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Para minha miie, Nadiège,

e meu pai, Alex.

As lutas dos ndufragos


e às buscas ecologistas de um mundo.
pr6l090

ulMa dupla fratura


cololf\ial e a1Mbielf\tal:
o Caribe V\O celf\tro da
te1Mpestade 1Moderlf\a

Joseph Mallord William Turner, Slavers Th rowing Overboard che Dead and
Dying, Typhoon Coming On [Escravistas lançando mortos e moribundos ao
mar, tufào chegando], 1840. © Museum of Fine Arts, Boston.

ullv\a tellv\pestade llv\oder111.a

Uma c6lera rubra recobre o céu, as ondas se agitam, a àgua sobe, os pàs-
saros se assustam. Os ventos em redemoinho envolvem a destruiçào dos
ecossistemas da Terra, a escravizaçào dos nào humanos, assim como as
violências da guerra, as desigualdades sociais, as discriminaçàes raciais
e as opressàes das mulheres. A sexta extinçào em massa de espécies
està em curso, a poluiçào quimica escoa nos aquiferos e nos cordàes
umbilicais, o aquecimento planetàrio se acelera e a justiça mundial per-
manece iniqua. A violência domina a tripulaçào, corpos acorrentados
sào abandonados nas profundezas marinhas e màos Marrons buscam
Sem d1ivida, nào somos mais do que umfiapo de pal ha neste ocea110 a esperança. Os céus trovejam alto e bom som: o navio-mundo està no
e11Jurecido, mas, Se11hores, nem tudo esta perdido, basta te11tar meio da tempestade moderna. Corno enfrentà-la? Que rota buscar?
alcançar o centro da tempestade. Este ensaio é uma contribuiçào à busca de uma rota corn a particu-
- AIMÉ CÉSAIRE, Uma tempestade, 1969 laridade de fazer do Cari be seu mar de pensamento. Para os europeus

11
)- ----
.. . ,, d primeiros habitantes do a arca de Noé, ou a dupla fratura
do século xv1, a palavra Canbe , nome'b os· , A exemplo do persona-
arquipélago ' designava selvagens e cam ais.k cololl\ial e aMbiell\tal
"Can'b e ,, s1gm-
. .
gem Caliban da peça A tempestade, de Sha espear~, _
ficaria uma entidade desprovida de razao cuja fiscahzaçao por parte A primeira proposta parte da constataçao de uma duplafratura colo-
. - . d .. ci·as faria emergir lucros niale ambiental da modernidade, que separa a historia colonial e a his-
das colomzaçoes europe1as e e suas c1en . . t
econômicos e saberes objetivos. Essa perspectiva colomal perslS e toria ambiental do mundo. Essa fratura se destaca pela distância entre
ainda hoje na representaçao turistica do Caribe como um intervalo de os movimentos ambientais e ecologistas, de um lado, e os movimen-
areia inabitado fora do mundo. Pensar a ecologia a partir do mundo tos pos-coloniais e antirracistas, de outro, os quais se manifestam nas
caribenho é a derrubada dessa perspectiva, sustentada pela convic- ruas e nas universidades sem se comunicar. Ela revela-se também no
çao de que os caribenhos, homens e mulheres, falam, agem, pensam cotidiano pela ausência gritante de pessoas Pretas e racializadas tanto
nas arenas de produçao de discursos ambientais como nos aparatos
o mundo e habitam a Terra.'
Diante do anuncio do diluvio ecologico, muitos sao os que se preci- teoricos utilizados para pensar a crise ecologica. Corn os termos "Pre-
pitam em direçao a uma arcade Noé, pouco preocupados corn os aban- tos", "Vermelhos", "arabes" ou "Brancos", longe da essencializaçao a
donados no cais ou corn os escravizados no interior do proprio navio. priori da antropologia cientifica do século x1x, refiro-me à construçào
Em face da tempestade ecologica, a salvaçao da "humanidade" ou da da hierarquia racista do Ocidente, que levou varias pessoas na Terra a
"civilizaçào" exigiria o abandono do mundo. Essa perspectiva desola- terem como condiçào a associaçào a uma raça, inventando Brancos•
dora é exposta pelo navio negreiro, a exemplo do navio Zong na costa da acima de nào Brancos.3 Po( causa de ta! assimetria, corn o termo "racia-
Jamaica em 1781, representado na pintura de William Turner na pagina lizados" refiro-me a esses outros, nào brancos, cuja humanidade foi e
anterior. Ao menor indicio de tempestade, alguns sao acorrentados sob ainda é questionada pelas ontologias raciais, traduzindo-se de fato por
o convés, outros sao lançados ao mar. As destruiçôes ambientais nao uma essencializaçào discriminatoria.4 Mesmo que ta! hierarquia seja
atingem todo mundo da mesma maneira, tampouco apagam as destrui- uma construçào sociopolitica que nào tem mais nenhum valor cienti-
çôes sociais e politicas ja em curso. Uma dupla fratura persiste entre os fico, s isso nào leva, em contrapartida, à negaçào das realidades sociais
que temem a tempestade ecologica no horizonte e aqueles a quem o e experienciais que tem origem nela - por exemplo, ao recusar-se a
convés da justiça foi negado muito antes das primeiras rajadas de vento. nomea-las -, de suas violências e relaçôes de dominaçào, inclusive nos
Verdadeiro olho da tempestade, o Caribe nos leva a apreendê-la a partir discursos, praticas e politicas do meio ambiente.•
do porào da modernidade. Com seus imaginarios crioulos de resistência Nos Estados Unidos, um estudo de 2014 mostra que as minorias
e suas experiências de lutas (pos-)coloniais, o Caribe permite uma con- continuam sub-representadas nas organizaçôes governamentais e
ceitualizaçào da crise ecologica associada à busca de um mundo des- nào governamentais e que os mais altos cargos sào ocupados majo-
v_encilhado de suas escravizaçôes, violências sociais e injustiças poli- ritariamente por homens Brancos, corn ensino superior e de classe
ucas: uma ecologia decolonial. Essa ecologia decolonial é um caminho média.7 A situaçào é similar na França. As pessoas racializadas oriun-
rumo ao horizonte de um mundo comum a bordo de um navio-mundo das da imigraçào colonial e pos-colonial, que coletam o lixo das ruas,
rumo ao que chamo de uma ecologia-do-mundo. Três propostas filosofi~ limpam as praças e as instituiçôes publicas, conduzem os ônibus,
cas orientam tal caminho. bondes e metrôs, aquelas que servem as refeiçôes quentes nos res-

* A fim de distinguir graficamente as cores "preto", "vermelho", "branco" e


"marrom" da espessura dos processos historicos, juridicos, sociopoliticos e
ontologicos que operam na racializaçào, emprego a maiùscula nos substan-
tivas e nos adjetivos "Preto", "Negro•, "Verrnelho", "Branco" e "Marrom".

22 Prologo ll
--- taurantes universitarios, entregam. a corresp
ondência, cuidam dos
- sorridente na entrad a bem como as hierarquizaçôes pr6prias a esta ultima, em que os ani-
doentes nos hospitais, aquelas cuJa recepçao t_ l mais selvagens "nobres• (ursos-polares, baleias, elefantes ou pandas)
dos estabelecimentos é garantia de segurança, eS ao ~era mente e os animais domésticos (câes e gatos) sâo colocados acima dos ani-
ausentes das arenas universitarias, governamentats e nao g~v~rna- mais de criaçâo (vacas, porcos, ovelhas ou atuns)." De outra parte, os
. • b' t portanto especrnhstas
mentais preocupadas corn o me10 am 1en e. ' _ . termos "Homem" ou "cinthropos" mascaram a pluralidade dos huma-
em meio ambiente corn frequência tomam a palavra nas conferenctas nos, colocando em cena homens e mulheres, ricos e pobres, Brancos e
como se todo esse mundo corn suas historias, seus sofrimentos e suas nâo Brancos, cristâos e nâo cristâos, doentes e saudaveis.
lutas, nào tivesse conseq~ências na maneira de pensar a Terra. ~isso
decorre o absurdo de uma preservaçào do planeta que se mamfesta
pela ausência daqueles "sem os quais", escreve Aimé Césaire, "a terra ursos-polares, lobos, âguias, vacas, porcos, galinhas,
tigres, elefantes, baleias... ovelhas, cordeiros, atuns,
nào seria a terra•.• ou essa fratura fica totalmente oculta por tras do
planeta, meio salmôes, camarôes, lambis ...
argumento falacioso de que os nào Brancos nào se preocupam corn ambiente, iratura animal
o meio ambiente ou entào ela é relegada a tema secundario ao "ver- natureza cidades, naturezas urbanas,
natureza virgem, wildtrness,
dadeiro" objeto da ecologia. Aqui proponho Jazer dessa dupla Jratura favelas, plantations, campos de
florestas, montanhas, lagos,
um problema central da crise ecol6gica, que abala as maneiras como parques, safâris... petrôleo, periferias, criaçôes,

esta é pensada e as suas traduçôes politicas. ·~


0 abatedouros ...

Por um lado, a fratura ambiental decorre desta "grande partilha"'


da modernidade, a oposiçào dualista que separa natureza e cul- i !ratura ambieotal

humanos, homens, mulheres,


pobres, doentes, racializados.
tura, meio ambiente e sociedade, estabelecendo uma escala vertical homem, homem branco, cristâo, corn Pretos, Vermelhos.
de valores que coloca "o Homem" acima da natureza. Ela se revela humano, ensino superior e de classe Amarelos, 3.rabes, indigenas,
por meio das modernizaçôes técnicas, cientificas e econômicas de dnthrOpos abastada muçulmanos, judeus, budistas,
dominio da natureza, cujos efeitos sâo mensurados pela dimensâo jovens. homossexuais, idosos,
da poluiçào da Terra, da perda de biodiversidade, das alteraçôes cli- pessoas corn deficiência...
VALORIZAçiO E HOMOGENEIZAÇÀO
maticas e à luz das desigualdades de gênero, das misérias sociais e
das vidas descartaveis geradas.'0 O conceito de "Antropoceno", popu-
larizado por Paul Crutzen, Prêmio Nobel de Quimica em 1995, atesta A fratura ambiental
a~ ~onsequências dessa dualidade." O termo designa a nova era geo-
log1ca que sucede o Holoceno, na quai as atividades dos humanos Chamo de "ambientalismo" o conjunto dos movimentos e corren-
se tornam uma força maior que afeta de forma duradoura os ecos- tes de pensamento que tentam derrubar a valorizaçâo vertical da
sistemas da Terra. Por outro lado, tal fratura abrange também uma fratura ambiental sem tocar na escala de valores horizontal, ou seja,
homogeneizaçâo horizontal e esconde as hierarquizaçôes internas sem questionar as injustiças sociais, as discriminaçôes de gênero e
"de ~robas ~spartes. De uma parte, os termos "planeta", "natureza" ou as dominaçôes politicas ou a hierarquia dos meios de vida e sem se
me10 am~tente" escondem a diversidade de ecossistemas, dos luga- preocupar corn a causa animal. O ambientalismo procede, assim, de
~es geograficos_ e dos nâo humanos que os constituem. As imagens de uma genealogia apolitica da ecologia que comporta figuras tais como
oresta~ luxuriantes, montanhas nevadas e reservas naturais masca- as do caminhante solitario e de seu panteâo de pensadores, entre
~:::~ tm:gens das naturezas urbanas, das favelas e das plantaçoes eles Jean-Jacques Rousseau, Pierre Poivre, John Muir, Henry David
em sao mascarados os conflito . . Thoreau, Aldo Leopold ou Arne Nress." Trata-se principalmente de
de preservaçâo da natureza e d s mterno_s entre os movimentos
os a causa ammal, a fratura animal, homens Brancos, livres, sozinhos e de classe abastada, em sociedades

24 Prologo 1S
escravocratas e p6s-escravocratas, diante do que entao se designava nizados ou ex-colonizados. Da mesma forma, essa fratura homo-
por "natureza". A despeito das divergências quanto à sua definiçiio, geneiza os colonizadores, reduzindo-os à experiência de um homem
o ambientalismo continua preocupado corn uma "natureza", alimen- Branco, ao.mesmo tempo que reduz a experiência dos colonizados à
tando a doce ilusao de que suas condiçôes sociopoliticas de acesso" e de um homem racializado. Ao longo da complexa historia do colonia-
suas ciências permaneceriam fora da fratura colonial. lismo, essa linha foi contestada por ambos os !ados e assumiu dife-
Desde os anos 1960, movimentos ecologistas abordam as escalas rentes formas." Entretanto, ela perdura ainda hoje, reforçada pelos
de valores verticais e horizontais. o ecofeminismo, a ecologia social mercados liberais e pela economia capitalista.
e a ecologia politica alinham a preservaçao do meio ambiente a uma
exigência de igualdade ho mens/ mulheres, de justiça social e de homens e mulheres
racializados, ricos,
emancipaçao politica. A despeito de seus ricos aportes, essas contri- homem racializado
colonizado / escravizado pobres. doentes,
buiçôes ecologistas dao pouco espaço às questôes raciais e coloniais. (Preto, Vermelho,
citadinos, camponeses,
colônia Amarelo), cristâo e nào
A constituiçao colonial e escravagista da modernidade é encoberta cristào, heterossexual
pessoas corn deficiência,
pela pretensao de universalidade de teorias socioeconômicas, femi- jovens, idosos,

nistas ou juridico-politicas. Na virada verde dos anos 1970, as discipli- ·~ homossexuais

nas de letras e de humanidades depararam-se corn a fratura ambien-


tal ao mesmo tempo que varreram para debaixo do tapete a fratura i
i
fratura colonial

homens, mulheres,
colonial. A ausência de pensadores racializados especialistas nessas homem branco, cristâo, pessoas corn deficiência.
colonizador / proprietârio corn ensino superior pobres, doentes,
questéies salta aos olhos. Da universidade às arenas governamentais metr6pole e de classe abastada, jovens, idosos,
e nao governarnentais, os movimentos criticos da fratura ambiental heterossexual citadines, camponeses,
delimitaram um espaço Branco e majoritariamente masculino no seio homossexuais
de paises p6s-coloniais, pluriétnicos e multiculturais onde se pensam VALOIUZAÇÀO E HOMOGENEIZAÇÀO
e se redesenharn os mapas da Terra e as linhas do mundo.
De outro lado, figura uma fratura colonial sustentada pelos ide6-
logos racistas do Ocidente, corn seu eurocentrismo religioso, cultural A fratura colonial
e étnico, bem como seus desejos imperiais de enriquecimento, cujos
efeitos se manifestam na escravizaçao dos povos originarios da Terra, Das primeiras resistências dos amerindios e dos escravizados do
nas violências infligidas às mulheres nao europeias, nas guerras de século XV aos movimentos antirracistas contemporâneos, passando
conquistas coloniais, nos desenraizamentos do trafico negreiro, no pelas lutas anticoloniais nas Américas, na Africa, na Asia e na Oceania,
sofrimento dos escravizados, nos mtlltiplos genocidios e crimes con- essa fratura colonial é colocada em questao, denunciando a valoriza-
tra a humanidade. A fratura colonial separa os humanos e os espaços çào vertical do colonizador em relaçao ao colonizado. o anticolonia-
geograficos da Terra entre colonizadores europeus e colonizados nào lismo, o antiescravismo e o antirracismo representam o conjunto de
europeus, entre Brancos e nao Brancos, entre cristaos e nao cristàos, açéies e correntes de pensamento que desconstroem essa escala verti-
entre senhores e escravos, entre metr6poles e colônias, entre paises cal de valores. No entanto, a historia mostra que tais açôes e correntes
do Norte e paises do Sul. Remontando, no minimo, à época da Recon- ainda nao alcançararn a escala horizontal de valores, mantendo aqui
quista espanhola, que expulsou os muçulmanos da Peninsula Ibérica, e ali relaçôes de dominaçao entre homens e mulheres, entre ricos e
e à chegada de crist6vao Colombo às Américas em 1492, essa dupla pobres, entre citadinos e camponeses, cristaos e nào cristaos, àrabes
fratura péie o colonizador, sua historia e seus desejos no topo da hie- e Pretos, tanto entre os colonizados como entre os colonizadores. Em
rarquia dos valores, e a eles subordina as vidas e as terras dos colo- resposta, movimentos como o afrofeminismo e os pensamentos deco-

26 Prologo 17
1 loniais abalam ao mesmo tempo as escalas de valores vertical e hori-
zontal, articulando as decolonizaçôes à emancipaçâo das mulheres,
ao reconhecimento das diferentes orientaçêies sexuais, aos diferentes
panafricanista de Kwame Nkrumah, Bayard Rustin e Bill Sutherland
em relaçào ao "imperialismo nuclear" e aos testes franceses na Argé-
lia, a denuncia feita por Frantz Fanon de uma corrida armamentista
credos religiosos e a uma justiça social. Todavia, as questôes propria- nuclear que mantém a dominaçào sobre O Terceiro Mundo, bem como
mente ecologicas do mundo continuam relegadas a segundo piano. as demandas contemporâneas dos polinésios por justiça."' Ao ocultar as
A dupla fratura da modernidade designa o muro espesso entre as condiçôes coloniais de produçào da técnica, deixamos escapar alianças
duas fraturas ambientais e coloniais, a dificuldade real de pensâ-las possiveis corn criticas anticoloniais da técnica.
em conjunto e de manter, em compensaçâo, uma dupla critica. Entre- Certamente, houve algumas pontes por meio do compromisso de
tanto, ta! dificuldade nâo é vivenciada da mesma maneira por ambas René Dumont corn os carnponeses do Terceiro Mundo, por meio da
as partes, e esses dois campos nâo assumem uma responsabilidade denuncia feita por Robert Jaulin e Serge Moscovici do etnocidio dos
igual. Pelo lado ambientalista, a dificuldade provém de um esforço amerindios - assim como por sua colaboraçào corn o grupo Survivre
de invisibilizaçâo da colonizaçâo e da escravidâo nagenealogia de um et Vivre [Sobreviver e viver], que resultou numa critica ao imperia-
pensamento ecol6gico, que produz, em contrapartida, uma ecologia lismo cientifico a serviço do Ocidente - e por meio de raros apoios aos
colonial e, até, uma ecologia da arca de Noé. Mediante o conceito de cidadàos ultramarinos." Atualmente, Serge Latouche é um dos uni-
Antropoceno, Crutzen e outros prometem uma narrativa da Terra que cos a colocar a exigência decolonial no centro das questôes ecologi-
apague a historia colonial, embora seu pais de origem, o Reino dos cas." Apesar dessas raras pontes, o outro colonizado nào ocupou um
Paises Baixos, seja um antigo império colonial e escravocrata que vai lugar importante no seio do movimento ecologista francês, expulso
do Suriname à Indonésia, passando pela Africa do Sul, e que, hoje em corn a "sua" historia para umfora reforçado pela miragem de uma
dia, é constituido por seis territorios ultramarinos no Caribe." dicotomia Norte/ Sul. Disso resulta uma simpatia-sem-vinculo em
Na França continental, os movimentos ecologistas nâo fizeram das que os problemas dos outros de la sào admitidos sem, corn isso, serem
lutas anticoloniais e antirracistas elementos centrais da crise ecol6- reconhecidos seus vinculos materiais, econômicos e politicos corn
gica. Elas ainda sâo vistas como anedoticas, e até impensaveis, no seio o aqui. Portanto, é evidente que a historia das poluiçôes ambientais
da abundante critica da técnica, inclusive da energia nuclear, por Ber- e dos movimentos ecologistas "na França" é pensada sem suas anti-
nard Charbonneau, Jacques Ellul, André Gorz, Ivan Illich, Edgar Morin gas colônias e seus territorios e departamentos ultramarinos," que a
e Günther Anders. Os danos causados por testes nucleares em terras historia do pensamento ecologico é concebida sem nenhum pensa-
colonizadas - como os 210 testes franceses na Argélia e, em seguida, na dor Preto, 24 que a palavra "antirracismo" nâo faz parte do vocabulario
Polinésia, de 1960 a 1996 - sâo minimizados, assim como a pilhagem ecologico" e, sobretudo, que essas ausências niio sejam um problema.
mineradora daAfrica pela Grâ-Bretanha e pela França, a exploraçào dos Corn as expressôes "refugiados climaticos" e "migrantes do meio
subsolos das terras aborigenes na Australia, das Primeiras Naçôes no ambiente", ecologistas parecem ser tomados pelo pânico ao descobri-
Canada, dos Navajos nos Estados Unidos e da mâo de obra Preta para rem o fenômeno migratorio, enquanto fazem tabula rasa das migra-
a obtençâo de urânio na Africa do Sul do apartheid.'' Além de transfor- çôes historicas coloniais e pos-coloniais constitutivas da França vin-
mar a França continental, a energia nuclear francesa apoiou-se no seu das das Antilhas, da Africa, da Asia e da Oceania. Persiste assim uma
império colonial, explorando minas no Gabâo, na Nigéria e em Mada- dificuldade cognitiva e politica em reconhecer que os demais terri-
gascar - pratica estendida pela Françafrique [Françafrica] - , ao mesmo torios e departamentos ultramarinos abrigam 80% da biodiversid~de
tempo que expunha os mineradores ao urânio e ao radônio." Deixar nacional e 97% da sua zona maritima econômica, sem problemauzar
de lado esse fato colonial é mascarar as oposiçôes à industria nuclear o fato de que seus habitantes sào mantidos em situaçâo de pobreza, à
manifestadas pelos movimentos anticoloniais, ta! como a exigência do margem das representaçêies politicas e imagina.rias da_França.'• Para
desarmamento feita pela Conferência de Bandung em 1955, a recusa além das simpatias-sem-vinculo, o encontro dos mov1mentos e pen-

28 Prologo
19

~ ·_ ,-..--...._
samentos ecologistas da França continental com a histéria colonial suas lutas reduzidas ao silêncio tal como a Revoluçào Haitiana. 36 Na
busca pela dignidade, mirando em primeiro Iugar as questôes de
francesa e seus "outros cidadàos"21 ainda nâo aconteceu.
Dessa invisibilizaçào decorre, segundo Kathryn Yusoff, um "Antro- identidade, igualdade. soberania e justiça. os temas ambientaîs sào
18
poceno Branco", cuja geologia apaga as hist6rias dos nào Brancos, um29 percebidos como o prolongamento de uma dominaçâo colonial que
imagindrio ocidental da "crise ecol6gica" que apaga o fato colonial. comprime ainda mais os porôes, acentua o sofrimento dos racializa-
Persiste também uma arrogância colonial por parte dos atuais "colap- dos, dos pobres e das mulheres e prolonga o silêncio colonial.
Dai decorre uma altemativa prejudicial. ou a desconfiança legi-
s6logos", que falam de um novo colapso ao mesmo cempo que ocultam
tima em relaçào ao ambientalismo faz corn que se passe ao largo
os v{nculos corn as colonizaçëes modernas, as escravidôes e os racismes,
30
dos desafios de uma preservaçào ecolôgica da Terra - as lutas eco-
o genocidio dos povos aut6ctones e a destruiçâo de seus meios. Em
logistas seriam, se nào uma "utopia branca",37 no minimo pouco
seu livra Colapso, Jared Diamond descreve as sociedades p6s-coloniais
importantes diante da imensa tarefa de uma conquista das digni-
do Haiti e de Ruanda par meio de um exotismo condescendente que as
dades - ou entào, paradoxalmente, em seus valiosos apelos por uma
situa num longinquo fora-do-mundo, sem dar voz a nenhum cientista
sensibilidade ecol6gica, pensadores pôs-coloniais tais como Dipesh
ou pensador desses paises. Essas pessoas "mais african[a}s em aparên-
Chakrabarty e Souleymane Bachir Diagne se desfazem de seu apa-
cia",JJ segundo Diamond, sâo reduzidas ao pape! de vitimas sem saber.
rato te6rico para adotar os mesmos termes, escalas e historicidades
A constituiçào colonial do mundo e as desigualdades resultantes da
ambientalistas de ·sujeito global", "Terra total" ou "humanidade
produçào cientifica sâo silenciadas..JJ A pretensâo de universalidade do
Antropoceno seria suficiente para absolver as crfticas do universalismo em geral". 38 Oculta-se a durabilidade das violências e toxicidades
discriminat6rio do Ocidente. 33 Entretanto, seria possivel a um empreen- psiquicas, sociopoliticas e ecossistêmicas das "ruinas do império".39
dimento global que. do século xv ao XX, se baseou na exploraçâo de Subestima-se, da mesma forma, a ecologia colonial das ontologias
humanos e nào humanos, na dizimaçâo de milhôes de indigenas das radais, que sempre associa racializados e colonizados aos espa-
Américas, da Africa, da Asia e da Oceania, no desenraizamento forçado ças psiquicos, fisicos e sociopoliticos que sào os porôes do mundo,
de milhôes de africanos e em escravidôes multisseculares nâo ter hoje quer se trate de espaços da nào representaçào juridica e politica (o
nenhuma relaçào material ou filosôfica corn o pensamento ecolôgico? escravizado), de espaços do nào ser {o Negro), de espaças da ausên-
A crise ecolôgica e o Antropoceno seriam as novas expressôes do "fardo cia de logos, de historia e de cultura (o selvagem), de espaços do nâo
do homem Branco"l-4 que salva "a Humanidade" dele mesmo? Fratura. humano (o animal), do inumano (o monstro, a besta) e do nào vivo
Por outra Iado, os racializados e os subalternos que se deparam (campos e necr6poles), quer se traie de lugares geogràficos (Africa,
corn as reiteradas recusas do mundo sentem diariamente essa dupla Américas, Asia, Oceania), de zonas de hàbitat (guetos, periferias) ou
fratura tanto em sua carne quanta em sua hist6ria. o "véu" de W. E. B. de ecossistemas submetidos à produçào capitalista (navios negrei-
Du Bois prolongado pela "dupla consciência da modernidade" de Paul ros, plantaçôes tropicais, usinas, minas, prisôes). Em contrapartida,
Gilroy, os "abaixo da modernidade" de Enrique Dusse), as "miscaras a importância da preocupaçào corn o meio ecol6gico e corn os nào
Brancas" sobre as peles Negras de Frantz Fanon ou as peles Vermelhas humanos nas buscas (p6s-)coloniais por igualdade e por dignidade
de Glen Coulthard sâo apenas maneiras diferentes de descrever essas permanece minimizada. Fratura.
violências.35 De 1492 até hoje, é preciso ter em mente as incomensu- Eis a dupla fratura. Ou se coloca em questâo a fratura ambiental
râveis resistências e lutas por parte dos colonizados e escravizados desde que se mantenha o silêncio da fratura colonial da modernidade,
homens e mulheres, para exigir um tratamento humano, exercer ro: de suas escravidôes miséginas e de seus racismos, ou se desconstr6i
fissôes, preservar suas familias, participar da vida pûblica prat~ a fratura colonial sob a condiçao de abandonar as questêies ecol6gi-
suas artes, suas Hnguas, rezar para seus deuses e se sentar mesma icar cas. Entretanto, ao deixar de lado a questâo colonial, os ecologistas
mesa do mundo. No entanto, os que carregam o peso do mundo veem negligenciam o fato de que as colonizaçôes histéricas, hem como o

30 Pr6logo 31
racismo estrutural contemporâneo, estào no centra das maneiras mento de conservaçâo de florestas," a gênese do conceito de biodiver-
destrutivas de habitar a Terra. Ao deixar de lado a questâo ambien- sidade," assim como silencia as outras formas de saberes do meio e do
tal e animal, os movimentos antirracistas e p6s-coloniais passam ao corpo ja presentes.43 E, principalmente, passa-se ao largo das criticas
largo das formas de violência que exacerbam a dominaçâo de pessoas ecologistas caribenhas que vào "além da areia e do sol•, reunindo jus-
escravizadas, colonizados e mulheres racializadas. Essa dupla fratura tiça social, antirracismo e preservaçào dos ecossistemas."'
tem coma consequência estabelecer a arca de Noé coma metafora Eu, a contrario, faço do mundo caribenho um palco de pensamento
politica adequada da Terra e do mundo diante da tempestade ecol6- da ecologia. Pensar a ecologia a partir do mundo caribenho é a pro-
gica, trancando no fundo do porao da modernidade os gritos de apelo posta de um deslocamento epistêmico dos pensamentos do mundo e da
Terra no coraçao da ecologia, ou seja, uma mudança de cena das produ-
par um mundo.
çêies de discursos e de saberes. Em vez do palco de um homem Branco
livre, corn formaçào superior e de classe abastada, que passeia pelos
o .,._avio .,._e51reiro ou o porêio da w,.oder.,..idade campos da Ge6rgia, coma John Muir, pela floresta de Montmorency,
coma Jean-Jacques Rousseau, ou em torno do lago Walden, coma
Para cuidar dessa dupla fratura, minha segunda proposta faz do Henry David Thoreau, proponho adotar outra cena que se desenrola-
mundo caribenho o palco de pensamento da ecologia. Par que o ria historicamente no mesmo momento: a das violências infligidas a
Caribe? Em primeiro lugar, porque foi la que o Velho Mundo e o Novo homens e mulheres escravizados, dominados social e politicamente
Mundo entraram em contato pela primeira vez, tentando fazer da no porâo do navio negreiro. As relaçêies de poder Norte/ Sul, os racis-
Terra e do mundo uma mesma e tinica totalidade. Verdadeiro olho mos, as escravidêies hist6ricas e modernas, os rancores, os medos e as
do ciclone da modernidade, o Caribe é esse centra em que a calma- esperanças constitutivos das experiências do mundo sâo colocados no
ria ensolarada foi erroneamente confundida corn o paraiso, ponta coraçâo do navio a partir do qual a tempestade ecol6gica é apreendida.
fixa de uma aceleraçâo global que suga as aldeias africanas, associe- No seio de uma compreensâo binâria da modernidade,45 que opêie
dades amerindias e as velas europeias. Esse "mundo caribenho" con- natureza e cultura, colonizadores e indigenas, essa proposta eviden-
centra, entào, as experiências do mundo a partir das historias calo- cia as experiências de terceiros termos da modernidade. Refiro-me aos
niais e escravagistas, a partir dos "abaixo" da modernidade que nào que foram desconsiderados quando a defesa dos amerindios contra os
se limitam às fronteiras geogrâficas da bacia caribenha. Esse gesto é conquistadores espanh6is pela frei Bartolomeu de Las Casas, no século
uma resposta à ausência de tais experiências caribenhas nos discur- XVI, célebre na controvérsia de Valladolid em 1550, foi acompanhada de
sos ecologistas que pretendem, ainda assim, questionar essa mesma repetidas sugestêies de "se abastecer· na Africa e desenvolver o comér-
modernidade. Se pesquisadores se interessaram pelas consequências cio triangular... Nem modernos nem aut6ctones, mais de 12,5 milhêies
ecol6gicas da colonizaçâo no Caribe e na América do Norte, pelas con- de africanos foram arrancados de suas terras do século xv ao XIX. Cen-
sequências do aquecimento global e pelas politicas ambientais con- tenas de milhêies de pessoas foram escravizadas, mantidas durante
temporâneas, o Caribe aparece mais frequentemente coma o lugar de séculos numa relaçâo fora-do-solo nas Américas.47 Além da condiçâo
experimentaçêies de conceitos vindos de fora.•• Mantém-se O olhar social de escravizadas coloniais, essas pessoas foram consideradas
colonial de um erudito que, partindo do Norte, embarca levando na "Negros",• seres-objetos de um racismo politico e cientifico que os con-
mala seus conceitos para fazer experiências num Caribe nào erudito
e retorna corn os frutos de um nova saber, capaz, em contrapanid
de prescrever o caminho a seguir. Tal abordagem oculta as condiçô a, O termo •Nègre· (assim coma seu substantiva feminino "Négresse,. ) tem
conotaçào pejorativa em francês e esteve historicamente associado às pes-
imperiais que permitiram, no Caribe e nos demais espaças coloniais es0 soas negras escravizadas pelas impérios coloniais. Origina-se da palavra
desenvolvimento de ciências coma a botânica, o surgimento do~ '
•uov,. "Negro•, usada em português de Portugal e em espanhol e derivada do adje-

32 Prologo 31
duz ora a uma imanência inextricâvel corn a natureza, ora a uma irres- A ecologia decolonial que proponho se destaca dessa corrente pelo
ponsabilidade patol6gica insuperâvel. Entretanto, os ditos Negros esta- foco central colocado sobre as experiências do terceiro termo da moder-
beleceram, eles também, relaçôes corn a natureza, ecûrnenos, maneiras nidade e do navio negreiro, as experiências fundamentais no Caribe
de se reportar aos nao humanos e de representar o mundo. Parece que desses Pretos africanos transportados, reduzidos à condiçâo da escravi-
essas concepçôes foram marcadas pelas escravidôes, pela experiência dâo..so Tal gesto vai de encontre ao da filosofia africana que faz ressurgir
do deslocamento, por essa discriminaçào politica e social na Africa, na pensamentos, hist6rias e filosofias dos africanos e dos afro-america-
48
Europa e nas Américas durante muitos séculos. Sim, existe também nos, por exemplo os trabalhos de Valentin Mudimbe, Cheikh Anta Diop,
uma ecologia dos deslocados pelos trâficos europeus. uma ecologia que Cedric Robinson, Sylvia Wynter, Souleymane Bachir Diagne, Nadia
mantém continuidades corn as comunidades indigenas africana e ame- Yala Kisukidi, Lewis Gordon e Norman Ajari.s1 Essa ecologia decolonial
rindia, mas nâo se reduz nem a uma nem a outra. Uma ecologia que se visa restaurar a dignidade dos Pretos na esteira dos combates de Aimé
forjou no porào de uma modemidade: uma ecologia decolonial. Césaire e de Maryse Condé, de Toussaint Louverture e de Rosa Parks,
A ecologia decolonial articula a confrontaçâo das questôes ecolé>- de Harriet Tubman e de Malcolm X, de Frantz Fanon e de Christiane
gicas contemporâneas corn a emancipaçâo da fratura colonial, corn a Taubira. Por fim, pensar a partir do porâo do navio negreiro é também
safda do pordo do navio negreiro. A urgência de uma luta contra o aque- uma questào de gênera. A separaçào frequente, no interior do porâo,
cimento global e a poluiçâo da Terra insere-se na urgência das lutas que coloca homens de um lado e mulheres e crianças de outro ressalta
politicas, epistêmicas, cientificas, juridicas e filosé>ficas, visando desfa- as diferenças de opressâo nesse terceiro termo. A ecologia decolonial
zer as estruturas coloniais do viver-junto e das maneiras de habitar a une-se perfeitamente às criticas feministas e, em particular, afrofemi-
Terra que mantêm as dominaçôes de pessoas racializadas, particular- nistas, que mostram os entrelaçamentos das dominaçôes de gênero nas
mente das mulheres, no porâo da modernidade. Essa ecologia deco- constituiçôes racialistas dos Estados-naçào, tais como as de Elsa Dorlin,
Kimberlé Crenshaw, Eleni Varikas, bell hooks e Angela Davis.~
lonial inspira-se no pensamento decolonial iniciado por um grupo de
Nâo se trata de uma ecologia que se aplicaria aos racializados e aos
pesquisadores e militantes da América Latina, tais corne Anibal Qui-
jano, Arturo Escobar, Catherine Walsh e Walter Mignolo, que tra6alham territ6rios colonizados no passade, uma prateleira a mais em uma
para desfazer uma compreensào do poder, dos saberes e doser herdada estante j:i constituida, coma alguns propôem. 53 A ecologia decolo-
da modernidade colonial e de suas categorias radais. Eles insistem nial abala o enquadramento ambientalista de compreensào da crise
ecologista ao incluir jâ de inicio o confronta corn a fratura colonial
em outras pensamentos do mundo a partir desses "espaços que foram
reduzidos ao silêncio, recalcados, demonizados, desvalorizados pelo do mundo e apontar outra gênese da questào ecol6gica. Nesse sen-
canto triunfante e autocomplacente da epistemologia, da politica e da tido, acrescento as avanças das correntes da justiça ambientalS4 e da
49
ecocritica p6s-colonial.55 Os conceitos de .. racismo ambiental", "colo-
economia modernas, assim coma de suas dissensôes internas".
nialismo ambiental", "imperialismo ecolé>gico" e "orientalisme verde"
descrevem como as poluiçôes e degradaçôes ambientais reforçam,
tivo latino ..niger" [negro, escuro). Apesarde. na décadade 1930, o moviment tanto quanto certas politicas de preservaçâo, as dominaçôes exer-
Négritude ter proposto seu uso de uma forma positiva, ele permaneceu as,:. cidas sobre os pobres e os racializados.56 A critica da destruiçào dos
ciado à desumanizaçiio de pessoas Negras. marcando uma diferença onto-
lôgica e inferiorizante, tanto como o termo "Nigger", em inglês, corn O qu 1 ecossistemas do planeta estâ, pois, intimamente liga?a às _c~tic'.'" das
compartilha as origens mencionadas. Em francês, "Noir" é a forma correm a dominaçôes coloniais e p6s-coloniais, assim como as e~1genc~~s de
nâo depreciativa de se referir a pessoas negras. Em português brasileiro ee igualdade. É essa luta ecol6gico-politica que o romanc1sta _hamano
diferenciaçâo nâo é tâo evidente como nos idiomas citados e apresema ;: :. Jacques Roumain ilustra em Senhores do orvalho. obra pubhcad~ em
çôes de uso: porém, em dialogo com o autor. de modo a preservar a distin1-
1944-" Em 1950, Aimé Césaire denunciava os dan~s..do colomahsmo
focada por ele, e Ievando em conta a etimologia, optamos pelo uso de "Ne " .
para traduzir "Nègre" e de "Preto" para traduzir "Noir". IN. T.l gro sobre os colonizados e sobre as "economias natura1s :

35
Prologo
34
Lançam-me em cheio aos olhos toneladas de algodâo ou de cacau Quicuio do Quênia, prâticas reconhecidas atualmente por seu pape!
exportado, hectares de oliveiras ou de vinhas plantadas. Mas eu falo protetor da biodiversidade.64 Nesse ponte, a ecologia decolonial inspi-
de economias naturais, de economias harmoniosas e vi.iveis, de econo· ra-se num conjunto de movimentos ecologistas no Caribe. Da Assau-
mias adaptadas à condiçào do homem indigena, desorganizadas, de pamar (Association pour la Sauvegarde du Patromoine Martiniquais],
culturas de subsistência destruidas, de subalimentaçâo instalada, de na Martinica, à Casa Pueblo, em Porto Rico, passando pelo Mouve-
desenvolvimento agricola orientado unicamente para o beneficio das ment Paysan Papaye [Movimento Camponês Papaia), no Haiti, pelas
58
metr6poles, de rapinas de produtos, de rapinas de matérias-primas. lutas do povo Saramaka, no Suriname, a fim de proteger sua floresta,
e pelo movimento feminista e ecologista afrocolombiano conduzido
Em 1961, Fanon jâ associava o processo de decolonizaçâo politica a por Francia Mârquez, um conjunto de pessoas articula a preservaçâo
uma reformulaçâo das maneiras de habitar a Terra, a uma nova inves- do meio ambiente à busca de um mundo livre das desigualdades (p6s-)
tigaçào da relaçào com o meio, abrindo as portas para outras formas coloniais e das relaçôes de poder legadas pela escravidào. Foi nestes
termos que Mârquez aceitou o Prêmio Ambiental Goldman,em 2018:
de energia, inclusive solar:

o regime colonial cristalizou circuitos, e a naçâo é obrigada, sob pena Faço parte de um processo, de uma histOria de luta e de resistência
de sofrer uma catâstrofe, a mantê-los. Talvez conviesse recomeçar que começou quando meus ancestrais foram trazidos à Colômbia em
tudo, alterar a narureza das exportaçôes e nâo apenas o seu destino, condiçào de escravizados; eu faço parte de uma luta contra o racismo
reinterrogar o solo. o subsolo, os rios e - porque nâo? - o soJ.s
9
estrutural, de uma luta continua pela liberdade e pela justiça, parte
dessa gente que mantém a esperança de um viver melhor, pane de
Em resposta a um capitalismo global e a acordos p6s-coloniais que todas essas mulheres que recorrem ao amor materno para preservar
mantêm, pela coaçâo militar e financeira, essas maneiras destrutivas suas terras como terras de vida, que elevam suas vozes para deter a
de habitar a Terra e que perpetuam a dominaçâo dos ex-colonizados destruiçào dos rios, das florestas e das zonas Umidas [... ].M
e dos racializados, o soci6logo afro-americano Nathan Hare declarou
em 1970 que a "verdadeira soluçâo para a crise ambiental é a decolo- A ecologia decolonial é umgrito multisseculardejustiça e de ape/o por
nizaçâo dos Pretos".60 Do mesmo modo, Thomas Sankara denunciou ummundo.
em 1986, em Paris, "a pilhagem colonial [que] dizimou nossas flo-
restaS sem o mener pensamento de reparaçâo para o nosso futuro~61
Sankara relembrou, entâo, que "essa luta pela ârvore e pela flores~a i.\avio-Mui.\do:
UIV\
é, sobretudo, uma luta anti-imperialista. Afinal. o imperialismo é 0 o Mui.\do coMo korizoi.\te da ecolo51ia
62
incendiârio de nossas florestas e de nossas savanas".
o rnesrno foi afirrnado pelos participantes da Primeira Cùpul A terceira proposta consiste ern fazer do mundo o ponto de partida
Nacional de Liderança Arnbiental dos Povos Racializados [First Nali:- e o horizonte da ecologia. Nesse sentido, sigo as intuiçôes de Han-
nal People of Color Environrnental Leadership Surnmit], em 1991, e nah Arendt, André Gorz e Étienne Tassin, para os quais a natureza,
Washington, que associava a proteçâo da Mâe Terra à exigência d m sua defesa e a crise ecol6gica envolvem, acima de tudo, o mundo.6b
lonial e antirracista.63 A bi6loga queniana Wangari Maathai, que,:::: O "rnundo" deve-se distinguir, agui, da "Terra" ou do "globo" corn os
beu o Prêrnio Nobel da Paz ern 2004 por seu engajarnento ecologi quais ele é muito frequenternente confundido. O rnundo seria, desde
e ferninista corn o Movirnento do Cinturâo Verde, lernbra as re,;;ta o inicio, dado corno prova da solidariedade fisica do globo e dos ecos-
inlligidas à Terra pelas ernpresas coloniais sustentadas par discipui" sistemas da Terra. Ora, ao contrario da Terra, o rnundo nào é algo evi-
cristâos, que desvalorizaram as prâticas de povos indigenas, como os dente. Nossa existência na Terra seria bastante desolada se nào seins-

36 Prcilogo 37

~"'\..._
crevesse também no seio de mllltiplas relaçôes sociais e politicas corn hist6ria ambiental global12 sofrem paradoxalmente dos mesmos males
outras, humanos e nâo humanos. Se a Terra e seus equilibrios ecossis· que denunciam: fazem da esfera material das forças fisico-econômicas
têmicos constituem as condiçôes de possibilidade de vidas coletivas, o que afetam a Terra o foco principal de compreensào do mundo. Certa·
mundo em questào é de natureza diferente, esclarece Arendt: mente, tal compreensào global da crise ecol6gica em termos de pegadas
terrestres, de ..tracas ecol6gicas desiguais"n ou de "limites planetârios"74
{. .. ] a mediaçào fisica e mundana, juntamente com os seus interesses, revela as desigualdades entre os que consomem o equivalente a três ou
é revestida e, por assim dizer, sobrelevada por outra mediaçào intei· quatro planetas e os que vivem corn praticamente nada. No entanto, a
ramente diferente, constituida de atos e palavras, cuja origem se deve potência das palavras e do agir politico é posta de Iado em beneficio do
unicamente ao fato de que os homens agem e falam diretamente uns que se pode mensurar. Resta o que nào se pode quantificar: os sofrimen-
tos, as esperanças, as lutas, as vitôrias, as recusas e os desejos.
corn os outros.67
Essa proposta junta-se à insistência dos antrop6logos e dos soci6lo·
Essa mediaçào constituida de atos e palavras nào é redutivel a suas gos nas outras formas de fazer-mundo dos povos originârios que nào
cenas materiais nem aos circulas intimistas das comunidades de perten· compartilham a fratura ambiental modema.1s Entretanto, minha pro-
cimenta ou às tracas econômicas dos mercados. O desafio para a expe· posta de fazer do mundo o horizonte da ecologia nào traduz a ideia da
riência coletiva do mundo das boisas de valores e outras arenas transa· adoçào de certas técnicas de relaçôes corn o meio, corn os ecossistemas,
cionais das finanças e economias globais é muito diferente daquele das corn os espfritos e corn os seres humanos. Partindo da pluralidade cons-
manifestaçôes guardiàs das democracias ou daquele das arenas parla· titutiva das ex.istências humanas e nào humanas na Terra, das diferen-
mentares. Assim. aglobalizaçào e a mundializaçào correspondem a dois tes culturas, tomar o mundo coma objeto da ecologia é trazer de volta
processos diferentes, e até opostos. O primeiro é a extensào totalizante, para o centra a questào da composiçâo politica entre essas pluralidades
a repetiçào padronizada em escala global de uma economia desigual e, portante, de um agir conjunto. Essa abordagem politica do mundo,
destruidora das culturas, dos mundos sociais e do meio ambiente. A no sentido grego de p6lis, tira a ecologia damera questào do oikos (eco-
segunda é a abertura para o agir politico de um viver-junto, o horizonte nômica ou ambiental), pois, ainda que a Terra esteja salpicada de mora-
infinito de encontros e de partilha.68 A dificuldade revela-se quando as dias, de espaças férteis de vida e de tracas corn ela, a Terra nào éa nossa
cenas pllblicas em que se imaginam as leis e as maneiras de viver junto casa. Se esses ecllmenos sào fundamentais, nào se pode reduzir a Terra
sào usurpadas pelas interesses capitalistas de um mercado liberal, espe· a um s6 oikos global. Isso é trazer a Terra de volta apenas ao âmbito de
cialmente por lobbies. Acrise ecol6gica também é a manifestaçào do que uma questào de propriedade (de quem é a casa?) - a exemplo da corrida
Gorz chama de "colonizaçâo do mundo vivido""9 e do que Félix Guattari imperial pela apropriaçào de "territ6rios" e de "recursos" - e de poder
denominava, em sua ecosofia, de "Capitalismo Mundial Integrado? ' {quem a comanda?), como na Grécia antiga, onde o homem-cidadào
ou seja, os processos pelas quais os interesses financeiros de algumas subjuga homens, mulheres e crianças da casa e rejeita os estrangeiros.
empresas e grupos, coma Monsanto-Bayer ou Total, ditam ao resta do É recair no pensamento violenta do territ6rio e da identidade-raiz criti-
mundo as maneiras violentas e desiguais de habitar a Terra. cado por Édouard Glissant,76 fazenda da Terra um oikos coloniale escra-
Provavelmente a pregnância dos aspectos concretos das degradaçôes vocrata e conservando o modela da ecologia colonial.
ecolOgicas impulsionou certas abordagens te6ricas a se concentrarem A Terra é a matriz do mundo. Nessa perspectiva, a ecologia é uma
unicamente nas dimensôes econômicas e materiais da crise ecol6gica _ confrontaçào corn a pluralidade, corn os outras ~lém ~e mim, v~sando
a natureza sendo incluîda na matéria - e a man ter a confusào entre globo à instauraçào de um mundo comum. É a partir da mstauraçao c~s-
e mundo. Assim, as brilhantes ana.lises da "ecologia-mundo" de Jason mopolîtica de um mundo entre os humanos, juntame~te corn os na~
Moore,11 inspiradas por Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein, as dos humanos, que a Terra pode se tornar nào apenas aqu1l0 ~ue se pa~~-
ecomarxistas em relaçâo à political ecology (ecologia politica] ou as da lha mas também aquilo que se tem "em comum, sem possu1r de fato .

Pr6logo 39
38
r Esse horizonte do mundo proposto por Arendt é enriquecido em dois
sentidos diferentes que nào eram preocupaçôes suas. Ele é criouli-
zado e atravessado pelo reconhecimento das experiências coloniais
e escravagistas caribenhas e é prolongado pelo reconhecimento poli-
alca"çar o ce"tro da tew.pestade

Essas três propostas - pensar a tempestade ecol6gica à luz da dupla


fratura colonial e ambiental (a arca de Noé), a partir do porào da
tico da presença dos nâo humanos, dando lugar a um mundo entre modernidade (o navio negreiro) e rumo ao horizonte de um mundo (o
humanos e corn nâo humanos. Se a natureza e a Terra nâo sào idênti- navio-mundo) - permitem-me aceitar o convite preliminar de Aimé
cas ao mundo, agui o mundo inclui a namreza, a Terra, os nào huma- Césaire para "alcançar o centro da tempestade". Alcançar o centra da
nos e os humanos ao mesmo tempo que reconhece diferentes cosmo- tempestade nào é a busca de uma calmaria temporâria para os males
gonias, qualidades e maneiras de estar em relaçao uns corn os outres. do mundo. No olho do ciclone, se prestamos atençào, podemos ouvir
Pensar a ecologia a partir do mundo nâo pode ter como origem um os berros dos deixados-para-trâs da hecatombe. Alcançar o centre da
local fora-do-solo, fora-do-mundo, fora-do-planeta nem se enunciar tempestade é um convite para confrontar as causas das aceleraçôes
tendo por base um ser sem corpo, sem cor, sem came e sem hist6- destrutivas da modernidade. Trata-se de navegar através de seus ven-
ria. Se a hist6ria da Terra nâo se reduz à modemidade ocidental e à tes coloniais, de seus céus mis6ginos, de suas chuvas racistas e de
sua sombra colonial - a Asia e o Oriente Médio também conheceram suas ondulaçôes desiguais a fim de destruir as maneiras de habitar a
seus impérios e colonialismos - , é levando em conta essa sombra que Terra que. corn violência, conduzem o navio-mundo rumo a uma rota
desejo contribuir para o pensamento da Terra e do mundo corn este injusta. Para além da dupla fratura, proponho tecer pacientemente o
ensaio. Meu ponto de partida foi o Caribe e suas mU.ltiplas experiên- fio de outre pensamento da ecologia e do mundo, produzindo neces-
cias, corn ênfase particular na Martinica, ilha onde nasci. Falo em pri- sariamente outres conceitos. Para tal travessia, estou acompanhado
meiro lugar em meu nome, a partir do meu corpo e das experiências pela filosofia afrocaribenha descrita par Paget Henry, ancorada nas
da minha terra natal. Eu. Homem Preto martinicano, vivi os dezoito prâticas e nos discursos, nas hist6rias e nas poesias. nas literaturas e
primeiros anos da minha vida na comuna rural de Rivière-Pilote nas obras de arte do mundo caribenho.'°
e na cidade de Schœlcher e os dezesseis anos seguintes na Europa, A Parte I, "A tempestade modema·, propôe outra compreensâo his-
na Africa e na Oceania. Também, como a escritora caribenha Sylvia t6rica da colonizaçào e da escravidào no Caribe, mantendo juntas suas
Wynter nos convida a fazer, niio falarei corn base nas categorias configuraçoes politicas e ecol6gicas, corn um foco particular nas expe-
usuais de "Homem" ou "homem". Esse vocébulo traduz sobretudo a riências francesas. Veremos coma a colonizaçiio europeia das Américas
super-representaçiio do homem Branco de classe abastada que deseja produziu uma maneira violenta de habitar a Terra, que recusa a possi-
78
usurpar o humano e sua pluralidade constituinte. Ao pretender bilidade de um mundo com o outro niio europeu: urn habitar colonial.
designar ao mesmo tempo o macho da espécie humana e a espécie Além de causar o genocidio dos povos indigenas e a destruiçiio de ecos-
inteira. essa paJavra perpetua tanto a invisibilizaçâo das mulheres, de sistemas, esse habitar colonial transfonnou as terras em quebra-cabe-
seus lugares e de suas açôes como os abusas cometidos contra elas, o ças de engenhos e de plantations que caracterizam essa era geol6gica, o
"Homem" nunca agiu nem habitou a Terra, sâo sempre humanos, pes- Plantationoceno, provocando perdas de relaçôes matriciais corn a Terra:
soas, grupos, conjuntos hibridos humanos/niio humanos que agem, matricidios. o recurso ao tr3fico negreiro transatlântico e à escravidào
que lutam e que se encontram na Terra.79 Fazer do mundo o ponto de colonial. circunscrevendo seres humanos e niio humanos ao poriio do
partida e o horizonte da ecologia é essencialmente partir do seguinte mundo, os "Negros", permite também designar essa era geol6gica de
questionamento para abordar a crise ecol6gica: como fazer-mundo Negroceno. A partir dessas historias, as catâstrofes, tais como os ciclo-
entre os humanos, com os nâo humanos, na Terra? Como construir um nes regulares que drvastam as costas americanas._ ape~as repete".' essas
navio-mundo diante da tempestade?Tais siio as questôes que guiam a fraturas do habitar colonial e prolongam a escrav1zaçao dos d~mmados,
ecologia-do-mundo. fazendo da tempestade ecol6gica um verdadeiro cic/one colonial.

40 Prologo 41

Ailit'-
A Parte Il, "A arca de Noé", revela como o ambientalismo e a abor- Par fim, a Parte IV, · um navia-munda", ultrapassa o impasse da
dagem tecnicista das questôes ecol6gicas induzem um reforço das dupla fratura da modernidade que opôe as recusas e as investigaçôes
rupturas coloniais legadas pela colonizaçào, por meio dos exemplos do mundo a fim de propor pistas parafazer-mundo. Nem arcade Noé
das politicas publicas no Haiti relativas ao reflorestamento de um nem navio negreiro. proponho pensar a ecologia à luz de um navio-
parque, de uma reserva da ilha Vieques, na costa de Porto Rico, e as -mundo que faz do encontro com o outro seu horizonte. Esses encon-
consequências de uma contaminaçâo na Martinica e ern Guadalupe tros permitem, entào, tomar corpo no mundo e restabelecer uma rela-
por um pesticida t6xico chamado clordecona. De maneira contra- çào matricial corn a Terra. Eles permitem também forjar alianças
producente, tal abordagem toma possivel uma ecologia que recusa interespécies em que a causa animale a exigência de emancipaçao dos
o mundo, reforça as discriminaçôes coloniais e as desigualdades Negros revelam-se problemas em comum. Esses encontros sé se sus-
tentam corn a condiç3.o de instaurar um convés da justiça que exceda
sociais: uma ecologia colonial.
A Parte III, "O navio negreiro", mostra o outro carninho seguido por a fratura ambiental e colonial, dando conta politica e juridicamente
aqueles que associam a denuncia das degradaçôes ecolégicas à critica dos nào humanos, bem como <las buscas por justiça de colonizados e
decolonial. Aqui, o navio negreiro nào é mais somente uma embar- escravizados. Esse convés da justiça abre o horizonte de um mundo:
uma ecologia-do-mundo,
caçâo histôrica, e sim a cena imaginâria a partir da quai se lançam -
tendo em vista uma margem, tendo como perspectiva um mundo à As leitoras e leitores identificarào uma afinidade corn a figura do
semelhança da ecologia dos escravizadosfugitivos - os quilombolas.' navio e, particularmente, coma do navio negreiro coma metâfora poli-
Outra leitura dos escritos ecologistas de Thoreau e das açôes de sua tica do mundo, Cada capitulo é precedido por nomes de navios negrei-
màe e1de suas irmâs indica que a tarefa decolonial nâo é um problema ros reais, por seus trajetos histéricos e seus contelldos, que narro corn
exclusive dos colonizados, dos escravizados e dos racializados, reme- uma liberdade de prosa.•• Tal escolha pretende dar uma sensibili-
tendo também à responsabilidade dos livres, homens e mulheres, dade literària ao deslocamento exigido por um pensamento a partir
revelando um aquilombamento civil. Esses dois exemplos colocam do porào do mundo, ao mesmo tempo que revela o reverso de uma
em cena aqueles corn os quais a ecologia estâ intimamente ligada modernidade que se ornamenta de ideais luminosos corn palavras
numa investigaçào de mundo, numa libertaçào de sua condiçào de como Justiça e Esperança, mas que espalha a injustiça e o desespero.
escravizados coloniais: uma ecologia decolonial. Ela permite também mostrar que o navio negreiro narra uma historia
do mundo e da Terra. O uso dessa metàfora é, sobretudo, o reconheci-
Foi feita agui a escolha conceitual e filos6fica de traduzir os termos "mar•
mento de uma capacidade dos navios de concentrar o mundo em seu
ron" e seus derivados, tais como " marr onage", por "quilombola", "aquilom• seio. Da Niiia de Crist6vào Colombo aos porta-contêineres, das trai-
bamento" etc. Ainda que em cada territ6rio as resistências negras à escra- neiras aos navios de guerra, dos baleeiros aos petroleiros, dos navios
vizaçâo colonial tenham apresentado caracterîsticas pr6prias, a separaçâo negreiros aos navios dos migrantes naufragando no Mediterrâneo, ~or
semântica dos princîpios da marronagem e do aquilombamento faz pane,em suas funçôes, seus ttajetos e suas cargas, os navios revelam ":' r_"laçoe_s
minha opiniâo, da perpetuaçâo de uma mirada colonial, ou uma colonizaçâo
do conhecimento, que enfatiza mais as diferenças do que as caracteris1icas do mundo. Empregar a metâfora do navio anuncia a amb1çao de ir
comuns a esses fenômenos. Lembremos que todas as naçôes europeiascolo• além da dupla fratura por meio de uma escrita sutural, passando de
nialistas concordaram coletivamente em desumanizar e escravizar pessoas um lado ao outro, a fim de costurar as presenças e os pensamentos e
Negras nas Américas. Nâo à toa, todas essas naç6es - França, Espanha, Jn~a- estender as velas de um navio-mundo diante da tempestade.
terra, Portugal - também se sentiram ameaçadas pela Revoluçâo Haitiana.
Por esse motivo, é importante ver o aquilombamento. tenha ele ocorrido no
Brasil, na Martinica, nos Estados Unidos ou na Jamaica, coma a corporifi.
caçâo do principio de oposiçâo à escravidâo em uma perspectiva coletivae
transnacional. !Nota do autor à ediçâo brasileira.]

42 Pnilogo 43

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