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A Lei Mariana Ferrer e os direitos e deveres do advogado no exercício da profissão

Pablo Polese

A Lei 14.245/2021 visa zelar pela integridade física e psicológica da vítima de um crime,
proibindo a ocorrência de humilhações, constrangimentos e atos que agridam a
dignidade da pessoa humana durante um processo judicial. Fruto do Projeto de Lei
5096/2020, a Lei foi inspirada no caso da influenciadora Mariana Ferrer, que teria sido
vítima de estupro de vulnerável, uma vez que teria sido dopada e violentada durante
uma festa, em 2018.
Durante o processo, realizado por videoconferência, Mariana foi pressionada
psicologicamente e pessoalmente ofendida pelo defensor do acusado, sem que o juiz do
caso impedisse o advogado de atuar de tal forma na defesa de seu cliente. Visando
desqualificar a vítima a nível moral, o advogado afirmou, dentre outras coisas, que
Mariana divulgava fotos de si mesma “em posição ginecológica” e que “nunca teria uma
filha do nível da blogueira”. A cena foi gravada e divulgada na Internet, gerando revolta
na população a nível nacional (especialmente as mulheres) e abriu um debate, no mundo
jurídico, acerca dos limites éticos da atuação do advogado.
Com a referida lei de 2021, o Código de Processo Penal foi incrementado com o Art. 400-
A, onde se busca assegurar que na audiência de instrução e julgamento todas as partes
deverão zelar pela integridade física e psicológica da vítima, sob pena de
responsabilização civil, penal e administrativa. Ficam vedadas manifestações sobre
circunstâncias alheias aos fatos objeto de apuração nos autos, bem como a utilização de
linguagem, informações ou material que ofenda a dignidade da vítima ou de
testemunhas. Com isso, abriu-se novo debate no mundo jurídico, acerca do conflito de
tal norma com as prerrogativas do advogado na ampla defesa, afinal, agora, pode haver
responsabilização por atos feitos no exercício de sua profissão.
A Lei 14.245/21 prevê responsabilização civil, penal e administrativa para quem lesar a
integridade física ou psicológica das partes de um processo, em especial vítimas de
crimes sexuais. No que diz respeito à responsabilidade administrativa dos advogados,
caberá à entidade da classe, no caso, a OAB, apurar a conduta e punir o ofensor. Não há
que se falar em imunidade judiciária, com base no Artigo 142, I, do Código Penal, pois
tal imunidade diz respeito às partes e não à vítima ou testemunha. Igualmente, o
advogado ofensor não pode chamar em sua defesa o Artigo 133 da Constituição Federal,
referente à inviolabilidade de suas manifestações no exercício da profissão, pois esta
existe “nos limites da lei”. Quanto ao Estatuto da Advocacia, Lei 8.906/94, que em seu
Artigo 7, §2º, garante imunidade profissional, não constituindo injúria ou difamação
puníveis qualquer manifestação feita no exercício da profissão, em juízo ou fora, há que
se lembrar que o dispositivo prevê sanções “em decorrência de seus excessos”. E em
todo caso, o princípio da sucessividade nos obriga a resolver o conflito de leis pela
aplicação da lei mais recente, no caso, a Lei de 2021. Assim, a injúria ou difamação
proferida pelo advogado no exercício de sua profissão é passível de punição.
Acerca do conflito de normas, podemos visualizar que a Lei de 2021 abre dois embates:
entre os valores da “dignidade humana” e o valor da “imunidade profissional”, onde
parece-nos não haver dúvida sobre qual valor deve prevalecer, e entre os valores da
“dignidade humana” e da “ampla defesa”. Quanto a esta, é preciso ressaltar que não é
necessário, do ponto de vista técnico ou ético, ofender a vítima ou testemunhas na busca
de uma defesa tecnicamente adequada. Se o advogado julgar estritamente necessária a
referência (vedada pela Lei 14.245/21) a contextos e fatos da vida privada das partes
envolvidas na disputa, basta introduzir tais fatos nos autos, via documentos ou
depoimentos. Restaria então, tão somente, o cuidado sobre a forma de fazer as
perguntas e o modo de produzir a inquirição.
O judiciário não pode ser um espaço de vexame e aviltamento de qualquer das partes,
em especial de vítimas de crimes sexuais, que podem então vivenciar, na presença dos
defensores da justiça, uma segunda forma de vitimização e trauma. A Lei 14.245/21 vem,
então, em boa hora, pois contribui para que vítimas não evitem buscar seus direitos
frente aos órgãos estatais de repressão ao crime. Quanto aos advogados, a lei vem para
lembrar que o nobre exercício de defesa de acusados traz consigo não apenas direitos e
imunidades, mas também deveres de proteção a determinados valores essenciais à
justiça.

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