Você está na página 1de 24
16 1 Demarcacao Cientifica Problema central da metodologia 6 a demarcacio cientitics em, © que seria e 0 que nao seria ciéncia. Caracteristicamente nig), nada mais controverso em ciéncia do que sua definicao, a mera que a consideremos produto de supermercado, que se compra pron: e se guarda na geladeira. A percepcao comum de ciéncia esté rep: de expectativas simplistas, sobretudo no sentido de que os cientisis seriam gente acima de qualquer suspeita, produzindo “orécuis definitivos, detendo em suas maos conhecimentos perfeitos. contrario disso, mister partir de que a demarcacao cientifica colo: no fundo discussao inacabavel, desde que nao se aceite o doors como algo cientifico. A metodologia nao aparece como solucio propriamente, mas como expediente de questionamento criati para permitir opgdes tanto mais seguras quanto mais consciénc tiverem de sua marca aproximativa. © maior problema da ciéncia néio 6 0 método, mas a realida Como esta nado é evidente, nem coincidem completamente @ ideio que temos da realidade ea propria realidade, € preciso prime” colocar esta questéo: 0 que consideramos real? Alguns julgam 3 realidade social é algo jé feito, totalmente externo ¢ estrulilt Outros concebem-na como algo a se fazer, pois seria criativa’ historica, Outros mais tentam misturar as duas postures: &" F a realidade social estd feita, em parte pode ser feita.” Dependend. de social. pendendo da concepcdo de realidade social. oo, método de captagéo, que é logicamente posterior. oloalas”alternatvis. Cada. mevodaiogo ‘posaul SU ‘qe pode ser surpreendida nas entrolinhas, ‘ou nas line. ncepséo dialética de realidade social cabe g ‘abe 0 método sistémico para uma Método dialético, uma ‘alidade concebida como © aa ia realidad mos aqui a realidade social o seu i sentido, significando que: "Proceso histérico em a) esté sempre gravida, em gestacao, o que t Fee caer oes eat mr exi na reali i : formas (mas o ue eet Uo cona regular, até certo ponto previsivel © planelavel, oso estruturas, por exemplo, 0 complexo de neveccidanee materiais (a infra-estrutura), 0 conflito social, formae de comunicacéo e expressao simbdlica ete. c) dividimos 0 processo histérico em condigées objetivas e subjetivas, significando as primeiras as estruturas externas 20 homem, que as encontra dadas, e as segun- ae capacidade politica do homem de conquistar seu d) transformagées sociais se dao nos contetidos, em que a historia pode ser radicalmente criativa, produtiva, depen- dendo, para tanto, de condicdes objetivas e subjetivas, cada qual detendo a mesma ordem de importan €] 0 mével préprio de mudanca, nas condigdes subjetivas, 6 0 conflito social, que significa a reacdo dos “desiguais” contra a opressao dos privilegiados; nas condicdes obje- tivas significa a dindmica interna processual, que, embora estrutural, traduz estruturas da mudanga, nao do esfria- mento da historia; f) isso leva a conceber a histéria como sucessao de fases, em que cada fase gera em si mesma a proxima fase. por meio dos conflitos objetivos e subjetivos que tem de enfrentar; ; 9] a expressao talvez mais adequada para esta concepcao de realidade social é “unidade de contrarios’: 0 ange mismo provém da convivéncia de forcas contrarias, que. a0 mesmo tempo, se repelem e S 0, prin: cin ostura pretiminar ser, desdobrda, PESO 235 ing eit No capitulo sobre dialética, servindo Wo mire cay mais rada sugestiva para podermos realizar ul e necessitam.’ Lf. 4 cet. Gov. 3. QUARTE JRF Avaliapo qualitativa. Sho Paulo, Corer. 108 Sera Soo" Pao, sealdads® fot Pats™ peatiense, 164, FEREINA, ©. 9 tse. td "*: 1882. CHAUI, M. "0 que 6 ideologia. So 18 bem contextuada sobre a demarcacao cientifica e também Para ey vender tal concepgéo como unica possivel. = 1.1 CRITERIOS DE CIENTIFICIDADE E sempre mais facil dizer o que nao seria ciéncia. Simplificads mente, nao sao ciéncia a ideologia e o senso comum. Mas nao h; limites rigidos entre tais conceitos, pelo que aparecem sempre mais ou menos misturados. A ciéncia estd cercada de ideologia e senso somum, ndo apenas como circunstancias externas, mas como algo que esta ja dentro do préprio processo cientifico, que é incapaz de produzir conhecimento puro, historicamente nao contextuado. Ne imagem de um continuo interpenetrado, poderiamos visualizar assim F sensocomum =f. ciENCIA =|. ideologia | j O critério de disting¢éo do senso comum é o conhecimento acri- tico, imediatista, crédulo. O homem simples da rua também “sabe” de inflacdo, mas seu conhecimento é diferente do daquele do economista, que é capaz de elaborar uma teoria da inflacao, discutir causas e efeitos. Pode-se colocar no senso comum modos ultrapas- sados de conhecer fendmenos ou também crendices sem base dita cientifica. O agricultor pode ter seu método de previsdo de chuva, ligado a insinuagdes que considera indicativas, como certo compor- tamento de um passaro; 0 agrénomo orienta-se por indicadores bem diferentes. O senso comum 6, assim, marcado pela falta de profun- didade, de rigor légico, de espirito critico, mas nao possui apenas o lado negativo,’ a comecar por ser o saber comum que organize 0 cotidiano da maioria. O lado mais positivo do senso comum é 0 bom-senso, entendido como saber ao mesmo tempo simples e inteligente, sensivel 20 Obvio, circunspecto. Entretanto, diante da ciéncia é considerado como postura deficiente e, no extremo, a prdpria negacao dela © critério da ideologia 6 sou carater justificador de posicde sociais vantajosas. Enquanto 0 senso comum esta despreparado diante de uma realidade mais complexa do que imagina sua visi? 88 od 3. FERRAROTTI, F. Uma soclologia alternative; da sociologia como técnica do conhesintia, Sociologia ct Porto, Afrontamenta.- 1972. BAONOWSKI, ©, senso comum da clene Bolo. Horizonte, Itatiala, 1977. Cal ae ARAHER, D. W. Senso ertico; do diaa manas. "S80" Paulo, Plonelra,” 1983. logia é intrinsecament. i mi sMjontro de Interesses doterminados, ‘par oom, So8tra. que fost do com seus interesses, a ideologia usa de inetuene cientificos, NO ae bodes ea nile extrema sofisticacao Pode choses Sentra, quando nao TDs THe Mivrta 2 futon. faogaie yersbes, fatos. gem entrar agora em detalhes maiores, ideo| ‘como sombra inevitavel do fenémeno do poder, que dela lanca mao para se justificar. Poder sagaz nao diz que é Poder, que deseja Gominar, que busca vassalos, que etesta contestacao. Diz que é participagao, designio de Deus, mérito histérico, boa intencao em favor dos fracos. Ideologia nao 6 apenas sistema de crencas, mundi- visio, maneira particular de ver as coisas, mas especifica justificagao de servico a0 poder. A religido € ideologia, a medida que serves postures dominantes. Para além disso, pode ser nada mais que 4 satisfagéo de uma necessidade basica humana* Idectogia mais inteligente 6 a que se traveste de ciéncia. Por isso, seu arquiteto tipico € o intelectual, figura importante na justi- ficagéo do poder, como também no outro lado: na elaboragéo da contra-ideologia, com vistas a mudar a historia dominante. Entre os telectuais sobressaem os que tém origem nas ciéncias sociais ¢ similares, porque estéo mais afeitos as condiges sociais da estru- turagéo do poder e das vantagens. Neste contexto transparece ja a tendéncia historica das ciéncias sociais de estarem mais a servico do poder,* organizando técnicas de controle social, do que a servico da emancipacao dos desiguais. Nas ciéncias socials, 0 fendmeno ideolégico é intrinseco, pois esté no sujeito © no objeto. A propria realidade social é ideolégica, Porque é produto histérico no contexto da unidade de contrarios, em Parte feita por atores politicos, que nao poderiam — mesmo que o uisessem — ser neutros. Nao existe histéria neutra como ndo existe weypsoeial neutro. E possivel controlar a ideologia, mas nao supri- mila” logia 6 compreendida “Re — “oe, HAUL, M. Op. cit. BELL, D. The sociology one oN R, Ideologietheorien; zum Vor taal ie ron er ae Shatt sien Salih le tao mm" i ve es st ° teeta wants, “Ried janelro, Civillzagko Brasileira. ood, i a, a erica yoivimento. do conhecimento. Sio Paulo, 0 que 6, 6; © que no é, ndo é —, o de dedug&o — se A'é igual a Be se B ¢ igual a C, segue que A 6 igual a C —, o de tautologia — um todo é exatamente igual a soma das duas metades —, sao ovidentos e ahist6ricos, 0 crivo perene que filtra o cientifico do nao-cientifiee. Impée-se a0 sujeito, que nao os constréi, apenas os segue. qualidade formal, teriza-se pela pre- “leis do pensamento”. Esta parte da metodologia, que se confunde com epistemologia, definida como teoria formal do conhecimento, nao é descartada.® Apenas é vista como metade da coisa. Na outra metade est ciéneia como fendmeno processual histérico, fazendo Parte dos contetdos da hist6ria, em sua pratica contraditéria. As ciéncias sociais nao podem ser reduzidas a mero fendmeno de poder, circunstanciadas Por simples querelas topicas. Por outra, nao sdo determinadas, mas condicionadas socialmente, porquanto na historia ndo cabem de- terminismos, mas tendéncias tipicas, que retratam regularidades, nao leis. Os cientistas sociais nao séo determinados pela sua po. si¢do de modo geral privilegiada sécio-economicamente, mas con- dicionados por ela, o que permite dizer que possuem tendencialmente Postura conservadora. Esta seria sua marca processual, que aceita o cientista nado apenas como criatura légica, mas igualmente como criatividade histérica. A ciéncia tem hist6ria, néo somente no sentido externo de que épocas se sucedem, como cientistas e escolas se sucedem, mas antes no sentido interno de que a demarcacio cientifica varia naturalmente na histéria: o que tinhamos por cientifico pode ser pos- teriormente reconhecido como superado, como aconteceu com a ciéncia de estilo teolégico, ou de estilo filoséfico, ou de estilo quan- titative, a despeito de todas se estribarem na Idgica.” LMR. MT ds Conhecionto Colm oo lane, Cvs westio de métego. S80 Paulo, rip de toner, Chillzapto Bre: Barve Tore. 181 1 ara, Naito 18 iho’ Ge ianvr, Cvlizogto ds P- A Imaginagto, Sho Paulo. Del, 1973 Ditel, Tara. LEFEVRE, Yormal Negica di Feltac ang G LOMA, Slates &, tte vals gh KOPIN PVR aden como lpien «ture. concn asia, ine, 33 4 Esta marca social permite visualizar certas propriedades int,, gantes das ciéncias socials, tais como: a) seu estudo ndo garante o resultado pretendido; perfg, tamente possivel saber muito da ciéncia da educacg, e ser um péssimo educador, assim como um psicélog, pode ser tomado como competente para Os outros, mas hao garantir um minimo de normalidade psicol6gica par, si mesmo; b) guardam a ironia de ser um tratamento tendencialments apenas tedrico da pratica histérica; para muitos cien. tistas sociais a pratica aparece como espuria, como ati vidade menor, como incémoda; restringem-se a “pratics tedrica", seja como fuga de compromissos que trazen, riscos , seja para evitar ter de corrigir a teoria sob o impacto da pratica, seja para escamotear praticas conser. vadoras sob a capa de teorias pretensamente avancadas, seja para angariar a imagem de imparcial, acima de qual- quer suspeita, 0 que Ihe abre o caminho da manipulacao “objetiva”; c) distanciam-se sobremaneira do cotidiano, pelo que guardam pouco interesse social geral, mesmo para os cientistas que levam facilmente vida dupla nesse sen tido: 0 que dizem na sala de aulas pode nada ter a ver com sua vida prosaica no dia-a-dia; nesta organizamse pelo senso comum, no maximo pelo bom-senso, como qualquer cristao; apreciam tanta solenidade e se querem to superiores, que ja no servem para o concreto simples de cada dia Neste campo as ciéncias sociais poderiam ser extremamente diferentes, no que se refere a sua qualidade politica. Poderiam, por exemplo, assumir compromisso mais claro com o enfrentamento pratico dos problemas sociais, de sorte a diminuir consideravelment sua tendéncia conservadora, revelada sobretudo na feitura de ins trumentos eficientes de controle social. A economia dominante ¢ de estilo operacional imediatista, dedicada a processos produtivos rentaveis no sentido de maximizar investimentos. Esta ciénclé social possui estudos importantes sobre desenvolvimento econémic® mas nao se pode dizer que cultiva projeto alternativo para a socie dade, marcado pela superagéo dos principais problemas de pobre?? sétira as cléncias sc ‘Op. cit, SMART. & sults ste de aire Py Olt . Tar ORO Bolg Badiat: fase sto Thane solo tw Yor hy, ise PAG Eo ne hata ae de Sa ET Ne Naa A iat DOO ang ayy Mange: Router Bol oh compensatérias, assistencialistas, emergenciais, que nada ten occ Conhece, por vezes, com extremo detalhe os problemas, como € 0 caso da acumulacao recente de estudos sobre pobreza, mas isso nio se reverte, nem de longe, em alavanca concreta de enfrentamento. Ao contrério, com tol estudos consequem-se sobretudo estratégias de desmobilizagio oe movimentos sociais que trazem risco a ordem vi jente. Neste lastro, a sociologia € seguida ardorosamente pelo servico social. A psivo. logia sabe sobretudo técnicas refinadas de manipulagao da ‘cons. ciéncia, mormente no campo da comunicacao social e dos meios modernos de comunicacao, estando na base da industria cultural = Assim, dificilmente se poderia negar que as ciéncias sociais guardam em si um projeto conservador de sociedade, porque nela aparecem tendencialmente como beneficidrias. No quadro da dialé tica historico-estrutural, existem estruturas formais, como a légica, 9 poder, que condicionam a produgao cientifica, mas existem igual mente horizontes processuais, nos quais as ciéncias sociais poderiam ser transformadas — respeitadas as condigées objetivas —- em movel efetivo de mudancas sociais relevantes. Nao precisam ser teori- cistas, desprezando a prética. Nao precisam distanciar-se tanto do cotidiano. Nao precisam envolver-se tao aferradamente nos controles Sociais. Nao precisam tratar a populago apenas como objeto. Nao Precisam ser tao elitistas, embora sejam tudo isso tendencialmente. Como produto politico, entram na dindmica da unidade de con- trdrios, exalando ideologia por todos os lados e justificando posi- cionamentos sociais contraditrios, a comegar pela forma neutrali- zada de engajamento que apreciam camuflar. Por outra, nisto esta 4 oportunidade de influéncia social efetiva, seja porque influenciam de qualquer maneira, seja porque, conscientes disso, podem assumir rumos alternativos nos processos de transformacéo da_ historia. Podem certamente influenciar também no espaco formal e guardam. relevancia nesse sentido. Mas sua relevancia politica mais ofetiva € €sperada esta na rota de parceira possivel de projetos sociais de libertacao.* reat Tar eon Ma eee attes® oP apelecome te ono ‘Soroique, pars,’ caltarsserr. BoDe ER Raconalidadeinaconllade doco ror . te ancl, seers Ives ri TRERABEND. P. Erkenntnis far frole Menschen. Frankfurt, Sulvkamp, 1979, DEMO, ifn participants. Op. cit. 35 ‘Ao mesmo tempo, colocamos os limites das ciéncias sociais de ordem légica e social, cuja consciéncia ¢ fundamental par, qualquer proposta alternativa. Nao se pode mudar sem consciénci, critica e autocritica dos problemas que se quer mudar. A mety dologia precisa, pois, reconhecer, critica e autocriticamente, que a) b) c) qd) e) A 9) h) Dd m) em ciéncia trabalhamos com um objeto construido e qu, muitas vezes é inventado; © pensamento nunca esgota 0 pensado: a realidade anal: sada é sempre mais rica que a andlise; a ciéncia 6 também produto social, nunca 6 maior aw melhor do que a mao que o faz, leva a marca do homem, contém artificialidades, sofisticagdes rebuscadas, modis. mos conjunturais; a ciéncia vacila entre o absolutismo das discussdes fe chadas e 0 relativismo das discussdes convencionalistas a atividade cientifica é uma atividade social como outra qualquer, cujo prestigio social nem sempre possui base real; © primeiro passo de qualquer abordagem 6 gratuito: ¢ indtil provar dialeticamente que a realidade é dialétice Porque um termo supde 0 outro; néo podemos mais que tomar consciéncia disso hermeneuticamente; a ciéncia esté sempre na iminéncia de se tornar sobre tudo justificagao social do cientista; a ciéncia nao gera certezas cabais, seja porque precis? reconhecer sua ignorancia diante de uma realidade que Ihe escapa, seja porque certeza cabal 6 pura ignorancis © consenso cientifico é mais facil na negagdo, ou seié naquilo que nao é ciéncia; 0 que ela é sera sempre al’? discutivel, para poder ser também objeto cientifico: a ciéncia possui seus ritos, condensados sobretudo intersubjetividade, que pode tender a ser mais presc’ tiva do que instancia de promogao da criatividade; 86 podemos chegar a objetivacao; o cientista social ® alguém que também se orienta basicamente pelos $¢!s interesses: quer vender suas idéias, sua imagem. ‘ carreira, prescreve, marginaliza os ndo-iniciados ou 2° -alinhados, usa o saber para se justificar e se valorizé" enfim, 6 perfeitamente mortal: © cientista social tem seus Idolos, que muito mais ace!” do que critica; aprecia um tipo de impunidade tip! per ‘pli yo" aa.“GARAUDY. RO projets Esperang "370. PORTER, Ga'caperanga Rio do. Janeiro, ‘i Fee ttopia, S80. Paulo, Braslion FREYER, H. Sociologi de Ia realidad. Buenos Al amp. 1859. 2 vol BLOCH, £. Das Printip Hoffnung. Frankiurt,_Sutrk Geo Nech-nichteelns, Frankfurt, Subrkamp, 196: temento Flo de Janairo, Salamandr “terra,” 1974. COELHO, T. pce _——— Zur Ontologie BS 39

Você também pode gostar