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construcionismo socia discurso, pratica e produgéo do conhecimen Carla Guanaes-Lore a Laura Vilela @ Sou 4 Rio de Janei y 20 / i / institu! OOs co Copyright © 2014 tn Reservados todos os direitos. E proibida a duplicagfo ou reproduc deste volume no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrinico, mecinico, ravago, fotoeépia, dist expressa da editora PRODUGAO EDITORIAL: Anna Carla Ferreira CoriprsguE; Rodrigo Peixoto REVISA0: Carolina Rodrigues CAPA: Murilo Moscheta PIAGRAMAGKO F PROJETO GRAFICO DO MIOLO: Fstiidio 513 Dados Internacionais de Catalogagio na Publicagio (CIP) (Cimara Brasileira do Liveo, SP, Bras Construcionismo so to / organizadores Carla Instituto Noos, 2014. iscurso, prtica e producio de conhecimen- anaes-Lorenzi,.fet al] ,-- Rio de dos Santos Moschet Laura Vilela e Souza, Outros organizadores: Mi donga Corradi-Webs: ografia BN 978.85-86132-21-6 ssa Men- 1, Construcionismo social 2. Percepgo social 3, Psicologia social 4 Psicoterapia de grupo 1. Guanaes-Loreni, Carla I, Moseheta, Murilo, dos Santos. 11, Corradi-Webster, Clarissa Mendonga, IV. Soura, Laura 1406060 epp-302 Desenvolvimento de Redes Rio de Janeiro — RJ — Brasil fel. fax: (21) 2197-1500 www.noos.org.br noos@noos.org br Agradecimentos Este livro é 0 resultado de anos de colaboragio e parcerias com outros pesquisadores, profissionais e alunos que tém acompanhado a nossa trajetéria no campo dos estudos sobre o movimento construcionista so- cial em cigncia, Seus nomes fazem parte das paginas deste livro, direta (nos capitulos de stia autoria) ou indiretamente (em nossas referencias bibliograficas). A estas pessoas, deixamos registrada nossa imensa gra- tidio pelo apoio na realizagao deste projeto. Agradecemos especialmente aos diélogos que tivemos com os profe: sores Sheila McNamee, John Shotter e John Willard Lannaman, da Uni- versidade de New Hampshire (EUA), por seus textos e nossos encontros mos dez anos. Este livro compartilha um pouco de suias ideias e convites para transformagio de nossas priticas Capitulo 2 Discurso construcionista soci uma apresentagao possivel LAURA VILELA E SOUZA. © meu primeiro cuidado ao apresentar o discurso construcionista so- cial é pontuar que qualquer definigo do que venha a ser considerado construcionismo social deve levar em conta dois riscos. © primeiro deles é 0 risco da reificagao de um “algo” que seria “o” construcionis- mo social. Ou seja, a ideia de que “o construcionismo social” seria uma realidade em si mesma, independente de nossas formas de descrevé- -lo. Portanto, poderia ser identificado a partir de suas caracteristicas, que seriam relativamente estaveis ao longo do tempo e reconheciveis por diferentes pessoas em diferentes espacos sociais. Como veremos neste capitulo, qualquer tentativa de definigao do mundo fisico, das pessoas e até do construcionismo social resulta de um processo de construgao social. O segundo risco é 0 da simplificagao, que é tomar essa apresentagio 04 como 0 reflexo da forma como as coisas ando de contextualiza: 50 | CONSTRUGIONISMO SOCIAL -lae perdendo de vista a legitimidade de tantas outras descrigdes em um ‘campo tio plural. Plural porque nele convivem diferentes tedricos que, em alguns pontos de suas proposigdes, aproximam-se, mas, em outros, se afastam. Por essa razio, uma opeio ¢ falar em termos de movimento construcionista social, com énfase nas mudangas, alteragées, fluidez e diversidade desse campo (BURR, 2003; RASERA; JAPUR, 2005). Ontra opgao € falar em movimentos construcionistas sociais, no plural, considerando-se os diferentes posicionamentos construcionistas como priticas ¢ conversas variadas, com origens diversificadas (GER- GEN, 1998). Tal diversidade € destacada quando se entende 0 movi- mento ou movimentos construcionistas sociais como didlogos em des- dobramentos permanentes entre pessoas dotadas de diferentes légicas, valores e visdes de mundo (GERGEN; GERGEN, 2003). Nio s6 0 uso do termo movimento construcionista social pode ajudar na valorizacio da mutabilidade desse campo, mas também a referéncia a construcionis- mos sociais, no plural (HOLSTEIN; GIBRIUM, 2008; RASERA; GUA- NAES; JAPUR, 2004). Outra forma de se levar em conta a pluralidade de autores do mo- vimento construcionista social esta na tentativa de classificar suas se- melhangas ¢ diferengas. Uma dessas classificagies divide os autores que teriam algumas caracteristicas proprias do weak constructionism ou do strong constructionism (SCHWANDT, 2008) para se referir & postura mais forte (strong) ou menos radical (iveak) na contraposicao a um dis curso realista, Outra classificagio os divide em autores do dark construc- Hionism ou do light constructionism (DANZIGER, 1997). No primeiro caso, os autores reconheceriam a importincia dos aspectos nao discur- ‘0S, como poder € corpo humano, nas construgSes relacionais. Para corpo e pod res do segundo grupo preconizam, mas realidades nao discursivas que devem ser levadas em conta como tal. Os termos dark ou weak foram ct outra classificagao foi delineada: o 1 iscursos, como os auto- icados por serem pejorativos & ro social constructionism ¢ 0 ma- CAPITULO 2 | 51 ero social constructionism (BURR, 2003). O primeiro tem como foco os microprocessos de uso da linguagem nas interagdes entre as pessoas, ¢ 0 segundo estuda as estruturas macrolinguisticas, No primeito grupo, os principais tedricos sio: Kenneth Gergen, John Shotte:, Jonathan Potter, Derek Edwards, Maléolm Ashmore, Margaret Wetherell ¢ Rom Harré, varios deles também autores da psicologia discursiva. Em comum, esse grupo tem o entendimento da construcao social como trocas interpes- soais cotidianas. No segundo grupo, os principais representantes sto: Foucault, Parker, Hollway, Burman, Willig e Ussher. Tais autores tam- bém valorizam a linguagem como construtora de realidades, mas en- tendem que seu poder construtor é derivado de estruturas sociais ou materiais. Tais teéricos tm como foco as relagdes de poder e 0 estudo das desigualdades sociais, buscando defender grupos marginalizados socialmente. Muitos investigadores optam pelo uso combinado das duas abordagens, micro e macro. Como vemos, diferentes autores apresentam diferentes construcio- nismos sociais. Abordarei, neste capitulo, os pressupostos que Kenneth Gergen aponta como importantes para entender um possivel constru- cionismo social, fazendo uma opgao circunserita em meio a outros ca- minhos legitimos de introdugio a esse discurso. Em 1985, Gergen escreveu um famoso texto. Na tenta ‘a de encontrar respostas a crise epistemoldgica pela qual a disciplina da psicologia social passava, Gergen escreveu, em 1985, 0 artigo “The social constructionist movement in modern psychology” Nesse texto, o autor apresenta quatro pressupostos que seriam préprios de uma investigacio construcionista social sobre o mundo e sobre as pessoas. Em 1994, Gergen escreveu o livro Realities ard relationships © ampliou seus argumentos, acrescentando a descrigiio de um quinto presstipusto. Sao eles: 1. Os termos por meio dos quais explicamos 0 mundo e a nds mesmos nao do ditados pelos abjetos estipulactos por esses relatos. Tal pressuposto nos informa que nada naquilo que tomamos como objeto (0 mundo fisico, as pessoas, os sentimentos, as percepg6es...) exi- ge um tipo de descrigao especifica e rejeita outra Para exemplificar, um cientista em um laboratério combina diferen- tes componentes quimicos ¢ observa ao que leva essa combinagio. Ao término do experimento, ele relata o processo & comunidade cientifica da forma mais objetiva possivel. Ele faz. seu relato buscando ser neutro no uso das palavras. Ou seja, ele nao fala dos componentes quimicos em termos de suas preferéncias pessoais ¢ nao conta a histéria de sua frustragio com relagio aos resultados do experimento. Esse cientista acredita que seus relatérios de pesquisa sio capazes de representar os elementos do mundo externo tal qual eles sao, além de acreditar na pos- sibilidade do relato dos eventos da forma como eles realmente acontece- ram. Ele acredita na separacio entre um sujeito (cientista) e um objeto (componentes quimicos) e na possibilidade de uma descrigao desconta- minada da relagao entre os doi: Outro exemplo: em muitas de nossas trocas co! ‘© mundo a partir dessa mesma separagio, considerando um “dentro de mim” ¢ um “fora de mim’ Esse “fora de mim” seria a realidade externa, ea realidade externa se mostraria para cada um de nés por meio de nossos sentidos, e seria possivel, a partir de mim, a descrigéo de como fianas, lidamos com as coisas so fora de mim. Mais um exemplo, Uma moga olha pela janela e diz estar vendo r- vores do lado de fora e algumas senhoras caminhando. Conta também que sente uma leve brisa e os raios do Sol em sua face. Uma forma de entender essa descrigio é tomi-la como a representacao de como as coi- sas realmente sio do lado de fora da janela. Nesse caso, a linguagem estaria servindo para transmitir, a quem interessasse, 0 cendrio visto. ‘Todavia, alguém familiarizado com as criticas feitas na histéria da cién- capiruLo 2 | 53 cia sobre a influéncia da subjetividade do observador na descricao de suas observagdes pode perguntar: Serd que essa descrigio dé conta de todos os detalhes da cena? As caracteristicas pessoais, o humor da moca naquele dia a sua atencao poderiam nao ter permitido que, no canto da cena, ela notasse uma crianga agachada brincando de esconde-es- conde ou que, entre as érvores, subia uma fumaga que poderia indicar um principio de incéndio. Se ela fosse do corpo de bombeiros, é possivel que a sua atengio se voltasse automaticamente a fumaga. Se fosse uma crianga também brincando de pique-esconde teria visto rapidamente a crianga agachada. Todavia, ser quem ela é a possibilitou ver as érvores, as pessoas, sentir a brisa e 0 inicio de um dia quente. Essas ponderagoes sobre a influéncia da subjetividade do observa- dor em seus relatos diferem da postura do cientista no exemplo anterior. © cientista acredita na possibilidade de alcancar a neutralidade de suas descrigdes, agregando valor a elas enquanto reprodutoras fidedignas de uma realidade externa. Jé 0 relato da moga sobre o que acontece do lado de fora da janela é questionado por alguém que nao acredita na possibi- lidade de sermos neutros em nossas narragées sobre o mundo. Sendo as- sim, a nossa subjetividade sempre entraria em cena, influenciando qual- quer tentativa de conhecimento sobre o que esta fora ou dentro de nds. Comparando esses dois exemplos, percebemos que se modifica 0 en- tendimento de como acontece a relagao sujeito-objeto, sendo que, no primeiro exemplo, essa telacio poderia acontecer de modo objetivo, mas no segundo, nao. Nos dois casos, porém, sujeito e objeto sio vistos como separados. E sé esse nao fosse 0 caso? E na direcéo da resposta a essa pergunta que Gergen (1994) nos convida a ir quando apresenta esse primeiro pressuposto. Poderiamos afirmar que 0 que é tomado como objeto nos exemplos anteriormente citados (0 cientista, a moga, os elementos quimicos, as Arvores) s6 se torna objeto porque alguém o reconheceu dessa forma. Sendo assim, © cientista participa da construgio da realidade dos elementos quimicos ec amoga, da construgio da realidade das drvores, e das senhoras do lado ‘58 | CONSTAUCIONISMO SOCIAL nela, de fora da j seria possfvel separar, como uma realidade em si mesma, o elemento quimico do cientista que 0 reconhece como tal. A separacio sujeito-objeto & posta em xeque. Neste momento, vou citar o que eu considero uma boa histéria para falar dessas diferengas, Bla foi narrada por Walter Anderson, no livro Reality isn't what it used t0 be, de 1990. Aqui, farei uma adap- tagao da histéria para 0 cenério brasileiro, Imaginemos um campo de futebol lotado de torcedores para um jogo entre Palmeiras e Sao Paulo. No jogo, acontece um lance que os palmeirenses tém certeza de se tratar de um legitimo gol. Os sio-paulinos gritam de volta, afir~ mando com convicgio que se tratou de um impedimento do jogador do time adversirio, Tres jutzes de futebol s80 chamados a tomar uma decisio para que se possa dar continuidade ao jogo. O primeiro juiz avalia a situagao ¢ atesta: “Existem lances vilidos (gol) e impedimen- tos € eu os nom tal qual eles sio.” Esse juiz pode ser considera- ta. Ele acredita em uma realidade externa que pode ser do um real descrita da forma como ela é Um gol é um gol, um impedimento. As regras do jogo, 0 m impedimento & € 0 rigor em sua observacao garantiriam que sua decisio sobre se foi ou no um gol €a decisio correta. © segundo juiz, porém, nto concorda com essa certeza do primeiro profissional, Ele afirma: “Existem lances validos (gol) e impedimentos ¢ cu os nomeio tal qual eu os vejo” Bsse homem entende que as caracte- a-teim isticas pessoais de um juiz podem influenciar sua decisio. E se ele for palmeirense? Ou sao-pauilino? E se estiver se sentindo téo pressionado a acertar que, mesmo olhando o tira-teima, sua visio seja influenciada Por seu estado emocional? E no estamos considerando um ju mau- 10 realism e 20 subjetivismo, -teima € 0 sistema virtual televisive que permit la que dividiw opinises. capiruLo 2 | 55 ~cariter, que deliberadamente favoreceri tro, Esse segundo j um time prejudicando 0 ou- esté falando sobre os aspectos subjetivos que nao poderfamos controlar e que nos possibilita partir de um ponto de vista pessoalizado, ‘Mas temos o veredicto de um terceito juiz a considerar. Ele afirma: Existem lances vilidos (gol) e impedimentos ¢ eles nada sio até que eu 0s nomei 1m falar das coisas apenas a Podemos tratar esse juiz como levando em conta 0 primei- ro pressuposto apresentado por Gergen, afirmando que gols ow impe- dimentos s6 se tornam realidades porque sio construidos dessa forma nas interagées humanas, Ou seja, fora de nosso conhecimento sobre as regras de futebol, gols e impedimentos poderiam nunca se tornar reais, para nés. Para avangar na compreensio dessa afirmacio, passemos 20 segundo pressuposto gergeniano. 2. Os termos e as formas por meio das quais alcangamos o entendimen- to do mundo e de nés mesmos sio artefatos social Produtos de trocas historicas ¢ culturalmente situadas entre as pessoas. Esse pressuposto indica que nao existe um jeito melhor de descrever as coisas, um jeito correto, porque para descrever algo ou julgar descri- Ges como corretas ou falsas sempre utilizamos parametros construidos em nossas trocas linguisticas. Para avaliar 0 mundo, no é possivel pisar fora de todas as tradigdes das quais participamos. As nossas descrigées siio produto de nossa imersao nos relacionamentos. Pensemos nas implicagdes desse pressuposto. Para tanto, temos 0 exemplo da escolha do nome de um bebé. Nada nas caracteristicas sicas de um recém-nascido ou em seu comportamento exige que ele seja chamado de Paula e ndo de Andreia. A escolha do nome é fruto das negociac6es empreendidas em uma dada comunidade em um dado momento histérico, As preferéncias de um pai e de uma mie por um ou outro nome refletem as histrias culturais aprendidas durante toda sua vida, Essas histérias falam de como alguns nomes sio de pessoas 56 | CONSTRUGIONISMO SOCIAL, socialmente reconhecidas como famosas, outros sio de personagens de TV que eram viles, mocinhos ete. Nao s6 nomes de pessoas sio convengdes sociais, mas qualquer no- meagio de qualquer coisa que vai ser tomada como objeto. Um exemplo sobre esse aspecto é a questio da homossexualidade. Considerando-se diferentes momentos histéricos, a homossexualidade jé foi entendida como um quadro psiquistrico a ser tratado, como fruto de componen- tes genéticos, como estilo de vida ou como caracteristica pessoal. Em todas essas descrigdes, 0 objeto homossexualidade se constréi como um “algo” que precisa ser compreendido, Nesse processo, torna-se real para és, circunscrevendo algumas formas de se pensar a sexualidade e dei- xando de fora outras descrigdes possivels, que poderiam nem tomar a divisdo hetero e homo como necesséria. A forma como descrevemos a nés mesmos também parte de con- vengdes sociais. Quando me descrevo como um eu, s6 0 fago porque, por meio de minhas trocas sociais, tenho conhecimento do discurso do individuo que, tradicionalmente, compée a ideia de um eu autocontido, ow seja, de um eu separado de um outro. Por participar dessa tradigio, posso tratar-me como alguém que sofre influencia de mundo externo, mas que é capaz de pensar por si mesmo, de tomar decis6es e de agir no mundo, Nessa légica discursiva, minhas ages sio de minha respon- sabilidade e meus erros podem ser punidos individualmente. Tratar a ideia de um eu autocontide como um artefato social é reconhecer que outras possibilidades de construgao identitéria sto possiveis. Tratarei das implicagdes desse pressuposto para construgo do eu mais adiante. Por hora, interessa explorar que, ao entendermos qualquer descrigao sobre 0 mundo como produto de trocas situadas entre as pessoas, esta- ‘mos nos posicionando contra verdades absolutas. No discurso construcionista social, toda verdade é uma verdade com “v" mintisculo, ou seja, é uma verdade porque alguma comunidade a legitima como tal, utilizando-se para essa definiggo parimetros histé- rica e culturalmente construidos. Nao é possivel, por essa razio, falar- mos em Verdades com “V” maitisculo, que seriam verdades que nao po- deriam ser contestadas por sua contextualidade, que se sustentariam no espaco € no tempo independentemente de quem as descreve como tal. Até as verdades descobertas pelo cientista do exemplo anterior se- riam, no discurso construcionista social, verdades com “v” miniscu- Jo, uma vez que sua legitimagao depende da crenga de que 0 método cientifico, com seu rigor, controle de variiveis e capacidade de experi mentagio, poderia levar & produgao de conhecimentos objetivos, ge- neralizaveis e incontestaveis. No entanto, tal modo de entender o que & ciéncia nfo éa tinico. Como veremos ao longo deste livro, outros enten- dimentos convivem com a forma tradicionalmente aprendida do que € conhecimento cientifico. Porém, se as descrigdes nao se sustentam fora dos acordos culturais, por que temos a impressio de que varios fendmenos permanecem imu- tdveis ao longo do tempo? O préximo pressuposto nos ajucla a respon- der a essa questo, 3. 0 gran em que uma dada explicagio do mundo ou do eu é sustentada no tempo nao é dependente de sua validade abjetiva, mas das vicissitu- des do processo social Se, como argumentado anteriormente, uma descrigio nao pode se sustentar por uma adequada relagéo com um mundo externo inde- pendente, como poderemos decidir entre diferentes descrigdes sobre 0 mundo? Em outras palavras, se 0 conceito de objetividade nao serve para validar nossos relatos, se existem varias verdades com “v” minds- culo que podem ser contraditérias, se nao é possivel contesté-las a partir de uma tradigao discursiva distinta da que a originou, como se posi- cionar frente aos acontecimentos? Como fazer escolhas? Como viver ‘em comunidade sem cair no caos? Como viver em um mundo no qual qualquer valor moral é tomado como referente a um modo de ser no mundo contextualizado em sua produgio? 58 | CONSTRUGIONISMO sociAL, Esses priprios questionamentos s6 podem ser elaborados porque, cultural ¢ historicamente, foi construfda a importancia da descoberta de verdades objetivas como forma de ba uma tradigio na qual acordo, consenso e certezas so considerados ne- cessdrios para a organizagio social seria um problema uma vida social ar as ages humanas. Apenas em na qual sejam valorizadas miiltiplas verdades. Gergen aponta 0 conceito de utilidade social como alternativa ao conceito de objetividade enquanto parametro para avaliagio das expli- cagées do mundo. As explicagdes vio sendo negociadas pelas pessoas, & ao serem consideradas titeis para dar conta de explicar as coisas, passam a direcionar praticas e podem ganhar o status de verdadeiras. O concei- todeu idade aponta para os processos microssociais de legitimagio das explicagées. Para decidir se algo é ou nao itil, nfo basta que uma pessoa 0 afirme como tal, & necessirio que, coletivamente, acordos se construam designando tal explicagio como importante, Quando tomo 0 conceito de objetividade como fundamental para se uma explicacio é verdadeira, tomo a comprovacio cientifica como © tinico caminho para relatos acurados sobre 0 mundo. Outras explicagdes, como as do senso comum, misticas ou religiosas, ndo pode- riam ser consideradas verdades, Todavia, quando entendo objetividade como uma construgio social, qualquer afirmagao, derivada do uso do método cientifico tradicional ou de conversas cotidianas entre as pes- soas, 6 candidata a ser tomada pelas pessoas como verdades contextuais, Nessa eleigao, os discursos sociais vigentes (como o discurso tradicional que acredita em verdades generalizaveis ¢ conhecimentos universalidades do conhecimento) participam da decisio de destaque de uma ou outra verdade). O exemplo de um tr imentar pode ajudar a pensar de que forma as explicagdes sobre comportamentos alimentares sio construi- das de manei intas dependendo do momento histérico e das pri- ticas de cuidado estabeleci capiruLo2 | so they Gull e Ernest Charles Lasegue escreveram, pela primeira vez, sobre uma condigao psicopatoldgica batizada de anorexia nervosa. Para esse: médicos, era a descoberta de um novo transtorno mental, Entendida como uma entidade nosoldgica, a anorexia nervosa passou a ser com- preendida pela comunidade cientifica como um objeto de intervengio tamento. © que aconteceu nesse processo foi a construgao de uma psicopatologia chamada anorexia nervosa. Participa da construgao da explicagio desse t discurso biomédico que defende a existéncia de uma “realidade ld fora” lade da anorexia passivel de ser identificada. Tal realidade seria a re nervosa. Mudando 0 momento histérico, em meados da década de 1980, as fe- ministas teceram criticas com relagdo a essa definigao da anorexia nervosa. ‘Tais autoras questionavam que as priticas de medicalizagdo ndo estavam nomeando uma condigo com existéncia em si mesma, mas participan- do da construgio dessa condigio. Assim, outras formas de descrigio do comportamento alimentar feminino foram sendo delineadas, tais como: negagio da alimentago como resposta & pressio de uma sociedade pa- triarcal (ORBACH, 1986; CHERNIN, 1986; MACLEOD, 1981); a magre- za feminina como resistencia & submissio das mulheres (BORDO, 1988); anorexia nervosa como fruto de priticas discursivas (HEPWORTH, 1999; MALSON; USSHER, 1996); anorexia nervosa como criago do dis- curso biomédico (BELL, 2006); e anorexia nervosa como constructo so- cial (DURAN er al., 2000). Voltemos ao terceiro pressuposto de Gergen para relacioné-lo a esse exemplo, Segundo o discurso construcionista social, a explicagio da anorexia nervosa é sustentada nas préticas de saitde atuais, pois descre- ve objetivamente uma realidade psicopatolégica. Ela se sustenta porque > 0 uso de mahtisculas e mimisculas, nesse caso, serve para curso biomédico da Anorexia Nervosa como 60 | CoNSTRUGIONISMO SOCIAL, diferentes pessoas se engajam em priticas sociais que garantem o status de real aos transtornos alimentares. Isso no é 0 mesmo que afirmar que existem diferentes formas de nomeagao de um mesmo fenémeno, que seria chamado por alguns de transtorno alimentar ¢ por outros, por exemplo, de pratica discursiva. O que esta sendo proposto é justamente que os processos de nomeagao constroem a maneira como esse fenéme- no seré considerado. Portanto, se uma explicagio do mundo s6 se sustenta pelas trocas sociais, a linguagem tora de realidades 50: quarto pressuposto. 6a representagao da realidade, mas a constru- is. E esse argumento que Gergen elabora em seu 4. A linguagem deriva seu sentido dos encontros humanos a partir da maneira que funciona dentro dos padrées de relacionamento. ‘Tal pressuposto est conectado 4 forma como 0 filésofo Wittgenstein entende a linguagem como derivada de seu uso social. Em seu livro In- vestigagdes filosdficas, escrito em 1999, ele aborda a nogao da linguagem como acao, em contraposigio ao entendimento da linguagem como representago. Ele se utiliza do exemplo da construgao de uma casa € aborda a conversa entre um pedreiro ¢ seu ajudante. © pedreiro pede um tijolo e 0 ajudante traz um tijolo. O ajudante traz 0 objeto correto pelo uso ostensivo da palavra tijolo, ou seja, ao longo de sua vida, sem- pre que as pessoas falavam de tijolos apontavam para um mesmo objeto, com formato retangular, cor amarronzada ¢ feito de terra. A enunciagio de uma palavra ¢ sua relagao com o que vai ser considerado 0 “objeto tijolo” foi assim construida. O mesmo ocorre com a nomeagao de todos 0s demais objetos. Nessa perspectiva, a linguagem é agio no mundo. Ao assumirmos essa dimensio pragmdtica da linguagem sé podemos entender qualquer termo, palavra, gesto ou expressio a partir dos padrdes de relaciona- mento que Ihes deram origem. Wittgenstein chama esses padrdes de capiruLo 2 | 61 ‘jogos de linguagem. Um exemplo oferecido pelo autor para entender esse conceito é o exemplo do jogo de xadrez. Afirmacées como: “xeque-ma- te? “ameacei seu rei’, “sua peca foi capturada’, “o cavalo sé pode se mo- ver em I 01 “o pedo nao pode andar para tras” s6 fazem sentido dentro do jogo de linguagem do xadrez, Somente por conhecermos as regras, desse jogo garantimos a inteligibilidade de tais afirmacées. Podemos pensar outros exemplos, comuns ao campo psicoldgico. Afirmagoes como “sua recusa evidencia o uso de um mecanismo de de- fesa’, ou “ele jé esté condicionado a agir dessa maneira’, ou “ele parece carecer de habilidades sociais adequadas” s6 fazem sentido se consi- derarmos os jogos de linguagem préprios do campo da psicologia. Os nao psicdlogos podem considerar essas frases bastante esquisitas ¢ terao dificuldade de continuar uma conversa que exija um conhecimento an- terior das teorias psicoldgicas que sustentam entendimentos especificos dessas afirmagoes. As mudangas sociais sempre produzem novos jogos de linguagem. Por exemplo, o termo “twitar” s6 faz sentido para quem esté fami zado aos jogos de linguagem préprios dos participantes das redes sociais ha internet, especificamente para os que conhecem a rede social Twitter. Fora desses jogos de linguagem a palavra twitar cai no non sense. 5. Avi cultural, wt as formas de discurso existentes é avaliar padrdes da vida Esse quinto pressuposto aborda uma das implicagées de assumirmos 05 pressupostos anteriores, Como nos diria Wittgenstein, se nao hé um elo que ligue obrigatoriamente as palavras as “coisas” as quais elas se referem, se sio as trocas discursivas que do esse cardter de “coisa” ao mundo, as pessoas, aos sentimentos, aos problemas, as solugdes, € pos- sivel fazermos a seguinte pergunta: E se essas “coisas” no precisassem ser da maneira que so? Tomar a linguagem como construtora de rea~ lidades ¢ tornar-se responsével pela avaliaglo critica das formas de vida 62 | CoNsTAUCIONIsMo SocIAL que clas constroem, Wittgenstein escreven que diferentes jogos de lin- guagem definem diferentes formas de vida, ou seja, ritus espectficos de relacionamento entre as pessoas. No jogo de linguagem do xadrez, por exemplo, formas de vida nas quais as pessoas se colocam como oponen- tes umas das outras se configuram. Nos jogos de linguagem no campo dia psicologia, formas de vida nas quais as pessoas contam seus proble- mas e 0s psicélogos as interpretam é uma das configuragdes possive’ ‘Tomemos 0 exemplo da maternidade. Historicamente, diferentes discursos sobre 0 papel da mulher no cuidado dos filhos foram sen- do delineados. Hoje, essas diferengas convivem no discurso do amor materno, que preconiza a ideia de um amor natural de toda mae por sew filho; no discurso da importincia da emancipagio feminina, que garante a possibilidade de uma mulher ter filhos e deixar de ser dona de casa para trabalhar; no discurso da mater lade como opgao, que de- fende que nem toda mulher tem que ter filhos para se sentir realizada ou feliz; entre outros. Tais discursos podem se complementar ou entrar em contraposi¢ao. Quando os discursos se sustentam na crenga em um real (por exemplo, o amor materno), é mais dificil uma convivéncia pa- cifica com discursos que afirmam 0 contririo. Contudo, quando pensa- mos nos discursos como produtos das interagdes humanas, nao como representagdes do real, podemos avalié-los a partir da inteligibilidade* que os originou. Avaliar as formas de vida construfdas nos jogos de linguagem nos quais participamos é uma ago que nos posiciona como corresponsi- veis pela manutengio do status quo. Tal posicionamento é chamado por Gergen de reflexividade critica, ou seja, a oportunidade de percebermos nossa participagio na manutengio de determinados rituals sociais. Nes- se posicionamento, como coloca 0 autor, deverfamos nos questionar s0- * Gergen (1997) define um niicleo de inteligibilidade como um corpo de propo- sigdes tedricas, metatedricas ¢ metodolégicas comuns entre os membros de uma dada comunidade, por exemplo, uma comunidade cien capiruLo 2 | 63 bre quem ganha e quem perde com a continuagio desses rituais sociai: ow o que ganhamos ow perdemos ao construir o mundo de uma forma e niio de outra, O principal efeito desse pressuposto estit no convite para questionarmos o que tomamos como dbvio, especialmente nos cendrios relacionais onde conflitos emergem, dificuldades se apresentam ¢ pro- blemas sao reificados. Isso nao quer dizer que, ao assumirmos o cariter construide do mun- do, precisamos, necessariamente, questionar tudo e todos. Sem nossos acordos sobre realidades dificilmente conseguirfamos sobreviver no dia a dia, Precisamos de entendimentos comuns sobre o que significa a luz vermelha em um semaforo, por exemplo, para que as pessoas consigam dirigir nas cidades que adotam esse eddigo. O questionamento passa a valer a pena nas situacdes em que a nossa avaliacdo das realidades cons- truidas & negativa, quando conflites sio identificados, quando grupos sociais sio marginalizados ou quando boas trocas sociais sio impedi- das, Nesses centitios, a reflexividade critica ajuda na problematizagio do que est sendo tomado como ébvio, em um esforco de desfamiliariza- Gao (SPINK; FREZZA, 1999) e de busca de alternativas, Uma ressalva é importante quanto a esse pressuposto, Qualquer avaliagdo que fagamos das realidades construidas é também uma construgao social. Ou seja, qualquer parimetro utilizado para questionar 0 que esta sendo toma- do como ébvio é contextualmente produzido. Qualquer construgio do bom ou ruim parte sempre de uma tradigao discursiva. Estranhamentos, criticas, dtividas e curiosidades Quando, pela primeira vez, apresento esses pressupostos aos meus alu- nos costumo ouvir alguns estranhamentos, eriticas, diividas ou curio- idades. As colocagdes de meus alunos so, em muitos momentos, as mesmas feitas pelos criticos aos tedricos do movimento construcionista social nas tiltimas décadas (GERGEN, 1994). A primeira delas: 64 | CONSTRUGIONISMO SOCIAL arecidas em outro lugar. nento em ciéncia nfo nasce de uma hora para outra. vai se constituindo a partir de muitas trocas com discursos, ideias € teo- jas que ja se fazem correntes no uso cotidiano, Além disso, diferentes movimentos em ciéncia podem se assemelhar por buscarem responder as mesmas criticas sociais postas em um mesmo momento histérico. Sendo assim, ¢ possivel fazermos aproximagdes entre 0 discurso cons- trucionista so Gergen, em seu livro Realities and relationships (1994), destacou tres mo movimento construcionista 1 e outros discursos contemporineos. movimentos sociais que influencia social e que, por essa raz4o, possum pontos de aproximagao. Sao eles: a critica ideoldgica, a critica retérico-literdria e a critica social. Em espe- « cas tém em comum o questionamento da linguagem essas trés como representagao do mundo. ‘Actitica ideolégica problematizon a tradigao empirista em ciéncia, que entende como possivel a neutralidade do pesquisador em seus relatos. Os ctiticos ideoldgicos se esforaram em apontar, nos textos cientificos, os vieses ideolégicos, crengas, valores e preconceitos que estavam sendo to- mados como descrigdes neutras de uma realidade, Essa critica, portan- to, influenciou o movimento construcionista social na medida em que chamou atengio para a necessidade de contextualizagao da produgio cientifica. Alguns criticos ideolégicos, porém, entendem ser possivel, a partir da posigiio que ocupam, identificar quais sdo esses vieses ¢ pre- conceitos, como se pudessem ocupar um lugar privilegiado de andlise dessas produgdes. Segundo os pressupostos construcionistas sociais, a propria descrigao sobre qual é a crenca ou valor defendido em um relato cientifico é também uma construgio social. A critica retdrica-literaria apontou que os relatos cientfficos nao sio determinados pelos objetos que descrevem, mas pelas convengies lite- rrivias, Ou seja, no seria possivel falar de uma realidade em si mesma, independentemente das construsdes textuais que as produzitiam. A in- capiruio? | 6s fluéncia dessa critica no movimento construcionista social esta no ques- tionamento da relagao de representagio entre um objeto e sua descrigao. Essa critica se afasta dos pressupostos construcionistas sociais na medida em que toma o texto como um si mesmo, como um es como uma producio humana, também passivel de contexte ‘A ctitica social enfatizou a contingéncia histérica ¢ cultural do co- nhecimento cientifico dado como legitimo e, nesse sentido, influenciow © movimento construcionista social ao querer entender 0 contexto cul tural em meio ao qual as ideias sobre o mundo se formam. ‘Todavia, diferentemente dos autores do movimento construcionista social, os criticos sociais, tais como Max Weber, Max Scheler e Karl Mannheim, tomam 0s processos sociais como existentes em si mesmos. mente construidos eu até aceito, mas © 1 diz.dos fenomenos naturais? Que I de a 2, Que os fatos socials so soc que o discurso construcio: ta so les sio socialmente construidos? Isso ¢ dil £ comum que as pessoas, ao ouvirem pela primeira vez. os pressupos- tos construcionistas, questionem criticamente se 0s seus autores no es- tariam negando realidades Sbvias como a pobreza, # poluigéo, o corpo ‘ow a morte (GERGEN, 2009a; IBANEZ, 2001). Ou negando que 0 Sol se pée toda noite, que existem as estrelas ou a gravidade... Para esses criticos, 2 afirmagio de que as realidades so socialmente construidas nao daria conta de explicar tais fenomenos. A resposta a essa indagagio est no en- tendimento da proposta construcionista social. Como nos alerta Gergen (2009a), é importante percebermos a diferenga entre assumir uma postu- ra relativista com relagao 4 construgao de realidades e de afirmarmos que nada existe, Ao assumirmos que qualquer afitmagao sobre a esséncia clas coisas nasce de acordos relacionais linguisticos néo negamos a existéncia de um mundo material ou de eventos fisicos. O que se est propondo é olhar tais afirmacées no como fundamentalmente reais. No momento em que comecamos @ falar do real, entramos no mundo discursive. 86 | ConstaucIONisMo sociaL Com relagao a essa critica, Hacking (1999) problematiza a nogao de construcao social propondo nao um “construcionismo universal” mas © esclarecimento do que esta sendo tomado como socialmente construido, Fle usa, como exemplo, a construgio de X, sendo X um fe- nomen qualquer. O autor afirma que X é composto em uma comple- xa matriz de instituicdes, materiais, procedimentos, agdes e discursos. Chamar todos os elementos dessa matriz de sociais pode se justificar no fato de que o que interessa para nosso estudo é 0 sentido de todos esses elementos para as pessoas, mas a stia materialidade nao deve ser questionada. O principal a ser considerado & que, a0 tomarmos algo como fun- damentalmente real, fechamos a possibilidade de diélogo com grupos € tradigdes que defendem o mundo de forma diferente. Como afirma Thanez (2001), afirmagées realistas podem funciona a favor de formas de vida produtoras de relagao de dominagio, uma vez.que nao levam em conta 0 caréter historicamente situado das construcdes do real. Nesse sentido, afirmagdes absolutistas promovem a verdade como indepen- dente das transformagées sociais, portanto imutavel e inflexivel. ‘Tal Postura, para Ibanez, impede um compromisso ético e politico de as- sumirmos a responsabilidade pelas nossas afirmagies sobre a realidade. 3.°O construcionismo social” afirma que o que tomamos como real & socialmente construido, E essa afirmacio também no é uma constru- $80 social? Sim. Os préprios pressupostos construcionistas sociais anterior- mente Presentados sio construgées sociais e nfo candidatos 4 verda- de tltima sobre como as coisas sao, Portanto, devem ser considerados dentro de seu contexto histérico ¢ cultural de produgio, Além disso, dlevem ser constantemente problematizados com relagio aos dispositi- Vos literarias e retéricos que utilizam, quais valores privilegiam e quais vores silenciam, capituLo 2 | 67 Assim, nao é possivel desmerecer © conhecimento construcionista social por meio da referéncia a verdades objetivas ou critérios transcen- dentais, uma vez que o préprio construcionista nao se posiciona como detentor de verdades universais. A perspectiva construcionista social & um discurso, ¢, como tal, oferece algumas op¢6es lingulsticas para es- timular as conversas entre as pessoas. E um convite para uma forma particular de relacionamento, para uma forma de vida, e sua postura de nao se assumir como “a” verdade abre espaco a emergéncia de sentidos alternativos ¢ a discussio de sua funcionalidade nos relacionamentos. Dessa forma, o convite é para que a critica possa acontecer nio a par- tir do tradicional jogo de linguagem do cenario académico, no qual uma teoria tem que estar errada para outra estar correta, mas sim para que seja tuma critica atenta a se 0 discurso construcionista social esta sendo capaz de oferecer novos recursos para agao entre as pessoas (GERGEN, 20092). 4. Assu relativismo absoluto, onde tudo é possivel e justificado, © discurso construcionista social me parece favorecer um Afirmar que nossas proposicdes sobre 0 mundo so contextuais € que verdades sto construidas nao reflete uma falta de preferéncia por certos modos de vida ou uma incapacidade de se posicionar. Como co- loca Ibanez (2001), um relativista n3o afirmaria que toda posigio ¢ tio boa como qualquer outra. O que ele propée é que qualquer posigio & equivalente com relagao a sua fundamentagao tiltima, que é nula para todas. E nesse sentido que sto consideradas equivalentes, Como alguém que participa de algumas tradigdes discursivas especificas, o relativista terd suas construgdes de certo e errade, de justo e injusto, de bom ou ruim, No entanto, ele no toma o critério de fundamentagio como base para essas decisdes. Ou seja, o relativista é chamado para o exercicio da autorreflexividade na avaliagao de suas escolhas, e inclusive na avaliagio de sua propria posigao relativista e nos efeitos de assumir essa postura no mundo. 65 | CONSTRUGIONISMO SOCIAL ‘Uma conversa com um aluno me inspirou 0 exemplo de um conflito entre um personagem representando 0 marxismo e outro as ideias pés- modernas. Nesse conflito, o primeiro denuncia o segundo como sendo incapaz, de defender 0 povo das dbvias agdes de submissio da classe dominante. Nesse caso, que se estdé tomando como real sio as relagées de poder entre uma classe dominante ¢ outra dominada. Nesse cendrio, © personagem pés-moderno, defensor de um relativismo radical, estaria sendo acusado de nfo tomar como verdade essas relagbes e, dessa for- ‘ma, prejudicar a populacdo por nfo pensar estratégias de combate a tal forma de vida. Eis um exemplo interessante de ser explorado em termos do posicio- namento relativista radical. Ao tomar as relagdes de poder como exis- tentes em si mesmas, 0 personagem marxista pode propor medidas de justiga social, mas, ao mesmo tempo, considerar errénea qualquer leitu- ra.que nao tome essas relages como verdadeiras. Além disso, a morte declarada 4 pés-modernidade e ao relativismo parece ter relagao com 0 fato de se assumir que o personagem pés-moderno ficaria sempre em cima do muro, esquivando-se de sua responsabilidade ética e politica de transformagio social. Uma resposta possivel do personagem pés-mo- derno poderia ser que ele nao considera as ideias marxistas erradas e dignas de serem abandonadas, mas pas termos das préticas que sustenta. Quando deixamos de nos preocupar eis de serem consideradas em com as esséncias do mundo, passamos a olhar para as teorias huma- nas como performances possiveis para construgio de realidades mais ou lingo dessa adequacio sempre realizada menos adequadas, sendo a @ de forma contextualizada. Dizer que as realidades sio so: possiblidade de construirmos mundo eas pessoas da forma como qu sermos. Tal possibilidade esta circunscrita pelos critérios socialmente compartilhados de definigao dos objetos, realidades e verdades. Depen- dendo do critério, um recorte do real seré feito. Imente construidas nao ¢ afirmar a CAPITULO 2 | 69 5, Para os psicdlogos, niio seria uma grande perda o abandono dacrenga em uma experiéncia pessoal? Muitas teorias psicoldgicas modernas se sustentam na ideia de sub- jetividade (GONZALEZ REY, 2005). Nesse sentido, é interessante fazer tum resgate histérico para perceber como o discurso da interioridade ou da subjetividade foi se tornando muito caro a sociedade ocidental balizando varias de nossas préticas cotidianas e garantindo a legitimi dade de muitas de nossas instituigdes. Propostas de educagio sio feitas pensando-se em mentes individuais que devem ser ensinadas, a demo- cracia € colocada em prética acréditando-se que decisdes podem ser individuais, a justica é defendida a partir da ideia da agéncia pessoal ¢ da responsabilidade individual pelos comportamentos humanos (GER- GEN, 2009a). Olhando por uma perspectiva cultural, percebernos que nem todas as culturas prescindem de uma nogio de um eu autoconti- do, com uma esséncia universal para compor suas trocas sociais. ‘Tais stéricas ¢ transculturais favorecem com que possamos m discurso e entender o self como nvestigacdes tomar a experiéncia pessoal como uma construgio social, como a proposta construcionista social. Dessa forma, o foco das investigagdes passa a ser sobre a forma como vocabu- larios de seif sustentam priticas culturais especificas, impedindo outras formas de construgao identitéria (GERGEN, 2001). Por exemplo, quando tomamos 0 “eu” como autocontido, as relagdes humanas passam a ser vistas de forma utilitéria, © outro é o meio para obter a minha realizagao pessoal. Dizer-se dependente é sindnimo de fraqueza. O discurso da subjetividade, ao manter a separagio eu-outro, afirma o modelo de relacionamento entre pessoas como de causa e efe to. A familia moldando a personalidade dos filhos, a escola moldando as mentes dos alunos, a midia afetando © comportamento das pessoas. Essa forma de entendimento leva a sociedade a valorizar formas de ava- iagdo individual, com a comparagao entre individuos inferiores ¢ su- periores, a competicao e 0 aumento da sensagao de fracasso pessoal 70 | CONSTAUCIONISMO SOCIAL, Além disso, essa tradigio aumenta a culpabilizagao ¢ punigao individual (GERGEN, 2009a). © discurso construcionista social incentiva iniciativas tedricas de producio de sentidos sobre o que é ser alguém que saia de uma pers- pectiva de isolamento individual para uma perspectiva que valorize os Processos relacionais. Dessa mancira, considera-se que no processo re- Jacional nasce a prépria ideia de um “eu” (GERGEN, 2011), Voltando a questio apontada, o abandono da crenga (ou certeza) na experiéncia pessoal ow subjetividade nda seria uma perda para a pritica Psicolégica? Eu entendo, e creio nao estar sozinha nesse entendimento, que, ao apostar em uma visio relacional do self, os teéricos do movi- mento construcionista social nio estio sugerindo 0 abandono da visio tradicional do eu, da causalidade ou da agéncia pessoal. Essas concep- ‘Fes nao estdo sendo julgadas como erradas ou falsas, mas consideradas partir de uma perspectiva pragmitica, a partir da andlise de seus efeitos nos contextos microssociais de produgao de sentidos (GERGEN, 2009a). Do que ficou e como seguimos © objetivo principal deste capitulo é oferecer alguns conhecimentos in- trodutérios no campo das produgdes construcionistas sociais, Por assu- mir seu carter introdutério, no me comprometi com o aprofundamen- to de alguns pontos abordados que poderiam abrir longas ¢ importantes conversas. Por exemplo, a exploragao das diferengas e aproximagdes entre os tedricos do movimento construcionista social, o detalhamento dos conceitos da filosofia da linguagem que embasam os pressupostos construcionistas sociais, 0 resgate histérico das construgées sobre self que sustentam a necessidade de se explicar o ser humano a partir de uum mundo interno, a forma como outros pesquisadores do campo das ciéncias humanas apresentam as influéncias historicas do movimento construcionista social, entre outros aprofundamentos posstveis, caviruto 2 | 71 Ao longo deste livro, o leitor teré oportunidade de ver esses pontos ampliados. Por enquanto, gostaria que este capitulo funcionasse como disparador de novos didlogos, especialmente para leitores iniciantes neste campo. Para tanto, apresento a seguir um quadro com possiveis fontes complementares de estudo, Sao enderecos da internet com indi- cages de textos, videos e informagdes que podem ampliar a apresenta- 40 aqui iniciada, Desejo a todos um bom estudo! Dicas da autora: textos, filmes ou videos + Taos Institute, organizacio sem fins lucrativos interessada em pro- mover 0 discurso construcionista social para promogao de trans- formagdes sociais. Em sua pagina na internet & possivel conhecer e trocar informagées com pessoas do mundo inteiro que, de alguma forma, tém o discurso construcionista social informando suas pri- ticas. A pagina traz também informagées sobre futuras conferéncias € workshops sobre essa temiitica ao redor do mundo: www.taosins- titute.net/ + Pagina de Kenneth Gergen, professor do Swarthmore College, EUA, onde é possivel encontrar a relagio de seus livros publicados e links para acesso e download gratuito de muitos de seus textos: www swarthmore.edu/kennethjgergen.xml + Pagina de Sheila McNamee, professora de comunicagao da Univer- sidade de New Hampshire, BUA, na qual é possivel conhecer a re- lacto de seus livros publicados além de fazer 0 download gratuito de muitos de seus textos, alguns em portugues: http://pubpages.unh, edu/~smenamee/ + Para os interessados no campo das priticas terapéuticas, a pagina de Harlene Anderson oferece artigos, links para videos com palestras sobre 0 assunto ¢ divulgagio de cursos para capacitagao em terapia colaborativa: htip://harleneanderson.org/web/ Como definido pelo autor, a pagina de John Shotter é um espago para conhecer seus mais recentes pensamentos sobre democracias partic pativas, entre outros de seus interesses. Shotter professor emérito da Universidade de New Hampshire, EUA: wwwjohnshotter.com/ No YouTube ¢ possivel encontrar videos de palestras proferidas por tedricos construcionistas sociais disponibilizadas em diversas lin- guas: www.youtube.com Capitulo 3 Ferramentas tedrico-conceituais do discurso construcionista CLARISSA MENDONGA CORRADI-WEBSTER O discurso construcionista social vem sendo compartilhado por varios au- tores, de diferentes disciplinas (GERGEN; GERGEN, 2003; BURR, 2003). Chamaremos aqui de discurso construcionista social, nao de teoria cons- trucionista social, seguindo a sugestiio de Guanaes (2004) de que a palavr “teoria” traz.a ideia de algo que representa a realidade e que explica, de modo valido e fidedigno, a natureza do mundo e das pessoas. Como temos destacado no decorrer deste livro, esta ndo é uma proposta cons- trucionista, j4 que o seu discurso compreende que as teorias so legiti- madas a partir de um contexto histérico e cultural definido, Assim, a0 chamarmos de discurso construcionista social, convidamos o leitor a nao accité-lo como a verdade, mas a tratd-lo como mais um modo de construir um entendimento sobre o mundo e sobre as pessoas. De acordo com este discurso, a experiéncia humana é construida em um contexte histérico, cultural e linguistico. Algumas ferrar

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