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+r oe Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Lallement, Michel Historia das idéias sociolégicas : das origens a Max Weber / Michel Lallement ; tradugo de Ephraim F. Alves. — Petropolis, RI : Vozes, 2003. ISBN 85.326.2918-0 Titulo original : Histoire des idées sociologiques : des origines & Weber. Bibliografia. 1. Sociologia — Historia I. Titulo. 03-4855 CDD-301.09 indices para catalogo sistematico: 1. Idéias sociolégicas : Historia 301.09 Michel Lallement Historia das idéias sociolégicas Das origens a Max Weber Tradugao de Ephraim F. Alves y EDITORA. VOZES Petropolis 2003 sls Emile Durkheim e a escola francesa de sociologia conteiido da obra de E:mile Durkheim é inseparével do qua- dro sécio-histérico que ele viu surgir: 0 de uma III Repiiblica que procura ndo apenas superar as suas incertezas politicas (a obsessiio pela unidade nacional, a crise do “boulangismo”...), mas também resolver a “questo social” pela via pacifica e do direito. Diante de ‘um movimento operario que jamais se mostrou tio vigoroso ¢ uni- do, os republicanos optam por integrar a classe operdria gragas a novas leis sobre os riscos sociais (como a lei sobre os acidentes de trabalho, em 1898), valorizar a escola como um canal de socializa- 40... O jovem Durkheim se mostra a principio sensivel, sem diivi- da alguma, 4 questo da unidade politica. Mas, quando volta da Alemanha em 1886, nao consegue fugir & atmosfera politica e inte- ectual em que o solidarismo adquire quase o status de doutrina oficial da Repiiblica. Assim como 0 comprovam os seus numero- 0s trabalhos ~ sobre a divisio do trabalho, o direito, a familia, a escola ou ainda a religitio — é o problema da integraco do indivi- duo a sociedade que ganha ento definitivamente o lugar principal na ordem de suas preocupagies. 1. O projeto socioldgico 1.1. Das preocupagées morais ¢ reformistas Nascido em uma familia judia, filho de um rabino que perten- cia a uma longa linhagem de rabinos, Durkheim sofre a influéncia da doutrina judaica que ele recebe na infncia (Baliza 22). Embora ele depois se afaste do caminho religioso, sua andlise sera sempre influenciada pelo respeito a lei e pela importincia atribufda a forca da comunidade. A derrota om 1870, da Comuna de Paris e, mais tarde, 0 “caso Dreyfus” (a cujo favor ele tomou partido), so al- guns dos fatos histéricos que marcam o socidlogo, agueando o seu receio de um despedagamento societério e alicercam a sua firme vontade de militar pela coesio social. Baliza 22 Emile Durkheim (1858-1917) Emile Durkheim nasceu em 1858 em Epinal (Lorena). Educado segundo os cdnones da tradigao judaica, estuda o hebraico, freqiien- taaescola dos rabinos mas, a despeito de uma longa tradigao famili- ar nessa matéria, no abraga a vocagio rabinica. Seus estudos 0 le- vam a Escola Normal Superior onde obtém a agrégation de Filoso- fia e é colega particularmente de Bergson e Jaurés. Jovem professor de Filosofia na provincia, trabalha em uma tese (Da divistio do tra~ batho social, publicada em 1893) que inscreve sob o signo da articu- lagao problemitica entre 0 individuo ea sociedade (para um balango pormenorizado da entrada de Durkheim na Sociologia, cf. B. Lacroix. “A vocacao original de B. Durkheim”. Revue Francaise de Sociolo- gie,n. XVUL2, abr.-jun./1976). Em 1885, Durkheim desfruta por um ano de um estagio de estudos na Alemanha, de onde regressa com dois sélidos artigos sobre a filosofia e a ciéncia positiva da moral alema, Em 1887, é nomeado pelo responsivel pelo Ensino Superior (L. Liard) encarregado de cursos de ciéncia social e pedagogia na Universidade de Bordéus. Trabalhador obstinado, professor aplica- do, Durkheim langa as bases de uma reflexdo sociolégica global, ali- S198 mea escola-francesa: mentada inicialmente por suas leituras criticas de Comte, Spencer, Espinas, Ténnies ou, ainda, Schifle. Na dindmica cientifica encar- nada entio, acima de tudo, por Claude Bernard (Jntroducio ao estu- do da medicina experimental, 1865), Durkheim segue um fio dire- tor: a fundagio de uma moral secular. Definindo a sociedade segun- doo modelo de um organismo dotado de consciéncia coletiva, cle en- vereda por miltiplos campos que vio do estudo das formas de solida- tiedade social a historia da sociologia (Montesquieu e Rousseau. Durkheim volta igualmente seu interesse para a educagdo a historia do sistema educativo (cf. a este propésito M. Cherkaoui. Socializagao € conflito: os sistemas educativos e a sua historia segundo Durkheim. In: Revue Francaise de Sociologie, n. XVII-2, abr.-jun./1976). Dur- kheim segue também com muita atengio a evolugiio da familia: pro- cura assim estabelecer finas distingdes entre formas familiares, dis- cemir as grandes tendéncias de sua evolugio historica, ¢ ainda pro- Por uma nova andlise do interdito do incesto (1898). Em 1902, Durkheim substitui, na Sorbonne, um dos grandes arautos da laici- dade: Ferdinand Buisson. Ocupa entio um posto de ciéncia da edu- cago. Nomeado professor em 1906, 0 titulo exato de sua céitedra se transforma em 1913 em “Ciéncia da Educagao e Sociologia”. Ante- riormente, no ano de 1896, Durkheim fundara a Année Sociologi- que, revista que congrega jovens colaboradores que iro constituir sob a sua direso a Escola Francesa de Sociologia. Fortemente aba- lado com a morte no fronte de seu filo André, Durkheim falece em novembro de 1917. De seus estudos, Durkheim conserva sempre as ligdes ¢ o rigor metodol6gico do historiador Numa Denis Fustel de Coulange (4 cidade antiga, 1864); 6 marcado igualmente pelo pensamento dos filsofos neokantianos Emile Boutroux ¢ Charles Renouvier. De Renouvier, um dos pensadores mais influentes da sua época e vi- vamente preocupado em fundar uma auténtica moral republicana (deve-se a ele um Manual republicano), Durkheim o toma, alias, por mestre, Abragando, também, a carreira de professor, Durkheim se inscreve no movimento de exaltago da escola leiga que carac- teriza a III Repiblica (cf. Texto 41). A questio do ensino é entio vital para os republicanos. Dela depende o futuro da Repiiblica: t te dos militam por um ensino fundamental gratuito obrigatério e lei- g0, programa que assume a forma de lei gragas a Jules Ferry, a par- tir dos anos 1880. Durkheim é um arauto desse movimento até © ponto de alguns nfo hesitarem em ver nele“o sumo sacerdote eo teé- logo da religio civil da Terceira Republica” (Bellah). Texto 41 Prost - Escola, um ideal republicano ‘Nao nos seria possivel compreender a politica republicana, sea separdssemos da corrente de opinidio que a carrega. A instru- 40 constitui, nessa época, um ideal coletivo. Da mesma forma que hoje a maioria dos membros da nossa sociedade admite que © crescimento econdmico é 0 objetivo essencial da coletividade, da mesma maneira, na segunda metade do século XIX se acredi- tava na instrugao (...). Otimistas, os contemporineos nao duvida- vam nem da razio nem da natureza. A escola aplicava um remé- dio a injustiga social bem como a imoralidade ou A criminalida- de. Que no povo essa confianga era meio confusa, em uma mis- tura de vontade de promogao social e independéncia intelectual, isto € inegavel. Mas era mesmo real: nio se duvidava que aquilo estivesse escrito nos livros fosse verdadeiro ¢ itil. O acesso a truco era, portanto, de todas as maneiras, a promessa de uma vida melhor. Esta conviogdo suscita os progressos da escolarizacdo que des- crevemos; ela anima o movimento de opinido que se encama na liga do ensino e que servira de apoio aos republicanos; ela vai fazer das leis da educagio de Ferry e de Goblet leis “fundamentais”. Mas 0s republicanos no poder nio mostrardo unanimidade nem sobre os objetivos nem sobre o método. A comissao nomea- da pela Camara de 1877, e seu relator, Paul Bert, desejam uma lei de conjunto. Jules Ferry, ministro de 4 de fevereiro de 1879 a 14 de novembro de 1881, a seguir de 30 de janciro a7 de agosto =z Emile Durkheim-e-a-escola frances. de 1882 e finalmente de 21 de fevereiro a 20 de novembro de 1883, promove a vitéria de um método mais empirico e ataca su- cessivamente cada ponto do programa (...). No ensino superior, éa lei de 18 de margo de 1880 que supri- me 05 jliris mistos € proibe que os estabelecimentos livres se déem o titulo de universidade. No ensino secundario, cujo dire- tor é Zévort, é a grande reforma dos programas de 1880 ¢ a fun- dagio dos externatos femininos (lei de 21 de dezembro de 1880) No ensino primario, sob a diregio de Buisson, é a fundagio das Escolas Normais de Fontenay e de Saint Cloud e a lei de 9 de agosto de 1879 que instituem em cada departamento uma Escola Normal para mogas. So também as leis de primeiro de junho de 1878 ¢ de 20 de margo de 1883 que facilitam a construgio dos prédios escolares. Faz-se uma revisio da organizagio pedagégi- cae transformam-se os programas. Mas 0 essencial da obra republicana ¢ constituir o ensino pri- mario em servigo piiblico. Af esti o sentido da total gratuidade estabelecida por uma lei de 16 de junho de 1881, da obrigagio imposta pela lei de 28 de margo de 1882 ao pai de familia, que deverd enviar a escola os filos de 7 a 13 anos, a nao ser que ob- tenham 0 certificado de estudos antes dessa idade. E sobretudo 0 cariter leigo dos programas, corolério da obrigagdo, instituida pela mesma lei e que se traduz na pritica pela supressao do ensi- no do Catecismo. Sera, enfim, a laicidade dos estabelecimentos escolares, cujo acesso é proibido aos ministros religiosos pela lei de 1882, ca dos funcionarios, promulgada pela lei de 30 de outu- bro de 1886 (A. Prost. Histoire de Ienseignement en France, 1800-1967. Paris, A. Colin, 1968, p. 191-193). Mais ainda, Durkheim acredita na igualdade de todos diante da Iei bem como no respeito dos direitos civis e das liberdades politi- cas. Nao é de se admirar, ento, se Durkheim manifesta algum,gos- to pela ago politica e preocupacao pela pedagogia, técnica que Ihe parece ser um dos vetores privilegiados da integracao social. Mas, ao fundar a sociologia, Durkheim cria os meios cientificos mais apropriados para pensar e solucionar a crise social. 1.2. ..a0 objeto da sociologia J4 bem cedo Durkheim mostra um interesse particular pelo so- cialismo, doutrina que ele no abraga pessoalmente, mas & qual hi de consagrar um curso. Para sanar os problemas sociais, Durkhei= defende uma outra opséio: aquela que consiste em fundar uma me ral cientifica, Durkheim decide analisar a moral (conjunto de r= gras definidas que determinam 0 comportamento de forma impe- rativa) situando-se a igual distincia dos preceitos morais filoso= cos mais abstratos (como os kantianos) e dos princfpios de outras ciéncias como a biologia. Nao queremos — escreve Durkheim ~ inferir a mors da ciéncia mas fazer a ciéncia da moral (Emile D kheim. De la division du travail social [prefacio & primeira edic&o]). A ciéncia —escreve ainda — pode ajudar-nos a encontrar 0 ri em que devemos orientar 0 nosso comportamento. Essa grande preocupagio —a fundagio de uma nova moral ~ é tipica das preo- cupagdes de numerosos autores contemporéneos de Durkheim: © alemio Wilhelm Wundt, em cujo laboratério Durkheim faré us estégio na sua estada além-Reno, o francés Charles Renouvier o= ainda o inglés Herbert Spencer. Os estadistas franceses dessa épe- ca nao constituem excegio: também eles procuram constituir ums ral civil e leiga. Durkheim encontra o principio e a fonte da moralidade na sol dariedade social. Assim como ele expde em um livro publicads apés a sua morte (Ligdes de sociologia — Fisica dos costumes ¢ direito), podem-se distinguir duas grandes formas de solidaried= de. Os costumes, primeira forma, remetem aos deveres que os se res humanos tém uns para com 0s outros, pelo fato de pertencere= eS merece rane a.um grupo social. Neste registro, Durkheim elenca trés grupos im- portantes: a familia, a corporagdo profissional e o Estado. O direi- to, segunda forma, depende de uma ética mais geral. Esta wiltima constitui 0 alicerce do direito 4 vida e do direito A propriedade. Mas o mais importante aqui é isto: para compreender a Idgica de funcionamento destas formas de solidariedade (que sio simples- mente sistemas regidos por regras de comportamento), convém aceitar que todo fato moral seja uma regra com sangio. Pode-se entio definir a sociologia como a ciéncia dos fatos sociais. Para Durkheim, 0s fatos sociais sio maneiras de agir, de pensar e sentir, fixas ou nao, que exercem sobre o individuo uma coercitividade exterior (cf. Texto 42). Se 0 direito nos constrange —sugere portanto Durkheim — hé todo um sistema de regras me- nos visiveis que guiam também nossas priticas mais diversas: maneiras de vestir-se, de consumir, de pensar, de cometer suici- dio (cf. Texto 43)... Caberd ao socidlogo pér em evidéncia e ana- lisar esses comportamentos que constituem regularidades social- mente determinadas. De maneira mais explicita ainda, o fato so- cial € um fendmeno observavel e explicavel com o auxilio de ca- tegorias (0 principio de causalidade em primeiro lugar) e de ins- trumentos cientificos. Nesta perspectiva, constitui o objeto pré- prio desta nova ciéncia que é a sociologia. Texto 42 DURKHEIM — O que é um fato social? Eis, portanto, uma ordem de fatos que apresentam caracteris- ticas muito especiais: consistem em maneiras de agir, de pensar e sentir, exteriores ao individuo, e que so dotadas de um poder de coercao em virtude do qual se impdem a ele. Por conseguinte, no poderiam ser confundidos com os fenémenos organicos, por consistirem em representagdes e ages; nem com os fenémenos psiquicos, que nio tém existéncia a no ser na consciéncia in vidual e por ela. Constituem, portanto, uma espécie nova ¢ é a a= ParteIl=Fundacoe eles que se deve dar e reservar a quulificagio de sociais. Convém a.eles, pois esti claro que, nao tendo o individuo como substrato, no podem ter outro a nfo ser a sociedade, seja.a sociedade politi- ca em sua integralidade, seja algum dos grupos parciais que ela encerra, confiss6es religiosas, escolas politicas, literdrias, corpo- rages profissionais etc. Por outro lado, & apenas a eles que c ‘vém; pois a palavra social sé tem sentido definido sob a condigo de designar unicamente fendmenos que nao se incluem em ne- nhuma das categorias de fatos jé constituidas ¢ denominadas. Constituem, portanto, o dominio préprio da sociologia. B verda- de que a palavra coergao ou coercitividade, pela qual os defini- ‘mos, corre o risco de perturbar os zelosos partidarios de um indi- vVidualismo absoluto. Como professam que o individuo 6 perfei- tamente auténomo, parece-lhes que este sai diminuido toda vez que se Ihe faz sentir que ele no depende apenas de si mesmo. ‘Mas como ¢ hoje incontestavel que a maioria das nossas idéias e denossas tendéncias nao sio fruto de nossa elaboragio, mas nos vém de fora, nfo podem penetrar em nés a nao ser que se impo- nham, Eis todo o significado da nossa definigao (E. Durkheim. Les régles de la méthode sociologique [1895]. Paris, PUF, Que- drige, 1983, p. 5-6). Texto 43, DURKHEIM - O suicidio como fato social A taxa dos suicidios, ao mesmo tempo que acusa apenas li- geiras flutuagdes anuais, varia segundo as sociedades do simples ao dobro, ao triplo, ao quadruplo e até mais. E portanto, em grau muito mais elevado que a taxa da mortalidade, pessoal a cada grupo social, pode ser considerada como um indice caracteristi- co deste, Esté mesmo tdo estreitamente ligada aquilo que ha de mais profundamente constitucional em cada temperamento nz- cional, que a ordem em que se classificam, segundo essa relagao. permanece quase rigorosamente a mesma em épocas muito dife- rentes. E 0 que prova este mesmo quadro*. No curso dos trés pe- =-Emile Durkheim ea escola francesa<—= tiodos que ai se comparam, a taxa de suicidios subiu em toda a parte; mas nesta progressdo os diversos povos conservaram as suas distincias respectivas. Cada um tem o seu proprio coefici- ente de aceleragao. A taxa dos suicidios constitui, ento, uma ordem de fatos \inica e determinada; é o que demonstram 20 mesmo tempo a sua permanéncia e a sua variabilidade. Pois esta permanéncia seria inexplicavel se no se devesse a um conjunto de caracteristicas distintivas, solidarias umas as outras, que, malgrado a diversida- de das circunstancias do meio, se afirmam simultaneamente. E essa variabilidade atesta a natureza individual e conereta destas mesmas caracteristicas, dado que variam conforme a prépria in- dividualidade social. Em suma, esses dados estatisticos expri- mem a tendéncia ao suicidio que aflige coletivamente qualquer sociedade. Nao nos compete dizer atualmente em que consiste essa tendéncia, se éum estado sui generis da alma coletiva, dota- do de realidade propria, ou se ela apenas representa uma soma de estados individuais. Embora as precedentes consideragdes sejam. dificilmente concilidveis com esta tiltima hipétese, reservamos 0 problema que sera tratado no curso desta obra, Seja lé o que se pense quanto a isto, é fato que essa tendéncia sempre existe, a este ou Aquele titulo, Cada sociedade esta predisposta a fornecer um contingente determinado de mortes voluntirias. Essa predis- posi¢o pode, portanto, constituir o objeto de um estudo especial que compete a sociologia (E. Durkheim. Le suicide [1897]. Pa- ris, PUF, 1983, p. 13 ¢ 15). * Cfo texto 44. 1,3. As regras do método sociolégico Circunscrever um objeto de estudo particular no basta para fun- dar uma ciéncia. necessdrio ainda que se tenha um método rigoro- so de anilise e de explicagdo. Durkheim se aplica rapidamente a essa tarefa e enuncia, em As regras do método sociolégico (1895), 0s princfpios fundamentais que devem nortear a sociologia. Para respeitar os cdnones da cientificidade, deve-se em primei- ro lugar “tratar os fatos sociais como coisas”. Esta injungao, as ve- zes mal compreendida ou severamente criticada (J. Monnerot. Os {fatos sociais nao so coisas, 1946), nao quer dizer que os fatos so- ciais sejam redutiveis a fatos naturais. Durkheim quer simples- mente dizer que, assim como 0 fisico ou o bidlogo observa “de fora” o seu objeto de estudo, o socidlogo deve saber situar-se a dis. tAncia dos fatos sociais que analisa. E coisa tudo aquilo que é dado, tudo aquilo que se ofe- rece, ou melhor, se impde a observaedo (Emile Dur- Khim, Les régles de la méthode sociologique, 1895). Esta postura metodolégica € ainda mais dificil de adotar pelo fato de vivermos no mundo social que estudamos. Acreditamos conhecé-lo e poder adivinhar seus mecanismos ocultos. E necessi- tio, de fato, desconfiar dessas impressdes e “afastar sistematica- mente as pré-nogdes”. Noutras palavras, trata-se de nos desfazer- mos de nossos preconceitos, de nos libertarmos das falsas evidén- cias que nos so proporcionadas por nossa experiéncia sensivel. Deve-se, em suma, recusar considerar o social como transparente ¢ imediatamente inteligivel. Da mesma forma que 0 fisico deve por de lado a impressio de calor efetuando uma medida exata gracas a0 termémetro, deve 0 sociélogo armar-se para aprender 0 objeto de suas pesquisas ¢ ser tio objetivo quanto possivel. A fim de construir 0 seu objeto de estudo, deve 0 socidlogo, se- gunda regra, isolar e definir com fina preciso a categoria de fatos que se propde estudar. A maneira da biologia médica, Durkheim distingue entio 0 “normal” do “patolégico”. O normal correspon- de a média: Um fato social é normal para um tipo social determi- nado, considerado em uma fase determinada de sew desenvolvimento, quando se produz na média das s0- ciedades desta espécic, consideradas na fase corres- pondente da sua evolugio (4s regras..., op. cit.) Em virtude dessa definico, e por mais chocante que isto possa parecer, 0 crime é um fato social normal. Nao hé, com efeito, so- ciedade onde o crime esteja ausente, Melhor dizendo, o crime é um fendmeno necessério a toda vida em sociedade, pois, como viola- gao de sentimentos coletivos, é a expresso de um limite: o da oni- poténcia da consciéncia moral. Ha necessidade, enfim, de outro preceito metodolégico impor- tante: explicar os fatos sociais por fatos sociais anteriores (e nao por fenémenos biol6gicos, psicolégicos...). Com este intuito, deve © sociélogo privilegiar 0 método das variagées concomitantes (comparagao das variagdes respectivas das variaveis estudadas). Com as regras enunciadas anteriormente, esta regra constitui uma das bases de um racionalismo positivista com o objetivo pragmati- co expresso: se apenas tivessem de ter um mero interesse especula- tivo, assim pensava Durkheim, suas pesquisas nfio mereceriam uma hora de esforgo. 2. As mutagdes do mundo social Os primeiros trabalhos que conduzem Durkheim a enveredar pelo caminho da sociologia so ainda amplamente influenciados pela problematica comtiana das leis de evolugao das socicdades. A tese de Durkheim, publicada em 1893, aborda, assim, a questo da divisio social do trabalho, meio privilegiado ~ segundo o autor — de abordar o estudo das sociedades chamadas “superiores”. 2.1. Divisdo do trabalho e formas da solidariedade social Em seu estudo Da divisdo social do trabalho, a grande tese de- fendida por Durkheim é que a divisao do trabalho tem, antes de mais nada, por fungio, produzir solidariedade social. Esta assergio no é neutra no contexto intelectual em que Durkheim evolui. Com feito, assumir uma posicao destas significa opor-se as teses que analisam a divisio do trabalho como fator de desordem. Mas isto significa igualmente contrapor-se as teses que reduzem a divisio do trabalho a uma fonte de progresso econdmico (os economistas classicos) ou ainda aquelas que analisam essa divisio como um simples meio para que os homens possam viver sem coergiio em sociedade, quando 0 vinculo social se reduz dai em diante & troca econémica (Spencer). Para Durkheim, 0 progresso da indkistria, das artes ¢ da ciéncia € 0s servigos cconémicos que a divisio do trabalho pode prestar, so pouca coisa quando comparados com 0 efeito moral que e: ‘altima produz. A divisio do trabalho gera uma integragio do corpo social, permite atender as necessidades de ordem e de harmonia. Ela é, de fato, um fator primério de coesto e de solidariedade. Pars efetuar a sua demonstracdo com todo o rigor, Durkheim toma o di- reito como o indicador da evolugao das sociedades. Aos olhos de Durkheim, o direito é efetivamente um fendmeno exterior ¢ objet vado que apresenta a vantagem de reproduzir fielmente as diversas formas de solidariedade social. Portanto, dois tipos de sang&o (correspondendo a duas regras juridicas) merecem ser opostos: de um lado, a sang&o repressive (sang&o do direito penal que visa atingir uma pessoa na sua fortu- na, na sua honra ou sua vida), e do outro, a sangdo restitutiva (san ¢o do direito civil, comercial ou administrativo, que nao implica um softimento do agente mas o ressarcimento do direito lesado) Desta dualidade e da importdncia evolutiva desses direitos ¢ san- des no seio das sociedades, Durkheim vai deduzir duas formas hist6ricas de solidariedade social. A primeira é caracteristica des sociedades de “solidariedade mecnica”. Sao as sociedades que se qualificam ainda de bom grado naquela época como “primitivas™ ou ainda “inferiores”. No seu seio, as duas consciéncias do ser hu- mano ~ consciéncia individual e consciéncia coletiva — esto liga- das: os individuos se acham unidos gracas a sua semelhanga. Visto que, nessas sociedades, os estados de conscigncia sio comuns, todo desvio deve softer uma sangio penal. Tal é justamente a logi- ca do direito repressivo. A sogunda forma é caracteristica das sociedades de “solidarie- dade orginica”, sociedades denominadas “industriais” ou “superi- ores”, Nestas tiltimas, a solidariedade sui generis que liga as duas consciéncias do ser humano resulta, nfio mais da semelhanga mas da diferenciagao. Dé-se, para dizé-lo noutras palavras, parceli- zag&o e complementaridade dos papéis no seio do sistema social (Cf. Texto 44). Nestas sociedades, a divisio do trabalho cumpre a fungo que era confiada outrora 4 consciéncia coletiva: a de opera- dor de coesao. E 0 que bem comprova, segundo Durkheim, o fato de que na histéria da humanidade o direito cooperativo progressi- vamente predominou sobre o direito repressivo. Texto 44 DURKHEIM - Solidariedade mecanica e solidariedade organica Hé em cada uma de nossas consciéncias, como jé disse, duas consciéncias: uma, que temos em comum com todo o nosso gru- Po, que, por conseguinte, nio é nés mesmos, mas a sociedade que vive e age em nés; a outra, que s6 representa a nés mesmos naquilo que temos de pessoal e distinto, naquilo que faz de cada um de nés um individuo. A solidariedade que deriva das seme- Ihangas esté no seu maximum quando a consciéncia coletiva co- bre exatamente a nossa consciéncia total ¢ em todos os pontos de vista coincide com cla: mas, nesse momento, a nossa individua- lidade & mula (..) ‘As moléculas sociais que no seriam coerentes a niio ser ape- nas desta maneira nao poderiam, portanto, mover-se em conjun- to a nfo ser na medida em que nao possuem movimentos pré- prios, como fazem as moléculas dos corpos inorganicos. E é por | {isso que propomos que se dé 0 nome de mecdnica a essa espécie | | | | de solidariedade. Esta palavra no significa que seja produzida por meios mecdnicos ¢ artificialmente. Nés Ihe damos este nome somente por analogia com a coesfo que une entre si os elemen- tos dos corpos brutos, por oposigio aquela que faz a unidade dos corpos vivos. O que acaba de justificar essa denominagao é que © vineulo que une assim o individuo 4 sociedade é perfeitamente anilogo aquele que liga a coisa a pessoa. A consciéncia indivi dual, considerada sob este aspecto, é uma simples dependéncia do tipo coletivo e segue todos os seus movimentos, como 0 abje- to possuido segue aqueles que o seu proprictério Ihe imprime. Bem diferente é aquilo que se passa coma solidariedade pro- duzida pela divistio do trabalho. Enquanto a precedente implica que os individuos sejam semelhantes, esta supde que sejam dife- rentes uns dos outros. A primeira s6 é possivel na medida em que a personalidade individual é absorvida na personalidade coleti- va; a segunda sé é possivel quando cada um tem uma esfera de aco propria, por conseguinte uma personalidade. E, portanto, necessario que a consciéncia coletiva deixe descoberta uma par- te da consciéncia individual, para que af se estabelecam essas fungGes especiais que ela nfo pode regular; e quanto mais essa regiio se estende, tanto mais forte se torna a coesfo que resulta dessa solidariedade. Com efeito, de um lado, cada um depende tanto mais estreitamente da sociedade quanto maior a diviséo do trabalho, e, do outro lado, a atividade de cada um é tanto mais personalizada quanto maior a sua especializacao. Aqui, portan- to, a individualidade do todo cresce na mesma medida em que cresce a das partes; a sociedade se torna sempre mais capaz de mover-se como um conjunto, ao mesmo tempo em que cada um dos seus elementos goza de movimentos proprios. Fssa solidarie- dade se assemetha Aquela que se observa nos animais superiores. Cada érgio, com efeito, tem ai a sua fisionomia especial, sua au- tonomia e, no entanto, a unidade do organismo é tanto maior | quanto mais acentuada for essa individuaco das partes. Em ra- | zo dessa analogia, propomos que se denomine organica a soli- | dariedade devida a divisio do trabalho (B. Durkheim, De la divi- sion du travail social [1893]. Paris, PUF, 1973, p. 98-101). 2.2. As causas e conseqiiéncias da divisdo do trabalho Para o Durkheim de A diviséo social do trabalho existe uma es- pécie de lei da gravidade do mundo social que leva a solidariedade mecénica a se rarefazer em proveito de uma solidariedade organi- ca sempre crescente. Como explicar, neste quadro, o avango cres- cente da divisao do trabalho? Nao certamente — vai afirmar Dur- kheim ~ mediante as explicagdes fornecidas pelos economistas classicos. Estes iltimos acreditam que a busca da felicidade passa pela obtengaio de sempre maiores riquezas, que se alcanga a ti- queza com tanto maior facilidade quanto mais efetiva for a divistio do trabalho, Ora, vai retorquir Durkheim, as metamorfoses provo- cadas pela diviso do trabalho custam tempo muito longo e trazem pouco beneficio imediato. Nao é, portanto, interessante para uma geracio sacrificar-se deste modo. Com dois fatores de menor importancia (a menor pregnancia da consciéncia coletiva e a diminuigao da hereditariedade), Dur- kheim considera o aumento do volume e da densidade material e moral das sociedades como a causa real da evolugao social. O cres- cimento demografico, a coexisténcia de individuos sempre mais numerosos em uma mesma superficie geografica e a multiplicacao das comunicagSes sociais t&m como conseqiiéncia uma luta pela vida. De modo semelhante a insetos muito numerosos ocupando ‘um mesmo espaco e condenados a no mais se assemelharem (por diferenciacio do alimento, das fung6es...) para sobreviver, os seres humanos devem também criar uma nova forma de solidariedade pela multiplicaco dos papéis e pela divisio social do trabalho, Durkheim esta cénscio, apesar de tudo, da existéncia de formas de divistio do trabalho que nao produzem solidariedade social. Este & 0 caso, particularmente, das situagdes de anomia. Este esta- do aparece em circunstancias diversas como a inadequagao de cer- tas fungdes umas em relagdo as outras (problemas de faléncias no momento das crises econémicas), a oposicao entre operdrios ¢ em- pregadores com a dissolug3o das corporagdes ou a intensificagio P21 SSS ene da divisio do trabalho cientifico que fragmenta a comunidade dos pesquisadores. Surge a ruptura anémica no momento em que se quebra a consciéncia comum dos individuos introduzindo barrei- ras opacas entre eles: as antigas regras juridicas e morais perdem 2 validade, o individuo se vé preso a uma tarefa precisa que nfo 0 deixa “ver nada além”. Se Durkheim enumera ainda outras formas anormais de divisio do trabalho, parece-Ihe que para sanar a ano- mia seré necessério inventar uma articulaco entre individualismo © solidariedade. 2.3. Recomposigées sociais e papel do Estado Além do particular problema da diviséo do trabalho, o vaste movimento de gravitagfio do mundo social que Durkheim decodi- fica tem como conseqiiéncia abalar as regulagdes sociais e politi- cas tradicionais. A tempestade da Revolugao Francesa levou de roldao certos “érgaos secundérios” da vida coletiva. Assim, a f- milia, antiga sede da autoridade, se desagrega para se transformar em um tinico centro de vida privada. A medida que ia se estenden- do 0 meio social, o grupo familiar se viu reduzido ao modelo da fa- milia parental. Este mesmo modelo vai ceder o lugar a familia con- jugal cujos elementos permanentes se limitam ao marido, a mulher © a08 filhos menores ¢ solteiros (Texto 45). Instituigao social (e nao natural), a familia moderna se encolhe cada vez mais, institui-se principalmente gragas ao casamento e privilegia as relagGes inter- pessoais (nao mais a reproduciio material e a manutengo dos bens domésticos). Mas, curioso paradoxo, 4 medida que se torna um as- sunto privado, a familia se torna também uma coisa piiblica. Com © auxilio de leis numerosas que garantem os direitos ¢ os deveres domésticos, o Estado nfo cessa, com efeito, de amparar a institui- ¢40 familiar. A mudanga nfo afeta somente a familia. As divis6es territoriais, (05 mosteiros € outras associagdes que tinham substituido a paren- tela foram igualmente deslocados com a Revolugao. Inversamen- te, com a diminuig&o da importincia da consciéncia coletiva, 0 Estado cresceu e se impés como uma instituigao distinta. Como forca tinica da centralizagao, ele cumpre uma dupla fungo. Absor- ve e racionaliza, em primeiro lugar, fungdes que, antigamente, eram preenchidas por outras instncias. Assim é que se pode com- preender o desenvolvimento de uma burocracia. 0 Estado se torna, em segundo lugar, um instrumento de emancipacio. Gragas ao seu desenvolvimento, os cidadios podem escapar as obrigagoes de fi- delidades locais (a comegar pela da Igreja). Texto 45 DURKHEIM ~ Para um modelo de familia conjugal A grande mudanga que se produziu, deste ponto de vista, é 0 abalo progressive do comunismo familiar. Na origem, esten- de-se a todas as relagdes de parentesco: todos os parentes vivem em comum, tm a propriedade em comum. Mas desde que uma primeira dissociacdo se produz no scio das massas amorfas da origem, desde que aparecem as freas secundarias, o comunismo se retira dai para se concentrar exclusivamente na regio primd- ria ou central. Quando do cl emerge a familia agnitica*, 0 co- munismo deixa de ser a base do cla; quando da familia agnatica se destaca a familia patriarcal, comunismo deixa de ser a base da familia agnatica. Enfim, pouco a pouco, ele se vé corrompido até no interior do circulo primario do parentesco. Na familia pa- triarcal, 0 pai de familia se vé livre dele pois dispe livremente, pessoalmente dos bens domésticos. Na familia parental, é mais marcado, porque o tipo familiar é de uma espécie inferior; no en- tanto, os membros da familia podem possuir uma fortuna pesso- al, mesmo que no possam desfrutar dela ou administré-la pesso- almente. Enfim, na familia conjugal, dele s6 restam vestigios, visto que 0 movimento est entio ligado as mesmas causas que 0 precedem. As mesmas razies que tém por efeito restringir pro- gressivamente 0 circulo familiar fazem também a personalidade dos membros da familia afastar-se dela cada vez mais. aaa =e lel as Dessas mudangas, a solidariedade doméstica sai enfraqueci- da ou revigorada? Nao é nada facil responder a esta pergunta. Por um lado, ela fica mais forte porque os lagos de parentesco sao | hoje indissoliveis; mas, por outro lado, as obrigagdes a que da origem so menos numerosas e de menor importancia. O certo 6 que ela se vé transformada; e depende de dois fatores: as pessoas € as coisas. Nés nos apegamos a nossa familia porque temos ape- g0 s pessoas que a compdem; mas nos apegamos a ela também porque no podemos passar sem as coisas e porque, sob o regime do comunismo familiar, é ela que as possui, Do abalo do comu- | nismo resulta que as coisas deixam cada vez mais de ser um ci- | mento da sociedade doméstica. A solidariedade doméstica passa | a ser totalmente pessoal. Nés somos apegados a nossa familia | apenas por sermos apegados & pessoa de nosso pai, de nossa mie, de nossa mulher, de nossos filhos. As coisas eram muito diferen- tes antigamente, quando os vinculos que derivavam das coisas predominavam, ao contrario, sobre os que vinham das pessoas, em que toda a organizagio familiar tinha, antes de tudo, por obje- to, manter na familia os bens domésticos, e onde todas as consi- deragdes de ordem pessoal pareciam secundarias ao lado daque- las (E. Durkheim. A familia conjugal [1892]. In: Textes IIT. Paris, Ed. de Minuit, 1975, p. 41-43). * O parentesco por agnagdo é um parentesco pela linha mas- culina, isto 6, agrupa os descendentes de um mesmo ramo mascu- lino (M.L.). Mas 0 Estado pode ser ao mesmo tempo uma “monstruosidade sociolégica” (cf. Texto 46). Este ultimo se acha a tal ponto afasta- do das realidades locais que quando “tenta regulamenté-las, s6 0 consegue fazendo violéncia e desnaturando-as” (Ligdes de socio- logia, 1950). Por esta raz%io, Durkheim defende uma concepeao pluralista e democratica da sociedade politica. Para ele, o Estado ‘ocupa um lugar normal se, A sua ago propria, se acrescenta a de =F Emile Durkheinrea-escola francesa poderes intermediérios, subordinados e dependentes. Trata-se dos “grupos secundarios” que, beneficiando-se de uma autoridade le- gal, tém por missio satisfazer as necessidades de integrago e de moralidade dos individuos. Texto 46 DURKHEIM — O Estado O que é0 Estado? Estado é, propriamente falando, o conjunto dos corpos so- ciais, os tnicos qualificados para falar e agir em nome da socie- dade, Quando o Parlamento votou uma lei, quando o governo to- mou uma deciso nos conselhios da sua competéncia, toda a cole- tividade, ipso fato, se acha comprometida. Quanto as administra- ‘Ges, trata-se de drgios secundarios, postos sob a ago do Esta- do, mas que nio o constituem. A fungdo destas é realizar as reso- lugdes promulgadas pelo Estado (. A.utilidade de um organismo deste género ¢ introduzir a refle- xo na vida social, ¢ a reflexo tem ai um papel tanto mais consi- derivel quanto mais desenvolvido for o Estado. Com certeza, 0 Estado nio cria a vida coletiva, como tampouco o cérebro cria a vida do corpo ¢ nao é a causa primeira da solidariedade que nele une as diferentes fungdes. Pode haver ¢ existem sociedades politi- cas sem Estado (E. Durkheim. Textes IM, op. cit., p. 173-174). Uma monstruosidade sociolégica (0 Estado) teve, portanto, a tendéncia, pela forga das coisas, aabsorver em si todas as formas de atividade que poderiam apre- sentar um carater social, ¢ diante dele nao restou mais que uma poeira inconsistente de individuos. Mas entio viu-se obrigado, por isso mesmo, a sobrecarregar-se de fungGes para as quais no se achava habilitado e que no péde exercer adequadamente. Pois esta é uma observacao feita muitas vezes, que ele é to inva- SSS Parte tl sor como impotente. Faz um esforgo doentio para estender-se a todo o tipo de coisas que lhe escapam ¢ que sé abarca violentan- do-as. Dai esse desperdicio de forgas que se Ihe censura e que & com efeito, desproporcional aos resultados alcangados. Por ou- tro lado, os particulares nao esto mais submetidos a uma outra ago coletiva a nao ser a dele, dado que ele é a tinica sociedade organizada. E apenas através dele que sentem a sociedade ea de- pendéncia em que se acham em face dela. Mas, como o Estado se acha longe deles, s6 pode ter sobre eles uma ago longinqua e es- poradica; por isso este sentimento nao hes é presente nem coma continuidade nem com a energia necessirias. Durante a maior parte da sua existéncia nfo hé nada em torno deles que os tire para fora de si mesmos e lhes imponha um freio. Nestas condi- ges, é inevitivel que se precipitem no egoismo ou no desregra- mento. O ser humano é incapaz.de se apegar a fins superiores a si mesmo e submeter-se a uma regra, se no percebe acima de si nada com que solidarizar-se, Liberté-lo de toda a pressio social significa abandoné-lo a si mesmo e desmoralizé-lo. Tais so, com efeito, as duas caracteristicas da nossa situago moral, Enquanto 0 Estado se incha e se hipertrofia, para conseguir abra- gar com forga os individuos, mas sem consegui-lo, estes, sem nada para vinculd-los, rolam uns sobre os outros como se fossem moléculas liquidas, sem achar nenhum centro de forgas que os reprima, fixe e organize (E. Durkheim. Le suicide [1897]. Paris, PUF/Quadrige, 1983, p. 448) Quanto ao Estado propriamente dito, deve “convocar progres- sivamente o individuo a existéncia moral”. Tem 0 dever de promo- ver uma moral cfvica e sacrificar ao “culto da pessoa humana”. Contra os liberais, Durkheim pensa entio que um Estado forte pode, ¢ deve, colocar-se ao servigo do individuo. Depois, na mes- ma época em que se cria, na Franca, a Federaco Geral das Associa- ¢@es Profissionais dos Servidores do Estado (1905), Durkheim de- fende a tese do necessério apoliticismo dos funcionérios piiblicos, Como estes iiltimos so responsdveis por uma missao de interesse piblico, ndo poderiam pretender assim julga o sociélogo — orga- nizar-se para a defesa dos seus interesses préprios. 3. As formas e os determinantes do vinculo social Uma das perguntas centrais da obra de Durkheim se refere, em uma época turbulenta, aos determinantes da coesdo social. No seu estudo sobre o suicidio, Durkheim pos em evidéncia, de modo ma- gistral, o peso determinante da sociedade sobre o comportamento do individuo. Este resultado, que teve muitas vezes como conse- giiéncia conjugar ingenuamente sociologia durkheimiana e deter minismo social, deve ser relacionado a0 menos a dois elementos complementares. Em primeiro lugar, como o permitem adivinhar suas andlises do Estado, Durkheim nfo é, de modo algum, um “obstinado antiindividualista”. Mas ele pe em lugar da luta de classes o projeto de uma integragao do corpo social baseada, antes de tudo, sobre o respeito & pessoa. A seguir, as novas concepgdes desenvolvidas por Durkheim, no final da sua obra, o levam a mu- dar o rumo de sua problematica inicial para definir a sociedade nao como uma méquina de produzir coercitividade, mas como um or- ganismo que transcende os individuos e que, & maneira religiosa, eles devem adorar. 3.1. O suicidio como fato social Na l6gica dos trabalhos de estatistica moral que se desenvol- vem nesse fim de século, o desafio implicito no estudo consagrado por Durkheim ao suicidio (1897) é explicar, de um ponto de vista sociolégico, aquilo que poderia parecer um ato intimo por antono- misia, Para mostrar que o suicidio é um fato social e que “toda so- ciedade est predisposta a entregar um contingente determinado de mortos voluntarios” (cf. Texto 43), Durkheim comega refutan- do as explicagdes psicopatolégicas e outras interpretagdes basea- das sobre a idéia de determinago pela tendéncia hereditéria, a imi- I=Fundac taco e até o clima, Durkheim mostra, por exemplo, que 0 nexo di- eto de causalidade, que os positivistas italianos acreditavam ter descoberto, entre as estagdes do ano ¢ a taxa de suicidio (0 calor se- ria um fator de excitago fisica) € ilusério. & necessério, explica o socidlogo francés, introduzir uma varidvel intermediaria: a inten- sidade social. Como no verio a vida social é mais intensa, a taxa de suicidio é mais elevada. Com o auxilio de estatisticas, mostra em seguida Durkheim que o suicidio é com certeza um fato social na medida em que, em todos 0s pafses, a taxa de suicidios se mantém constante de um ano para o outro (ver 0 quadro abaixo, extraido da obra O suicidio). A longo prazo, ainda por cima, a evolugao dos suicidios se inscreve em cur vas que tém formas similares para todos os pafses da Europa. Os desvios entre paises ¢ entre regides so igualmente constantes. Quadro 2 Taxa de suicidios por milhao de habitantes nos diferentes paises da Europa 1866- | 1871- | 1874- | Numero | Numero | Namero 1870 | 1875 | 1878 | de ordem| de ordem | de ordem Telia 30 | 35 | 38 1 Bélgica 6 | 69 | 7 2 Inglaterra 67 | 66 | 69 3 Noruega wl] 3a] 7m 4 Austria 73 | 94 | 130 5 Suécia ss | si] or 6 Baviera 90 | 91 | 100 1 Franca 135 | 150 | 160 8 Pritssia 142 | 134 | 152 9 Dinamarea | 277 | 258 | 255 10 Saxe 293 | 267 _|_334 u Durkheim estabelece, além disso, correlagdes miltiplas. Mos- tra, assim, que taxa de suicfdios est ligada aos ritmos sociais: co- mete-se 0 suicidio mais vezes de dia que de noite; a taxa de suici- dios aumenta com a duragao do dia; cometem-se, enfim, mais sui- cidios no inverno (a taxa declina a seguir com as estagBes sucessi vas) ¢ mais igualmente no comego que no fim de semana. Durkheim destaca também nexos similares para outras varidveis ainda: a taxa de suicidios aumenta com a idade; é mais alta entre os homens que entre as mulheres; é mais importante em Paris que na Provincia. Da mesma forma, os protestantes se suicidam mais que os catéli- cos e estes iltimos ainda mais que os judeus (Texto 47). Texto 47 DURKHEIM ~ Suicidio e integragio religiosa Assim, se é verdadeiro dizer que o livre exame, uma vez pro- clamado, multiplica os cismas, deve-se acrescentar que ele os, supde € deles deriva, pois ele no é reivindicado e instituido como principio a nao ser para permitir que cismas latentes ou meio declarados se desenvolvam mais livremente. Por conse- guinte, se o protestantismo concede ao pensamento individual maior espago que o catolicismo, é que ele tem menos erengas ¢ priticas comuns. Ora, um culto religioso noturno nfo existe sem um credo coletivo ¢ é tanto mais uno € tanto mais forte quanto mais extenso for esse credo. Pois esse culto nfo une os homens pela partilha e pela reciprocidade dos servicos, nexo temporal que comporta e supde mesmo diferengas, mas que é impotente para estabelecer. Nao os socializa a nao ser ligando-os todos a um mesmo corpo de doutrinas ¢ os socializa tanto melhor quanto mais vasto for esse corpo de doutrinas e tanto mais solidamente constituido, Quanto mais numerosas forem as maneiras de agir e de pensar, marcadas por um caréter religioso, subtraidas, por conseguinte, ao livre exame, tanto mais também a idéia de Deus se fard presente em todos os pormenores da existéncia e fard con- vergir para um s6 e mesmo fim as vontades individuais. Inversa- Bs SSS Se ——— ‘mente, quanto mais espago um grupo confessional deixa ao jul- gamento dos particulares, tanto mais fica ausente de suas Vidas, ¢ tanto menos coesio e vitalidade possui. Chegamos, portanto, a esta conclusdo, que a superioridade do protestantismo do ponto de vista suicida vem do fato de ser uma Igreja menos fortemente integrada que a Igreja cat6lica, ‘Do mesmo modo se encontra explicada a situagao do judais mo. Com efeito, a reprovaeao com que o cristianismo os perse- guiu durante muitos séculos criou entre os judeus sentimentos de solidariedade de particular energia. A necessidade de lutar con- tra uma animosidade geral, a propria impossibilidade de se co- municar livremente com o resto da populago os obrigaram a | manter-se estreitamente unidos entre si. Por conseguinte, cada comunidade se tornow uma pequena sociedade, compacta e coe- rente, que tinha de si mesma e da sua unidade um vivissimo sen- timento. Todo o mundo ai pensava e vivia da mesma maneira; as divergéncias individuais ai se tornavam quase impossiveis por causa da comunidade da existéncia e da estreita e incessante vi- gilancia exercida por todos sobre cada um, A Igreja judaica se encontrou assim mais fortemente concentrada que nenhuma ou- tra, pelo fato de se ter retraido sobre si mesma pela intoleréncia de que era objeto. Por conseguinte, por analogia com aquilo que | vimos de observar com respeito ao protestantismo, é a esta mes. ‘ma causa que se deve atribuir a fraca tendéncia dos judeus para o suicidio, a despeito das circunstancias de toda a sorte que deve- riam, pelo contrario, inclind-los a isto (B. Durkheim. Le suicide, op. cit., p. 153-154), Para explicar todos esses resultados, Durkheim distingue trés formas principais de suicidio: 0 suicidio egoista, andmico e altruis- ta, Em uma nota de rodapé ele chega até a introduzir uma quarta forma, pouco importante a scu ver: o suicfdio fatalista (suicidio de escravo ou suicidio de jovens que se casaram cedo demais, por exemplo). O suicidio altrufsta, em primeiro lugar, é caracteristico de individuos tao fortemente inseridos com o seu grupo de perten- ¢a (como os militares), que so incapazes de resistir a um golpe da sorte. Diversamente das sociedades “primitivas” que nao foram ainda conquistadas pelo individualismo, esta forma de suicidio s6 envolve, neste fim do século XIX, uma minoria de individuos. Durkheim privilegia, entio, logicamente, a andlise das duas outras formas de suicidio, formas nisto caracteristicas da época, revela- doras como so de um afrouxamento crescente dos vinculos que li- gam 0 individuo & sociedade. E 0 que se dA com o suicidio egoista. Quando pensam essenci- almente em si mesmos e se acham prisioneiros de desejos infinitos, 05 individuos nao podem recuperar 0 equilibrio, a nao ser que uma forga exterior os leve a moderacaio. Quando esta forca esta ausente (isto é, quando a integrago social ao grupo se enfraquece), entio homens e mulheres se mostram mais inclinados a tirar-se a propria vida. E 0 que prova a taxa de suicidio mais alta entre os solteiros (cuja vida desregrada goza de maior tolerdncia que a de um pai de familia), que no se beneficiam deste quadro integrador que é a fa- milia. A demonstragao é idéntica com a varidvel religiosa: o catéli- co nao busca seus principios inspiradores do comportamento como © protestante na propria consciéncia, mas recebe imposigdes de fora. Gozando de um quadro integrador, os catélicos se suicidam, em conseqiiéncia, muito menos que os protestantes. 3.2. Suicidio e anomia A fim de caracterizar a tiltima forma de suicidio, Durkheim se utiliza do termo anomia, tomado do filésofo Jean-Marie Guiyau (1854-1888). Este termo, convém sublinhé-lo, s6 é sistematica- mente usado por Durkheim em duas de suas obras (Da diviséio so- cial do trabalho e O suicidio) e, ainda, em sentidos variados: Durkheim distingue assim diversas formas de anomias (anomia aguda/cronica, anomia regressiva/progressiva) e propde diversas definigdes que oscilam entre o mal do infinito ¢ a desregulamenta- gao da vida econdmica. A partir de 1902 ele cessa, afinal, de usar sistematicamente esta nog&o. J4 os durkheimianos vio ignorar aa SSS Parte — Fundacoe: tranqiiilamente 0 uso desse termo (sobre o destino desse conce: ef, P, Besnard. L’anomie, 1987). Em O suicidio, Durkheim quer sobretudo frisar a existéncia d= um desregramento social (a-nomos = auséncia de lei, auséncia d= normas) que vai diretamente repercutir no volume das mortes vo- luntérias. Verdadeiro sintoma patolégico, a anomia se explica por um deslocamento dos costumes que nao enquadra mais estreit= mente a atividade social. Como as forcas integradoras comecam = faltar, os individuos em competigo uns com os outros nfio cons guem mais limitar os seus desejos. Pedem demais a existéncia so ponto de experimentar desgosto e irritagio diante dela. Contribs. em, infere dai Durkheim, para fazer do suicfdio andmico um fens meno regular e especifico As sociedades modernas. O suicidio ans mico se revela claramente nas fases dos ciclos econdmicos: em p= tiodo de boom, as ambigdes e aspirades dos individuos nao s véem mais limitadas precisamente, mas se estendem ao infinito. 4 desproporeo entre aspiragdes ¢ gratificagdes, que dai results, € causa de suicidio. Este mal-estar & caracteristico das sociedad=s modernas que conheceram um excepcional desenvolvimento das atividades econémicas. Implodindo as comunidades tradicionais, a indistria e 0 comércio “fracamente penetrados de moralidad=™ desvalorizam, pensando apenas no lucro do capital, numerosos v= lores e obrigagGes todavia indispensiveis a vida social. Nao é alse casual, observa Durkheim, se a taxa de suicidio anémico & m elevada nos setores mais “avangados” da sociedade: entre os ps testantes, no mundo urbano, industrial e leigo.... Para remediar esta crise social, revelada pela evolucao da tus de suicidios, Durkheim propde diversas solugdes. Preconiza, antes de mais nada, que se promova uma luta contra a anomia conjugal ‘Mas o problema nao é simples, dado que se a familia protege tame 0s homens como as mulheres, os dois sexos suportam de modo ferente 0 casamento: os homens beneficiam-se da sua virtude pre tetora, enquanto as mulheres 0 vivem, sobretudo, como um fards Para consolidar o grupo conjugal (0 casal), Durkheim se pronuncia no entanto em favor de um casamento mais indissoliivel. A fim de eliminar, por outro lado, a anomia econdmica, sugere Durkheim que se desenvolvam as corporagées profissionais, instituigdes in- termediérias entre o Estado ¢ os individuos. O socidlogo faz votos para que essas corporages possam desempenhar o papel de orga- nizag3o econémica, politica, juridica de regulamentagao, mas so- bretudo o de autoridade moral capaz de preencher ~pelo renovado sentido da comunidade — 0 vacuo social que Durkheim niio cessa de lamentar (Baliza 23). Baliza 23 metodolégicas a renovacao dos debates Depois da publicagao de O suicidio, néo faltaram criticas e com- plementos ao trabalho de Durkheim. Em As causas do suicidio (1930), Halbwachs sublinha, deste modo, as dificuldades de inter- pretaco ligadas ao tipo de registro do fenémeno estudado. Ele mos- tra igualmente todo o interesse mostrado por Durkheim no sentido de efetuar muito atentamente o seu levantamento estatistico para se- parar 0 efeito das diferentes varidveis explicadoras umas em relagdo as outras, que o simples estudo dos suicidios “bem-sucedidos” (© no tentativas, abortadas) oblitera parcialmente a andlise: sabe-se com efeito que a populacdo envolvida é diferente (a presenga das mulheres é maior para as tentativas fracassadas). Em sua obra, Halb- wachs indica, além disso, que se com certeza aumentou na segunda metade do século XIX, a taxa de suicidios mostra a tendéncia, no co- mego do século XX, a estagnar. Depois e, sobretudo, Halbwachs d& outro rumo a hipétese durkheimiana relativa a integraciio religiosa Ele mostra que a pertenga a um grupo de confissio catélica ou pro- testante é a expresso de um conjunto de variaveis relativas ao géne- ro de vida. Assim, a maioria dos catélicos vive no meio rural, meio onde costumes ¢ tradiges so mais fortes ¢ tém, portanto, maior po- der de integracio. Inversamente, os protestantes so mais urbanos, portadores de mais valores individualistas e tendem a investir mais SS Parte nll = Fund. no mundo, E mais importante levar em conta 0 estilo de vida e a in- sergio no espago geogrifico, tendo em vista que estes dois fatores -variam de um pais para o outro. Halbwachs explica deste modo por que, na Inglaterra, a taxa de suicidios é, entre os protestantes, muito mais fraca do que a teoria durkheimiana poderia supor. Depois de Halbwachs, a critica metodolégica mais rigorosa em relago a Durkheim se deve a Jack D. Douglas (0 significado social do suicidio, Princeton University Press, 1967). Na sua obra, Douglas observa em primeiro lugar que nao ha uma definic&o tinica e universal de suicidio, mas esta é socialmente construida ¢ varia conforme o tempo e 0 espago. Em segundo lugar, certos grupos sociais conse- ‘guem, melhor que outros, dissimular (por razdes morais, religiosas...) 08 suicidios. Enfim, seria preciso abordar o problema das diferengas entre definigdo teérica (a do pesquisador) e o registro administrativo. Este problema vai aparecer claramente quando se pe em evidéncia a distancia dos dados levantados pela administragio judiciéria e os pro- venientes dos registros efetuados pelo corpo médico (ver a este res- peito P. Besnard. Anti ou antidurkheimismo [contribuigao ao debate sobre as estatisticas oficiais do suicidio). Jn: Revue francaise de socio- logie, jun/1976, e C. Baudelot & R. Establet. Durkheim e 0 suicidio PUF, 1984). Partindo dessas observagdes, Douglas conclui que é ne- cessirio, para analisar 0 suicidio, efetuar pesquisas nio estatisticas mas biograficas. E necessério, caso por caso, interessar-se pelos moti- vos exatos que levaram uma pessoa decidir matar-se. Jean Baechler (Calmann-Lévy. Os suicidios, 1975) analisou neste sentido 0 suicicio como um ato “estratégico”, ato que permite a um individuo resolver as suas angustias existenciais. A despeito de todas essas releituras criticas, as teses de Durkheim oferecem até os dias de hoje matéria para debates ¢ comprovacio empirica, Indmeros trabalhos foram assim consagrados & légica de classificagio dos suicidios distinguidos por Durkheim. Depois de ter elencado esses miltiplos ensaios, Phillippe Besnard (4 anonia. PUF, 1987) reativou a andlise da socializagdo de Durkheim, reto- mando a oposigo entre integragio (assimilago a um grupo social e regulagao (espirito de disciplina). Neste quadro, os quatro tipos de suicidio se ligam facilmente aos estados extremos dessas varidveis: ‘uma integracao social insuficiente leva ao suicidio egoista, uma in- tegragao forte demais ao suicidio altruista, uma regulagdo social fra- ca.a0 suicidio andmico e um excesso de regulagZo social ao suicidio fatalista, Enveredando por outra via de pesquisa, Christian Baudelot & Roger Establet (op. cit.) procuraram atualizar os trabalhos de Durkheim. Suas conclusées principais poem em evidéncia recorrén- cias ¢ inflexdes. Hé, em primeirissimo lugar, a permanéncia do fato social, isto é, constata-se a regularidade dos efetivos globais de pes- soas que cometeram suicidio. A familia, segundo ponto, continua sendo um quadro integrador privilegiado. Em compensagao, en- quanto o snicidio era no século XIX um fendmeno essencialmente urbano, este niJo mais o caso em nossos dias. Da mesma forma, con- trariamente aos resultados anteriores de Durkheim, Baudelot & Estaplet constatam que o suicidio atinge, acima de tudo, as camadas sociais mais desfavorecidas. Para estes dois autores, esses dados no- vos se explicam pela emergéncia de novas formas de integragao a vida social. Evidencia-se assim que desde o século XIX ocorreu uma mudanga de valores: 0 urbano jé ndo é mais um desenraizado. ‘Mais recentemente ainda, Louis Chauvet mostrou que na Franga a taxa de suicidio masculino por faixa etdria se uniformizou a partir dos anos 1970 sob o impulso de uma transformagao do status social nas diferentes idades da vida, No mesmo fasciculo da Revue Fran- aise de Sociologie (XXXVIII-4, 1997), Phillippe Besnard verifica, por seu turno, a permanéncia dos nexos entre casamento e suicidio. Nos EUA se realizaram trabalhos num espfrito similar. Para o sé culo XX, K.D. Breault (Um teste da teoria durkheimiana da integra- gio religiosa e familiar, 1933-1980. In: American Journal of Socio- logy, vol. 92, 3, 1986) constata, a semelhanga de Durkheim, duas va- ridveis determinantes: 0 divércio ea pertenga a uma comunidade reli- giosa. O autor destaca de modo todo especial a existéncia de uma taxa de suicidio menor entre os catélicos do que nos nio-catdlicos. Se al- guns trabalhos reabilitam deste modo as demonstragdes durkheimia- nas, é interessante sublinhar a emergéncia paralela de anélises “tardi- anas”, anélises que relacionam imitagao e suicidio. Alguns pesquisa- dores (DP. Phillips & K.A. Bollen. American Sociological Review 47, 1982) observam um significativo aumento de mortes voluntérias depois do antincio midistico do suicidio de uma personalidade publ ca, Persuadidos de se tratar certamente de um fendmeno de imitaga«

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