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Dados Inter pacionais de Catalogagio na Publicagae (CIP) Guimaraes, Lduardo (ors. Hist an. ineluindo texto de Michel Breal -- Eduardo Guimaraes (org.) : Campinas. 2 edigao aumentada, Uditora RG, 2008 ae sentide na fin Bibliogratia. ISBN 978-R5-61622-02-2 1. Analise do diseurso : Comunicagdo : Linguagem 2. Li ilisticn ~ Teoria lingitistica 3. Linguagem ¢ Historia 1 Litulo 1. Guimaraes, dare, 1948- cbp 40141 = 410 ~ BOLI indices para catilogo sistematico: Aniilise do discurso > Comunieagao : Linguagem 40141 Lingitistica ~ Teoria lingitistica 410 me Historia 301.2 Lingus © ENUNCIADO DEFINIDOR: DISCURSO E SINTAXE Francine Maziére Procurarei dar conta brevemente, neste trabalho, de andlises do enunciado definidor, tal como ele se apresenta nos primeiros diciona- rios da lingua francesa, Por que colocar o enunciado definidor como objeto da Anilise do Discurso? (1) O ptiblico, qualquer que seja, tem uma representagdo ainda ingénua do diciondrio. Pelo fato deste ser, antes de tudo, um instrumento de consulta, a defini Ao goza de um estatuto parti- cular: ela é sempre mais ou menos considerada como “boa”, “sem restrigdes de uso”, intercambidvel de um dicionario a outro. Nos sempre temos wm dicionario, ¢ isto apesar das diferencia- ces tedricas importantes reivindicadas pelos lexicégrafos desde ha duas décadas. (2) Alguns especialistas em terminologia procuram, em suas atuais pesquisas, viabilizar a idéia de uma possivel definigdo uni- versal do termo téenico ou cientifico. Isso é possivel? Um estudo como este tenderia a colocar em dtvida a separagéo entre 0s termos ¢ o restante do [éxico. (3) Se o discurso nao é jamais transparente, se a gramatica par- ticular de uma lingua impde escolhas significativas ao escritor, entdo a sintaxe da definigéo, em sua materi lidade, tem algo a nos mostrar sobre as representagdes © as posigdes realmente assu- midas pelo lexicégrafo no interior da ordem do saber e da ins- tituigao Com André Collinot, temos uma andlise discursiva do enunciado definidor concebido como o lugar em que se consirdi e se pode mos trar o “como se diz” de uma sociedade. Ao colocar em evidéncia esse verdadeiro “pronto para dizer” [“prét a parler” (cf. um artigo em Lexicographica 3 que tem esse titulo) deveriamos ser conduzidos & idégia de que, no interior da definigao, se pode estudar de maneira privilegiada 0 que M. Pécheux denominou “pré-construido” *. Noés dispomos de um corpus bastante incomum, constitufdo ja a primeira vista. No século XVII os lexicégrafos franceses estéo a ser- vigo de uma politica lingtiistica. Richelieu cria a Academia Francesa em 1634 e Ihe atribui uma dupla tarefa: escrever uma gramatica e¢ redigir um diciondrio. O Dictionnaire de l’Académie surge em 1694 mas quatro anos antes, em 1690, Antoine Furetitre, antigo académi- co, termina seu Dictionnaire Universcl. 1 Obra fundamental. — £0 dicionario que muitas di definigdes atuais ainda reco- piam. A. Rey, autor do Petit Robert, assegurou a sua reedicio nas edigdes Le Robert, com a inclusao de um importante prefacio. — Fo primeiro diciondrio da lingua francesa com tendéncia enciclopédica. — E 0 dicionario que Pierre Bayle edita em La Haye, no come- co do século XVII, © que & seis vezes reeditado pelos jesuitas du- rante o século, com acré cimos © transformagées, sob o nome de Dic- tionnaire de Trévoux. Foi um século de repetigdes ¢ retomadas feitas por um grupo de autores institucionalmente definidos, empenhades ndo em recopiar o texto, mas engajados nas polémicas ideoldgicas do século. Podemos, portanto, esperar observar a cadeia de formulacdes e& reformulacdes de sintagmas “c talizados” [“obligés”] no interior de 1. Cf. Pécheux, M., Les Verités de la Palice, p. 88-89, F. Maspero, Paris, 1975, traduzido para o portugués pela Editora da UNICAMP com titulo Semdntica ¢ Discurso, 1988 (N. do T.). 48 um duplo funcionamento: (1) normativo, j4 que regrado pelo objeto diciondrio, (2) politico, ja que ESSE diciondrio encontra-se direta- mente engajado na luta com as Luzes. ENUNCIADO DEFINIDOR E DETERMINACGAO RELATIVA Ha um trabalho em andamento, com Jacqueline Léon (LISH), para estabelecer uma analise informatizada desses enunciados. Feita a descrig¢do hierarquizada, esperamos chegar a uma certa previsibilidade dos enunciados, em fungdo da palavra-entrada. Especificando esse trabalho jé iniciado ¢ sem me antecipar sobre os resultados que surgirao, vou me ater aqui a descricdo, no Furetiére, de uma forma particular da determinagdo, encontrada em certos enun- ciados definidores: a Relativa. Consideremos que a definigdo “cla da seguinte mancir: ica” pode ser esquematizada N-Entrada: N-Cabega (adj.) (Participio) (S. Prep.) (Rel.) (Cir- cunstancial) ou. para falar claro, Galinha: ave de quintal que se cria por causa de seus ovos. Se o papel do anstancial & considerdvel, particularmente quando o N-Entrada € uma nominalizagéo cf. FIANCAILLES (noi- vado)) *, em todos os casos a relativa aparece como uma determinacdo inteiramente privilegiada. Em primeiro lugar, por razées discursivas que nao ha necessidade de retomar (cf. os trabalhos de M. Pécheux e P. Henry) *. Além disso, e particularmente no caso deste trabalho, razOes sintaticas simples: a relativa € uma frase, com estrutura de ou seja, um SN ¢ um SV. Ora, seu SN nos interessa. De que sujeitos, para inscrever na determinacdo, pode ter necessidade o lexi- cégrafo? 2. Veremos, mais a frente, que os exemplos escolhidos pela autora fazem parte do recorte FA FIN, mas como na tradugao perde-se a idéia desse recorte, manteremos a palavra francesa (N. do T.). 3. Henry. P., Le Mauvais Outil, Klincksieck, Paris, 1977. Pécheux, M., Les Verités de La Palice (vide nota 1.) (N. do 49 O Furetiére, que registra, ao contrario do Dictionnaire de l’Aca- démie, os falares regionais e artesanais (Furetitre se coloca sob a autoridade dos “mestres em cada profisséo”), € particularmente apro- priado para o nosso questionamento. Com efeito, ele traz a tona, pela especificagao dos dominios e pela designagéo dos grupos de enuncia- dores ligados por uma pratica discursiva, uma espécie de polifonia lexicoldgica, Pela expressdo em termos de e¢ pelos circunstanciais (no Palacio, em filosofia, no povo) ele designa os espagos culturais que validam a definicéo. E com expressdes tais como se diz de (em, quan- do) ele restringe o grupo de enunciadores suscetiveis de significar tal cl ao empregar tal palavra: os fildsofos antigos, os padres, os maridos, 0 rei, os soldados. . . Mas isso nao ocorre com todas as palavras! Em muitos casos, o lexicégrafo ocupa uma posi¢do interna a seu enunciado: Se diz tal palavra para constituir tal sentido. ao, o enunciador de um dizer que significa através de normas nao seto de evidén ob, Ot zadas, em um discurso , onde coincidiriam todos os enunciadores. A natureza do sujeito da relativa — universal, especializado vu ausente — é, assim, um componente importante do enunciado defini- dor. Esses sujeitos constituem um lugar para observar os desniveis no interior da determinagao do ‘sentido’. Uma palavra ainda sobre a sintaxe da relativa. Sabe-se que o pronome relativo coloca problemas. Ele &, ao mesmo tempo, intro- dutor de uma frase (conector), substituto ou representante de um nome (pronome), marca de fungao sintdtica (sujcito, objeto, comple- mento nominal ou verbal...). timulo, bastante raro, explica os numerosos ‘erros’ sobre as relativas em gue [qui] e em cujo [‘dont’] *. Utilizaremos essa dupla propriedade de representante e de marcador sintatico para distinguir entre diversos modelos e, em par- jo observar que 0 pronome ‘que’ nao tem, no portugues a espe- cificidade de ocupar sempre a posigio de sujeito da relativa, como ¢ 0 caso de ‘qui’ no francés. Por esse motivo, faremos a referéncia ao pronome francés quando entendermos gue essa especificidade pode ficar comprometida. Também o pronome ‘cujo’ no cobre todas as possibilidades de tradu- gio de ‘dont’, Em alguns exemplos, a tradugdo sera feita por “do qual’. ‘o qual’ ou ‘que’ (N. do T.). 50 ticular, entre as relativas em que [qui'], onde o sujeito esta inscrito Ho pronome, ¢ as outras relativas que deixam lugar para a realizagdo de um sujeito. OS MODELOS Podemos propor trés: () N (adj.) que [qui] V...; (hd ...): (se 2.) Ex.: FIGUE (figo): fruto tenro e doce que vem em forma de pera; ha os figos brancos e os figos roxos. Colhe-se-os no outono ¢ coloca- se-os sobre estacas. (2) N (adj.) que/ cujo /o qual SE (ou x) V (para...) Ex.: FICHE (prego): pedago de ferro que se faz entrar na madeira para prender ou fazer outras jungGes de marcenaria. (3) Nominalizagao que SE (ou x) V (a alguém) (circ.) Ex.: FIANCAILLES (noivado): promessa de casamento que se faz perante a igreja. No quadro dessa breve apresentagao, sé me aterei aos modelos |e 2. A grande oposicae entre cles esta na fungdo do pronome. —- na forma N que (modelo 1) o relativo que ocupa a posicaéo de sujeito ¢, como pronome, cle posiciona o N-cabeca, e portanto, de certa mancira, o N-entrada, do qual N-cabega é muitas vezes apenas um hiperdnimo, como sujeito da caracterizacao. Ex.: FAGOTEUR (lenhador): homem que trabalha nas florestas cortando Ienha. O lenhador é€ um homem que O lenhador trabalha ... Ha uma aparente transparéncia semantico-sintatica do N-entrada pela relagao de equivaléncia. 51 == em todes os outr s casos, que, Cujo, 0 qual, nao ecupam oO lugar do sujeito eo relative deixa esse lugar pura un oulre sujeito. Eis ai, portanto, um jugar a ser vcupado pelo que & convencional- mente chamiado de sujeito universal (alguns dizem sujeito ideoldgico), ou seja, SE, assim como por sujeitos especificados. Ex.: FANEUR (diarista): pessoa diarista que se contrat para (Os dois esquema denados na defini N que [qui'] / N que, cujo ... podem ser coor Ex.: FANTOME (fantasma); aparigao vaga que cremos ver, imagem que [qui]... mas nao tratarei deste caso aqui. Para que a divisao entre os dois modelos seja correta, ¢ necessa rio ainda levar em conta as propricdades do verbo da relativa ¢ as propriedades do pronome relativo, Esse segundo problema concerne essencialmente a cujo [‘dont”]. -—- Propriedade sintatica: A um verbo na forma passiva no interior da relativa em que [‘qui'] pode corresponder um verbo na forma ativa no interior de uma rela- tiva do 2.° modelo: N que € empregado (por x) / N que SE (ou x) emprega —- Propriedade sintatico-semantica: O semantismo de certos verbos permite uma manipulagao do tipo: N que serve (a x) (para) / N do qual sc (ou x) (se) serve (para) Assim, nem todos os exemplos sao estdveis. Certas definigGes do mo- delo 1 (N que serve, que & empregado...) devem ser assimiladas ao modelo 2, enquanto que os cnunciados onde o verbo mar de pertencer a (N que vem, provém de ) constituem as formas. estdveis do modelo 1. o fato As propricdades referentes a cuje [‘dont'] encontram-se em es- tudo. Diremos sumente que quando cujo & complemento do N-cabeca 52 © sujeito é um atributo ou uma parte desse N-cabeca eo a assimil pode ser feita com o modelo 1 (nenhum sujeito novo; ex.: cujo bico }. Se eujo & complemento do verbo, a defin no modelo 2 (introducdo de um sujeito auténomo; ex.: objeto do qual se diz ...). Colocados esses dois modelos, como se dividem as entradas com relagdo aos modelos retides? O MODELO 1 Consideremos 0 corpus abaixo, extrafdo do recorte Fa/Fin, arbi- trariamente selecionado, FAGOTEUR (lenhador) : homem que trabalha, FAIM (fome) : desejo natural do animal que o leva a... FAITIERE (telha curva) : telha,.. que serve para... e que... para. . FANFARON (fanf: FANTOME (fantasma) : imagem que se forma... rio) : homem leviano que incita a... FIC (tumor) : espécie de saliéncia ou de verruga que vem que faz... FIBRE (fibra) : ...filamentos... que servem... FIEL (fel) : humor amarelado...; que tem... e que é. FIEVRE (ebre) : doencga que vem de... FIFRE (pifaro) ic de flauta... que produz um som... ¢ que &... PIGUE (figo) : fruto tenro ¢ doce que vem... FIGUIER (figueira) vore que da... FILON (fildo) : filetes de metal que compdem a veia de uma mina e que... FILS/FILLE (filho/a) —: crianca do sexo masculino ou feminino que descende de... 53 A 9 classilicatéria nes mostra, dominando o modelo, a série dos ‘objetos naturais’: frutos (FIGUE (figo)), arvores (FIGUIER (figueira}), doencas (FIC (tumor)), objetos bioldgicos (FIEL (el), © geoldgicos (FILON filao)), desejos FAIM (fome)), mas também vemos os nomes de profissdes (FAGOTEUR (lenhador)) ov de objetos fa- bricados (FAITIFRE (telha curva), (FIFRE: (pifaro)). Duas questies se colocam: —- Teria Furetidre intuitivamente definido todos os objctos sen- tidos como ‘naturais’ sem atualizacdo do sujeito idevldgico, dando assim uma traducdo sintdtica ao conceito? — Ha heterogencidade ou inconseqiiéncia na interioriza sa classificacao cultural do mundo ou, ao contrario, homugencidade €, portanto, pertinéncia e valor informative, no plano cultural, desde que aparegam esses enunciados para objetos semanticamente hetero- géneos, como é aqui o so das profissdes ou instrumentos? As respostas podem ser claras. Todos os frutos seguem o modelo N (adj.) que [‘qui']: (pequenos) frutos (vermelhos) (agraddveis) (com sementes) que sao/vém a/crescem... Que haja uso doméstico do objeto nao afeta a definigdo. Furetitre introduz o depois de forte pontuacdo (ponte ou ponto e virgula). Ex.: ‘coloca-se-os. . .” deles para. ..°. A mesma construi sem exce “serve-se Jo para as docngas e para os frutos, O problema se coloca, entao, pa que se tornam pertinentes sobre esse fundo de estabilidade. A as extensdes ¢ as excecdes SERIES FE FXTENSOES Na série de nomes de animais, as entradas derivam, quase exclu- sivamente, do modelo 1. Assim, LAPIN (coclho) & um “pequeno animal que se abriga Mas LIE debre) € um “pequeno animal que se cag (modelo 2). Er cio oO se faz essa separ entre animal doméstico, que mantém uma relagao com o home c¢, portanto, ¢ mais proximo do modelo 2, ¢ o animal selvagem, que 54 a do modelo ‘natural’! No século XVII, pouco importa a do- mesticagao do animal: ¢ um assunto para os camponeses. No en- tanto, a sociedade. aquela que ¢ levada em conta, esta interessada ha caga ena comida, estando as duas ligadas! Logo, torna-se signifi- cative, numa ivitura do mundo social, o fato de que LIEVRE (lebre) (animal cagado) ¢ GERFAUD (gerifalte) (animal preparado_ p: ) sejam do modelo 2, assim como o FAISAN (fai ido ¢ apreciado) Uma outra aicgoria animal deriva do modele 2; os animais que o saber nao permiie pensar no interior da ordem da natureza. Assim ea mitica GIRA GIRAFE (girafa); animal feroz do qual muitos autores fazem mengao mas que ninguém jamais viu. Acabamos de interpretar objetos que escapam a unidade sinid- tica de sua série. Emi sentido contrario, alguns objetos As vezes ines- perados alinham-se entre os produtes naturais do modelo 1: FILS/FILLE (filho/a) inga do sexo masculino ou feminino que descende de um pai e de uma mae pela via da geracdo. O paralelo que se pode estabelecer com o FIGU FRAISE (morange) leva mais longe na descri¢ (figo) e o “Ha os figos branc familia, adotivos, de prime’ -voxos..."/“H& os filhos legitimos, de ‘0 matriménio, Enfim, algumas séries so totalmente homogéneas. Por exemplo, sentimentos alinham-se no modelo 1: HAINE (ddio), HONTE (vergonha), HORREUR (horror)... Temos aqui uma tradugao, que se mostra pela escolha sintdtica, do cartesianismo de todas as paixoes ¢ Furetitre sobre as paixdcs, que se dé a ler na evi déncia da definicado. Tradugdo © disposigao, de um anterior ndo nomeado, em um objeto de grande consume. 55 OS INTRUSOS Para expulsar os intrusos do corpus, como FAITIERE (telha cur- va), objeto fabricado ¢ nao objeto natural, ¢ remeté-los ao modelo 2 basta fazer valer as propricdades verbais anteriormenie mencionadas. FAITIERE (telha curva): telha que serve para.../ da qual se serve para... O caso de FAGOTEUR Uenhador), nome de profisséo, é mais interessante. Pelo fato de nao podermos exclui-lo por uma equivalén cia de ordem sintatica, temos que conservé-lo na sua primeira forma e analisd-lo como inclufdo por Furetitre entre as definigdes de objetos naturais. Mas & necessdrio, entdéo, relaciondé-lv com os outros nomes de profissto. Nao podemos, no entanto, tratar dessa sériv, dividida entado os objetos cujas segundo os dois modelos, sem ter antes apre definigdes se incluem no modelo 2. O MODELO 2 Os objetos definidos segundo esse modelo nao séo mais, na rela- tiva, sujeito do verbo por interposigao do pronome que [‘qui'], mas sim objeto. Trata-se, no corpus selecionado, entre outros, de FAU- CHEUX (aranha), FAULX (falso), FAGOT (feixe de lenha), FA- LOT (ridiculo), FANAL (farol), FANION (bandeirola), FARD (dis- farce)... O lexicégrafo atualizou, pois, um sujcito para o verbo da relativa. Muitos casos de figura podem apresentar-se: 0 sujcito pode ser especificado segundo as profissdvs (ex.: FACTURE (fatura): rela- ¢ao de mercadorias que um faturista envia a...) ou segundo os ato- res no interior de um dominio (FACULTE (faculdade) termo de as- trologia, nome que Schneider deu a...). O cnunciador autorizado 6, assim, designado em scu lugar, no seu grupo. Mas para todos os termos anteriormente enumerados, 0 sujeito nao € especificado; trata-se do se universal. Nada nesse conjunto parece destoar, ja que ai reconhecemos, majoritariamente, a série de objetos fabricados, 56 A escolha do modelo torna-se mais interessante quando o N-En- trada designa um ser humano, Como, entao, vai se dar a relagdo entre esse “humano” na posigdéo de objeto © o sujcito humano universal? Vimes, anteriormente, que as entradas de nomes de profisséo aparecem no modelo 1: FAGOTEUR (lenhador): homem que [quil.. . Os artesdos sao assim tratados por Fureti¢re. Lembremos sua abertura aos “mestres em cada profissio”, dos quais ele nao rejeita o vocabulério. Mas, a esses homens com profissdo, vio se opor os criados, os “homens empregados”. Temos: FANEUR (diarista): pessoa diarista que se contrata para... PAGE (pajem): crianga (de honra) que se coloca perto de... para... Vemos que a divisao de uma sociedade se enuncia na transparéncia sintatica! Independéncia do artesao que [‘qui’]...; dependéncia uni- versalizada do criado-objeto: contrata-se-o, coloca-se-o. . . Outra série signi os termos de lingiiist ativa desse modelo: as entradas designando a ou instrumentos gramaticais e retéricos. Assim, FABLE (fabula), FACETIE (facécia), FARCE (farsa)..., todas as interjeigdes (FI! (Fora!) HO! (Oh!, Ah!, Ola!)) e todas as “palavras das quais se serve para...” sao do modelo 2. Como no cartesianismo do modelo 1, podemos ler aqui a escolha da forma sintatica como tradugdo de um saber gramatical interiori- zado, vindo principalmente da “Gramatica” de Port-Royal, segundo a qual se da “a inteligéncia de seu pensamento” através (“servindo- se”) de palavras enquanto marcas institucionais desse pensamento. Para fechar o circuito, tratemos de um falso intruso ja mencio- nado no modelo 1; FILS/FILLE (filho/a). Enquanto correspondente feminino de FILHO, FILHA &, como o masculino, um objeto natu- ral, Mas € um segundo sentido de FILHA que entra de direito no modelo 2: 57 FILLE (moca): se diz do estado daquela que nunca foi casada. Modelo 1 em que [‘qui']? Nao, pois o verbo da relativa & um passivo incompleto, em que a forma ativa seria: aqucla que nunca se casou. Desnecessario insistir sobre essa tradugao sintdtica pega do mo- delo cultural: criados, mogas ¢ instrumentos alinham-se no mesmo modelo 2! CONCLUSAO Trata-se, aqui, apenas de resultados parciais, obtidos a partir de um corpus limitado. Mas jd podemos vislumbrar dois prolongamentos. (1) Construido ¢ validado a partir de séries de entradas comuns, o modelo pode ser usado para a leitura de entradas ditas “ideoldgi- cas”, Tomemos 0 artigo DIEU (Deus). Furetitre diz da impossibili- dade de ter um enunciado definidor sobre Deus. “Nao pode haver a verdadeira definicéo porque & um ser infinito e incompreensivel.. .” Mas ele define TERRE (Terra) segundo 0 modelo 2. aquele dos obje- tos fabricados: TERRE (Terra): globo que Deus criou para... “Deus” especifica aqui o sujeito SE ¢ aparece, assim, definido, bem antes de Voltaire, como artesao-criador (2) Construido a partir das definigdes do Furetiére, 0 modelo foi colocado & prova no Trévoux, mas continua pertinente até nos trabalhos mais recentes. Se 0 Petit Robert ou o Grand Larousse de la Langue Francaise preferem 0 emprego do participio passado ou pre- sente ao da relativa, é facil mostrar que o funcionamento nao é por isso alterado. Em um diciondério de consulta (¢ nado em uma termino- logia), o lexicégrafo privilegia a definig&o de uso com relagdo 4 defi- nicio de conceito ¢, portanto, define o FAISAN (faisao) como “um passaro... apreciado por sua carne“ (= que se aprecia). define o fruto (Figue (figo)) ou a drvore (Giroflier (goiveiro)) pelo modelo 1, juntamente com as doengas, mas define a flor (giroflée (goiveiro)) ou o condimento (girofle (cravo)), ambos ‘empregados’ pelo homem, 58 segundo o modelo 2. Seria interessante notar as diferengas entre as definigdes que se cré terem necessariamente que ser referidas & bota- nica (frutos) e¢ as outras (condimentos, ligados a alimentacdo), Mas também, comparando a sucessio de definigoes, opor, no Grand La- rousse de la Langue Francaise, no que se refere a FAGOTEUR (lenha- dor), duas primeiras entradas, fitis a Furetitre (modelo 1) € a ter- ‘a, do modelo 2: FAGOTEUR 3 — velho © pejorativo. Pessoa pouco recomenda- vel (= que nao se pode recomendar). © modelo 2 segue, a im, sua diregdo; ele introduz, no enuncia- do definidor, a traducdo da hierarquia dos sujeitos, repertoriando os possiveis e¢ os caminhos do dizer no interior de uma sociedade ‘contida’, Levando das palavras as coisas pela interiorizagao ideolégica de saberes supostamente partilhados ou pelo registro das relagdes sociais de forea, © lexicégrafo produz um trabalho que, através de um dis- curso muitas vezes pereebido como transparente, diz seu assujeita- mento cultural até pela forma sintética de sua escrita. (Tradugdo: Suzy Lagazzi) 59

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