudo, atividade racional: “a leitura é o estudo
assíduo das Escrituras, feito com aplicação do espírito”. Objetivo, portanto, é compreender o que se
lê, aplicando ao texto bíblico o que ele aprendeu no estudo da gramática. A leitura estudiosa leva
naturalmente à meditação. Ambas praticamente se confundem : “A meditação é uma ação deliberada
da mente, a investigar com a ajuda da própria razão o conhecimento de uma verdade oculta”.7 É ideal
que leitura e meditação permaneçam relacionadas, como alerta Guigo: “a leitura sem a meditação é
árida, a meditação sem a leitura é errônea”.8 A leitura recitativa sugeria a impressão que o texto estava
sendo “mascado”, “mastigado”. Aqui se passa da lectio para a meditatio, que “não se detém no
exterior, não para na superfície... mas penetra no interior, perscruta cada aspecto”.9 À semelhança do
processo de alimentação e digestão, o alimento espiritual, o pão da vida, também deveria ser
mastigado, digerido, ou melhor, ruminado e, assim, degustado e saboreado com o paladar do coração.
Meditatio, assim, passa a ser sinônimo de ruminatio. A denominação ruminatio vem da interpretação
alegórica de Levítico 11.3 e Deuteronômio 14.6 que compara os que meditam continuamente a
palavra com os animais puros que ruminam: “todo o que tem unhas fendidas, e o casco se divide
em dois, e rumina, entre os animais, esse comereis1’.

Desde cedo, os monges apontaram a superioridade da ruminatio sobre outras formas meditação.
Abbas Antonio, ou Santo Antão, patriarca do movimento monástico no deserto egípcio, usa a compara
o camelo e o cavalo para descrever esta superioridade:

“O camelo necessita de pouco alimento. Ele o conserva dentro de si até retornar ao estábulo.
Então deixa o alimento subir e novamente o mastiga, até que penetre em seus ossos e em sua
carne. Já o cavalo necessita de muito alimento; come em todo momento e perde logo o que
acabou de comer. Não sejamos, pois, como o cavalo, recitando em todo momento a palavra de
Deus, mas deixando de vivê-la. Sigamos o exemplo do camelo e recitemos toda a palavra da
Escritura Sagrada, guardemo-la em nós até que a realizemos”10.

A palavra, portanto, deve ser guardada, memorada, para depois ser meditada, ruminada, até
transformar-se em vida. Não a quantidade importa, mas o tempo para ruminar e digerir bem.
Transparece a diferença entre a meditação na forma integral da ruminatio, que é lenta, regular, de
pequenas porções da Escritura, que produz frutos com o tempo, e outra forma que não tem tempo, é
rápida, imediatista, inquieta e, por isso, fugaz e infrutífera.

Fruto da ruminação, por sua vez, é a alegria no Senhor, o regalar-se no sabor do alimento espiritual
recebido. Guigo expressa sua admiração pela riqueza e abundância dos frutos da meditação obtidos de
uma só palavra bíblica: “Vês quanto licor emanou daquela pequena uva, quanto fogo nasceu de uma
centelha, quanto se alargou na bigorna da meditação este pequeno pedaço de metal ... Sinto como é

6
GUIGO II, 1999, p. 15.
7
GUIGO II, 1999, p. 14.
8
GUIGO II, 1999, p.26.
9
GUIGO II, 1999, p. 16.
10
Apotegmata citado por RUPPERT, Fidelis. Meditatio-Ruminatio. Zu einem Grundbegriff christilicher Meditation.
Erbe undAuftrag, Beuron, ano 53, p. 85, 1977.
fundo o poço, mas não passo ainda de um noviço rude, que mal cheguei a tirar algumas gotas.”11 Do
desejo de conhecer melhor, de receber o que se vislumbrou na meditação, brota a oratio. Já não se
trata mais de um conhecer “na casca da leitura, mas no sabor da experiência”12 . Assim, a oração
irrompe na meditação quando esta se deparar com algum discernimento importante. Característico
desta oração é que seus assuntos provém da interação com a Escritura. Neste sentido, a oração no
contexto da lectio divina corresponde à doutrina consensual sobre as características da oração: ela
deveria ser pura, breve e frequente13. A pureza da oração era assegurada quando acontecia livre de
distrações. Isto, porém, não era possível em um longo tempo de oração discursiva.

Por isso, ela deve ser breve. Para compensar a brevidade, a oração deveria ser frequente. Dependendo
do texto bíblico e dos discernimentos da meditação, a oração poderia assumir várias formas: petição,
lamento, confissão, louvor, intercessão.

Envolvida num ambiente de silêncio exterior e interior, as pausas silenciosas da oração podiam
desembocar na contemplatio, oração silenciosa, não racional ou discursiva, pura adoração na
presença de Deus. “A contemplação é um descansar silencioso em Deus, sem palavras ou
pensamentos, sem imagens ou sentimentos, unidade pura com Deus na profundeza da alma”14. Se na
oração o ser humano atingido pela meditação da Palavra traz a Deus suas questões, na contemplação é
Deus que vem ao seu encontro: “E o Senhor ... não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso
da oração, apressa-se em vir à alma que o deseja ... Ele recria a alma fatigada, ... sacia a sua aridez ...
e, embriagando-a, sóbria a torna”15 . Fica claro que a contemplação é iniciativa de Deus. Neste degrau,
o ser humano é totalmente passivo, cabendo-lhe apenas receber e saborear a graça inesperada e rara.
Esta graça também é breve, pois o ser humano não pode suportar por muito tempo “o esplendor da
verdadeira luz”. Assim, é necessário que ele “desça suave e ordenadamente algum dos três degraus
pelos quais subira, e assim, alternadamente, ora em um ora em outro.”16

Correspondência com as raízes bíblicas da meditação

A compreensão monástica da meditação como ruminação, lembra a concepção vétero- testamentária.


A palavra latina “meditatio ”/”meditarf ’ na Vulgata geralmente é a tradução do hebraico “haga”
Para Emmanuel von Severus “as grandes obras de Deus em favor de Israel são objeto da haga,
compreendida como oração lenta, reflexiva, repetida, contemplativa e ponderada, que muitas vezes
também se expressa de forma audível”17. Ela acontece através do movimento dos lábios e da boca,
mas também movendo coração, mente e espírito. Para quem ouve, assemelha-se ao arrolho do pombo
(Isaías 38.14; 59.11). O som da meditação é um suave murmulho, tal o ruído suave da água corrente
ou do ramalhar das folhas18.

Na Septuaginta/LXX “haga” geralmente é traduzida com “meletan”ou ”melete” que significa

11
GUIGO II, 1999, p. 17.
12
GUIGO II, 1999, p. 18.
13
LECRERCQ, 1993, p. 414.
14
FREIDMANN, Edgar. Die Bibel beten. Lectio Divina heute. Münsterschwarzach: Vier Türme Verlag, 1995. p. 23.
15
GUIGO II, 1999, p. 19.
16
GUIGO II, 1999, p. 27.
17
VON SEVERUS, Emmanuel. Das Wort ‘meditari’ im Sprachgebrauch der Heiligen Schrift. Geist und Leben, ano.
26, p. 365-375, 1953.
18
Martin Buber em sua tradução do Salmo 1.2, traduz “haga” com “murmulhar”: “über seiner Weisung murmelt
tages und nachts!”. In: Die Schriftwerke. Verdeutscht von Martin Buber gemeinsam mit Franz Rosenzweig.
Gerlingen: Verlag Lambert-Schneider, 1976. p. 9.
“exercitar-se com afinco”, “estudar”, “conceber” mas também “cuidar”, “tratar”, “guardar”19. No
Novo Testamento, meletan aparece poucas vezes, apenas nos escritos tardios, como, por exemplo, em
1 Timóteo 4.15: “medita estas coisas, e nelas permanece” A ausência nos sinóticos e em Paulo tem
sido atribuída ao desejo de se distanciar da espiritualidade farisaica que murmurava, meditava a Torá,
mas não amava o próximo20. Assim, há a tendência de conceber a meditação sem os elementos
corporais e acústicos. Quando a igreja cristã rompe os limites do judaísmo, adentrando ao mundo
greco-romano, o termo meletan reaparece, especialmente a partir dos séculos III-IV, no movimento
monástico.

A importância da rememoração e da imaginação

Importantíssimo no método da Lectio Divina é o fenômeno da rememoração, fruto da leitura


recitativa, corporal e audível. Espontaneamente o monge lembra de citações e referências bíblicas e as
associa mutuamente, geralmente pela simples semelhança acústica. Assim, cada palavra é um gancho.
Nele, estão penduradas outras palavras que se combinam entre si e formam a textura da exposição 21.
Após anos e décadas da prática da Lectio Divina, o monge dispõe de uma vasta concordância bíblica
em sua memória, um tremendo auxílio para seu labor teológico. Desta forma, o princípio
hermenêutico tipicamente monástico se impõe: “a exegese monástica interpreta a Escritura Sagrada
pela própria Escritura Sagrada”22. Não admira, igualmente, a importância central do texto literal. A
memorização dos textos também era necessária porque havia poucos exemplares da Escritura à
disposição dos mosteiros e nem todos os monges sabiam ler.

À capacidade de rememoração soma-se a capacidade imaginativa extraordinária do ser humano


medieval. Ele é capaz de transportar-se para dentro da cena bíblica e participar dela, interagindo com
os personagens, percebendo ações e emoções. Assim, o texto bíblico não é apenas depositário de
verdades abstratas, mas contém vida, vida eterna.

O uso da exegese medieval

A Vulgata, tradução latina do texto grego da Septuaginta, é o texto de uso sobre o qual se constrói o
conhecimento bíblico e também a meditação. Ponto de partida da interpretação são os comentários
dos pais da igreja, os expositores. Auxílios exegéticos importantes são os léxicos, obras filológicas
que contém a etimologia de nomes de pessoas e lugares bíblicos. Compêndios de ciências naturais
contendo referências sobre animais, minerais, plantas e cores oferecem conhecimento importante para
a interpretação, especialmente para a explicação alegórica dos textos.

Embora lançando mão das ferramentas científicas disponíveis para a exegese, a Teologia Monástica
jamais se aproxima da Escritura como de algum outro escrito da literatura clássica. Ela não é fonte de
conhecimento ou objeto de pesquisa científica - ela é meio para a salvação eterna, pois transmite a
obra divina de redenção e santificação do mundo ocorrida através de Cristo. Esta compreensão da
autoridade da Escritura torna evidentes alguns dissensos fundamentais em relação à Teologia
Escolástica.

O dissenso com a Teologia Escolástica

19
VON SEVERUS, 1953, p. 367.
20
VON SEVERUS, 1953, p. 375.
21
LECLERCQ, 1963. p. 86.
22
LECLERCQ, 1963, p. 94.
A Teologia Monástica se afasta da Teologia Escolástica quando esta não coloca mais seu acento na
gramática, mas na lógica, quando a autoridade da Escritura e dos Pais da Igreja já não são mais
suficientes, quando os filósofos passam a ditar os rumos da teologia, que passa a se expressar por
meio de conceitos abstratos. Na Teologia Monástica a disputatio acontecia apenas no âmbito das sete
artes. Já nas escolas clericais junto às catedrais, acontecia também em torno da Escritura, algo
inadmissível para a Teologia Monástica. Para ela, a disputa pelo prazer de disputar - e não para
procurar a verdade e submeter-se a ela, não passa de uma “contenda de palavras” (1 Timóteo 6.4)
que serve apenas para inflar o ego dos teólogos, assim como distinguido em 1 Coríntios 8.1: o saber
ensoberbece; o amor edifica. Assim, segundo o parecer da Teologia Monástica, os teólogos
escolásticos desrespeitam a Palavra de Deus e a tratam como se fosse uma das sete artes e
transformam a teologia em uma técnica e um conhecimento entre outros. Este desrespeito é
considerado profanação dos mistérios de Deus.

Análise do escrito de Lutero “uma forma correta de se estudar teologia”23

Para iluminar a relação entre Teologia Monástica e Teologia Escolástica, trazemos o testemunho de
alguém que vivia em ambas teologias: Martin Lutero. Ele, enquanto monge, professor universitário e
pregador, respondia às perguntas clássicas da Teologia Escolástica com o instrumental da Teologia
Monástica. Na tentativa de contribuir para o resgate da Teologia Monástica apresentamos Lutero
como teólogo monástico a partir de um de seus escritos tardios, o prefácio às suas obras em língua
alemã de 1539, escrito também conhecido como “uma forma correta de se estudar teologia”

Contexto histórico24

Desde 1518 houveram publicações de coletâneas das obras de Lutero. Tratava-se de um pedido
recorrente geralmente negado por Lutero por sobrecarga de trabalho e desinteresse do próprio
reformador. Em 1528 foi publicada uma destas coletâneas, aumentada em 1533, chamada de
“Catálogo” ou “Registro” de todos seus livros e escritos. A edição aumentada de 1533 foi prefaciada
pelo próprio Lutero. Neste prefácio ele expõe que não tinha interesse em preservar sua obra literária, à
qual atribuía apenas certa importância histórica. Seu interesse exclusivo era a primazia da Escritura.
Temia que os livros teológicos ocupassem o lugar dela.

Em 1537, por iniciativa de Wendelin Rihel, um editor de Estrasburgo, Lutero foi mais uma vez
pressionado a consentir com a edição de uma nova coletânea. Rihel argumentava com a promoção da
unidade evangélica que tal coletânea traria. Em julho de 1537 Lutero reagiu com reserva dizendo que
apenas “De ServoArbitrio” e os Catecismos mereceriam ser novamente publicados. Meses mais tarde,
Lutero foi ainda mais enfático afirmando que os livros teológicos sempre serviram para desviar a
Igreja da Bíblia. Novamente atribui apenas um significado histórico aos seus livros, por serem
documentos de seu conflito com o Papa. A edição de Estrasburgo nunca foi levada a cabo.

Editores de Wittenberg e Ausgburgo, porém, continuaram pressionando Lutero e acabaram realizando


o projeto. Os organizadores foram Georg Rorer e Kaspar Cruciger, sendo que o primeiro foi liberado
de suas funções diaconais junto à comunidade de Wittenberg para dedicar-se à organização da

23
WA 50, 657-661. Ainda não há uma tradução para o português. Apenas partes foram traduzidas. Para a análise a
seguir, utilizo minha própria tradução.
24
Mais informações em BRECHT, Martin. Martin Luther. Bd 3 - Die Erhaltung der Kirche: 1532-1546. Berlin:
Evangelische Verlagsanstalt, 1990. p. 144-148. Veja-se também BAYER, Oswald. A teologia de Martin Lutero. Uma
atualização. São Leopoldo: Sinodal, 2007; STOLINA, Ralf. Gebet - Meditatio - Anfechtung. Wegmarken einer
theologie experimentalis. In: Zeitschrift für Theologie und Kirche, Tübingen, v. 98, p. 81-100, 2001.
coletânea. O Príncipe Eleitor contribuiu com o projeto continuando a pagar os proventos de Rorer. Já
em 1539 foi publicado um primeiro volume dos escritos em alemão com a interpretação das cartas do
Novo Testamento. Lutero escreveu o prefácio cujo conteúdo iremos analisar. Logo no início, ele
repetiu as reservas já conhecidas: preferia ver seus livros e escritos esquecidos a fim de que não se
perca com eles o tempo precioso a ser dedicado ao estudo da Escritura (WA 50, 657, 1-11).
Justamente para promover este estudo, Lutero esmerou-se em traduzi-la para o alemão - para que se
escreva menos e se leia e estude mais a Escritura, bebendo-se, assim, da fonte pura e fresca. “Importa
que deixemos os apóstolos e profetas estar no púlpito e nós assentados a seus pés ouvindo o que
dizem ” (WA 50, 657, 28-30). Como Lutero não conseguiu impedir a publicação da coletânea,
consola-se com a certeza de que seus livros e escritos logo estarão esquecidos como os de todos os
outros autores ao longo da história da igreja. Recomenda a seus leitores que tomem cuidado para que
esta leitura não atrapalhe o estudo da Escritura. Deseja que sigam o exemplo de Agostinho “que não
se deixava influenciar pelos livros dos pais ou dos santos mas estava exclusivamente sujeito à
Sagrada Escritura” (WA 50, 657, 21-28).

Se o Papa tivesse seguido o exemplo de Agostinho não teria se tornado o “Anticristo” e a Bíblia teria
permanecido no púlpito. Lutero, entretanto, considera útil e interessante que alguns de seus livros
permaneçam como testemunho histórico da obra realizada pela Palavra de Deus. Aprofundando sua
reserva com relação à tradição e à teologia, afirma que os livros eclesiásticos e teológicos não devem
ser o objeto primordial de estudo nem a norma para a conduta e a vida de fé. Fica evidente, assim, que
para Lutero, no círculo hermenêutico composto de Escritura - Tradição Eclesiástica - Interpretação, o
peso recai totalmente sobre a Escritura, sendo que o fazer teológico depende justamente do modo
correto de se aproximar dela.

As três regras para o correto fazer teológico

Lutero aproveita a ocasião do prefácio para expor a sua visão e prática acerca da “forma correta de se
estudar teologia” (WA 50, 658, 29-30). No título, a expressão “rechte Weise”, “forma correta” ou
“certa”, talvez melhor traduzida como “adequada”, isto é, correspondente ao objeto de estudo. Do
texto que se segue, também é possível depreender que “studirn”, “estudar” não se refere apenas ao
tempo de formação teológica, mas diz respeito a todo labor teológico ao longo da vida do teólogo. Ele
apresenta sua forma de estudar e fazer teologia em contraposição com outras formas, que ele julga
inadequadas. Para apresentar o seu método, Lutero extrai do Salmo 119 “três regras”: “Oratio,
Meditatio, Tentatio” (WA 50, 659, 1-4). Alguns detalhes deste parágrafo chamam a atenção:

a) O uso do Salmo 119, o salmo de exaltação à Palavra de Deus, demonstra que para Lutero o
fazer teologia é trabalho com e na Escritura. As regras são as formas corretas de se relacionar com ela.

b) Cada um dos termos é considerado uma “regra”, ou seja, um conjunto de princípios e


procedimentos obrigatórios que configuram o modo apropriado para se interagir com a Bíblia e, por
conseguinte, de se fazer teologia.

c) A exposição das regras é sistemática e obedece a uma estrutura comum. Cada regra é
apresentada e explicada em dois parágrafos. No final do texto, Lutero retoma o Salmo 119 e
comprova que suas regras correspondem ao testemunho bíblico.

d) as regras Oratio, Meditatio, Tentatio estão escritas em maiúsculo e em latim em meio a um


texto em língua alemã. Isto evidencia que Lutero as considerava termos técnicos conhecidos por todos
por serem oriundos da tradição espiritual e teológica da igreja.

Suas regras, portanto, estão postas em relação com esta tradição. Lutero, porém, modifica a seqüência
canônica típica para a teologia monástica que consistia em Lectio - Meditatio - Oratio -
Contemplatio, a metodologia da Lectio Divina, como vimos. No método apresentado por Lutero, a
Lectio é assimilada pela Meditatio; a Oratio e a Meditatio invertem a ordem; e a Contemplatio
parece ser substituída pela Tentatio. As implicações teológicas e práticas destas modificações
veremos a seguir na apresentação das regras sugeridas por Lutero.

A O RATIO

“Em primeiro lugar, deves saber que a Escritura Sagrada é um livro tal que converte a sabedoria
de todos os outros livros em insensatez porque nenhum deles ensina sobre a vida eterna, a não
ser ela. Por isso, imediatamente deves desanimar em teu entendimento e razão. Pois, com eles
não a alcançarás, mas com tal arrogância lançarás a ti mesmo e a outros do céu (como
aconteceu com Lúcifer) para o abismo do inferno. Mas ajoelha-te em tua cela e pede com
humildade e seriedade honestas a Deus que ele, através de seu amado Filho, te dê seu Espírito
Santo para que te ilumine, dirija e te conceda entendimento.

Como vês no Salmo acima mencionado [119] que Davi sempre pede: ‘ensina-me, Senhor,
instrui-me, dirige-me, mostra-me ’ e muitas palavras como essas. E ele, mesmo conhecendo bem
o texto de Moisés e outros livros mais, o ouvia e lia diariamente, mesmo assim ele quer para tal o
verdadeiro mestre da Escritura para que não caia sobre ela com a razão e se torne seu mestre.
Pois é daí que surgem os sectários que em sua presunção pensam que a Escritura lhes está
sujeita e compreendida facilmente com a razão, como se fosse uma fábula de Marcolfo ou Esopo,
porque acreditam não necessitar do Espírito Santo e da oração. ” (WA 50, 659,5-21)

Lutero inicia com um louvor à Bíblia como sendo o único livro capaz de nos ensinar sobre a vida
eterna. Neste sentido, ela se diferencia de todos os outros livros cujo conteúdo é acessível à razão
humana. Ela presta-se para discernir questões terrenas e temporais, mas não serve para compreender o
que se relaciona à salvação eterna.

Motivo desta incapacidade é o pecado que, segundo Romanos 1.21-22, tornou o raciocínio humano
“nulo” e o coração humano “obscurecido” e “insensato”, culminando na afirmação: “não há Deus”
(Salmo 14.1). Quando o assunto é a salvação eterna, a sabedoria humana contida em “todos os outros
livros” é transformada em insensatez, em loucura pela Escritura (1 Coríntios 1.20). A atitude
arrogante de procurar alcançar o céu com a razão e o entendimento humano provoca o desastre: a
queda no “abismo do inferno”. A polêmica contra uma teologia especulativa que se vale apenas da
capacidade racional é contundente. Quem se aproxima da Escritura apenas a partir de sua capacidade
intelectual e deseja interpreta-la a partir de paradigmas hermenêuticos humanos nada consegue. A
Escritura não se deixa sujeitar. O resultado é a formulação de interpretações equivocadas que resultam
em cismas e seitas. E o caminho da vida eterna, a justificação do pecador, não é revelado.

À arrogância e à presunção de querer tornar-se “mestre” da Escritura, sujeitando-a à própria razão,


Lutero contrapõe uma atitude de humildade: “...Mas ajoelha-te em tua cela e pede com humildade
e seriedade honestas a Deus que ele, através de seu amado Filho, te dê seu Espírito Santo para
que te ilumine, dirija e te conceda entendimento. ” Já mencionamos que Lutero modificou a
sequência dos passos ou degraus da Teologia Monástica medieval. A inversão de Meditatio e Oratio,
porém, expressa com maior clareza a convicção monástica de que todos os passos da lectio divina são
oração. Ela tem a função de oração preparatória e epiclética, pedindo pela iluminação e direção do
Espírito Santo no processo de meditação e interpretação da Escritura. Lutero expressa, assim, que a
atenção amorosa com a qual nos dirigimos a Deus é a raiz da meditação. O teólogo é o orante que
com sua oração preparatória ingressa no espaço da graça divina, espaço no qual espera receber
dádivas divinas e no qual seu ser integral, e não somente seu intelecto, será exposto ao agir divino.

O espaço físico onde acontece a Oratio também é importante: é a cela monástica, “Kammerlein”.
Aludindo a Mateus 6.6, trata-se de um cômodo no qual é possível passar um tempo em oração e
meditação sem ser perturbado. Por isso, na tradição monástica, a cela era o lugar preferencial da
ascese, do exercício, na qual o monge passava o tempo reservado para a meditação da Escritura e
leitura espiritual. É sabido que Lutero em sua vida pós-monástica, preservou a ritmo monástico de
oração e trabalho. Na parte da manhã, havia um tempo de cerca de três horas de oração e meditação
preservado das perturbações da agenda diária25. Trata-se, portanto, do período mais apropriado para o
estudo e a concentração.

A M EDITATIO

Em segundo lugar, deves meditar, isto é: não somente com o coração, mas também exteriormente,
através da recitação oral e da palavra literal no livro, repetir e comparar, ler e reler com
reflexão e atenção dedicada o que o Espírito Santo quer dizer com ela. E tome cuidado para que
não te entedies ou penses que tendo uma ou duas vezes lido, ouvido ou dito já seja suficiente e
entendes tudo completamente. Daí não sairá nenhum teólogo especial, e eles são como as frutas
prematuras que caem antes de estarem meio maduras.

Por isso vês no mesmo Salmo como Davi sempre enaltece, queira ele falar, compor, declamar,
cantar, ouvir, ler, dia e noite e sempre, mas nada senão a Palavra de Deus e os mandamentos.
Pois Deus não quer te dar o seu Espírito sem a palavra externa, nisto podes te orientar, pois ele
não te ordenou em vão escrever, pregar, ouvir, cantar, declamar etc exteriormente. ” (WA 50, 659,
22-35)

A compreensão de Meditatio

Em nosso texto, Lutero não explica o que ele entende por meditação. As poucas passagens sobre o
tema em sua vasta obra, sugere que sua compreensão e sua prática inseria-se no que era consensual na
igreja de sua época. Uma definição clara e precisa sobre sua compreensão de meditação encontramos
na Preleção de 1513 sobre os Salmos, no comentário do Salmo 1.2: “meditari in lege Domini die ac
nocte”/Vulgata:26

“Mesmo que os animais pareçam ter alguma imaginação e ponderação (imaginari et cogitari), a
meditação é característica humana. Pois, sua força está na reflexão racional. No entanto, meditação

25
Além deste exercício espiritual pessoal, a espiritualidade de Lutero também possuía formas familiares e
comunitárias que deu origem às nove formas tradicionais da espiritualidade luterana: o culto, os sacramentos -
batismo, confissão e santa ceia, a poimênica fraterna, o hino evangélico (hinário), a leitura bíblica, a oração (livros de
orações), o Catecismo Menor (doutrina elementar). Veja BUTZKE, Paulo. Espiritualidade. In: Dicionário Brasileiro de
Teologia. São Paulo: ASTE, 2008. p. 387-391.
26
o texto com as anotações de Lutero para a preleção de 1513 encontra-se em WA 3, 19, 24-34; o mesmo texto
revisado para publicação datado de 1516, encontra-se em WA 55 II 1, 11, 26-12,10 - é a tradução deste que
oferecemos.
e reflexão são diferentes. Meditação é reflexão perseverante, profunda e atenta. Épropriamente um
ruminar no coração. Por isso, meditação significa, ao mesmo tempo, ir ao centro ou ser movido pelo
centro ou pelo mais íntimo. Quem, portanto, no seu âmago pondera, sonda e reflete, este medita ”.

Duas distinções fundamentais chamam atenção: 1) Meditação é atividade reflexiva, intelectual, que,
no entanto, ocorre no âmago do ser humano, ocorre no coração. Trata- se, pois, de um transitar com o
texto entre razão e coração; 2) Meditação é um relacionamento intensivo com algo externo ao ser
humano - a Palavra da Escritura. A partir de Lutero, meditação é sempre meditação da Escritura.

As indicações práticas para a Meditatio

Voltemos ao texto de 1539. Nas poucas frases em que Lutero explica a Meditatio, observamos as
indicações para a prática e a motivação teológica. Ao modificar a seqüência tradicional da Teologia
Monástica, ele inclui a Lectio na própria Meditatio: “deves meditar, isto é: não somente com o
coração, mas também exteriormente, através da recitação oral e da palavra literal no livro,
repetir e comparar, ler e reler com reflexão e atenção dedicada o que o Espírito Santo quer dizer
com ela ”. Ao propor a “recitação oral” das palavras do texto bíblico, Lutero propõe a ruminatio,
assim como já foi descrita na prática monástica. Ao descrever a meditação como repetição e
comparação, o ler e reler, deixam claro que ele contava com o fenômeno da rememoração.

Outro aspecto importante para a meditação ressaltado por Lutero é que sua prática deve ser contínua,
regular, assídua27. Trata-se, pois, de um “exercício ascético” (do grego “askein”, “exercitar”) que
exige disciplina e paciência. Quem se aproxima do texto com pressa e se contenta com uma
compreensão superficial, jamais chegará a ser um bom teólogo. Aquele, porém, que com paciência,
diligência e regularidade - “de dia e de noite e sempre” - aguarda o Espírito Santo falar através da
palavra da Escritura poderá vir a sê-lo. O objetivo deste processo lento de sondagem da “palavra
literal" da Escritura é chegar à percepção do “que o Espírito Santo quer dizer com ela"".

Através de seu escrito “Uma singela forma de orar - para um bom amigo"" 28 (1535), dedicado ao
seu amigo Pedro Barbeiro, é possível se ter uma visão mais clara da prática meditativa de Lutero.
Neste texto, ele apresenta o seu método pessoal de meditação para textos do Catecismo
(Mandamentos, Pai Nosso, Credo) e textos bíblicos. Este método29, intitulado “Coroazinha
Quádrupla” ou “Trança de Quatro Cordões”, consistia basicamente na meditação e oração do texto a
partir de quatro perguntas aplicadas alternadamente ao texto: a) O que eu aprendo? (doctrina); b) pelo
que tenho a agradecer? (gratiarum actio); c) o que tenho a confessar? (confessio) e d) pelo que
quero pedir? (oratio). A meditação se dá, portanto, pela alternância entre reflexão cognitiva e oração,
desembocando, se o Espírito Santo o conceder, na fala do próprio Deus. Neste momento devem
silenciar os pensamentos e as orações: “Quando vem tais pensamentos ricos e bons, deve-se ...

27
O caráter do exercício regular também é ressaltado por Lutero quando ele propõe a meditação do conteúdo do
Catecismo: “Quanto à minha pessoa digo o seguinte: também sou doutor e pregador e, na verdade, tão erudito e
experiente quanto todos aqueles presunçosos, seguros de si. Mesmo assim, procedo como uma criança a quem se
ensina o catecismo: de manhã, e sempre que tiver tempo, leio e repito, palavra por palavra, o Pai-Nosso, os Dez
mandamentos, o Credo, alguns Salmos etc. Preciso continuar lendo e estudando diariamente, e ainda assim não me
saio como gostaria, precisando continuar sendo criança e aluno do catecismo. E assim permaneço de bom grado. (...)
Pois, (...) aqueles textos são proveitosos enquanto forem lidos diariamente, exercitados em pensamento e
pronunciando as palavras.
Pois o Espírito Santo está presente nesta leitura, neste falar e pensar. Ele sempre acrescenta uma nova luz, uma nova
intuição, de modo que a gente acaba gostando e assimilando cada vez mais...” LUTERO, Martinho. Catecismo Maior
do Dr. Martinho Lutero. Trad. Walter Schlupp. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 2012. p. 19.
ouvi-los em silêncio ... pois ali esta pregando o próprio Espírito Santo. E uma palavra de sua pregação
é melhor que mil orações nossas. Assim ... aprendi mais em uma só oração do que poderia ter
conseguido com muita leitura e reflexão.”30 Aqui Lutero descreve a transição para a contemplação, na
qual Deus se revela e o ser humano silencia. Contemplatio é experiência passiva que depende
unicamente da graça divina, jamais fruto de métodos humanos.31

Motivação teológica da Meditatio

Ao relacionar reflexão interior com a palavra exterior da Escritura, Lutero tem uma intenção teológica
que ele expressa na frase: “Pois Deus não quer te dar o seu Espírito sem a palavra externa” (WA
50, 659, 32-33). Aqui nos confrontamos com uma das teses fundamentais da pneumatologia de
Lutero: o Espírito Santo, em sua liberdade, decidiu agir através dos meios externos da Palavra da
Escritura e dos Sacramentos. Contra os entusiastas de sua época, ele acentua estes meios exteriores,
apontando os perigos de uma revelação privada e subjetiva como algo não controlável pela
comunidade e fadada a desembocar em cismas e heresias.

A “palavra externa” através da qual é dado o Espírito Santo corresponde à “palavra literal”. A
referência à ‘“palavra literal” remete a fundamentos da hermenêutica de Lutero. A interpretação
parte do seu sentido literal-histórico, sendo que os demais sentidos, o alegórico-espiritual, o
moral-tropológico e o anagógico-escatológico, embora ainda utilizados, perdem sua importância. O
acento na “palavra literal” partia das teses hermenêuticas fundamentais de que a) a palavra se
interpreta a si mesma e b) 28 29 30 31 que ela é claríssima na sua função de revelar a Cristo através do
Evangelho. Assim, o sentido espiritual já está no literal. Consequência é que exegese e meditação não
se excluem - pelo contrário. A exegese leva à meditação e a meditação leva à exegese. Por um lado,
do trabalho exegético com a gramática, filologia, história, etc, podem surgir discernimentos
meditativos importantes. Por outro, do contínuo ler, reler e comparar da meditação pode-se chegar a
discernimentos exegéticos importantes. Essencial, no entanto, é perceber que o Espírito Santo assume
o papel de intérprete, não só das Escrituras, mas a partir dela, de toda minha existência.

A T ENTATIO

Em terceiro lugar, há a Tentatio, provação. Ela é a pedra de toque, ela te ensina não somente
saber e compreender, mas também a experimentar quão justa e verdadeira, doce, agradável,
poderosa, consoladora é a Palavra de Deus, sabedoria sobre toda sabedoria.

Neste sentido, vês que Davi no mencionado Salmo muitas vezes lamenta acerca de todo tipo de
inimigo, príncipes e tiranos sacrílegos, acerca de espíritos enganadores e sectários, que ele tem
que sofrer pelo fato de meditar, isto é: relacionar-se com a Palavra de Deus (como foi dito) de
diferentes formas. Pois assim que a Palavra de Deus brilhar através de ti, o diabo irá te fustigar
e fazer de ti verdadeiro doutor e através de suas provações te ensinará a procurar e amar a
Palavra de Deus. Pois eu mesmo tenho muito a agradecer a meus papistas que eles, através dos
ataques do diabo me atingiram, ameaçaram e amedrontaram de tal maneira que me tornei um
28
LUTERO, Martinho. Uma forma singela de orar, para um bom amigo. In: . Obras
Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal; Porto Alegre: Concórdia, 1995. V. 5, p. 132-148.
29
Veja BUTZKE, Paulo Afonso. Aspectos de uma espiritualidade luterana para nossos dias. In: Estudos Teológicos,
v.43, n.2. p.117-120, 2003.
30
LUTERO, 1995. V. 5, p. 138.
31
Destarte fica claro porque Lutero, apesar de contar com a experiência mística da contemplação, não a inclui nas
regras do fazer teológico.
teólogo relativamente bom, que de outro jeito não teria me tornado. E no que diz respeito ao que
lucraram comigo, lhes concedo de coração honra, vitória e triunfo, pois assim eles o quiseram.
(WA 50, 660, 1-16)

A Tentatio ocupa o lugar onde tradicionalmente estava a Contemplatio, o ponto alto do exercício
espiritual, a experiência do saborear a presença e o encontro com Deus. Ao modificar a tradição,
Lutero afirma que a experiência da presença e do encontro com Deus se dá na Tentatio, na provação.
Como compreender isto?

Não há como negar: quem medita, sofre. Lutero se vê na situação do salmista e denomina
concretamente seus inimigos: “príncipes e tiranos sacrílegos” e “espíritos enganadores e
sectários”. Por um lado, portanto, estão os entusiastas, os evangélicos radicais, e por outro, o Papa
romano e seus seguidores como o Rei Ferdinando, o Duque Jorge da Saxônia ou o Duque Henrique de
Braunschweig. Todos impedem o livre curso do Evangelho. Ao falar de Tentatio, provação, Lutero
não se volta primeiramente para as questões interiores que afligem a alma, mas para o exterior, para o
que aflige o ser humano, a sociedade e o Reino de Deus. Perceber estruturas sociais e políticas como
anti-divinas é fruto da Meditatio: “assim que a Palavra de Deus brilhar através de ti, o diabo irá
te fustigar”, através do discernimento da situação social e política e do sofrimento de alguém
atingido existencialmente. Quem medita a Palavra é colocado através dela no horizonte da história da
salvação, em meio a acontecimentos escatológicos e apocalípticos. Por isso, a meditação não é
acontecimento privado, particular - é acontecimento público e universal.

Por tudo isso, o que acontece na meditação, não pode ser resumido ao “saber e compreender” -
trata-se de “experiência” com a Palavra de Deus, de que ela é “... justa e verdadeira, doce,
agradável,poderosa, consoladora ... sabedoria sobre toda sabedoria” (WA 50 660, 2-4).
Interessante é que Lutero utiliza termos típicos com os quais a tradição da mística cristã descrevia o
que ocorria na Contemplatio. Esta experiência, porém, não se dá mais no silêncio do mosteiro, mas
no dia-a-dia da vida social, profissional e familiar do cristão que medita e vive a Palavra de Deus. Em
outras palavras: o cristão está continuamente exposto à Tentatio. E justamente ela é a "pedra de
toque”, ou seja, a aferição com a qual é possível avaliar a qualidade da Palavra de Deus. Assim, a
Tentatio não serve para avaliar e provar a fé do ser humano, mas o poder da Palavra justamente em
situações de tentação e provação.32 Por isso, quem medita "sofre” esta experiência com a Palavra
como uma experiência passiva, paralela à justiça passiva que justifica o pecador pela graça divina.
Esta experiência que me impacta integralmente, pois, não é qualquer experiência - é a experiência
com a Palavra de Deus. Esta passividade também compreende o fato de que não sou eu que interpreto
a Palavra com instrumentos e métodos teológicos - mas é ela que interpreta minha vida e a situação do
mundo. Teologia, neste sentido, é o exercício passivo de permitir que o autor da Escritura julgue
minha vida, atingindo-me pela sua palavra como lei e como evangelho, ou seja, mostrando meu
pecado e perdição e revelando-me Cristo e sua obra salvífica. Neste sentido, a Tentatio também
lembra que teologia no sentido evangélico sempre é teologia da cruz, que o "escândalo da cruz” (Gl
5.11)) não cessou e que trazemos "as marcas de Jesus” (Gl 6.17) em nossa vida. Tentar evitar a
Tentatio e a cruz pode, assim, significar tornar-se "inimigo da cruz de Cristo” (Fl 3.18).

A conclusão do prefácio

32
BAYER, 1994. p. 101.
Após discorrer sobre as três regras, Lutero volta ao assunto que deu origem ao seu escrito: a
publicação de seus livros. Se as três regras forem praticadas, o resultado será a valorização da Palavra
de Deus acima de todos os outros escritos, tanto os da tradição quanto os dos inimigos e também os
próprios: "Não irás desprezar somente os livros dos teus adversários, mas também os teus
próprios, no escrever e no ensinar, quanto mais tempo, menos os apreciarás. Se tu chegaste até
aqui, então espere consolado que começaste a te tornar um verdadeiro teólogo” (WA 50, 660,
24-26), apto para ser mestre da igreja de Cristo. Quem, ao contrário, através de obras teológicas,
busca honra própria é desafiado por Lutero: "...pega nas tuas orelhas e se pegaste direito irás
encontrar um par de grandes, compridas e ásperas orelhas de burro. Se quiseres, podes
adorná-las com guizos para que, onde quer que andares, sejas ouvido e te apontem o dedo e
digam: vejam, vejam, aí vai o animal requintado que sabe escrever livros excelentes e pregar de
forma brilhante” (WA 50, 660, 35ss). Por ter a Escritura como objeto de estudo, cabe ao teólogo
humildade - e ao autor da Escritura, o próprio Deus - pertence toda a honra.

Teologia e Espiritualidade

Desenvolvimento histórico

A partir do exposto, depreendemos que, para Lutero, teologia é a reflexão e a expressão do


relacionamento com Deus possibilitado pelo Espírito Santo que, valendo-se prioritariamente da
meditação orante da Escritura, leva o ser humano à experiência da fé em meio às ambiguidades da
vida. Assim, teologia acontece em meio à prática da espiritualidade e de suas formas tradicionais
(oração, meditação da Escritura, culto, sacramentos etc). Para definir o relacionamento adequado de
teologia e espiritualidade é importante observar que Lutero, não obstante sua veemente crítica ao
caráter meritório da ascese monástica, ele continuou a praticar, ao longo de toda sua vida, as formas e
os exercícios aprendidos no tempo de seu noviciado. No entanto, a partir de sua nova visão teológica
determinada pela compreensão da justificação por graça e fé, ele liberta as formas e os exercícios da
tradição espiritual, posicionando-os no horizonte da liberdade cristã. Além disso, através de muitos
escritos específicos, os disponibilizou a todos os cristãos para que sustentassem a vivência de seu
sacerdócio em meio à vida cotidiana. Nos anos que se seguiram à Reforma, apesar das disputas em
torno da pureza da nova doutrina, típicas para o tempo da Ortodoxia, a relação construtiva entre
teologia e espiritualidade, constatada especialmente na centralidade da Escritura e seu uso espiritual a
partir das regras Oratio - Meditatio - Tentatio estabelecidas por Lutero, permaneceu inalterada. Os
grandes teólogos luteranos desta época - um exemplo típico é Johann Gerhardt (1582-1637) -
conseguiam unir o labor teológico científico, publicando obras teológicas relevantes, e a preocupação
com a espiritualidade, publicando também obras voltadas para a prática da fé.

No momento em que a teologia luterana passa a ser absorvida por disputas teológicas internas, a
relação com a espiritualidade se retrai. Assim, “o déficit de espiritualidade na teologia protestante
inicia já no século XVII, em virtude do estabelecimento de uma mentalidade tipicamente luterana de
disputa e controvérsia”33. Sem respaldo teológico, a espiritualidade exila-se na piedade pessoal que,
paulatinamente, vai perdendo a noção dos exercícios que ligavam apraxispietatis à Escritura,
abandonados também em virtude de um anti-catolicismo crescente.

O Pietismo surgiu como movimento de renovação teológica e eclesiástica no final do século XVII. A
vertente luterana tinha como preocupação central a vivência da espiritualidade cristã baseada na
Palavra de Deus. Phillip Jakob Spener, August Hermann Francke, Johann Albrecht Bengel e Gerhard
Tersteegen, apenas para citar alguns dos representantes principais, sugerem a reforma do estudo da
teologia baseada no aprendizado e na vivência das formas elementares da praxis pietatis luterana,
especialmente a introdução às regras de Lutero acerca do correto fazer teológico, oratio - meditatio -
tentatio.34 Para os petistas luteranos permanecia válido o axioma de Lutero: “A oração, a meditação e
a provação são as três partes que fazem o verdadeiro teólogo”35.

Enquanto isso, nas universidades, o distanciamento entre teologia e espiritualidade torna-se


rompimento definitivo quando a razão passa a ser o único fundamento de toda ciência, inclusive da
teologia. Segundo Hugo Grotius, o direito natural deveria valer “etsi deus non daretur” - “como se
Deus não existisse”33 34 35 36. Este axioma ateísta passa a ser fundamento de todos os métodos
científicos. Consequência foi a adoção da metodologia ateísta também na teologia, especialmente na
exegese. Observa-se, igualmente, grande otimismo quanto ao desenvolvimento cultural. A teologia
liberal, inclusive, via no desenvolvimento da cultura a chegada do reino de Deus. Para a maioria dos
teólogos protestantes, a espiritualidade e a mística eram fenômenos tipicamente católicos e
diametralmente contrários à fé protestante, cuja característica maior era a concentração na ética. A
reação barthiana e sua teologia dialética aprofundou o preconceito.

Dietrich Bonhoeffer e a experiência em Finkenwalde

Uma luz nesta escuridão foi acesa por Dietrich Bonhoeffer que, na formação teológica ilegal no
Seminário da Igreja Confessante em Finkenwalde,3 do qual era diretor, tentou novamente ligar
teologia e espiritualidade a partir do estudo de teologia e da vida em comunhão37 38 dos estudantes.
Uma carta datada de 19.09.1936 e endereçada justamente a Karl Barth39, ainda pode nos inspirar hoje:

“O trabalho no Seminário me traz muita alegria. Trabalho científico e trabalho prático estão muito
bem interligados. Penso que, no geral, as mesmas perguntas que me movem há algum tempo também
são feitas pelos jovens teólogos que vem ao Seminário... Não fazemos ideia de quão vazios, quão
exauridos a maioria dos irmãos chega ao Seminário. Vazios tanto no que diz respeito aos
conhecimentos teológicos e especialmente aos conhecimentos bíblicos, quanto também em relação à
sua vida pessoal. Em uma reunião - a única na qual participei - você, estimado Professor, falou
seriamente aos estudantes sobre sua disposição de, por vezes, deixar de lado todas as preleções e,
invés disso, visitar cada estudante em sua moradia e perguntar-lhe, como o velho Tholuck: como está

33
RUHBACH, Gerhard. Theologie und Spiritualitat. Gõttingen: Vandenhoeck und Ruprecht, 1987. p. 153
34
BAYER, Oswald. Lutherischer Pietismus. Oratio, Meditatio, Tentatio bei Ausgust Herrmann Francke. In: BEUTEL,
Albrecht; RIEGER, Reinhold. Religiõse Erfahrung und wissenschaftliche Theologie. Festschrift für Ulrich Kõpf.
Tübingen : Mohr Siebeck, 2011. p. 1-12.
35
FRANCKE, August Hermann. Einfaltiger Unterricht, Wie man die Heilige Schrift zu seiner wahren Erbauung lesen
solle. Halle, 1731. p. 18-19. Disponível em: http://digitale.bibliothek.uni-halle.de/ id/3276322. Acesso
em: 30.01.2013. Este escrito, simples e direto, dirigia-se a leigos interessados em meditar a Escritura. Já o escrito
“Methodus Studii Theologici” oferece a mesma introdução a teólogos profissionais. Chama atenção que a
apresentação da “meditatio” ocupa 162 páginas da obra. Espiritualidade e Teologia continuavam unidos.
36
Citado por ZIMMERLING, Peter. Evangelische Spiritualitat. Wurzeln und Zugange. Gõttingen: Vandenhoeck und
Ruprecht, 2003. p. 17.
37
Esteve em atividade de 1935 a 1039, quando foi fechado pela Gestapo, polícia nazista.
38
Bonhoeffer relata a experiência feita em seu escrito “Vida em Comunhão” (BONHOEFFER, Dietrich. Vida em
comunhão. 3. ed. revisada São Leopoldo: Sinodal, 1997. 95 p. Outro fruto das preleções em Finkenwalde é o livro
“Discipulado” (BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. Sâo Leopoldo: Sinodal, 1980. 196 p.). As duas obras são
complementares e testemunham a unidade entre teologia e espiritualidade na obra de Bonhoeffer.
39
Barth havia expressado incompreensão para a tentativa de Bonhoeffer de introduzir os estudantes de teologia na
vida espiritual, especialmente na meditação da Escritura, percebendo na experiência um “indefinível cheiro
monástico” - veja: BONHOEFFER, Dietrich. Illegale Theologen-Ausbildung: Finkenwalde 1935-1937. München:
Chr.Kaiser Verlag, 1996. p. 249-253.
a tua alma? Esta dificuldade até agora não está sanada, também não pela Igreja Confessante.

Há muito poucos que reconhecem esta tarefa junto aos jovens estudantes como uma tarefa eclesiástica
e se desincumbem dela. Na verdade, porém, todos esperam por isso. Eu não sei ao certo como fazê-lo,
mas eu indico o cuidado mútuo dos irmãos, e isto me parece ser o mais importante. Certo é que tanto
o trabalho teológico quanto uma real comunhão fraterna só pode se desenvolver através de uma vida
(comunitária) determinada pela concentração matutina e vespertina em torno da Palavra e pelo tempo
estritamente reservado à oração... A acusação que isto seja legalismo não me atinge. O que há de
legalismo no fato de um cristão desejar aprender o que é oração e investe boa parte de seu tempo neste
aprendizado? Recentemente, um dos principais líderes da Igreja Confessante me disse: ‘para a
meditação nós agora não temos tempo, os candidatos deveriam aprender a pregar e a catequisar’. Ora,
isto é total desconhecimento da realidade do atual estudante de teologia e desconhecimento infame de
como se prepara uma prédica ou uma catequese. As perguntas que hoje nos são feitas como toda
seriedade pelo jovens teólogos são: como apendo a orar? Como aprendo a ler a Escritura? Ou nós
conseguimos auxiliá- los nisto ou não conseguiremos auxilia-los de nenhuma maneira. Não é possível
pressupor nada! E dizer que se alguém não sabe isto então não deveria querer ser teólogo, significaria
excluir a maioria desta profissão. Que estas questões somente tem o seu direito quando,
paralelamente, - ao mesmo tempo! - realmente se faz trabalho teológico, exegético e dogmático sério,
me é perfeitamente claro. Senão todas estas questões

receberíam um falso direcionamento. Mas, por nada neste mundo vou me fazer de surdo a estas perguntas, este é meu
objetivo!”40

Algumas ponderações finais


Lutero precisa ser redescoberto como modelo de integração entre Teologia Monástica e Teologia Escolástica, ou seja,
acadêmica. Além de sistematizar e citar Lutero referente às diferentes loci teológicos, a teologia necessita redescobrir
suas regras acerca do correto fazer teológico, ou seja, redescobrir o seu método de fazer teologia. Como dito acima,
uma teologia acadêmica centrada na apreensão racional da realidade não consegue responder aos múltiplos e
complexos desafios existenciais, sociais, culturais e políticos de nosso tempo. Necessita buscar a relação construtiva
com a Teologia Monástica para gerar discernimentos teológicos relevantes, posicionamentos éticos pertinentes e
atuação promotora da vida. Isto não significa misturar os métodos ou diluí- los, mas valorizá-los e correlacioná-los de
forma adequada.

A redescoberta da Teologia Monástica nos dará a oportunidade de manter unidas a teologia do coração e a teologia da
razão, espiritualidade e trabalho científico. Se a ciência teológica deseja ser, ao mesmo tempo, ciência e teologia,
mantendo unidos o amor a Deus e sua compreensão intelectual41, então deve encontrar meios de relacionar
construtivamente disputatio e meditatio. Manter apenas a disputatio leva a teologia para um cientificismo
estéril, vazio, desconectado da realidade, distante de sua origem e alvo: o Deus da vida e da história.

A redescoberta da Teologia Monástica, igualmente, nos dará oportunidade de valorizar a categoria da experiência, tão
importante para ela. O teólogo monástico vive uma experiência responsorial - de conhecimento de Deus e de
conhecimento de si mesmo e do mundo - mediado pelo relacionamento intensivo com a Escritura. Aliás, a
redescoberta da Teologia Monástica recolocará a Escritura no centro da teologia e da espiritualidade, o ganho maior
deste processo.

Da mesma forma, será necessário recuperar no estudo da teologia a iniciação às disciplinas e formas elementares da
tradição espiritual da igreja cristã especialmente, a oração e a meditação da Escritura, conforme vimos. Até a

40
BONHOEFFER, 1996, p. 236-238.
41
Neste contexto é importante lembrar que a ortodoxia luterana distinguiu (sem separar!) entre as duas dimensões da
fé. Por um lado, há a dimensão subjetiva, o ato existencial da fé (fides qua creditur), que se expressa na confiança,
consagração, entrega da vida a Deus como conversão pessoal diária. Por outro, há a dimensão objetiva, a adesão aos
conteúdos da fé e sua reflexão racional (fides quae creditur). Ambos aspectos constituem a fé cristã. Sempre que
foram separados, a espiritualidade, a vivência da fé, sofreu prejuízo.
dissolução completa do binômio teologia-espiritualidade, ocorrida nos séculos XVHI e XIX, esta função mistagógica
era realizada pela disciplina da “Ascese Evangélica” 42, presente nos currículos das faculdades de teologia
protestantes.

Hoje, em tempos nos quais a socialização religiosa é praticamente inexistente, esta iniciação às formas e exercícios da
tradição espiritual é vital para o futuro da igreja e da missão. Por isso, ao lado da formação acadêmica e da formação
pastoral, deve haver

42
Defino a disciplina teológica da “Ascese Evangélica” como uma sub-disciplina da Teologia Prática que se ocupa
com a vida de fé e suas diferentes formas históricas, oferecendo formação espiritual no âmbito do estudo da teologia.
Veja a história desta disciplina bem como seu atual renascimento em RASCHZOK, Klaus. Evangelische Aszetik. Zur
Wiederentdeckung einer Disziplin der akademischen Praktischen Theologie und ihrer Forschungs- und Lehrgestalt. In:
KUNZ, Ralph; KOHLI RICHENBACH, Claudia (Org.). Spiritualitát im Diskurs. Spiritualitátsforschung in
theologischer Perspektive. Zürich: TVZ, 2012. p. 13-36.
espaço para a formação espiritual, visando, além da competência teológica e da competência prática, a
competência espiritual43.

Mas, juntamente com Bonhoeffer, é preciso deixar claro: “Não o isolamento no monastério, mas
profunda concentração para o serviço ao mundo é o objetivo”44.

433
A competência espiritual esperada deveria contemplar: a capacidade de refletir e compreender a própria
biografia espiritual como teografia; a capacidade de dar forma à própria vida de fé através da prática dos exercícios e
formas elementares da tradição espiritual cristã; a capacidade didática e mistagógica de introduzir pessoas nas formas
elementares da espiritualidade cristã; a capacidade de acompanhar pessoas em sua biografia espiritual; a capacidade
de discernir teologicamente concepções e ofertas advindas do mercado religioso atual e orientar a comunidade de fé
com segurança.
44
BONHOEFFER, 1996, p. 77.

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