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Instituto Missionário Palavra da Vida

Formação Teológica Avançada


com Habilitação em Ministério Pastoral e Missões Transculturais

André de Oliveira Pinto

O uso da Comunicação Transcultural nas Escrituras


Uma análise do termo logos em João 1:1-18

Benevides
2019
Instituto Missionário Palavra da Vida
Formação Teológica Avançada
com Habilitação em Ministério Pastoral e Missões Transculturais

André de Oliveira Pinto

O uso da Comunicação Transcultural nas Escrituras


Uma análise do termo logos em João 1:1-18

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Prof.


Marcos Ribeiro em cumprimento parcial do curso de
Formação Teológica Avançada com Habilitação em
Ministério Pastoral e Missões Transculturais.

Benevides
2019
RESUMO

O Evangelho precisa ser transmitido fielmente em todos os lugares da terra e isso deve ser feito
por meio de uma comunicação transcultural adequada, que é culturalmente compreensível e
relevante. Os autores bíblicos fizeram uso de elementos culturais para deixar o Evangelho ainda
mais claro para os leitores. A proposta deste trabalho é apresentar um exemplo de comunicação
transcultural encontrada nas Escrituras. Será analisado o caso onde o apóstolo João utilizou o
termo λογος na passagem de João 1:1-18. Nesta passagem, o autor, movido pelo Espírito Santo,
utilizou-se de um termo com significados no pensamento judaico e grego da época para
apresentar a pessoa de Jesus. A metodologia se baseia em pesquisa nos registros bibliográficos
e documentais que tratam da utilização do termo logos na filosofia grega e no pensamento
judaico e, posteriormente, o conceito que é dado na doutrina cristã com base em João. Alguns
dos resultados desse estudo foram de valorizar a análise cultural do povo alvo, de descobrir e
aplicar estratégias e de encontrar os elementos culturais da audiência que torne o entendimento
mais fácil. Portanto, é tarefa da igreja investir na comunicação transcultural do Evangelho de
forma mais eficiente e transformadora. Que este estudo sirva como um incentivo para os que
são interessados e chamados por Deus para comunicar o evangelho para pessoas de outras
culturas, e para todos os cristãos que possuem o desejo profundo de participar da obra
missionária de Deus no mundo.

Palavras-chave: comunicação transcultural, logos, contextualização, Evangelho, apóstolo João.


ABSTRACT

The Gospel needs to be faithfully transmitted everywhere on earth, and this must be done
through proper cross-cultural communication that is culturally understandable and relevant. The
biblical authors made use of cultural elements to make the Gospel even clearer to readers. The
purpose of this paper is to present an example of cross-cultural communication found in The
Scriptures. It will be analyzed the case where the apostle John used the term λογος in the
passage of John 1: 1-18. In this passage, the author, moved by the Holy Spirit, used a term with
meaning in Jewish and Greek thought at the time to present the person of Jesus. The
methodology is based on research in the bibliographic and documentary records that deal with
the use of the term logos in Greek philosophy and Jewish thought and, later, the concept that is
given in John-based Christian doctrine. Some of the results of this study were of valorization.
cultural analysis of the target people, finding and applying strategies, and finding the cultural
elements of the audience that make understanding easier. Therefore, it is the church's task to
invest in the cross-cultural communication of the Gospel in a more efficient and transformative
way. May this study serve as an incentive for those who are interested and called by God to
communicate the gospel to people of other cultures, and to all Christians who have a deep desire
to participate in God's missionary work in the world.

Keywords: cross-cultural communication, logos, contextualization, Gospel, apostle John.


André de Oliveira Pinto

O uso da Comunicação Transcultural nas Escrituras


Uma análise do termo logos em João 1:1-18

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência parcial para obtenção da


Formação Teológica Avançada com Habilitação em Ministério Pastoral e Missões
Transculturais do Instituto Missionário Palavra da Vida.

Examinado por:

_______________________________________________
Prof. Marcos Ribeiro – IMPV

Conceito: _________________________

_______________________________________________
André de Oliveira Pinto

Benevides, _____ de ______________ de ______


Dedico este singelo estudo ao Logos Encarnado.
Ele é a razão que me faz escrever estas palavras.

“Está vestido com um manto tinto de sangue, e o seu nome se chama o Verbo de Deus.”
Apocalipse 19:13
Agradeço a Deus por minha salvação em Jesus Cristo.
Sou grato a minha família por me apoiar durante todo o tempo,
desde quando comecei a expressar o desejo de fazer um seminário bíblico.
Agradeço aos professores do IMPV e aos colegas da turma Doulos (2017-2019).

Soli Deo Gloria


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 8
1.1 Apresentação do tema................................................................................................ 8
1.2 Justificativa................................................................................................................. 9
1.3 Referencial teórico ................................................................................................... 12
1.4 Problematização ....................................................................................................... 14
1.5 Objetivos ................................................................................................................... 14
2 BASES BÍBLICAS QUE SUBSIDIAM O ESTUDO ............................................ 15
2.1 O uso do termo Logos em João 1:1-18 ................................................................... 17
2.1.1 O ambiente político e filosófico do Século I ........................................................... 17
2.1.2 A cristologia desenvolvida em João 1:1-18 ............................................................ 19
2.1.2.1 A audiência e o ambiente de composição do livro ................................................. 20
2.1.2.2 A descrição e as características do Logos encarnado. ............................................ 23
2.1.2.3 A instrumentalidade de João e a experiência da Igreja .......................................... 28
2.1.3 A Comunicação Transcultural de João no prólogo do livro ................................ 29
3 REVISÃO DA LITERATURA ............................................................................... 32
3.1 Entendendo o conceito do termo logos no pensamento judeu e grego ................ 32
3.2 A Comunicação Transcultural e seus princípios................................................... 39
3.2.1 Uma análise histórica a respeito da Comunicação Transcultural ....................... 41
4 IMPLICAÇÕES E DIRETRIZES.......................................................................... 47
5 CONCLUSÃO .......................................................................................................... 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 53
OBRAS CONSULTADAS ..................................................................................................... 55
8

1 INTRODUÇÃO

1.1 Apresentação do tema

Como é difícil se comunicar. É impressionante observar como as pessoas - mesmo


aquelas que pertencem a uma mesma cultura - são tão diferentes umas das outras e, muitas
vezes, isso atrapalha a boa comunicação e a correta compreensão da mensagem transmitida. Já
é evidente que entre o “emissor” e o “receptor” não existe apenas a “mensagem”. Entre eles
existem inúmeros atritos que interferem numa interpretação correta do que está sendo dito.
Agora, imagine por um instante tentar comunicar uma mensagem para pessoas de outras
culturas? Esse desafio é enorme. Em outras culturas o idioma pode ser diferente, os costumes
podem ser diferentes, a história social pode ser diferente, as vestimentas podem ser diferentes,
os tipos de alimentos podem ser diferentes, a forma de lidar com a natureza pode ser diferente,
enfim muita coisa há que pode interferir numa boa comunicação.
Apesar disso, não é impossível se comunicar. Todos esses elementos culturais existentes
no mundo são uma pequena amostra da multiforme sabedoria e criatividade de Deus; Ele é o
criador das culturas. Nesse sentido, quando Jesus estabelece a missão de “fazer discípulos de
todas as nações” (Mt 28.19) ele já tinha a compreensão de que a tarefa que estava transferindo
para seus discípulos exigiria conhecer outras culturas e se envolver com elas. Todo cristão é
capaz de transmitir uma mensagem para pessoas de outra cultura, mas para isso é necessário
haver contextualização. Como afirma a Dra. Bárbara Burns para contextualizar é necessário
conhecer a outra cultura.

Contextualizar, no sentido cristão, não é fazer uma simples adaptação à cultura; ao


contrário, é conhecer o contexto cultural da melhor maneira possível para conseguir
conviver e comunicar-se de forma que o evangelho penetre e transforme cosmovisões,
valores, relacionamentos e costumes, de acordo com a vontade e as promessas de
Deus.1

Nunca uma diferença cultural deve ser impedimento para a pregação do evangelho. Na
realidade, é bem possível que em muitas culturas haja elementos que contribuem
significativamente para uma melhor explicação e compreensão do evangelho. Isso é tão verdade
que encontramos nas Escrituras inúmeros casos onde o próprio Deus se comunicou com a

1
Esta citação foi extraída do comentário feito por Bárbara Burns na contracapa do livro: LIDÓRIO, Ronaldo.
Comunicação e cultura: a antropologia aplicada ao desenvolvimento de ideias e ações missionárias no contexto
transcultural. São Paulo: Vida Nova, 2014.
9

humanidade fazendo uso de elementos puramente culturais. Em outras palavras, Deus utilizou
a sua própria revelação escrita - isto é, a Bíblia - para se comunicar transculturalmente. Os
autores bíblicos fizeram uso de elementos culturais para deixar o evangelho ainda mais claro
para determinado público, ou seja, Deus usou de comunicação transcultural em sua Palavra.
Portanto, a proposta deste trabalho é fazer um estudo de caso sobre a comunicação
transcultural nas Escrituras. Será analisado o caso onde o apóstolo João utilizou o termo λογος
(logos = palavra) na passagem de João 1:1-18. Nesta passagem, o autor, movido pelo Espírito
Santo (2 Pe 1:20-21), utilizou de elementos e termos estritamente culturais da época para
esclarecer a mensagem das boas-novas e principalmente apresentar a pessoa de Jesus. Para isso
serão apresentados, inicialmente, do que se trata “comunicação transcultural”, inclusive com
uma síntese histórica, os pontos positivos e suas implicações. Em seguida será apresentado o
estudo de caso sobre o conceito e as implicações filosóficas de logos no judaico e no mundo
grego, e a partir daí compreender o uso que João faz desta palavra.

1.2 Justificativa

A missão do cristão de levar o evangelho até os confins da terra ainda continua em vigor.
Não houve momento algum na história do cristianismo em que essa tarefa foi interrompida ou
adiada. A Igreja de Cristo nunca deixou de existir e nunca se calou. Jesus sempre terá seguidores
fiéis dispostos a testemunhar as boas-novas. Apesar dos incalculáveis desafios que os primeiros
cristãos enfrentaram, eles nunca deixaram de transmitir o evangelho para outros povos. Mesmo
com estes desafios a mensagem do evangelho sempre foi pregada e precisa continuar sendo
pregada. Porém, desde a Grande Comissão até os dias atuais, existem dois elementos que se
tornaram grandes desafios para os cristãos: cultura e comunicação.
Ao falar a respeito de Jesus para outras pessoas, pelo menos um destes dois elementos
estarão presentes. É impossível pregar o evangelho sem considerar o desafio da comunicação e
o desafio da cultura. Ronaldo Lidório afirma que “esses campos são, por natureza, inseparáveis,
complementares e essenciais para todos os que transitam por qualquer ambiente intercultural”.2
O desafio torna-se maior ainda quando se nota a variedade de idiomas e culturas no
mundo. A comunicação precisa ser fiel, compreensível e contextualizada para o povo ouvinte.
Logo, alguns questionamentos surgem: como prosseguir? Por que enfrentar tantas
barreiras? É possível ter sucesso mesmo diante desse “duplo” desafio?

2
LIDÓRIO, Ronaldo. Comunicação e cultura: a antropologia aplicada ao desenvolvimento de ideias e ações
missionárias no contexto transcultural. São Paulo: Vida Nova, 2014, p. 13.
10

Tudo começa na natureza de Deus. Ele deseja redimir a humanidade. O plano eterno de
Deus envolve exaltar o Filho e salvar pecadores. A missio Dei (Missão de Deus) sempre foi
prioridade na agenda divina. Desde a queda, Deus continua trabalhando na salvação de
pecadores. Jesus veio ao mundo com o objetivo claro e traçado de dar a sua vida em resgate de
muitos. Deus não mediu esforços para providenciar o pagamento pelo pecado. Enfim, a cruz de
Cristo é o palco da missão de Deus. Isso jamais deve sair da mente de qualquer cristão.
Além disso, como afirma Larry D. Pate, “Deus não vê nenhuma cultura e nenhum povo
como superiores a outros, nem tampouco deseja que sua Igreja assim os considere” 3. Em outras
palavras, Deus criou as culturas e deseja receber adoração de todas elas. Jesus morreu para a
salvação alcançar todas as nações. No passado, Israel recebeu a responsabilidade de participar
do plano divino de compartilhar a salvação para outros povos. Hoje, a Igreja participa e é
encarregada deste ministério transcultural. Essas verdades precisam ser constantemente
relembradas na mente daqueles que desejam pregar o evangelho.
Outra evidência do valor da comunicação transcultural é que Deus “pregou” para outros
povos. A Bíblia – que é chamada corretamente de “Palavra de Deus” – é o maior exemplo do
testemunho divino a respeito de seu plano redentor. O próprio Deus se preocupou em deixar
revelado quem ele é para o ser humano; e as verdades a respeito de Deus que se encontram nas
Escrituras são perfeitamente compreensíveis em qualquer cultura. Deus fez uso de
“comunicação transcultural”.
Portanto, para transmitir o evangelho para um povo cuja cultura é totalmente diferente,
isto é, seu modo de vida, de pensar, de agir e de se comunicar, é necessário estar em condições
de adotar uma adequada comunicação transcultural.
Para aprofundar esse conhecimento, o presente estudo visa apresentar o cuidado de Deus
em deixar elementos nas Escrituras para se comunicar com indivíduos de qualquer cultura. Deus
planejou a redenção, executou a redenção e comunicou a redenção para qualquer povo em
qualquer época.
Um exemplo disso é o uso do termo grego logos, que em português pode aparecer
traduzido por “verbo”; “palavra”. O apóstolo João utilizou este termo (cf. João 1.1) porque ele
era amplamente utilizado no mundo helenizado de sua época. Contudo, é importante esclarecer
que este substantivo possuía um conceito filosófico por trás. Não significava simplesmente
“palavra”. Por trás do termo havia um sentido de origem grega que faziam referência a ideia de
“razão”; “pensamento”; “conhecimento”; entre outros. Um pequeno exemplo que, a princípio,

3
PATE, Larry D. Missiologia: a missão transcultural da igreja. São Paulo: Vida, 1987, p. 4.
11

pode ser mencionado é o conceito dado pelo filósofo Heráclito4, um dos primeiros a conceituar
o logos. Para ele, o logos é a razão que domina todo o universo e que faz possível a existência
de ordem e regularidade no acontecimento das coisas. O apóstolo João, portanto, utiliza logos
trazendo outro sentido e significado, embora o termo tenha sido o mesmo. Ele procurou se
aproveitar de um elemento da cultura e do pensamento helênico de sua época para apresentar a
pessoa de Jesus como sendo o Filho de Deus e a razão de tudo existir. Este e outros exemplos
revelam a importância de se buscar formas de desenvolver uma comunicação contextualizada,
direcionada e clara do evangelho.
Deste modo, um estudo sobre o que foi explanado acima é extremamente necessário,
tanto para a Igreja, como para os indivíduos que desejam seguir na carreira ministerial. Quiçá
a principal razão é que a Igreja precisa possuir uma teologia bíblica adequada a respeito do
assunto, pois a responsabilidade de transmitir o evangelho é da Igreja. Com a globalização e
existência de instituições universais, ficou ainda mais fácil conhecer e desvendar outros povos
e culturas. Assim sendo, nunca houve antes um período mais propício do que o atual para levar
o evangelho contextualizado para outras nações. Apesar das facilidades que o terceiro milênio
oferece, a mentalidade missionária da Igreja precisa ser restaurada. Cada crente precisa
descobrir que as Escrituras revelam um Deus que sempre esteve ativo em Sua missão. A
teologia bíblica apresentada no presente trabalho, portanto, permitirá um envolvimento ainda
mais consciente da Igreja na missio Dei.
Além disso, por vezes, muitos leitores da Bíblia pensam que compreendem o que o
apóstolo João quis transmitir ao identificar Jesus como sendo o logos. Infelizmente, muitos
destes leitores pecam apressadamente, pois não pesquisam o conceito e as intenções do autor
bíblico. Justamente pelo fato deste trabalho ser uma busca por esclarecer o conceito logos,
convém como registro teológico pertinente. Servirá como um texto introdutório capaz de guiar
qualquer estudante interessando em aprofundamento teológico e missiológico.
Ademais, o tema que será abordado possui relevância pessoal e ministerial, pois
desperta o desejo por compartilhar o evangelho de forma mais adequada. A maioria dos cristãos
não sabe proclamar a boa-nova nem mesmo para as pessoas que fazem parte de sua própria
cultura. O meio cristão está abarrotado de “métodos” evangelísticos, “evangelismo criativo”,
entre outras formas de evangelização que são muito bem-vindas, mas não resolvem o problema
chamado: contextualização.

4
ROCHA, Zeferino. Heráclito de Éfeso, filósofo do Lógos. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., ano VII, n. 4, p. 7-
31, dez/2004.
12

Por fim, não há nada mais transformador para o leitor do que se aprofundar nas
Escrituras. Ler o evangelho de João consciente da “estratégia missionária e linguística” usada
pelo apóstolo será uma experiência enriquecedora e edificante para o crente. Com toda
sabedoria e direcionamento do Espírito Santo, cada cristão e toda a Igreja precisa descobrir as
maravilhas que Deus deixou em Sua Palavra para poder revelar a todos os povos o Salvador,
que é Cristo o Senhor!

1.3 Referencial teórico

Para realizar o trabalho será necessário compreender do que se trata comunicação


transcultural e se aprofundar em livros e artigos que explicam sobre o uso do termo logos nos
escritos joaninos.
Para começar, a trilogia de David J. Hesselgrave intitulada “A comunicação
transcultural do Evangelho” traz um estudo completo e profundo sobre diversos assuntos que
fazem parte da comunicação transcultural como, por exemplo: os conceitos de missões, cultura,
comunicação, cosmovisão, comportamento, estruturas sociais, mídia e motivação. Hesselgrave
mescla autoridade das Escrituras e o saber científico moderno no campo das comunicações. Os
três volumes trazem conceitos utilizados na área da comunicação social, contudo com o foco
de cooperar com a transmissão do evangelho.
O livro “Costumes e Culturas” de diversos autores, organizado por E. A. Nida, é um
manual clássico da missiologia. Trata-se de uma introdução para a antropologia e a
comunicação transcultural. Este livro torna ainda mais perceptível as necessidades dos povos e
os deveres dos missionários à medida em que esclarece alguns termos como, por exemplo:
racismo, relações sociais, religião, estética, linguística etc.
Outra obra que é clássica e recomendada chama-se “Missiologia: a missão
transcultural da igreja”. Neste livro, Larry D. Pate faz algo interessante ao explicar princípios
para o aprendizado da língua e da cultura local. Depois traça uma linha de planejamentos
estratégicos de como estabelecer igrejas autóctones e como estabelecer uma evangelização
intercultural eficaz. Talvez, trata-se do livro base da missiologia atual, pois nele conceitos como
“missão centrífuga” e “missão centrípeta” são explicados bem visualmente.
Os livros do Ronaldo Lidório são todos muito úteis. Porém, a título de trabalho, o livro
mais indicado é “Comunicação e Cultura”. Nesse livro, Lidório reúne todo seu conhecimento
teórico e prático sobre pesquisa de campo e aponta para o valor da contextualização. Ele
também oferece alguns métodos de pesquisa e alguns estudos que contribuem para que o
13

missionário em atuação descubra elementos fundamentais a respeito da cultura na qual está


inserido.
“Missões e Culturas”, de Jairo de Oliveira, é um livro que trata especificamente das
dificuldades que missionários brasileiros enfrentam no campo transcultural. Mesmo sendo um
livro específico e que não trata de maneira geral a respeito da comunicação transcultural, tem
muito valor, pois ajuda a entender melhor as barreiras na evangelização de outros povos, o que
pode servir para ampliar a compreensão a respeito da tarefa missionária.
Chega-se agora aos livros que tratam especificamente a respeito do objeto de estudo em
questão: a comunicação transcultural nas Escrituras e o uso do termo logos por João.
É imprescindível conhecer a época em que João viveu e as influências do mundo grego.
O livro “O Mundo do Novo Testamento” escrito por Packer, Tenney e White, traz uma
resumida, porém profunda, descrição da cultura e dos costumes daquele tempo. Leitura
fundamental.
Alguns comentários como: “João: introdução e comentário”, de F. F. Bruce;
“Comentário do Novo Testamento de João”, de William Hendriksen; “O Comentário de
João”, de D. A. Carson; “Comentário Bíblico de João: através da Bíblia”, de Itamar Neves;
“O Evangelho Segundo João: Série de Comentários Bíblicos de João Calvino”; “John: a
commentary on the Gospel of John - Chapters 1–6”, do escritor alemão Ernst Haenchen,
entre outros livros, serão fundamentais para a compreensão não somente do uso do termo logos,
como também para a compreensão de toda a teologia joanina por traz do seu evangelho.
Livros de introdução e teologia bíblica também serão consultados para se entender a
relação que João traz deste termo em seus demais escritos. Livros como “Foco e
Desenvolvimento do Novo Testamento”, de Carlos O. Pinto; “Introdução ao Novo
Testamento” de D. A. Carson, Douglas J. Moo e Leon Morris; entre outros títulos, podem
contribuir para uma compreensão epistemológica.
Por fim, não ficarão de fora os principais dicionários teológicos. Entre eles o famoso
“Dicionário Teológico do Novo Testamento” (DTNT) em dois volumes (em inglês
Theological Dictionary of the New Testament – TDNT); será consultado, também, o chamado
“A Greek-English lexicon of the New Testament and other early Christian literature”
(BDAG); o “Breve dicionário de teologia” de Justo L. González; além de outros léxicos
gregos que ajudem a compreender melhor o termo.
14

1.4 Problematização

O que é comunicação, cultura e cosmovisão? O que é comunicação transcultural? O que


é contextualização? Por que adotar uma abordagem que leva o evangelho contextualizado para
determinada cultura? Quais os benefícios de transmitir o evangelho levando em conta a
“cosmovisão do outro”? Quando surgiu uma abordagem mais contextualizada do evangelho na
história do cristianismo? Qual o conceito do termo logos e as implicações filosóficas no mundo
grego? Qual o significado semântico de logos apresentado pelo o apóstolo João? Por que Jesus
é o logos? Estudar sobre o uso do termo logos é de interesse missiológico? Esse caso tem
implicações para a prática missionária hoje? Por quê?

1.5 Objetivos

Geral: Esta monografia pretende destacar o valor de se adotar uma adequada


comunicação transcultural do evangelho para os dias atuais.
Específicos:
Conceituar “comunicação transcultural” e seus princípios;
Apresentar uma análise histórica a respeito desta forma de abordagem/método na
apresentação do evangelho;
Destacar pontos positivos da comunicação transcultural;
Investigar e elucidar o conceito e as implicações filosóficas do termo logos no mundo
grego, e a partir daí compreender o uso que o apóstolo João faz desta palavra como um tipo de
comunicação transcultural nas Escrituras.
Concluir com implicações para nossos dias de como podemos apresentar o evangelho e
fazer missões de forma contextualizada.
Edificar a vida de todo aquele que deseja saber como apresentar o evangelho de forma
mais adequada.
15

2 BASES BÍBLICAS QUE SUBSIDIAM O ESTUDO

A principal base bíblica que será analisada no presente trabalho é João 1:1-18. Na
medida em que o texto for sendo exposto, será possível perceber as características de uma
comunicação transcultural contextualizada. Para isso, o estudo se concentrará no termo logos e
qual o significado dado pelo apóstolo.
Antes de continuar e observar como João utiliza o termo para apresentar Jesus, é
importante considerar a base teológica da comunicação contextualizada do evangelho, e a base
dessa comunicação é a própria missão.
A missão começa em Deus. Conforme explica Paul G. Hiebert, a missão, na verdade, é
fundamentalmente de Deus, foi Ele quem começou o plano redentor.

Uma teologia de missões deve iniciar com Deus e não com os homens. Deve iniciar
com a história cósmica da criação, da queda e da redenção que Deus providenciou
para sua criação. Deve incluir a revelação que Deus faz de si mesmo ao homem, a
encarnação de Jesus Cristo na história, a salvação concedida por meio de sua morte e
ressurreição e o senhorio absoluto de Cristo sobre toda a criação.5

Hiebert aponta para aquilo que facilmente muitos se esquecem: a “missão” é a missão
de Deus (missio Dei). Portanto, na história da qual o ser humano faz parte, Deus é o
protagonista. Ele está trabalhando efetivamente para a restauração completa de Sua criação.
Tudo o que aconteceu na História, desde Adão e Eva até os dias de hoje, é o resultado direto da
ação divina.

A história da humanidade é primeiramente, e acima de tudo, a história da missão de


Deus para redimir os pecadores que buscam a salvação, a história de Jesus, que veio
como missionário, e a história do Espírito de Deus, que atua nos corações daqueles
que o ouvem.6

Obviamente, existem várias verdades incluídas na missio Dei e uma delas, conforme
aclara Hiebert, é a encarnação de Jesus. Jesus é o centro da história. Ele vem não somente como
um participante da obra redentora de Deus, mas como o foco principal. Jesus é o enredo das
Escrituras.
Mas “Quem é Jesus?” Essa pergunta tem sido feita ao longo de séculos, por todos os
tipos de pessoas, em vários lugares do mundo. Alguns, mais acertadamente, compreendem, pela

5
HIEBERT, Paul G. O Evangelho e a Diversidade das Culturas. São Paulo, SP: Vida Nova, 1999, p. 17.
6
Idem.
16

fé, que Jesus é o Filho de Deus, o Messias prometido por Deus nas Escrituras judaicas. Outros,
todavia, não conseguem entender quem é esse “Jesus”.
O grande problema de não se conhecer a Jesus é que não haverá salvação, afinal só há
salvação quando há um entendimento verdadeiro a respeito dele. Torna-se imprescindível saber
quem é Jesus. (Lc 24:46-47; Jo 11:51-52; At 4:12; Rm 3:23-25; 5:17-19; 1 Co 15:21-23; 1 Tm
2:5; Ap 5:9-10; 17:14; 19:16).

[...] o Novo Testamento deixa claro que a obra redentora de Cristo não é
exclusivamente para os judeus ou para qualquer nação, tribo ou língua. É o único meio
de alguém andar retamente com Deus. O problema do pecado é universal, afastando
as pessoas de Deus. A solução para esse problema é a morte redentora que o Filho de
Deus ofertou definitivamente. Esse é o real fundamento das missões. Considerando
que a obra de Cristo é a única base para a salvação, deve ela ser anunciada a todas as
nações. 7

Todavia, com isso não se tenciona dizer que basta ter uma compreensão intelectual sobre
Jesus e, então, haverá salvação. É necessário o lavar regenerador do Espírito Santo (Tt 3:5) para
que o conhecimento intelectual produza efeito na vida espiritual do pecador. A salvação
acontece mediante a fé (Ef 2:8) e não mediante o conhecimento, mas a fé surge por causa do
conhecimento (Rm 10:13-15).
O evangelho não é apenas uma mensagem, o evangelho é a mensagem a respeito de uma
pessoa. Isso é tão real que alguns missionários costumam afirmar assertivamente que o
evangelho é uma pessoa, e essa pessoa é Jesus. Ou seja – como visto acima – Jesus é o enredo
das Escrituras, por isso é fundamental testemunhar sobre Jesus em todas as culturas.
Hiebert diz que nossa tarefa é a pregação do evangelho: uma exposição da pessoa de
Jesus, isso inclui apresentar sua origem, seu caráter, sua vida e seus feitos.

É nesse contexto da atividade de Deus neste mundo e através da história que devemos
entender nossa tarefa. A missão é fundamentalmente de Deus e nós somos apenas
parte dessa missão. Nossos planejamentos e estratégias são inúteis, e até mesmo
destrutivos, se nos impedirem de buscar primeiramente a direção e o poder de Deus.8

Sendo assim, a exposição a respeito de Jesus – sem estar desprovida de fé e do poder do


Espírito Santo – precisa ser teologicamente fiel e culturalmente compreensível.

Quando Hesselgrave (1984) afirma que contextualizar é tentar comunicar a


mensagem, o trabalho, a Palavra e o desejo de Deus de forma fiel à sua revelação, de

7
PIPER, John. Alegrem-se os Povos. São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2001, p. 140-141.
8
HIEBERT, op. cit., p. 17.
17

maneira significante e aplicável nos diferentes contextos, culturais ou existenciais, ele


expõe um desafio à Igreja de Cristo: comunicar o evangelho de forma teologicamente
fiel e, ao mesmo tempo, humanamente inteligível e relevante. Esse talvez seja o maior
desafio de estudo e compreensão quando tratamos da evangelização em contexto
intercultural.9

Uma vez considerada brevemente a base teológica da comunicação contextualizada do


Evangelho (Jesus), pode-se agora explorar a forma como João cooperou com a missio Dei
apresentando Jesus de maneira teologicamente fiel e culturalmente compreensível. Em outras
palavras, nas Escrituras – por meio de João – o próprio Deus comunicou o Evangelho de forma
contextualizada. Os elementos utilizados por João estavam carregados de significado e isso não
é diferente com o termo logos. João desejou falar sobre Jesus de uma forma muito particular a
sua época; é isso que será explorado a seguir.

2.1 O uso do termo Logos em João 1:1-18

2.1.1 O ambiente político e filosófico do Século I

O Século I foi o ambiente no qual Jesus viveu. Conforme afirma Paulo em Gálatas 4:4:
“Vindo, porém, a plenitude do tempo, Deus enviou Seu Filho, nascido de mulher, nascido sob
a lei”. Esse momento da história era planejado por Deus. Foi exatamente essa época que Deus
escolheu para que Jesus vivesse e para que Seus discípulos exercessem o ministério como
testemunhas de Cristo. Era um contexto propício para aquilo que Deus estava planejando
executar.
Quem dominava era o Império Romano. Como mostra Rodrigues, algumas
características desse império contribuíram para a chegada do Messias e, posteriormente, para o
início do movimento cristão.

Roma dava ampla liberdade religiosa, e, às vezes, até política aos vencidos. Assim,
para a Palestina, o governo romano sob Herodes, o Grande, foi muito bom, pois seus
termos foram dilatados e a Judéia era, quando Jesus nasceu, uma unidade semelhante
ao Israel dos dias de Salomão. Os romanos mantinham um exército em cada país
ocupado. Isso ajudou sobremaneira a manter a paz no mundo.10

Além de toda essa aparente liberdade religiosa, o Império Romano potencializou ainda
mais os efeitos da helenização que tivera origem no Império Grego. Rodrigues diz que esse

9
LIDÓRIO, op. cit., p. 13.
10
RODRIGUES, Roberto A. Apostila: Panorama do Novo Testamento. Atibaia. SP: Seminário Bíblico Palavra
da Vida, 2011, p. 15.
18

processo de helenização difundiu a cultura filosófica grega, e mesmo com a ascensão romana,
séculos depois, o pensamento grego ainda preponderava.

Os romanos conquistaram os gregos, mas, num certo sentido, os gregos conquistaram


os romanos. Quando os romanos dominaram o mundo, o mundo já estava sendo
helenizado, inclusive a cidade de Roma, onde professores gregos ensinavam na sua
língua. Encontramos, também, na metrópole do império, jogos e deuses gregos. As
duas civilizações se fundiram.11

A filosofia grega foi a primeira, em certo sentido, que desafiou o Homem a olhar para
si mesmo e para um “mundo ideal”. Esse pensamento a respeito do mundo trouxe a concepção
que hoje a sociedade tem a respeito dos aspectos material e imaterial da realidade. Esses dois
aspectos – que possivelmente não havia sido explorado tão profundamente no Mundo Antigo,
ou pelo menos documentado filosoficamente – abriu caminho, segundo Rodrigues, para que a
humanidade começasse a considerar o “sentido da vida”

Duas são as contribuições da filosofia para o preparo do mundo para a vinda de Jesus:
1) Levou o homem a olhar introspectivamente e a sentir necessidade de um Deus
pessoal (O Deus desconhecido que Paulo encontrou em Atenas) e de um
Salvador.
2) Desilusão, porque a filosofia nada deu ao homem, apenas fê-lo sentir a
necessidade.12

Foi nesse contexto particular que Jesus viveu e desenvolveu seu ministério. Após a
ressurreição, Jesus deixou um grande desafio para seus discípulos: compartilhar para pessoas
de todos os lugares da terra a salvação que Ele oferece. Veja a análise de Barclay sobre isso:

Ao final do século I, a Igreja cristã estava enfrentando um problema agudo nas


comunicações. O berço da Igreja tinha sido o judaísmo, mas agora tinha de apresentar
sua mensagem para um mundo grego, para o qual as categorias do judaísmo eram bem
estranhas. Conforme a expressão de Goodspeed: Um grego que tinha vontade de
tornar-se cristão era conclamado a aceitar Jesus como o Cristo, o Messias.
Naturalmente, perguntaria o significado disto, e teria que receber um breve curso
sobre o pensamento apocalíptico judaico. Não havia maneira de apresentar-lhe
diretamente os valores da civilização cristã sem ter de seguir sempre o itinerário, ou
até mesmo, podemos dizer, o desvio, através do judaísmo? Cerca de 100 d.C. houve
um homem em Éfeso, chamado João, que viu esse problema. Foi, talvez, o melhor
cérebro na Igreja cristã; e, de repente, viu a solução. Tanto os judeus quanto os gregos
possuíam o conceito de logos de Deus. As duas ideias não poderiam ser juntadas?. 13 ª
[grifo do autor]

11
Idem.
12
Ibid., p. 16.
13
BARCLAY, op. cit., p. 132.
19

João, discípulo de Jesus, foi usado por Deus para escrever verdades que até hoje são
assuntos considerados de profundidade teológica inigualável. A capacidade que Deus deu a este
homem de aproveitar elementos da sociedade de sua época para comunicar assuntos profundos
da fé cristã é indiscutível. Por essa razão, a grande maioria dos teólogos concorda que João foi
preciso e intencional no uso do logos.

2.1.2 A cristologia desenvolvida em João 1:1-18

Não há como discordar, os escritos de João são muito importantes, eles trazem
elementos culturais, porém com significados teológicos profundos; estes elementos ganharam
força e, hoje, permeiam o pensamento ocidental despercebidamente. Um exemplo forte é o
próprio dualismo que o autor bíblico propõe (“luz” e “trevas”; “carne” e “espírito” etc).
Outro elemento é o que vem sendo observado aqui: o logos. Alguns estudiosos
defendem que o logos é o mais importante dentre todos os outros elementos tratados por João.
O argumento principal é justamente pelo fato de João ter começado seu livro ecoando ao logos.
Essa proposta de Prólogo foi um diferencial marcante para época, afinal os outros três
evangelistas (Mateus, Marcos e Lucas) se preocuparam em começar com a vida humana de
Jesus. O apóstolo João, por sua vez, remete a origem cósmica daquele que se tornaria a
personagem principal de seu livro: o logos encarnado.
João foi responsável por estabelecer um dos pilares mais importante da cristologia em
toda a Bíblia. Foi por causa do uso que João fez do logos que um dos melhores textos sobre a
divindade de Jesus está registrado. O Prólogo do quarto evangelho (Jo 1:1-14) é, sem dúvida, o
caput que faz uma conexão direta e profunda com o Antigo Testamento.
Não se pode determinar com precisão o que levou João a fazer uso desse termo. O
próprio João não dá explicações em seus escritos. Contudo, com base em alguns autores,
existem alguns componentes que serão observados: a) o público alvo do livro e o ambiente da
composição em coerência com o propósito do livro; b) a maneira como o apóstolo descreve o
logos (as características atribuídas ao logos e a relação com o pano de fundo), a forma como
ele escreve o seu discurso inicial estabelecendo a cristologia do restante do livro e, por fim, c)
a instrumentalidade de João que serve de modelo a respeito da experiência que a Igreja sempre
teve de apresentar Jesus de forma compreensível ao povo. Esses componentes estão a seguir.

ª W. Barclay apresenta a data de composição do quarto evangelho em 100 d.C. O autor deste trabalho
discorda e sugere uma data mais antiga, entre 85 d.C. a 90 d.C.
20

2.1.2.1 A audiência e o ambiente de composição do livro

Sem dúvida, observar os destinatários abre caminho para a análise de uma comunicação
contextualizada e transcultural a respeito de Jesus. Para grande parte dos teólogos, o público de
João era os gentios. Essa conclusão está vinculada ao possível ambiente de composição do livro
que a tradição eclesiástica aponta solidamente para Éfeso, seguindo as propostas de Irineu e
Eusébio.14 Marlowe propõe que o ambiente cooperou para a escolha do apóstolo.

A Ásia Menor, particularmente Éfeso, era então o centro de um sincretismo no qual


todas as doutrinas religiosas e filosóficas da Grécia, Pérsia e Egito se reuniam. Ficou
provado que em todos esses sistemas aparece a ideia de um ser divino intermediário
entre Deus e o mundo, o Oum dos índios, o Hom dos persas, o Logos dos gregos, a
Memra dos judeus.15 [tradução nossa]

Diante dessa realidade, João intencionalmente propôs uma ressignificação do logos para
que a pessoa de Jesus fosse exclusiva e distinta das demais religiões. O “logos encarnado” era
de absoluto desconhecimento para gregos, e gentios em geral.

Durante sua residência em Éfeso, ele deve ter se familiarizado com as formas e os
termos da teologia alexandrina. Também não é improvável que ele tenha usado o
termo Logos com a intenção de facilitar a passagem das teorias atuais de seu tempo
para o evangelho puro que ele proclamou.16 [tradução nossa]

Nesse argumento, João estaria dedicado a falar a respeito de Jesus para um público
pagão que possuía um determinado conhecimento a respeito do logos e esse conhecimento
poderia ser explorado. Mesmo vivendo num contexto próximo, João realizou uma forma de
comunicação transcultural, porque ele transmitiu o conteúdo para pessoas de outras culturas,
mesmo que estas vivessem na mesma cidade ou região. A comunicação “transcultural”, como
já visto anteriormente, trata-se da comunicação de uma cultura para a outra. Zuck também
entende que a audiência cooperou para o uso do termo.

[...] é provável que a resposta se encontre na audiência de João. Ele não explica o
termo logos, presumindo, aparentemente, que seus leitores entenderiam a noção. É
provável que os leitores gregos pensassem que ele se referia ao princípio racional que

14
“Então João, o discípulo do Senhor, o qual se reclinava em seu peito, também publicou um Evangelho enquanto
vivia em Éfeso, na Ásia”, In. EUSÉBIO, História Eclesiástica. §5.8.4.
15
MARLOWE, Michael. In the beginning was the λόγος... (John 1:2). Disponível em: <http://www.bible-
researcher.com/logos.html>. Acesso em: 08 nov. 2019.
16
Idem.
21

guia o universo e ficariam chocados ao descobrir que esse logos não só foi
personificado, como também encarnou (Jo 1:14).17

Zuck explica que não somente os gregos, mas também os judeus eram capazes de
compreender o logos e, por isso, trabalhou com o conceito presente no Antigo Testamento.18

Os leitores judeus estariam mais preparados para esse tipo de Sabedoria pré-existente
personificada, mas eles também se surpreenderiam com a ideia de encarnação. João
apresentou Jesus como o verdadeiro Logos, a preparação para sua apresentação de
Jesus com Filho de Deus.19

D. A. Carson diz que muitos estudiosos preferem o pano de fundo judaico porque
encontram frequentes paralelos da literatura de Sabedoria com João.20 As semelhanças do logos
com alguns atributos da Sabedoria possibilitam a familiarização dos judeus com o conceito
joanino. Por outro lado, conforme Carson observa, “embora a expressão provasse ser mais rica
para os leitores judeus, também ressoaria nas mentes de alguns leitores cujo pano de fundo fosse
inteiramente pagão”.21
O fato interessante e, ao mesmo intrigante, é que a audiência fica em aberto, o uso do
termo logos, portanto, servia para ambas as audiências. Em outras palavras, João tencionou
comunicar Jesus para um amplo público que incluiria judeus e gentios. Ainda que esta tivesse
sido a intenção de João, não há porque questionar as características transculturais de sua
comunicação, afinal os gentios precisavam conhecer um Cristo que não fosse apenas dos
moldes judaicos.
Nesse sentido, de acordo com Carlos Osvaldo, a audiência mista é altamente provável
tendo em vista o propósito do autor bíblico.

Os destinatários constituem questão igualmente aberta a debate. A tendência de


interpretar nomes hebraicos e de situar localidades na Palestina sugere leitores
gentios. Os supostos versículos-chave, 20.30–31, têm sido usados para provar que
João tinha em mente pessoas não salvas, mas isso parece pouco provável quando se
considera que todos os outros livros do Novo Testamento foram dirigidos a
comunidades ou a indivíduos cristãos.

17
ZUCK, op. cit., p. 213.
18
Alguns estudiosos como Charles Dodd acreditam que João estava mais interessado no pano de fundo judaico,
mais especificamente os judeus cristãos.
19
Ibid., p. 215.
20
Ver mais em: KOESTER, Craig, The Dwelling of God: The Tabernacle in the Old Testament,
Intertestamental Jewish Literature, and the New Testament (CBQMS 24; CBA, 1989), pp. 108-110; DODD,
IFG, pp. 274-277; HAENCHEN, 1. 138-140.
21
CARSON, D. A. O comentário de João. São Paulo, SP: Shedd Publicações, 2007, p. 116.
22

O propósito geral do Evangelho, encorajar a fé, pode indicar uma audiência mista, em
que cristãos precisavam de confirmação e interessados podiam encontrar um
testemunho direto sobre a pessoa e obra de Cristo que os levasse a crer nele e, assim,
ser salvos.22

Aqui chega-se ao propósito. O comentário de Carlos Osvaldo já direciona para a


intenção do autor bíblico. Para Carlos Osvaldo, João tinha interesse de fortalecer a fé dos
cristãos (e.g., 1:12–13; 3:16–18, 36; 4:10–11; 5:24; 6:47; 11:25–27). Todavia, há uma ênfase
forte no desejo de João de apresentar Jesus para que os descrentes viessem a crer, portanto o
livro possui propósitos evangelísticos quanto qualquer outro. Em 20.30–31 (RA), João
estabelece sua intenção:

ταῦτα δὲ γέγραπται ἵνα πιστεύσητε ὅτι Ἰησοῦς ἐστιν ὁ Χριστος ὁ υἱὸς τοῦ θεοῦ, καὶ
ἵνα πιστεύοντες ζωὴν ἔχητε ἐν τῷ ὀνόματι αὐτοῦ

“Na verdade, fez Jesus diante dos discípulos muitos outros sinais que não estão escritos neste livro.
Estes, porém, foram registrados para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que,
crendo, tenhais vida em seu nome”

Abrindo um “parêntese”, o mais curioso desse trecho é que além de revelar o propósito,
mostra a escolha do autor a respeito dos sinais que seriam registrados e que a forma como ele
editou seu texto possui intenções objetivas. Este é mais um argumento para comprovar que João
intencionalmente trabalhou com o termo logos, e não se pode ignorar que ele fez isso com
propósitos evangelísticos, isto é, ele realizou uma comunicação transcultural contextualizada
do evangelho.
Fechando o “parêntese”. É claro que os propósitos de João não são puramente
evangelísticos. Como Carlos Osvaldo salienta, outros aspectos não podem ser esquecidos. Ele
diz que há também “os aspectos apologético ou polêmico do Evangelho, em que João enfatiza
a glória do Verbo (cf. 1.14; 17.1, 5) e a realidade de sua encarnação”.23 Assim, “João consegue
ser ao mesmo tempo evangelístico, polêmico, e pastoral”.24

O propósito de João não era exclusivamente soteriológico, nem didático, mas também
doxológico, com o prólogo, especialmente 1.14, operando em conjunto com 20.30–

22
PINTO, Carlos O. C. Foco & Desenvolvimento no Novo Testamento. São Paulo, SP: Hagnos, 2014, p. 154.
23
PINTO, op. cit., p. 155.
24
Ibid., p. 156.
23

31 para provocar nos leitores a apreciação correta da divindade e da majestade de


Jesus Cristo.25

É digno de nota o cuidado de João em fazer uma apresentação completa de Jesus,


mostrando sua divindade, majestade, humanidade e encarnação com apenas uma única palavra:
logos. Não resta dúvidas de que o desejo de João era “evangelizar” os leitores por meio de uma
apresentação coerente a respeito de Jesus e, ao mesmo tempo, proporcionar firmeza na fé
daqueles que já haviam decidido ser seguidores de Cristo.

2.1.2.2 A descrição e as características do Logos encarnado.

Chega-se, afinal, na descrição do logos. Como João apresenta o logos? Que aspectos o
autor pretendeu considerar? Observar essa descrição permite entender melhor a ressignificação
que João faz ao logos e quais elementos ele quis enfatizar.
Ao atribuir características ao logos, João estava claramente se desassociando de
qualquer outro conceito já existente a respeito do logos. Ele não se contentou em apenas falar
do logos, pelo contrário, ele desejou claramente estabelecer quem era o logos. Não é de interesse
de João fazer qualquer tipo de sincretismo ou associar os conceitos impensadamente apenas
para tornar Jesus mais “palatável” aos leitores. Pelo contrário, quando João destaca as
características do logos ele está preocupado em estabelecer uma cristologia sadia, mas também
compreensível para a comunidade. Esse é o desafio de todos os cristãos, mais especificamente
dos missionários em campos transculturais. Nem sempre é fácil apresentar Jesus de maneira tão
clara. É fundamental compreender muito bem a cultura e a cosmovisão do público alvo para
que o evangelho seja inteligível. Algumas vezes, tomar como referência um termo que já possui
certo significado pode cooperar para esse processo de evangelização, desde que tomada todas
as providências para se compreender profundamente a cultura.
Assim, será feito uma análise dessa descrição com o alvo de mostrar a forma como João
realmente pretendia comunicar Cristo, e ele faz isso por meio de uma comunicação transcultural
muito bem contextualizada e até certo ponto sistematizada.
A cristologia do logos possui cinco dimensões muito notáveis para aqueles que desejam
fazer uma boa comunicação do evangelho. Todas estas dimensões traçam um paralelo com os
panos de fundos já observados até aqui.

25
Idem.
24

As três primeiras dimensões podem ser observadas no prólogo, João escreve: “No
princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. Ele estava no
princípio com Deus”. 26 (Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος, καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν, καὶ θεὸς ἦν ὁ
λόγος. 2 Οὗτος ἦν ἐν ἀρχῇ πρὸς τὸν θεόν).27
“No princípio era a Palavra” (Ἐν ἀρχῇ ἦν ὁ λόγος) - 1:1a. A primeira dimensão está
na transcendência e auto existência do logos. O logos sempre existiu. Ele nunca foi criado. Ele
está acima dos limites temporais (eternidade) e está acima dos limites físicos. Essa expressão,
explica Bruce, remonta tanto para o entendimento judaico de que Deus estava no princípio de
todas as coisas (Gn 1:1), como serve para o entendimento grego de um Ser absoluto pré-
existente.

Não é por acaso que o evangelho inicia com a mesma frase de Gênesis. Em Gênesis
1:1, “no princípio” inicia a história da primeira criação; aqui a expressão inicia a
história da nova criação. Nas duas obras de criação o agente é a Palavra de Deus. 28

Possivelmente a maioria que tivesse acesso a essa declaração, sendo judeu ou grego,
não teria dificuldades de identificação. Até aqui a descrição é simples e não torna o logos de
João singular. A mudança, por sua vez, aparece em seguida, na sequência do versículo, onde
João continua descrevendo características mais específicas sobre o logos.
“e a Palavra estava com Deus” (καὶ ὁ λόγος ἦν πρὸς τὸν θεόν) - 1:1b. A segunda
dimensão está na harmonia com o divino ainda que o logos fosse distinto do divino. João mostra
que o logos sempre esteve presente onde Deus estava, mantendo um relacionamento com Ele,
mas que esse logos era diferente de Deus. Observe a análise de Hendriksen:

O sentido é que a Palavra existia na mais estreita comunhão possível com o Pai, e que
ele tinha um prazer supremo nessa comunhão (cf. 1Jo 1:2). [...] Portanto, a encarnação
começa a aparecer, mais claramente, como uma obra de amor incompreensível, e de
uma infinita condescendência. 29

Na expressão πρὸς τὸν θεόν, Hendriksen toma nota de que πρὸς no acusativo “indica
movimento ou direção para um lugar, ou como aqui, uma grande proximidade; portanto, nesse

26
BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada Almeida Século 21. São Paulo, SP: Vida Nova, 2013. A tradução utilizada
nesse trabalho é baseada na versão Almeida Século 21 porque é a versão que demonstra uma boa compatibilidade
com o texto grego original. Porém, a título de adaptação gramatical, o autor deste trabalho substituiu o termo
“Verbo” por “Palavra”.
27
The New Testament in the original Greek: Byzantine Textform 2005, with morphology. (Jo 1.1–2).
Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2006.
28
BRUCE, F. F. João: introdução e comentário. São Paulo: Mundo Cristão, 1990, p. 33.
29
HENDRIKSEN, op. cit., p. 101.
25

contexto, comunhão, intimidade e amizade”.30 É neste ponto que João mostra claramente que o
conceito dele a respeito do logos difere significativamente dos conceitos estoicos e até mesmo
de Fílon. O logos não é apenas um teorema metafísico ou a pura razão divina, como afirmava
Fílon. Nem mesmo Deus é um ser indeterminado e impessoal. Deus é pessoal e relacional,
assim como o logos era pessoal e relacional. Carson explica isso ao analisar a preposição.

A preposição traduzida por ‘com’ é pros, que geralmente significa ‘para’ ou ‘em
direção a’. Assim, muitos escritores dizem que João está tentando expressar uma
intimidade peculiar entre a Palavra e Deus: a Palavra está orientada em direção a Deus
[...]. No grego do século I, pros estava invadindo o território normalmente ocupado
por outras palavras que significavam ‘com’. O que notamos [...] é que em todas essas
construções [...], pros pode significar ‘com’ somente quando uma pessoa está com
uma pessoa, geralmente em algum relacionamento bastante íntimo. E isso sugere que
João pode já estar apontando, bastante sutilmente, que a ‘Palavra’ de que ele está
falando é uma pessoa com Deus e, portanto, diferenciável de Deus, a qual desfruta de
um relacionamento pessoal com ele.31 [grifo do autor]

F. F. Bruce também reforça o caráter pessoal e relacional do logos, ou seja, ele é mais
do que a razão que ordena o universo, como se pensava na filosofia grega, ele também não era
apenas a memra de Deus, como no pensamento judaico, pelo contrário, o logos é uma pessoa.

E as palavras que seguem mostram que nosso evangelista não tem em mente uma
mera personificação literária. O “status” pessoal que ele atribui ao Verbo tem a ver
com existência real; a relação que o Verbo tem com Deus é de pessoa para pessoa: O
Verbo estava com Deus. [...] O Verbo de Deus é distinto de Deus em si, mas tem uma
relação pessoal muito íntima com ele; mais ainda, ele participa da própria natureza de
Deus, porque o Verbo era Deus.32 [grifo do autor]

“e a Palavra era Deus” (καὶ θεὸς ἦν ὁ λόγος) – 1:1c. A terceira dimensão é justamente
a identificação da divindade do logos. Para Bruce “o sentido é que o Verbo compartilha da
natureza e do ser de Deus ou […] era uma extensão da personalidade de Deus”.33 João chega
ao ponto máximo de sua descrição aqui. Ele rejeita todas as especulações filosóficas e revela
que tudo o que Deus é, o logos é. Mas ao mesmo tempo o logos não pode ser o próprio Deus
uma vez que ele estava com Deus. Esse paradoxo cristológico, segundo Marlowe, dá o pontapé
inicial a apresentação do logos.

Se esse era o meio em que o quarto Evangelho era composto, entendemos facilmente
o que João queria dizer a todos os pensadores que especulavam sobre as relações entre

30
Idem.
31
CARSON, op. cit., p. 117.
32
BRUCE, op. cit., p. 35-36.
33
Ibid., p. 36.
26

o infinito e o finito, a saber: “Esse elo de ligação entre Deus e homem, que você
procura na região da ideia, nós cristãos possuímos na realidade, na história; nós vimos,
ouvimos, tocamos esse mediador celestial. Ouça e acredite! E, ao recebê-Lo, você
possuirá conosco graça sobre graça. “Ao introduzir esse novo termo na linguagem
cristã, João tinha a intenção, como pensava Neander, de se opor ao idealismo vazio
no qual os cultos anticristãos das pessoas ao seu redor estavam alimentando, o
realismo vivificante da história do evangelho que ele estava propondo apresentar.34
[tradução nossa]

C. K. Barrett diz que “João quer que todo o seu evangelho seja lido à luz deste versículo.
As ações e palavras de Jesus são ações e palavras de Deus; se isto não for verdade, o livro é
blasfemo”.35

[...] João 1.1 delineia o relacionamento da Palavra com Deus. João 1.1a (“No
princípio, era o Verbo”) constitui uma clara afirmação de pré-existência. João 1.1b
(“e o Verbo estava com Deus”) distingue Deus (Pai) da Palavra, demonstrando que os
dois não são intercambiáveis e, contudo, sugerindo que existe um relacionamento
pessoal entre os dois. João 1.1c (“e o Verbo era Deus”) afirma a total divindade da
Palavra, mas deixa implícito que Deus engloba mais do que apenas a Palavra.36

Essas três dimensões trabalhadas por João em apenas um versículo apontam para o
Sustentador de todas as coisas; a criação e tudo o que nela há só faz sentido com o logos. Sua
pré-existência revela que a origem de todos é a mesma, independentemente da cultura. Antes
de tudo é o logos. Essas dimensões, portanto, contribuem para apresentar a natureza divina do
logos.
A quarta dimensão está fora do primeiro versículo. Na continuação, verso 3, João
escreveu: “Todas as coisas foram feitas por intermédio dele, e, sem ele, nada do que foi feito
existiria.” (Πάντα διʼ αὐτοῦ ἐγένετο, καὶ χωρὶς αὐτοῦ ἐγένετο οὐδὲ ἕν ὃ γέγονεν). 37 O logos é
criador. Ele deu origem as coisas, algo muito semelhante a Sabedoria judaica encontrada, por
exemplo, em Provérbio 8. João aqui consegue remeter diretamente a um conceito judaico em
sua comunicação, ele se utiliza de um código que os receptores (judeus) logo decodificariam.
Roy Zuck lembra um aspecto fundamental de que o logos “existe separado da criação já que
Ele é o Agente que a realizou”.38 O logos nunca foi criado. Mais uma vez o apóstolo aponta
para um conceito compreensível para sua audiência, tanto judeus como gentios sabiam que a
Palavra (memra e logos) era responsável pelo controle das coisas e dava sentido para as coisas.

34
MARLOWE, op. cit.
35
BARRETT, 1978, p. 156. apud BRUCE, op. cit., p. 36.
36
ZUCK, op. cit., p. 214.
37
The New Testament in the original Greek: Byzantine Textform 2005, with morphology. (Jo 1.1–2).
Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2006.
38
ZUCK, op. cit., p. 214.
27

Portanto, ao ser o agente pelo qual tudo foi criado, João estabelece que o logos é a
origem de tudo. Se as culturas de sua época possuíam mitos sobre a suas origens, João
definitivamente nega todos esses mitos e claramente reivindica a origem de tudo ao logos. Se
as primeiras três dimensões contribuem para apresentar a natureza divina do logos, a quarta
dimensão apresenta o poder e autoridade do logos.
A quinta e última dimensão é tão essencial quanto as outras. João chega no ápice de seu
raciocínio no versículo 14: “E a Palavra se fez carne e habitou entre nós, pleno de graça e de
verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai”. (Καὶ ὁ λόγος σὰρξ ἐγένετο,
καὶ ἐσκήνωσεν ἐν ἡμῖν - καὶ ἐθεασάμεθα τὴν δόξαν αὐτοῦ, δόξαν ὡς μονογενοῦς παρὰ πατρός
- πλήρης χάριτος καὶ ἀληθείας).39 O apóstolo intencionalmente faz uma revelação intrigante
para o pensamento daquele tempo afirmando que o logos pré-existente, que mantém comunhão
íntima de pessoalidade com Deus e, ao mesmo tempo, é Deus, se tornou (ἐγένετο) carne, isto
é, assumiu o aspecto físico; material da existência. Nada é mais distante do pensamento
helenista que afirmava que o logos era imaterial e impessoal. O fato de o logos ter se tornado
humano, muda tudo. A sua personalidade (vontade, pensamento, emoções, sensações) sempre
existiu, porém agora o logos assume um corpo. Conforme explica Bruce:

A humanidade, a carne que o Verbo divino assumiu naquele ponto no tempo era e
permanece tão perfeita como sua natureza divina; todavia foi nossa natureza humana
(sem pecado) que ele assumiu, e não alguma “humanidade celestial” de outra ordem.
[...] Ele está preocupado em enfatizar que Deus, que se revelou ou expressou [...] de
muitas maneiras desde o princípio e, afinal, mostrou-se em uma pessoa humana
histórica e real: quando o Verbo se fez carne, Deus se fez homem.40 [grifo do autor]

Outro aspecto a ser observado é a seu relacionamento com a humanidade. O logos


“habitou entre nós”, ele estabeleceu comunhão real com o mundo material, mesmo sendo
essencialmente imaterial. Aquilo que dava sentido para o cosmo, que era a razão do equilíbrio
de todas as coisas, aquilo que era a mente divina para os gregos, agora é um “homem”. Aquilo
que era a palavra pronunciada de YHWH que tinha poder em si mesmo, que deu origem a todas
as coisas, aquilo que era a expressão máxima da Sabedoria agora é um “homem”. Na verdade,
o logos nunca foi uma força ou um pensamento, nem mesmo uma palavra em seu sentido básico.
Ele sempre foi um ser real cheio de personalidade. A singularidade do logos de João força os
leitores a ficarem curiosos para saber quem, então, é o logos já que ele é pode ser identificado

39
The New Testament in the original Greek: Byzantine Textform 2005, with morphology. (Jo 1.1–2).
Bellingham, WA: Logos Bible Software, 2006.
40
BRUCE, op. cit., p. 45.
28

como um ser humano visível e que ao mesmo tempo é cheio de glória. Se as primeiras três
dimensões contribuem para apresentar a natureza divina do logos e a quarta dimensão apresenta
o poder e autoridade do logos, a quinta e última dimensão apresenta a natureza humana do
logos.
Essas dimensões ajudam a perceber que João sabia exatamente o pano de fundo que
permeava seu texto. Se João fosse um escritor em dias atuais e utilizasse desse termo pouco
faria sentido. Ao apresentar a natureza divina, o poder e autoridade e a natureza humana do
logos, João estabelece os alicerces para seu livro e, a partir daí, mostrará os feitos gloriosos do
logos em sua missão de glorificar ao Pai e oferecer vida eterna para os homens.
Enfim, dentre os componentes que nos ajudam a entender melhor a comunicação de
João no Prólogo, já foi visto até aqui: o público alvo do livro e o ambiente da composição em
coerência com o propósito do livro. Outro componente já explorado foi a maneira como o João
descreve o logos (as características atribuídas ao logos e a relação com o pano de fundo), a
forma como ele escreve o seu discurso inicial estabelecendo a cristologia do restante do livro
(usando dimensões essenciais da existência humana).

2.1.2.3 A instrumentalidade de João e a experiência da Igreja

Agora, o último componente é justamente a instrumentalidade de João em revelar a


experiência que a Igreja sempre teve de apresentar Jesus de forma compreensível ao povo. Em
outras palavras, os cristãos sempre precisaram apresentar Jesus para as pessoas e, para isso,
empregavam elementos que ajudavam no entendimento a respeito de Cristo.
D. A. Carson abriu os olhos do autor deste trabalho para ter ainda mais convicção de
que João fez uso de uma comunicação transcultural do evangelho, e essa comunicação foi
plenamente contextualizada.

A riqueza de cenários culturais distintos para o termo logos no Prólogo de João sugere
que o fator determinante não é esse ou aquele pano de fundo, mas a experiência que a
igreja tem de Jesus Cristo. Isso não é o mesmo que dizer que o pano de fundo é
irrelevante. Antes, quer dizer que quando os cristãos procuravam por categorias
adequadas para expressar o que eles tinham vindo a conhecer de Jesus Cristo, muito
do que eles aplicavam a ele necessariamente desfrutava de uma superabundância de
associações antecedentes. 41 [grifo do autor]

Esse ponto explorado por Carson não pode ser ignorado. Carson diz que, o que João fez
remete àquilo que os cristãos faziam para comunicar Jesus para outras pessoas. Eles procuravam

41
CARSON, op. cit., p. 116.
29

categorias adequadas para falar o que eles sabiam a respeito de Jesus e, muitas vezes, esses
termos já eram utilizados e carregados de significados anteriores. Isso é comunicação
transcultural. O exercício de expressar compreensível e adequadamente o evangelho tendo em
vista que os outros apreendam mais profundamente a respeito de Cristo.

Os termos tinham de ser semanticamente relacionados ao que os cristãos queriam


dizer, ou eles não poderiam ter se comunicado em sua própria época. Não obstante,
muitos dos termos que escolheram, incluindo esse, tinham uma esfera semântica tão
ampla que eles podiam moldar o termo para seu próprio uso a fim de fazê-lo
transmitir, no contexto de sua própria obra, o que eles sabiam ser verdadeiro sobre
Jesus Cristo.42 [grifo do autor]

Não resta dúvidas de que o desejo de João e dos cristãos ao longo da história sempre foi
apresentar Jesus de maneira teologicamente fiel e culturalmente compreensível. O que é
verdadeiro sobre Jesus precisa ser transmitido, e muitas vezes é preciso apenas um cuidado
especial em observar e utilizar elementos culturais apropriadamente.

2.1.3 A Comunicação Transcultural de João no prólogo do livro

Não se pode confundir a proposta de João. Em nenhum momento João tentou associar
Jesus com o logos das concepções filosóficas de sua época. Como fica nítido para Marlowe, o
apóstolo, na verdade, ressignificou o conceito de logos.

Ao aplicar a Jesus o nome Palavra, João não sonhou, portanto, em introduzir na Igreja
o teorema especulativo alexandrino que não tinha importância para ele. Ele desejava
descrever Jesus Cristo como a revelação absoluta de Deus ao mundo, trazer de volta
todas as revelações divinas a Ele como seu centro de vida e proclamar a inigualável
grandeza de Sua aparência no meio da humanidade.43 [tradução nossa]

O que o apóstolo fez, ao escolher trabalhar com o logos, foi adotar esse termo recheado
de sentidos e limitá-lo aos sentidos que eram de interesse comum. Essa abordagem chamaria a
atenção de seus leitores e os conduziriam para um entendimento de que Jesus é muito maior do
que o logos que eles tanto admiravam.

O Logos de João é o Deus real e pessoal (1: 1), a Palavra, que era originalmente antes
da criação com Deus, e era Deus, um em essência e natureza, mas pessoalmente
distinto (1: 1, 18); o revelador e intérprete do ser oculto de Deus; o reflexo e a imagem
visível de Deus, e o órgão de todas as Suas manifestações ao mundo. Compare
Hebreus 1:3. Ele fez todas as coisas, procedendo pessoalmente de Deus para a

42
Idem.
43
MARLOWE, op. cit.
30

realização do ato da criação (1:3), e tornou-se homem na pessoa de Jesus Cristo,


realizando a redenção do mundo. Compare Filipenses 2:6. 44 [tradução nossa]

Em meio a tanta especulação quanto ao “sentido da vida”; quanto a origem do cosmo, o


próprio sentido de ordem no cosmo e o controle do caos; quanto a veneração das propostas
platônicas da vida e da morte; quanto a busca por um mundo ideal, o mundo das ideias; quanto
a um gnosticismo incipiente que afirmava que a matéria era má e, até mesmo, quanto a um
entendimento equivocado de um Deus distante, João vem e apresenta Jesus.

Para aqueles helenistas e judeus helenísticos, por um lado, que estavam filosofando
em vão sobre as relações do finito e do infinito; para aqueles investigadores da letra
das Escrituras, por outro, que especulavam sobre as revelações teocráticas, João disse,
ao dar esse nome de Logos a Jesus: ‘O mediador desconhecido entre Deus e o mundo,
o conhecimento de quem você está se esforçando, temos visto, ouvido e tocado. Suas
especulações filosóficas e suas sutilezas das escrituras nunca o elevarão a Ele.
Acredite como nós em Jesus, e você possuirá Nele aquele revelador divino que
envolve seus pensamentos’.45 [tradução nossa]

João comunica precisamente o evangelho. Ele identifica Jesus como o verdadeiro


“sentido da vida” (1:1), como o originador das coisas existentes e que controla todas as coisas
(1:3), único capaz de dar vida e vida eterna (1:4), que restabelece o relacionamento de Deus
com a humanidade (1:10-13), e revela a própria glória de Deus (1:14). Barclay conclui:

[João] estava vestindo o cristianismo com vestes que os gregos podiam compreender.
Aqui há um desafio para nós. Ele recusou-se a continuar expressando o cristianismo
em categorias gastas e judaica. Empregava categorias conhecidas e compreendidas
em sua época. Repetidas vezes, a Igreja tem fracassado nessa tarefa por causa da
preguiça mental, por causa do medo de romper com o passado, por recuar diante da
possibilidade da heresia; mas “o homem que quer descobrir um novo continente deve
aceitar o risco de navegar num mar nunca cartografado.” Se alguma vez formos contar
às pessoas acerca da mensagem cristã, devemos expressá-la em linguagem
compreensível. Foi exatamente isso que João fez.46

Enfim, o testemunho de João demonstra com muita clareza que até mesmo nas
Escrituras a comunicação transcultural acontece. Deus soberanamente adotou seus escritores
de autoridade do Espírito para registrar seus escritos dentro de contextos culturais e históricos
específicos. O uso do logos reflete apenas um exemplo – mas um bom exemplo – daquilo que

44
Idem.
45
GODET, 1886, p. 286-291 apud MARLOWE, op. cit. Disponível em: <http://www.bible-
researcher.com/logos.html>. Acesso em 08 nov. 2019.
46
BARCLAY, op. cit., p. 133.
31

pode ser visto em outros lugares da Bíblia. Cabe aos cristãos atuais estarem atentos e dispostos
a apresentar Jesus numa linguagem compreensível aos que ouvem.
32

3 REVISÃO DA LITERATURA

3.1 Entendendo o conceito do termo logos no pensamento judeu e grego

O termo grego, logos, normalmente tem sido traduzido como “palavra”; “verbo”. Esse
termo ocorre muitas vezes no Evangelho de João em vários sentidos diferentes. Porém, o uso
mais significativo é encontrado apenas no prólogo (1:1-18), onde João apresenta o logos
encarnado.
Logos é cheio de significado. Sua multiplicidade de sentidos foi sendo construída ao
longo de séculos antes de Cristo. Muitos filósofos gregos falaram do logos, mas ainda que o
termo usado por João seja o mesmo, o sentido foi diferente.47
A epistemologia de logos revela que esse termo se origina do sentido de “recolher”,
porém quase não é usado dessa forma, pois é usualmente utilizado como substantivo.

A raiz 'log-' 'leg-' que se encontra no substantivo verbal 'logos', derivado do verbo
'legô', tem por sentido primeiro 'recolher'. Segundo Minar (1939, p. 323) a evolução
dessa raiz pode ser observada no modo como o verbo 'legô' vem apresentado no LSJ:
(I) "pick up, gather"; (II) "count", e (III) "say, speak" (LIDDEL; SCOTT, 1996 p.
1057-1059). Minar observa também que este último sentido (III) é o mais proeminente
em grego. Essa proeminência fica mais evidente no caso do substantivo, já que 'logos'
significa 'conto, dito, palavra', mas não 'recolhido'.48

A princípio, antes de explorar os sentidos de logos, pode-se resumir que o termo grego
tem dois significados básicos: palavra e raciocínio. Ficará perceptível – mais a frente – como
esses dois conceitos estão vinculados, apesar de serem distintos.
Ao utilizar logos, João estava ciente do público para o qual ele escrevia; o público era
muito familiarizado com o pensamento grego helenista; ao mesmo tempo, ele trabalhou com
ênfase no conceito judaico sobre o logos. Por essa razão, é importante entender os dois panos
de fundo, o judaico e o helenista (grego).
Conforme explica Charles H. Dodd, há dois significados que os estoicos distinguem
como logos endiathetos e logos prophorikos – o logos da mente e o logos pronunciado – isto é,
“pensamento” e “palavra”. Para a época atual, estes conceitos são distintos duma forma tal,
como não o eram para as pessoas de língua grega.49

47
HENDRIKSEN, William. Comentário do Novo Testamento – João. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 99.
48
VIEIRA, Celso de Oliveira. Razão, alma e sensação na antropologia de Heráclito. 2010. 203 p. Dissertação
(Mestrado em Filosofia) - Programa de Pós-Graduação em Filosofia, Universidade Federal de Minas Gerais,
Belo Horizonte.
49
DODD, Charles Harold. A intepretação do Quarto Evangelho. São Paulo: Editora Teológica, 2003, p. 347.
33

Olhando nessas perspectivas, nota-se que o pensamento judaico a respeito do logos foi
desenvolvido como um logos prophorikos (logos pronunciado, “palavra”). Contudo, não
significava apenas “palavra”. Conforme explica William Barclay50, os judeus sabiam que a
palavra não era apenas um som, mas tinha poder de criação.

No pensamento judaico, uma palavra era mais que um som expressando algum
significado; uma palavra realmente fazia coisas. A palavra de Deus não é
simplesmente um som; é uma causa eficaz. Na história da criação, a palavra de Deus
cria. Disse Deus: Haja luz; e houve luz (Gn 1.3). Pela palavra do Senhor os céus se
fizeram... Pois ele falou, e tudo se fez (Sl 33.6, 9). Enviou-lhes a sua palavra e os
sarou (Sl 107:20). A palavra de Deus fará o que Lhe apraz (Is 55:11). Sempre
devemos nos lembrar de que no pensamento judaico a palavra não somente dizia
coisas, também as realizava.51 [grifo do autor]

A essa altura, vale lembrar que o Antigo Testamento foi escrito em sua grande parte na
língua hebraica, portanto, não era utilizado o termo logos propriamente dito, uma vez que logos
é uma palavra grega.52 Barclay, portanto, continua aprofundando o estudo e informa que no
judaísmo anterior ao movimento helenista, palavra sempre foi algo ativo.

Veio um tempo em que os judeus se esqueceram do seu hebraico; seu idioma tornou-
se o aramaico. Era necessário que as Escrituras fossem traduzidas para o aramaico.
Estas traduções são chamadas de Targuns. Ora, na simplicidade do AT, sentimentos,
ações, reações e pensamentos humanos são atribuídos a Deus. Aqueles que
produziram os Targuns achavam que isto era demasiadamente humano; e em tais
casos usavam uma circunlocução para o nome de Deus. Falavam, não em Deus, mas
na Palavra, na memra de Deus [...]. Em Ex 19.17 os Targuns diziam que Moisés levou
o povo fora do arraial ao encontro da memra, a Palavra de Deus, em vez de,
simplesmente, de Deus. Em Dt a Palavra de Deus, a memra, é um fogo consumidor.
Em Is 48.13 lemos: “Também a minha mão fundou a terra, e a minha destra estendeu
os céus.” Nos Targuns, temos: Por minha Palavra, minha memra, fundei a terra, e por
minha força estendi o céu. O resultado disso é que as Escrituras judaicas na sua forma
popular ficaram cheias da expressão: A Palavra, a memra, de Deus; e a palavra
sempre estava realizando coisas; não meramente dizendo coisas. 53 [grifo do autor]

Roy B. Zuck também explica sobre os Targuns. Ele acrescenta mais uma explicação
dizendo que os Targuns colocam memra como um mediador de Deus.

50
Nota: A referência desta obra não significa que endosso a teologia de Barclay. O prof. Barclay negava a
inspiração plenária das Escrituras, a divindade de Jesus Cristo e a condenação eterna dos ímpios, entre outras
doutrinas. Utilizar-se de suas valiosas pesquisas sobre os termos gregos não significa apoio às suas doutrinas
heréticas.
51
BARCLAY, William. Palavras Chaves do Novo Testamento. São Paulo, SP: Vida Nova, 1988, p. 131.
52
Os judeus não usavam logos no Antigo Testamento, por isso nessa seção do trabalho o que será proposto é o
estudo do “conceito” e das aplicações para os judeus. Sendo assim, enquanto for analisado a visão cultural judaica,
será utilizado palavra, e não logos.
53
BARCLAY, op. cit., loc. cit.
34

Em muitas passagens, os Targuns (tradução aramaica, primeiro oral e, depois, escrita,


do Antigo Testamento) substituem o termo por Memra (“palavra”) como um mediador
de Deus. Por exemplo, em Êxodo 19:17: “E Moisés levou o povo fora do arraial ao
encontro de Deus”. O Targum palestino diz “para encontrar a Palavra de Deus”. O
Targum de Jônatas usa essa expressão por volta de 320 vezes. Alguns dizem que isso
não é relevante, pois Memra não se refere a um ser distinto de Deus; é apenas uma
maneira de se referir a Deus. Mas esse é o ponto; as pessoas familiarizadas com
Targums estavam acostumadas com Memra como designação para Deus. João não
usa o termo logos da forma que os Targums usavam Memra, mas para as pessoas
familiarizadas com os Targums, o termo logos provocaria associações semelhantes às
de Memra com o que talvez João estivesse de acordo.54 [grifo do autor]

Percebe-se, deste modo, que o conceito de palavra para os judeus era bem profundo.
Era utilizado para se referir a Deus. Charles Dodd refina ainda mais o entendimento de que o
conceito judaico de palavra vai além do simples pronunciamento, ou da fala.

Devemos notar que para o hebreu, a palavra uma vez falada tem uma espécie de
existência substantiva independente.55 Uma bênção, por exemplo, uma vez
pronunciada, continua a abençoar, e uma maldição uma vez pronunciada tem efeito
por si mesma. Isto se dá com as palavras de qualquer pessoa, mais ainda com a palavra
de Deus.56

Dodd diz que a linguagem judaica indica uma “tendência habitual do pensamento para
atribuir à palavra falada uma existência e atividade independentes; e de fato tal tendência é
profundamente impressa na língua hebraica”.57
Outro conceito que está profundamente relacionado com a ideia de um poder criador, é
o conceito da sabedoria que envolvia tal criação. Tanto Barclay como Hendriksen explicam
que no judaísmo a palavra também podia ser identificada na sabedoria, como mostra
Provérbios 8.

No pensamento judaico há outro conceito grandioso – o conceito da Sabedoria


(sophia). No Antigo Testamento, há um caso típico em Provérbios. Pela Sabedoria
Deus fundou a terra (Pv 3.13-20). Uma passagem grandiosa acha-se em Pv 8.1-9. Ali,
a sabedoria é desde a eternidade, antes de a terra vir a existir; ela estava com Deus no
dia da criação. Esta ideia foi muito desenvolvida nos livros inter-testamentários. [...]
Na Sabedoria de Salomão, a Sabedoria opera todas as coisas (8.5). Deus fez todas as
coisas por meio da Sua Palavra, e fez o homem por meio da Sua Sabedoria (9.1, 2).

54
ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento. Rio de Janeiro, RJ: CPAD, 2016, p. 213.
55
Nota interna do autor: Veja um exemplo desta ideia entre o povo semítico da Palestina MERX, Adalbert. Die
vier kanonischen Evangelien, 1902, sobre Mt 5.47.
56
DODD, op. cit., p. 348.
57
Ibid., p. 349.
35

A Sabedoria foi o instrumento de Deus na criação, e está entretecida em todas as


partes do mundo.58 [grifo do autor]

Hendriksen chega a dizer que o melhor comentário para João 1.1 seria exatamente
Provérbios 8.59 Roy Zuck comenta que temos quase a personalização da sabedoria em
Provérbios 8.22-31.60 Assim, esses dois conceitos estão profundamente interligados; a palavra,
com toda a sua profundidade ativa e independente sendo utilizada como designação para Deus;
e a sabedoria que já existia antes da criação e agente da criação. William Barclay resume os
dois aspectos do logos, principalmente quando analisado à luz do Antigo Testamento.

No pensamento judaico, portanto, temos dois grandes conceitos [...]. O primeiro é que
a Palavra de Deus não é apenas fala; é poder. O segundo é que é impossível fazer
uma separação das ideias de Palavra e de Sabedoria; e foi a Sabedoria de Deus que
criou e permeou o mundo que Deus fez.61 [grifo do autor]

Essa tendência habitual do pensamento judaico para atribuir à palavra falada uma
existência e atividades independentes, traça uma linha quase que direta para retratar a palavra
como uma pessoa. Hendriksen afirma que, no pensamento semítico do Antigo Testamento, a
palavra de Deus é representada como uma pessoa (c.f. Salmo 33.6).62 Porém, essa última
concepção não possui muitas evidências.
Ao observar, a partir de agora, o pensamento grego-helenista a respeito do termo, fica
evidente o uso de muitas alegorias, o que torna muito difícil apreender seu significado. 63
Contudo, embora possua uma riqueza de significados, em parte alguma possui o sentido de
palavra ou discurso de poder criativo como no caso judaico. A ênfase repousa mais no elemento
racional no discurso; rhḗma traz a ênfase emocional e volitiva.64 Para os fins deste trabalho,
não parece ser necessário analisar toda a multiplicidade de usos no universo grego, basta
observar o sentido atribuído ao logos como a razão por traz do cosmo; isto é o raciocínio, e o
seu desenvolvimento até a consolidação do helenismo.

58
BARCLAY, op. cit., p. 131-132.
59
HENDRIKSEN, op.cit., p. 100.
60
ZUCK, op. cit., p. 213.
61
BARCLAY, op. cit., p. 132.
62
HENDRIKSEN, op. cit., loc. cit.
63
Ibid., loc. cit.
64
DEBRUNNER, A., KLEINKNECHT, H., PROCKSCH, O., KITTEL, G., SCHRENK, G., & QUELL, G. légō,
lógos, rhḗma, laléō, lógios, lógion, álogos, logikós, logomachéō, logomachía, eklégomai, eklogḗ, eklektós,. G.
Kittel, G. Friedrich, & G. W. Bromiley (Orgs.), P. S. Gomes (Trad.), Dicionário Teológico do Novo Testamento
(1a edição, Vol. 1, p. 561). São Paulo: Editora Cultura Cristã, 2013.
36

Conforme explica Zuck, o termo filosófico grego refere-se a “alma do mundo”; a “alma
do universo”. Era a energia criativa. “Em um sentido, todas as coisas provinham dele, mas, em
outro sentido, a sabedoria das pessoas provinha dele”.65 Esse pensamento remoto se
desenvolveu até o século 6 a.C, quando o filósofo Heráclito se utiliza do termo logos para
explicar o que ele pensava a respeito do mundo.

Lá pelos anos de 560 a.C. havia um filosofo grego chamado Heráclito, que [...] morava
em Éfeso. Seu conceito do mundo era aquilo que chamava de um fluxo. Tudo está
num estado de mudança; nada há de estático no mundo. Mas se tudo está em mudança
o tempo todo, por que o mundo não é absoluta e completamente um caos? Sua resposta
era que “todas as coisas acontecem de acordo com o logos”.66 [grifo do autor]

Para Heráclito, havia no mundo um raciocínio e uma mente operantes. O logos pode ser
entendido como conjunto harmônico de leis que comandam o universo, formando uma
inteligência cósmica onipresente que se plenifica no pensamento humano.67 O mundo, portanto,
possui um princípio organizacional, segundo o qual o cosmo se ordena a si próprio 68, esse
princípio é logos.
Barclay explica que, para Heráclito, “no mundo, um raciocínio e uma mente estão
operantes; aquela mente é a mente de Deus, o logos de Deus; e é aquele logos que faz do mundo
um cosmo ordenado e não um caos”.69 Enfim, para o filósofo efésio, o logos “sempre existiu”
e “todas as coisas acontecem por intermédio do logos”.70 Vale ressaltar que Heráclito usou o
logos dentro de outros significados semânticos, mas esse conceito de um logos como “a razão
que domina todo o universo e que faz possível a existência de ordem e regularidade no
acontecimento das coisas” permeia o pensamento do filósofo mesmo diante dos outros usos que
ele atribui ao termo.
Posteriormente, o desenvolvimento da filosofia permitiu que essa visão do universo
permeado pelo logos fosse aprofundada.

Esta ideia de uma mente, um raciocínio, um logos governando o mundo, fascinava os


gregos. Anaxágoras falou da mente (nous) que “domina sobre todas as coisas”. Platão

65
ZUCK, op. cit., p. 212.
66
BARCLAY, op. cit., p. 132.
67
Disponível em: <https://historiadafilosofia.wordpress.com/tag/logos/>. Acesso em 15 out. 2019.
68
Disponível em: <https://www.philosophy.pro.br/logos.htm>. Acesso em: 12 mar. 2019.
69
BARCLAY, op. cit., loc. cit.
70
HERÁCLITO, Fragmenta 1, 50, 54, 114 apud ZUCK, op. cit., p. 212.
37

declarou que era o logos de Deus que mantinha os planetas nos seus rumos, e que
trazia de volta as estações e os anos nos seus tempos determinados. 71 [grifo do autor]

Mais próximo a época do Novo Testamento, estavam os estoicos que afirmavam que o
logos é o que dá forma a consciência humana.

No estoicismo, lógos expressa a natureza ordenada e teleologicamente orientada do


cosmos. lógos pode assim ser equiparado a Deus e ao poder cósmico da razão, do qual
o mundo material é um vasto desdobramento. O lógos humano é uma parte particular
do lógos universal. O último alcança consciência em nós, combinando assim Deus e
humanidade num grande cosmos.72 [grifo do autor]

Para simplificar, entende-se que para os estoicos logos era a razão divina. Ou seja, essa
razão divina deu sentido para tudo o que existe.

Para eles, este logos de Deus, conforme disse Clemente, “percorria todas as coisas”.
Os tempos, as estações, as marés, as estrelas nos seus rumos, eram ordenados pelo
logos; foi o logos que colocou sentido no mundo. Além disso, a mente do próprio
homem era uma pequena porção deste logos. “A razão nada mais é do que uma parte
do espírito divino imerso no corpo humano,” disse Sêneca. Foi o logos que colocou
sentido no universo e no homem; e este logos nada mais era do que a mente de Deus.73
[grifo do autor]

Contudo, como explica Zuck, os “estoicos não entendiam o logos como algo pessoal
nem o compreendiam da forma como alguém poderia entender a Deus”.74 Eles adotavam a ideia
de uma força que permeava todas as coisas.
Ao relacionar os dois sentidos anteriormente explicados por Dodd com as explicações
acima, percebe-se que o pensamento grego se desenvolve muito mais como logos endiathetos
(logos da mente). É curioso que Dodd, não se preocupa em acompanhar a doutrina do logos até
as suas origens, nem mesmo em expor os pensamentos gregos em Heráclito. Para ele “a
apresentação feita por Fílon pode ser tida como suficiente”. Isso porque Fílon faz um resumo
necessário entre os dois pensamentos. Fílon, filósofo judeu de Alexandria do início do século
I, propôs numa só síntese ambos os pensamentos: grego e judaico.

[...] lógos evidencia sua tentativa de unir religião judaica e filosofia grega. Para Filo,
o lógos divino é uma figura mediadora que vem de Deus, forma um elo entre o Deus
transcendente e o mundo, e representa a humanidade como um sumo sacerdote e

71
BARCLAY, op. cit., p. 132-133.
72
DEBRUNNER, et al., 2013, p. 561.
73
BARCLAY, op. cit., p. 133.
74
ZUCK, op. cit., p. 212.
38

advogado diante de Deus. Ele é a soma e o lugar do poder criativo de Deus, e como
tal ele ordena e governa o mundo visível.75 [grifo do autor]

Em outras palavras, o logos “é a ponte entre o homem e Deus”.76 Fílon, portanto, faz
uma síntese que parece permear o pensamento da sociedade na época do Novo Testamento.
Contudo, conforme adverte Dodd, “isto não prova, como às vezes se sugere vagamente, que o
termo logos fosse amplamente usado neste sentido”.77 Para ele é bem estreita a faixa que possa
abrir paralelos realmente significativos com o uso joanino, mas há argumentos para demonstrar
que João e seus leitores tiveram algum contato com essas concepções a respeito do logos.
Deve-se deixar claro, destarte, que João não se utiliza de nenhum dos pensamentos até
então difundidos. João, por sua vez, deu um novo significado para logos ao expor que o logos
era uma pessoa (ο λογος σαρξ εγενετο) = logos encarnado. Esse desenvolvimento era novo,
mas serviria perfeitamente como ponto de conexão com os conceitos desenvolvidos. De acordo
com Barclay, João estava oferecendo um nova cristologia.

75
DEBRUNNER, op. cit., p. 562.
76
BARCLAY, op. cit., loc. cit.
77
DODD, op. cit., p. 350.
39

3.2 A Comunicação Transcultural e seus princípios

Uma das coisas mais vantajosas que o ser humano conseguiu desenvolver foi a
capacidade de escrever. Quando se lê um livro pode-se descobrir ou conhecer a intenção (ideias,
pensamentos) de um autor mesmo sem conhecê-lo pessoalmente, ou mesmo que este já tenha
falecido. Em outras palavras, por meio da comunicação o ser humano torna-se capaz de
transcender tempo e espaço. Não resta dúvidas, portanto, que a comunicação tem um papel
significativo nas relações humanas. Ao fazer uso de uma boa comunicação o homem consegue
estabelecer interação profunda com qualquer outro semelhante.
Embora muitos concordem com o valor inestimável da comunicação, é perceptível
como há pouco desejo em se aprofundar numa compreensão a respeito da ciência da
comunicação. Nesse sentido, Melvin DeFleur declarou sua análise sobre a ignorância dos
homens sobre o processo de comunicação.

O processo de comunicação é absolutamente fundamental a todos os nossos processos


psicológicos e sociais. Sem nos envolver de modo repetitivo em atos de comunicação
com nossos semelhantes, nenhum de nós conseguiria desenvolver os processos
mentais e a natureza social que nos distinguem das demais formas de vida. Sem os
sistemas de linguagem e as demais ferramentas importantes da comunicação, seríamos
incapazes de executar as milhares de atividades estruturadas em grupo e levar a vida
de forma interdependente. No entanto, a despeito da tremenda importância que o
processo de comunicação encerra para cada ser humano, para cada grupo e para cada
sociedade, sabemos menos sobre isso do que sobre o ciclo de vida do morcego ou
sobre a composição química dos depósitos sedimentares no leito do oceano.78

A análise de DeFleur é precisa. A observação comprova o quanto é necessário


aprofundar-se no estudo da comunicação. Mesmo dentro da própria cultura, o ser humano tem
muita dificuldade de manter uma boa comunicação e, ao que parece, pouco se esforça para
melhorar sua comunicação. Além disso, pode-se incluir um outro argumento dentro da análise
de DeFleur. A comunicação não é apenas essencial para executar uma relação interdependente
com outros, mas também foi a forma que Deus estabeleceu para que a mensagem do evangelho
fosse transmitida. A única mensagem que traz esperança de salvação eterna para a humanidade
precisa ser “comunicada”. Deus deseja que o evangelho seja ensinado e comunicado em todas
as línguas e para todos os povos da terra (Ap 5:9,10). Essa comunicação, obviamente, deve ser
adequadamente transcultural. Portanto, fica claro a valia do fenômeno “comunicação” para as

78
DEFLEUR, Melvin L. Theories os Mass Communication. Nova York: David McKay, 1970, p. 76 apud
HESSELGRAVE, David J. A Comunicação Transcultural do Evangelho – vol. 1. São Paulo: Vida Nova, 1994,
p. 33.
40

relações sociais e para a transmissão do evangelho. Sendo assim, é imprescindível conceituar


comunicação e, em seguida, compreendê-la transculturalmente.
O termo comunicação provém da palavra latina communis que significa “comum”. De
acordo com Hesselgrave, “devemos estabelecer uma ‘comunhão’ com alguém para haver
comunicação. A ‘comunhão’ encontra-se em códigos partilhados”.79 Assim, a comunicação
como conceito é um processo de interação social através de símbolos e sistemas de mensagens
que são produzidos como parte da atividade humana.80 E esse processo pode ser composto de
diversos elementos.
Ao longo dos anos, o estudo sobre os processos de comunicação ganhou forma e tornou-
se cada vem mais detalhado. Desde Aristóteles – o primeiro a se aprofundar numa análise da
comunicação – o modelo de comunicação gira em torno de três aspectos, ou pontos de
referência: o orador, o discurso e o ouvinte.81 Atualmente, graças a tecnologia que trouxe
consigo a telecomunicação e a internet, esse modelo é ainda mais sofisticado, contendo:
remetente, receptor, canal, código, codificador, decodificador, ruído e feedback.82

O Processo de Comunicação 83
Figura 1

Contexto

C Ruído D
O E
D C
O
I
Emissor F Verbal D
- Falando Meio de I
Primário I
- Escrevendo Comunicação F Receptor
Secundário C
Não-verbal
Mensagem I
- Simples
Terciário A - Sendo C
- Sindéticos
Ç - Comportando-se A
à Ç
O Ã
O

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79
HESSELGRAVE, op. cit., p. 39.
80
Disponível em: <https://queconceito.com.br/comunicacao>. Acesso em: 11 jun. 2019.
81
Esses três pontos serviram de referência para Aristóteles em sua obra A Retórica, um dos mais influentes
escritos sobre a comunicação já produzidos.
82
Essa proposta é encontrada em SHANNON, Claude E.; WEAVER, Warren. The Mathematical Theory of
Communication. Urbana: University of Illinois Press, 1949. Segundo Hesselgrave, o modelo proposto por
Shannon e Weaver é fundamentado no conceito do “Modelo da Cibernética” cunhado por Norbert Wiener.
83
Adaptado de Figura 2 In. HESSELGRAVE, op. cit., p. 43.
41

3.2.1 Uma análise histórica a respeito da Comunicação Transcultural

Durante séculos, a comunicação sempre foi centrada na “mensagem”. Afinal, sem a


“mensagem” não há comunicação. Com o passar do tempo, foi-se descobrindo que a
“mensagem” é inseparável de outros elementos, como por exemplo o “meio”. Na segunda
metade do século XX, surge a teoria da comunicação conhecida como “o meio é a mensagem”
proposta pelo filósofo canadense Marshall McLuhan.84 Para McLuhan, o mais importante não
é o conteúdo da mensagem, mas o veículo através do qual a mensagem é transmitida.
Em movimentos mais recentes, os estudiosos têm percebido que todos esses elementos
são cruciais na comunicação, mas que, provavelmente, o elemento primordial seja o “receptor”.
Só há comunicação assertiva quando o “receptor” compreende a “mensagem”. Não basta
apenas compreender no aspecto cognitivo, é necessário que ocorra total significado.
Em outras palavras, a “mensagem” pode estar correta, o “meio”/veículo pode ser
adequado e positivamente influenciador, porém não é mais permitido desconsiderar a
compreensão do “receptor”. Quando anunciamos uma mensagem, ela precisa ser recebida e
compreendida por alguém. Charles H. Kraft denomina que a comunicação eficaz é “voltada
para o receptor”.85
Pensando na comunicação do evangelho, fica ainda mais claro o valor de uma
comunicação completa, que leva em consideração o “receptor”. Para David Hesselgrave é
indispensável que haja, de fato, “comunhão” entre o emissor e o receptor, somente assim haverá
comunicação eficaz.

[...] a comunicação humana é apenas parcialmente eficaz mesmo na mais ideal das
circunstâncias. Por quê? Porque a “comunhão” entre codificador e decodificador não
é completa. As diferenças de aculturamento, de personalidade, de experiências, de
interesses, de memória de curto e longo prazo e muito mais sempre influenciam os
processos de codificação e decodificação. O resultado é que os receptores raramente
decodificam com exatidão a mesma mensagem codificada pelo emissor, se é que o
fazem. Assim, embora falemos de coisas como “descobrir a intenção do autor” e
“repetir o impacto de uma mensagem sobre o público original” – é bom ter em mente
que a comunicação eficaz não é facilmente alcançada, e a comunicação frustrada não
é fácil de evitar.86

84
Marshall McLuhan publicou em 1967, em co-autoria com Quentin Fiore, uma obra com o título, The Medium
is the Message: An Inventory of Effects. Harmondsworh: Penguin.
85
KRAFT, Charles H. Communication Theory for Christian Witness. Nashville: Abingdon, 1983, p. 107 apud
HESSELGRAVE, op. cit., p. 37.
86
Ibid., p. 39.
42

Por essa razão, para ele, “quanto mais pudermos saber sobre os nossos receptores, mais
sucesso teremos em informá-los e persuadi-los, desde que, evidentemente, usemos essa
informação para ‘moldar’ a mensagem do evangelho”.87
Conforme explica a professora Yohanna Oliveira a respeito do “processo de
comunicação” (ver Figura 1), é tecnicamente impossível transmitir uma mensagem já
decodificada, cabe ao receptor decodificá-la. O papel do comunicador é “encontrar e conhecer
os códigos do receptor para transmitir a mensagem com os códigos do receptor. Ou seja, enviar
a mensagem codificada com os códigos do receptor, dando a ele a condição de decodificar a
mensagem integralmente”. 88
Ela também reforça que em toda essa caminhada não se pode perder de vista a
“mensagem”. Yohanna afirma que é preciso “conhecer bem a ‘mensagem’ para fazer uma
codificação eficaz e, assim, promover a decodificação completa”.
Uma vez analisado o poder da comunicação na interatividade humana e uma vez
estabelecido o caráter indispensável de se conhecer profundamente a “mensagem” e o receptor
(seus códigos e sua cultura), fica mais fácil entender a comunicação transcultural.
A comunicação transcultural acontece todas as vezes que se busca comunicar a notícia
de salvação em Cristo a outros grupos humanos que existem em outros universos socioculturais
e linguísticos; onde as maneiras de pensar, de entender a vida e de falar são mais ou menos
diferentes daqueles que procuram comunicar do Evangelho.89
As muitas diferenças entre o cristão que deseja testemunhar de Jesus e um indivíduo de
outro ambiente cultural precisam ser minimizadas ao máximo. Paul Hiebert levanta um
questionamento pertinente para este trabalho.

Há um abismo entre nós e aqueles a quem vamos servir (ministrar). Há ainda um


abismo maior entre o contexto histórico e cultural da Bíblia e vida contemporânea.
Como unir estes abismos, tornando possível e eficiente a comunicação (transcultural)
… do Evangelho?”.90

Para que esses abismos sejam minimizados é necessário que ocorra a contextualização.
Quando se fala em contextualização não se tem em mente transmitir o evangelho
desconsiderando o texto das Escrituras, ou alterar a tese fundamental da fé cristã para que

87
Ibidem, p. 37.
88
Anotações da aula do curso de Comunicação Transcultural do Instituto Missionário Palavra da Vida (Benevides
– PA).
89
Conceito adaptado de Missão Novas Tribos do Brasil.
90
Ver explicações sobre missões transculturais. Disponível em: <http://www.novastribosdobrasil.org.br/o-que-
sao-missoes-transculturais/>. Acesso em: 11 jun. 2019.
43

determinadas verdades fiquem omitidas ou até mesmo adulteradas. Não se trata da


remodelagem da mensagem para que certos grupos aceitem com facilidade a “proposta”. Em
nenhum momento contextualização tem como base a alteração das verdades bíblicas ou a não-
aplicação dessas verdades em detrimento ao choque com comportamentos culturais somente
porque são “expressões culturais”. O verdadeiro evangelho tem autoridade sobre padrões
culturais que contrariam o ideal de Deus para a humanidade.
Contextualização leva em conta os contextos. Nesse sentido cada contexto é singular.
Uma cultura que tem como expressões a “parceria” e “generosidade” precisa ser compreendida
adequadamente; nessa cultura, por exemplo, conceitos como “graça” podem ser bem
explorados. Já uma cultura que tem como base de pensamento a “honra” e “vergonha” é
completamente diferente de uma cultura que tem como base a “individualidade” e
“culpa/condenação”. No primeiro caso, por exemplo, um jovem deixa de cometer um delito por
honra a família, no segundo caso o jovem deixaria de cometer um delito por medo das
consequências (possível condenação penal). São mentalidades diferentes que precisam ser
avaliadas dentro de seu “contexto”.
Byang H. Kato define contextualização: “Entendemos que o termo signifique tornar os
conceitos ou os ideais pertinentes em dada situação”.91 Bruce J. Nicholls define como “a
transferência do teor imutável do evangelho do reino para a forma verbal significativa para os
povos em sua respectiva cultura e dentro de suas situações existenciais particulares”. 92 Outro
autor, George W. Peters diz que a contextualização “devidamente aplicada significa descobrir
as implicações legítimas do evangelho em dada situação. Vai mais além que a aplicação. A
aplicação eu posso fazer ou não preciso fazer sem fazer injustiça ao texto. A implicação é
exigida por uma exegese bem feita do texto.” 93
David Hesselgrave também procurou definir contextualização. Ele entende que a
contextualização deve ser analisada sob o aspecto das raízes teológicas das quais emanam.

[...] pode-se pensar na contextualização como a tentativa de comunicar a mensagem


da pessoa, das obras, da palavra e da vontade de Deus de modo fiel à revelação de
Deus, sobretudo como está apresentado nos ensinos das Escrituras Sagradas, e que é
significativo aos receptores em suas culturas e contextos existenciais respectivos. A

91
KATO, Byang H. The Gospel, Cultural Context, and Religious Syncretism. em J. D. Douglas, ed., Let the
Earth Hear His Voice. Minneapolis: World Wide Publications, 1975, p. 1217 apud HESSELGRAVE, op. cit., p.
115.
92
NICHOLLS, Bruce J. Theological Education and Evangelization. em Douglas, Let the Earth Hear, p. 647
apud HESSELGRAVE, op. cit., p. 115.
93
PETERS, George W. Issues Confronting Evangelical Missions. em Wade T. Coggins e E. L. Frizen, eds.,
Evangelical Missions Tomorrow. Pasadena, Calif.: Willim Carey, 1977, p. 169 apud HESSELGRAVE, op. cit.,
p. 115.
44

contextualização é tanto verbal quanto não-verbal e está ligada à teologização; à


tradução, à interpretação e à aplicação da Bíblia; ao estilo de vida encarnacional; à
evangelização; à instrução cristã; à criação e a crescimento de igrejas; à organização
da igreja; ao estilo de culto – na verdade a todas aquelas atividades relacionadas com
a execução da Grande Comissão.94

Hesselgrave, em outra ocasião, aprofunda ainda mais o assunto e afirma que


contextualizar é tentar comunicar a mensagem, trabalho, Palavra e desejo de Deus de forma fiel
à sua revelação e de maneira relevante e aplicável nos distintos contextos, sejam culturais,
sociopolíticos ou existenciais. A dizer isso, ele expõe um desafio à igreja de Cristo: comunicar
o evangelho de forma teologicamente fiel e, ao mesmo tempo, humanamente inteligível e
aplicável.95 Ronaldo Lidório, ao dialogar com Hesselgrave, conclui que talvez seja esse o maior
desafio de estudo e compreensão quando trata-se da teologia da contextualização e da pratica
comunicacional do evangelho.
Portanto, como tem sido construído até aqui, a mensagem do evangelho precisa ser
comunicada por completo levando em conta a compreensão do receptor, e para que isso
aconteça, é exigido esforço a fim de que a mensagem seja transmitida respeitando o devido
contexto; ela precisa ser contextualizada.
Lidório revela a inclusão que o evangelho tem em todas as culturas.

A mensagem da salvação de Deus em Cristo Jesus foi desenhada para ser


compreendida em todas as línguas e aplicada em todos os contextos, seja na sociedade
ocidental urbanizada, seja na comunidade étnica mais remota da terra. O evangelho é
supracultural (para todas as culturas), cultural (revelado ao homem em sua história),
multicultural (concilia os salvos de todas as culturas), intercultural (promove
comunhão entre pessoas de diferentes culturas), transcultural (deve ser levado de uma
cultura para outra) e contracultural (confronta o homem em sua própria cultura). O
evangelho de Cristo confronta, transforma e liberta (Ap 5.9; At 1.8; Jo 1.14, Cl 3.11;
At 26.18).96

Allan Tippet afirma que contextualizar o evangelho é traduzi-lo de tal forma que o
senhorio de Cristo não será apenas um princípio abstrato ou mera doutrina importada, mas um
fator determinante de vida em toda sua dimensão e critério básico em relação aos valores
culturais que formam a substância com a qual experimentamos o existir humano. 97 Ou seja,
como afirma Lidório, nossa preocupação deve ser evitar que Jesus Cristo seja apresentado

94
HESSELGRAVE, op. cit., p. 120.
95
HESSELGRAVE; ROMMEN, 1989, apud LIDÓRIO, op. cit., p. 46.
96
Ibid., p. 45.
97
TIPPETT, 1987 apud Ibid., p. 46.
45

apenas como uma resposta para as perguntas que os pregadores e missionários fazem,
dissociada do contexto.98
Não há como evitar. Falar a respeito de Jesus para outras pessoas, principalmente de
culturas diferentes, exige o conhecimento da cultura e dos pensamentos que sustentam
determinada cultura.
Ao falar sobre a contextualização na comunicação transcultural do evangelho, Lidório
explica que é preciso atentar para a comunicação em duas medidas: o assunto e a abordagem.

Quanto ao assunto, a Palavra é a revelação de Deus e resposta para todas as cruciais


perguntas humanas. [...] Assim precisamos ensinar toda a Escritura e não apenas uma
parte seletiva, preferencial para o pregador ou menos incômoda para todos.
Quanto à abordagem, precisamos atentar para os códigos linguísticos e culturais a fim
de que a Palavra seja de fato comunicada, não apenas proferida.99

Assim, tanto o “assunto” como a “abordagem” do evangelho precisam ser


cuidadosamente estudados e planejados. A tarefa de comunicar a pessoa e a obra de Jesus,
mesmo que simples, não pode ser simplista.

Para os que cruzam as fronteiras culturais para comunicar Cristo e o evangelho, o


melhor conselho é aprender tanto da nova cultura quanto possível e aplicar tanto
quanto possível em seus esforços de comunicação. Na verdade, muito do que
aprenderam em sua cultura será aplicável, mas precisará ser ampliado com novos
entendimentos (transculturais). [...] Quando cruzamos as fronteiras culturais, as
categorias conhecidas precisam tomar a si novos entendimentos, e novas categorias e
conceitos precisam ser dominados.100

Não se pode esquecer que a tarefa de pregar o evangelho é de todo o crente. Não está
reservado somente a teólogos, eruditos ou pastores. Todo cristão precisa se empenhar para falar
de Jesus. Esse empenho significa utilizar de palavras, expressões, conceitos e ilustrações que
possam ser compreendidos por aqueles que estão ouvindo.

Concluímos, portanto, que, conquanto se possam fazer certas afirmações genéricas


acerca do conteúdo do evangelho (e.g., 1 Co 15:1-9) e da necessidade espiritual do
homem na condição de pecador (e.g., Rm 3:9-18), a comunicação dessas verdades em
situações específicas envolve uma “contextualização do conteúdo” sob os aspectos de
definição, escolha, adaptação e aplicação”.101

98
Ibidem, loc cit.
99
Ibid., p. 46, 47.
100
HESSELGRAVE, op. cit., p. 124.
101
Ibid., p. 127.
46

Curiosamente (ou soberanamente) encontra-se nas Escrituras um tipo de


desenvolvimento dos aspectos mencionados por Hesselgrave. Há na Bíblia a definição do
Evangelho, os autores bíblicos fazendo escolhas de termos e conceitos, muitos desses termos
são perfeitamente adaptados e organizados para que os leitores compreendam a mensagem do
evangelho e possam aplicar o evangelho em suas vidas.
Encontra-se nas Escrituras uma contextualização que torna a mensagem de Deus para o
Homem algo profundamente pessoal. Os autores bíblicos, movidos pelo Espírito Santo,
escreveram de forma que é possível encontrar elementos úteis para quase todas as culturas ao
redor do mundo.

A mensagem cristã é universal. É para todos os homens, não importando a sua raça,
língua, cultura ou circunstâncias. Diante disso, alguns têm infantilmente suposto que
isso encerra o assunto. Se alguém conhece o que é o evangelho, tudo o que resta é a
motivação de passá-lo adiante. [...] Mas sem trair de alguma forma essa mensagem
única, os escritores e pregadores do Novo Testamento demonstraram, ao
comunicarem-na, uma notável variação não somente em estilo, mas no conteúdo. 102
[grifo nosso].

Percebe-se que até mesmo os autores bíblicos se preocuparam em fazer bom uso da
contextualização para comunicar a mensagem divina. Dentro dessa observação, tem-se agora,
não somente argumentos técnicos para despertar no cristão o desejo de conhecer melhor a
comunicação transcultural do evangelho, mas também há argumentos bíblicos para tal
despertamento.
Enfim, será analisado, nos capítulos seguintes, o uso que o apóstolo João faz do termo
grego “logos” no primeiro capítulo de seu evangelho como exemplo de uma comunicação
contextualizada. Para isso, será feita uma rápida explicação sobre o significado deste termo na
cultura judaica e grega do primeiro século, e qual o sentido que João dá para a palavra com o
objetivo de revelar quem era Jesus.

102
Ibidem, p. 126.
47

4 IMPLICAÇÕES E DIRETRIZES

Deus decidiu se revelar e se comunicar. Ao se revelar para o homem por meio das
Escrituras, Deus estava estabelecendo uma comunicação bem especial, permitido que as
verdades a Seu respeito permanecessem compreensíveis a todas as pessoas. A única mensagem
que traz esperança de salvação eterna para a humanidade precisa ser “comunicada”. Deus deseja
que o evangelho seja ensinado e comunicado em todos os povos da terra. Essa comunicação,
obviamente, deve ser feita de forma adequada.
Ronaldo Lidório diz que é exatamente esse exercício que o missionário deve fazer,
afirmando que o caminho é “começar com áreas de interesse e facilidade de compreensão e,
então, ir descolando para áreas que são mais complexas ou desinteressantes no padrão cultural
de pensamento que eles têm”.103 Ele diz que a escolha que fazemos do “por onde começar” é
determinada pela compreensão cultural do povo a ser alcançado.

“Note bem que uma certa configuração sociocultural vai abrir portas comunicacionais
para uma compreensão melhor de certas “teologias” do que de outras. Nós começamos
a ensinar essas certas “teologias” primeiro, então nós abrimos o gancho para eles
compreenderem as outras que são mais complexas e que vão confrontar o padrão de
pensamento”.104 [transcrição nossa]

Com este trabalho, portanto, fica ainda mais sólido o valor de uma comunicação que se
mantem teologicamente fiel e, ao mesmo tempo, é culturalmente compreensível e relevante.
Atualmente tem crescido no Brasil estudos detalhados sobre a comunicação
transcultural do evangelho. Diversos missionários estão se engajando na capacitação pessoal
para comunicar o evangelho com mais relevância em contextos diferentes. Hoje já existem
cursos específicos para aqueles que desejam ser missionários em culturas diferentes. O contexto
missionário mundial está se aliando para aprimorar as práticas da comunicação transcultural.
Mesmo assim, esse entendimento ainda está muito distante da realidade das igrejas.
Igrejas se engajam em programas evangelísticos, viagens missionárias de curto prazo, produção
de materiais evangelísticos etc., com as intenções mais corretas e sérias, com o desejo profundo
de ver pessoas sendo salvas. Contudo, mudanças ainda precisam acontecer nas igrejas
protestantes. As práticas evangelísticas atuais devem ser mais contextualizadas. Não é preciso
ir para outro país para se ter acesso a culturas diferentes. Mesmo nas cidades existem diversas

103
LIDÓRIO, Ronaldo. Capacitar 2015, aula 34. Disponível em: <https://youtu.be/Avqxn7nsrSM>. Acesso
em: 13 nov. 2019.
104
Idem.
48

culturas que precisam ouvir sobre Jesus de maneira mais pessoal e relevante. A Igreja,
entretanto, insiste em continuar apresentando o Evangelho com conceitos gastos e religiosos, o
famoso “evangeliques”. Isso acontece por razões pertinentes, mas que não podem servir de
impeditivos, como por exemplo, medo de romper com o passado, preguiça em se aprofundar
na compreensão da sociedade e da cultura, ou evitar a possibilidade das heresias.
Quando se negligencia a contextualização, danos irreparáveis podem surgir
(nominalismo e sincretismo são algumas das consequências). Lidório explica que a
contextualização vem em oposição à inculturação.

Enquanto a inculturação defende e propõe um Deus “aceitável” culturalmente, a


contextualização expõe Deus revelado e um evangelho que confrontará a cultura, visto
que o pecado contaminou o homem dentro de seu círculo sociocultural.105

Por outro lado, a contextualização não é o fim em si mesmo. O propósito dela é que
pessoas reconheçam e creiam em Jesus como senhor e salvador de suas vidas. Conforme explica
Lidório, o valor da contextualização é proporcional ao conteúdo a ser contextualizado. Deve-
se ter dois cuidados: 1) não contextualizar ou 2) contextualizar demais, e aquilo que não deveria.

“Nós estamos na ponte. A análise cultural tem seu lugar, mas se a análise cultural não
provocar uma ação de acordo com os códigos receptores, a gente perdeu tudo. O
problema é que a gente faz um bom curso de antropologia, mas quando chega no
campo missionário esquece tudo e vai pregar o evangelho para eles como se
estivéssemos pregando na nossa cidade, na nossa igreja”.106 [transcrição nossa]

Nesse trabalho, foi explorado o uso que João faz do logos para transmitir verdades sobre
Jesus, mas é notável que ele caminhou somente até onde deveria. Evitando o sincretismo, João
foi preciso e muito capaz; ele cuidou para que a mensagem fosse registrada com muita verdade,
mas também sem descartar os significados associativos. João utiliza logos trazendo outro
sentido semântico, falando da pessoa de Jesus como o Filho de Deus e a razão de tudo existir.
Com vistas em trazer sugestões para o desenvolvimento da prática da comunicação
transcultural adequada, observa-se algumas implicações e diretrizes que podem ser buscadas
inicialmente.
Buscar direcionamento de Deus e dependência do Espírito. O primeiro passo para
comunicar a pessoa de Jesus de forma compreensível para o ouvinte é dependência de Deus.

105
LIDÓRIO, op. cit., p. 22.
106
LIDÓRIO, Ronaldo. Capacitar 2015, aula 34. Disponível em: <https://youtu.be/Avqxn7nsrSM>. Acesso
em: 13 nov. 2019.
49

Quanto mais próximo o cristão está de Deus, em uma vida de piedade, obediência e culto, mais
facilidade ele terá de expressar seu amor por Deus e pelas dádivas de Jesus. O relacionamento
profundo com Jesus torna seus discípulos mais sensíveis e, portanto, comunicam o evangelho
de maneira muito mais natural e viva, afinal esse discípulo está vivendo Cristo e não uma
religião. Além disso, cabe ao cristão sempre pedir direcionamento a Deus de como falar e como
aproveitar as oportunidades. Aqueles que se tornam missionários em contextos transculturais
precisam de direcionamento para saber o que observar do povo e como a Bíblia pode responder
àquele povo.
Descobrir e aplicar estratégias. O caso do logos em João e outros exemplos revelam a
importância de se buscar formas de desenvolver uma comunicação contextualizada, direcionada
e clara do evangelho. Larry D. Pate afirma que para “atravessar a ‘rede cultural’ e alcançar uma
cultura de forma eficaz com o evangelho, é importante desenvolver uma estratégia
funcional”.107

O evangelista deve saber em que pontos as culturas diferem. Tem de conhecer os


princípios a serem aplicados, mas também deve saber como aculturar-se no grupo que
deseja alcançar. Para conseguir isso, deve lembrar-se de que o centro de toda cultura,
e seu gerador primário é a cosmovisão.108

As estratégias bem definidas são fundamentais. É claro que Deus não precisa de
estratégias humanas, mas quando o missionário está caminhando conforme o direcionamento
do Espírito Santo, as estratégias podem surtir grande efeito.
Analisar a cultura do povo alvo. Depois do avanço dos estudos em missiologia nas
últimas décadas, percebe-se que não é mais permitido que o missionário transcultural entre
numa cultura diferente sem lançar mão de uma metodologia de análise cultural. Hoje em dia,
existem centenas de recursos e métodos para se compreender uma cultura. Infelizmente, muitos
bons missionários, bem-intencionados e chamados por Deus, estão saindo para campos
missionários acreditando que podem se aprofundar no entendimento de uma nova cultura
intuitivamente. Isso não acontece. Não basta apenas morar no meio do povo alvo e aprender o
idioma local, é preciso seguir uma metodologia para compreender aspectos mais profundos e
importantes naquela cultura e, assim, introduzir o evangelho.
Estabelecer uma plataforma de relacionamento. Além de fazer uso de uma metodologia
para analisar a cultura, o missionário precisa estabelecer uma plataforma de relacionamento.

107
PATE, op. cit., p. 113.
108
Idem.
50

Durante o tempo em que se está aprendendo a nova cultura e a língua deve-se procurar
desenvolver relacionamentos verdadeiros de amizade. Pessoas são pessoas. Isso significa que
elas não são apenas objeto do trabalho evangelístico, muito menos números para um relatório.
O que o missionário mais deseja é ver pessoas pecadoras tendo a oportunidade de se arrepender
e crer em Jesus. Essas pessoas precisam do amor de Jesus, mas também do amor do missionário.
Relacionamento é uma marca indispensável de quem deseja levar o evangelho para outros
povos. Ministério são pessoas; é preciso se envolver em suas vidas e abençoá-las com a
mensagem da Cruz.
Encontrar os elementos culturais da audiência que torne o entendimento mais fácil.
Como visto neste trabalho, o termo logos foi utilizado de forma muito apropriada, pois era um
elemento que já fazia parte tanto do pensamento da sociedade da época, como da própria crença
deles. Nesse sentido, o missionário, depois de estar munido com o idioma e com uma boa
compreensão da cultura local, deve começar a apresentar o evangelho a partir de temas que são
mais fáceis dos moradores locais compreenderem. Não é aconselhável começar com conceitos
complicados de se entender e jamais começar com conceitos que o povo não possui. Por
exemplo, se o povo não possui uma compreensão sobre a existência de um Deus criador, não é
muito sábio começar os ensinos bíblicos com Gênesis 1 e 2. Essa compreensão virá com o
tempo, e na medida em que eles estiverem entendendo as coisas familiares com a própria
cultura, então começa os ensinos mais complexos.
Nunca esquecer que métodos ou técnicas não salvam ninguém; quem converte é o
Espírito Santo. O trabalho missionário é feito em equipe. Nunca se deve esquecer que é o
Espírito Santo quem vai salvar as pessoas. Pode acontecer do missionário ser diligente em todas
as etapas, ser um homem piedoso e ainda assim ninguém se converter, mas isso não significa
que as estratégias e os métodos fracassaram, pode ser simplesmente porque o Espírito Santo
ainda não converteu os corações. A luta de um missionário sempre será esta: “por que as pessoas
não se convertem?”. Não fique frustrado. Examine seu ministério, reavalie o que pode ser
melhorado, mas não tente avançar na tentativa de fazer o trabalho que é do Espírito Santo.
Trabalhe junto com Ele e em submissão a Ele.
51

5 CONCLUSÃO

O logos se encarnou. Esta verdade possuía um impacto na sociedade do século I. O logos


não é uma razão, ou uma força mental que traz equilíbrio ao cosmo, nem mesmo uma palavra
pronunciada poderosa capaz de mudar as coisas. João estabelece que o logos sempre existiu
num relacionamento próximo com Deus, e o logos era Deus.
Sem querer reduzir o valor teológico da cristologia joanina e todo o impacto para a
sólida doutrina cristã, não se pode ignorar o valor evangelístico desse livro. Este estudo abre
portas que ainda podem ser inexploradas por muitos missiólogos. Uma delas é exatamente
entender que Deus usou os autores bíblicos para comunicar a mensagem do Evangelho. Ao
analisar, portanto, o uso do termo logos em João 1:1-18, percebe-se claramente o estilo e a
sabedoria do autor bíblico em comunicar para seus leitores a respeito de Jesus. O estudo propõe
um desafio de olhar com mais atenção para as formas como Deus comunicou o Evangelho nas
Escrituras e, a partir daí, quem sabe, desenvolver uma teologia bíblica da comunicação.
Nesse sentido, o apóstolo João e outros autores bíblicos empregaram conceitos
conhecidos e compreendidos em sua época para transmitir a mensagem de Cristo. Isso é
admirável, haja vista que eles não possuíam nenhum conhecimento “técnico” ou “missiológico”
a respeito da arte da comunicação transcultural contextualizada. Contudo, fica evidente com o
presente estudo que João percebeu que a configuração sociocultural da qual seus leitores faziam
parte já possuía elementos que facilitariam a compreensão sobre a pessoa de Jesus. Ele entendeu
que poderia começar seu evangelho tratando da natureza divina e humana e do poder criador
de Jesus e que isso não seria um choque nos padrões de pensamento da audiência, fosse ela
judaica ou grega. Mesmo não havendo elementos textuais que poderiam explicar a pretensão
de João em começar o prólogo daquele jeito, foi possível, a partir do estudo do pensamento
cultural da sociedade, notar os pontos teológicos que o apóstolo desejou estabelecer, e ele fez
isso ressignificando o sentido do termo logos a sua cristologia.
Desta maneira, resgatar na Igreja uma visão holística onde teologia e missões andam
juntas é extremamente necessária e urgente. Saber que o próprio Deus se preocupou em
apresentar Seu Filho em uma determinada época, numa língua específica, para um grupo de
pessoas com um pensamento filosófico em forte desenvolvimento, e tudo isso mediante um
autor humano que decidiu usar um termo sociocultural adequado, é motivo mais do que
suficiente para esse resgate. A teologia profunda do prólogo não impediu a riqueza
comunicacional que João tencionou utilizar para dar início a sua narrativa.
52

Enfim, o desejo é que este trabalho sirva como um incentivo para os que são interessados
e chamados por Deus para comunicar o evangelho para pessoas de outras culturas. Ao ver a
riqueza do texto bíblico e a mão de Deus usando seu servo João para compor um dos livros
mais ricos de significados do Novo Testamento a reação deve ser de adoração ao Deus Salvador
e de um desejo profundo de participar da obra missionária que Ele mesmo iniciou e vai
completar quando o Logos retornar.
53

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