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consirucionismo socia discurso, pratica e produgaio do conhecimen Carla Guanaes-Lore’ Murilo S. Mosc! Clarissa M. Corradi-Webs Laura Vilela e Sou / Rio de Janei / 20 Copyright © 2014 Instituto Noos Reservados todos os direitos. £ proibida a duplicagio ou reprodugso deste volume no todo ou em parte, sob quaisquer formas ou por quaisquer meios (eletrdnico, mecinico, Bravagio, fotocépia, distribuigao na internet ou outros), sem permissio expressa da editora, PRopugio ep1rorrat: Anna Carla Ferreira cov1pesque: Rodrigo Peixoto xuvisio: Carolina Rodrigues Moscheta DIAGRAMAGRO E PROJETO 6: ICO DO M100: Esttidio 513 discurso, priticae pro. ‘o/ orpanizadores Carla Guanaes-Lorendi., eta Instituto Noos, 2014. Rio de Janeiro Outros organizadores: Murilo dos Santos Moscheta, Clarissa Men- donga Corradi-Webster, Laura Villa e Souza. Bibliografia ISBN 978-85-86132-21-6 2. Constr Peieoters onismo social 2. Percepgio social 3, Psicolog’ de grupo I, Gua 1. Corradi-Webst 14-06080 ‘cpp-302 Desenvolvimento de Redes Sociais Rua Alvares Borgerth, 27 — Botafogo ~ 2270-080 Rio de Janeiro — RJ — Brasil ‘Tel /fax: (21) 2197-1500 wwwinoes.org br noos@noes.org.br Agradecimentos Este livro € 0 resultado de anos de colaboracao € parcerias com outros, pesquisadores, profissionais e alunos que tém acompanhado a nossa trajet6ria no campo dos estudos sobre o movimento construcionista so- s deste | cial em cigneia, Seus nomes fazem parte das pi reta (nos capitulos de suis autoria) ou indiretamente (em nossas referéncias bibliogréficas). A estas pessoas, deixamos registrada nossa imensa gra- tidao pelo apoio na realizacao deste projeto. Agradecemos especialmente aos didlogos que tivemos com os profes- sores Sheila McNamee, John Shotter ¢ John Willard Lannaman, da Uni- versidade de New Hampshire (EUA), por seus textos € nossos encontros presenciais nos iiltimos dez anos. Este livro compartilha um pouco de suas ideias e convites para transformagao de nossas priticas cotis | | Capitulo 1 A pos-modernidade e 0 contexto para a emergéncia do discurso construcio: NURILO DOS SANTOS MOSCHETA Prélogo Para compreender 0 discurso construcionista social como uma proposta de nova inteligibilidade em ciéncia é necessério situé-lo no contexto das mudangas culturais que possibilitaram sua emergéncia, De modo geral, este contexto pode ser identificado como 0 movimento cientifico, cultu- ‘0 que tem sido chamado de pés-modernidade. O meu objeti- raleat vo neste capit vimento para auxiliar 0 leitor a produzir sentido sobre as cir histéricas ¢ culturais nas quais 0 discurso construcionista social emerge, as necessidades e forgas que cooperam para esta emergéncia e com quais questdes e desafios ele dialoga e propde uma possibilidade de resposta. Contudo, apresentar um texto introdutério sobre a pés-moder- nidade é, sem duvida, um percurso tio fascinante quanto traicoeiro. , portanto, é apontar alguns aspectos centrais deste mo- stancias 24 | CONSTRUGIONISMO SOCIAL, © principal risco é cair na armadilha de produzir uma apresentagao que defina o que a pés-modernidade tem como uma de suas marcas prin- cipais: a recusa is explicagdes e definig6es totalizantes. A pés-moder- nidade congrega um feixe de miiltiplos discursos préximos e divergen- tes, com zonas de intersecio e oposi¢ao, cuja semelhanca esta no modo como se reconhecem enquanto possibilidades discursivas em oposicio a narrativas explicativas nicas ¢ absolutas. Assim, a apresentacio que farei aqui esté circunscrita ao que entendo ser relevante para 0 propési- to deste livro, e, a0 longo do texto, espero sinalizar referéncias titeis para 0 leitor interessaco em investir em outros modes de apreensio e descr io da p6s-modernidade, O fascinio desta empreitada est em adentrar um campo de discussdes revolucionario que se alimenta de variadas fontes ¢ que reverbera em miiltiplas dimens6es da experiéncia humana: nas universidades, nos laboratérios de pesquisa, nas galerias de arte, na arte de rua, na moda, na arquitetura, nas bancas de jornais ¢ revistas, na televisio, na mai em geral, no livro que lemos antes de dormir, no artigo que escrevemos para uma revista cientifica, na miisica que ou- vimos em um encontro romantico, na nossa forma de fazer encontros, naquilo que chamamos de amor... Em cada cenario e para cada “objeto” a pés-modernidade tem algo inquietante a dizer. E 0 contexto no qual sua poténcia e prolixidade so mais evidentes talvez seja 0 campo das que comegamos... artes. Por isso, é por Uma galeria Imagine que estamos visitando uma galeria de arte com uma exposicao sobre o tema mulheres. O curador preparou uma sala com seis quadros distribuidos ao longo de quatro paredes brancas ¢, no centro da sala, uma escultura, Ao entrar, seguimos em sentido hordrio € vamos acom- panhando as obras organizadas em uma linha histérica. A primeira obra Muther com arminho, pintada por Leonardo Da Vinci, no século XV. CAPITULO + | 25 Por um momento, observamos a elegincia da composicéo, do uso da cores, das pinceladas suaves ¢ da construgao de uma imagem harméni- ca. A julgar por suas roupas e postura, trata-se de uma mulher rica, € 0 animal que ela carrega no colo (segundo as explicagdes do guia que nos acompanha nesta exposicio imagindria) é uma referéncia simbélica aos valores morais da dama: integridade, pureza e temperanga. Seguimos para o préximo quadro ¢ nos deparamos com duas mu- Iheres que nos encaram a partir de uma janela no quadro Duas mulheres na janela, do pintor espanhol Bartolomeu Murillo, No aspeeto formal, ‘vemos um apuro na técnica de registrar sombra e luz. As fig ham m: limensionalidade, a pintura tem profundidade e ficamos assombrados com a exceléncia técnica do pintor, que parece fotografar com pincéis. No contetico, vemos duas mulheres pobres, que nos olham nos olhos. Quem serdo? O que querem de nés? Nosso guia talvez nos ajudasse revelando que a opcio temitica do pintor foi orientada pelas intimeras dificuldades que assolaram a Espanha no século XVII. Ao contririo da dama pintada por Da Vinci, as mulheres deste quadro sto provavelmente cortesis, ‘Um salto de dois séculos e chegamos ao expressionismo de Picasso, autor do terceiro quadro desta exposigio. As tragédias espanholas tam- bém sio 0 tema de A mulher chorando. Yemos um rosto dilacerado em Ihagado em quinas retas e afiadas. As pinceladas Angulos, sulcado e es ‘grossas j4 ndo buscam uma verossimilhanca com uma figura de mulher, mas sobretudo com seu choro e sua dor. O pincel do artista serve a0 oficio de retratar a emogao, e nao tanto a cena. Décadas mais tarde, Gustav Klimt pintaria outra emogao, No qua- dro seguinte vemos Judith, heroina biblica que seduz seu inimigo para depois decapiti-lo, No quadro, ela nos olha altivamente, expressando em seu rosto os ingredientes de um éxtase: sexo ¢ morte, Judith é car- nal, sedutora € poderosa. Ela expressa 0 oposto da “Pin-up” que Roy Lichenstein pintou na década de 1980, Usando uma técnica que reme- te As maquinas de impressio em série, o artista retrata o rosto de uma 26 | GONSTRUGIONISMO SOCIAL, mulher com contornos de boneca ~ a mesma boneca tao popular e que lota corredores inteiros de lojas de bringuedos. E uma mulher plastifi- cada pelas idealizagdes da indiistria, do mercado ¢ do consumo. & uma sem marcas de pincel que ~ como um televisor obra de arte que mimetiza a produgio fabr insinuem o movimento humano da mao do artist em uma linha de montagem ou um desenho que colorimos conforme as cores indicadas pelos mimeros. © iiltimo quadro desta exposigao apresenta uma fotografia de um perfil feminino de beleza classica esculpido em marmore. Ao lado, a ar- tista contemporanea Barbara Krueger colow a frase “Seu olhar me acerta spirado em campanhas publicitétias. A mulher de 6 rosto’, num esti Krueger nao nos olha, mas também nao se cala. Na verdade, esta mulher denuncia que o nosso olhar faz algo com ela. Na exposigao, esta € a pri- meira obra sobre mulheres composta por uma mulher, e Krueger parece nos dizer que esse detalhe nao € irrelevante. Finalmente, olhamos para 0 centro da sala e nos deparamos com uma pitha retangular de tijolos comuns, algo que sequer reconhecerfa mos como obra de arte se nao estivesse dentro da galeria ¢ acompa- nhado da etiqueta: “Equivalente VIII - 1966 - Carl Andre.” De fato, quando comparada & maestria dos artistas cujos quadros acabamos de ver, a obra de Andre parece tio simples que somos tentados a dizer que qualquer um de nés poderia ter feito aquilo. O que faz disso uma obra de arte? © que o artista quer dizer com isso? Nosso guia nos ajudaria dizendo que a obra é considerada um dos marcos da pés-modernidade nas artes e que stia poténcia nao esti no que retrata, mas no que produz, ou seja, no nosso estranhamento, desconforto ¢ necessidade de “teori- zar” sobre ela para poder aprecié-la. A obra nao se entrega facilmente a0 consumo de nossa apreciacao estética, mas convoca nossa capacidade de pensar sobre ela. Ela é esfinge: “Decifra-me, ou siga em frente” Bas- taria que nos perguntéssemos o que tal obra nos diz sobre as mulheres ¢ teriamos garantidas horas de intensa elucubragao. Tijolos nunca nos fizeram pensar tanto, Desta nossa visita a galeria imaginaria, eu gostaria de destacar alguns pontos que nos servirie como guias para, logo mais, compreender 0 movimento de mudanga nos modos de pensar e produzir ciéncia, Para sso, em minhas pontuacées, vou priorizar 0 eixo histérico da exposi- ‘io, Pergunto-nos: que mudan¢as na escolha temética, no modo de tra~ balho do artista e na relagao da obra com o piiblico podemos notar a0 percorrermos a linha do tempo proposta pela exposigiio? 1m relacao a escolha temtica, eu gostaria de destacar que a exposi- gio coloca em evidéncia diferentes formas de se falar da mulher: como figura quase-mitica e de valores morais idealizados, como vitima de ma- zelas sociais, como sedutora poderosa ¢ perigosa, como objeto de con- sumo, como oprimida pelo (e resistente ao) olhar patriarcal ¢ assim por diante. Qual obra retrataria de modo mais completo o que entendemos como mulher? Qual vocé apontaria como a imagem mais préxima ao que tomamos como a realidade da mulher? A despeito de suas prefe réncias pessoais, todos os confrontados a estas perguntas se recusaram a escolher apenas uma obra. Disseram-me, com frequéncia, que cada artista retrata uma mulher diferente, no necessariamente complemen- tares nem necessariamente excludentes. E todos reconheceram que cada artista compés em sua obra uma mulher possivel de ser concebida em certo momento histérico. Em sintese, falamos da multiplicidade do “tema” e de sua contingéncia sécio-histérica. Em segundo lugar, quando olhamos para a mudanga no modo de trabalho dos artistas, identificamos que a preocupagio tratar vai dando lugar & uma intencionalidade de provocar, Da Vinci ¢ icial em re- ‘Murillo, por exemplo, produzem imagens que guardam semelhangas 20 que reconhecemos visualmente como mulher. Sio representagdes mais “realistas’, pois traduzem para a imagem os atributos e qualidades visi- veis de uma mulher: elas tém face, olhos, boca, natiz, seios... Comprometidos com a verossimilhanga de suas representagdes, os artistas reduziram suas marcas pessoais na obra. Assim, & preciso ser um especialista em arte para poder distinguir entre quadros de artistas 25 | CONSTRUGIONISMO soclAL de um mesmo periodo, como Murillo, Rubens, Rembrandt ou Carava- ggio (sem recorrer s suas assinaturas, obviamente). Ao contrario, uma obra de Picasso é muito mais facilmente reconhecida enquanto tal. A mulher deste artista tem menos semelhanga visual com as mulheres que encontramos todos os dias, ¢ guarda muito mais fidelidade com 0 que © artista quis expressar do que com a forma de um rosto de mulher. De maneira parecida, ¢ justamente o que Krueger e Andre querem dizer que transforma seus trabalhos em obras de arte. Em sintese, estamos falando de um deslocamento da arte como representagao para a arte como interrogaciofprovocagio. Ao mesmo tempo, estamos falando de um processo de secularizagio da arte, Bla se tornou menos dependen- te de refinadas capacidades técnicas, duramente treinadas em anos de pritica formagio artistica, e mais préxima ao fazer comum de todos. Afinal, quem nao sabe empilhar tijolos? Contudo, seu status de arte de- penderd, entre outras coisas, do seu poder para gerar discursos sobre si mesma e do modo como outros discursos e poderes a legitimam en- quanto arte: para que tijolos sejam arte & preciso que estejam no interior de uma instituigdo legitimadora, como um museu ou galeria. Finalmente, observando © modo como nos relacionamos com as obras da exposigao, notamos que passamos a ser cada vez mais exigidos em nossa capacidade de dialogar com elas, Dialogar, neste contexto, sig- nifica ir além da mera apreciagao e ser capaz de produzir interrogagées, associagdes e explicagbes temporrias para o que vemos, mas também significa entreter uma postura critica e desconfiada da sedugao estéti- ca. Ads poucos, nos vemos menos contemplativos e mais participantes, menos expectadores ¢ mais coautores das obras. Se essas mesmas obras parecem se tornar cada vez menos completas e autoexplicativas, nés, complementariamente, nos tornamos cada vez mais responsiveis por seu sentido. De que maneira este passeio virtual por uma galeria de arte imagi- ndria pode nos ajudar a compreender as transformagées no modo de conceber ciéncia? Imaginem um novo passeio, desta vez a uma galeria caPiruLos | 29 de ciéncias que, por fins didéticos, exibe apenas duas obras: modernida- de e pos-modernidade. Como voces poderiio ver, a minha apresentagio sobre o movimento entre estes dois discursos cientificos ecoard os prin- cipais aspectos que sinalizei em relagio as mudangas no campo artistico. ‘Tal como fiz com a arte, vou apresentar estes dois discursos em ciéncia destacando, especificamente, suas preferéncias em termos de aborda- gem dos temas, dos métodos e das formas de relagio entre pesquisador, pesquisa e pesquisados. Representagao, controle e neutralidade Se a modernidade fosse um quadro, teria sido produzido ao redor do ano 1500. Certamente, os discursos e condigbes sociais que favorece- ram sua emergéncia jé podiam ser vistos antes disso e levaram muitos anos até que se consolidassem com forga suficiente para se estabelece- rem como o modo hegeménico de produgio do conhecimento. Mais que precisar uma data, 0 que nos importa & marcar que, por volta do século XVI, emergem diferengas significativas em relagZo a cultura eas condigdes de vida na Idade Média, Para compreender tais diferengas, sigo a exposicao itil que Ibaitez. (2002) faz da modernidade ao separar a dimensio sociolégica e discursiva deste periodo. Na dimensio sociolégica, destaca-se 0 desenvolvimento de tecno- logias que impactaram profundamente o modo de vida da época ¢ que possibilitaram uma nova forma de relagiio com 0 conhecimento: da sua produgio, difusio e sentido na vida das pessoas & organizagao da vida comum. Considere, por exemplo, 0 desenvolvimento do aparato que chamamos de microscépio. Em 1667, utilizando uma versio “moderna” deste equipamento, o holandés Anton van Leeuwenhoek observou mi- cro-organismos pela primeira vez, inaugurando um novo campo de ex- ploracio: a microbiologia (EGERTON, 2006). Imagine o impacto que a invengdo deste equipamento e a observagao que ele possibilitow tiveram 90 | CONSTRUGIONISHO SOCIAL no modo de vida daquele periodo: pela primeira vez era possivel ver © comprovar a existéncia de seres que, embora muito pequenos, eram responsdvcis pela disseminacao de mazelas de proporedes catastréficas. E mais, estes seres nao tinham a aparéncia de anjos ou deménios, nio respondiam a feiticaria € ndo obedeciam a leis espirituais. Ao contrério, cram parte de nosso mundo, responcliam 4s mesmas leis naturais a que estivamos submetidos, podiam ser controlados e eliminados e, acima de tudo, foram descobertos pelo exercicio metédico da capacidade hu- mana de raciocinar. A razio, no a fé, nos recompensava com a liberda- de e nos prometia o progresso, Contudo, para 0 filésofo Pierre Levy, a invencdo mais importante, no que se refere & transformagio do modo de pensar da era moderna, foi a imprensa. Levy (1993) utiliza-se do conceito de tecnologias da in- teligencia para falar das produgées tecnolégicas que, em cada época, possibilitaram o desenvolvimento de novas formas de pensar e de se relacionar com 0 conhecimento. Assim, na modernidade, o desenvolvi- mento da imprensa amplia a circulagao dos textos e, consequentemente, as possibilidades de acesso & informagio. O conhecimento, registrado em texto, deixa aos poucos os mosteitos e bibliotecas ¢ passa a inserir-se nas brechas da vida comum. Mais que isso, o texto que sai da maqui- na jd no guarda a marca da mao humana que 0 produziu e copiou. A autoria fica diluida por trés dos caracteres e paginas reproduzidas em série. Isto serd fundamental para a construsio, no plano discursivo da modernidade, da “ideologia da representagao” (IBANEZ, 2002), ou seja, da crenga de que um texto (conhecimento) é o retrato objetivo da vida como ela 6, de que o autor nao passa de um sagaz observador. No discurso da modernidade, a tarefa do pesquisador é a produgo de um retrato verossimilhante do mundo, Essa busca est carregada de inimeras pressuposicées, das quais destaco quatro. Em primeiro hugas, cla pressupée a separagio entre 0 sujeito que conhece ¢ 0 objeto que ¢ conhecido. De um lado esté o pesquisador, investido de capacidades ra- cionais que sto a chave para a compreensio do mundo (o cogito cartesia- capituot | 31 no). Do outro esti o mundo, a vida, os objetos ou, como chamarei daqui em diante, a realidade. Em segundo lugar, presume-se que essa realidade tem atributos de: a) exterioridade (¢ externa ao sujeito que a conhece); b) ndependéncia (existe de modo separado do sujeito); c) precedéncia (ja existia antes que o sujeito se desse conta dela); d) definicao (possui carac- teristicas estaveis); ¢ e) singularidade (6 de um mesmo modo para todos que a observam) (LAW, 2004). Concebida dessa man tum mistério que deve ser revelado pelo pesquisador, e descobrit significa teazer & luz a verdade de uma realidade. Em terceiro lugar, presume-se que esse sujeito pode, pelo exercicio da razio, conhecer a realidade exa- tamente como ela é, Para isso, precisard de um método, ou seja, de um modo controlado de proceder que minimize suas interferéncias sobre a a, a realidade é realidade e que permita, entio, o acesso neutro e imparcial a ela. Final- ‘mente, uma vez descoberta a realidade, o pesquisador relata o que conhe- ceu por meio de uma linguagem clara e precisa. A linguagem € 0 veiculo de transmissio do conhecimento: espelho do mundo, registro da verdade. E interessante notar que o discurso da ciéncia moderna, em grande parte, constréi-se em oposigao ao discurso mitico medieval. Um dos principais alvos da critica moderna ao conhecimento medieval & sua sujeigdo as leis espirituais como miicleos inquestionaveis de uma verdade supra-humana. Neste sentido, podemos dizer que a ciéncia moderna destitui Deus do trono absoluto da verdade. A verdade jé nao é uma iluminago, mas uma conquista dos que perseveram no método racional de investigagao. Contudo, ao descrever 0 método cientifico como via de acesso 4 realidade, e ao situar 0 conhecimento produzido por ele como universal, a ciéncia moderna néo deixa 0 trono vago: ela mesma 0 ocupa. A critica moderna acerca de quem tem acesso a verdade possibilita uma substituicdo de juizes, mas sustenta 0 mesmo jogo: permanece incélume Aideia de uma verdade tinica e de uma forma privilegiada de acesso a ela. Permanece estavel a hierarquia entre aqueles que dispéem ou nao das vias de acesso. Permanecem também inquestionados os efeitos de opressio bre aqueles que nio as dispdem. Seria necessaria a emergéncia de um 82 | CONSTRUCIONIEMO SOCIAL novo discurso em ciéncia para desfazer 0 jogo e denunciar que o trono da verdade criado pela ciéncia moderna, ao contrério de universal, foi ocupado apenas pelo homem branco europeu e colonizador, Para sintetizar, retomemos a nossa visita A galeria de arte, De modo semelhante aos primeiros artistas, 0 cientista moderno est preocupado em produzir uma descri¢io do mundo, uma representagiio tal como ele 6 Seu modo de trabalho é controlado por um método que visa garantir sua neutralidade, ou pelo menos garantir que ele ndo apareca mais que a obra. Assim como os quadros produzidos pelos primeiros artistas, os, relatos de pesquisa do cientista moderno nos colocam em estado de contemplacio: eles falam de uma verdade que supostamente devemos reconhecer e assimilar. Provocagao, emergéncia e implicagao Se a pés-modernidade fosse um quadro, seu ano de produgio poderia ser algo em torno a segunda metade do século XX. Porém, tal como afirmei anteriormente em relagio & modernidade, precisar a data de seu nascimento é colocar um ponto fixo em algo que pode ser mais bem compreendido como processo. Contudo, notem a diferenga: se a0 fa- da modernidade eu me referi a um processo de pelo menos cinco séculos, que ja encontra discursos opostos, ao falar da pés-modernida- de me refiro a um proceso recente, ainda emergente e, portanto, com contornos mi 10 menos definidos. Dai a multiplicidade de nomes para caracterizi-lo: pés-modernidade, para Lyotard (1984) e Harvey (1994), modernidade Iiquida, para Bauman (2001), e hipermodernidade, para Lypovetsky (2004), citando apenas alguns. Tragar linhas de aproxima- so e diferenciagao entre estas miiltiplas definigdes é uma tarefa que no cabe no escopo deste capitulo, Limito-me a tomar como referéncia as consideragées de Lyotard (1984) sobre a pos-modernidade e as dos autores que a ele se aproximam. CAPITULO + | 99 Na definigdo extremamente simplificada de Lyotard, a pés-moder- nidade se caracteriza pela incredulidade em relagdo 4s metanarrativas, que sio modos de falar sobre algo que legitimam a si mesmos como vilidos, completos e universais. A compreensio marxista, por exem- plo, pode ser considerada uma metanarrativa. Ela define uma chave de compreensio (a luta de classes, por exemplo) a partir da qual toda sociedade capitalista deve ser explicada. E situa 0 proletariado como universalmente oprimido ¢ capaz de produzir a revolucio que traria um novo e melhor modo de organizagio social. No coragio de uma metanarrativa mora a crenga otimista de que progredimos ao longo da historia e de que, dadas as condigdes necessérias (a. revolugdo, por exemplo), © nosso futuro sera melhor que o presente. que, devido a seu cardter completo ¢ universalizante, as metanarrat vas tendem a se instituir como “o melhor modo de pensar” ¢ como ‘2 compreenséo mais verdadeira da realidade”. Elas tendem a produ- zir consenso e, portanto, invalidam quaisquer outras possibilidades de compreensio, Para Lyotard, 0 intelectual pés-moderno tem a tarefa de resistir as metanarrativas, suspeitar de toda forma de consenso e pro- curar a multiplicidade de modbos inteligiveis de compreenso. Ao con- trério da ambigao moderna em produzir conhecimento cumulativo, progressivo e consensual, a pés-modernidade almeja.a multiplicagio 0 que Alvesson ¢ Deetz (2000) chamaram de dissenso. Lembre-se dos tijolos de Carl Andre e da profusio de teorias explicativas que pro- movem justamente por resistirem a serem totalmente explicados por qualquer uma delas. © discurso da ciéncia moderna ¢ visto pelos pés-modernos como uma metanarrativa: presume um modo tinico e mais verdadeiro de co- nhecer uma realidade definida como coesa ¢ acessivel. A pés-moder- idade situa 0 discurso cientifico como uma possibilidade discursiva, como uma forma de natrar que produz efeitos em nosso modo de viver, € nil como um modo privilegiado de se ter acesso a verdade. acontece porque ela nfo presume a existéncia de uma realidade Gni- 84 | CONSTRUCIONIS!O SOCIAL ca que vive fora de nossos modos de descrevé-la. Somos convidados @ olhar para as diferentes teorias ¢ formas de compreensio do mundo como plausiveis ¢ titeis, ¢ passamos a interrogar 0 modo como nossas descrigGes delimitam nossas possibilidades: se os diferentes modos de caracterizagdo da mulher em nossa galeria de arte sio igualmente vali- dos, as suas implicagées sao bastante distintas, Se a verdade é destituida de seu valor universal, se © que temos sio versées mult icadas, nao tuma realidade tnica, resta-nos perguntar: De quem é a voz que conta a historia? Quais so seus interesses? (Quem disse que tijolos sio arte?) A mulher apresentada por Barbara Krueger esté explicitamente impregna- da dos interesses que a artista feminista quer defender e dos efeitos que Imeja produzir, Ela ndo representa uma realidade, mas busca construi- la segundo o modo que Ihe interessa. A neutralidade, central & légica discursiva da modernidade, cede lugar & implicagao. A ciéncia, como a arte, é politica. Certamente, a mudanga do discurso cientifico no se deu ao aca- so. Do mesmo modo que o desenvolvimento da imprensa favoreceu a consolidasio do projeto cientifico moderno, a emergéncia da pés-mo- dernidade também se articula com as inovagdes no campo tecnol6gi- <0. Para Levy (1993), 0 computador é a “tecnologia de inteligéncia” que sustenta as transformacdes no modo de vida pés-moderno que, conse- ‘quentemente, demandario a produgio de um novo discurso cientifico. © computador revoluciona o modo como lidamos com a comunicasio, informagao e produgio. No plano da comunicagio, ele cria pontes que ultrapassam as barrei- Tas geograficas e colocam em contato grupos ¢ culturas antes incomu= nicéveis, Assim, torna-se mais evidente a diversidade outrora escondida nas grandes narrativas dos colonizadores ¢, 20 mesmo tempo, o limite explicativo destas narrativas. Além disso, ele favorece a dissolugao das barreiras fisicas e temporais que antes cooperavam para a construgio de nogdes de identidades estiveis. Um jovem antes restrito as possibi- idades identitérias oferecidas por sua aldeia hoje dialoga (via telefone capiruto + | 35 celular, internet etc.) com grupos em praticamente qualquer lugar do mundo, Na expresstio de Gergen (1992), o self tornou-se saturado ¢ as identidades miiltiplas e transitérias. No plano da informagao, o computador expande exponencialmente a secularizagio do conhecimento iniciaca na modernidade. Ao custo de uum clique, podemos saber sobre o que quisermos. A figura do especia- ista como detentor do conhecimento comega a erodir, ao mesmo tem- as sobre a validade da informagio poem que aumentam nossas susp. edeseu uso, Finalmente, no plano da produgao, 0 computador inaugura uma nova légica no ciclo inovagio-producao-consumo. As fibricas se frag- mentam em unidades de produgao espalhadas por todo globo, com mercados de consumo potenciais igualmente irrestritos. Os produtos tém seu tempo de vida cada vez mais encurtados por uma industria que, incessantemente, produz. a novidade: 0 novo é descartado em nome do ainda-mais-novo. Em tudo isso, 0 computador produ um novo campo de relagdes nas quais 0 “teal” e imediato esta intumescido do “virtual”, £ neste contexto que a “ideologia da representagao” da modernidade deixa de ser central e abre espago a uma légica cientifica mais preocupada com a rapidez com que gera possibilidades de agio (IBANEZ, 2002). discurso pds-moderno pode ser entendido como operando em duas frentes. De um lado, é um discurso critico em relagio aos pres- supostos cientificos modernos, Para este discurso, a modernidade ins- tituiu a razdo como um dispositivo que aniquila as diferengas. Como afirma Ibaiiez, a razio “ordena, classifica, universaliza, unifica, e para isso, deve reduzir, expulsar, neutralizar, suprimir as diferencas” (2002, p. 102). Além do mais, as promessas emancipatérias que advinham do uso da razao € do conhecimento da verdade nao foram alcancadas. £, final- mente, a crenga em uma verdade tinica mostrou-se uma forma sagaz de instituir os valores de um grupo sobre outros: a neutralidade como 0 Cavalo de ‘Troia das ciéncias. 26 | CoNSTRUCIONISMO sociAL De outro lado, porém, 0 discurso pés-moderno é legitimador. Ele procura legitimar as diferengas nas nossas possiveis descrigdes de mun- do, Ele investe em sustentar espago para a coexisténcia de valores e in- sistiré na produgio fragmentiria de realidades, sujeitos e verdades (no plural). Para tanto, precisard procurar sempre pela contextualizacdo his- t6rice e cultural de qualquer afirmacio cientifica e assim defender uma postura relativist Para encetrar esta seco, voltemos a galeria de arte, Tal qual os til- ‘imos tistas, o cientista pés-moderno esté mais preocupado com 0 efeito de sua obra que com aquilo que ela “de fato” representa, Seu mé- todo de trabalho nao segue prescricdes controladas ¢ racionalizadas, mas emerge do didlogo com os contextos de investigagio dos quais se ocupa. Ea relagdo que pretende construir com os participantes de suas Pesquisas ¢ com os leitores de seus artigos tende a entreter espago para coautoria, complementagao e suplementagao. um pesquisador/artista que assume seu lugar ¢ teresse, ¢ uma pesquisa/obra que expde sua contingéncia e incompletude. Notas sobre um percurso inconcluso Como ja disse, 0 movimento da modernidade & pés-modernidade é emergente e inconclusivo, Enquanto processo, ele nio tem data, ber- 0 ou progenitores especificos. Ao contrario, ele se constrdi como um campo que se alimenta da contribuigio de varias disciplinas e que pode ser situado em diferentes momentos histéricos (BUTLER, 2002). Os di- versos aportes, oriundos de diferentes autores, compdem feixes ¢ forcas que, aos poucos, comegam a questionar os pressupostos da moderni- dade e criam a necessidade e o substrato para a producio de uma nova nteligibilidade, A nogio de inconsciente, postulada por Freud em 1900, per exemplo, contribui com o questionamento do status apresentado pela proposta iluminista de um sujeito racional, dono de sie das suas vontades. A anilise que Marx e, posteriormente, os autores da escola de Frankfurt fazem sobre a ideologia, a industria cultural ¢ os proces- sos de alienacio e assujeitamento contribuem com a critica & maxima positivista de “ordem e progresso” e produzem nossa desconfianga em relagdo aos modos instituidos de viver. Na linguistica, as formulagdes de Saussure sobre a linguagem como um sistema fechado de regras ¢ sobre a relagio arbitréria entre o significante e o significado operam uma dis- ja descons- tingio que, posteriormente, permitiré a autores como Der truir a nogdo de uma realidade existente fora da linguagem, Contudo, por mais que as teorias de Freud, Marx e Saussure tenham desestabilizado certos pressupostos-chave da modernidade e, assim, con- tribufdo com o inicio da construgio de um discurso pés-moderno, suas proposigdes sustentam uma ideia de estrutura estével (psicolégica, para social, para Marx; ¢ linguistica, para Saussure). Elas naturalizam € universalizam esta estrutiafa, mas também se dedicam a compreender ‘o que estd por tris’, podendo ser consideradas metanarrativas. Com isto, quero reforgar meu argumento de que a delimitacao do inicio da pés- -modernidade e dos seus principais autores ¢ um artificio retérico de quem conta a histéria de como passamos de um momento para 0 outro... passamos? Gergen (1997), por exemplo, prefere destacar trés modalidades de critica que contribuem com esta passagem: critica ideolégica, e social, Ibaitez (2002) opta por apresentar autores-chave como Saussure, Foucault e Rorty. A minha opgilo discursiva é destacar os dois eixos cen trais que nos ajudam a entender as mudangas de pensamento que abrem ‘© caminho da modernidade a pés-modernidade (poder e linguagem), & nesses caminhos integrarei as contribuicées de Gergen eas de Ibaiiez. Poder Para Ibaitez (2002), o tragado da genealogia da pés-modernidade passa inevitavelmente pelas contribuigdes do fildsofo frances Michel Foucault, 38 | CONSTRUGIONISMO SOCIAL, As inovagées de suas formulagdes ¢ a poténcia com que atingiram va- tios campos do conhecimento a partir da década de 1960 produziram fissuras no modo tradicional de se fazer ciéncia ¢ abriram possibilidades a fundamentacio de um discurso pés-moderno, Do conjunto de ideias € conceitos que este autor investiga, interessa-nos particularmente suas proposic¢des acerca do poder. Em primeizo lugar, Foucault nao entende poder como um atributo ou caracteristica de alguma pessoa ou instituicéo, mas como um efeito de discursos. Discurso ¢ entencido como um conjunto de priticas, modos de falar, metforas, significados compartilhados, histérias e imagens que cooperam na determinada construgio de um “fato’ “evento” ou “objeto” (FOUCAULT, 1979), Utilizo as aspas para destacar que, a partir da légica foucaultiana, o que tomamos como fato, evento ou objeto é produto do discurso, no um fenémeno independente do qual o discurso se ocupa. O discurso, portanto, cria seus “objetos” de uma determinada maneira e circunscreve um conjunto de relagdes possiveis com ele, Neste sentido, na medida em que o discurso regula e da forma as nossas possibilidades de viver, ele sustenta as priticas sociais por meio das quais 0 poder opera. A inovagio da ideia de poder em Foucault esta em descrevé-lo de modo positivo, nio apenas repressivo, Para ele, 0 poder nao opera sé has proibigGes, cerceamentos e obrigagées, mas sobretudo nas incita- Ges, na criagio de desejos, expectativas, antecipagées e projetos, que, em tiltima insténcia, cooperam na criagio de um modo “esperado de vi- ver’: Para Foucault, em resumo, este modo esperado de viver correspon- dle as necessidades de governo de uma determinada época e sociedade, nao ao projeto de uma entidade especifica. Para este autor, entdo, 0 po- der é uma “estratégia sem estrategista” que tem por finalidade tltima a produgio de subjetividades governaveis. Vejamos alguns exemplos. Os asilos europeus dos séculos XVI e XVII exam locais destinados a abrigar todos os considerados improdutivos e potencialmente ameaga- dores a organizagio da sociedade da época: loucos, doentes, criminosos, mendigos etc. No século XVIII, a emergéncia dos valores iluministas demandou a produgéo de um novo discurso sobre a loucura para con- tornar um problema de governo: como justificar 0 encarceramento de pessoas por uma sociedade que comesava a se organizar em principios de liberdade, igualdade e fraternidade, por exemplo? O discurso médi- co-cientifico que emerge no século XIX produzira uma nova inteligibi- lidade que, entre seus miltiplos efeitos, garantiré a governabilidade dos loucos. Assim, ao transformar a loucura em doenga mental, o discurso médico-cientifico garantiu um saber/autoridade sobre o doente mental que, por sua vez, passou a ser 0 destinatdrio das intervengies de cuic: do justificadas em seu beneficio. O poder e 0 controle nao impuseram leis que forcaram os loucos ao encarceramento, mas operaram por meio de um discurso que instituiu a internagao em hospitais psiquiatricos € a submissao a figura do médico como um modo justificado de cuidar. Os efeitos desse discurso reverberaram naqueles que, a0 se verem como desajustados, anormais ou loucos, procuravam sozinhos as alternativas de tratamento. Mais que proibir, os discursos criam enquadramentos a partir dos quais as pessoas se enxergam, Mais que restringir, eles est mulam um certo modo de vida. Uma andlise semelhante pode ser feita em relacao a sexualidade. No final do século XIX, quando Kraft-Ebing publicou o livro Psychopatia Sexualis (1886), ele consolidou um discurso cientifico sobre a sexuali- dade que também respondia as necessidades de governanga de seu pe- riodo. Até entao a sexualidade era regulada pelo discurso feligioso, mas a partir da publicagio de seu livro comegou a ser considerada como um objeto do pensamento cientifico moderno. A extensa lista de desvios € anormalidades sexuais formulada por Kraft-Ebing foi organizada a partir de uma ldgica herdeira dos valores cristaos, mas também infor- ‘mada pelas teorias da degenerescéncia e da evolugao. Como resultado, Krafi-Bbing considerou desvio todo comportamento sexual que nao se organizava em diregao & reprodugao. Ele langou mio dos termos sa- dismo, masoquismo, homossexualismo, fetichismo, entre outros, para falar dessas questdes, ¢ situou a masturbagdo cmo umas das principais 40 | CONSTRUCIONISMO SOCIAL ameagas ao desenvolvimento de uma sexualidade sadia, Para Foucault (1988), a apropriagdo da sexualidade pelo discurso cientifico respondeu & necessidade de garantir a multiplicagdo da forga de trabalho e a do- cilidade dos corpos, ambos necessarios & consolidagao das economias capitalistas de produgio (dai a énfase na procriaglo). A nogio de nor- malidade sexual, associada 4 monogamia, conjugalidade e procriagao, foi construida pelo discurso cientifico da época do mesmo modo que © discurso atual coopera na construgio de uma nogdo de normalidade sexual que parece oposta aquela. Se para a sociedade capitalista de pro- dugo a sexualidade ideal deveria ser contida e limitada, para a socie- dade de consumo parece ser mais interessante uma sexualidade direcio- nada a procura incessante de prazer. Note-se, portanto, a multiplicagio contemporanea de discursos que constroem uma ideia de normalidade sexual associada ao alto desempenho, ao prazer intenso e ao aprimora mento estético dos corpos. Como podemes ver nestes dois exemplos, Foucault trata a ciéncia como um discurso que participa dos dispositivos de poder e dos modos de produgio de subjetividades. Ao fazer isso, produziu um argumento contundente contra a suposta neutralidade das ciéncias e abriu 0 campo para imtimeras investigagdes que buscaram colocar em destaque o modo como a cigncia construiu seus objetos de estudo, os efeitos que ela produ- ziu € as necessidades as quiais atendeu, Os estudos feministas, queer, étni- co-raciais, p6s-colonialistas e pés-estruturalistas que se inspiraram nas provocagées foucaultianas lograram éxito ao salientar © modo como o discurso cientifico universalizou uma ideia de humano (e de normalida- de) baseada nos valores e interesses do homem branco europe ¢ coloni- zador. Se, por um lado, as anélises de Foucault denunciaram os efeitos de poder e controle do discurso cientifico, por outro, a sua concepgio de po- der como forca que opera por meio de dispositivos discursivos dispersos tornou possivel que grupos marginalizados pelas descrigées cientificas tradicionais pudessem tomar para a sia tarefa de produzir novos discur- sos com poténcia de resisténcia ¢ transformacao. Tal brecha inspira artis captruos | 41 tas pés-modernos como Barbara Krueger ¢ Carl Andre, que buscam com suas obras, respectivamente, construir o feminino a partir de sua prépria vor e interrogar o poder do discurso instituido pela galeria. Apés Foucault, tornou-se dificil defender a ciéncia enquanto oficio neutro, comprometido apenas com a verdade. © campo epistemolégico que se configurou a partir de suas contribuigées demandaria discursos cientificos criticos e atentos as suas implicagGes. Como veremos no pré ximo capitulo, estas duas caracteristicas serdo centrais na formulagio de um discurso construcionista social. Linguagem A compreensio sobre os efeitos de poder produzidos pelo discurso cien- tifico cooperou com a desconstrugio de alguns pilares do modo mo- derno de fazer ciéncia, como as noges de neutralidade e objetividade, teria se dado Contudo, a abertura da passagem & pés-modernidade 1 sem as importantes transformagSes no modo como a linguagem € a co- municagio so entendidas dentro dos discursos cientificos. Observando 0 modo como nos comunicamos no dia a dia, notare ‘mos que utilizamos a linguagem como se ela fosse uma representagdo das coisas do mundo, de nossos pensamentos, emogdes e conceitos. Di- zemos, por exemplo, “a érvore é alta’, “vou te dizer como me sinto’ na minha opiniao..., “nao era isso o que eu queria dizer” ow “jé te falei para nao fazer mais isso". Ao falarmos assim, estamos utilizando a linguagem como expressito do que apreendemos do mundo e do que se processa dentro de nés, ou seja, do que tem lugar no mundo privado de nossas personalidades, emogdes e pensamentos. Comunicar-se, segundo esta logica, significa colocar em palavras um pensamento ¢ transmiti-lo por meio de mensagens. As palavras transportam ou carregam significados que percorrem 0 caminho (grifico, visual ¢ sonoro) entre a mente do sujeito que diz, (enunciador) ¢ a mente do sujeito que escuta (receptor). 42 | CONSTRUCIONISMO SOCIAL Representacio transmissao: simplificando ao extremo, é deste modo ‘que a cigncia moderna concebe a linguagem. Num relato cientifico, por exemplo, o pesquisador utiliza as palavras Para transmitir ao leitor um conjunto de informagées. A escolha das pa- lavras é guiada pela sua clareza, ¢ o estilo da escrita é pautado pela objeti- vidade. A objetividade é entendida como um modo impessoal, imparcial, detalhista ¢ exaustivo de se falar sobre algo, para que diferentes pessoas Possam ter o mesmo entendimento do mesmo texto. Se 0 que mais inte- ressa em um texto a informagio que ele representa, a tarefa do pesquisa: dor moderno ¢ escrever de um modo que nao atrapalhe esta transmissio, da{ sua preferéncia em se retirar do texto enquanto autor utilizando frases impessoais como “os dados revelam’, “pode-se constatar” e “foi observa- do” Sea invengio da imprensa apagou com caracteres a caligrafia do au- tor, como vimos anteriormente, o estilo de escrita da modernidade silen- iowa sua voz na impessoalidade, Ambos contribuiram com a construsao de um entendimento da linguagem enquanto representacio objetiva Uma primeira mudanga neste modo de conceber a linguagem foi pro- vocada pelas contribuigées de Ferdinand Saussure e do movimento cha- mado estruturalista, Saussure (1977) inverteu a légica moderna segundo a qual utilizamos as palavras para expressar nossas apreensdes do mundo, emogées e pensamentos, Para ele, a linguagem nos oferece uma estrutura que determina como podemos aprender o mundo, sentir e pensar. Para Saussure, a linguagem é um conjunto de signos. Os signos sao formados por palavras (expresses sonoras e gréficas, como cadeira, drvore e amor, por exemplo) que representam as “coisas do mundo” (0 conceito de cadeira, drvore e amor). As palavras sao chamadas de sig- nificantes, e 0s conceitos aos quais nos referimos quando utilizamos tais palavras sao chamados de significados. A relagao entre os significantes e os significados é, de acordo com Saussure, arbitréria, ow seja, nao existe nada no conceito de drvore, por exemplo, que exija ser designado pela palavra drvore, Prova disso € 0 fato do mesmo conceito poder ser desig- nado por outras palavras como tree, arbre ou drbol. Até aqui, a propo- sigdo de Saussure parece simples e Sbvia. Mas ele segue em frente e diz que, se as palavras nao guardam uma relagdo necessaria com 0 que re- presentam, os préprios conceitos tornam-se arbitrarios, uma vex que s6 podem ser definidos na relagao que estabelecem com outros conceitos, O significado de um conceito nao esta em si mesmo nem em sua relagio necessaria com a “coisa” que representa, mas na relacao de diferenciagao que ele estabelece com outros conceitos. Sendo assim, para compreen- dé-lo, temos que diferencid-lo dos outros. Nés criamos, por exemplo, um conceit de cadeira, Arvore ¢ amor que possibilita separar cadeiras de pessoas, arvores de prédios e amor de tristeza. Como tais divisées sio arbitrarias, poderiamos nao fazer distingdo entre uma drvore e um prédio se nossa linguagem nao constituisse tal divisio. Ja que dispomos de uma linguagem que contém um signo para amor ({uma palavra e um conceito), podemos experimentar 0 amor. A linguagem nao expressa, mas enquadra e delimita nossa experiéncia do mundo. Se os conceitos dos quais dispomos determinam nossas possibilida- des de apreensio do mundo e se tais conceitos sto arbitrarios, ow seja, nao guardam nenhuma relagao necessiria fora do jogo da linguagem, a ideia de objetividade, enquanto acesso imediato ¢ neutro a realidade, torna-se sensivelmente problemética. Por isso, Saussure propde que 0 foco da investigasao sobre a linguagem nao deve estar na correspon- déncia de um dado conceito com uma realidade, mas na relagio que os conceitos estabelecem entre si segundo a estrutura da linguagem. A Tinguagem deixa de ser um recurso de representagao e transmissio € passa a ser entendida como estrutura em si. Por um lado, a nogao de estrutura que ele propde problematiza a ideia de objetividade, mas, por outro, reforga a nogdo de estabilidade e universalidade, uma vez que 0 signos, apés formados, calcificariam-se em sentidos coletivos, am- plamente compartilhados ¢ razoavelmente imutaveis, Neste sentido, as ponderagées de Saussure sobre a linguagem abriram uma fresta que se- ria aproveitada por outros autores, como Derrida, para a construgio de um entendimento p6s-moderno sobre a linguagem

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