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INSTITUTO FEDERAL DO PARANÁ

PEDRO ARTHUR PASSOS DA SILVA

RUDOLF BRAZDA E O PARÁGRAFO 175: A LUTA DE UM


PRISIONEIRO HOMOSSEXUAL NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO

PARANAVAÍ
2017
PEDRO ARTHUR PASSOS DA SILVA

RUDOLF BRAZDA E O PARÁGRAFO 175: A LUTA DE UM


PRISIONEIRO HOMOSSEXUAL NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso


Técnico em Informática integrado ao Ensino Médio do
Instituto Federal do Paraná, como requisito parcial de
avaliação.

Orientadora: Luana Pagano Peres Molina

Orientador: Lucas de Melo Andrade

PARANAVAÍ
2017
Dedico este trabalho a meus pais e a todos aqueles que assim como eu, sonham com
uma sociedade mais justa, igualitária e condizente com os ideais dos direitos humanos
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, por toda a estrutura e incentivo para continuar desenvolvendo na rica área dos
direitos humanos, da justiça e igualdade. O apoio direto e/ou indireto de vocês, o custeio das
diversas viagens em palestras foi fundamental para a concepção e sucesso deste trabalho.
À Carol Passos, minha irmã consanguínea, pelo apoio às minhas pesquisas e por me acalmar e
aconselhar quando ninguém mais podia. Obrigado pelas noites de conversas, pelas críticas às
estruturas sociais de nossa religião e por acreditar, assim como eu, em uma sociedade mais
justa e igualitária para todo e qualquer ser humano. Eu te amo, minha irmã! Vamos à luta.
Aos meus amigos, colegas de sala, e principalmente ao quinteto fantástico: Luana, Karina,
Luiz e Thiago. É com emoção que este quinto elemento cita vocês neste trabalho. Serei grato
eternamente por todas as risadas, choros, tristezas, alegrias, brigas, abraços, apertos de mão,
aprendizagens plenas e insuficientes que partilhamos. Estarão para sempre no meu coração.
À minha grande e eterna orientadora, professora Luana Molina, que me fez enxergar a
sociedade desumana que enfrentamos nos dias atuais e que de forma excepcional me conduziu
durante o desenvolvimento deste trabalho. Obrigado por me tornar mais humano e por
secretar em mim por meio de seus ensinamentos o árduo desejo de militar pelos direitos das
minorias e de defender os que são tão ofendidos na sociedade. Também, à sua esposa e seus
cinco filhinhos, sempre muito receptivos e abertos a me ajudar. Amo todos vocês.
Ao meu orientador, professor Lucas de Melo Andrade, que aceitou a missão de prosseguir a
minha pesquisa, orientando-me na ausência da professora Luana e tornou-se imprescindível
para o êxito deste trabalho, desenvolvimento do tema e apoio amigo para a finalização.
À professora Mary Neide Damico Figueiró, ao professor Ricardo Desidério, à psicóloga Ana
Cláudia Paranzini e a todos os demais, conhecidos por intermédio da professora Luana
Molina que serviram de combustível incentivando-me na luta pela defesa dos direitos
humanos, da igualdade entre cidadãos e a educação sexual.
À ONG Dignidade e à Aliança Nacional LGBT, presididas por Toni Reis, que garantiram a
apresentação, desenvolvimento e concepção deste trabalho oferecendo-me assistência jurídica
e psicológica que se fizessem necessários nos enfrentamentos por uma sociedade mais justa.

Devo minhas atuais e futuras pesquisas a vocês.


“A liberdade nunca é voluntariamente dada pelo opressor, ela
deve ser reivindicada pelo oprimido” (Martin Luther King Jr.)
RESUMO

O presente trabalho busca expor e analisar as experiências de Rudolf Brazda, um


prisioneiro homossexual no campo de concentração de Buchenwald, na Alemanha Nazista.
Sabe-se que a partir da concepção dos movimentos eugênicos - influenciados pelo
darwinismo social - a segregação, o racismo, a homofobia, a perseguição e a intolerância
ganharam viés científico e, dessa forma, possibilitaram o desenvolvimento de políticas
públicas que disseminassem o preconceito e a criminalização dos envolvidos. Neste contexto,
Brazda teve sua liberdade civil violada pelo regime totalitário de Hitler devido ao parágrafo
175, do Código Penal Alemão, que determinava a homossexualidade masculina e a zoofilia
como luxúria, passíveis de condenação e perda dos direitos civis. Brazda, portanto, foi
obrigado a permanecer por cerca de 32 meses detido em um ambiente de pura exposição dos
ideais totalitaristas incorporados no governo nazista. Por fim, pretende-se retratar em que
medida as experiências nazistas do Terceiro Reich influenciaram no surgimento de políticas
internacionais de defesa dos direitos humanos, a exemplo da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, com o objetivo de ajustar garantias e deveres essenciais para a exaltação,
preservação dos indivíduos e reconhecimento diplomático de sua dignidade.

Palavras-chave: Direitos Humanos. Homofobia. Terceiro Reich.


ABSTRACT

The present work seeks to expose and analyze the experiences of Rudolf Brazda, a
homosexual prisoner in the Buchenwald concentration camp in Nazi Germany. It is known
that from the conception of eugenic movements - influenced by social Darwinism -
segregation, racism, homophobia, persecution and intolerance gained a scientific bias and, in
this way, made possible the development of public policies that disseminated the prejudice
and the criminalization of those involved. In this context, Brazda had his civil liberty violated
by Hitler's totalitarian regime due to paragraph 175 of the German Penal Code, which
determined male homosexuality and bestiality as lust, liable to condemnation and loss of civil
rights. Brazda was therefore forced to remain for about 32 months imprisoned in an
environment of pure exposition of the totalitarian ideals embodied in the Nazi government.
Finally, it is intended to portray the extent to which the Nazi experiences of the Third Reich
influenced the emergence of international policies for the defense of human rights, such as the
Universal Declaration of Human Rights, with the objective of adjusting guarantees and duties
essential for exaltation, preservation of individuals and diplomatic recognition of their dignity.

Key-words: Human Rights. Homophobia. Third Reich.


LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - Censo alemão em relação à prisão de homossexuais pelos nazistas…………...41


LISTA DE SIGLAS

OMS - Organização Mundial da Saúde


CID - Classificação Internacional de Doenças
CFP - Conselho Federal de Psicologia
ONU - Organização das Nações Unidas
DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos
IFEO - International Federation of Eugenics Organizations

.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 11

2. OS ANOS INICIAIS DE BRAZDA E ASCENSÃO DO NAZISMO ALEMÃO 14


2.1 BIOGRAFIA: SEUS BENEFÍCIOS E ILUSÕES 14
2.2 RUDOLF BRAZDA, OS ANOS DE LIBERDADE E DESPREOCUPAÇÃO 15
2.3 EUGENIA E ASCENSÃO DO NAZISMO ALEMÃO 19
2.4 O TÉRMINO DA MAJESTOSA JUVENTUDE DE BRAZDA 24

3. O HORIZONTE SE ESCURECE: OS ANOS DE PRISÃO 29


3.1 A VALORIZAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA: BREVE ANÁLISE 29
3.2 A SEGUNDA DETENÇÃO E O FIM DA LIBERDADE DE BRAZDA 31
3.3 AS EXPERIÊNCIAS NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO 33

4. OS DIREITOS SEXUAIS E OS DIREITOS HUMANOS 44


4.1 OS DIREITOS SEXUAIS ENQUANTO DIREITOS INERENTES AO HOMEM 44
4.2 A GÊNESE DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E DECLARAÇÃO
UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS 47
4.3 EPÍLOGO: A VIDA DE BRAZDA APÓS A LIBERTAÇÃO 49

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 51

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 54
11

1. INTRODUÇÃO

As sociedades modernas se desenvolveram em um período pós-desastrosas


experiências totalitárias, regimes austeros e outros artífices governamentais de violência e
temor para uma determinada parcela de sua população ocorridos no século XX. Neste sentido,
o movimento mais marcante ocorreu na Alemanha Nazista1, originada durante o Terceiro
Reich, que perdurou entre os anos de 1933 a 1945, com o desfecho da Segunda Guerra
Mundial e a soma de cerca de 6 milhões de judeus mortos, sem contar os soldados,
comunistas, crianças, adolescentes, homossexuais, presos políticos e Testemunhas de Jeová,
também considerados como inimigos da raça ariana pelo regime de Adolf Hitler.
Analisando tais circunstâncias, o presente trabalho busca se fundamentar-se na
biografia e experiência de um dos prisioneiros dos campos de concentração nazista, Rudolf
Brazda, que, além de permanecer preso durante vários meses, ainda foi testemunha das
invasões da tentativa de reversão da polaridade sexual, que tinha como objetivo a
cura/reversão da homossexualidade. Brazda foi um dentre milhares de homossexuais que
vivenciaram a intolerância envolta em um regime governamental austero, e pôde servir de
inspiração para gerações futuras, conforme retratado em sua biografia, produzida pelo
jornalista francês Jean Luc Schwab, em 2011.
Em contraponto ao movimento totalitário nazista, foi criada a Organização das Nações
Unidas em 1946, que tinha o objetivo organizar, valorizar e manter a paz, utilizando-a como
base de uma cooperação internacional e a garantia do bem-estar e proteção dos cidadãos.
Renovou-se, portanto, a antiga concepção advinda da Liga das Nações, organização muito
semelhante à ONU, porém que teve seu fim declarado em 1946, com a Segunda Guerra
Mundial assinalando sua trajetória enquanto organização de caráter diplomático.
Após a criação da ONU, foi votada em dezembro de 1948 por sessão solene presidida
pela então primeira-dama norte americana Eleanor Roosevelt na sede provisória da
Organização em Paris, a implantação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, por 48
votos favoráveis, 8 abstenções e 2 países com representação ausentes 2. Tal documento, assim

1
Vale ressaltar que, além da Alemanha, outros países da Europa viviam a experiência totalitária e de influência
nazista, como, por exemplo, a Espanha com Francisco Franco, Portugal com Francisco Salazar e a Itália com
Benito Mussolini. Dessa forma, cabe salientar que a Europa vivia o clima do temor e da violência entre os anos
de 1930, também considerados como os anos da ascensão totalitária.

2
Em um primeiro momento, deve-se salientar que a Organização das Nações Unidas contava com a participação
de 58 países apenas, no período. Os países que se abstiveram na votação foram: África do Sul, Arábia Saudita,
12

como o antecessor Pacto da Sociedade das Nações, de 1919, buscava assegurar os direitos
civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos cidadãos, promovendo um marco de
natureza jurídica que poderia ser referência para a concepção de futuras constituições e
documentações legais, reforçando a importância e a dignidade do ser humano.
O objetivo deste trabalho, portanto, é propor um paralelo entre os enfrentamentos dos
presos homossexuais nos campos de concentração durante o Terceiro Reich - a partir da
narrativa das experiências de Rudolf Brazda -, abordando a específica violação dos direitos
humanos relacionados à sexualidade, e a crescente busca pela ressignificação da dignidade
humana e da concepção dos direitos inerentes ao homem, como forma de valorização e
preservação destes perante a desigualdade, a violência e o preconceito nos dias atuais. Dessa
forma, busca-se apresentar uma pesquisa que exponha de forma contundente as vivências que
resultaram do Nazismo de Hitler, dada em um período considerado como o mais distante da
valorização do ser humano, contrastando com as conquistas do mundo moderno possibilitada
pelos acordos e pactos internacionais de proteção aos seres humanos promovido pela ONU.
Para atingir aos objetivos retratados anteriormente, durante um período de sete meses
– a contar de junho de 2017 – realizou-se levantamento bibliográfico, produzindo como
alicerce metodológico a revisão bibliográfica de artigos, livros, monografias e códigos
jurídicos, como o Código Penal Alemão – em vigor desde a Constituição de Weimar, dada no
período inicial da trajetória de Rudolf Brazda – e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, com o propósito de contextualizar sua importância para a discussão sobre os
direitos humanos e os direitos sexuais. Além disso, a pesquisa embasou-se na obra biográfica
Triângulo Rosa: um homossexual no campo de concentração nazista, escrita por Jean-Luc
Schwab em 2011, abordando a trajetória do biografado Rudolf Brazda.
O interesse pessoal pela pesquisa se dá principalmente pela maneira que o regime
totalitário de Hitler se comporta perante o campo da diversidade sexual, interferindo
diretamente nos direitos da livre orientação sexual de uma determinada população, os
homossexuais. Embora deste episódio fatídico tenha-se resultado a completa perda dos
direitos civis dos homens homossexuais na Alemanha, proporcionando experiências-limite
nos campos de concentração, pode-se perceber que tais interferências do Estado em questões
da esfera privada de seus cidadãos não se afasta de nossos dias atuais, como no Brasil, por
exemplo, em que a religiosidade adquire ascendente autonomia perante os poderes executivo
e legislativo com bancadas religiosas, influenciando diretamente a sociedade brasileira e seus

Belarus, Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia, Ucrânia e União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).
Por sua vez, os Estados ausentes foram: Honduras e Iêmen.
13

constituintes em torno de um referencial teocêntrico e dogmático3, com posicionamento


heteronormativo fortemente demarcado, de forma que repudia toda e qualquer orientação
sexual alheia à heterossexualidade e passa a influenciar diretamente na conquista e garantia de
direitos específicos para combater os estigmas e a violência contra a população LGBTI.
Garantindo a organização textual desta pesquisa, a mesma foi dividida em três
capítulos, todos estes com períodos históricos demarcados e atrelados à trajetória de Brazda,
além de conter as caracterizações textuais como citadas anteriormente.
No primeiro capítulo, intitulado Os anos iniciais de Brazda e ascensão do nazismo
alemão, pretende-se compartilhar partes iniciais da trajetória de Rudolf Brazda, justificando a
metodologia da utilização de biografias enquanto objeto de pesquisa recente para os
historiadores, assim como também contextualizar e definir a eugenia e a ascendência política
de Adolf Hitler na Alemanha, que transformou seu discreto partido político – o Partido dos
Trabalhadores Alemães - em um signatário unipartidarista durante sua gestão.
Já o segundo capítulo, O horizonte se escurece: os anos de prisão, propõe-se a
apresentar as experiências da detenção de Brazda no campo de concentração de Buchenwald,
analisando suas vivências após os experimentos na prisão nazista, atrelando à
contextualização da justificativa da valorização da dignidade humana – objeto primordial para
o desenvolvimento dos direitos humanos - e a origem dos documentos internacionais em
defesa do bem-estar e a preservação dos cidadãos, como a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, proposta pela ONU em 1948.
O terceiro e último capítulo, Os direitos sexuais e os direitos humanos problematiza as
abordagens referente à discussão dos direitos sexuais enquanto direitos natos ao homem. Para
isso, o presente capítulo aborda a criação da Organização das Nações Unidas - dada logo após
o encerramento das ações diplomáticas da Liga das Nações – e a sessão solene de votação da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, realizada em 1946. Também busca, por fim,
abordar as conquistas de tal documento jurídico e a definição brasileira de direito novo,
referenciando o recente campo dos direitos humanos perante as ciências jurídicas.

3
Para analisar tais perspectivas relativas ao posicionamento dogmático religioso em relação à sexualidade,
recomenda-se a leitura do artigo Dogmas e prazeres: o discurso moral religioso em torno da vivência da
sexualidade no ocidente medieval, redigido por Santana, V. C. e Benevento, C. T.
14

2. OS ANOS INICIAIS DE BRAZDA E ASCENSÃO DO NAZISMO


ALEMÃO

2.1 BIOGRAFIA: SEUS BENEFÍCIOS E ILUSÕES


A valorização do ser humano enquanto vertente da concepção antropocentrista
moderna, isto é, que posiciona o homem de forma central em relação ao universo e suas
derivações (RENAULD, 2006, p. 62), permite com que os estudos históricos possibilitem a
utilização de contribuições advindas das escritas biográficas, de forma que valorize “a
linguagem simples, que descreve a vida como um caminho, uma estrada, uma carreira, com
suas encruzilhadas, seus ardis, até mesmo suas emboscadas” (BORDIEU, 1986, p. 183).
O historiador Avelar (2010) atribui à característica em relação às novas abordagens
metodológicas nos fenômenos da História a interpretação de que, selecionando
acontecimentos significativos em uma determinada trajetória de vida, o historiador – herdeiro
do papel social da construção de biografias – complemente fatos e situações coerentes, de
forma a garantir ao leitor a transmissão das informações de forma realística, e dessa forma,
embora a biografia não seja considerada um mecanismo preciso, é certo que obras de tal
gênero contribuem para o contexto cultural, social e histórico de uma determinada
comunidade ou população, agregando para a construção científica da História.
Cabe salientar que o processo de implementação da utilização de biografia como
referencial de caráter histórico não foi um procedimento simples, tendo seus primórdios
apenas após os anos de 1960, de forma que pretendia “recuperar a feição humana dos
processos históricos” (AVELAR, 2010, p. 158) e neste sentido, valorizar o testemunho dos
indivíduos nas construções científicas das trajetórias socioculturais.
A biografia pode ser caracterizada através de duas vertentes, de acordo com Avelar
(2010): a biografia representativa e o estudo de caso.
Jus à sua nomenclatura, a biografia representativa possui a função de expor
determinado indivíduo, ao qual é possível contextualizar uma ampla gama de passagens,
marcos e processos do ambiente social até então analisados. O estudo de caso, por sua vez,
utiliza o caminho inverso, ou seja, analisa aspectos macroestruturais advindos do ambiente
social e os ilustra através de determinado ser humano, que adquire para si a responsabilidade
de exemplificar o evento ou fenômeno, para fins de detalhamento (AVELAR, 2010, p. 160).
Além disso, Avelar (2010) também nos pontua que a biografia se incumbiu de
esclarecer fatos e eventos determinantes da história considerando o personagem/indivíduo
15

inserido em estruturas, papéis e funções sociais (AVELAR apud LE GOFF, 2010, p. 161).
Partindo de tal premissa, o movimento biográfico tornou-se legítimo objeto de
aprofundamento de estudo para os historiadores e cientistas sociais de forma geral, de forma
que o testemunho originado nas construções biográficas foi determinante para fomentar a
humanização da história, ou seja, reforçar a presença dos testemunhos individuais nos
estudos históricos, até então retratados apenas pela perspectiva econômica e organizacional.
Outro importante pesquisador acerca da utilização metodológica das biografias, Pierre
Bordieu (1986), por meio de seu texto A ilusão biográfica nos possibilita complementar que a
trajetória de um determinado indivíduo só é proveitosa para o âmbito científico no que
concerne aos espaços e esferas sociais dos quais este está inserido na historicidade. Dessa
forma, é ilusório relacionar a biografia à uma trajetória linear, unidirecional e
relacionada/induzida a todos, conforme o senso comum (BORDIEU, 1986, p. 183).
Por fim, é possível analisar que a justificativa e importância centrais para a utilização
das biografias enquanto metodologia da História, se dá pela constante necessidade de
humanização dos eventos relatados pelos historiadores, acrescidos de testemunhos que
valorizam a feição humana nos processos históricos, na mesma medida que, a importância de
tais testemunhos se origina do destaque direcionado aos espaços e esferas sociais aos quais
este indivíduo se encontra. Dessa forma, Rudolf Brazda que será analisado nesta pesquisa,
adquire grande notoriedade a partir da esfera social do medo e da tortura em que se encontra,
conforme relatado durante os eventos que se iniciaram com a ascensão do nazismo alemão.

2.2 RUDOLF BRAZDA, OS ANOS DE LIBERDADE E


DESPREOCUPAÇÃO
Em modelo biográfico, de maneira emocionante e calorosa, a sensibilidade crítica do
jornalista francês Jean-Luc Schwab abordou a trajetória do último detentor do triângulo rosa
vivo4, ou seja, o último prisioneiro que portou o uniforme distribuído aos homossexuais nos
campos de concentração, que possuíam em sua estampa um triângulo rosa, utilizado para a
diferenciação entre os presos. Os dois se conheceram em 2008, quando Schwab soube por
meio de um artigo no jornal L’Alsace da existência de um refugiado dos campos de
concentração vivendo em Bantzenheim, pequeno distrito próximo à Mulhouse, no leste

4
Embora citado no texto como o último detentor do triângulo rosa vivo, cabe salientar que esta atribuição era
utilizada na obra de Schwab, meses após a morte de Rudolf Brazda, em 2011. As análises para a concepção da
biografia de Rudolf iniciaram-se em 2009, enquanto o mesmo ainda estava vivo, acrescidos de contribuições
posteriores de suas sobrinhas - em sua ausência – e de documentos e arquivos relacionados ao ambiente social.
16

francês. A partir de então, por incentivo de algumas sobrinhas de Rudolf, o mesmo iniciou a
corajosa jornada de narrar sua história para o jornalista que posteriormente tornou-se seu
biógrafo oficial e principal ativista em uma Organização Não-Governamental francesa que
possui por intuito a proteção das famílias dos prisioneiros do governo nazista.
Rudolf Brazda nasceu em 26 de junho de 1913 no pequeno vilarejo de Brossen,
administrativamente ligada à Meuselwitz, no estado alemão da Saxônia. Filho caçula de Emil
Adam Brazda e Anna Erkener, ambos imigrantes da Boêmia5, tornou-se órfão de pai aos seis
anos de idade, quando Adam - como preferia ser chamado para não ser confundido com o
filho primogênito - retornou de uma missão militar nos arredores de Písek, no oeste boêmio e
poucos meses depois, em 21 de janeiro de 1920, foi dizimado por um acidente de trabalho na
mineradora de carvão Phoenix, onde o mesmo trabalhava.
Após a morte do pai, o garoto foi criado pela mãe, junto com seus outros sete irmãos,
sendo eles cinco mulheres e dois homens. Nada o difere das demais crianças de sua idade,
exceto pela facilidade que tem com os afazeres domésticos e com a costura, ofício ensinado
por sua irmã, que o torna um aficionado pelas artes da moda. Aos 14 anos de idade, sonhava
com a possibilidade de “tornar-se vendedor e decorador em uma loja de confecções
masculinas” (SCHWAB, 2011, p. 21).
Em pouco tempo, aos seus 17 anos, passa pela transitória fase das alterações
biológicas e fisiológicas advindas da puberdade, tornando-se um jovem rapaz que “mede
pouco mais de um metro e sessenta, tem belos cabelos castanho-claros, meticulosamente
ondulados, e um rosto rosado, no qual brilham belos olhos azuis; ele pode parecer um
pouquinho afeminado” (SCHWAB, 2011, p. 23). Desde muito jovem, Rudolf Brazda demarca
posicionamento favorável e aceitação em relação à sua orientação sexual: a
homossexualidade, admitindo que, embora tenha afinidade com as mulheres, é certo que “sua
atração vai em outra direção” (SCHWAB, 2011, p. 23). Sua família reage de maneira ímpar,
aceitando-o, embora abrindo precedentes para o preconceito ao afirmar que “aceitam de bom
grado que o caçula não faça parte dos ‘normais’” (SCHWAB, 2011, p. 26).
A homossexualidade, do grego homos - igual, trata-se da qualidade de um ser vivo
atrair-se física, emocional, estética e espiritualmente por indivíduos do mesmo sexo, podendo
ser identificada entre indivíduos dos gêneros cis e trans. Neste sentido, como pontua a
historiadora e educadora sexual Molina (2010), a homossexualidade trata-se da possibilidade
de “amar alguém do mesmo sexo, entregar-se à dor e à delícia de sentir-se apaixonado como

5
A Boêmia era uma região administrativa independente fronteiriça à Alemanha. Atualmente, é parte do território
da República Tcheca.
17

em qualquer relacionamento no qual criamos laços de ternura” (MOLINA, 2010, p. 11). No


período vivenciado por Rudolf, isto é, meados iniciais dos anos 1930, a homossexualidade
masculina na Europa era vista através do prisma da promiscuidade, baseando-se na forte
presença de operários que se prostituíam em banheiros públicos em busca de dinheiro 6, além
da interpretação enquanto desvio sexual, moral e mental.
É certo que a sociedade daquele período possuía uma visão distorcida acerca da
homossexualidade, caracterizando-a como homossexualismo, dessa forma, reafirmando os
conceitos patológicos de desvio sexual ao utilizar o sufixo ismo, que referencia a doenças e
distúrbios, como o tagabismo, por exemplo, e consequentemente administrando-a sob a
perspectiva da heteronormatividade. Muito embora o debate acerca da origem da
homossexualidade fomente interpretações patológicas, vale salientar que, de acordo com a
psicóloga e educadora sexual Figueiró (2007) a homossexualidade “não constitui doença, nem
distúrbio e nem perversão” (FIGUEIRÓ, 2007, p. 29). Reforçando esta tese, desde 1973 a
Associação Americana de Psiquiatria julga o tratamento médico contra a homossexualidade
como “antiético”. Além disso, a partir de 1990, a Organização Mundial de Saúde - OMS -,
através da Classificação Internacional de Doenças, retirou a homossexualidade da
subcategoria patológica de desvio sexual, abandonando a antiga expressão homossexualismo e
reformulando-a para homossexualidade, termo livre de interpretações equivocadas.
Neste sentido, faz-se necessário pontuar a importância da discussão em busca da
aceitação à respeito da própria orientação, sendo esta primordial para o desenvolvimento
social e mental, podendo existir indivíduos heterossexuais - aqueles que sentem atração física
e sexual por indivíduos do sexo oposto, homossexuais, conforme pontuado, bissexuais - sendo
estes os que sentem atração por ambos os sexos -, pansexuais - indivíduos que sentem atração
por outros independentemente das definições de gênero, podendo estes serem cissexuais ou
transexuais - e assexualidade - característica dos indivíduos que não sentem atração e/ou
libido sexual por outro indivíduo, muita embora estes possam se apaixonar livremente -.
A liberdade de assumir e exercer sua orientação sexual e o livre exercício de sua
identidade de gênero é um direito nato a todo e qualquer ser humano, imprescindível para o
autoconhecimento e desenvolvimento da sexualidade, pois estes tratam-se de uma condição
humana e natural, como nos assegura Dias (2011), alertando-nos que:

6
Esta busca por dinheiro advinda da classe operária alemã, se deve ao fato de que os mesmos recebiam
baixíssimos salários, além da grave crise econômica existente na região no final dos anos 1920, sendo utilizada a
prostituição em banheiros públicos como vetor de manutenção da subsistência.
18

Ninguém pode realizar-se como ser humano, se não tiver assegurado o


respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende a liberdade
sexual, albergando a liberdade da livre orientação sexual [...]. É um direito
natural, que acompanha o ser humano desde o seu nascimento, pois decorre
de sua própria natureza.

(DIAS, 2011, p. 1)

Muito embora os conceitos inerentes à identidade de gênero e orientação sexual


estejam culturalmente inseridos em uma mesma atribuição, enquanto definições de cunho
sexual de acordo com o senso comum, é importante salientar que tais significações não devem
confundir-se e são completamente distintas. Nos dias atuais, acredita-se que o binarismo pré-
determinado homem-mulher, definido pela presença de determinado órgão sexual anatômico
desenvolvido durante a gestação, responsabiliza o indivíduo a herdar os papéis sociais
inerentes à tal. Caso tenha vulva, deve-se identificar como mulher, caso tenha pênis, deve
adquirir para si os papéis sociais masculinos, referenciando os conceitos sexistas da
sociedade, que valorizam a divisão entre comportamentos, relações humanas e atribuições,
arbitrariamente inerentes aos homens ou às mulheres. Como pontua a educadora sexual
Figueiró (2007), a identidade de gênero, isto é, a forma como nós mesmos nos identificamos,
vai muito além de tais conceitos e atribuições7. Pode-se afirmar que:

- existem homens que se sentem bem como homens e gostam de ser homens;
- há os que vivem como homens, não rejeitam seu órgão sexual, mas em
alguns momentos, sentem necessidade de se travestir de mulher;
- há os que sentem necessidade de estar sempre travestidos de mulher e
muitos até mudam seu corpo, por exemplo, com silicone - são as travestis;
- há os que não se sentem homens, de forma alguma, que até rejeitam o seu
órgão sexual e desejam fortemente alterar seu sexo biológico 8 - são os
transexuais.

(FIGUEIRÓ, 2007, p. 9)

7
Para fins práticos, será utilizado apenas a conceituação de gênero masculina, podendo ser igualmente entendida
como a feminina. Para ver mais sobre o tema, recomenda-se a leitura da obra de Mary Neide Damico Figueiró
publicada em 2007, intitulada Homossexualidade e Educação Sexual: construindo respeito à diversidade.

8
A rejeição do órgão sexual não se trata de uma constante para os/as transexuais. Em exemplo disso, podemos
citar a série produzida pela Universidade de São Paulo, com o intuito de retratar a diversidade sexual de
seus/suas estudantes, denominada “Perfil Diversidade”, demonstrando a narrativa da história de Guilherme. Esta,
nascida com o sexo biológico masculino, sempre se identificou como mulher e possui a aparência feminina,
embora a mesma não se sinta incomodada ao ser tratada como homem, utilizando inclusive seu nome de batismo
e rejeitando a intervenção cirúrgica de redesignação sexual (TV USP, ep. 2, 2012).
19

Dessa forma, analisando tais contribuições referentes à orientação sexual e identidade


de gênero, é essencial a discussão e conscientização acerca das relações humanas e sociais,
tendo em vista o crescente posicionamento majoritário da sociedade, que reprova toda e
qualquer orientação sexual alheia à heterossexualidade, valorizando a heteronormatividade e
consequentemente resultando em episódios preconceituosos e intolerantes.
A trajetória de Rudolf segue seu curso e em pouco tempo conhece o jovem Werner,
rapaz de idade próxima que vive em uma pensão na cidade de Meuselwitz. Os dois se
aproximam por recomendação das muitas amigas de Rudolf, garantindo que “ele [Werner] é
como você [Rudolf]” (SCHWAB, 2011, p. 24, adaptação própria). Pouco tempo depois os
mesmos unem-se e já passam a dividir um quarto em uma pensão na cidade, gozando dos
benefícios sociais que o governo fornecia aos cidadãos de baixa renda.
A pensão de Helene Mahrenholz é singela, localizada em uma pacata avenida de
Meuselwitz, porém com grandes laços afetivos entre seus moradores. A proprietária, embora
da religião das Testemunhas de Jeová9, coopera fortemente para a união do novo casal,
inclusive cedendo para eles “o maior cômodo do primeiro andar, para que tenham um quarto
de casal onde possam ficar à vontade e convidar os amigos” (SCHWAB, 2011, p. 25-26).
Rudolf Brazda e Werner mantêm vivos laços de amizade com seu pequeno grupo de
amigos homossexuais que se travestem, utilizam nomes femininos e aproveitam a vida nas
cidades alemãs maiores, como Leipzig. Sua trajetória segue a plena emoção e liberdade, e
assim que Brazda é dispensado do serviço militar, ele e seu companheiro realizam uma longa
viagem até a Tchecoslováquia, sempre mantendo contato por meio de cartas com seus amigos
deixados no território alemão. Estas cartas, posteriormente, são determinantes na produção de
provas para incriminá-lo. Porém, “como adivinhar, nesse mês de janeiro de 1933, as
consequências funestas que terá a chegada dos nazistas ao poder?” (SCHWAB, 2011, p. 26).

2.3 EUGENIA E ASCENSÃO DO NAZISMO ALEMÃO


A gênese do estudo dos conceitos eugenistas se deu por meio dos ensinamentos do
darwinismo social - influenciados pelas concepções evolucionistas de Charles Darwin -, com
a participação do importante cientista inglês Sir Francis J. Galton, muito conhecido por suas
contribuições em relação à genética humana. Por meio de suas análises, chegou à conclusão

9
Muito embora o cristianismo possua as divisões tradicional e libertadora, sendo esta última que valoriza a
discussão e reinterpretação de dogmas e preceitos religiosos, o campo da sexualidade dos fiéis cristãos encontra-
se na área da ética religiosa, e existe um certo consenso entre os religiosos acerca dos desvios sexuais: necrofilia,
zoofilia, estupro, prostituição, pedofilia, fornicação, incesto, masturbação, aborto, sadismo, masoquismo, e o
homossexualismo (homossexualidade), todos estes encontram reprovação na ética cristã (ALVES, 2009, p. 10).
20

de que a natureza era responsável por determinar as características e comportamentos


humanos, sendo que para propiciar a superiorização da raça humana, deveria realizar-se
matrimônios seletivos, sempre entre indivíduos da mesma classe social, fomentando a
concepção de que a política segregativa eugenista resultaria em cidadãos bem
concebidos/nascidos, ou seja, eugênicos (GUERRA, 2006, p. 4).
A eugenia positiva de Galton, como era tratada pela ciência da época, resultou em
uma proposta de intervenção para atingir o equilíbrio da taxa de nascimento da população
inglesa na primeira metade do século XX, tendo em vista que a proporção de nascimentos na
classe baixa era demasiadamente superior à apresentada pelas classes médias e alta da
sociedade britânica10. Tal população, portanto, empenhou-se fortemente em realizar
casamentos arranjados entre bem-nascidos e passou a proibir realizações maritais que não
satisfaziam aos ideais propostos pelo movimento eugenista do período.
Outro destaque segregacional oriundo das contribuições dos cientistas eugênicos se
deu nos Estados Unidos, ao ser incorporada a política da eugenia negativa, liderada por
Charles Davenport. O cientista propôs, por meio das proibições maritais, eutanásia passiva e
outros métodos de exclusão e disseminação da intolerância, eliminar “as futuras gerações de
geneticamente incapazes - enfermos, racialmente indesejados e economicamente
empobrecidos” (GUERRA, 2006, p. 4). Tal posicionamento etnocêntrico se deve,
principalmente, ao período em que a população estadunidense era em sua grande maioria
descendentes de europeus nórdicos, repudiando todo e qualquer alheio aos europeus, que
neste caso eram a maioria dos imigrantes que chegavam ao país das mais variadas regiões.
Entretanto, cabe acrescentar que tal política dos americanos não é necessariamente conexa à
segregação racial, posteriormente apresentada naquela região (GUERRA, 2006, p. 4).
Davenport, determinado a prosseguir com seus estudos, criou o Eugenics Record
Office, instituto de identificação responsável por analisar e julgar a coerência da reprodução e
do matrimônio, tendo por objetivo a manutenção e a preservação da descendência nórdica tão
predominante na população americana neste período. Em 1909, por sua vez, iniciaram-se as
negociações e imposições do cientista para que a legislação permitisse a livre identificação,
controle e erradicação das linhagens indesejáveis, de forma geral alheias às suas hipóteses.
O método eugênico de controle da população adquiriu autonomia considerável, sendo
adotada progressivamente na maioria dos estados norte-americanos por decretos de Lei,
iniciando-se pelo estado de Indiana, tradicionalmente conservador. Com o passar dos anos, “a

10
Para avaliar os procedimentos e as proporções de nascimento apresentadas na Inglaterra, recomenda-se a
leitura do artigo de Valdeir del Cont produzido em 2008, intitulado Francis Galton: eugenia e hereditariedade.
21

eugenia passou a ser vista como ciência prestigiosa11 e conceito médico legítimo, disseminada
por meio de livros didáticos e instituições de instrução eugenista” (GUERRA, 2006, p. 5). O
êxito dos estudos de Charles Davenport deu origem a diversas comissões, congressos e
pesquisas direcionadas ao tema em todo o mundo, como o Congresso Internacional de
Eugenia e o Comitê Internacional de Eugenia. Posteriormente, ambos deram origem à
Federação Internacional das Organizações Eugenistas, esta última com amplitude mundial.
A instituição supracitada contou com o apoio direto de cerca de 13 países, que se
tornaram posteriores signatários e filiados, durante os anos de 1921 a 1932, sendo eles:
Alemanha, Brasil12, Canadá, Cuba, Dinamarca, Estados Unidos, França, Grã-Bretanha, Japão,
México, Noruega, Rússia, Suécia e diversas outras nações, com pouca participação efetiva
(LEUNG, 2014, p. 1). Presidida até 1925 por Davenport, a Federação possuía como política
de atuação “organizar as numerosas sociedades eugênicas nacionais, oriundas dos países
signatários da organização, de modo que a informação pudesse ser trocada entre nações, bem
como uma maior cooperação no planejamento de legislação, reuniões, pesquisa e propaganda
da eugenia” (LEUNG, 2014, p. 3).
A Alemanha, enquanto nação filiada à organização, permitiu com que políticos
ultranacionalistas incorporassem tais conceitos e os utilizassem como método de governo,
adotando-os para a estratégia política do Estado. É neste contexto de apropriação de teorias
segregacionistas que as estratégias e normas de conduta do austríaco Adolf Hitler conquistam
espaço político na República Alemã.
Adolf Hitler nasceu em 1889, no pequeno município austríaco de Braunau am Inn,
localizado na divisa do país com a Alemanha, ambos Estados Imperiais até então 13. Ainda
muito jovem, julgava seu local de nascimento como fator determinante para o mesmo
enfrentar uma grande missão: determinar a população alemã pura, denominada ariana.
Os arianos, na concepção de Hitler, conforme demonstrado em sua obra
autobiográfica Mein Kampf, eram a população advinda das regiões germânicas e nórdicas

11
Isto se deve ao fato da ciência eugênica ser utilizada como justificativa para que as sociedades/Estados
mantivessem sobre sua população determinada segregação, intolerância ou preconceito (MACIEL, 1999, p.121).

12
Este período era considerado como fase de transição da Primeira República Brasileira - que findou em 1930
com a Era Vargas -, somando cerca de 14 chefes de Estado, com destaque para Epitácio Pessoa, Artur Bernardes
e Washington Luís, que partilhavam dos ideais da Federação Internacional das Organizações Eugenistas,
inserindo tais conceitos na recém-formada nação, a República dos Estados Unidos do Brasil (LEUNG, 2014).

13
No contexto histórico aqui citado, o território em que Hitler nasceu era pertencente ao Império Austro-
Húngaro, tornando-se posteriormente em 1933 de domínio da Alemanha Nazista - esta composta por 13 países,
incluindo a Áustria -, que perdurou até 1945 com o fim da Segunda Guerra Mundial.
22

europeias, sendo estes positivamente definidos como indivíduos com “genialidade e talento,
enquanto dotes inatos da população de sangue ariano” (HITLER, 1985, p. 191).
Desencantado com a cidade de Viena, “que abrigava cidadãos de todo o mundo, os
não-alemães que tomavam os lugares dos alemães”, Hitler apropriava-se dos conceitos
advindos dos cientistas eugenistas, com forte apropriação ideológica do posicionamento de
Davenport - para manter seu inegável desejo por uma sociedade germânica livre de
miscigenações, fossem elas culturais, étnicas ou raciais, dessa forma preocupando-se em:

nunca se afastar das doutrinas eugenistas de identificação, segregação,


esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos indesejáveis, e
legitimando seu ódio fanático pelos judeus, envolvendo-o numa fachada
médica e pseudocientífica

(GUERRA, 2014, p. 5)

Neste período, a Alemanha passava por um processo de intensas transformações


estruturais e políticas, como consequência do resultado desastroso da Primeira Guerra
Mundial, que arrasou o continente europeu. Com o fim da Primeira Guerra, em 1919, foi
instaurada a Constituição de Weimar, que previa as características de um Estado
“parlamentar, federalista e democrático, com o presidente eleito pelo voto universal e direto”
(CAETANO, 2010, p. 2), sendo que “as funções do poder executivo eram exercidas pelo
Chanceler ou Primeiro Ministro, nomeado pelo presidente” (CAETANO, 2010, p. 2). É neste
contexto que Hitler inicia sua jornada na vida pública, ingressando no Partido dos
Trabalhadores Alemães. Em pouco tempo, com seu posicionamento político fortemente
demarcado e com poder de persuasão, consegue considerável autonomia e ascensão, sendo até
considerado “a principal figura do partido” (CAETANO, 2010, p. 2), alterando
posteriormente o nome do mesmo para Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores
Alemães, em alusão aos valores eugênicos e nazistas já incutidos em suas determinações -
como presentes em sua obra Mein Kampf -, que supervalorizava a cultura e o povo germânico.
O militar alemão Paul von Hindemburg tornou-se presidente de forma indireta desde a
promulgação da Constituição de Weimar, em 1919. Durante seu governo, Hitler iniciou
diversas investidas de tomada de poder internamente, até que em 1932, iniciam-se as
problemáticas pressões políticas oriundas de seu partido, e o presidente Hindemburg admite
Adolf Hitler como Primeiro Ministro Alemão, em 1933. Em cargo de alto escalão no
parlamento, o austríaco dá início ao seu tortuoso processo de nazificação da nação, até então
governada por outras alianças políticas e/ou imperiais, que possuíam uma ideologia distante
23

de seus ideais. O primeiro decreto de Hitler no poder, abriu precedentes para obtenção de
“plenos poderes” e dessa forma, o mesmo passou a herdar os poderes políticos concedidos aos
presidenciáveis, sendo que, consequentemente conquistou a nomenclatura de führer - líder,
em tradução livre - (CAETANO, 2010, p. 3).
Um ano após o início da gestão de Hitler, o presidente Paul von Hindemburg morre,
em 1934, garantindo ao führer a consolidação de sua autonomia plena sob o governo e o
parlamento alemão. O nazismo passou a ganhar força com rapidez avassaladora, sob o
discurso de honra, glória e de novos tempos de sucesso para a sociedade alemã. Esta, sofrendo
com os reflexos da Primeira Guerra Mundial, “apoiou o movimento, unindo-se ao corpo
representativo de ‘as chamas que não iluminam o final de uma era, mas lançam suas luzes
sobre a nova’” (CAETANO apud GOEBBELS et. al., 1994, p. 29). Além disso, cabe pontuar
que tais discursos revolucionários foram bem aceitos devido à situação político-econômica da
Alemanha. Em relação à isso, cabe pontuar que:

A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) deixou a Alemanha quase falida e


sofrendo com a derrota. Pobreza e desemprego se tornaram parte de seu
cotidiano. Como condição de rendição, a Alemanha foi obrigada a assinar o
Tratado de Versalhes, aceitando a responsabilidade por iniciar a guerra e
concordando em ressarcir 132 bilhões de Reichsmarks (moeda oficial alemã
entre 1924 e 1948 - mais de 400 bilhões de dólares hoje) para ajudar a cobrir
os danos causados pela guerra. Quando a Grande Depressão chegou, em
1929, o efeito sobre a Alemanha foi catastrófico. A pobreza cresceu. O
desemprego cresceu. A inflação cresceu. O desespero cresceu. Em 1933, o
desemprego havia alcançado 6 milhões de pessoas - mais de 30% da
população, um número sem precedentes. As pessoas queriam empregos e um
caminho para sair da vida miserável que estavam levando. Precisavam de
algo - ou alguém - em que acreditar.

(SETTERINGTON, 2017, p. 19)

Como nos aponta Caetano (2010), o novo líder alemão Adolf Hitler, trouxe para os
seus discursos oratórias convidativas ao povo alemão, sendo que:

O caráter messiânico de seus discursos políticos engrandecia o ideal nazista,


expondo de uma melhor forma a finalidade e o desenvolvimento do
nacional-socialismo, a fim de conquistar adeptos desacreditados na república
tendentes ao temido movimento revolucionário e, ao mesmo tempo, oferecer
esclarecimentos mais substanciais àqueles que já se identificavam com o
Partido.

(CAETANO, 2010, p. 4)
24

Dessa forma, Hitler não só cativava a população adulta como também os jovens
alemães, que eram declarados como “os grandes vetores de suas iniciativas” (BAN apud
REES, 2008, p. 8). Isto se deve principalmente pela forte retórica nacionalista que impregnava
suas oratórias. Com o passar dos anos, seus discursos passaram a trazer progressivamente
discussões relacionadas à segregação dos judeus e à cultura de ódio para com as minorias. Tal
afirmação também pode ser verificada a partir de sua obra autobiográfica, Mein Kampf, em
que o líder expõe que sabia “muito bem que se conquistam adeptos menos pela palavra escrita
do que pela palavra falada e que, neste mundo, as grandes causas devem seu desenvolvimento
não aos grandes escritores, mas aos grandes oradores” (HITLER, 1983, p. 4), referenciando
todo o potencial influenciador dos seus discursos e oratórias.

2.4 O TÉRMINO DA MAJESTOSA JUVENTUDE DE BRAZDA


A progressiva política segregativa de Hitler para com as minorias, teve origem a partir
de concepções originadas por determinadas experiências pessoais do mesmo, em que
pontuava a importância da manutenção da raça germânica, pura, também denominada de
ariana, tendo em vista que a miscigenação cultural e étnica na época, acabava por enfraquecer
os elos da cultura germânica, colocando-o em um posicionamento fortemente etnocêntrico.
Em consonância à tais atribuições, o mesmo justifica por meio de sua obra, o ódio
incontrolável contra a raça judaica, em sua concepção, “constituída por um povo sem terra,
sem pátria e sem nação” (CAETANO, 2010, p. 9), de forma que:

O judeu é o que apresenta o maior contraste com o ariano. Nenhum outro


povo do mundo possui um instinto de conservação mais poderoso do que o
chamado “Povo Eleito”. Já o simples fato da existência desta raça poderia
servir de prova cabal para essa verdade.

(HITLER, 1983, p. 195)

Dessa forma, a incerteza passou a predominar em relação ao futuro da nação nazista,


que teve como medida a declaração de ilegalidade do Partido Comunista, tradicionalmente de
oposição ao Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães e, dessa forma,
culminando no unipartidarismo, com traços de gestão ditatorial. O pesquisador Caetano
(2010) contribui relatando-nos que a partir disso “tudo passa a ser controlado pelo Estado”,
assinalando o comportamento político áspero dos governantes nazistas em relação aos seus
opositores (CAETANO, 2010, p. 3).
25

O nazismo, portanto, passa transitoriamente de uma política nova que reluz sobre o
futuro da nação, ou seja, “uma experiência única, um movimento cujos fundamentos
exprimem conjuntamente grande originalidade” - fomentando a reconstrução da cultura
germânica -, para um movimento político cuja síntese encontra-se no “nacionalismo
extremado, autoritarismo, racismo, anti-semitismo, belicismo, anticomunismo, antiliberalismo
e antiparlamentarismo” (CAETANO, 2010, p. 4).
Tal ideologia nazista, que como retratado, pregava “o extermínio dos judeus e outros
grupos étnicos”, justificando que tal posicionamento “tratava-se de uma política médica e
pseudocientífica” (GUERRA, 2006, p. 4), culminou inicialmente no método de emigração dos
cidadãos judeus, esquerdistas, homossexuais, crianças e jovens, tal política sugerida por um
dos oficiais de Hitler, Reinhard Heydrich -, retratando que “a emigração como solução
possível deveria ser suplantada pelo plano de eliminação dos judeus” e de que este possuía
“aprovação prévia do führer Adolf Hitler” (BAN apud LONGERICH, 2008, p. 21).
Por sua vez, a perseguição contra os homossexuais se deve, principalmente, à
militância destes por direitos na sociedade alemã do período e à cultura heteronormativa
impregnada nos ideais do governo nazista. A Alemanha teve pioneirismo em consideráveis
contribuições para a comunidade LGBTI. Desde o início dos anos 1910, Berlim já era
considerada uma das cidades mais acolhedoras para a comunidade gay de toda a Europa, com
centenas de bares e livrarias destinadas à essa parcela da população. Dessa forma, “a vida na
Alemanha para os homossexuais era muito mais fácil do que no resto da Europa, ou até
mesmo no resto do mundo” (SETTERINGTON, 2017, p. 13).
Pouco tempo depois, em 1919, surgiu o Instituto de Pesquisas Sexuais, liderada pelo
médico alemão Magnus Hirschfeld, que trouxe incontáveis pesquisas e contribuições acerca
da transexualidade - inclusive o cunho do termo -, sendo um dos pioneiros no procedimento
cirúrgico de redesignação sexual. Hirschfeld também foi coadjuvante e coautor do filme
Anders als die Andern (Diferente dos Outros), considerado o primeiro filme de temática
LGBT do mundo, gravado na Alemanha em 1920. Pouco tempo depois, tal organização deu
origem ao Comitê Científico-Humanitário, que possuía como missão a concepção da “justiça
por meio da ciência”, lutando sempre por direitos iguais para as minorias. Além disso,
diversos jornais e revistas da época eram destinados para essa parcela da população, como por
exemplo os semanais “Menschenrecht (Direitos Humanos), Die Insel (A Ilha) e Der Eigene
(A Si Próprio) para homens; e Ledige Frauen (Mulheres Solteiras), Frauenliebe (Amor
Feminino) e Die Freundin (A Namorada) para mulheres” (SETTERINGTON, 2017, p. 13).
26

Para possibilitar a legitimação do discurso promovido pelos nazistas, foi utilizado


como parâmetro o artigo 175, do Código Penal Alemão14, que previa:

Luxúria contra o que é natural, realizada entre pessoas do sexo masculino ou


entre o homem e o animal, é passível de prisão; pode também acarretar a
perda de direitos civis.

(SCHWAB, 2011, p. 31)

O governo da Alemanha Nazista comportava-se considerando os homossexuais como


“inimigos do Estado”, pois estes causavam preocupação aos líderes governamentais acerca da
reprodução da população alemã, tendo em vista a perspectiva da necessidade da perenidade da
raça ariana na sociedade, e desta forma reprovando o sexo não reprodutivo, conforme citado:

Em discurso feito em 18 de fevereiro de 1937, o Reichführer SS Himmler 15


declara, ao falar da homossexualidade e o suposto número de homossexuais
na população, que “se continuarmos assim, nosso povo corre o risco de ser
aniquilado por essa praga”. Os homossexuais são considerados indivíduos
não reprodutores, e assim, como podem assegurar a perenidade da raça? Por
esse discurso, a condenação da homossexualidade não parece mais responder
a uma exigência moral, mas sim à necessidade de preservar a raça. Começa
então o cadastramento dos homossexuais na Central do Reich para reprimir a
homossexualidade e o aborto em Berlin.

(SCHWAB, 2011, p. 31)

Neste contexto, Rudolf e Werner retornam da Tchecoslováquia, em um período em


que as pressões governamentais alemãs contra os homossexuais estavam cada vez mais
presentes. Muito embora o regime instaurado após a Constituição de Weimar, sob comando
de Paul Von Hindemburg já contivesse tal artigo, a política de atuação era mais branda,
destinadas a apenas casos homossexuais envolvendo crianças e menores. Com os nazistas, por
sua vez, a situação tornou-se preocupante, e tal população era constantemente investigada e
submetida à desgastantes interrogatórios policiais. Além disso, a tortura também era uma
ferramenta muito eficaz das forças nazistas, utilizada para que estas pessoas, quando

14
Vale ressaltar que o Código Penal Alemão estava em vigência desde 1871 com o início do Segundo Reich,
entretanto, o mesmo era aplicado com uma penalidade mais branda, com prejuízo menor sobre a reputação do
indivíduo detido. O governo nazista, entretanto, ampliou a aplicação desta penalidade prevista em Lei, em que
determinou seis meses mínimos de detenção, além de que, em casos reincidentes, estes deveriam ser
encaminhados aos campos de concentração por um período entre quatro a oito anos.

15
Heinrich Himmler era comandante da Schutzstaffel, a polícia secreta da Alemanha Nazista, e responsável pelo
comando das investigações contra a população homossexual, em conjunto com as forças militares nazistas.
27

apreendidas, acabassem por denunciar de forma induzida outras semelhantes, levando a uma
amplitude ainda maior de detenções (SCHWAB, 2011, p. 39).
Em pouco tempo depois, Werner – namorado de Rudolf - acaba sendo convocado para
prestar o serviço militar na região de Naumburg, em 1936, e Rudolf Brazda se afasta,
deixando a pacata Meuselwitz e seguindo para a metrópole do estado da Saxônia, Leipzig.
Neste período, o mesmo já têm ciência que as investidas dos policiais nazistas da Gestapo e
Schutzstaffel na investigação contra os homossexuais estavam cada vez mais rígidas. Os
métodos de investigação levavam à rápida denúncia e instauração de novos inquéritos,
conforme denúncias eram realizadas e provas colhidas. Em abril de 1937, os policiais
encontram Rudolf e o conduzem coercitivamente até o distrito policial do foro de Altenburg.
Na delegacia, os investigadores utilizam de vários artífices para chegar à confissão da
homossexualidade de Rudolf, do suposto envolvimento amoroso dele com Werner e da coleta
de provas sobre os amigos do pequeno grupo de homossexuais que o alemão possuía em
Meuselwitz. Com o objetivo de proteger seu amado, o mesmo fornece informações
desencontradas e atesta firmemente que ambos tinham apenas se conhecido “vagamente antes
de se mudar para a Weinbergstrasse16”. Além disso, Rudolf afirma veementemente não
conhecer os demais amigos investigados, justificando as cartas recebidas por ele advindas de
uma mulher, que morava em Wilhelmshaven, pela qual o mesmo utiliza o viés explicativo de
que “só se sente atraído sexualmente por mulheres e não possui nenhuma atração por
homens” (SCHWAB, 2011, p. 41).
Entretanto, nenhuma destas afirmações bastaram, e Rudolf acabou sendo sentenciado
em primeira instância por luxúria em 14 de maio de 1937, baseando-se nos parâmetros
regimentais do parágrafo/artigo 175 do Código Penal Alemão. A sentença do juiz de
liberdades se embasa em duas atmosferas, como nos pontua Schwab (2011):

Para o magistrado, a decisão de prendê-lo é duplamente justificada.


Suspeitam que ele tenha cometido atos de luxúria com Werner, ainda que ele
os negue. E, como os policiais dão a entender, há muitos riscos de que
Rudolf se apresse a informar as outras pessoas implicadas daquilo que as
espera.

(SCHWAB, 2011, p. 42)

Neste sentido, é importante pontuar algumas relações. Durante a República de


Weimar, entre os anos de 1919 a 1932, o parágrafo/artigo 175 do Código Penal Alemão

16
Trata-se do endereço da pensão de Helene Mahrenholz, lar de Rudolf e Werner entre os anos de 1933 a 1936.
28

apresentava em sua redação a investida em relação à “luxúria contra o que é natural” ou


“widernatürliche unzucht”. Dessa forma, o texto original abria precedentes para que os juízes
interpretassem sua aplicação às uniões que envolvessem relações sexuais diretas entre homens
homossexuais ou entre o homem e animais, classificadas como bestialidades. A partir de
1933, com os nazistas no poder, o Código Penal Alemão acabou sendo reformado e o
parágrafo 175 foi redigido para apenas “unzucht”, ou “luxúria”, dando posterior margem para
que os magistrados interpretassem além das relações de coito e passassem a criminalizar
também a masturbação mútua, realizada entre tais grupos específicos, como citados
anteriormente. Rudolf Brazda, conforme nos contribui Schwab (2011) foi condenado por
“luxúria ao se relacionar com um homem”, resultando em sua condenação à prisão por “seis
meses e ao pagamento das custas judiciais” (SCHWAB, 2011, p. 47).
Os meses se passam e em dezembro de 1937, Rudolf é liberto, carregando consigo à
titularidade de persona non grata, que o caracterizava como desertor, “um criminoso no país
que o viu nascer” (SCHWAB, 2011, p. 50), expedida pelo Ministério Público Alemão. Tal
atribuição não o dá escolha, e o mesmo muda-se para a região de Carlsbad (atual Karlovy
Vary, no estado homônimo) no início de 1938, na Tchecoslováquia, em exílio. Tudo
encaminha-se para um recomeço, uma nova vida recheada de liberdade e felicidade.
Entretanto, o governo nazista e o Ministério Público não partilham da mesma opinião.
29

3. O HORIZONTE SE ESCURECE: OS ANOS DE PRISÃO

3.1 A VALORIZAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA: BREVE ANÁLISE


O método de interferência do Estado alemão em relação à circunstâncias de cunho
particular de seus cidadãos, como retratados no caso da perda dos direitos civis de Rudolf
Brazda por este ser homossexual e ter relações homoafetivas com seu companheiro, Werner,
nos fazem refletir sobre a constante importância da equidade entre os seres humanos, ou seja,
incentivar políticas públicas adequadas para as necessidades de diferentes grupos sociais,
proporcionando a igualdade entre tais grupos, considerando a concepção de dignidade.
Analisando tal afirmativa como base, é necessário pontuar algumas informações. A
dignidade humana, amplamente tratada neste trabalho, vai muito além do senso comum, que
busca valorizar a permanência e a existência do ser humano na sociedade. Trata-se de um
tema discutido e explorado de diversas formas, com contribuições científicas, filosóficas e
religiosas, que buscam engendrar e influenciar nos diversos setores da sociedade, por meio de
seus simpatizantes, historiadores, estudiosos e professantes.
Como nos aponta o jurista Comparato (2010), analisando-se o ponto de vista religioso
monoteísta, isto é, oriundo da interpretação das religiões de matriz abraâmica, a dignidade
humana origina-se através da “criação do mundo por um Deus único e transcendente”, o qual
elege os homens para dominar sobre “os peixes do mar, as aves do céu, os animais
domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra” (COMPARATO,
2010, p. 14). Por sua vez, o ponto de vista das religiões afro-brasileiras, por exemplo, atribui
ao ser humano a característica de igualdade como elemento determinante para a concepção de
sua dignidade, posicionamento demarcado ao engajar-se como um instrumento de valorização
das pluralidades. O pesquisador e professor Anjos (2008), nos afirma que:

A religiosidade afro-brasileira tem um outro modelo para o encontro das


diferenças que é o rizomático 17: a encruzilhada como ponto de encontro de
diferentes caminhos que não se fundem numa unidade, mas seguem como
pluralidades.

(ANJOS, 2008, p. 21)

17
Em tradução livre, de forma filosófica e política, o modelo rizomático presta-se a demonstrar que a estrutura
convencional das disciplinas epistemológicas não reflete simplesmente a estrutura da natureza, mas sim um
resultado da distribuição de poder e autoridade no corpo social.
30

Em contraponto, analisando-se o campo filosófico, o processo moderno de construção


das escolas de filosofia tornou-se imprescindível para a atribuição de fundamentos intelectuais
de liberdade, tomando como princípio a existência da razão e a liberdade do ser humano,
isento de diferenças de gênero, raça, sexo, religião e consequentemente fomentando a criação
da base de direitos inerentes e abrangentes aos cidadãos (COMPARATO, 2010, p. 24). Na
Grécia Antiga, faz-se necessário citar que a presença de obras e peças teatrais referentes ao
tema da criação e justificação da dignidade eram recorrentes. O filósofo grego Ésquilo, a
exemplo, em sua obra “Prometeu Acorrentado” adquire o papel social de criador da raça
humana, caracterização na qual o mesmo relata que foi possível tornar os homens “seres de
razão, capazes de pensar”, ensinados a desenvolverem:

A árdua ciência do nascente e do poente dos astros. Depois, foi a vez da


ciência dos números, a primeira de todas, que inventei para eles, assim como
a das letras combinadas, memória de todas as coisas, labor que engendra as
artes.

(ÉSQUILO, 2005, p. 11)

Adquirindo o ponto de vista de um dos inúmeros ramos científicos, a justificativa para


a dignidade do ser humano deu seus primeiros passos a partir dos ensinamentos científico-
biológicos de Charles Darwin, que exprimiam a descoberta da evolução dos seres vivos sob a
perspectiva de que a natureza reproduzia nas futuras gerações características melhores em
relação às apresentadas pelos seres vivos antepassados, formulando a concepção de que todo
ser humano sofre processo de evolução, e dessa forma, também pode ser considerado como o
topo da cadeia evolutiva, justificando sua importância e consequentemente indispensabilidade
perante a preservação dos demais seres presentes na natureza, análoga à interpretação de
hierarquia social e cadeia alimentar (COMPARATO, 2010, p. 16).
Dessa forma, pode-se analisar que desde os tempos mais remotos de nossa civilização,
como perceptível com a contribuição religiosa, os campos de influência sobre as sociedades
preocupavam-se em justificar a preservação e existência dos seres humanos e, desta forma,
incentivar a criação de políticas públicas e organizacionais, que visassem garantir direitos e
deveres a estes. Entretanto, o período em que os nazistas estiveram no poder destacou-se
como um dos mais distantes da concepção de valorização dos indivíduos, consequentemente
propiciando situações-limite, das quais suas vítimas se recordam dolorosamente.
31

3.2 A SEGUNDA DETENÇÃO E O FIM DA LIBERDADE DE BRAZDA


Com o objetivo de ter um futuro longe das perseguições da polícia alemã, Rudolf
Brazda permanece no território da Tchecoslováquia (atual República Checa), a partir de então
considerada sua pátria e exílio. Os anos se passam e, de fato, Brazda conquista um
considerável período de liberdade. Consegue emprego em uma pequena companhia teatral, a
Westböhmische Volksbühne, na qual realiza um de seus grandes dons: a dança e a gentileza
com as mulheres. Porém, em 1938, a região montanhosa dos Sudetos é invadida pelas tropas
alemãs, transformando-as na recém-conquistada província de Südentengau. Outros países
limítrofes também somam partes importantes do país. Carlsbad é uma das cidades incluídas
nesta nova divisão geopolítica, ficando a cargo da Alemanha Nazista e deixando Brazda mais
uma vez mercê do artigo/parágrafo 175 do Código Penal Alemão.
As novas subdivisões policiais alemãs instaladas em Südentengau, rapidamente
iniciam investigações de acordo com a legislação vigente pelos nazistas e são contundentes
em relação aos casos de luxúria praticados por homossexuais masculinos. Um dos amigos de
Brazda, Raimund, é um dos primeiros a ser detido na nova base policial da Kriminalpolizei,
associado à Schutzstaffel e Gestapo, sendo que em pouco tempo, chegam também a Rudolf,
que é convidado a comparecer para prestar esclarecimentos. Isso ocorre no dia 1 de abril de
1941 e Rudolf Brazda passa a ser interrogado pelo departamento policial. Sua anterior
detenção via parágrafo 175 de luxúria possibilita que o investigador o trate como um
criminoso, e interprete a relação entre Rudolf e Raimund como clara cópula homossexual. Por
fim, o mesmo acaba por ceder em todas as investidas policiais, e confessa todas as suas
relações homoafetivas, descrevendo-as detalhadamente, inclusive negando seu possível
envolvimento com o amigo de longa data, Raimund. O depoimento segue, e como
consequência “as confissões de Rudolf Brazda provocam sua ruína e a de pelo menos mais
três pessoas” (SCHWAB, 2012, p. 89). Dois dias depois, em 3 de abril de 1941, o depoimento
dos suspeitos são assinados pelo investigador Peyer sob o parâmetro/procedimento B18 e
enviados para serem fichados pelo Reich Kriminalpolizei Amt, em Berlim.
Com base no detalhado depoimento de Rudolf Brazda, os investigadores e policiais da
Kriminalpolizei expedem um mandado de prisão preventiva dos três envolvidos: Rudolf,
Raimund e Josef, este último, relatado no depoimento complementar de Raimund, como
sendo um de seus ex-companheiros. Tal ordem policial é determinante para o futuro destes

18
Esse impresso serve para dar parte dos homossexuais como objeto de queixa ao Escritório Central da Polícia
Criminal do Reich, cuja sede, em um prédio administrativo da avenida Werderscher Markt, abrigava a Central do
Reich de Repressão à Homossexualidade e ao Aborto, entre outras repartições (SCHWAB, 2011, p. 90).
32

três homens, que também são observados pela sede policial em Berlim, embasando-se na
possibilidade de que “os acusados continuem a se entregar ao seu vício, que tentem
desaparecer com as provas ou, pior ainda, que tentem avisar outras pessoas que também
podem ficar alarmadas com a ação policial” (SCHWAB, 2011, p. 91).
Em 26 de maio de 1941, Rudolf e os outros dois homens são transferidos para a prisão
de Eger. Os mesmos são sentenciados em tribunal na região de Pilsen, na Tchecoslováquia, no
dia 5 de setembro de 1941, sendo que Rudolf é sentenciado ao maior período de reclusão, 14
meses em regime fechado, pelos crimes de luxúria e masturbação mútua entre homens,
sentença inclusive justificada pelos juízes de primeira instância Egermann, Nowoczek e
Messerschmied pontuando que “não somente a luxúria entre homens representa um delito
extremamente repugnante e abominável como também as práticas sexuais lascivas entre
pessoas do mesmo sexo, e sobretudo entre homens, mostram-se muito perigosas no quadro
político e social” (SCHWAB, 2011, p. 99) . Raimund e Josef recebem penas menores, tendo
em vista a reincidência de Brazda, que acabou retornando à prisão apenas 6 meses depois de
sua primeira detenção em seu estado de origem (SCHWAB, 2011, p. 99).
Neste período recluso, Rudolf relembra com desgosto de todos os eventos que se
passaram no interior da penitenciária de Eger, sendo que esta era comandada por um diretor
assumidamente homofóbico e que exclamava abertamente que odiava os homossexuais. Em
relação a isso, em tom de desabafo, Brazda relembra de suas experiências em sua segunda
reclusão advinda pelo parágrafo/artigo 175:

Fico revoltado quando recordo meus anos de cativeiro impostos por esses
crápulas nazistas! E tudo isso por quê? Por causa dos atos considerados
‘antinaturais’. O que eles sabem da natureza? E da minha natureza, aquela
que não escolhi?

(SCHWAB, 2011, p. 101)

Tais presos passam um período em Eger, mas acabam sendo transferidos pouco a
pouco para outras unidades. Rudolf é o último deles a ser transferido - o que acontece apenas
em 5 de junho de 1942 -, para o presídio de Zwickau, no leste alemão, onde deveria passar os
últimos quatro meses de sua pena e enfim, poder encontrar liberdade. Entretanto, conforme o
governo alemão assumiu o poder, em meados de 1933, várias medidas/resoluções/artigos do
Código Penal Alemão, herdado da antiga Constituição de Weimar foram reforçados e
tornaram-se mais severos. Neste sentido, em julho de 1940, o general da Schutzstaffel
Heydrich Himmler expediu uma diretriz que complementava a ação e amplitude do parágrafo
33

175, reavaliando o período de reclusão de casos de homossexuais que seduziram mais de um


parceiro. É desta forma que Rudolf foi avaliado em todos os departamentos policiais dos quais
passou e o mesmo é imediatamente reenviado para Carlsbad em agosto de 1942, que se
encarrega de o transferir para uma estação ferroviária em Weimar. Muitos outros prisioneiros
são enviados para lá, sem ao menos terem ciência de seu destino e muito menos terem
conhecimento da proporção da tortura que os acompanharia.
O caminhão de transporte de tropas, “que se dirige para o topo da colina de
Ettersberg” (SCHWAB, 2011, p. 102) é encarregado de enviá-los para o campo de
concentração de Buchenwald, no estado da Turíngia, reforçando o desrespeito do Estado
alemão em relação aos direitos civis de Brazda e muitos outros prisioneiros homossexuais.
Em relação a isso, a teórica Brandão (2011), nos complementa que:

Ele [Rudolf] sabia da existência dos campos e sabia que os judeus eram
enviados para Auschwitz Birkenau a fim de serem exterminados. Mas não
acreditava que os homossexuais também pudessem ser mandados para o
extermínio [...] o homossexualismo era reprimido pelos nazistas. Mas jamais
imaginou que o mesmo fosse vítima de um crime contra a humanidade.

(BRANDÃO apud SCHWAB, 2011, p. 103)

3.3 AS EXPERIÊNCIAS NOS CAMPOS DE CONCENTRAÇÃO


O período em que o regime nazista permaneceu no território alemão trouxe diversas
consequências para a população alemã minoritária, sendo esta tratada de forma marginalizada,
considerando os homossexuais, judeus, ciganos, testemunhas de Jeová, doentes físicos e
mentais, como citados no capítulo anterior, além da clara perseguição política instaurada
pelos nazistas em relação aos partidários de esquerda e aos comunistas. Em relação à isso, o
governo de Hitler possuía deliberada autonomia perante julgamentos, experimentos e outros
eventos vivenciados em campos de concentração e durante os cenários da guerra19.
A antropóloga Magalhães (2001) referenciando a teórica política Arendt (1993),
analisa perspectivas relacionadas às experiências retratadas nos campos de concentração,
possibilitando definir a complexidade da tortura imposta aos presos de tais localidades,
determinando-as metaforicamente como um inferno terreno, no qual é possível associar:

O inferno, como foi concebido pela cosmovisão judaico-cristã à época


medieval, não era o lugar da morte, mas do sofrimento eterno, de um

19
Cabe citar aqui que, durante o período em que o governo nazista permaneceu no território alemão, isto é, de
1933 a 1945, eclodiu a grande Segunda Guerra Mundial, travada entre os países do Eixo (Alemanha, Itália e
Japão) e os países Aliados (França, Inglaterra, Estados Unidos e URSS) durante seis anos, entre 1939 a 1945.
34

sofrimento tão grande, que as pessoas preferiam morrer a ter de suportá-lo. É


bem verdade que semelhantes sensações devem ter tido aqueles prisioneiros.

(MAGALHÃES apud ARENDT, 2001, p. 64)

Em 8 de agosto de 1942, Rudolf Brazda e outros 50 detentos desembarcam no campo


de concentração de Buchenwald, que “recebe principalmente os deportados pela repressão: os
adversários políticos e outros indesejáveis”. Dentre eles encontram-se “38 presos preventivos,
quatro criminosos comuns, quatro poloneses e quatro homossexuais” (SCHWAB, 2011, p.
105). Ao adentrarem à localidade, todos têm seus bens confiscados e iniciam o processo de
desinfecção, que consiste na raspagem de pelos corporais e posterior mergulho em um tanque
contendo cresol. Prestes a realizar o feito, Rudolf recebe ásperas ordens de um general:

“Prenda o fôlego!”, diz de repente o mesmo SS, antes de afundar a cabeça de


Rudolf no líquido e mantê-la submersa. Rudolf se debate e engole
desinfetante. Quando, enfim, o SS deixa de fazer pressão, Rudolf consegue
sair penosamente da cuba. Ele fica com uma náusea extrema e vomita, sob as
risadas dos senhores do lugar que assistem à cena. Começa o lento processo
de desumanização.

(SCHWAB, 2011, p. 107)

Após realizar o processo, Rudolf recebe seu uniforme, de matrícula 7952 e o mesmo
fica confinado em um dos barracões/blocos, de número 02, que eram organizados conforme a
necessidade/especificidade da detenção. As organização hierárquica é fortemente reivindicada
e presente, e dessa forma, Brazda passa a acatar ordens do Blockältester20 de seu bloco.
Para analisar inicialmente as experiências no interior de Buchenwald, cabe salientar
algumas informações importantes, que se dividem entre os termos Holocausto e a Shoah. O
primeiro deles, referencia à experiência de sacrifício ou entrega à determinada divindade, ou
seja, “significa totalmente queimado, dizendo respeito aos sacrifícios de animais que se
faziam aos deuses, logo, um ato voluntário dedicado ao Sagrado” (MAGALHÃES, 2001, p.
3). Já o Shoah, termo de origem abraâmica, diz respeito ao “extermínio, catástrofe,
devastação, pressupondo um castigo” (MAGALHÃES, 2001, p. 3). A própria origem do
termo, permite-nos relacionar à ideia de castigo divino, tendo como base umas das citações
bíblicas que divulga “que fareis vós no dia do castigo, quando de longe virá o shoah?”
(MAGALHÃES apud AGAMBEM, 1999, p. 37). Neste sentido, é possível analisar as
intenções nazistas em relação ao aprisionamento dos considerados indesejáveis, inseridos no

20
Nomenclatura utilizada no interior dos campos de concentração para se referir ao prisioneiro mais antigo no
bloco de dormitórios designado.
35

extermínio com o propósito de enaltecer a raça ariana, excluindo as minoritárias pluralidades


da sociedade alemã, além da clara intenção de aproveitar o “aspecto puramente repressivo [do
ambiente], os campos de concentração visavam tirar proveito de mão de obra escrava, quase
gratuita” (SCHWAB, 2011, p. 114).
O projeto de construção e organização dos campos de concentração possibilitavam a
manutenção da livre escravatura para fornecer operários para a indústria bélica e a construção
civil. Neste sentido, era certo que “os projetos faraônicos de Hitler para certas cidades grandes
do Reich demandavam uma quantidade enorme de pedras” (SCHWAB, 2011, p. 115) e as
pedreiras eram muito presentes em regiões próximas às detenções, incluindo em Buchenwald.
Entretanto, como “a pedra calcária, que de início se pensava usar em Weimar, era de má
qualidade” (SCHWAB, 2011, p. 115), o ambiente de trabalho daquela instituição era
destinado para punir e persuadir os detentos. Todo o resultado do trabalho se destinava para a
construção de “aterros e da edificação de dependências do campo” (SCHWAB, 2011, p. 116).
Rudolf começa a trabalhar na pedreira, que era destinada para os presos
indisciplinados, aos rassenchander21 e aos homossexuais. Os trabalhos em geral são
administrados pelos generais da Schutzstaffel e nesta pedreira em específico, por Johann
Herzog, um prisioneiro que acabou conquistando a confiança dos militares nazistas e passou a
trabalhar em conjunto na organização. Tal prisioneiro rapidamente se afeiçoou à Brazda e,
durante investidas sexuais, acabou por fornecer a possibilidade de um trabalho leve, no
outono de 1942. Rudolf passa a ser “enfermeiro do barracão da pedreira, onde são feitos os
primeiros socorros aos acidentados” e posteriormente retorna para a sua profissão fora dos
campos, ser telhador (SCHWAB, 2011, p. 119). Além disso, em meados de dezembro de
1942, a Alemanha se preparava para a eclosão de uma guerra mundial e Himmler ordenou aos
comandantes inferiores que exercessem punições menos severas aos detentos, de forma que
fosse possível “preservar a capacidade de trabalho dos prisioneiros” (SCHWAB, 2011, p.
120), visando a manutenção de mão-de-obra para a guerra.
Como telhador, Rudolf é transferido de barracão, e passa a integrar um ambiente com
maioria de detentos portadores de triângulos-vermelhos, os deportados políticos. É certo que
“sua profissão e suas afinidades comunistas agradam a muitos” (SCHWAB, 2011, p. 122) e
rapidamente Brazda é aceito no círculo social dos integrantes do bloco 30. Porém, isso não o

21
Em tradução livre, refere-se aos “poluidores da raça” - os transgressores das leis raciais de 1935, as quais
proibiam certos tipos de relacionamento entre arianos e não arianos, em função da ascendência pessoal
(SCHWAB, 2011, p. 116).
36

impede de vivenciar as experiências proporcionadas pelos nazistas aos detentos dos campos
de concentração, e em relação a isso, Rudolf nos contribui que:

Acabamos nos habituando à ideia de poder morrer a qualquer instante. Não


tínhamos medo de morrer e, se fôssemos pegos, poderia ter sido fatal. Ver
gente morrendo nos deixava quase indiferentes, pois isso era constante no
cotidiano. Hoje, choro toda vez que me lembro desses instantes terríveis,
mas na época eu endureci para sobreviver. Como os outros.

(SCHWAB, 2011, p. 126)

Em relação à isso, através de concepções advindas da psicanálise, pode-se afirmar que


o comportamento dos militares para com os prisioneiros nos campos de concentração refletem
a pressão psicológica, “o que os teria levado à uma obediência cega às autoridades”
(MAGALHÃES apud MILGRAM, 2001, p. 64), ou partindo de outra interpretação, “nos
campos de concentração teria ocorrido uma regressão filogenética, retornando os homens a
um comportamento semelhante ao de seus ancestrais da horda primitiva” (MAGALHÃES
apud BETTELHEIM, 2001, p. 64). Entretanto, em relação à última interpretação, embora
estivessem destinados à uma desordem humana e social, é pouco provável que os mesmos
cometessem assassinatos exceto em situações de legítima defesa, o que acabaria
deslegitimando tal posicionamento/postura. Tal processo social entre os organizadores dos
campos de concentração reflete a ênfase da tortura, que pode ser definida pela:

[...] busca, à custa do sofrimento corporal insuportável, introduzir uma cunha


que leve à cisão entre o corpo e a mente. E mais do que isto: ela procura, a
todo o tempo, semear a discórdia e a guerra entre o corpo e a mente. Através
da tortura, o corpo torna-se nosso inimigo e nos persegue [...] da mais íntima
espessura da própria carne, se levanta uma voz que nos nega, na medida em
que pretende arrancar de nós um discurso do qual temos horror, já que é a
negação de nossa liberdade.

(ARNS, 1985, p. 281)

Por suas relações de proximidades a pessoas importantes do campo, Rudolf acaba


sendo poupado de diversas situações-limite. Algumas destas são os tratamentos experimentais
impostos nos campos de concentração, liderados por um importante médico dinamarquês,
Carl Vaernet, que administrava testes aos homossexuais em relação à possibilidade de
inversão da polaridade sexual. O termo polaridade, neste caso, referia-se à orientação sexual
do indivíduo, denotando o desconhecimento dos nazistas em relação à aspectos importantes
da sexualidade e que já eram conhecidos e defendidos por uma parcela da população alemã
nos anos 1920. Sua tese baseava-se no “implante de uma glândula artificial na virilha do
37

sujeito para liberar hormônios” (SCHWAB, 2011, p. 128). Vaernet interpretava a


homossexualidade como consequência da ausência e/ou desequilíbrio de certos tipos de
hormônios sexuais nos indivíduos masculinos e femininos. Sabe-se que esse tratamento
ocasionou consequências irreversíveis para boa parte dos prisioneiros homossexuais,
causando desde desconfortos consequentes dos desequilíbrios hormonais provocados em sua
estrutura fisiológica, até à morte destes. Estima-se que a principal causa de morte de
homossexuais nos campos de concentração foi o tratamento de cura dos homossexuais
proposto por Vaernet, no interior de Buchenwald, que concentrava a maior parcela dos
prisioneiros do triângulo-rosa. Entretanto naquele período, tais consequências eram ignoradas
e o mesmo tinha “esperança nos efeitos positivos sobre a preferência sexual de suas cobaias”
(SCHWAB, 2011, p. 128). Em relação a isso, as teóricas Santana e Volpato (2014),
referenciando Lima (2014) puderam aferir a perplexidade do método:

Ele [Vaernet] castrou seus pacientes no campo de Buchenwald e depois


injetou doses muito altas de hormônios masculinos, para observar sinais de
“masculinização”. Estima-se que 55% dos gays que entraram nos campos de
concentração morreram - algo entre 5 mil e 15 mil pessoas.

(SANTANA et. al. apud LIMA, 2014, p. 2)

A disciplina e reverência também eram elementos determinantes para o convívio em


Buchenwald, sempre respeitando a ordem hierárquica imposta pelos nazistas. Rudolf, pôde
refletir sobre tais circunstâncias, durante uma experiência que teve no final de uma tarde de
trabalho, em meados iniciais de 1943:

Enquanto anota o trabalho efetuado no dia em uma barraca do canteiro de


obras, ele escuta gritarem do lado de fora: “A que Kommando pertence esta
barraca?” Sem se preocupar em averiguar quem havia feito a pergunta,
Rudolf responde com impertinência, esquecendo-se de onde se encontra:
“Está escrito na porta!”. Ele nem imagina que acaba de se dirigir a um oficial
da SS. Furioso, o soldado se lança para dentro da barraca e, com um chute
violento, derruba Rudolf da cadeira. Mal ele se levanta e recebe um soco na
cara, que o faz novamente desabar. “Quer dar uma de abusado, é? Vou lhe
dar um motivo, você vai ver! Amanhã há um transporte para Dora22 e eu
farei questão de vê-lo nessa viagem!”

(SCHWAB, 2011, p. 130)

22
Dora era o nome de uma unidade de alojamento satélite do campo de Buchenwald, localizada a
aproximadamente 80 km da unidade principal. O local era considerado um Kommando de morte. Entre dezembro
de 1943 e março de 1944, as mortes nesse local representaram cerca de dois terços dos 3.122 detentos mortos no
campo de Buchenwald e em seus satélites.
38

Dora era sinal eminente de morte. A estrutura de trabalho era ainda mais árdua e
penosa, sendo que poucos sobreviviam ao período de punição no alojamento-satélite. Por
sorte e por intercessão de seu superior, Gustav, Rudolf não foi convocado na lista de
prisioneiros enviados à Dora no dia seguinte ao ocorrido, o que demonstra que “seus contatos
na rede comunista de resistência dentro do campo devem ter tido participação no fato”,
livrando-o de uma possível condenação (SCHWAB, 2011, p. 132).
A postura passiva dos prisioneiros dos campos de concentração em relação ao
autoritaritarismo e tirania dos policiais e generais da SS denuncia a atmosfera opressora que
envolvia tais localidades de detenção. Em relação a isso, Marion Magalhães (2001),
complementa relacionando que “[...] nos campos de concentração, ninguém exigia que os
prisioneiros falassem, confessassem alguma verdade. Pelo contrário, a ordem era que
sofressem em silêncio” (MAGALHÃES, 2001, p. 65). Tal sofrimento, em uma linguagem
metafórica, referenciava ao objetivo nazista de aproveitar tal postura dos prisioneiros para
controlá-los ao bel prazer dos governantes. Hannah Arendt (1996), associa tal período à um
laboratório humano, verificando que:

Os campos são um Laboratório vivo que revelam que tudo é possível, que os
humanos podem criar e habitar um mundo onde as distinções entre vida e
morte, verdade e falsidade, aparência e realidade, corpo e alma, e até vítima
e algoz são constantemente confundidas [...], os campos apresentam,
primeiro, a morte jurídica; depois a destruição moral e finalmente que a
individualidade do ser tem de ser esmagada.

(MAGALHÃES apud ARENDT et. al., 2001, p. 66)

Além do controle dos prisioneiros, a prática da arbitrária tortura e violência física nos
campos de concentração, servia de reforço ao entusiasmo nutrido pelo chefe carismático ou
pela restauração da ordem, lógica presente nas origens das estruturas dos regimes autoritários.
O historiador Pierre Ansart (1983), relacionou tais métodos de disciplina e obediência
impostos pelos nazistas aos prisioneiros, possibilitando interpretar que:

A eles precede sempre, segundo o autor, um conjunto de paixões políticas,


alimentadas num pequeno grupo (geralmente, de caráter sectário), que são
expressas de forma a denunciar, com intensa violência verbal (ou mesmo
violência física), o inimigo: os imperialistas, os judeus, o Tratado de
Versalhes, a burguesia, os criminosos, os subversivos. Quando identificados
como forças do mal, o ódio é iniciado sem clemência, ao mesmo tempo em
que é produzida uma identificação afetiva com o chefe do grupo.

(ANSART, 1983, p. 132)


39

Rudolf Brazda e outras centenas de prisioneiros homossexuais passaram por


Buchenwald, além de outros campos nazistas. Em dados divulgados pelo Departamento de
Justiça alemão e acessados por Jean-Luc Schwab, revelam que entre janeiro de 1943 a abril de
1945, cerca de 650 homossexuais foram detidos neste campo. Os judeus, por exemplo, eram
mantidos em barracões únicos, porém, os homossexuais eram dispersos entre os alojamentos.
É certo que, na circunstância de aprisionamento em que se encontravam, durante meses ou até
anos, muitos dos detentos praticaram atos homossexuais a fim de corresponder à sua libido
sexual, de forma consensual ou não. A homossexualidade, como citada anteriormente, trata-se
da qualidade de um ser vivo atrair-se fisicamente, espiritualmente e emocionalmente por
indivíduos do mesmo sexo/identidade de gênero. Em relação a isso, há diversas interpretações
no campo da ciência e da sexualidade acerca da origem da homossexualidade humana e de
suas múltiplas formas. Tais interpretações se dividem em teses essencialistas e construtivistas.
A interpretação essencialista diz respeito à homossexualidade como
inerente/pertencente ao ser, ou seja, algo já determinado ao nascimento, finalizado e imutável,
assim como a bissexualidade, assexualidade, heterossexualidade e pansexualidade. Já a
interpretação construtivista admite que os seres humanos herdam fatores de cunho social -
como o contato familiar -, cultural e circunstâncias biológicas que interferem na construção de
sua orientação sexual e dessa forma, de acordo com a educadora sexual Figueiró (2007), “a
homossexualidade é multideterminada e que a cultura, o relacionamento familiar e a história
de vida de cada pessoa são fatores de peso” (FIGUEIRÓ, 2007, p. 36). Tal construção, reflete
várias etapas de um processo durante a vida e o amadurecimento dos indivíduos, e neste
sentido Figueiró (2007), referenciando G. Sheely (1985), contribui acerca do andamento do
desenvolvimento da orientação sexual humana. Cabe refletir que:

Primeiro, o sentir-se diferente. Comumente, isto se dá dos 8 aos 13 anos,


aproximadamente. É um processo de lenta descoberta da tendência
homossexual, que vai se dando com débil intensidade, acompanhado de
fantasias, pensamentos e sonhos de colorido homossexual. O sentimento de
ser diferente vai se intensificando gradualmente até os 17 anos.
Segundo, o conseguir entender em que consiste esta diferença. É quando se
consegue identificar que se trata de uma atração pelas pessoas do mesmo
sexo, enquanto a maioria sente atração pelo sexo oposto. Acontece uma
crescente tomada de conhecimento dos próprios sentimentos homossexuais.
Terceiro, o reconhecer-se como sendo uma pessoa homossexual. Tanto este,
quanto o momento anterior, acontecem por volta dos 13 aos 20 anos,
aproximadamente.
Quarto, o aceitar-se como sendo homossexual - ocorre por volta dos 20 aos
30 ou 40 anos.

(FIGUEIRÓ apud SHEELY, 2007, p. 31 [grafia própria])


40

Retomando a análise do comportamento homossexual no campo de concentração de


Buchenwald, sabe-se que menos de 1% dos prisioneiros ali presentes foram detidos devido às
práticas sexuais condenadas pelo parágrafo/artigo 175 e o Código Penal Alemão, contando
que tal campo possuía a maior concentração de homossexuais de todos os campos de
concentração. Ou seja, somava-se cerca de 650 prisioneiros homossexuais em toda a trajetória
de utilização e os demais prisioneiros, cerca de 50 mil homens, foram detidos devido à outras
infrações e perseguições instauradas após o início da gestão dos nazistas. O pesquisador
Setterington (2017), elaborou uma tabela censitária a respeito dos homossexuais detidos em
campos de concentração nazistas e também em departamentos policiais locais, com prisões
preventivas e/ou em primeira instância, como ilustrado:

Ano Número de presos homossexuais

1933 853

1934 948

1935 2.106

1936 5.320

1937 8.271

1938 8.562

1939 7.614

1940 3.773

1941 3.735

1942 3.963

Tabela 1 - Censo alemão em relação à prisão de homossexuais pelos nazistas. Fonte: Setterington, 2017, p. 49.

Observando tais dados, pode-se afirmar que os prisioneiros não-homossexuais


representavam uma parcela superior ao número de detentos gays, porém, o relacionamento
homossexual nos campos de concentração, assim como nas prisões alemãs era uma prática
comum. No campo da Psicologia, como contribui a pesquisadora, psicóloga e educadora
sexual Figueiró (2007), a orientação sexual pode aflorar-se em diferentes aspectos, e neste
sentido, pode ser interpretada a partir de duas vertentes. Cabe refletir que:
41

Quando a orientação homossexual está arraigada na pessoa e em seu


psiquismo, falamos em homossexualidade primária, ou de profundidade.
Neste caso, o apaixonar-se vai se dar apenas pela pessoa do mesmo sexo,
influenciando, fortemente, os rumos das experiências de vida da pessoa. Há,
ainda, a homossexualidade secundária, ou também denominada de
circunstancial, ou “de superfície”, na qual a atração homossexual se dá de
maneira não tão rigorosa e está associada às circunstâncias, muitas vezes,
passageiras. Pode se dar como consequência de carências devido à falta de
parceiros do sexo oposto, como é caso de pessoas que vivem muito tempo
em prisões, quartéis, conventos ou seminários. Pode se dar, também, devido
à inibição e ao acanhamento ao relacionar-se com o sexo oposto.

(FIGUEIRÓ apud MÜLLER, 2007, p. 33 [grifo próprio]).

Quando não praticados por indivíduos nestas circunstâncias, a homossexualidade era


utilizada como ferramenta de favores dos Kapos - prisioneiros que possuíam certas relações
de poder na hierarquia nazista -, fazendo com que alguns dos prisioneiros se prestassem aos
favores sexuais a estes homens em troca de mais alimentos, envolvimento em decisões do
alojamento em que viviam, e outras trocas de favores, como a própria preservação de suas
vidas. Com o ápice da Segunda Guerra Mundial em 1943, a população dos campos se reduziu
bruscamente em quantidade e em idade, e dessa forma, 65% deles possuíam menos de 30
anos. Os nazistas necessitavam de mais espaço para abrigar os prisioneiros europeus de várias
origens, entre eles russos, poloneses e judeus, que chegaram após a captura e anexação de
regiões ao Reich e os detentos lutavam pela sobrevivência em meio às circunstâncias em que
se encontravam, se submetendo aos abusos. Isso também foi retratado por Rudolf Brazda,
afirmando em sua posterior biografia que “prestar os favores sexuais exigidos pelo mais velho
não agradava à sua sexualidade, mas era um mal necessário” (SCHWAB, 2011, p. 135).
Todas estas experiências, entretanto, foram enfrentadas pelos prisioneiros ainda na
estima pela saída da detenção e o retorno à sua liberdade civil e humana. Quando Rudolf
chegou a Buchenwald, em 1942, este já possuía um novo governante, Hermann Pister, que
substituiu seu austero antecessor Karl Otto Koch. Pister, por sua vez, possuía uma política de
permitir que a mão-de-obra detenta presente nos campos de concentração fosse utilizada para
a lucratividade da Schutzstaffel e do nazismo, e não apenas como um instrumento de
repressão e tortura, como seu antigo gestor. Tal conduta, portanto, foi responsável pelo leve
abrandamento das punições perpetradas aos detentos, mantendo vários deles em condições de
trabalho. Os judeus, considerados os máximos inimigos do governo de Hitler, sofriam
punições severas, períodos de fome e eram constantemente transferidos para os campos de
extermínio, em outras regiões. Essa população foi a que apresentou maior taxa de mortalidade
dentre todos os grupos: cerca de ⅓ da população judia mundial foi morta pelo regime nazista.
42

Em 1945, Buchenwald tornou-se o maior campo de concentração nazista e somava


cerca de 110 mil prisioneiros, incluindo os campos satélites. Com a superlotação, iniciou-se o
processo de evacuação dos campos, a partir de 7 de abril de 1945, “quando 28 mil prisioneiros
pegaram a estrada na direção de campos mais ao sul, como Theresienstadt, Dachau e
Flossenbürg [...] são as famosas marchas da morte [...], os SS que as conduzem têm ordem de
abater toda pessoa que não tem condições de prosseguir. A falta de comida e de roupas
quentes, além do esgotamento, faz que cerca de ⅓ dos detentos seja sumariamente executado”
(SCHWAB, 2011, p. 145). Além disso a invasão americana aos campos era cada vez maior,
assim como a presença de conflitos armados entre estes e os soldados da Schutzstaffel. Em 11
de abril de 1945, os americanos “tomam o controle do prédio da entrada principal [de
Buchenwald], que está quase vazio”. Em pouco tempo, no mesmo dia, um preso hasteia uma
bandeira branca na torre central. É enfim chegado o momento de libertação dos presos. O
jornalista Jean-Luc Schwab (2011), ilustra tal evento histórico nos pontuando que:

Pelos alto-falantes, ele [o preso] anuncia que o campo está sob o controle do
Comitê Internacional. Pede aos prisioneiros que mantenham a calma e a
disciplina. Mas, quando escutam a notícia e veem pela primeira vez a porta
principal totalmente aberta, centenas de presos se precipitam para fora dos
barracões, em que estavam confinados desde a manhã. A energia elétrica é
cortada. A cerca de arame farpado do Schutzhaftlager não está mais
eletrificada; o relógio da entrada principal para. São 15 horas e 15 minutos.
[...] após algumas explicações, um dos presos armados e um belga, são
engolfados por uma multidão de deportados, que explodem de alegria.

(SCHWAB, 2011, p. 147)

Até a chegada dos reforços militares americanos, a guarda dos prisioneiros fica sob
total responsabilidade de Hans Eiden - o prisioneiro que anunciou a tomada de Buchenwald -,
e alguns soldados responsáveis pela invasão. Eiden também foi o responsável por hastear a
bandeira branca no pátio central e decretar a liberdade dos prisioneiros. Rudolf, que se
escondeu durante a troca de tiros, não presenciou o histórico momento da invasão americana
de Buchenwald, e após certo tempo de silêncio no campo, ele decidiu sair do esconderijo
prudentemente. E, dessa forma, “do lado de fora, volta a ser um homem livre” e o ambiente
era “[...] de euforia - da libertação e dos reencontros. Enfim, eles poderão reaprender a viver.
E, sobretudo, sair de Buchenwald” (SCHWAB, 2011, p. 149).
Em 19 de abril de 1945, na praça de chamada do campo, ocorreu uma reunião e vigília
em nome das vítimas da imposição nazista, organizada pelo Comitê Internacional, com o
apoio dos militares americanos. O discurso é cativante, leva os antigos prisioneiros à euforia e
à tristeza por perder diversos amigos e conhecidos na barbárie nazista. Rudolf Brazda jamais
43

se esquecerá da última frase proferida por um militar americano durante a homenagem:


“daqui por diante vocês fazem parte da elite da humanidade” (SCHWAB, 2011, p. 152).
44

4. OS DIREITOS SEXUAIS E OS DIREITOS HUMANOS

4.1 OS DIREITOS SEXUAIS ENQUANTO DIREITOS INERENTES AO


HOMEM
Após o fim da Segunda Guerra Mundial em 1945, os Estados internacionais
propuseram-se em avaliar os malefícios e benefícios da trajetória da Liga das Nações - até
então considerada a mais importante organização diplomática do mundo, desligando-a em
1946. A Sociedade/Liga das Nações surgiu em 28 de abril de 1919 com o Tratado de
Versalhes, que dentre a instauração da instituição, também foi responsável por definir as
sanções aos países perdedores da Primeira Guerra Mundial, prosseguindo o armistício que
paralisou o movimento bélico em 1918 na cidade francesa de Compiègne. Nestas resoluções,
havia a clara sanção à Alemanha, caracterizando-a como principal responsável pela guerra e
implicando multas astronômicas que deveriam ser liquidadas e repassadas aos países
vencedores. Estima-se que o país tenha arcado com uma multa de aproximadamente 400
bilhões de dólares americanos atuais aos valores da época (SETTERINGTON, 2017, p. 19).
As experiências com a prisão arbitrária e severa de homossexuais masculinos na
Alemanha durante o governo nazista, que perdurou entre os anos de 1933 a 1945, reacendeu o
debate diplomático internacional em relação aos direitos humanos e às proteções individuais.
Sabe-se que os direitos humanos, ou seja, os direitos garantidos única e exclusivamente pela
condição da espécie, de forma a unificar os seres humanos, são garantias recentes, porém que
herdaram conquistas, concepções e contribuições ao longo do tempo. A história dos direitos
humanos une-se ao debate em torno da dignidade humana - característica de ter ciência do
valor próprio e dos demais enquanto indivíduos -, ou seja, incorpora todos os ganhos e
interpretações de diferentes culturas, como a grega e a romana, e as interpreta através de
marcos legais que garantem o essencial da liberdade e preservação dos indivíduos23.
Após o desligamento da Liga das Nações, em outubro de 1945, a responsabilidade
diplomática por garantir os direitos humanos foi repassada para a recém-criada Organização
das Nações Unidas, sediada em Paris, que além de buscar o debate da garantia de direitos
entre os países, reforçou o Pacto da Liga das Nações - o principal documento em relação aos
direitos humanos, embora este tratasse de forma tênue do assunto, destacando-se na definição

23
Para mais informações sobre o princípio da dignidade humana e sua contextualização histórica, ler Afirmação
Histórica dos Direitos Humanos, desenvolvida em 2010 pelo professor e jurista Fábio Konder Comparato.
45

das sanções aos países perdedores em relação ao armistício da Primeira Guerra - e criou a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1946.
Neste sentido, sabe-se a necessidade de criação de documentos jurídicos ou
declarações que visem garantir e/ou influenciar na concepção dos direitos ao homem, de
forma que valorize a permanência e a proteção destes na sociedade. É certo que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, assim como o Pacto da Liga das Nações, possuía artigos
importantíssimos para a concepção dos direitos humanos. Este último, com o artigo 23º
propunha aos Estados signatários a responsabilidade diplomática por garantir condições de
trabalho equidárias para homens e mulheres; garantir acompanhamento à população indígena
residente no país; corrigir os crimes de tráfico de mulheres e crianças; combater o tráfico de
drogas; e garantir o livre comércio internamente e entre países.
Tais garantias se configuram como essenciais para a manutenção do bem-estar dos
cidadãos. Entretanto, embasando-se na discussão deste trabalho, aqui nos cabe a reflexão: o
direito ao exercício da sexualidade e da livre orientação sexual, aqui interpretados como
direitos sexuais, também podem ser considerados direitos humanos?
O debate em torno dos direitos sexuais não é uma construção recente. De acordo com
Roger Raupp Rios (2011), perante o campo jurídico os direitos sexuais foram inicialmente
suprimidos pelo conservadorismo envolto na comunidade do setor. Neste sentido, “o Direito
foi produzido como instrumento de reforço e conservação dos padrões morais sexuais
majoritários e dominantes” propiciando a valorização “da família nuclear pequeno-burguesa,
as atribuições de direitos e deveres sexuais entre os cônjuges e a criminalização de atos
homossexuais” (RIOS, 2011, p. 291).
Com a ascendente representatividade política dos movimentos sociais, surgiram as
demandas em torno do reconhecimento dos novos arranjos familiares e, consequentemente
levantaram a discussão da defesa dos direitos sexuais, especialmente dos direitos à população
LGBTI, ou seja, destinados às Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Intersexos 24. Em
relação à isso, Rios (2011) complementa que:

O surgimento destas demandas e o reconhecimento de alguns direitos, ainda


que de modo lento e não uniforme, inaugurou uma nova modalidade na
relação entre os ordenamentos jurídicos e a sexualidade. Os Direitos Sexuais
devem ser compreendidos no contexto da afirmação dos Direitos Humanos,
ao invés de apartá-los e concebê-los de modo paralelo aos princípios

24
Os intersexos são os indivíduos que nasceram com ambos os órgãos genitais anatômicos masculino e
feminino. Trata-se de uma nomenclatura recente, em substituição ao antigo termo hermafrodita.
46

fundamentais consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos


de 1948.

(RIOS, 2011, p. 291)

Além disso, de acordo com a jurista Maria Berenice Dias (2011), como citado no
início deste trabalho, “ninguém pode realizar-se enquanto ser humano se não tiver assegurado
o respeito ao exercício da sexualidade, conceito que compreende a liberdade sexual,
albergando a liberdade da livre orientação sexual” (DIAS, 2011, p. 1).
Baseando-se nestas afirmações, é possível considerar alguns fatores. Dentre eles, a
característica humana do desenvolvimento da sexualidade, utilizando-se da interpretação
construtivista de afloramento da orientação sexual, que define a orientação sexual humana
como resultado de um construto social, que herda influências do núcleo familiar, de entes
próximos e de circunstâncias culturais. Além disso, é certo que o exercício da livre orientação
sexual é um direito nato a todo ser humano, imutável e não se trata de uma escolha. Partindo
desta premissa, podemos avaliar as consequências das experiências nos campos de
concentração para os homossexuais. O próprio Código Penal Alemão, herdado desde a
Constituição de Weimar em 1919, constituiu o princípio de repressão aos homossexuais,
entendidos como praticantes de luxúria, muito embora, o país também fosse considerado
pioneiro nos estudos da sexualidade com o apoio do médico e pesquisador Magnus
Hirschfeld, configurando Berlim como a capital homossexual da Europa. Tais artigos
propostos eram dificilmente respeitados, exceto em casos envolvendo homossexualidade entre
menores de idade e a pederastia. A nova redação do artigo/parágrafo 175 surgiu a partir da
gestão nazista, que procurou reforçar as punições aos casos homossexuais e acrescentar
sanções em casos de masturbação mútua ou de toque entre homens, indo muito além do coito.
Essa política pública de repressão às minorias acabou por influenciar diretamente no
exercício da sexualidade dos alemães, fazendo com que milhares destes acabassem presos e
expostos à vergonha do julgamento arbitrário e humilhante dos juristas alemães. Expor estes
indivíduos a tortura e a longos julgamentos fere não apenas a concepção dos direitos sexuais,
mas também o princípio dos direitos humanos, que já eram garantidos por meio do Pacto da
Liga das Nações com o artigo 23, ao tratar dos direitos equitativos, ou seja, de igualdade e
reforçados por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
47

4.2 A GÊNESE DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS E


DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
A Organização das Nações Unidas, com atual sede em Nova York, foi criada em
junho de 1945, pouco tempo após o fim da Segunda Guerra Mundial. Neste período, com
forte desgaste diplomático propiciado pela rivalidade bélica, instaurou-se a necessidade de
recriar uma organização diplomática para atribuir direitos e deveres a serem assegurados e
respeitados pelos países dos quais se submetessem à nova organização.
Cerca de 189 Estados participam atualmente da ONU e são signatários da Declaração
Universal dos Direitos Humanos. Nesta, considera-se que “o reconhecimento da dignidade
inerente a todos os membros da família humana e dos seus direitos iguais e inalienáveis
constitui o fundamento da liberdade entre os indivíduos, definido no preâmbulo da DUDH, e
que sua ausência se torna responsável por conduzir “a atos de barbárie que revoltam a
consciência da Humanidade” (ONU, 1948, p. 2). Tal código de conduta instaurou-se após a
desastrosa experiência bélica da Segunda Guerra, buscando ressignificar a dignidade e a
importância humana, conduzindo os indivíduos a agirem de forma cívica e cidadã.
A sessão de votação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, submissa à
resolução 217-A da Assembleia Geral das Nações Unidas ocorreu em 10 de dezembro de
1948, presidida pela até então primeira-dama estadunidense Eleanor Roosevelt, em Paris. Os
países participantes da sessão consideravam que “o advento de um mundo em que todos
gozem de liberdade de palavra, de crença e de liberdade de palavra, de crença e da liberdade
de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta aspiração do
ser humano” (ONU, 1948, p. 2), dessa forma abrindo precedentes para a democracia, a
liberdade de expressão e o reconhecimento da dignidade de seus indivíduos.
Os trinta artigos propostos pela Declaração buscavam assegurar o direito à liberdade, à
segurança, à vida, sendo que tais garantias independem de “qualquer espécie, seja de raça,
cor, sexo, idioma, religião, opinião pública ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” (ONU, 1948, p. 5). Este princípio de
equidade entre os constituintes da sociedade foi determinante para a garantia dos direitos
fundamentais e, neste sentido também possibilitou atribuir direitos à população LGBTI.
No mesmo documento também foi definido a responsabilidade diplomática dos países
em relação à administração das concepções dos direitos humanos. Dessa forma, cabia aos
Estados, através do ensino e da educação, promover o respeito a estes direitos e liberdades, e
adotar medidas progressivas de caráter nacional e internacional que garantissem o
48

reconhecimento e o cumprimento universal de tais recomendações, tanto entre os Estados-


membros da ONU - no período da instauração da DUDH eram 58 países
participantes/signatários, também considerados como Estados fundadores: África do Sul,
Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Belarus, Bélgica, Bolívia, Brasil, Canadá, Chile, China,
Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, Egito, El Salvador, Equador, Estados Unidos,
Etiópia, Federação Russa, Filipinas, França, Grécia, Guatemala, Haiti, Holanda, Honduras,
Índia, Irã, Iraque, Líbano, Libéria, Luxemburgo, México, Nicarágua, Noruega, Nova
Zelândia, Panamá, Paraguai, Peru, Polônia, Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte,
República Dominicana, Síria, Turquia, Ucrânia, Uruguai, Venezuela -, “quanto entre os povos
dos territórios sob sua jurisdição” (ONU, 1948, p. 4).
Cabe acrescentar que, embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos seja
considerada o documento mais importante em relação à defesa dos direitos humanos, existem
outras declarações e pactos que atuam em conjunto com suas argumentações. De acordo com
a Organização das Nações Unidas (2017), a DUDH atua em conjunto com o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e seus dois protocolos opcionais (sobre
procedimento de queixa e pena de morte) e com o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, formando a Carta Internacional dos Direitos Humanos.
Neste sentido, cabe a reflexão: ‘a votação e a instauração da Declaração Universal
dos Direitos Humanos refletem os ideais civis destas nações?’. É certo que em nações como o
Brasil, a DUDH teve papel primordial para a formulação de constituições, a exemplo da
Constituição Federal de 1988, apelidada de Constituição Cidadã - em alusão aos valores
herdados do documento da ONU -. Entretanto, decisões na esfera política nacional, com
participações de bancadas políticas religiosas fundamentalistas ameaçam determinadas
conquistas referentes aos grupos considerados minoritários da sociedade brasileira25.
No campo jurídico brasileiro, costuma-se atribuir aos direitos humanos a conotação de
direito novo, referenciando o recente instauro da Declaração Universal dos Direitos Humanos,
há 69 anos atrás. O jurista Celso Lafer (1995) contribui que:

Na elaboração de um direito novo, a Carta levou em conta o que foi a


destrutividade técnica dos instrumentos bélicos da Segunda Guerra Mundial,
inclusive a bomba atômica, e a experiência do totalitarismo, que patrocinou
os campos de concentração e o holocausto. Em síntese, um dos antecedentes
do direito novo, foi a escala sem precedentes do mal ativo e passivo. Daí ter

25
Em relação à tal tema, recomenda-se a leitura do artigo Frente Parlamentar Evangélica e Homossexualidade:
a presença do religioso no legislativo e a luta pela defesa de direitos da população homoafetivas na sociedade
brasileira, de autoria de Pedro Arthur Passos da Silva e Luana Pagano Peres Molina, divulgado em 2017.
49

contemplado a perspectiva das vítimas do mal com uma preocupação com os


direitos humanos.

(LAFER, 1995, p. 170)

Uma outra análise proveniente da importância dos direitos humanos se dá pela


perspectiva de embasamento do direito. Após o século XVIII, com as Revoluções Americana
e Francesa ocorre uma inovação no modo de pensar a política. Celso Lafer (1995) justifica
que “até então a preocupação predominante dos pensadores políticos era com o bom governo”
e posteriormente inaugura-se a época da perspectiva dos governados, dessa forma
substituindo a “[...] ênfase na noção de dever dos súditos pela da promoção da noção de
direitos do cidadão. Daí, nas palavras de Hannah Arendt, a ideia de o direito ter direitos, que
estará na base da construção dos regimes democráticos da Idade Contemporânea” (LAFER,
1995, p. 171). Isso implica diretamente no conceito de direito novo, tratando de forma
axiológica o ser humano como fim e não meio, sendo que este deve possuir “direito a um
lugar no mundo; um mundo que encontra um terreno comum entre a Ética e a Política através
da associação convergentes de três grandes temas: direitos humanos e democracia no plano
interno e paz no plano internacional (LAFER, 1995, p. 172 [grifo do autor]).

4.3 EPÍLOGO: A VIDA DE BRAZDA APÓS A LIBERTAÇÃO


Rudolf Brazda foi liberto devido à intervenção americana no campo de concentração
de Buchenwald no dia 24 de abril de 1945. A partir de então, recebe sua documentação
enquanto refugiado, e segue junto com um companheiro de detenção, Fernand, para o leste
francês, na região de Mulhouse. Muito embora os familiares de Brazda estivessem em uma
região próxima a Buchenwald, a cerca de 150 km, a presença do exército vermelho no leste
alemão dificultava o reencontro familiar. Para evitar problemas, Rudolf acabou se
estabelecendo em um vilarejo próximo à cidade francesa de Mulhouse, Bantzenheim.
Em pouco tempo, acaba conseguindo ocupar sua antiga função, de telhador, mantendo
o que classifica como “vida que parece cada vez mais retomar o rumo” (SCHWAB, 2011, p.
159). Dois anos após, em 1947, decide retornar à Alemanha para reencontrar sua família e
também alguns amigos de sua vida antes da detenção. Permanece durante alguns meses e
acaba retornando para a França, onde conhece Edouard M. – apelidado de Edi -, considerado
por ele como o “novo homem de sua vida” (SCHWAB, 2011, p. 162). Os dois acabam
formando união estável em meados de 1959, com a morte dos pais de Edi. Compram um
terreno na região norte de Mulhouse, onde constroem juntos durante três anos a moradia da
50

nova família. Entretanto, uma fatalidade ocorre na construção e Edi acaba caindo do telhado
da casa, ferindo a coluna vertebral permanentemente e ficando paraplégico. Mas isso não
impede que a relação entre os dois se solidifique e que permaneçam para sempre juntos. Em
relação à essa união, Jean-Luc Schwab (2011) testemunha que:

Eles, que haviam assistido à ascensão do nazismo, que sofreram com a


guerra, o exílio.... Eles, que indiretamente sofreram com a cisão da Europa -
Rudolf, para quem as visitas à Alemanha Oriental tinham se tornado mais
difíceis desde os anos 1960, e Edi, como várias pessoas nascidas no Banato,
que só pudera retornar à sua terra natal como simples turista estrangeiro… E
eles veem tremer o bloco oriental, esse símbolo maior da bipolarização do
mundo resultante da guerra. A história é feita de coincidências
perturbadoras.

(SCHWAB, 2011, p. 167)

Alguns anos se passam, e uma grave doença respiratória acaba por levar Edmund à
falência múltipla dos órgãos, no início dos anos 2000. O biógrafo Jean-Luc Schwab conclui a
biografia do refugiado dos campos de concentração nos elucidando sobre o singelo e
reconfortante sentimento de amor de Rudolf para com o marido:

Rudolf e Edi não oficializaram sua relação por meio do pacto civil. Mesmo
que a possibilidade existisse desde 1999, eles se bastavam a si mesmos [...].
Os problemas de saúde de Edi vão se agravando e ele morre na manhã de 25
de novembro de 2003. Tinha 73 anos. Rudolf, fiel até o fim, estava ao lado
dele

(SCHWAB, 2011, p. 167)

Rudolf Brazda uniu-se ao seu amado oito anos depois, em 3 de agosto de 2011,
deixando familiares, amigos e toda uma comunidade, assim como eu, encantada com a sua
humanidade e sensibilidade ao aceitar tratar de um tema tão delicado quanto às amarras que a
sociedade alemã e o regime autoritário nazista lhe impuseram durante a sua juventude.
51

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A herança dos conceitos advindos dos estudos eugênicos foi determinante para a
apropriação do nazismo proposto por Hitler, que pretendia expandir a intolerância, homofobia
e o desrespeito aos seres humanos. A Alemanha no período, vivia em franco desenvolvimento
da ciência da sexualidade, com contribuições inestimáveis propostas por Magnus Hirschfeld,
pioneiro no estudo da transexualidade e que trouxe melhorias significativas para boa parte da
população alemã. Berlim, por sua vez, era considerada uma cidade homossexual: era o berço
dos estudos, assim como acolhia boa parte do entretenimento destinado a esse público, com
bares, lanchonetes, cinemas, revistas e diários destinados aos LGBTI. Encaminhava-se para
uma cidade cosmopolita, diversa e acolhedora. Porém, com a consolidação do nazismo no
poder - não de forma democrática, como prevista com a Constituição de Weimar, mas devido
a pressões internas advindas do partido de Hitler – o espaço para o debate e a defesa das
minorias foi radicalmente comprometido e comumente proibido.
Instaurou-se um ambiente do medo, em que o diferente era combatido e, dessa forma,
a população LGBTI passou a sofrer os efeitos do novo governante alemão. O autoritarismo foi
uma das marcas do nazismo, e dessa forma, estes se preocuparam em reforçar o código
constitucional vigente no país no período, o Código Penal Alemão, que já existia desde a CW.
A área de maior interesse dos nazistas era com relação aos judeus – devido ao contraste e
instinto de preservação em relação à população ariana -, homossexuais – devido à
preocupação do governo com relação à reprodução da população, que deveria atender aos
preceitos maritais impostos em 1935, realizando casamentos apenas entre arianos ou não-
arianos heterossexuais -, crianças e adolescentes judeus – também submetidos à tortura e aos
campos de extermínios – e os partidários de esquerda, também considerados como comunistas
– que, segundo a perspectiva nazista, poderiam ameaçar à continuidade do regime.
Pouco a pouco os homossexuais, tratados no enfoque deste trabalho a partir do
testemunho biográfico de Rudolf Brazda, foram sendo enviados para as prisões. Expostos às
mais variadas torturas, interrogatórios que duravam horas e induzidos a denunciar amigos,
familiares e conhecidos homossexuais, foram consolidando a gama de presos por
homossexualidade e luxúria no Reich. Estima-se que cerca de 45 mil homossexuais foram
presos devido ao artigo 175 do Código Penal Alemão, que criminalizava diretamente o
contato físico-sexual entre homossexuais masculinos ou entre homens e diferentes espécies,
caracterizando a zoofilia. Deste número, a avassaladora maioria destes seguiu para outras
regiões fora do território alemão, se transformaram em desertores da pátria – também tratados
52

como personas non gratas – e tiveram de deixar amigos, familiares e estruturas mínimas de
sobrevivência. Uma outra minoria - incluindo o biografado Rudolf Brazda -, acabou sendo
presa reincidentemente e assinalando sua tortura ao ser transferida para os campos de
concentração, como no caso de Brazda em Buchenwald.
É possível analisar que Rudolf sempre narra sua trajetória por uma perspectiva
coadjuvante de constante testemunho de outrem, muito embora também tenha sofrido as
mesmas punições que os demais prisioneiros na mesma situação. Uma das medidas punitivas
dos nazistas, como a teoria da reversão da polaridade sexual, proposta por Vaernet, levou
cerca de 55% dos prisioneiros homossexuais de Buchenwald à morte, devido ao
posicionamento homofóbico dos nazistas, que enxergavam os homossexuais perante a
perspectiva da heteronormatividade e da interpretação médica enquanto desvio mental.
Além disso, Rudolf foi testemunha na série de dizimações dos militares das tropas
contrárias na guerra, que ao serem capturadas, eram trazidas aos campos de concentração e
fuzilados um a um. O tratamento também era administrado aos prisioneiros indisciplinados,
que acabam sendo mortos no próprio campo de concentração ao qual cumpriam suas penas,
ao invés de serem encaminhados aos campos de extermínio, como no caso dos judeus.
O presente trabalho possuía como enfoque discutir sobre as experiências dos
homossexuais nos campos de concentração e buscar responder ao seguinte questionamento:
em que medida as experiências totalitárias enfrentadas na Alemanha durante o nazismo, com
a presença dos campos de concentração, influenciou na conquista de direitos e na discussão
dos direitos humanos enquanto natos a todo e qualquer ser humano?
Em relação a isso, é possível afirmar que as experiências totalitárias e/ou nazistas
enfrentadas na Alemanha, com a presença dos campos de concentração e a forte
representatividade de conceitos eugenistas, foi determinante para que a criminalização da
homossexualidade fosse instaurada no território alemão. A presença destes nos campos de
concentração denunciaram a existência do preconceito, intolerância e da crueldade humanas,
onde ocorre uma perfeita cisão entre corpo e mente, um abismo entre a voz do sofrimento e o
silêncio tão impetrado por meio dos generais e soldados do regime nazista.
É certo que os comandantes da Schutzstaffel assim como os generais da SS, possuíam
ambições e determinações políticas em jogo quando admitiram os planos de Hitler para a
conduta das forças armadas do país. Aos demais subordinados de ambas as instituições de
segurança, cabe-nos a interpretação de que ocorria um fenômeno de paixão política, onde
nada mais importava do que atender às necessidades e pedidos do chefe carismático – carisma
este conquistado por meio dos discursos de honra e gloria à população alemã, em virtude dos
53

eventos da Primeira Guerra Mundial, que acabou dizimando estruturalmente o país -, este
então passa a ser responsável por manter a ordem ou a organização política da nação.
Os campos de concentração, também podem ser apresentados como um estado de
subvida, onde permeiam eventos e experiências de destruição da humanidade. Em primeiro
grau, ao serem presos nos campos de concentração, determina-se a morte jurídica, sendo esta
a total ausência de direitos e de garantia da preservação da vida dos indivíduos, instaurando-se
um pânico moral e na mesma medida, a total presença de deveres. Em segunda instância, as
circunstâncias da destruição moral, no qual a morte, a tortura e os eventos de humilhação
acabam por passar desapercebidos pelos prisioneiros, que, mediante apresentação de tais
eventos rotineiramente, acabam por desenvolver uma visão apática do ambiente em que se
encontram. E por fim, a individualidade tem seu fim decretado. Os indivíduos, de diferentes
origens e motivos para condenação, acabam por permanecer durante meses no mesmo
ambiente e, dessa forma, criam vínculos que os unem e torna-se determinante para
permanecerem vivos em um ambiente no qual a propensão é a morte.
Com o fim da Segunda Guerra e a invasão estadunidense nos campos de concentração
e no território alemão, tais prisioneiros foram libertados e seguiram a trajetória de suas vidas.
Entretanto, o estigma de ter sofrido tais experiências dura por todo o fim da vida de tais
prisioneiros. A lembrança sobre os eventos é uma constante. Muitos deles encontraram
refúgio e esperanças durante o período de cumprimento de pena devido ao pensamento de
que, algum dia, seriam testemunhas deste tortuoso evento, que acabou por dizimar 34% da
população judia mundial, assinalando como um dos maiores genocídios da história humana.
É certo que tais eventos e experiências aterrorizantes vivenciadas durante a gestão de
Hitler, assim como as vivências dos prisioneiros dos campos de concentração foram não só
importantes, como também essenciais para a discussão e a implementação de direitos
igualitários natos ao homem. O campo dos direitos humanos surgiu como uma resposta a todo
antissemitismo, homofobia, racismo e a intolerância disseminados pelos discursos
ultranacionalistas de Adolf Hitler. Atender à população marginalizada e propensa à violência
é uma das marcas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que ganhou outras
interpretações jurídicas, como no Brasil, em que as políticas públicas da ONU são tratadas
como a base do direito novo, onde as ciências jurídicas nacionais e internacionais distanciam-
se das esferas externas ao homem e passam a analisar perspectivas natas a toda e qualquer
pessoa, garantindo direitos fundamentais de liberdade, segurança e proteção individual.
54

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Paulo. In: XI Simpósio Nacional da Associação Brasileira de História das Religiões, UFG,
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