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APRESENTAGAO Maria Stella Bresciani A mulher no espaco piiblico: um tema que remete, antes de tudo, a uma hist6ria da exclusdo. Como nao fazer uma leitura anacr6nica, uma busca de evidéncias, quando ndo de tragos, da presenga feminina no dominio desde sempre reservado aos homens? Como nao deixar transparecer um certo mal-estar (e por que evit4-lo?) quando dentro da academia nos defrontamos com a condig&o feminina e olhamos a MULHER, esse ser socialmente destinado a permanecer confinado as atividades relacionadas A reprodugao da espécie, considerado incapaz de atingir a plena racionalidade, atributo masculino por exceléncia? E verdade que essa propalada plenitude racional, mesmo na sociedade moderna, constituiu, até bem recentemente, privilégio de uma parcela bastante reduzida de homens, os proprietérios. Aos ndo proprietérios, As mulheres € aos escravos restava a drduo e anénimo caminho da labuta ¢ dos afazeres domésticos. A condi¢ao primordial para ser cidadao — ser livre — era- Ihes estranha. Tomamos aqui a palavra livre em sua acepgo politica no mundo contemporaneo — participar diretamente ou através de representantes da elaborag4o das regras do convivio social, que, traduzidas em leis, compéem a base da sociedade civilizada. Falando da opinido conservadora (tradicional ¢ antipopular) das mulheres inglesas em meados do século passado, Harriet Taylor Mill, defensora dos direitos politicos ¢ civis da mulher, explica esse outro lado da Sujeigo feminina: a auséncia de interesse pelos assuntos da vida publica, substitufdos pela vaidade ¢ pela ambi¢do de cargos de grande visibilidade mundana para seus maridos. Ao sublinhar a notdria faceta indesejavel da influéncia da mulher sobre 0 homem, Harriet busca, sem diivida, sensibilizar seus leitores dos dois sexos em relagdo a errénea forinago dada a essa metade da sociedade. Seu argumento é contundente: o atraso intelectual da mulher atua como obstéculo ao préprio progresso da humanidade, Afinal, diz ela, como esperar das mulheres responsabilidades civis e politicas se Ihes sdo negados direitos e privilégios: que interesse pode ter a mulher pela democracia ¢ pelo liberalismo dos quais no participa e que Ihe designa a mesma condigo de paria que sempre teve? Lamentando a auséncia de identidade social da mulher enquanto individuo, Harriet pde por terra todos os argumentos utilizados para manté-la enquanto ser que s6 adquire identidade através do casamento e do reconhecimento masculino de seu valor intelectual. Ao afirmar a capacidade [Rev. Bras. de Hist TS Paulo Tv9nei8 [pp 07-08 [| _ago.t0vset89 | politica da mulher, ela destréi o esteredtipo feminino do ser destinado & procriacdo da prépria espécie — me, décil e sem profissdo. A essa imagem doméstica da mulher, contrastada com a de cidada, ela opde a da mulher cidada apta para a vida particular e piiblica. Assim, a contrapartida de uma histéria da exclusdo €, sem diivida, a hist6ria de uma luta: a da mulher para se reconhecer e ser reconhecida como ser capaz de dominar os princfpios da ética ¢ da racionalidade da vida publica. Michelle Perrot, uma das pesquisadoras que nesta revista falam da dificil definigao de fontes para uma histéria das mulheres, afirmou em outro lugar que os historiadores hesitaram muito em transpor 0 limiar da vida privada. Pudor ou desprezo para com atividades obscuras que transcorriam no anonimato doméstico, um lugar “sem hist6ria”. Descobriu-se, contudo, que a casa e a familia, tal como a conhecemos hoje, sdo um acontecimento hist6rico, datado em sua modernidade e dai assunto a merecer a ateng4o dos historiadores. Mais espetacular ainda, como acontecimento do nosso tempo, foi a luta das mulheres pela igualdade dos direitos civis, pela liberdade sexual, pelo direito ao trabalho remunerado. Esses dois acontecimentos — um, a descoberta da familia e do lar burgueses, outro, a batalha das feministas sacudindo os restos da “antiga ordem” — fizeram com que a mulher adentrasse o espaco puiblico por uma via dupla: o trabalho académico ea luta politica. Como espago de express4o do trabalho académico, a R.B.H. retine, neste numero, historiadoras, antropdlogas, uma socidloga e um historiador solitario, Em seus textos, as mulheres ultrapassam os limites do espago privado pela estreita porta da excepcionalidade ou pela situagdo marginal a que se véem condenadas. Mulheres que se destacaram como pintoras, escritoras, professoras ou militantes politicas. Figuras duplamente singu- lares: superaram os constrangimentos da sociedade e ganharam notoriedade pelo sucesso em suas profissdes. Do outro lado, rostos anénimos anunciam vidas transcorridas em manicémios, bordéis, fabricas ¢ bairros populares. Estas mulheres comuns destacam-se do 4mbito doméstico pelo caminho tragico da criminalidade, da prostitui¢fo e da loucura. Paradoxalmente, algumas vit6rias... Prostitutas enriquecidas no milenar oficio; mulheres desempenhando com éxito tarefas tradicionalmente masculinas. Ao reler 0 conjunto de artigos, nado consegui deixar de pensar se foram apenas esses os caminhos para a mulher alcangar o espaco puiblico. Ou seriam esses caminhos construgGes historiograficas, com seu interesse pelo singular, pelo que se destaca da média, pelo que desperta a curiosidade publica? A resposta deixamos aos leitores.

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