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VAZIOS URBANOS:

AVALIAÇÃO HISTÓRICA E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS.


Andréa Borde
DARF/FAU/UFRJ

Este trabalho traz as inquietações teóricas e as perspectivas metodológicas apontadas pela


pesquisa em andamento sobre os vazios urbanos inseridos na malha urbana das grandes cidades
contemporâneas. Busca-se, através da análise dos processos de formação desses vazios
urbanos, bem como da sua significação funcional, formal e simbólica, fornecer subsídios para a
elaboração de propostas diferenciadas que contribuam para reverter, ainda que em parte, o grave
quadro de desigualdade e injustiça social representado pela existência, e permanência, dessas
áreas vazias inseridas na malha urbana consolidada das grandes cidades contemporâneas.
A compreensão das condições de produção e reprodução dos vazios urbanos inseridos adquire
especial relevância no contexto atual onde as áreas esvaziadas na malha urbana representam
uma perversidade em termos sociais, considerando-se a o custo da infra-estrutura alocada na
malha urbana consolidada e o processo de periferização das grandes cidades brasileiras nas
últimas décadas.
A revisão bibliográfica realizada apontou para um quadro de discursos fragmentados sobre vazios
urbanos, reforçando a importância de uma etapa inicial dedicada à revisão histórica e conceitual e
à identificação das diferentes vertentes analíticas sobre o tema. Em uma perspectiva
contemporânea da história da cidade o vazio urbano se apresenta como um outro lugar,
transpassado por diferentes tempos urbanos que, através das relações que estabelece com o
contexto urbano, contribui para a constituição de uma outra cidade.
A fim de avaliar as possibilidades teórico-metodológicas apontadas pela pesquisa será analisada
aqui a situação de vazio urbano configurada pelo terreno, onde se localizava, até os anos 30, a
Academia Imperial de Belas Artes, na centro do Rio. Na configuração deste vazio urbano vários
fatores se intercalam como a implantação do ideário estadonovista; (demolição do prédio para dar
lugar à nova sede do ministério da fazenda, transferido para a Esplanada do Castelo, próximo aos
novos ministérios) e boom imobiliário de Copacabana na década de 40 desestimulando o
investimento nas novas áreas criadas na área central. Além da significação formal, funcional e
simbólica para a cidade, este exemplo evidencia um dos paradoxos presentes nas cidades
contemporâneas: a permanência das situações de vazio urbano e a impermanência dos objetos
arquitetônicos.

andreaborde@hotmail.com 1
VAZIOS URBANOS:
AVALIAÇÃO HISTÓRICA E PERSPECTIVAS CONTEMPORÂNEAS.
Andréa Borde
DARF/FAU/UFRJ

INTRODUÇÃO

O vazio urbano é um fenômeno urbano só recentemente problematizado1. Considerado, na


tradição dos estudos urbanos, como par analítico do cheio, o conceito de vazio passou, nas
últimas décadas, por uma revisão conceitual, a fim contemplar a diversidade de situações de vazio
observadas nas cidades contemporâneas. Vazio e cidade contemporânea estão de tal forma inter-
relacionados, pelas transformações sócio-econômicas que mudaram radicalmente as estruturas
espaciais, que Chalas2 elege a cidade-vazia – associada às descontinuidades e rupturas oriundas
do processo de transformação ininterrupta da cidade emergente3– como uma das figuras de
análise que definiriam a nova cultura urbana. Os vazios se impõem ao olhar e à reflexão.

Observa-se na forma urbana contemporânea das grandes cidades inúmeras situações de vazio.
As áreas verdes, as praças e, em alguns casos, os espaços entre os edifícios - que configuram
espaços de sociabilidade -, bem como as áreas desocupadas da periferia - que se constituem
áreas de expansão da cidade - são exemplos de situações de vazio na cidade que não poderiam
ser identificadas como vazios urbanos. Por outro lado, os espaços residuais, gerados pelo
processo capitalista de construção e reconstrução permanente da cidade, e que se expressam
como uma descontinuidade, um vazio a preencher de informação e de novos usos4, e os lugares,
territórios e edifícios em situação de esvaziamento - espaços abandonados, espaços ocupados
por estruturas obsoletas, ruínas, terrenos baldios, terrenos subutilizados e imóveis ociosos –
qualificados como urbanos, configuram um fenômeno urbano diferenciado: os vazios urbanos.
Embora as diferentes termos utilizados nos estudos recentes - terrain vague, friches urbaines5,
wastelands, derolict lands, tierras vacantes - patenteiem as diferentes possibilidades de
compreensão deste fenômeno, optou-se pela denominação vazio urbano, sublinhando a
importância de compreendê-lo em sua dupla condição: vazio e urbano.

Esta dupla condição dos vazios urbanos fica mais clara quando se observa, nos percursos
cotidianos pela cidade do Rio de Janeiro, que raras são as situações de vazio urbano na malha
consolidada que estão realmente vazias, sem edificações ou sem uso algum. O que faz deles
vazios urbanos são os aspectos formais, funcionais, simbólicos e políticos diretamente
relacionados à sua condição urbana. Neste sentido, a análise dos vazios urbanos deve estar
atrelada à compreensão das características dos processos de urbanização.

Processos esses que, nas grandes cidades contemporâneas, se complexificam e extrapolam o


limite metropolitano, como demonstram Harvey6 e Castells7, apontando, não para a morte da
cidade e o reino do urbano (Choay8), mas, antes, para revisão conceitual da noção tradicional de
cidade de acordo com o novo sistema urbano organizado em megacidades9, estruturas territoriais
caracterizadas pela descontinuidade, ou seja, pela presença de vazios no espaço urbano.

Essas novas formas espaciais urbanas são hoje os centros nevrálgicos do sistema urbano da
sociedade organizada em redes tecnológicas informacionais. Nelas os processos de globalização
assumem formas concretas, localizadas. Conectadas externamente às redes e desconectadas
das populações locais que exercem funções desvalorizadas, ou inúteis, para a economia global,
as grandes cidades contemporâneas se organizariam, segundo Castells, em espaços de fluxos e
espaços de lugares, isto é, em espaços conectados aos fluxos de capital e de informação e em
espaços conectados aos lugares, respectivamente. Neste contexto os vazios urbanos adquirem
diferentes significações e demandam uma análise articulada às especificidades do processo de
urbanização de cada cidade e ao seu papel no atual sistema urbano.

andreaborde@hotmail.com 1
A cidade contemporânea configurada em redes de fluxos – de capital, de informação, de
transporte – se conforma a partir de uma cultura urbana de transformação permanente. Neste
contexto, de privilégio do fluxo sobre o fixo10 – tradicionalmente associado à arquitetura –, é
possível pensar que o capital, neste momento, informal e globalizado, se materializa na
arquitetura, quando, então, se torna fixo; da mesma maneira que a arquitetura tende a se tornar
fluxo na medida em que se torna indissociável do capital. Se for assim, a arquitetura estaria cada
vez mais relacionada aos fluxos que aos fixos, na medida em que o processo capitalista ganha
dimensões exponenciais e globalizadas. A mesma analogia se aplicaria à forma urbana: as
permanências e as transformações da forma urbana estariam relacionadas às suas estruturas
produtivas e ao seu maior ou menor pertencimento ao sistema de fluxos internacional do capital.

Esta relação dialética inerente à cultura de transformação permanente da cidade contemporânea


tem no vazio urbano um dos seus elementos centrais: associados tanto aos inúmeros problemas
urbanos decorrentes da existência de vazios urbanos na malha urbana consolidada da cidade,
quanto às oportunidades acenadas pelos investimentos públicos e privados atrelados aos projetos
urbanos ou à implementação de políticas públicas de minimização da iniqüidade social11, os
vazios urbanos podem estar se constituindo, neste sentido, em uma questão paradigmática para a
análise das grandes cidades contemporâneas.

A análise da dimensão contemporânea dos vazios urbanos em seus aspectos formais, funcionais
sociais, econômicos e simbólicos, de acordo com uma visão interdisciplinar, aqui desenvolvida,
considera a necessidade de desnaturalização do tema. Esta compreensão é especialmente
relevante no contexto brasileiro, onde se verifica, ao se contrapor o custo da infra-estrutura já
alocada ao processo de periferização que caracterizou a formação metropolitana, que a presença
desses vazios na malha consolidada é a expressão de uma perversidade em termos sociais.
Busca-se, assim, fornecer subsídios para a elaboração de propostas diferenciadas que
contribuam para minimizar o grave quadro de desigualdade e injustiça sociais expresso na
existência, e na permanência, dessas situações de vazios urbanos.

A hipótese principal desta pesquisa é de que, em uma perspectiva contemporânea da história da


cidade, o vazio urbano não é um fragmento da cidade, mas um outro lugar, que estabelece um
contraponto com o ritmo urbano do seu entorno imediato ao vivenciar a singularidade de ser
atravessado por diferentes tempos urbanos. Através das relações que estabelece com o contexto
urbano este outro lugar contribui para a constituição de uma outra cidade.

Neste trabalho será analisada a situação de vazio urbano configurada pela quadra da Avenida
Passos, na área central da cidade do Rio de Janeiro, onde se localizavam a Academia Imperial de
Belas Artes e o Ministério da Fazenda, demolidos em 1938. Atualmente esta quadra, pertencente
à União, está subutilizada, sendo ocupada por um estacionamento arrendado ao INSS. Ela se
inscreve no contexto urbano carioca não apenas como reserva especulativa, na valorizada área
central de negócios, mas, também como um cenário privilegiado para observação do conjunto
urbano de grande significação cultural abrangido pelo Corredor Cultural12. Pela significação
formal, funcional e simbólica para a cidade esta quadra se constitui em um expressivo objeto de
estudo ao evidenciar um dos paradoxos observados na história urbana recente do Rio: a
permanência de algumas situações de vazio urbano e a não-permanência de alguns objetos
arquitetônicos.

PARA ENTENDER O VAZIO URBANO

Para entender os vazios urbanos, ou seja, identificar as forças que interagem no esvaziamento
destes lugares, territórios e edifícios em situação de vazio urbano; as que favorecem a sua
permanência; os diferentes contextos na qual estão inseridas; os elementos que compõem os
sistemas de vazios urbanos; e os critérios que nortearão os projetos urbanos e as apropriações; é
necessário começar por uma breve revisão histórica e conceitual. Os trabalhos produzidos sobre
os vazios urbanos são, no entanto, em número ainda bastante reduzido, considerando-se que,

2
como assinala Santos13, este é um fenômeno antigo que vem adquirindo uma expressão cada vez
maior no contexto das grandes cidades contemporâneas.
Os vazios urbanos serão aqui considerados como elementos da paisagem urbana, social e
culturalmente construídos, dotados de características específicas, que participam da organização
sócio-econômica da vida material e, como tal, podem ser analisados. Neste sentido, optou-se por
estruturar esta análise de acordo com os três momentos identificados do processo de produção e
reprodução desses vazios urbanos: o vazio, o esvaziamento e o preenchimento. Eles serão
analisados de forma articulada entre si e à produção da cidade evitando reforçar a produção de
discursos fragmentados sobre os vazios urbanos verificada na pesquisa.

Na revisão conceitual que embasa o primeiro momento de análise dos vazios urbanos - o vazio -
a categoria terrain vague, tal como concebido por Solà-Morales se destaca entre aquelas
adotadas para a compreensão das situações de vazio urbano observadas na realidade cultural
urbana contemporânea. Os terrains vagues, termo utilizado para identificar áreas obsoletas, em
termos de capacidade de produção, e expectantes, em termos futuros14, seriam os redutos de
identidade, de liberdade e de memória para seus habitantes. Eles dialogariam com o tempo, ou
melhor, com os tempos da cidade contemporânea. Vagos esses terrenos, erram pelos tempos da
cidade questionando prioridades de investimentos, identidades construídas e devires sonhados.

Esta categoria, tal como a wasteland, proposta por Lynch15, na década anterior, articula diferentes
experiências de tempo e espaço. Para Lynch, periféricos ou centrais, elas seriam também “os
lugares onde os modos de vida marginais sobrevivem e coisas novas começam”16. Por considerar
que os terrains vagues seriam “os melhores lugares do encontro entre presente e passado e de
expressão da liberdade individual de pequenos grupos”, Solà-Morales afirma que não se pode
simplesmente reordená-los à trama eficiente e produtiva da cidade, cancelando valores que seu
vazio e sua ausência tinham: pelo contrário, é este vazio e ausência que deveriam ser
preservados a todo custo. Fialovà17 reforça a necessidade de se entender as especificidades
históricas e locais desses terrenos, uma vez que “as causas pelas quais uma determinada zona
se converte em um terrain vague são sempre conseqüência de sua história (...) a área guarda
uma certa relação com o passado e não estabelece uma nova vinculação com o presente”.

Embora não seja o foco deste trabalho, não se pode deixar de mencionar a importância das
análises realizadas sobre os aspectos da dinâmica de especulação imobiliária e dos instrumentos
de regulação do mercado de terras urbanas para a ampliação do conhecimento sobre os vazios
urbanos, sobretudo, quanto ao segundo momento do processo de formação dos vazios urbanos
contemporâneos: o esvaziamento. Considerados de acordo com a capacidade de negociação e
de flexibilidade na dinâmica futura presente nos objetivos políticos, econômicos e sociais dos
diversos modelos de planejamento, os vazios urbanos são vistos como expressões do poder da
propriedade privada. As conseqüências, por vezes perversas, para a cidade, da existência dos
vazios urbanos se originariam do papel que eles desempenham como “áreas” de negociação e
ajustamento do mercado no funcionamento dos sub mercados das terras urbanas18. Este papel
poderia ser modificado se sua gestão fizesse parte de políticas de equidade urbana segundo
objetivos políticos dos dirigentes e a participação de diversos setores sociais. Estes estudos
apontam, em última análise, para a carência de uma visão mais planejada da cidade: vazios
urbanos ou vazios do poder?19

A análise do terceiro momento do processo de produção dos vazios urbanos - o preenchimento –


é subsidiada pelo relato e a observação de intervenções promovidas, tanto pelo poder público e
pela iniciativa privada, como pela sociedade civil, através de apropriação cultural, nessas áreas de
vazios urbanos.

As iniciativas da sociedade civil estão voltadas principalmente para utilização das áreas
intersticiais com atividades temporárias de lazer e cultura e para o aproveitamento dos terrenos e
edifícios em situação de vazio urbano, tais como: a conversão de prédios vazios, sobretudo na
Europa, em squats; a recente ocupação dos galpões industriais abandonados da Avenida Brasil e
a utilização provisória de espaços temporariamente vazios, como estacionamentos de
3
supermercados e hortomercados, em horários ociosos, para feirinhas de roupas, no Rio de
Janeiro; eventos de musica e arte em estruturas desocupadas como o que vem ocorrendo
recentemente na Europa e na área portuária do Rio de Janeiro; os jardins comunitários cultivados
em terrenos abandonados na Europa e nos Estados Unidos20, ou, mais recentemente, os wild life
sites, na Inglaterra, ou os centre-ville vert, na França21.

Quanto às intervenções urbanas em áreas de vazios urbanos das grandes cidades, como Paris,
Barcelona, Berlim ou Buenos Aires, vale destacar que o crescimento do número de projetos deve-
se a uma combinação de escassez de terrenos livres infraestruturados no interior da malha
urbana, com a percepção dos vazios como expressões de decadência e deterioração urbana, em
um mundo que privilegia a imagem e a visibilidade como forma de apreensão do conhecimento, e
a produtividade como forma de inserção social. Intervir nos vazios urbanos se configura, assim,
como uma ação que visa reverter os impactos negativos que podem significar para a produção e
acumulação do capital, neste momento, predominantemente urbano. Grumbach22 chama a
atenção para este processo de transformação das cidades: “Aquilo que deu origem à cidade
transforma-se em um lugar negativo, repulsivo. Em seguida, se produz uma reconquista dessas
margens, que se tornam o lugar pelo qual a cidade se redefine”.

Como pensar propostas para os vazios urbanos: atuação por projetos ou cidade planejada? Neste
sentido, deveriam ser propostos projetos e políticas públicas diferenciados, de acordo com as
situações de vazio urbano, que considerassem as relações que se estabelecem entre este lugar e
a cidade, uma vez que tanto essas áreas podem se converter em focos que inundam de energia
zonas mais amplas, desde que haja uma compreensão dos porquês dos lugares23, como as
políticas focalizadas não têm efeitos restritos às áreas privilegiadas para intervenção ou
regulação24. Reforça-se, assim, a necessidade de identificação dos elementos que compõem os
sistemas de vazios urbanos, permitindo não apenas a atuação sobre as atuais situações de vazio
urbano como também coibindo situações potencialmente geradoras de vazios urbanos.

No contexto brasileiro, a recente aprovação do Estatuto da Cidade25 legitima instrumentos


urbanísticos com impacto sobre a questão dos vazios urbanos. Neste sentido, se a aplicação do
IPTU progressivo26 poderia estimular a ocupação dos vazios urbanos em áreas providas de infra-
estrutura, o direito à vizinhança e a análise do impacto ambiental (no caso de grandes projetos),
poderiam regular essa ocupação.

No Rio de Janeiro, o Plano Diretor27 considera a ocupação dos vazios urbanos em áreas providas
de infra-estrutura um dos seus princípios básicos, estabelece os vazios prioritários à ocupação em
cada Área de Planejamento e define áreas para aplicação do IPTU progressivo. Estas orientações
deveriam ser articuladas a critérios mais amplos de sustentabilidade uma vez que, como alerta
Portas28, a adoção de políticas de preenchimento dos vazios, como forma se deter uma possível
dispersão urbana, poderia agravar as condições ambientais do centro já saturado e adiar a
requalificação da periferia que, ainda assim, continuaria a se estender.

Ao nível federal, o Ministério das Cidades tem priorizado a habitação para a população de mais
baixa renda, até cinco salários mínimos, nas áreas de vazios urbanos. Estas ações e projetos
atuam em tipologias específicas de vazios urbanos. Muito ainda precisa ser analisado, e proposto,
a fim de contemplar a diversidade de situações de vazios urbanos observada no Rio de Janeiro.

No Rio de Janeiro algumas intervenções foram realizadas no âmbito da Secretaria Municipal de


Habitação, financiadas pela Caixa Econômica Federal, através do Projeto de Assentamento
Residencial, com o aproveitamento de vazios intersticiais para moradia de baixa renda. A
Secretaria Municipal de Urbanismo que vem estudando possibilidades de ocupação de vazios por
grandes projetos, embora não exista um programa específico para tal. Em relação
especificamente às áreas centrais, há dez anos a Lei do Centro29 flexibilizou os parâmetros
urbanísticos incentivando o uso residencial proibido desde meados da década de 7030.

UM BREVE QUADRO DOS VAZIOS URBANOS CARIOCAS


4
Este breve quadro dos vazios urbanos cariocas está estruturado em duas partes. A primeira busca
identificar as diferentes compreensões do vazio ao longo da historia urbana da cidade e a
segunda, onde se traça um quadro inicial do sistema de vazios urbanos cariocas.
No Rio de Janeiro, cidade de colonização portuguesa e de grandes belezas naturais, a conquista
de terras firmes para expansão da cidade desempenhou um papel estruturador. Fundada em
meados do século XVI, a ocupação da cidade começou, efetivamente, pelo alto do Morro do
Castelo, a partir de 1567. Através do aterramento das lagoas e mangues que permeavam as
partes baixas da cidade – como as lagoas da Carioca, da Sentinela, do Desterro e do Boqueirão31
– foi sendo construída a malha urbana inicial ligando as primeiras ocupações que se delineavam
no alto dos morros do Castelo, São Bento, Santo Antonio e Conceição, vértices do quadrilátero
inicial de ocupação da cidade.

A partir de meados do século XVIII, quando a cidade se torna capital da colônia, realizam-se
intervenções dentro e fora do núcleo inicial de ocupação - como o aterramento da Lagoa da
Pavuna e do Mangal de São Diogo – permitindo a expansão da mancha urbana para além dos
limites desse quadrilátero. Os núcleos que exercem uma centralidade sobre a cidade vão
acompanhando esse processo: primeiro, o Morro do Castelo, depois o Largo do Paço e o Campo
de Santana. Esta descrição extremamente sintética do período que abrange desde 1567 até o
momento anterior à chegada da corte portuguesa ao país em 1808 ilustra o papel dos vazios
naturais no contexto do processo de ocupação e expansão da malha urbana.

No século XIX o crescimento econômico, populacional e urbano da cidade impulsiona a expansão


da malha urbana que, a partir de meados do século, segue os caminhos dos trilhos dos bondes e
dos trens em direção às zonas norte e sul. A cidade adquire uma nova dimensão. O crescimento
da cidade em direção aos vazios periféricos cria as primeiras áreas vazias no interior da malha
original, em processo de consolidação. A cidade do Rio de Janeiro chega ao final do século XIX
com um grande contingente populacional, acrescido dos imigrantes e dos escravos recém
libertados (1888), como a capital federal da recém proclamada República (1889). As intervenções
urbanas promovidas pelo prefeito Pereira Passos (1903-1906), no início do século seguinte,
significariam, entre outros aspectos, a valorização da área central e a fúria urbanística32 que
caracterizaria o processo de transformações espaciais dessa área nas próximas décadas.

As intervenções realizadas a partir dos anos 20 serão orientadas, justamente, pela possibilidade
de criação de mais terras valorizadas na área central causando um profundo impacto na formação
do quadro de vazios urbanos cariocas: como o arrasamento do Morro do Castelo (anos 20); a
demolição de inúmeros quarteirões para a abertura da Avenida Presidente Vargas (anos 40); e o
arrasamento do Morro de Santo Antonio (década de 50)33. Se as esplanadas criadas no vazio
aberto pelo desmonte dos morros do Castelo e de Santo Antonio, e a abertura do segundo trecho
da avenida Presidente Vargas - entre a Central do Brasil e a avenida Francisco Bicalho - não
correspondem, inicialmente, à expectativa do poder público; por outro lado, nos aterros realizados
com as terras dos morros serão construídos o Aeroporto Santos Dumont (1937) e o Parque do
Flamengo (1966), que dotaram a área central de novas estruturas de transporte e lazer próximas.

A partir dos anos 60 o crescimento da malha urbana da metrópole carioca assume maiores
proporções e é acompanhado pelo esvaziamento crescente de áreas no interior da malha urbana
submetida a um processo de especulação compatível com os novos momentos de produção
capitalista do espaço urbano carioca. Nas últimas décadas, a partir da compreensão da cidade
como um bem cultural, algumas iniciativas de aproveitamento para equipamentos culturais e fins
habitacionais de edifícios em situação de vazio urbano têm contribuído para minimizar, em parte,
o grave quadro de vazios urbanos no interior da malha urbana da área central carioca.

Na forma urbana atual do Rio ícones naturais, urbanos e arquitetônicos convivem com vazios
urbanos significativos. O quadro inicial do sistema de vazios urbanos cariocas inclui desde
infraestruturas obsoletas, subutilizadas, desocupadas, e vazios potenciais até vazios decorrentes
de demolições e de alterações completas dos tecidos urbanos geradas pelas intervenções
5
promovidas, ao longo do século XX, na área central da cidade34. No sistema de vazios urbanos
das áreas centrais, e na zona sul, predominam lotes, geralmente, muito valorizados, com infra-
estrutura disponível, cuja subutilização acarreta uma visível deseconomia urbana, e áreas
ocupadas por antigas estruturas de transporte ferroviário e portuário, estas, específicas da área
central. Nos subúrbios prevalecem as infraestruturas obsoletas (fábricas, hospitais, mercados,
áreas militares) localizadas em áreas dotadas com alguma infraestrutura, e uma grande
quantidade de pequenos lotes. Nas áreas de expansão imperam os lotes de grandes dimensões,
sejam glebas com características ainda rurais, que, em muitos casos, têm sua ocupação
dificultada pelas condicionantes fisiográficas, ou grandes vazios urbanos, como os
estacionamentos localizados área central de comercio e serviços. As estruturas arquitetônicas
abandonadas ou subutilizadas estão dispersas pela cidade e, de forma mais concentrada, na área
central onde se observam desde fachadas com interior vazio, na área do Corredor Cultural, até as
grandes estruturas de transporte da área central.

Outras situações de vazio urbano que podem ser identificadas no Rio são aquelas prefiguradas
por espaços residuais, intersticiais, como pequenos edifícios desocupados em graus diferenciados
de deterioração e terrenos baldios inseridos na trama das quadras; grandes e pequenos lotes
vazios apropriados para feiras de roupas, atividades culturais, intervenções artísticas e comércio;
edifícios públicos abandonados; grandes estruturas arquitetônicas cujo processo de construção foi
interrompido; e terrenos lindeiros às grandes avenidas e intervenções de cunho rodoviarista como
na Avenida Presidente Vargas e adjacências, e nos respiradouros do metrô, utilizados, em sua
grande maioria para fins de estacionamento. Situação de certo modo criada pelo próprio poder
público que, ao mesmo tempo em que incentivou essas intervenções e o uso do automóvel, não
elabora uma política de transporte público nem provê estacionamentos: estariam estes
estacionamentos cumprindo uma função social no rastro do vazio de poder do Estado?

Estudos recentes voltados para a análise dos aspectos da normativa urbanística -planos diretores,
legislação de uso e ocupação do solo, instrumentos urbanísticos - e dos possíveis impactos,
positivos e negativos na forma urbana, identificaram situações potencialmente geradoras de
vazios urbanos. Analisando especificamente a área central Vaz e Silveira35 destacam entre os
aspectos da legislação urbanística que conformaram o sistema de vazios urbanos a aplicação: os
Projetos de Alinhamento (PA) sobre o antigo tecido urbano relegando sobrados e pequenos
prédios remanescentes ao desaparecimento e, na medida em que essa transformação não se
verifica, se deterioram, promovendo a degradação do espaço urbano do seu entorno imediato; e o
decreto 322/76 que proibiu o uso residencial no centro, dificultando, ou mesmo inviabilizando, este
uso nas áreas adjacentes. No primeiro caso, observa-se que o PA, instrumento concebido por
Passos, no início do século XX, para permitir abertura e alargamento de ruas sem ônus excessivo
aos cofres públicos, produziu, ao longo do tempo, uma ação destrutiva sobre o tecido urbano
devendo ser, assim, revisto. No segundo, a Lei do Centro, de 1994, revogou a restrição ao uso
residencial, mas ainda não se observa uma retomada substancial desse uso na área central.

Quanto aos vazios urbanos configurados, paradoxalmente, por intervenções urbanas, verifica-se
que o pressuposto projetual de promover a integração espacial nem sempre foi alcançado, seja
pelos princípios adotados no projeto, seja pela alteração das forças sociais, econômicas e
políticas no momento de implantação do mesmo. Entre essas intervenções destacam-se, nas
áreas centrais, os desmontes dos morros do Castelo e de Santo Antonio, a abertura da Avenida
Presidente Vargas, as intervenções realizadas sob a égide da apoteose do vazio do urbanismo
modernista e da “política de terras arrasadas” do rodoviarismo36 e, nos anos 70 e 80 a construção
e expansão do metrô.

Enfocando mais especificamente os vazios urbanos das áreas centrais e suas franjas é importante
destacar que, mesmo sem uso efetivo, esses terrenos sofrem valorização do mercado, e que o
maior proprietário de terrenos vazios valorizados na área central do Rio de Janeiro é o Estado,
seja o governo federal, estadual, ou municipal37. Embora exista um grande número de terrenos
vazios particulares, pertencentes a grandes empresas, como é o caso da Companhia do
Metropolitano, ou mesmo às ordens religiosas, os mais valorizados pertencem ao Estado. Em
6
outras palavras, da mesma forma que o Estado desempenha um papel fundamental na formação
e manutenção desses vazios urbanos, poderia, também, contribuir para coibir a formação de
novos vazios e equacionar de forma mais justa as situações de vazio urbano existentes.

CHEIO E VAZIO: UMA BREVE HISTÓRIA

O nosso objeto de estudo neste trabalho é o imenso terreno situado do lado ímpar da Avenida
Passos, entre o Beco do Tesouro e a Travessa das Belas Artes, e limitado ao fundo pela Rua
Gonçalves Ledo. Localizado próximo a marcos históricos do espaço urbano carioca - como a
Praça Tiradentes, o Campo de Santana, o Largo de São Francisco e a Avenida Presidente Vargas
– essa quadra, de aproximadamente 5000m2, pertencente à União é arrendada ao INSS e
utilizada, atualmente, como estacionamento. Este uso agrava ainda mais os conflitos entre os
pedestres que afluem ao diversificado comércio local da área do Saara38 e que se deslocam entre
os terminais de ônibus localizados no entorno da Avenida Passos, importante elo de ligação entre
a zona norte e o centro da cidade.

A área de entorno desse terreno além de possuir grande significação histórica, simbólica e
funcional para a história da cidade, articula vários elementos do sistema de vazios urbanos da
área central relacionados à tipologia de vazios subutilizados para fins de estacionamento: terrenos
pertencentes ao poder público e ao Metrô às margens da Avenida Presidente Vargas; lotes
ociosos no interior das quadras; e, mais recentemente, térreos de antigos edifícios. Este uso, nem
sempre regularizado39, contribui para promover a degradação do seu entorno. A utilização de
terrenos baldios, surgidos a partir da demolição de edifícios, para fins de estacionamento40 já era
retratada por Heller, em 1938, época da demolição da quadra da Avenida Passos. Recentemente,
a revitalização da Praça Tiradentes e a abertura do Centro de Artes Helio Oiticica, em 1996, no
prédio onde funcionou, originalmente, o Instituto Imperial de Música, contribuíram para reverter,
em parte, o processo de decadência da área41.

Esta quadra encontra-se em situação de vazio urbano desde metade dos anos 30, uma vez que
mesmo antes da demolição das construções que ocupavam a quadra há relatos de que estas se
encontravam em estado de degradação. A permanência desta situação no tempo não deixa de ser
intrigante considerando-se a localização privilegiada na área central. Para compreender as
características desse lugar buscou-se realizar uma avaliação das suas dimensões histórica e
contemporânea a partir do seu contexto urbano, da historia do cheio e do esvaziamento.

A pesquisa realizada encontrou dificuldades em recompor a rica história desta quadra.


Dificuldades em relação ao “cheio”, uma vez que a demolição das edificações ocorreu quase
concomitantemente à criação do SPHAN42, resultando tanto no não tombamento dos imóveis
históricos que nela se localizavam, como em uma carência de dados sobre os mesmos.
Dificuldades em relação ao “vazio” que se seguiu, uma vez que as causas pelas quais esta
situação permanece no tempo não são aparentes como, por exemplo, exigüidade do terreno ou
restrições da normativa urbanística. A reconstituição histórica deste período recente se revela
quase como a composição de uma colcha de retalhos de informações dispersos nos vários órgãos
setoriais e em raras referências bibliográficas e iconográficas.

Nas entrevistas realizadas para a pesquisa esta quadra é, na maior parte das vezes, identificada
com a Academia Imperial de Belas Artes, cujo edifício era ocupado no momento de sua demolição
pelo Ministério da Fazenda. No entanto, sabe-se que a Academia ocupava apenas a parte da
quadra com acesso pela Travessa das Belas Artes em frente à Rua Imperatriz Leopoldina, cujo
pórtico principal se encontra, desde 1940, no Jardim Botânico. O outro lado da quadra, lindeiro ao
Beco do Tesouro, foi ocupado inicialmente pelas instalações provisórias da Casa dos Pássaros.
No entanto, ao ser concluído, o edifício a ela destinado passou a abrigar o Erário Régio, uma vez
que a coleção da Casa dos Pássaros foi transferida para o Museu Real na Praça da República.

7
Há pouca documentação sobre a volumetria ou fachada desse edifício, bem como sobre a
destinação de uso da quadra a partir de 1938.

A história do local remonta ao século XVIII, quando a elevação da cidade à condição de capital da
colônia (1763) e as melhorias urbanas promovidas na gestão do Vice-Rei Luís de Vasconcelos
(1779-1790) aceleraram o processo de urbanização da cidade, facilitando a ocupação desta área
pantanosa e alagadiça localizada entre o quadrilátero inicial de ocupação da cidade e o atual
Campo de Santana, até então, local de despejos de dejetos. Neste período foram abertas ruas
ligando a área ao núcleo urbano existente. Em 1791 foi aberta a Rua do Real Erário, denominada,
em 1817, de Rua do Sacramento, em função da Igreja de Santíssimo Sacramento, alargada e
prolongada até a Avenida Marechal Floriano, em 1903, no contexto da Reforma Urbana, e
rebatizada de Avenida Passos em homenagem ao prefeito.

As primeiras referências de ocupação da quadra remetem à construção de uma grande edificação


para abrigar a Casa de História Natural, um entreposto colonial criado, por iniciativa do Vice Rei
Luis de Vasconcelos, em 1784, para remeter produtos naturais de todo o país para os museus
portugueses de Ajuda e Coimbra43. Para tanto o Vice Rei idealizou a construção de um grande
edifício. Devido à lentidão na construção do prédio foi improvisado ao lado um barracão que
funcionava como um depósito de animais empalhados, e alguns vivos, que ficou conhecida como
Casa dos Pássaros44. Em 1813 o Príncipe Regente extinguiu os cargos daquela instituição e
mandou transferir os móveis para a Academia Real Militar, no Largo de São Francisco. Em 1818
criou o Museu Nacional, com concepção oposta à Casa dos Pássaros, que herdou sua coleção.

A construção do prédio destinado a abrigar a Casa de Historia Natural, projeto de Manoel da


Costa, junto ao Beco do Tesouro, foi iniciada em 1810. Em 1814 foram concluídas as obras e
transferidas para o local as oficinas monetárias do Tesouro Nacional, a Casa da Moeda45. Neste
período foram emitidos os primeiros selos postais na América, os famosos “olho de boi”. Em 1868
a Casa da Moeda foi transferida para prédio próprio que hoje abriga o Arquivo Nacional na atual
Praça da República. Em 1934 foi autorizada a construção de um edifício sede centralizando o
Ministério da Fazenda e o Tribunal de Contas. Poucos anos depois o velho casarão quase em
ruínas foi demolido46.

O projeto dos arquitetos Wladimir Alves de Souza e Enéas Silva é escolhido no concurso
promovido para a nova sede do ministério, mas o ministro revê a área necessária para a nova
sede, conclui ser necessário um novo terreno, e solicita uma quadra na Esplanada do Castelo,
próxima aos novos ministérios do Trabalho e da Educação e Saúde Públicas. O novo projeto é
realizado no ministério por uma equipe do escritório técnico chefiada pelo arquiteto Luiz Eduardo
Frias de Moura. Em 1938 se inicia a construção do edifício no Castelo e em 1943 é inaugurada da
nova sede do ministério.

Duas décadas depois a situação da quadra era assim descrita por Coaracy:

“Com a mudança do ministério para o imponente edifício da Esplanada do Castelo, foi o


velho Tesouro demolido, na administração do Prefeito Henrique Dodsworth. E o terreno
baldio e sem aplicação imediata onde ele se erguera foi durante muitos anos arrendado pela
Prefeitura a uma empresa de diversões que ali explorou um mafuá. Até os locais estão
sujeitos à degradação como reflexo da decadência do espírito público nos governos47”.

O prédio da Academia Imperial de Belas Artes, projeto do arquiteto integrante da Missão Artística
Francesa Grandjean de Montigny, foi iniciado em 1816 e inaugurado em 182648. O primeiro
projeto apresentado pelo arquiteto ao Príncipe Regente previa a construção de dois corpos
laterais com dois pavimentos, um corpo central com três pavimentos e um pórtico central. Os dois
corpos laterais que deveriam fazer limite com as atuais rua Gonçalves Ledo, por um lado, e
Avenida Passos, por outro, nunca foram construídos. O prédio foi inaugurado com um pavimento
com pórtico principal central em dois níveis.

8
A pracinha semicircular em frente ao prédio da Academia só foi concluída em 1848, após a
abertura da rua transversal - atual Imperatriz Leopoldina - à Praça Tiradentes, prevista desde a
época da construção do edifício, em 1846, inserindo o monumento de Grandjean de Montigny na
paisagem urbana. Este conjunto, de extrema simplicidade, constitui a primeira praça ordenada
construída no Rio e representa uma perfeita aplicação dos princípios do urbanismo clássico
francês49. Em 1882, foi acrescido um segundo andar e avançada a parte central da fachada. Em
1908 a Academia foi transferida para o prédio do atual Museu Nacional de Belas Artes, na
Avenida Rio Branco. Neste mesmo ano um terceiro andar foi construído pelo Ministério da
Fazenda que passara a ocupar o prédio. Trinta anos depois o prédio foi demolido.
Sobre o processo de demolição deste prédio de significativo valor cultural Rodrigo Mello Franco
de Andrade assim se exprime, em 196150:

Sustentou-se então veementemente que não se poderia poupar a obra de arquitetura


delineada pelo grande mestre da Missão Artística Francesa de 1816, pois o único terreno
adequado à localização do indispensável palácio novo do Tesouro Nacional seria o que a
velha Academia ocupava. (...) Entretanto, posta abaixo, em ritmo acelerado, a imponente
edificação, os responsáveis passaram a considerar que o lugar era, afinal de contas,
impróprio para a nova sede do Ministério da Fazenda e decidiram levantá-lo muito longe
dali, na Esplanada do Castelo, sem se dignarem dar desculpa alguma pela inutilidade
revoltante da destruição. Mais tarde, com despesa apreciável e muitíssimo trabalho, logrou-
se reconstituir o pórtico da Academia, no eixo de uma das alamedas de palmeiras imperiais,
no recinto do Jardim Botânico. O local, porém, onde se erguia o monumento histórico,
continua até hoje terreno baldio, utilizado a princípio para estacionamento de automóveis e,
atualmente, para não sei que modalidade de comércio, a funcionar em barracos
improvisados”.

VAZIO E CHEIO: PROPOSTAS E PERSPECTIVAS

Ë curioso observar que nestas quase sete décadas de situação de vazio urbano desta quadra
valorizada da área central carioca não tenham sido encontrados registros de propostas
significativas até os anos 80. Além da excelente localização e acessibilidade - próxima a grandes
vias de tráfego (como as avenidas Presidente Vargas, Passos e República do Paraguai), com
grande oferta de transportes públicos, e a terminais rodoviários, ferroviário e a estações de metrô -
a quadra está próxima a vários equipamentos culturais e ao comércio diversificado do Saara.
Atrativos que poderiam contribuir para reverter a situação de vazio urbano, mas tal não ocorreu,
indicando que outros aspectos da dinâmica urbana, além da evidente retenção especulativa, se
impuseram a permanência dessa situação.

Desde 1984 a quadra faz parte da zona de preservação urbana do Corredor Cultural, na sub-área
do Saara. Ela se destaca pela amplidão de suas dimensões e pelo contraste de densidades que
estabelece com o tecido urbano rendilhado de lotes de testada estreita e grande profundidade
ocupados, em sua maioria, por uso comercial no térreo e residencial nos pavimentos superiores
que predomina na área de entorno. Tendo sido destinada desde o inicio do processo de ocupação
ao uso institucional caracteriza-se, também, por pertencer a um único proprietário, a União.
Características morfológicas e fundiárias que tanto poderiam inibir ou incentivar a utilização do
terreno. Por um lado, o Estado não teria que arcar com o alto custo de uma desapropriação de um
terreno de tais dimensões. Por outro, essas mesmas dimensões demandam uma parceria
financeira que viabilize economicamente a implantação de um equipamento público, seja uma
praça, conforme estabelece a legislação urbanística, um centro cultural, como proposto em 1988,
ou a recente proposta de integração da praça central ao uso habitacional, comercial e
estacionamentos. A principal, e maior, barreira a ser transposta por qualquer projeto para o local é
a retirada do estacionamento arrendado à empresa particular51.

Analisando-se o projeto do Centro Cultural Latino Americano52 elaborado pelo Escritório Técnico
do Corredor Cultural, em 1988, atendendo à demanda da Faculdade Latino-Americana de
Ciências Sociais (FLACSO), observa-se que, desde então, buscavam-se parceiros que
9
viabilizassem economicamente a reutilização da área. Esse projeto previa atividades abertas ao
público, no térreo, salas de aulas, cinema e pequeno auditório, no segundo pavimento, atividades
administrativas, no terceiro, e uma praça central organizando o conjunto edificado e garantindo um
espaço público de sociabilidade. O gabarito proposto de três pavimentos, exceto na fachada da
Travessa das Belas Artes, buscava contextualizar a nova edificação às características
morfológicas do entorno e respeitar a volumetria original do projeto de Montigny.

Este projeto dependia além da viabilização econômica, da cessão do terreno e da modificação da


Lei 1139/87, do Corredor Cultural, para vinculação ao novo uso proposto, o que acabou não
acontecendo. O projeto não foi realizado. O terreno se manteve ocupado por estacionamento à
céu aberto explorado por uma empresa privada53, com destinação de uso para praça54.

A mais recente proposta para a área foi elaborada pelo Projeto UEP Tiradentes, no contexto do
Programa Monumenta/BID55. Nesta proposta busca-se conciliar o uso proposto por lei, o uso
consagrado da quadra e o uso predominante do entorno de forma contextualizada com a tipologia
arquitetônica do entorno ao propor, respectivamente, uma praça central, com estacionamento no
subsolo com edificações de uso misto - residencial com comércio e serviços – com gabarito de
dois a três pavimentos e de testada estreita. Caso o Ministério das Cidades obtenha resultados
favoráveis na intermediação com o INSS para a cessão do terreno56, o uso habitacional será
financiado pelo Programa de Arrendamento Residencial (PAR)57 da Caixa Econômica Federal.

Analisando-se a nova proposta para a quadra dentro de um contexto urbano dos espaços de
lugares, mas também de um contexto mais amplo dos espaços de fluxos, que organizam a
sociedade contemporânea, é possível concluir que ela estaria atendendo ao que Grumbach58
considerou como um dos desafios do urbanismo contemporâneo: promover identidade,
promovendo diferenças. O uso misto residencial/comercial com praça central tenderia a integrar a
quadra ao contexto urbano do Saara, mas com uma identidade nova, própria, uma vez que esta
intervenção não significaria a recomposição do tecido urbano, mas a urdidura de uma nova trama.
A praça central prevista poderia atender a uma demanda observada na área por espaços de
sociabilidade. Da mesma forma, a construção do estacionamento no subsolo poderia garantir a
acessibilidade ao novo projeto e à sua área de abrangência e viabilizar economicamente a
proposta. A existência de estacionamento e a proximidade às estações e terminais de transporte
público são dois dos itens valorizados pelos comerciantes do Saara59. Este projeto teria, assim,
uma abrangência maior do que a área de intervenção direta, o que deve ser observado e
analisado ao longo do processo de implantação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A configuração histórica e a permanência desta situação de vazio urbano podem ser relacionadas,
entre outros fatores: (i) à perda dos atributos simbólicos anteriormente associados à quadra da
Academia de Belas Artes e das instalações do Ministério da Fazenda, sem que novos atributos,
funções e valores fossem estabelecidos; (ii) à expectativa de investimentos na área central na,
que culminou com a abertura da Avenida Presidente Vargas e que não se concretizou, face o
boom imobiliário de Copacabana na década de 40 que desestimulou o investimento nas novas
áreas criadas no centro; (iii) às características físicas do sitio de grandes dimensões em
contraponto ao rendilhado de ruas estreitas e sobrados que caracterizam o mosaico urbano e
cultural da área do Saara; (iv) ao elevado valor das terras da área central; e (v) à escassez de
estacionamentos na área central considerando-se a ênfase no transporte individual e à carência
de uma política de transporte público.

A análise deste vazio urbano permite considerar que, tal como observa Chalas (2000), a cidade
contemporânea não pode ser mais pensada apenas em termos da cidade antiga e demanda
novos referenciais e procedimentos analíticos que permitam aprofundar a compreensão das
características atuais do processo de urbanização de forma articulada às várias escalas de
10
análise e aos múltiplos aspectos da dinâmica urbana em que as situações de vazio urbano -
sejam elas objetos de projetos urbanos ou não - tendem a se tornar cada vez mais cotidianas.

1
Ver, entre outros, SOLÀ-MORALES, Ignasí e COSTA, Xavier (dir.) (1996). Presentes y futuros: Arquitectura en las ciudades.
Barcelona: Congrés UIA 96 e CLICHEVSKY, Nora (org) (2002). Tierra vacante en ciudades latinoamericanas. Canadá: Lincoln.
2
CHALAS, Yves (2000). La invention de la ville. Paris: Antrophos.
3
Conceito utilizado por Chalas (2000) para compreender a permanente invenção da cidade. Na cidade emergente, em oposição à
cidade tradicional, compacta e unitária, do ponto de vista arquitetônico, sobressaem, entre outros elementos, a descontinuidade.
4
FERRARA, Lucrécia (2000). Significados Urbanos. São Paulo: HUCITEC/Edusp. Pag.181.
5
Ver CHOAY, Françoise e MERLIN, Pierre (org.) (2000). Dictionnaire de l’Urbanisme et de l’amenagement. Paris: PUF.
6
HARVEY, David (1990). A condição pós-moderna. São Paulo: Loyola; e HARVEY, David (2001). Possible urban worlds.
http://www.megacities.nl. Acesso: 08/06/2004.
7
CASTELS, Manuel (2002). A sociedade em rede. (A Era da Informação. vol.1). S. Paulo : Paz e Terra.
8
CHOAY, Françoise (1994). La mort de la ville et le règne de l’urbain. In : DETHIER, J. Et GUILHEUX, A. (dir.) (1994). La Ville, art et
architecture en Europe, 1870-1993. Paris : Centre Pompidou.
9
As megacidades “conectam enormes segmentos de população a este sistema global” (Castells, 2002) e incluem tanto grandes
aglomerações - Tóquio, São Paulo, Nova Iorque, Cidade do México, Xangai, Bombaim, Los Angeles, Buenos Aires, Seul, Pequim, Rio
de Janeiro, Calcutá e Osaka – e cidades como Paris, Jacarta, Cairo, Nova Deli, Moscou, Londres,Lagos, Dacca, Karachi e Taijin.
10
SANTOS, Milton (1996). A Natureza do Espaço. São Paulo: EDUSP.
11
CLICHEVSKY, Nora (2002). El contexto de la tierra vacante en América Latina. In: CLICHEVSKY, Nora (org) (2002).op.cit. Pag.01.
12
Zona de preservação do centro histórico instituída pela Lei Municipal 506 (de 17/01/1984) e delimitada pelo PA10290 e PAL38871.
13
SANTOS, Milton (1990). Metrópole coorporativa fragmentada: o caso de São Paulo. S.Paulo: Nobel/SEC. Pag. 25.
14
CONOLLY, P et allii (2002). Terrain Vague: an interview with Ignasí de Sola Morales. http://www.kerb3.com/Ignasi.htm.
15
LYNCH, Kevin (1990). The waste of place. In: Places 6:2, winter. Harvard: MIT Press.
16
Essa positividade derivaria da apropriação cultural das wastelands, e não da sua gênese, uma vez que ele considerava as áreas
desocupadas “sem sentido, produtos nefastos de alguma falta de planejamento”. LYNCH, Kevin (1999). Boa Forma da Cidade.
Lisboa: Edições 70. pág. 377.
17
FIALOVÀ, Irene (1996). Terrain vague: um caso de memória. In: SOLÀ MORALES e COSTA (1996). Op.cit. pag. 273.
18
Clichevsky (2000). Op.cit.
19
FAUSTO, Adriana e RABAGO, Jesús (2001). ¿Vacíos urbanos o vacíos de poder metropolitano? In: CIUDADES. Numero 49. Enero-
marzo. Puebla, México: RNIU.
20
CARR, Stephen et alii (1996). Public Space. USA: Cambridge University Press. Pag. 69
21
Chalas (2000). Op.cit. pag.127
22
GRUMBACH, Antoine (1996). A dialética das restrições: ou como se faz a cidade. In: RUA, v.1, n6, jul-dez de 1996. pag.76.
23
Fialovà (1996). Op.cit.
24
Oliveira (2000). Op.cit.
25
Lei Federal 10.157 de 10/07/2001 que regulamenta a função social da propriedade urbana, arts. 182 e 183 da Constituição de 1988.
26
O Art. 5o estabelece que o município pode intimar os proprietários a construírem nos terrenos vazios ou loteá-los sob pena de
tributação, caso isso não ocorra e de desapropriação do imóvel pelo poder público, caso a situação permaneça ao fim de cinco anos.
27
PCRJ. Lei Complementar 16/1992. A revisão prevista para 2002 foi adiada em função da aprovação do Estatuto da Cidade, com o
qual deve ser compatibilizado. Há uma proposta na Secretaria Municipal de Urbanismo que ainda não foi debatida e analisada.
28
PORTAS, Nuno (2000). Do vazio ao cheio. in: SMU (2000). Caderno de Urbanismo no2. Vazios e o Planejamento das Cidades.
29
PCRJ. Lei 2236 de 14/10/1994.
30
PCRJ. Decreto 322/76. Regulamento de Zoneamento da Cidade do Rio de Janeiro.
31
A Lagoa do Desterro e a do Boqueirão foram aterradas no século XVIII. Ver Barreiros, Canabrava (1965). Atlas da Evolução
Urbana da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IHGB. Pag.16.
32
Expressao extraída do titulo do artigo em que Marques Rabelo comenta as obras realizadas para a abertura da Avenida Presidente
Vargas. Ver Oliveira, Lucia Lippi (2002). Memórias do Rio de Janeiro. In: Oliveira, L.Lippi (org.) (2002). Cidade: história e desafios.
Rio de Janeiro: FGV.
33
Neste caso, ao contrário dos anteriores, foram poupados exemplares da arquitetura colonial refletindo, possivelmente, a atuação do
SPHAN, serviço de proteção ao patrimônio criado em 1937.
34
Ver FURTADO, Fernanda e OLIVEIRA, Fabrício (2002). Tierra vacante em Rio de Janeiro. In: CLICHEVSKY (2002). Op.cit.
35
VAZ, Lílian e SILVEIRA, Carmen (1998). Transformações e permanências na área central do Rio de Janeiro. Revista Arquitetura,
ano 29, no1. Rio de Janeiro: IAB.
36
FERREIRA DOS SANTOS, C. Nelson (1986). Preservar não é tombar, renovar não é pôr tudo abaixo. Revista Projeto no 86, abril.
São Paulo: Projeto Editores.
37
NEVES, Luiz (1995). Vazios urbanos na II RA, área central do Rio de Janeiro: identificação e decodificação. Dissertação de
Mestrado. Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional/UFRJ. Rio de Janeiro. pág.83.
38
Sociedade de Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega formada em 1962, pelos comerciantes locais, para impedir a abertura
da Avenida Diagonal, proposta no Plano Agache, ligando a Lapa à Avenida Presidente Vargas e rasgando a área. Este polígono
configurado por 11 ruas que ligam entre si as ruas Buenos Aires, Senhor dos Passos e Alfândega se constitui em um mosaico étnico
de convivência cultural e comercial. Ver WORCMAN, Susane (2000). Saara. Rio de Janeiro: Relume Dumará.
39
A CETRio opina sobre a concessão de uso cabendo à SMU licenciar o estacionamento, conforme informa a gerente de Planos
Locais Maria Ernestina Gonçalves (1aGPL/SMU).
40
O Plano Diretor e o Programa de Requalificação do Centro coíbem estas situações, mas não conseguem ainda equacioná-la.
41
ANDERSON, Roberto (2000). Alterações urbanas na área central do Rio de Janeiro a partir da chegada da corte de D. João VI. In:
TOSTES, Vera e BITTENCOURT, José (ed.) (2000). Anais do Seminário Internacional D. João VI: um Rei aclamado na América.
Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional. Pp. 324-329.
42
A Academia Imperial de Belas Artes foi demolida em 1938 sem proteção legal, apesar de sua enorme importância histórica. Apenas
o pórtico de acesso foi tombado posteriormente, EM 1940, junto com o patrimônio do Jardim Botânico do Rio de Janeiro.
43
LOPES, Ma Margaret (2002). Viajando pelo mundo dos museus: diferentes olhares no processo de institucionalização das Ciências
Naturais nos museus brasileiros. http://www.imaginario.com.br/artigo/a0031_10060. Acessado em 02/06/2004.
44
CRULS, Gastão (1965). Aparência do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. Vol.1.
45
PEREIRA, Sonia (2000). Arquitetura na cidade do Rio de Janeiro no tempo de D. João VI. In: Tostes e Bittencourt (2000). Pp. 35-48
46
http://www.receita.fazenda.gov.br/historico . Acessado em 14/06/2004
11
47
COARACY, Vivaldo (1955). Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora. Pag.243.
48
BRENNA, Giovanna (org.) (1979). Uma cidade em questão I: Grandjean de Montigny e o Rio de Janeiro. Rio de janeiro: PUC/
FUNARTE/ Fundação Roberto Marinho.
49
COUSTET, Robert (1979). Grandjean de Montigny, urbanista. In: BRENNA (1979). Op.cit. Pag. 70.
50
BARBOSA, Francisco et allii (1988). Rui Barbosa e a Queima dos Arquivos. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa In:
http://www.casaruibarcosa.gov.br/rui_barbosa/main_queima Acessado em 27/06/04
51
Os estacionamentos em terrenos públicos e disputas judiciais renderiam mais de 100 mil reais ao ex-caminhoneiro Jorge Bispo. Ver
JORNAL DO BRASIL (2001). Espanhol explora latifúndio no Centro. Rio de Janeiro: Editoria Cidade. p.16. 04 de dezembro de 2001.
52
PCRJ (1988). Centro Cultual Latino Americano. Rio de Janeiro: Xerox.
53
O estacionamento era explorado pela empresa Spartacus. PCRJ (1988). Op.cit.
54
Conforme Certidão de Informações (SPE/SMU) que, por este motivo, não considera parâmetros urbanísticos para a quadra.
55
Programa realizado pelo IPHAN em parceira com o Banco Mundial (BID) e a Prefeitura.
56
Conforme entrevistas com as arquitetas do Projeto UEP Tiradentes, Cristina Lodi, e da Caixa Econômica Federal, Ângela Prendini.
57
O programa destina-se à população com renda mensal entre 3 e 6 salários mínimos e a unidades residenciais de até 35mil reais.
58
Op.cit. pag.77.
59
Ver http://www.saarario.com.br . Acesso: 21/06/2004.

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