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artigo

“DIZENDO OLÁ NOVAMENTE”: A PRESENÇA DE


MICHAEL WHITE ENTRE NÓS, TERAPEUTAS FAMILIARES*

“Saying hullo again”: The presence of Michael White among us


family therapists

Marilene Grandesso
RESUMO: Escrevi este artigo sob o impacto da ABSTRACT: I wrote this article under the impact Doutora em Psicologia
perda inesperada do grande terapeuta e criador of the unexpected lost of this great therapist and Clínica; Professora e
das práticas de terapia narrativa – Michael White creator of the narrative therapy practice – Michael supervisora do curso de
– em abril de 2008. Para lidar com o luto pela White – in April of 2008. In order to deal with the Terapia Familiar e de Casal do
perda de uma pessoa querida e fonte de inspi- lost of a such sweetheart person and the inspi- NUFAC-PUC-SP; fundadora e
ração de meu trabalho, propus-me a revisitar a ration to my work I proposed myself to revisit coordenadora do INTERFACI
sua produção numa espécie de ritual de reasso- Michael’s White work in a sort of ritual, re-mem- – Polo formador em Terapia
ciação de sua presença. (re-memebering con- bering his presence. Inspired on his literature, Comunitária; Coordenadora
versations). Inspirada na leitura de suas obras, specially the one publicized last year (WHITE, do I Certificado Internacional
especialmente a publicada no último ano (WHITE, 2007), I made a choice to follow Michael White’s em práticas colaborativas
2007), optei por seguir o fluxo de suas ideias a thread of thoughts starting from his interlocutors junto com o Houston
partir dos interlocutores, com os quais ele definiu with whom he defined his concepts and devel- Galveston Institute;
seus conceitos e desenvolveu sua prática. Assim, oped his practice. Therefore, this article goes Coordenadora de formação
em Terapia Narrativa pelo
o artigo passa especialmente pelo diálogo de Mi- specially through Michael White’s dialogue with
INTERFACI.
chael White com as obras de Bateson, Foucault, the work of Bateson, Foucault, Derrida, Bruner,
Derrida, Bruner, Vygotsky, Bachelard e Barbara Vygotsky, Bachelard and Barbara Myerhoff. It’s a E-mail: mgrandesso@uol.com.br
Myerhoff. Trata-se de um recorte parcial para um small picture of a therapist who had neither dis-
terapeuta que não teve fronteiras disciplinares ciplinarians nor temporal frontiers when choos-
nem temporais para escolher seus parceiros de ing his partners in a dialogue. However, I hope to
diálogo. Contudo, espero contribuir para manter contribute to keep alive ideas, principles, beliefs
vivo o fluxo das ideias, princípios, crenças e va- and values that guide the job of a therapist who
lores que orientaram o trabalho desse terapeuta will be alive to those who do believe in the pos-
que continuará sempre vivo para aqueles que sibility of people being able to change their own
acreditam na autoria das pessoas para transfor- lives.
mar suas próprias vidas.
Keywords: Narrative therapy; Post-structuralism;
Palavras-chave: Terapia narrativa; pós-estru- re-authory; conversations; agency.
turalismo; reautoria; conversações; agência.

No início de abril de 2008, todo o universo da terapia familiar e comunitária


foi surpreendido pela arrebatadora notícia da perda de Michael White, de forma
abrupta e inesperada. A perplexidade e imenso pesar causados por essa notícia
deveu-se não apenas à quebra da continuidade da existência física de uma refe-
rência inigualável para a terapia familiar e trabalho comunitário, mas pela incon-
solável e prematura perda de uma pessoa em franca atividade e cheia de projetos,
que se preparava inclusive para estar aqui no Brasil em agosto de 2008. Michael
White foi e será sempre um dos terapeutas mais criativos, como jamais conhece-
remos, e de uma imensa sensibilidade para a dor humana. Uma pessoa que fazia
* Este capítulo é uma reedição
de sua prática uma luta constante contra todo tipo de discriminação, domina- modificada do artigo do mesmo
ção, injustiça, desigualdades sociais e práticas de subjugação das identidades e nome publicado na Revista
Brasileira de Terapia Familiar - V.
vidas que pudessem ferir a dignidade e os direitos de qualquer ser humano. Daí 1, n.1, janeiro/junho de 2008.
o terapeuta narrativo, de acordo com em estágios previsíveis em torno da
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a abordagem desenvolvida por Mi- metáfora do dizer adeus – só faria exa-
chael White, poder ser considerado cerbar tais sentimentos, complicando
uma espécie de ativista sociopolítico ainda mais a situação. Assim, Micha-
(Monk & Gehart, 2003), que expõe as el White, diferentemente, optou por
práticas culturais que produzem nar- reincorporar o relacionamento perdi-
rativas dominantes e opressivas para do dizendo olá novamente, em vez de
as identidades e vidas. dizer adeus. Tal orientação levou-o
O título deste artigo foi escolhido a formular perguntas abrindo pos-
ainda sob o impacto da emoção e do sibilidades para as pessoas enlutadas
imenso pesar por esta perda que, difí- recuperarem seus relacionamentos
cil de acreditar, em vários momentos com a pessoa perdida. Sua intenção
julguei não ser verdade. O próprio tra- era criar um contexto de conversação
balho de Michael White em situações em que a pessoa enlutada pudesse se
de perda e luto ofereceu-me o consolo reposicionar em relação à morte da
e a inspiração para dar nome a esse ar- pessoa querida e, em decorrência, ob-
tigo. Dentre as inúmeras contribuições ter o alívio tão esperado. Esse trabalho
ao campo da terapia, um dos trabalhos com o luto, envolvente e emocionante,
mais bonitos e comoventes de Michael conduziu ao que Michael White deno-
White é conhecido por “Dizendo olá minou conversações de re-associação
novamente” (White, 1988), justamente (re-membering)*, inspirado no traba-
desenvolvido para pessoas que não se lho da antropóloga cultural Barbara
conformavam em seguir sua vida de- Myerhoff. As ideias norteadoras dessas
pois da perda de alguém muito espe- conversações estruturavam-se em tor-
cial. Trata-se de uma forma particular no da compreensão da vida como se
para se lidar com o luto, desenvolvida fosse um clube, tendo em seu quadro
com pessoas que passavam por inten- de membros aqueles que fazem parte
so e implacável sofrimento pela perda das histórias significativas de vida da
de um ente querido. Tradicionalmente pessoa em questão, sejam elas vivas ou
tratadas como sofrendo de luto tardio mortas, presenças físicas ou virtuais.
ou luto patológico, essas pessoas eram Enfim, os membros do clube da vida de
trabalhadas de acordo com ideias uma pessoa são aqueles cujas vozes são
normativas para poder dizer adeus, influentes para a forma como a pessoa
* Optei por traduzir a expressão aceitar e deixar ir a pessoa que mor- constrói sua identidade. Assim, pelas
re-membering, cunhada por reu. Michael White, sensibilizado pelo conversações de reassociação, Michael
Barbara Myerhoff, por reassociar
em vez de remembrar, pois me intenso sofrimento dessas pessoas, White contribuiu para trazer para per-
pareceu fazer mais sentido para compreendia que elas haviam perdi- to a pessoa que morreu através dos re-
nossa cultura. A expressão,
do muito, não somente o ente queri- latos das histórias vividas, construindo
organizada pela metáfora da
vida como se fosse um clube, do, mas uma parte substancial de seu a importância dessa presença e de suas
transporta a ideia de tornar próprio sentido de identidade. Ouvir contribuições para a vida da pessoa e
alguém membro novamente no
‘clube da vida’ da pessoa, daí as histórias delas era ouvir histórias de seu sentido de identidade.
ser muitas vezes traduzida por dor nas quais os relatos espontâneos O propósito deste artigo, inspirado
remembrar. Considero que re-
associar, ou mesmo reintegrar,
organizavam, em narrativas, a falta de no trabalho de White (1988), é poder
como tem sido referido em sentido da vida sem a pessoa querida e dizer “olá novamente” para esse gran-
traduções para o espanhol, sentimentos de desespero e vazio. Para de, querido e inesquecível terapeu-
são mais próximas de nossa
cultura lingüística e contemplam ele, qualquer tentativa de lidar com o ta, revisitando suas ideias e sua obra.
o sentido que Michael White luto – de acordo com algum modelo Trazer para perto, reassociar, ressaltar
atribui à expressão re-
membering. normativo, organizado, por exemplo, a importância de suas ideias na for-

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mação de nossa identidade pessoal e Para efeito desse trabalho, optei por
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profissional como terapeutas familia- seguir a obra de Michael White com Marilene Grandesso
res e trabalhadores comunitários pode aqueles que foram os seus interlocu-
ser um caminho de conforto e consolo tores, tanto para questões teórico-con-
num momento de tristeza e dor. Para ceituais como para o desenvolvimento
fazer frente a este objetivo, optei por das práticas narrativas. Cumpre ressal-
rever a obra de Michael White à qual tar que este trabalho tem um recorte
tenho acesso, recolhendo suas princi- muito particular e assumidamente
pais ideias e influências e organizando restrito diante da grandiosidade de
num arcabouço compreensível a práti- interlocuções de Michael White com
ca da terapia narrativa, conforme pos- tantos autores, pensadores, terapeutas,
so compreendê-la. Parte desse trabalho pessoas e comunidades por onde tran-
já foi feito por Michael White em vida, sitou, que o constituíram como o ser
quando publicou em 2007 seu último humano sensível e o terapeuta compe-
livro, Maps of narrative practice (Whi- tente, criativo e arrojado que foi. Optei
te, 2007). Nesse livro, Michael revisita por destacar alguns autores especiais
seu próprio trabalho ao longo de mais de acordo com meu entendimento, e
de 20 anos – retoma conceitos, reali- reconheço que outros poderiam ter
nha práticas – e nos presenteia com sido incluídos. Contudo, entendo que
uma obra que, além do inestimável va- os que aqui incluí deveriam necessa-
lor, introduz aos bastidores da gênese riamente fazer parte de qualquer texto
de suas ideias aqueles que se interes- que visasse abordar o autor e terapeuta
sam ou se dedicam à prática narrativa. Michael White e sua prática, especial-
mente por estarem direta ou indireta-
mente associados a alguma das práti-
FUNDAMENTOS DA PRÁTICA cas narrativas.
NARRATIVA: TERAPIA E TRABALHO
COMUNITÁRIO
Principais influências
A relação entre teoria, prática e pes-
soa do terapeuta é tão íntima e tão in- Voltando à década de 1970, encon-
terdependente que fica difícil, e mes- tramos um jovem terapeuta envolvido
mo sem sentido, pensar em separá-las em fazer uma leitura própria das ideias
ou colocá-las numa ordem de fatores. dos criadores da terapia familiar, espe-
Como é familiar para nós terapeutas, cialmente as de Bateson nos trabalhos
acostumados com o pensamento sistê- com as famílias. Já nesse tempo, Mi-
mico, sequência é uma mera questão chael White demonstrava um interes-
de pontuação, dependendo do olhar se especial pela filosofia da ciência no
do observador. Assim, para falar em que se referia ao processamento do fe-
fundamentos da prática narrativa de- nômeno da revolução científica dentro
senvolvida por Michael White, vali-me da comunidade científica. Sua atenção
das referências presentes, enquanto especial voltava-se para as transfor-
ideias, ideologias e conceitos, confor- mações radicais nos sistemas sociais,
me apresentadas por ele. Além disso, conforme um paradigma era abando-
li também as entrelinhas das histórias nado e substituído por outro (White,
que permeiam sua obra em busca da 1995). Sempre interessado em expan-
pessoa de Michael White, que incorpo- dir sua compreensão para além dos li-
rava as ideias e desenvolvia sua prática. mites de sua profissão, Michael White

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transitou por distintos territórios. Das um acontecimento encaixa-se nos ma-
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lentes para compreender famílias, pes- pas de mundo – ou seja, nas pautas já
soas e relações presentes nos diferen- conhecidas pela pessoa no contexto da
tes modelos de terapia, Michael White experiência vivida – determina a sua
envolveu-se na teoria feminista, teoria compreensão. Da mesma forma, um
literária, antropologia cultural e teoria acontecimento que não se encaixa nos
crítica, apropriando-se e construindo mapas já construídos pela pessoa aca-
metáforas que lhe permitiram novas ba não tendo existência para ela. White
maneiras de pensar sobre a prática da também atribui à presença de Bateson,
terapia. Tais incursões por estes outros nas suas ideias e prática, a importância
territórios conceituais e disciplinares dada à dimensão de tempo. Bateson
serviram para ampliar seu olhar, refle- (especialmente em 1972 e 1979) con-
tir mais criticamente sobre a discipli- siderava que a informação decorre da
na da terapia familiar e questionar as percepção de uma diferença, e que a
metanarrativas, o universal e dado por diferença desencadeia novas respostas
certo, em detrimento do conhecimen- nos sistemas vivos. Contudo, para que
to local (White, 1995). uma diferença seja percebida e para a
compreensão da mudança, faz-se ne-
cessário situar os eventos no tempo.
As ideias de Bateson Michael White construiu uma seme-
e a prática narrativa lhança entre a noção de mapa e a de
narrativa, ressaltando a importância
A importância central colocada so- da dimensão temporal na organização
bre o relato – ou seja, sobre a narrativa dos relatos em sequências de eventos
– pode ser atribuída a afinidade de Mi- no tempo.
chael White com as ideias de Bateson, No que se refere à terapia, ao adotar
que lhe ofereceram uma espécie de este método interpretativo de Bateson,
epistemologia e de hermenêutica para Michael White desenvolveu a com-
compreender o mundo. Michael Whi- preensão de que os problemas vivi-
te aprendeu com ele que, dado que não dos pelas pessoas decorrem da forma
se pode conhecer a realidade objetiva, como atribuem significado aos fatos
todo conhecimento pode ser compre- da vida, e não de uma suposta disfun-
endido como um ato de interpretação ção familiar ou estrutura problemá-
(White & Epston, 1990). tica. Assim, sua atenção concentrou-
O questionamento da causalidade -se mais na maneira como as pessoas
linear e a tão familiar presença nos organizam sua vida em torno dos sig-
contextos da terapia sistêmica da má- nificados que atribuem à experiência.
xima de Alfred Korzybski, difundida Compreendia que tais significados de-
por Bateson, “o mapa não é o terri- terminam a sobrevivência e a “carrei-
tório”, fazem-se presentes nos funda- ra” dos problemas nas suas vidas, ou
mentos da prática narrativa no que seja, sua forma de agir, pensar e sentir
se refere à maneira de compreender sobre suas identidades e relações.
a experiência. Assim, para Michael, Tais conceitos estão vividamente
os significados que são atribuídos aos presentes nas conversações externa-
acontecimentos da vida, construídos lizadoras, quando Michael explora a
continuamente ao longo da existência, influência do problema na vida das
decorrem dos mapas de mundo que a pessoas, na visão de si mesmas, nos
própria pessoa elabora. A forma como seus relacionamentos e perspectivas

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de futuro. O mapa das conversações de pensamento, Michael White passou
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externalizadoras, proposto por Mi- a compreender os dilemas humanos a Marilene Grandesso
chael (White, 2007), apresenta um partir das práticas de subjugação das
desdobramento dessa presença de Ba- identidades e das vidas pelo processo
teson na forma de busca, através de de internalização dos discursos sociais
perguntas sobre os efeitos das ativi- dominantes e estigmatizadores, que
dades do problema na vida da pessoa constroem narrativas sobre “verdades”
e sobre a sua avaliação desses efeitos. organizadas por conhecimentos glo-
Michael White propôs as conversações bais e unitários e julgamento norma-
externalizadoras como uma forma de tizador. Práticas de dividir e classificar
ajudar as pessoas a separarem-se das as pessoas por atributos desqualifica-
descrições de suas vidas e relações “sa- dores; práticas de objetivação ou coi-
turadas pelo problema”. A crença nor- sificação dos corpos como portadores
teadora que sustenta essa prática é que de desordens, defeitos e perturbações,
a pessoa é a pessoa e o problema é o e práticas de julgamento normatiza-
problema (White, 1984; 1986a; 1986b; dor decorrentes das disciplinas profis-
1986c; 1987; White & Epston, 1990). sionais são apresentadas por Foucault
Da mesma forma, nas conversações como mecanismos de controle social e
de reautoria que contribuem para a docilização dos corpos.
mudança terapêutica através da cons- Tais ideias se fazem presentes na
trução de novas narrativas a partir de prática narrativa de Michael White
linhas de histórias alternativas subor- como uma espécie de paradigma para
dinadas, Michael convida o terapeuta compreender os problemas que as pes-
a desenvolver seu questionamento nos soas vivem e as restritas possibilidades
cenários da ação (eventos, circunstân- existenciais que constroem. Na sua
cias, sequência, tempo e enredo) e no sensibilidade para questões de desi-
cenário da identidade (compreensões gualdade social, Michael White enten-
intencionais, compreensões sobre o de que conhecimento e poder são tão
que é dado como valor, realizações, inseparáveis, a ponto de um âmbito de
aprendizagens e compromissos), de poder ser também um âmbito de co-
modo a favorecer a percepção de dife- nhecimento, e um de conhecimento
renças que façam diferença no resgate constituir-se como um âmbito de po-
feito pela pessoa dos “domínios” que o der. Daí decorreu em Michael White
problema exerce sobre sua identidade definir a prática da terapia como uma
e vida. atividade política, convidando o tera-
peuta a questionar suas compreensões
e suas técnicas, uma vez que elas po-
A presença de Michel Foucault dem inadvertidamente submeter às
pessoas a uma ideologia dominante
Uma das principais influências so- (White & Epston, 1990). Pode-se com-
bre os fundamentos e a prática narra- preender que, no seu trabalho, Micha-
tiva de Michael White tem origem nas el White considera os discursos como
ideias de Michel Foucault, especial- aquários aparentemente transparen-
mente sobre o conhecimento e as “prá- tes que encerram as pessoas sem que
ticas de poder” no que se refere à cons- possam se dar conta que estão nesses
tituição do sujeito moderno através aquários e de como são eles. As nar-
do controle social (White, 1991). Ins- rativas sobre as pessoas e suas vidas
pirado nesse historiador dos sistemas tendem a tornarem-se absolutas, per-

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dendo a dimensão de sua construção mento ético e politicamente articulado
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social nos contextos das relações. contra as injustiças sociais, o terapeu-
No livro Narrative means to thera- ta narrativo desenvolve um contexto
peutic ends (White & Epston, 1990), o conversacional para considerar aspec-
primeiro a descrever o que veio a ser tos negligenciados da experiência que
conhecido como terapia narrativa, é favoreçam a ampliação do olhar e a
possível perceber detalhadamente a compreensão sobre as vidas e relações
presença de Foucault na postura so- das pessoas que procuram por terapia
ciopolítica de Michael White como te- (White, 1997).
rapeuta. A prática das conversações ex-
ternalizadoras é compreendida, dentro
desse contexto ideológico, como uma As ideias de Jacques Derrida
forma de ajudar as pessoas a identi-
ficarem os conhecimentos unitários Uma das particularidades das prá-
e os discursos de “verdade” a que se ticas narrativas diz respeito ao ouvir
submeteram ao construir estreitas vi- do terapeuta, ou seja, o que é que o
sões de suas identidades e ralas histó- terapeuta escuta quando ouve o que
rias da experiência vivida. Em relação as pessoas que o procuram dizem o
às práticas culturais que objetivam as que dizem. Nesse sentido, Drewery &
identidades das pessoas, as conversa- Winslade (1997) consideram que, di-
ções externalizadoras podem ser con- ferentemente da postura do terapeuta
sideradas uma contra-prática: em vez de orientação Rogeriana – cuja escuta
de objetivarem as pessoas definindo- ativa tem por intenção refletir a his-
-as e classificando-as como problemá- tória do cliente como uma espécie de
ticas, objetivam os problemas (White, espelho sem distorção –, o terapeuta
2007). Conforme já o apresentei, os narrativo procura por significados não
problemas são os problemas, não as necessariamente explicitamente mani-
pessoas. festos, mas presentes nos espaços ou
Assim, entendida como uma práti- lacunas e contradições nas histórias
ca informada pelo pensamento pós- narradas. Trata-se de uma escuta para
-estruturalista, a terapia narrativa além do que é dito, ou seja, para o não
questiona os discursos dominantes de dito, ausente mas implícito naquilo
nossa cultura – impregnados de ideias que é narrado. Tal escuta do terapeuta
preconcebidas e geralmente aceitas narrativo está a serviço da compreen-
sobre identidades, relacionamentos e são dos significados da vida das pesso-
vidas – e as grandes narrativas que tra- as que atende e da desconstrução das
çam um perfil de “natureza humana”. histórias e conceitos de conformidade
Sua prática testemunha uma atenção pelos quais elas organizam as estreitas
especial à política de gênero, denun- e dominantes narrativas sobre suas vi-
ciando e desafiando a dominação mas- das e relacionamentos.
culina na sociedade contemporânea. Se, por um lado, é possível fazer um
Michael conecta esses seus princípios paralelo entre essa prática de escuta
e valores à sua própria história de ter com as ideias aqui já consideradas de
crescido e vivido numa cultura mas- Foucault, podemos também compre-
culina e testemunhado abusos de po- ender aí a presença dos conceitos do
der de homens sobre pessoas que lhe filósofo francês Jacques Derrida, no
eram muito queridas (White, 1995). que se refere à desconstrução dos tex-
Ao proceder assim com um posiciona- tos. De acordo com o que o próprio

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Michael White considera nessa aproxi- riências de esperança; se uma pessoa
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mação, Derrida desenvolveu métodos relata experiências de dor, isso indica Marilene Grandesso
desconstrutivos que visavam subver- que tem presente na sua história expe-
ter textos e opor-se aos privilégios de riências de coisas que lhe são preciosas
conhecimentos específicos. Segundo e que foram violadas de alguma forma.
sua compreensão, para que uma pala- Nas conversações sobre o ausente mas
vra possa ter sentido, devemos poder implícito, significados marginalizados
distinguir o significado que veicula da- nas histórias narradas, porém impli-
quilo que ela não é. É como se o signi- cados nas linhas das narrativas subor-
ficado derivasse de uma oposição entre dinadas, podem se tornar visíveis. Ao
o que está sendo compreendido – ou ouvirmos um relato sobre um proble-
seja, aquilo que a palavra quer dizer – ma, por exemplo, podemos, enquanto
daquilo que ela não é. Assim, todo sig- terapeutas, nos perguntar por possí-
nificado positivo traz juntamente com veis significados subjugados pela nar-
seu entendimento, a compreensão de rativa dominante manifesta. Também
seus opositores, daquilo que ele não é, podemos nos perguntar como esses
de tal modo que, para construir signi- significados ausentes, mas implícitos,
ficados, devemos ser capazes de perce- se conectam com as histórias preferi-
ber uma diferença. Para isso, Derrida das, e como podemos favorecer para
busca revelar as contradições ocultas que sejam narradas (Carey, 2009).
nos textos, tornando visíveis os signi- Essas autoras ressaltam nessa postura
ficados reprimidos, ausentes, mas im- o que Michael White referiu-se como
plícitos. Além disso, Derrida ressalta os sendo uma “escuta dupla”, importante
conhecimentos secundários, derivados postura do terapeuta para abrir uma
e sem valor, que vêm junto com o que vasta gama de possibilidades a serem
se apresenta como principal. Assim, é exploradas.
possível compreender, de acordo com Incorporadas ao trabalho de Mi-
essas ideias, que todo dito remete a chael White, essas ideias levaram-no
um não dito (Grandesso, 2001 1ª. ed.; a convidar os terapeutas narrativos a
2007 2ª. ed.; 2011 3ª. ed.). Ou seja, o fazerem perguntas voltadas para o não
significado de uma palavra ou frase é dito, implícito nos relatos das pessoas.
contingente às palavras e frases que a Nas práticas de conversação em torno
circundam. Dito de outra forma: para do ausente mas implícito, inspirando-
construir o sentido de alguma coisa, -se nas ideias de Derrida, Michael
precisamos estabelecer diferença entre White compreende que os significados
essa coisa e outras coisas de seu con- que atribuímos aos acontecimentos da
texto. vida deriva de como “os lemos” (usan-
Michael White, ao transportar tais do a analogia dos acontecimentos da
ideias para a prática da terapia, con- vida como se fossem textos) e também
sidera que “[...]para expressar uma de como fazemos as distinções entre o
experiência da vida, as pessoas devem que nos é apresentado como signifi-
distinguir essa experiência de outras cados privilegiados e o que é deixado
experiências contrastantes que a cir- de fora, entendido como significados
cundam” (White, 2007, p. 210). Assim, subjugados (Carey, 2009). A prática
se uma pessoa expressa desespero, isso do ausente, mas implícito convida-nos
significa que deve ter construído esse a perguntar pelos sonhos pessoais,
significado a partir de um outro signi- valores, expectativas, aprendizados,
ficado contrastante, no caso de expe- compreensões intencionais, compro-

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missos, que se inserem no cenário da também o que não está sendo dito,
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identidade, especialmente nas conver- ou o que está sendo dito sem ser dito,
sações de reautoria. Também explora perguntando-nos enquanto terapeu-
tal conceito no uso das testemunhas tas: “Esta história está sendo contada
externas. Por exemplo, quando Mi- em distinção a quê?” (Drewery & Wins-
chael White convida pessoas para par- lade, 1997, p. 44). Quando ouvimos os
ticiparem dos encontros terapêuticos relatos das histórias vividas, podemos
como testemunhas externas, o relato sempre perguntar pelas suposições bá-
dessas testemunhas transporta sig- sicas não nomeadas que dão sentido
nificados que podem ser expandidos àquela história. Contudo, cumpre des-
na direção da construção de histórias tacar que essa busca do terapeuta não
mais ricas, ao perguntarmos pelas se trata de um ato de interpretação do
experiências contrastantes implícitas que está oculto no relato, mas de uma
naquilo que as testemunhas destacam paciente e arqueológica incursão no
como os pontos que mais lhes foram mundo da pessoa através das pergun-
significativos no que ouviram. A par- tas do terapeuta, especialmente sobre
tir do relato sobre a história ouvida, é o panorama da identidade.
possível perguntar para a testemunha
externa qual o seu entendimento so-
bre o que está sendo dado como um A presença de Jerome Bruner
valor para a pessoa que narrou a his-
tória, ou quais as crenças que parecem As ideias e os conceitos de Jerome
ser importantes para ela, que coisas Bruner são transversais à prática nar-
podem ser significativas na vida dessa rativa de Michael White. Ao adotar a
pessoa. Enfim, estendendo o relato do metáfora narrativa para organizar sua
dito para o que pode estar sendo dito abordagem, Michael White passou a
sem ter sido dito, o terapeuta narrativo transitar pelo território da constru-
contribui para abrir histórias empaco- ção e atribuição de sentido aos textos
tadas, enriquecer histórias estreitas e literários como um recurso para com-
ralas, buscando significados não só nas preender os relatos de vida e de identi-
lacunas e contradições, bem como no dade pelos quais as pessoas constroem
contraste do dito com o seu entorno e dão significado à sua experiência.
e não dito, de modo que as histórias Assim como Bruner afirma que um
possam ganhar complexidade, tor- texto de mérito literário apresenta
nando-se mais ricas e favorecer outras uma indeterminação, estando sempre
possibilidades de organização da vida aberto a um espectro de atualizações,
e das perspectivas de futuro. uma história sobre a experiência vi-
Portanto, essas ideias de Derrida são vida também se apresenta sempre
úteis para um terapeuta narrativo na aberta a mudanças e reformulações.
escuta que faz daquilo que é dito pelas Toda história narrada apresenta la-
pessoas que atende, orientando-o para cunas e contradições, que convidam
formular perguntas inusuais buscando as pessoas envolvidas em conversação
pelo ausente, mas implícito. Algumas a procurar preenchê-las e a dar-lhes
histórias que ouvimos só podem fazer um sentido. Na terapia narrativa que
um sentido quando perguntamos pe- Michael White considera de mérito
las suposições básicas que constroem literário, cada história está sujeita a
seu entendimento. Nós podemos ouvir novas versões, conforme aspectos não-
não apenas o que está sendo dito, mas -historiados se apresentem à história

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dominante, justapondo-se, contra- A presença de Bruner na prática
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pondo-se, ou simplesmente ganhando narrativa de Michael White pode tam- Marilene Grandesso
evidência, enquanto outros aspectos bém ser compreendida na forma como
até então dominantes se esvaecem ou Michael se refere à construção das his-
desaparecem. Assim sendo, na terapia tórias alternativas que vêm substituir
narrativa, a analogia do texto propõe as histórias dominantes saturadas de
que, ao reescrever seus relatos, a cada problemas. De acordo com o enfoque
nova versão, a pessoa reescreve sua narrativo, o processo de busca de novos
vida, numa espécie de reautoria de sua significados, numa ação colaborativa
autobiografia. De acordo com Bruner entre o terapeuta e a família, faz surgir
(1998, orig. 1986), o modo narrativo novas possibilidades de relatos que co-
não produz certezas, mas perspecti- locam em xeque a história dominante.
vas em mudança, prevalecendo na sua Os relatos alternativos, embora surjam
construção o modo subjuntivo e não a partir da exploração da história domi-
o indicativo. Assim, uma boa história, nante, derivam-se do descobrimento de
ou seja, uma história com um valor li- contradições, exceções, “acontecimen-
terário é aquela que apresenta no seu tos únicos”, que contradizem a história
texto certos mecanismos que o tornam dominante ou não se encaixam no seu
indeterminado, convidando o leitor à enredo, como se fossem anomalias que
representação de significados através ficam sem sentido no relato dominante.
do texto. Essa ausência de sentido convida a uma
Michael White acredita que as pes- nova reescritura, abrindo uma perspec-
soas geralmente atribuem significado tiva diferente para descrever as identi-
às experiências vividas, convertendo- dades, relações e formas de vida, diante
-as em relatos, e que esses relatos, his- da qual a história dominante torna-se
tórias sobre o vivido, dão forma às suas obsoleta. White recorre novamente às
vidas e relações. Além disso, da mesma ideias de Bruner de que o processo de
forma que os textos literários descritos contar nossas vivências estrutura, or-
por Bruner, as narrativas sobre a vida ganiza, dá consistência e propósito aos
se apresentam sempre em aberto, tran- acontecimentos da vida, de tal forma
sitando entre o conhecido e o possível que [...] “nos convertemos nas auto-
de conhecer, conforme novos relatos biografias através das quais ‘contamos’
sejam desenvolvidos a partir de novos nossas vidas” (Bruner apud White &
prismas ou perspectivas para um mes- Epston, 1990, p. 127). Assim, condu-
mo enredo. Michael White considera zidas pelas perguntas do terapeuta, no
que a maioria de nossas conversações narrar e re-narrar da experiência, as
– sejam elas com outras pessoas pre- pessoas re-visitam suas histórias, luga-
sentes, virtuais ou conosco mesmos res do vivido no tempo e no espaço, e
– ajustam-se às estruturas básicas de reescrevem suas vidas e relações, carac-
um relato, apresentando um desenvol- terizando a prática narrativa como [...]
vimento, uma trama e um desenlace. “um instrumento de liberdade, e que
Para ele vivemos nossas vidas através tem proporcionado muita esperança
das histórias, as que nós mesmos con- às pessoas que, de outro modo, teriam
tamos, as que ouvimos contar, as que se sentido perdidas na obscuridade da
imaginamos, as que sonhamos ou gos- noite” (White & Epston, 1990, p. 217).
taríamos de contar. As histórias cons- Contudo, a maior influência que
troem o relato de nossa vida e estão considero de Bruner na prática da te-
sempre inconclusas. rapia narrativa vem da sua ideia de que

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as histórias são compostas por dois ce- White (2007) apresenta vários exem-
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nários – o da ação e o da consciência plos de conversações de reautoria, em
(Bruner, 1986). O cenário da ação é que Michael se valeu da construção de
composto pelos fatos – acontecimen- um mapa organizado em torno dos
tos da vida, organizados em sequên- conceitos de Bruner sobre o panorama
cias particulares que se desenvolvem da identidade e o panorama da ação:
no tempo (passado, presente e futuro)
de acordo com uma trama ou enredo
específico. Sem alguma dessas dimen- Mapa de conversações de reautoria
sões, não podemos ter um relato. O Fonte: White (2007)
cenário da consciência, por sua vez,
refere-se às interpretações dos perso- Cenário da identidade (consciência)
nagens que fazem parte da narração Compreensões intencionais
e às do leitor ao penetrar a consciên- Compreensões do que é dado como
cia desses personagens ao ler o texto. valor
Compreende, portanto, as significa- Compreensões internas
ções que tanto os personagens como Realizações
o leitor vão construindo ao refletirem Aprendizagens
sobre os acontecimentos e tramas, ______________________________
conforme são apresentados pelo cená-
rio da ação. O cenário da consciência História remota História distante
é constituído por percepções, noções, História recente Presente Futuro
especulações e conclusões referentes próximo
a desejos e preferências dos persona- Cenário da Ação
gens; características e qualidades pes- Eventos
soais; estados intencionais, tais como Sequência
motivos e finalidades e das crenças Tempo
e valores dos personagens. Os qua- Tema / Enredo
tro itens que constituem o cenário
da ação, quando se apresentam num Este mapa, familiar aos terapeu-
texto de forma suficientemente clara, tas narrativos, orienta a prática nos
passam a configurar compromissos do momentos de re-construção das nar-
personagem, determinando um estilo rativas em torno de acontecimentos
de vida com trajetórias. singulares que podem oferecer novos
Essas ideias e conceitos de Bruner argumentos para os temas das his-
estão integralmente presentes nas tórias sobre identidades e vidas. As
conversações da prática narrativa, es- perguntas do terapeuta sobre os itens
pecialmente nas de reautoria, embora do cenário da ação, nas suas distin-
não apenas nessas. O Mapa de Conver- tas dimensões de tempo, promovem
sações de Reautoria, desenvolvido por o surgimento de paisagens alterna-
Michael White, apresenta exatamente tivas sobre acontecimentos ao longo
essa estrutura, mudando apenas a ex- da história, favorecendo que se conte
pressão cenário da consciência para de novo e permitindo historiar acon-
cenário da identidade. Esta foi uma tecimentos singulares, que não se en-
tentativa de evitar algumas compreen- caixam na história dominante. Essas
sões equivocadas aos propósitos da te- perguntas conduzem à construção de
rapia narrativa, sugeridos pela palavra outras narrativas com novos pano-
consciência. O último livro de Michael ramas de ação possíveis. Como con-

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sequência, são apresentados outros dade da pessoa e suas relações, novos
“Dizendo olá novamente” 109
eventos em distintas sequências e em modos de vida e novos pensamen- Marilene Grandesso
diferentes possibilidades de tempo, e tos incorporados (White, 1991, 2007;
organizados novos argumentos, em Grandesso, 2006).
enredos alternativos sobre aconteci-
mentos, tornando as histórias cada vez
mais ricas. A presença de Lev Vygotsky
Uma vez descoberto um aconteci-
mento extraordinário de reconhecida Ao fazermos uma leitura cuida-
importância para a pessoa em terapia dosa do trabalho de Michael White,
e descrito a partir das perguntas sobre podemos reconhecer em vários mo-
o cenário da ação, perguntas sobre o mentos a presença do psicólogo do
cenário da identidade convidam a pes- desenvolvimento russo Lev Vygotsky
soa a refletir sobre esses acontecimen- , especialmente, mas não só, no seu
tos e sobre os contextos de seu desen- trabalho com famílias com crianças.
volvimento. Isto pode ser feito tanto Expressões tais como “distanciamen-
em relação à história recente como à to”, “andaime”, “colaboração social”,
mais distante. Essas perguntas ajudam “agência pessoal” são reconhecidas
a compreender a natureza de prefe- pelo próprio Michael White como in-
rências e desejos, das qualidades pes- vocando o pensamento de Vygotsky
soais e das relações; dos motivos e dos (White, 2006). Michael considera que
valores; dos estados intencionais; das suas explorações terapêuticas têm-
crenças; da natureza dos propósitos -se afinado com as ideias de Vygotsky
da pessoa. A articulação dos elemen- sobre aprendizagem e desenvolvimen-
tos presentes no relato, que vai sendo to. Afirma também que elas são úteis
construída a partir dessas perguntas, para a compreensão dos processos de
favorece uma revisão dos compromis- mudança terapêutica, ajudando a des-
sos pessoais e propósitos na vida. Esse tacar o que é significativo nas práticas
trânsito do terapeuta entre os dois pa- da terapia narrativa, além da favorecer
noramas, num zigue-zague contínuo o seu desenvolvimento. Passo a con-
em busca de sentido para os aconte- siderar a seguir algumas das ideias de
cimentos especiais presentes no novo Vygotsky, num recorte feito pelo pró-
relato, favorece que crenças e desejos prio Michael White (2006), que aju-
das pessoas sejam narrados de forma dam a compreender e realizar as prá-
organizada e coerente, de tal forma ticas narrativas.
que possam ser compreendidos como Diferentemente de outros teóri-
empenhos pessoais, estilos de vida ou cos que consideravam que o desen-
disposições pessoais (White, 1991). volvimento precedia a aprendizagem,
Essa prática de conversação de reau- Vygotsky (1996) afirmou que o de-
toria, organizada ao se transitar entre senvolvimento decorre da aprendiza-
esses dois panoramas, permite resgatar gem. Além disso, para esse teórico a
do fundo indiferenciado da experiên- aprendizagem pressupõe a colabora-
cia vivida figuras que constroem novas ção social de cuidadores e pares com
narrativas. Estas se apresentam geral- conhecimento mais sofisticado, não
mente tão marcantes, que é como se a acontecendo, portanto, como um es-
vida fosse contada de novo, com novos forço independente. A participação
significados para os acontecimentos, social dos outros estrutura a apren-
novos conceitos a respeito da identi- dizagem da criança, possibilitando

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que ela possa mover-se do que ela já social. Michael White compreende essa
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sabe e faz independentemente, ou auto-regulação como “agência pes-
seja, do que lhe é conhecido e familiar soal” (White, 2006). Embora Vygotsky
em suas realizações de rotina, para o tenha detido sua atenção sobre as prá-
que lhe é possível conhecer e realizar ticas educacionais que favoreciam o
com a colaboração de outras pessoas. desenvolvimento de crianças no início
Vygotsky compreende esse movimen- da infância, Michael White considera
to como uma zona de aprendizagem, que essas ideias ajudam a compreen-
a qual denomina de “zona de desen- der a aprendizagem e o desenvolvi-
volvimento proximal”, definida como mento em todos os estágios e idades,
a distância entre o que a criança já sendo também úteis para compreen-
pode conhecer e alcançar por si e o der as práticas terapêuticas efetivas e
que ela pode conhecer e alcançar com seu desenvolvimento posterior. Para
a colaboração de outras pessoas. A tra- ele, quando as famílias procuram te-
vessia nessa zona exige que a criança rapia, movidas por situações difíceis e
se distancie da experiência imediata, e preocupações, encontram-se em meio
só pode acontecer com a colaboração à contínua reprodução do que lhes é
de outras pessoas que a ajudem a que- conhecido e familiar, engajando-se em
brar essa tarefa em passos manejáveis. ações afinadas com suas conclusões e
Essa participação social de outras pes- conhecimentos familiares sobre suas
soas constrói o andaime para a criança vidas, identidades e relacionamentos.
transitar com sucesso na zona de de- Michael White usa também a expres-
senvolvimento proximal. Movimen- são “zona de desenvolvimento proxi-
tando-se pelos andaimes socialmente mal” para referir-se à lacuna entre o
construídos, a criança pode estender que é conhecido e familiar e o que é
sua mente e alimentar sua imaginação, possível para a pessoa conhecer e fa-
realizando com sucesso as tarefas de zer. Da mesma forma que a teoria de
aprendizagem que, de outra forma, a desenvolvimento de Vygotsky, Michael
levariam a falhas e exaustão. Através White considera que a pessoa em tera-
de um distanciamento progressivo e pia não pode atravessar essa distância
crescente do que é conhecido e fami- sozinha. Para isso, ela necessita dos an-
liar e da experiência imediata, a crian- daimes construídos pelo terapeuta du-
ça pode construir cadeias de associa- rante a conversação, também podendo
ções, estabelecendo vínculos e relações contar com a ajuda de outras pessoas
entre objetos e eventos de seu mundo, presentes no encontro terapêutico. Os
dessa maneira desenvolvendo o pen- andaimes construídos na conversação
samento complexo, responsável pela com o terapeuta permitem à pessoa
construção de conceitos sobre a vida e dar passos bem-sucedidos para transi-
a identidade. tar do que é conhecido e familiar para
O desenvolvimento de conceitos o que é possível de conhecer e realizar.
oferece as bases para as pessoas regula- Michael White reconhece as ideias
rem suas vidas, interferindo proposita- de Vygotsky no seu mapa de “conver-
damente sobre suas ações, intervindo sações de andaimes”, estruturadas em
na sua vida, organizando o curso dos cinco níveis de investigação:
eventos e resolvendo seus problemas. • tarefas de distanciamento de nível
Ações responsáveis e autônomas são baixo, encorajando as pessoas a
compreendidas, de acordo com essa localizar objetos e eventos no seu
visão, como fundadas na colaboração mundo;

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• tarefas de distanciamento de nível necendo no mesmo nível do andaime e
pedindo a outras pessoas que desenvol-
“Dizendo olá novamente” 111
médio, convidando as pessoas a es- Marilene Grandesso
tabelecerem vínculos e associações vam suas respostas sobre as perguntas
entre objetos e eventos de seu mun- em questão. Se uma pessoa não pode
do, através de cadeias de associações; responder a uma questão num nível de
• tarefas de distanciamento de nível desenvolvimento, ao invés de conside-
médio alto, convidando as pessoas rá-la como resistente, sem motivação,
a refletirem sobre essas cadeias de incapaz de refletir, Michael White en-
associações e tirarem conclusões tende que o terapeuta está falhando na
sobre suas realizações e aprendi- sua colaboração social para construir
zagens; andaimes que permitam à pessoa em
• tarefas de distanciamento de nível questão caminhar na sua zona de de-
alto, ajudando as pessoas a abs- senvolvimento proximal na direção de
traírem as circunstâncias imedia- outros mundos possíveis entre aquilo
tas e formularem conceitos sobre que é possível de conhecer e fazer.
a vida e identidade;
• tarefas de distanciamento de nível
muito alto, incentivando as pes- Mapa de conversações para
soas a formularem previsões sobre construir andaimes
o resultado de ações fundadas so- Possível de conhecer
bre esses conceitos e encorajando- ______________________________
-as a pensarem em planos para re- Tarefas de nível
alizar essas ações. de distanciamento
muito alto:
Ilustrações dessas “conversações planos para ação
andaime” são apresentadas em várias ______________________________
obras de Michael White (2006; 2007), Tarefas de nível
organizadas do ponto de vista de dia- de distanciamento
grama através do mapa apresentado a alto: aprendizagens e
seguir. Para ele, cumpre ao terapeuta re- realizações
conhecer e honrar sua responsabilidade ______________________________
em construir andaimes para a família Tarefas de nível
transitar pela zona de desenvolvimen- alto de distanciamento:
to proximal, distanciando-se de forma reflexões sobre cadeias
crescente e progressiva do que lhe é co- de associações,
nhecido e familiar para o que lhe é pos- aprendizagens e realizações
sível de conhecer e fazer. Essa constru- ______________________________
ção é particularmente engatilhada por Tarefas de nível médio
respostas do tipo “eu não sei”, vindas de distanciamento:
das pessoas em terapia. Nessas ocasiões, problema tomado em
o terapeuta pode valer-se da ação verti- cadeia de associações
cal de descer um nível no seu andaime, ______________________________
oferecendo às pessoas a possibilidade de Tarefas de nível
refletir num terreno possível para pos- baixo de distanciamento:
teriormente transportá-la para respon- caracterizando o problema
der em níveis mais altos. Outra possibi- ______________________________
lidade diante desses momentos de fazer Conhecido e familiar
caminhar a conversação seria numa
dimensão de ação horizontal, perma- Tempo em minutos

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A presença de Gaston Bachelard interlocutores, como Irving Goffman,
112 NPS 41 | Dezembro 2011
Burke, V. Turner, fazem do pensamen-
Michael White teve também como to de Michael White um modelo de
um interlocutor Gaston Bachelard, pensamento sem fronteiras. Sua es-
um filósofo da ciência. Foram úteis às colha de interlocutores é muito mais
práticas narrativas de Michael os es- guiada por uma coerência epistemo-
critos de Bachelard sobre as imagens lógica e um posicionamento filosófi-
dos sonhos e as poéticas da imagem, co e ético, que por qualquer fronteira
que Bachelard apresenta no livro The disciplinar. De Bourdieu, Michael cap-
poetics of space, publicado em 1969. turou, dentre outras, a ideia de tornar
Embora considere úteis para a terapia exótico o doméstico, tão bem apro-
em geral, esses conceitos inspiraram veitada na sua postura de terapeuta,
Michael nas perguntas que confor- que realmente se deixava conduzir
mam a investigação que orienta a par- pela pessoa que atendia, que jamais
ticipação das testemunhas externas no dava por certo e sabido algo que não
desenvolvimento de histórias mais ri- havia perguntado, colocando sempre a
cas para as pessoas em terapia. Micha- pessoa no centro das construções nar-
el White, depois de orientar a partici- rativas (White, 1991; White & Epston,
pação das pessoas como testemunhas 1990). De Geertz, Michael reconheceu
externas para atentar para palavras e a importância do conhecimento local,
expressões que capturam sua atenção, dos símbolos da cultura, e a ideia de
pergunta-lhes, quando estas estão en- histórias finas e histórias grossas, pre-
volvidas nos relatos sobre o que viram sentes nos seus conceitos de reautoria.
e ouviram, sobre imagens, reverbera- E assim, no diálogo com tantos auto-
ções, ressonâncias e transporte. O con- res e disciplinas, Michael ampliou seu
ceito de que as narrativas estruturam olhar, navegou por outros territórios
as memórias, inspirado em Bachelard, e desenvolveu ideias coerentes e ricas,
compreende que o que lembramos manifestas na criatividade de suas prá-
são os incidentes que se encaixam ticas. Contudo, optei por incluir aqui,
nas narrativas que estão estruturando do campo da antropologia, apenas
nossa vida no momento em questão Barbara Myerhoff pela inspiração que
(Dickerson & Zimmerman, 2001). seu trabalho ofereceu a Michael White,
especialmente na forma de trabalhar
com as testemunhas externas e no uso
A presença de Barbara Myerhoff de cerimônias de definição.
A antropóloga Barbara Myerhoff*
Quando percorremos a obra de Mi- desenvolveu, nos meados da década
chael White ao longo desses mais de de 1970, um trabalho de campo com
20 anos, podemos constatar que, além uma comunidade de judeus idosos
dos acima citados, muitos são seus in- que imigraram para a região de Ve-
* White (1997; 2007) refere-se
especialmente às publicações
terlocutores vindos de outros territó- nice, na Califórnia, próxima de Los
de 1982 e 1986 (Myerhoff, rios disciplinares. Antropólogos como Angeles. Deixar a Europa, a perda da
1982; 1986) as quais não Edward Bruner e Clifford Geertz, so-
consultei diretamente, mas
família extensa no Holocausto, o en-
incluo nas referências para ciólogos como Bourdieu, filósofos e volvimento exclusivo no cuidado dos
conectar o leitor interessado. O psicólogos, como o teórico e prático filhos tinham tornado esse grupo in-
que apresento aqui é produto da
leitura que fiz nas duas obras da psicologia discursiva Ron Harré, os visível aos olhos da comunidade mais
citadas e outras mais de Michael construcionistas sociais Ken Gergen ampla. Myerhoff descreve como esses
White.
e John Shotter, e mais outros tantos judeus desenvolveram seu sentido de

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 41, p. 99-118, dez. 2011.


comunidade, enfrentando o isola- do em 1980 na parceria com David
“Dizendo olá novamente” 113
mento e a extinção de suas tradições, Epston, tenha derivado de múltiplas Marilene Grandesso
inventando uma cultura em que suas fontes*, Michael White tributa ao tra-
histórias eram contadas e recontadas balho de Barbara Myerhoff a sua prin-
de forma vigorosa e enfática, de várias cipal compreensão da importância das
maneiras diante da comunidade maior audiências. White dedicou-se a explo-
(White, 1997; 2007; Payne, 2002). Diá- rar e desenvolver opções de convidar
logos prolongados, desfiles públicos de audiências para participarem de suas
protesto contra algum acontecimento, conversações terapêuticas e a estudar
expressões através de pintura e outras que espécies de respostas da audiên-
formas de representação caracteriza- cia poderiam contribuir mais para o
ram o que Barbara Myerhoff chamou surgimento de histórias ricas sobre
de cerimônia de definição. Essas ceri- desenvolvimentos preferidos para as
mônias, que colocavam a comunidade vidas e identidades. Na prática tera-
maior como testemunha, deram a este pêutica de Michael White, as cerimô-
grupo de imigrantes a oportunidade nias de definição envolvem convidar
de ganhar visibilidade e obter reco- audiências para reconhecer e legiti-
nhecimento, de modo que, ao torna- mar as pessoas e suas reivindicações
rem públicos seus sonhos diante da de identidade através de suas histó-
comunidade e de estranhos, mudaram rias. Familiares, amigos, outros pro-
o sentido do mundo em que viviam fissionais, ex-clientes, enfim, pessoas
(Payne, 2002). convidadas e devidamente preparadas
Um aspecto importante do traba- para ocuparem o lugar de testemunhas
lho de Myerhoff destacado por White externas oferecem oportunidade para
(White, 1995; 2007) foi a ênfase dada as pessoas em terapia tornarem-se vi-
às testemunhas externas. Essas teste- síveis em suas realizações, qualidades
munhas, no seu entender, criaram o pessoais, valores, aspirações e projetos
contexto para reconhecimento e legi- pessoais. Narrar suas histórias, ouvir
timação da comunidade judia, contri- suas histórias renarradas a partir de
buindo para que as pessoas que parti- aspectos significativos que tocaram as
cipavam das cerimônias de definição testemunhas externas, renarrar a sua
pudessem levar adiante suas demandas história renarrada por outros naquilo
em relação às suas histórias e identida- que se destacou ao ouvir a re-narrativa
des. Ao tornarem públicas suas deman- favorece um sentido de autenticidade,
das, ganharam respeito e autoridade, e diante de si mesmas e aos olhos des- * White (2007) menciona
pelo menos mais quatro
suas demandas foram amplificadas. sa audiência presente como ouvinte contextos inspiradores do
Assim, puderam construir um antí- numa escuta respeitosa e sem julga- uso de testemunhas externas:
doto contra os efeitos do isolamento, mentos. 1. o trabalho com crianças,
nos quais as audiências eram
invisibilidade e conseqüente margina- Embora não esteja nos propósitos naturalmente recrutadas pelas
lidade. O narrar e o renarrar de suas deste artigo descrever as práticas nar- próprias crianças, mostrando
seus certificados ganhos ao
histórias de reivindicação e reclama- rativas, especialmente em relação ao término de suas terapias; 2. a
ções de identidade diante das audiên- uso de testemunhas externas e cerimô- metáfora narrativa que enfatiza
nias de definição, considero impor- a presença dos outros e dos
cias emprestou um caráter “público e relacionamentos significativos
verdadeiro” (White, 1995, p. 178), per- tante destacar a postura cuidadosa e a como coautores das histórias
mitindo às pessoas da comunidade um coerência com seus princípios éticos, pessoais; 3. as normas da
cultura socialmente construídas,
sentido de autenticidade. envolvidos no preparo que Michael explícita ou canonicamente
Embora a inclusão de audiências White faz para incluir outra pessoa veiculadas e 4. o trabalho de
Tom Andersen com as equipes
em suas práticas de terapia, inicia- como testemunha externa nas conver- reflexivas.

Nova Perspectiva Sistêmica, Rio de Janeiro, n. 41, p. 99-118, dez. 2011.


sações terapêuticas (White, 2007, p. ou se estiver seguindo numa direção
114 NPS 41 | Dezembro 2011
189-192). Antes de ser incluída como que contradiga os propósitos dessa
testemunha externa, a pessoa deve cerimônia de legitimação e reconheci-
necessariamente ser aceita pelo clien- mento da pessoa em terapia. A finali-
te. Em segundo lugar, Michael White zação desse preparo, caso o convidado
conversa com a possível testemunha aceite participar da cerimônia, envolve
externa, explicando-lhe a natureza de a descrição cuidadosa das quatro cate-
sua participação: tomar parte numa gorias de perguntas que orientam e or-
tradição de reconhecimento impor- ganizam a renarrativa da testemunha:
tante para o desenvolvimento de his- • foco sobre a expressão – ou seja,
tórias mais ricas e preferidas para a falar sobre palavras e expressões
pessoa em terapia. Faz também parte que mais tocaram ou chamaram a
desse preparo explicar as 4 etapas da atenção da testemunha;
cerimônia de definição na terapia nar- • foco sobre a imagem – ou seja,
rativa: (1) o narrar de sua história pela descrever imagens ou metáforas
pessoa em terapia, entrevistada pelo te- que lhe vieram à mente enquanto
rapeuta; (2) o renarrar da testemunha ouvia e especular sobre o que essas
a partir do que ouviu e das perguntas palavras e expressões e imagens e
do terapeuta; (3) o renarrar do renar- metáforas podem estar refletindo
rar da pessoa no centro da experiência, sobre propósitos, valores, crenças,
também a partir das perguntas do te- esperanças, aspirações, sonhos e
rapeuta; e (4) a finalização. Além disso, compromissos da pessoa;
o renarrar da testemunha envolve um • foco sobre as ressonâncias pessoais,
deixar-se pessoalmente tocar pelo que compartilhando aspectos da sua
ouviu e que atraiu sua atenção. Não se própria vida que foram suscitados
trata, portanto, de interpretar, teorizar, pelos itens anteriores;
avaliar, muito menos de dar conselhos, • o foco sobre o transporte – ou seja,
impor sua opinião ou julgar. Portan- lugar para onde foi transportado
to, a testemunha é esclarecida que está por participar dessa conversação.
participando de uma conversação na
qual vai se envolver pessoalmente, Enfim, essas considerações acima
conforme contextualiza sua renarra- ilustram muito bem o respeito sem-
tiva, conforme foi tocada pela história pre presente no trabalho de Michael
da pessoa e se envolveu em imagens, White, impecável na delicadeza e no
metáforas e ressonâncias do que ou- cuidado para com todos os envolvi-
viu sobre sua própria história. A tes- dos. O significado daquilo que é dito
temunha é convidada a falar de forma é dado pelo ouvinte. Portanto, seria
pessoal, dizendo da sua compreensão uma temeridade convidar pessoas
do porquê foi atraída por determina- para participarem de uma conversação
do aspecto da história. Outra questão terapêutica, deixando a conversação
importantíssima nesse preparo diz seguir um rumo aberto e entregue aos
respeito ao lugar de responsabilidade próprios processos de entendimento
e posicionamento ético do terapeuta. que se fizessem presentes. O cuidado-
Michael White negocia com a pessoa so preparo protege tanto a testemunha
para poder participar com perguntas a que veio para colaborar, e acaba se ex-
fim de organizar a conversação sempre pondo pessoalmente, como a pessoa
que ela não estiver caminhando para o em terapia que confia sua intimidade
favorecimento de histórias mais ricas, muitas vezes a um estranho.

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Michael White: a pessoa e o terapeuta nunca imaginados, expandido suas
“Dizendo olá novamente” 115
histórias para além do conhecido e fa- Marilene Grandesso
A grande admiração, respeito e re- miliar para o que pôde cada vez mais
conhecimento pela pessoa e trabalho intensamente conhecer. Enfim, os ma-
de Michael White não vêm apenas da pas narrativos têm sua história mes-
coerência de suas ideias e princípios e clada com a própria história de Mi-
da criatividade de sua prática. Muito chael. A mesma crença na existência
além de tudo isso, destaca-se o entre- de mundos possíveis, surpreendentes e
laçamento entre um pensar e fazer na deslumbrantes, manifesta-se ao longo
sua prática da terapia narrativa, e sua do trabalho de Michael em relação ao
postura diante das pessoas e da vida. mundo humano: um universo de pos-
O respeito pelo ser humano vem junto sibilidades no qual ele sempre acredi-
com a crença de que todas as pessoas, tou existirem bonitas, emocionantes e
mesmo aquelas que parecem extre- admiráveis histórias de competências,
mamente carentes de condições, têm mesmo naquelas vidas que parecem
dentro de si as possibilidades de trans- restritas e monotemáticas.
formar a existência em algo digno e Contar e ouvir histórias também
viver em condições de justiça, respeito, construiu o cotidiano de Michael
equidade e cidadania. Seus princípios White, incorporados à vida familiar.
teóricos e sua prática são colocados em Um terapeuta especialmente criativo
ato na postura que desenvolveu sem- no seu trabalho com crianças, em que
pre com as pessoas e comunidades que experimentava uma intensa alegria,
atendia e junto àquelas cuja identidade considerava que sua habilidade co-
de terapeuta ajudou a construir, e nas meçou desde a sua infância, quando
formas comprometidas de levantar contava histórias para sua irmã caçula,
uma espécie de cruzada contra o poder Julie. Mais que atribuir sua conexão
que oprime e objetifica o ser humano. com crianças às teorias de desenvol-
Desde criança, Michael White cons- vimento ou leitura de textos de traba-
truiu andaimes. Quando era menino, lhos específicos, Michael associa suas
eles lhe serviram para expandir seus habilidades e qualidades terapêuticas
horizontes olhando mapas num glo- nesses contextos à sua relação com
bo, estendendo sua imaginação para Julie, para quem criava histórias da
além do conhecido e familiar para a “Ratinha Detetive” e à sua filha Penny,
perspectiva de que havia muitos ou- que mais tarde na vida, diante dele
tros horizontes a explorar e conhecer. como pai, fez com que Michael resga-
Sua curiosidade por outros mundos tasse as histórias que construiu ainda
contribuiu para desenvolver seu gosto como menino. Para ele, Julie e Penny
por olhar mapas, que lhe permitiram são coautoras de seus conhecimentos
transportar-se para outros lugares e práticas terapêuticas com crianças
através da imaginação, indo do univer- (White, 1997). Reconhecer a presença
so restrito em que sua família de classe das duas no desenvolvimento de suas
trabalhadora podia transitar na época habilidades constitui uma espécie de
e as infinitas possibilidades que podia reassociação (re-membering), que per-
criar na imaginação. Suas histórias so- mitiu a Michael considerar sua histó-
bre seu interesse por mapas (White, ria enquanto terapeuta, uma narrativa
2007) resgatam cenas da infância e, em mais ricamente descrita.
especial, de seus 13 anos, descrevendo A pessoa e o terapeuta estão amal-
seu deslumbramento pelos mundos gamados em todo o trabalho de Mi-

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chael. Para ele, a interação terapêutica desenvolvimentos. Esse livro apresenta
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é uma via de duas mãos. Construída uma espécie de bastidores ao longo
na reciprocidade, num encontro tera- dos anos, em que Michael White abre a
pêutico, no narrar e renarrar das his- intimidade das descobertas e decisões
tórias, todos os envolvidos, inclusive ao longo do caminho, ajudando-nos
o terapeuta, mudam. Extremamente a compreender como foi que chegou
enfático sobre a responsabilidade que onde chegou e o ausente mas implíci-
temos sobre nossas escolhas enquanto to, em cada conceito que adotou e cada
terapeutas, Michael considera que os prática que desenvolveu. Não é por fal-
encontros com as pessoas que atende- ta de publicações que não poderíamos
mos nos incitam a confrontar as op- seguir suas ideias e práticas.
ções de continuidade e descontinuida- Contudo, como manter viva na nossa
de das versões que recebemos ao longo prática de terapia a presença de Michael
da vida, que organizam nossos princí- White? Mais do que seguir seu modelo,
pios e valores. Ele afirma que temos de colocar em ato as práticas narrativas,
honrar os convites que as pessoas nos incorporar a presença de Michael Whi-
fazem para mudarmos com elas e ser- te na terapia que fazemos, implica viver
mos agentes de desafio e denúncias das coerentemente com os valores, crenças
injustiças do mundo. Isso exige uma e princípios que dão sentido e susten-
atitude crítica e reflexiva sobre nossa tação para essa abordagem. O posicio-
prática clínica, guiada pela responsabi- namento crítico contra qualquer for-
lidade de constantemente avaliarmos ma de poder que oprime e subjuga, a
os efeitos reais que as histórias alterna- humildade de ocupar uma posição de
tivas construídas no contexto da tera- descentramento, a crença que todas as
pia têm sobre a vida das pessoas. pessoas têm verdadeiros tesouros, seus
saberes construídos na práxis do viver,
na sua própria história. Enxergar o que
A presença de Michael White em nós, há de belo e estético em cada pessoa e
terapeutas que pessoas são surpreendentes quan-
do olhadas e escutadas com genuíno
O que ele nos deixa? Um enfoque interesse e curiosidade, podem ajudar
ou seria uma visão de mundo? Seria a manter vivos os valores que Michael
uma epistemologia da clínica, uma colocou em ato com sabedoria, coerên-
filosofia ou um compromisso social? cia e muita emoção.
Uma política ou uma ética? Qualquer Portanto, em vez de dizermos adeus
que seja o recorte escolhido, Michael a Michael White, conforme ele mes-
White deixa-nos uma obra ímpar em mo nos ensinou ao lidar com histórias
que teoria e prática se misturam com de tristeza e dor de vivências de luto,
a pessoa de um terapeuta sensível que podemos dizer ”Olá, Michael!”. Par-
vivia o que pregava, ou nos dizeres te de nossas narrativas de identidade
de Shotter, habitava o que dizia. Um como pessoas e terapeutas, membro
ano antes de sua morte, brindou-nos do clube de nossas vidas, Michael es-
com um presente – o livro Maps of tará presente todas as vezes que nos
narrative practice. Para escrever esse indignarmos contra as injustiças so-
livro, Michael revisitou seu trabalho ciais, que nos posicionarmos contra
ao longo de mais de 20 anos, organi- os abusos de poder, contra as práticas
zou conceitos e estruturou sua práti- de subjugação das identidades e vidas.
ca, indo além com seus mais recentes Certamente, nessas ocasiões, podere-

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mos reassociar sua presença e influên- Monk, G., Gehart, D.R. (2003). Socio-
“Dizendo olá novamente” 117
cia e ouvir sua voz. Sua voz em nossas political activist or conversational Marilene Grandesso
práticas e mentes também poderá ser partner? Distinguishing the posi-
invocada para tornar presente a chama tion of the therapist in narrative
da esperança e a crença de que novos e and collaborative therapies. Family
preferidos mundos serão sempre pos- Process, 42: 19-30.
síveis à luz das histórias preferidas e Myerhoff, B. (1982). Life history
extraordinárias que toda pessoa tem. among the elderly: performance,
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