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Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor

de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e


descobri que aquelas cores todas não existem na pena do
pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas
d'água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O
pavão é um arco-íris de plumas.

Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o


máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e
luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a
simplicidade.

O pavão. In. Simples e ternas.


Assim são as lindas crônicas de Rubem Braga.

Texto extraído do livro "Ai de ti, Copacabana",


Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 149.
Agradeço ao Antônio pela lembrança.

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Querido(a) aluno(a),

Um dos gêneros textuais que estudamos na disciplina de Produção de Texto foi a


crônica. Este caderno tem como abertura um texto bastante desafiador em que um dos
maiores críticos literários do Brasil, Antonio Candido, articula as pretensões e estruturas
componentes da crônica, sobretudo, a brasileira.

Este modelo textual configura-se como uma espécie de fotografia: o cronista enquadra
um momento específico do cotidiano, que, muitas vezes, nos passa despercebido, e por
meio deste recorte convida o leitor a realizar uma reflexão. Aos olhos de Clarice
Lispector, um simples chiclete torna-se o símbolo da eternidade, os banhos de mar são
representantes da inocência e da felicidade advindas da infância. Para Antonio Prata, os
bares “ruins” são representativos de toda uma classe de intelectuais esquerdistas. Para
Marina Colasanti, o cotidiano é o que comprova nossa passividade diante de convenções
sociais muitas vezes maléficas e dignas de contestações.

Na sequência, há uma seleção de textos produzidos pelos cronistas mais célebres da


literatura brasileira. Você tomará contato com eles de duas formas: a primeira, com meu
auxílio. Iremos realizar a leitura compartilhada e por meio da análise do modelo,
discutiremos os elementos constituintes do gênero e, a segunda, em que você irá, de
modo autônomo, ler as demais crônicas e ampliar o seu repertório. Infelizmente, não
teremos tempo para realizar a leitura de todas as crônicas que estão presentes nesta
antologia, mas, na esperança de que vocês tomem apreço pelo gênero, deixo o convite
para que vocês leiam o restante dos textos autonomamente.

Esta pequena antologia, além de um presente, é um convite: gostaria que vocês


passassem a olhar o mundo um pouco mais como cronistas. Isto é, dando às pequenas
coisas, grandes significados.

Boa leitura,

Professora Gabrielle Sá.

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Leia, na sequência, este texto teórico (bastante desafiador) escrito por um dos maiores
críticos literários do Brasil.

A VIDA AO RÉS DO CHÃO


Antonio Candido

A crônica não é um gênero maior. Não se imagina uma literatura feita de grandes
cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes romancistas, dramaturgos e
poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por melhor que
fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.

“Graças a Deus”, — seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto de
nós. E para muitos pode servir de caminho não apenas para vida, que ela serve de perto,
mas para a literatura, como dizem os quatro cronistas deste livro na linda introdução ao
primeiro volume da série. Por meio dos assuntos, da composição aparentemente solta,
do ar de coisa sem necessidade que costuma assumir, ela se ajusta à sensibilidade de
todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem que fala de perto ao nosso
modo de ser mais natural. Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe
permite, como compensação sorrateira, recuperar com a outra mão uma certa
profundidade de significado e um certo acabamento de forma, que de repente podem
fazer dela uma inesperada embora discreta candidata à perfeição. É o que o leitor verá
em muitas que compõem este volume e os que o precederam na mesma série.

Mas antes de chegar nelas, vamos pensar um pouco na própria crônica com o
gênero. Lembrar, por exemplo, que o fato de ficar tão perto do dia a dia age como
quebra do monumental e da ênfase. Não que essas coisas sejam necessariamente ruins.
Há estilos roncantes mas eficientes, e muita grandiloquência consegue não só arrepiar,
mas nos deixar honestamente admirados. O problema é que a magnitude do assunto e a
pompa da linguagem podem atuar como disfarce da realidade e mesmo da verdade. A
literatura corre com frequência este risco, cujo resultado é quebrar no leitor a
possibilidade de ver as coisas com retidão e pensar em consequência disto. Ora, a
crônica está sempre ajudando a estabelecer ou restabelecer a dimensão das coisas e das
pessoas. Em lugar de oferecer um cenário excelso, numa revoada de adjetivos e
períodos candentes, pega o miúdo e mostra nele uma grandeza, uma beleza ou uma
singularidade insuspeitadas. Ela é amiga da verdade e da poesia nas suas formas mais
diretas e também nas suas formas mais fantásticas, sobretudo porque quase sempre
utiliza o humor.

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Isto acontece porque não tem pretensões a durar, uma vez que é filha do jornal e
da era da máquina, onde tudo acaba tão depressa. Ela não foi feita originariamente para
o livro, mas para essa publicação efêmera que se compra num dia e no dia seguinte é
usada para embrulhar um par de sapatos ou forrar o chão da cozinha. Por se abrigar
neste veículo transitório, o seu intuito não é o dos escritores que pensam em ficar, isto é,
permanecer na lembrança e na admiração da posteridade; e a sua perspectiva não é a
dos que escrevem do alto da montanha, mas do simples rés-do-chão. Por isso mesmo
consegue quase sem querer transformar a literatura em algo íntimo com relação à vida
de cada um, e quando passado jornal ao livro, nós verificamos meio espantados que a
sua durabilidade pode ser maior do que ela própria pensava. Como no preceito
evangélico, o que quer salvar-se acaba por perder-se; e o que não teme perder-se acaba
por se salvar. No caso da crônica, talvez como prêmio por ser tão despretensiosa,
insinuante e reveladora. E também porque ensina a conviver intimamente com a
palavra, fazendo que ela não se dissolva de todo ou depressa demais no contexto, mas
ganhe relevo, permitindo que o leitor a sinta na força dos seus valores próprios.

Retificando o que ficou dito atrás, ela não nasceu propriamente como jornal, mas
só quando este se tornou cotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível,
isto é, há uns 150 anos mais ou menos. No Brasil ela tem uma boa história, e até se
poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que
se aclimatou aqui e a originalidade com que a quis e desenvolveu. Antes de ser crônica
propriamente dita foi folhetim, ou seja, um artigo de rodapé sobre as questões do dia -
políticas, sociais, artísticas, literárias. Assim éramos da seção - "Ao correr da pena", título
significativo a cuja sombra José de Alencar escrevia semanalmente para o correio Mercantil.
Aos poucos o folhetim foi encurtando e ganhando certa gratuidade, certo ar de quem
está escrevendo à toa, sem dar muita importância. Depois, entrou francamente pelo tom
ligeiro e encolheu de tamanho, até chegar ao que é hoje.

Ao longo deste percurso, foi largando cada vez mais a intenção de informar e
comentar deixada a outros tipos de jornalismo, para ficar sobretudo com a de divertir. A
linguagem se tornou mais leve, mais descompromissada e fato decisivo) se afastou da
lógica argumentativa ou da crítica política, para penetrar poesia adentro. Creio que a
fórmula moderna, onde entra um fato miúdo e um toque humorístico, como seu
quantum satis de poesia, representa o amadurecimento e o encontro mais puro da
crônica consigo mesma.

No século passado, em José de Alencar, Francisco Otaviano e mesmo Machado de


Assis, ainda se notava mais o corte de artigo leve. Em França Júnior já é nítida uma
redução de escala nos temas, ligada ao incremento do humor e certo toque de
gratuidade. Olavo Bilac, mestre da crônica leve, guarda um pouco do comentário antigo

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mas amplia a dose poética, enquanto João do Rio se inclina para o humor e o sarcasmo,
que contrabalançam um pouco a tara do esnobismo. Eles e muitos outros, maiores e
menores, de Carmen Dolores e João Luso até os nossos dias, contribuíram para fazer do
gênero este produto sui generis do jornalismo literário brasileiro que ele é hoje.

A leitura de Bilac é instrutiva para mostrar como a crônica já estava brasileira,


gratuita e meio lírico-humorística, a ponto de obrigá-lo a amainar a linguagem, a
descascá-la dos adjetivos mais retumbantes e das construções mais raras, como as que
ocorrem na sua poesia e na prosa das suas conferências e discursos. Mas que encolhem
nas crônicas. É que nelas parece não caber a sintaxe rebuscada, com inversões
frequentes; nem o vocabulário opulento, como se dizia, para significar que era variado,
modulando sinônimos e palavras tão raras quanto bem soantes. Num país como o Brasil,
onde se costumava identificar superioridade intelectual e literária com grandiloqüência e
requinte gramatical, a crônica operou milagres de simplificação e naturalidade, que
atingiram o ponto máximo nos nossos dias, como se pode ver nas deste livro.

O seu grande prestígio atual é um bom sintoma do processo de busca de


oralidade na escrita, isto é, de quebra do artifício e aproximação como que há de mais
natural no modo de ser do nosso tempo. E isto é humanização da melhor. Quando vejo
que os professores de agora fazem os alunos lerem cada vez mais as crônicas, fico
pensando nas leituras do meu tempo de secundário. Fico comparando e vendo a
importância deste agente de uma visão mais moderna na sua simplicidade reveladora e
penetrante.

No meu tempo, entre as leituras preferidas para a sala de aula estavam os


discursos: exórdio do sermão de São Pedro de Alcântara, de Monte Alverne; trecho do
sermão da Sexagésima, de Vieira: Oração da Coroa, de Demóstenes, na tradução de
Latino Coelho; Rui Barbosa sobre o jogo, o chicote, a missão dos moços. Um sinal dos
tempos é essa passagem do discurso, com a sua inflação verbal, para a crônica, como
seu tom menor de coisa familiar.

Acho que foi no decênio de 1930 que a crônica moderna se definiu e consolidou
no Brasil, como gênero bem nosso, cultivado por um número crescente de escritores e
jornalistas, com os seus rotineiros e os seus mestres. Nos anos 30 se afirmaram Mário
de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, e apareceu aquele que de
certo modo seria o cronista, voltado de maneira praticamente exclusiva para este
gênero: Rubem Braga.

Tanto em Drummond quanto nele observamos um traço que não é raro na


configuração da moderna crônica brasileira: no estilo, a confluência da tradição, digamos
clássica, com a prosa modernista. Essa fórmula foi bem manipulada em Minas onde

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Rubem Braga viveu alguns anos decisivos da vida); e dela se beneficiaram os que
surgiram nos anos 40 e 50, como Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. É como se
(imaginemos) a linguagem seca e límpida de Manuel Bandeira, coloquial e corretíssima,
se misturasse ao ritmo falado de Mário de Andrade, com uma pitada do arcaísmo
programado pelos mineiros.

Neles todos, e alguns outros, como por exemplo Raquel de Queirós, há um traço
comum: deixando de ser comentário mais ou menos argumentativo e expositivo para
virar conversa aparentemente fiada, foi como se a crônica pusesse de lado qualquer
seriedade nos problemas. Mas observem bem as deste livro. É curioso como elas
mantêm o ar despreocupado, de quem está falando coisas sem maior consequência; e,
no entanto, não apenas entram fundo no significado dos atos e sentimentos do homem
mas podem levar longe a crítica social. Veja-se a extraordinária Carta a uma senhora de
Carlos Drummond de Andrade onde a menininha que não possui nem 20 cruzeiros faz
desfilar na imaginação os presentes que desejaria no Dia das Mães oferecer à sua. É
como se ela estivesse do lado de fora de uma vitrine imensa onde se acham os objetos
maravilhosos que a propaganda criadora de aspirações e necessidades transformou em
bens ideais. Ela os enumera numa escrita que o cronista fez ao mesmo tempo belíssima
e liricamente infantil. A impressão do leitor é de divertida simplicidade que se esgota em
si mesma; mas por trás está todo o drama da sociedade chamada de consumo muito
mais iníqua num país como o nosso cheio de pobres e miseráveis que ficam alijados da
sua miragem sedutora e inacessível:

Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liquidificador de 3 velocidades,


sempre quis que a Sra. não tomasse trabalho de espremer laranja, a máquina de tricô
faz 500 pontos, a Sra. sozinha faz muito mais. Um secador de cabelo para Mammy
gritei, com capacete plástico mas passei adiante, a Sra. não é desses luxos, e a poltrona
anatômica me tentou, é um estouro, mas eu sabia que minha Mãezinha nunca tem
tempo de sentar. Mais o quê? Ah sim, o colar de pérolas acetinadas, caixa de talco de
plástico perolado, par de meias, etc.

Veja-se depois no limite do patético firmeediscretamenteevitadopeloautor a


Última crônica de Fernando Sabino: a família de pretos que vai ao botequim celebrar o
aniversário da menina com um pedaço de bolo onde o pai finca e acende três velinhas
trazidas no bolso. Não será a mesma criança que escreveu a carta mirífica do Dia das
Mães? Diz o cronista:

Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo


humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao
circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de

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esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me
simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a
cabeça e tomo o meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: assim eu
quereria o meu último poema. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um
último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

É então que vê o casal com a filhinha e assiste ao ritual modesto. Mas as suas
reflexões a maestria com que constrói a cena e todo o ritmo emocionado sob a superfície
do humor lírico constituem ao mesmo tempo uma pequena e despretensiosa teoria da
crônica deixando ver o que sugeri isto é que por baixo delas há sempre muita riqueza
para o leitor explorar. Dizendo isto não quero transformar em tratados sisudos essas
peças leves. Ao contrário. Quero dizer que por serem leves e acessíveis talvez elas
comuniquem mais do que um estudo intencional a visão humana do homem na sua vida
de todo o dia. É importante insistir no papel da simplicidade, brevidade e graça próprias
da crônica. Os professores tendem muitas vezes a incutir nos alunos uma ideia falsa de
seriedade; uma noção duvidosa de que as coisas sérias são graves, pesadas e que
consequentemente a leveza é superficial. Na verdade aprende-se muito quando se
diverte e aqueles traços constitutivos da crônica são um veículo privilegiado para mostrar
de modo persuasivo muita coisa que divertindo atrai inspira e faz amadurecer a nossa
visão das coisas.

Este livro está cheio de exemplos disso; é quase só isso, de começo a fim. Nele
são raros os momentos de utilização da crônica como militância, isto é, participação
decidida na realidade como intuito de mudá-la, como acontece em Luto da família Silva,
de Rubem Braga, abordando a grande maioria dos homens que sua, e pena para fazer
funcionar a máquina da sociedade em benefício de uns poucos:

A gente de nossa família trabalha nas plantações de mate nos pastos nas
fazendas nas usinas nas praias, nas fábricas nas minas nos balcões no mato nas
cozinhas em todo lugar onde se trabalha. Nossa família quebra pedra faz telhas de barro
laça os bois levanta os prédios conduz os bondes enrola o tapete do circo enche os
porões dos navios conto dinheiro dos Bancos faz os jornais serve no Exército e na
Marinha. Nossa família é feito Maria Polaca: faz tudo.

Apesar disso, João da Silva, nós temos de enterrar você é mesmo na vala
comum. Na vala comum da miséria. Na vala comum da glória João da Silva. Porque
nossa família um dia há de subir na política.

Aliás, este é um bom exemplo de como a crônica pode dizer as coisas mais sérias
e mais empenhadas por meio do ziguezague de uma aparente conversa fiada. Mas
igualmente sérias são as descrições alegres da vida, o relato caprichoso dos fatos, o

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desenho de certos tipos humanos, o mero registro daquele inesperado que surge de
repente e que Fernando Sabino procura captar, como explica na crônica citada mais alto.
Tudo é vida, tudo é motivo de experiência e reflexão, ou simplesmente de divertimento,
de esquecimento momentâneo de nós mesmos a troco do sonho ou da piada que nos
transporta ao mundo da imaginação. Para voltarmos mais maduros à vida, conforme o
sábio.

Para conseguir este efeito, o cronista usa diversos meios. Há crônicas que são
diálogos, como Gravação, de Carlos Drummond de Andrade ou Conversinha mineira e
Albertina, de Fernando Sabino. Outras parecem marchar rumo ao conto, à narrativa mais
espraiada com certa estrutura de ficção, como Os Teixeiras, de Rubem Braga, ou
parecem anedotas desdobradas, como A mulher do vizinho, de Fernando Sabino.
Nalguns casos o cronista se aproxima da exposição poética ou certo tipo de biografia
lírica, como vemos em Paulo Mendes Campos: Ser brotinho e Maria José, ambas
admiráveis.

“Ser brotinho” é construída segundo a enumeração, como alguns poemas de


Vinícius de Moraes. Parece uma divagação livre, uma cadeia de associações totalmente
sem necessidade, que deveria resultar em simples acúmulo de palavras. Mas eis que o
milagre da inspiração que não é mais do que o poder misterioso de fazer as palavras
funcionarem de maneira diferente em combinações inesperadas) vai organizando um
sistema expressivo tão perfeito, que no fim ele aparece como a própria necessidade das
coisas:

Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite como um adjetivo para o
rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam sentido mas é
também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o
momento exato de vingar se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel,
recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo
da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita
a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa.
Ser brotinho é a inclinação do momento.

O leitor fica perguntando se ser brotinho não é um pouco ser cronista, dando aos
objetos e aos sentimentos um arranjo tão aparentemente desarranjado e na verdade tão
expressivo, tirando significados do que parece insignificante. “(...) dar sentido de
repente ao vácuo absoluto” é a magia da crônica.

Parece às vezes que escrever crônica obriga a urna certa comunhão, produz um
ar de família que aproxima os autores acima da sua singularidade e das suas diferenças.
É que a crônica brasileira bem realizada participa de uma língua geral lírica, irônica,

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casual, ora precisa e ora vaga, amparada por um diálogo rápido e certeiro, ou por uma
espécie de monólogo comunicativo.

Aqui, cada um dos autores está presente, ao mesmo tempo, nessa comunidade e
no vinco da sua maneira pessoal. Apenas um deles é cronista puro, ou quase: Rubem
Braga. Mas todos escrevem como se este fosse o seu veículo predileto, embora
sintamos em cada um a presença nutritiva das suas outras atividades literárias. A
precisão de Drummond, o movimento nervoso de Fernando Sabino, a larga onda lírica de
Paulo Mendes Campos. Provindos de três gerações literárias, eles se encontram aqui
numa espécie de espetáculo fraterno, mostrando a força da crônica brasileira e sugerindo
a sua capacidade de traçar o perfil do mundo e dos homens.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés do chão. In. Para gostar de ler: crônicas. Volume 5. São Paulo:
Ática, 2003. p. 89.

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Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
Marina Colasanti

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista


que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para
fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E,
porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida
que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A


tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode
perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do
trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e
dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra,


aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita
não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita
ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando
precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a


lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer
fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar
mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas
filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver


anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade.
A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de


cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às
bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se
acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos
cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas,


tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta

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acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o
pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de
semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque
tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se


acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para
poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e
que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

Marina Colasanti no Jornal do Brasil, 1972.

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Devagar, divagar
Ivan Angelo

Calma. Viver é devagar. Uma pessoa leva nove meses para nascer, um ano para
andar e ganhar dentes, dois anos para falar, seis para ler, dezoito anos de escola para se
formar, trinta anos para ficar maduro, noventa anos para morrer. Para que a pressa? Não
se estresse. “Apressa-te devagar”, aconselhava o historiador romano Suetônio ao
imperador Adriano.

Por que têm pressa os que têm pressa?

A pressa é um perigo. Acontecem 700 acidentes por dia nas rodovias brasileiras, 42.000
pessoas morrem anualmente em acidentes de trânsito, 24.000 só nas estradas. Por que
a pressa? As cidades estão lá à espera no término da viagem, as praias estão lá, os
hotéis, os parentes, os amigos, nada vai sair do lugar, mas todos têm pressa. Parecem
fugir dos quilômetros. “Não há nada que se possa fazer com pressa e prudência ao
mesmo tempo”, ensinava o latino Publilio Siro, 2.000 anos antes da invenção do
automóvel.

A pressa para ganhar dinheiro amolece a moral, favorece o crime, a corrupção, a


bajulação, o carreirismo, a passada de perna. Na última década do século passado,
começou a circular, com o peso de um salmo bíblico, a nova mensagem aos jovens:
aquele que não ganhar seu primeiro milhão antes dos 30 anos será um perdedor. A
pressa entrou em cena nos escritórios, vieram os atropelamentos nos corredores das
empresas. Como diz o delinquente do filme Notícias de uma Guerra Particular, sobre um
par de tênis que viu alguém usando e o qual não podia comprar: “Eu vou pegar,
brother”; o jovem da classe média diz sobre o milhão que outros têm: “Eu vou pegar o
meu, cara”.

Também no amor a pressa não resulta em grande coisa. A pressa dos


conquistadores assusta a presa. A dos ansiosos provoca fracasso na hora H. A dos
imprevidentes termina em gravidez. A dos maridos dá origem a mulheres insatisfeitas. A
das esposas encoraja adúlteros. A dos namorados os acostuma à falta de capricho no
amor. A dos solteirões produz velhos solitários, que não atentaram, enquanto era tempo,
para um conselho de avô: “Fuja das mulheres, mas devagar, para que elas possam
alcançá-lo”.

Pressa para fazer um trabalho não dá certo. O oleiro sabe que não adianta
apressar o barro. Uma mesa benfeita, uma cirurgia precisa, uma casa bem construída,
um sapato confortável, uma estrada segura – tudo tem seu tempo, e não é o dos
apressados. Lembram-se da cratera da Linha 4 do Metrô de São Paulo? Viram o absurdo

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urbano do Minhocão? Viram a trapalhada do Plano Collor? “A pressa é o ritmo dos
trapalhões”, diz o escritor americano Ambrose Bierce. O povo sempre soube disso, ao
criar ditados como “A pressa é inimiga da perfeição”, “Roma não se fez num dia”,
“Devagar se vai longe”. Gasta-se tempo fazendo, e outro tanto refazendo. Vamos, pois,
desacelerar, ouvindo o que diz um escritor de prosa saborosa, o londrino G. K.
Chesterton: “Uma das grandes desvantagens da pressa é o tempo que ela nos faz
perder”.

A pressa na arte resulta em obras sem arte. Que de mais grandioso existe entre
as obras de arte coletivas do que as catedrais, como as de Paris, Colônia, Milão, Reims e
outras? Levaram cinco, seis séculos para ficar prontas. O pior que se pode dizer de um
romance, de uma mostra de pintura, de um concerto, de um espetáculo teatral é que
são apressados. Arte é concepção, realização e acabamento. E isso toma tempo, tempo
de criar, corrigir, aparar, avaliar, polir. Quinhentos anos antes de Cristo o sábio chinês
Confúcio ensinava: “Coisa feita com pressa é coisa malfeita”. Viver é divagar.

ANGELO, Ivan. Devagar, divagar. Veja São Paulo. São Paulo: Abril, n. 2174, 21 jul. 2010.

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Bicampeões do Mundo
Nelson Rodrigues

Amigos, estamos atolados na mais brutal euforia. Ontem, quando rompia a


primeira estrela da tarde, o Brasil era proclamado bicampeão do mundo*

Foi um título que o escrete arrancou de suas rútilas entranhas. E, a partir da


vitória, sumiram os imbecis, e repito: — não há mais idiotas nesta terra. Súbito o
brasileiro, do pé rapado ao grã-fino, do presidente ao contínuo, o brasileiro, dizia eu,
assume uma dimensão inesperada e gigantesca. O bêbado tombado na sarjeta, com a
cara enfiada no ralo, também é rei. Somos 75 milhões de reis.

De sábado para domingo houve a feérica vigília do triunfo.

Ninguém tinha dúvidas. Aí é que está, ninguém tinha dúvidas. E sofríamos porque
há também a angústia da certeza. Mas eu falava da grande véspera. Lotes de macumbas
nas esquinas, botecos iluminados como velórios. Vinte e quatro horas antes da batalha,
já tropeçavam na rua os bêbados da vitória. Amigos, nunca foi tão fácil ser profeta.

Outrora o brasileiro era um inibido até para chupar Chica-bon.

Agora não. Cada um de nós foi investido de uma vidência deslumbrante. Nós
sentíamos o bi, nós o apalpávamos, nós o farejávamos. E, a partir de ontem, vejam
como a simples crioulinha favelada tem todo o élan, todo o ímpeto, toda a luz de uma
Joana d’Arc. De repente, todas as esquinas, todos os botecos, todas as ruas estão
consteladas de Joanas d’Arc. E os homens parecem formidáveis como se cada um fosse
um são Jorge a pé, um são Jorge infante, maravilhosamente infante.

Mas falemos do escrete. Esse time de negros ornamentais, folclóricos, divinos


deslumbrou o mundo. Foi o mais belo futebol que jamais olhos humanos contemplaram.
Perdemos um Pelé. Mas o Brasil vive um momento de tão selvagem euforia que
imediatamente descobrimos um novo Pelé. E repito: — feliz o povo que, na vaga de um
gênio, põe outro gênio. Amarildo, o “Possesso”, surgiu contra a Espanha. É o novo Pelé
proclamado.

Amigos, o Brasil fez no Chile um sofrido futebol, um futebol quase feio, um duro
futebol de cara amarrada. Jogávamos para vencer. Amarildo, o dostoievskiano,
enfiava-se pela área como um rútilo epiléptico. Ao marcar os dois gols contra a Espanha
pendia dos seus lábios uma baba elástica e bovina. E Garrincha? Foi o gênio duplo do
escrete. E, com efeito, foi genial por ele e por Pelé. Vocês se lembram dos seus dois gols

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contra o Chile. O Mané estava na meia esquerda. No primeiro gol, ele se tornou leve,
elástico e acrobático. Deu uma cabeçada que enterrou o Chile.

O gênio soprava, o gênio ventava por todo o escrete. E ontem foi uma jornada
deslumbrante. Os tchecos abriram o escore. 1x0.

Setenta e cinco milhões de brasileiros perguntavam um ao outro: — “Vamos


repetir 50?”. Mas a derrota de 50 liquidou o Brasil da derrota. O que eu quero dizer é
que, em seguida ao gol da Tchecoslováquia, Amarildo apanhou a bola. Nos dois últimos
jogos ele fora bem pouco Amarildo e bem pouco “Possesso”. Desta vez, porém, partiu
para a Copa. Antes que o adversário pudesse esboçar o ferrolho, Amarildo dribla um,
dribla dois. O goleiro adversário sai para cortar o centro. Era chegado o grande
momento. E então o “Possesso” enfia a sua bomba entre o goleiro e a trave. A bola,
também possessa, foi se cravar no fundo das redes. Parecia apenas o empate, mas era
já o bi. O trágico é que começara de véspera o carnaval da vitória. Nunca um povo teve
uma certeza tão violenta e tão possessa. O escrete tinha de vencer porque não era
somente o escrete, era também o Brasil, era também o homem brasileiro.

No segundo gol, ainda Amarildo, ainda o “Possesso”. Nunca o “Possesso” foi tão
dostoievskiano como no segundo gol. Novamente adernou para a esquerda. Nenhuma
força humana ou divina poderia quebrar-lhe o ímpeto sagrado. Driblou não sei quantos.
Lá estava Zito. E o “Possesso” deu-lhe o gol. Brasil 2x1. Batida a Tchecoslováquia. O
terceiro gol veio de uma bola alta de Djalma Santos. Vavá, furioso como um cossaco do
Don, meteu a cabeça. A Tchecoslováquia estrebuchou e pôs fogo pelas narinas, como o
dragão de São Jorge.

Setenta e cinco milhões de brasileiros profetizaram o triunfo. Amigos, depois da


vitória não me falem na Rússia, não me falem nos Estados Unidos. Eis a verdade: — a
Rússia e os Estados Unidos começaram a ser o passado. Foi a vitória do escrete e mais:
— foi a vitória do homem brasileiro, ele sim, o maior homem do mundo. Hoje o Brasil
tem a potencialidade criadora de uma nação de napoleões.

RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol/ Nelson Rodrigues;
seleção e notas Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

*Brasil 3 x 1 Tcheco-Eslováquia, 17/6/1962, Estádio Nacional de Santiago, Chile. Jogo final da


Copa.

15
Medo da Eternidade
Clarice Lispector

Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.

Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em
Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se
tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro
eu lucraria não sei quantas balas.

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola
me explicou:

— Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida
inteira.

— Como não acaba? – Parei um instante na rua, perplexa.

— Não acaba nunca, e pronto.

— Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de


príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do
longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras
crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para
fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente,
tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.

Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.

— E agora que é que eu faço? – perguntei para não errar no ritual que
certamente deveria haver.

— Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar
o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu
já perdi vários.

— Perder a eternidade? Nunca.

O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda
perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.

—Acabou-se o docinho. E agora?

—Agora mastigue para sempre.

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Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na
boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava,
mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a
vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante
da ideia de eternidade ou de infinito.

Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava
aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.

Até que não suportei mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o
chicle mastigado cair no chão de areia.

— Olha só o que me aconteceu! – disse eu em fingidos espanto e tristeza. –


Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!

— Já lhe disse – repetiu minha irmã – que ela não acaba nunca. Mas a gente às
vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a
gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não
perderá.

Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da


mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.

Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.

LISPECTOR, C para o Jornal do Brasil, 6 de Junho de 1970. Publicada, posteriormente, nos livros A
descoberta do mundo, 1984, pp. 446-448, e Todas as crônicas, 2018, pp. 307-309.

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Bar ruim é lindo, bicho
Antonio Prata

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso frequento bares meio ruins.
Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos julgamos a
vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinqüenta anos. (Deve ter alguma coisa
de errado com uma vanguarda de mais de cento e cinqüenta anos, mas tudo bem.)

No bar ruim que ando frequentando ultimamente o proletariado atende por Betão
— é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando resolver aí
quinhentos anos de história.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do garçom,


com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para falarmos de
literatura.

—Ô Betão, traz mais uma pra a gente — eu digo, com os cotovelos apoiados na
mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa linda
que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do Brasil que os bares
bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à passarinho ou carne-de-sol com
macaxeira, que são os pratos tradicionais da nossa cozinha. Se bem que nós, meio
intelectuais, meio de esquerda, quando convidamos uma moça para sair pela primeira
vez, atacamos mais de petit gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta
do Brasil e tal, mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem
diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem que ser
um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano e, se tiver porção
de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta em nossos olhos, meio de canto,
meio escondida. Quando um de nós, meio intelectual, meio de esquerda, descobre um
novo bar ruim que nenhum outro meio intelectuais, meio de esquerda, freqüenta, não
nos contemos: ligamos pra turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e
decretamos que aquele lá é o nosso novo bar ruim.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo
frequentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias mais ou
menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto freqüentado por artistas,
cineastas e universitários e, um belo dia, a gente chega no bar ruim e tá cheio de gente
que não é nem meio intelectual nem meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo

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artistas, cineastas e, principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente
diz: eu gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio intelectuais,
meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e uns velhos bêbados que
jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos dizer que
frequentávamos o bar antes de ele ficar famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de
gente, ouvíamos a banda antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam
na praia antes, uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso
a gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de Chevette e
chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico, do Brasil autêntico. E a
gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de tudo.

Os donos dos bares ruins que a gente frequenta se dividem em dois tipos: os que
entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é a nossa,
mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para tocar samba
de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no cardápio e aumentam
cinqüenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que nós, meio intelectuais, meio de
esquerda, somos meio bem de vida e nos dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara
de barato). Os donos que não entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as
mesas de lata por umas de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um
som estéreo tocando reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente
gosta, como já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.

Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país. A
cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente gosta, os pobres
estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta, pronta para encher nossos
bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o petit gâteau pelos quatro cantos do
globo. Para desespero dos meio intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por
questões ideológicas, preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que
é a mesma coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio
intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais autêntico que o
Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais assim Câmara Cascudo,
saca?).

— Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?

PRATA, Antonio. Bar ruim é lindo, bicho. In: Meio intelectual, meio de esquerda. São Paulo, SP:
Editora 34, 2010. p. 30-32

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Jovens

Antonio Prata

Chego ao caixa do supermercado, onde estão a mulher de unhas cor-de-rosa e o


senhor de Rider, e nos olhamos de esguelha - nossas pupilas nem se cruzam, trata-se
apenas daquela checada rápida, com o canto do olho, herança das savanas, talvez,
quando tínhamos que avaliar, num átimo, se havia algum leão à espreita.

Não há: nenhum de nós é skinhead, bêbado ou aparenta levar uma machadinha
escondida embaixo do casaco, de modo que a paz logo se instaura no microcosmo do
nosso caixa; a mulher diz que sim, quer Nota Fiscal Paulista, não, não tem o cartão do
supermercado e, após breve hesitação, decide pagar no crédito; o senhor começa a
colocar sobre a esteirinha rolante suas compras de homem solitário, uma pizza
congelada, dois limões, três latas de cerveja; eu batuco, despreocupado, na grade do
carrinho.

É aí que ouvimos as risadas.

Várias, estridentes. Os mesmos genes responsáveis pela esguelha preventiva nos


acionam o alerta laranja: "atenção, barulho, perigo!" e fazem com que viremos na
direção da algazarra. São três meninos e duas meninas, entre 16 e 18 anos. Empurram
um carrinho com cervejas, uma vodca e um pacote de Doritos. "Ai, cala a boca,
Amanda!", diz um deles, bem alto, e logo recebe, da menina, um soco no braço. Riem
muito.

Nós, a turma dos veteranos da fila, damos as costas aos garotos e, pela primeira
vez, nos olhamos nos olhos. É um pacto silencioso, que diz: a paz foi perturbada, não
estamos de acordo com este comportamento, somos contra jovens que chegam rindo,
dizendo "Ai, cala a boca, Amanda" e trocando soquinhos, no supermercado.

Eles param atrás da gente, com uma extroversão que é diretamente proporcional
ao nosso incômodo. A mulher de unhas rosa espera a máquina emitir seu recibo, tensa,
o senhor limpa a garganta, mandando para dentro o pigarro e para fora seu sinal de
desaprovação, eu pego uma barra de cereais e finjo a mim mesmo um grande interesse
pela tabela nutricional -e é entre kcals e fibras alimentares que a razão do meu
desconforto vai se revelando.

Faz muito pouco tempo, eu estava ali atrás, falando alto, desdenhando dos
adultos, com plena consciência de que o mundo é um palco e todos os papéis são
cômicos. Agora, estou do lado do Rider, das unhas cor-de-rosa, do "cada coisa em seu
lugar" e "a liberdade de um vai até onde começa a...".

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Não, não tenho a menor saudade da adolescência. Sete anos sem saber se punha
as mãos nos bolsos ou pra fora das calças, a obrigação de estudar química às sete e
quinze da manhã, a certeza absoluta de que iria morrer virgem, puro e besta -
cruz-credo.

O lado de cá é bem mais confortável, e é justamente esse conforto que os


garotos ameaçam, de maneira tão ingênua e eficaz, inserindo risadas, extroversão e
agressividade onde deveria haver apenas "boa noite", "Nota Fiscal Paulista?", "débito ou
crédito?".

Enquanto entrega o cartão à moça do caixa, posso ouvir o senhor ruminando:


"absurdo! Se cada um fizesse o que tem vontade, na hora que tem vontade, o que seria
do mundo?"

O que seria do mundo? E de nossas vidas? Eis as perguntas que não ousamos nos
fazer, e que os moleques nos esfregam na fuça, com suas risadas.

Antonio Prata para o jornal da Folha de São Paulo, 16 de março de 2011.

21
Leituras de um brasileiro: ‘As cores da literatura’
Antonio Vicente Seraphim Pietroforte

Certo dia, caminhando pelos corredores do prédio de Letras da FFLCH-USP, vi nos


murais o aviso de inauguração do Grêmio Literário Luiz Gama. Isso faz tempo, foi nos
primeiros anos deste século XXI. Eu havia sido aprovado recentemente no concurso para
professor de linguística e semiótica; o PCO – Partido da Causa Operária – geria o centro
acadêmico das Letras – o CAELL –. Lamentavelmente, eu era professor da USP, da área
de Letras, e não sabia quem havia sido Luiz Gama.

Fui ao evento e pela primeira vez eu ouvi falar em Literatura Negra. A


inauguração consistiu da mesa redonda com militantes do movimento negro brasileiro;
os debatedores contaram, sucintamente, a história da Literatura Brasileira do ponto de
vista dos negros. Para mim, foi uma aula excepcional e digo isso referindo-me,
principalmente, aos conteúdos históricos e acadêmicos discutidos naquele dia.

Em linhas gerais, ao mencionar nossa literatura neoclássica – o Arcadismo,


tempos da Inconfidência Mineira, das poesias de Claudio Manuel da Costa e de Tomás
Antonio Gonzaga –, foi dado destaque à poesia de Domingos Caldas Barbosa
(1739-1800), que teria sido o primeiro poeta negro e tematizar questões propriamente
negras, como a cor da pele, em tempos de poetas brancos e de musas brancas, quando
a escravidão era lei. Já no Romantismo, Castro Alves não seria mais o poeta dos
escravos; esse título caberia melhor a Luiz Gama (1830-1882), também poeta e
abolicionista, mas, como diz em seus versos, “Ó Musa de Guiné, cor de azeviche (…)
Quero que o mundo me encarando veja, / Um retumbante Orfeu de carapinha”.
Novamente a cor da pele, o cabelo crespo, enfim, o corpo do poeta é o corpo negro.

Na virada do século XIX para o século XX, Machado de Assis, embora escritor
afrodescendente, por não tematizar devidamente as questões do negro no Brasil daquela
época, divide seu espaço na literatura com Lima Barreto (1881-1922). Lima Barreto,
além d’O triste fim de Policarpo Quaresma, é autor de Memórias do escrivão Isaias
Caminha e Clara do Anjos, romances que denunciam o racismo no Brasil. Em Clara dos
Anjos está tematizada a exploração sexual das meninas negras, moradoras de bairros
periféricos, pelos boêmios brancos de outras classes sociais mais favorecidas, inclusive,
com a impunidade.

Ainda no tema da exploração da mulher negra, vale a pena recordar a polêmica


estabelecida por Oliveira Silveira em torno dos versos d’Essa nega fulô, do poeta
modernista Jorge de Lima. Essa nega fulô faz parte de Novos poemas, publicado em
1928. Nele são tematizas as falas de um caipira fanfarrão, provavelmente latifundiário,

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clamando pelos favores sexuais de sua serva, que não se sabe muito bem se é escrava,
agregada ou simplesmente trabalhadora braçal, mas em regime de semiescravidão. Dela
não se sabe o nome, mas se sabe que ela é negra e responde pelo apelido de Nega Fulô.

A partir disso, o poema é um desfile de ofensas racistas, entre as quais Fulô é


chamada de “negrinha”, ladra, é quase chicoteada pelo feitor, deita-se com o
dono-patrão para não ser castigada. Em suma, disfarçado com suposto “bom humor” dos
velhacos do patriarcado, o poema é uma odiosa apologia racista do abuso sexual e do
estupro. Em sua resposta, datada de 1979, o poeta Oliveira Silveira, enfatizando o ponto
de vista do oprimido, compõe Outra Nega Fulô, em que a mulher se revolta, mata o dono
estuprador em legítima defesa, foge da fazenda para, em liberdade, deitar-se com seu
parceiro negro.

Levando em consideração que Luiz Gama e Lima Barreto já falavam contra o


racismo desde o século XIX, é imperdoável a falta de consciência política e de decoro
poético de Jorge de Lima ao tratar com desrespeito a mulher negra em seus poemas
medíocres, incompreensivelmente canonizados pela crítica literária feita no Brasil. Sem a
devida resposta de Oliveira Silveira, ensinar Nega Fulô nas escolas e faculdades como
exemplo do modernismo brasileiro é difamar o país, além de fazer apologia do racismo e
da cultura do estupro.

A história da Literatura Negra feita no Brasil continua, não se pode falar dela sem
lembrar do movimento Quilombhoje – responsável pela publicação dos Cadernos Negros,
divulgando contos e poesia de autores negros – e de poetas contemporâneos como Cuti,
Paulo Colina – falecido prematuramente em 1999 –, Elisa Lucinda, Ricardo Aleixo,
Antonio Riserio etc., cujas análises pormenorizadas estão fora dos alcances desta coluna.

Cabe, porém, indagar a respeito do estatuto e dos alcances da ação afirmativa da


Literatura Negra. Digo isso não para contestar seus valores, mas para contestar,
justamente, algumas contraposições ao próprio conceito de literaturas de minorias, como
são as literaturas feminina, homoerótica, negra etc.

Comumente, contesta-se a literatura de ação afirmativa como literatura menor,


pois, afinal de contas, a arte não teria “cor, gênero, …”. Ora, esse argumento, além de
ser argumento burguês, está completamente errado. Não há altas literaturas pairando na
metafísica da arte e do belo ideal; toda beleza é histórica e depende, portanto, daqueles
que a elegem. Apesar de todos os autores mencionados antes, nenhum deles é
devidamente estudado nos cânones oficiais da Literatura Brasileira: Tomás Antonio
Gonzaga e sua Marília ao invés de Caldas Barbosa; Castro Alves ainda é o poeta dos

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escravos, como se Luiz Gama nunca tivesse existido; Fulô continua sendo estuprada a
cada leitura dos versos espúrios de Jorge de Lima e seu regionalismo de direita.

Em um país como o Brasil, em que predominam negros e mestiços, um cânone


literário no qual abundam homens brancos e católicos é, no mínimo, historicamente
enviesado. Não se trata de expulsar Gonzaga e Castro Alves, mas de incluir Caldas
Barbosa e Luiz Gama, entre tantos excluídos. Não se trata, ainda, apenas de incluir
autores negros – Machado de Assis e Mario de Andrade são negros –, mas de tematizar
a cultura negra além dos costumeiros preconceitos racistas que ainda insistem no negro
“macumbeiro”, “malandro”, “batuqueiro”, “lascivo”.

Na pós-modernidade, a Arte do Corpo combate o ponto vista reacionário em que


a arte não admite ênfases nas minorias. Por que causa estranhamento quando o artista
plástico Yinka Shonibare se faz fotografar posando e vestido como brancos do século
XVIII? Se não houvesse racismo, não haveria estranhamento. No caso de Shonibare, via
o corpo negro do artista, as trocas de papéis enfatizam as diferenças raciais ao mesmo
tempo em que protesta contra elas. Na prosa e na poesia, por meio de palavras, a
literatura negra faz algo semelhante; protestar contra ela é mais uma forma dissimulada
de racismo.

No nosso próximo encontro, pretendo escrever sobre literatura feminina e a


resistência ao machismo e aos valores do patriarcado.

PIETROFORTE, A. V. S. . Leituras de um brasileiro: 'As cores da literatura'. Disponível em:


https://www.geledes.org.br/leituras-de-um-brasileiro-as-cores-da-literatura/ Acesso em: 08/02/2023

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Mas em que mundo tu vive?
José Falero

Como não estava a par das circunstâncias nas quais meu primo havia
abandonado o trabalho logo após o primeiro dia, resolvi perguntar:

—Por que tu largou fincado do trampo lá, meu?

Vem ao caso comentar que eu era parte interessada no assunto. Com a saída
dele, convidaram-me para substituí-lo, e não me senti inclinado a recusar uma vez que
estava desempregado havia já alguns meses. Antes de ir aceitando, contudo, achei que
valia a pena tentar descobrir se o motivo de sua evasão, na véspera, não colocaria
também a mim mesmo para correr no dia seguinte.

—Tu quer mesmo saber qual é a cena? - começou ele. —Então eu vou te dar a
real: aquilo de lá é uma bomba, mano! A maior bomba!

—Veja!

—Mas! Te liga só: o alemão lá não manda eu e o Michel destruir um senhor


casarão só com um martelinho cada um?

—Não creio!

—Tô te falando!

—Tá, e marreta? Já não inventaro marreta?

—Aí que eu te falava, sangue bom. É ou não é pra largar fincado? Mas o pior tu
nem sabe.

—Tem mais?

—Ô! Tamo lá, eu e o Michel tirando só lasca dos tijolo maciço com aquelas porra
daqueles martelinho, fritando no olho do sol, lavado de suor, daí me chega aquele filho
da puta daquele alemão e fica sono de sede, louco de cansam um pro.

Nós louco de fome, louco de sede, louco de cansado, louco de tudo, e ele ali na volta,
bem belo, com um caldo de cana bem gelado numa mão e um pastel bem quentinho na
outra, e nós só sentindo o cheiro.

— Não creio!

— Tô te falando! Depois disso, ah!, se eu te contar, aí é que tu não vai crer


mesmo. Acaba o dia (claro que não fizemo nem cosquinha no casarão, tu imagina, cada

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um com uma porra dum martelinho!), lá vou eu me explicar pro homem: “Tu vê, né,
chefe, não deu pra fazer muita coisa porque sem marreta fica ruim, mas mais uns três
dia, quatro dia no máximo, o casarão já era, pode ficar descansado". O alemão, no maior
desplante, me olha e me diz: "Não, não, tudo bem, tudo bem, nem esquenta, nem
esquenta. Amanhã vem a retroescavadeira e derruba isso aí num minuto. Eu só pedi pra
vocês irem derrubando pra não ficarem sem fazer nada o dia inteiro hoje”. Rapaz, mas
eu fiquei tão bravo, mas tão bravo! Pedi o dinheiro do dia e já dei a letra: "Ó, amanhã,
nem me viu! O senhor ouviu bem? Nem me viu!".

Não demorei a me dar conta de que aquela era uma conversa inútil. Com um
extenso histórico de fugas semelhantes, que inclusive lhe rendera o apelido de seu
Madruga, meu primo não chegava a ser exatamente flor que se cheirasse. Podia ter
razão naquela história, mas também podia não ter: sua versão dos fatos não era a
melhor base possível para eu tentar decidir se aceitava substituí-lo ou não. Ademais, eu
não estava em condições de sair por aí recusando propostas de emprego. Longe disso,
para falar a verdade. A fome já despontava em meu horizonte, e mesmo que o trabalho
de fato fosse o quadro do terror pintado por meu primo, eu tinha obrigação de pelo
menos tentar suportar o suplício pelo maior tempo que pudesse.

No dia seguinte, sacolejando dentro do ônibus lotado, lá íamos nós, eu e o Michel,


que, segundo meu primo, havia baixado a cabeça, isto é, havia se conformado com a
situação supostamente desfavorável.

—É, meu primo não ficou lá muito contente com esse trampo — comentei, na
esperança de ouvir do Michel uma interpretação menos medonha dos acontecimentos.

—Só se o teu primo fosse louco pra ficar contente. — Sorriu ele, com o bom
humor que lhe era característico.

— Então é uma bomba mesmo?

— É um caralho voador, aquilo de lá! Deus que me perdoe!

Ri da expressão "caralho voador", que para mim era nova. Em seguida, perguntei
se procedia a história de destruir um casarão de tijolos maciços com martelos.

— Sim! O alemão lá é ruim, meu. Teu primo ficou putaço. Ficou puto até comigo,
pra tu ter uma noção.

— Ué! Contigo? Por quê?

— Porque o alemão pediu pra gente ficar trampando até seis e meia…

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— Seis e meia? - interrompi-o, assustado.

— Seis e meia, sem cuspe nem nada. Tô te falando que o cara é ruim. Daí,
quando passou das seis hora, nós lá, os dois podre, os braço pura câimbra de ficar
martelando aquelas porra daqueles tijolo maciço, eu comecei a cantar, só pra viajar:
"São seis horas e dez minutos, ja rezei minha ave-maria”.

Tornei a rir. Era impossível ficar perto do Michel sem dar pelo menos uma risada a
cada minuto. Mas, ao mesmo tempo, compreendi que meu primo tivesse se irritado com
ele: quando se está amofinado, as piadas costumam surtir efeito contrário.

— E é verdade que, no fim, esse tal de alemão disse que uma retroescavadeira ia
derrubar o casarão?

 — Sim, sim. Essa aí foi a gota d'água pro teu primo. Porra, tu tinha que ver que
engraçado que foi os dois discutindo! O teu primo bufando: “Mas que loucura é essa? Se
a máquina vai derrubar o bagulho, passei o dia martelando essa porra pra quê? Sou
palhaço, por acaso?”. E o alemão, com aquela voz anasalada dele: “Vem cá, tchê, mas
em que mundo tu vive? Vocês já tavam aqui, eu ia ser obrigado a pagar o dia de vocês
de qualquer jeito, e não tinha outra coisa pra fazer. Tu achou que eu ia te pagar pra
passar o dia sentado, é?”

Ri mais uma vez, com vontade redobrada. O Michel reproduzindo a fala do tal
alemão, imitando à perfeição aquele porto-alegrês anasalado dos brancos endinheirados
da cidade, era algo digno de aplausos.

Nem bem chegamos ao local da obra, vi que havia, no flanco esquerdo do


terreno, um amontoado de cacarecos: colchões, cobertas, roupas, latas, bancos, tudo
imundo e sem a mínima condição de uso.

 —E esses bagulho?

—É dos mendigo.

—Que mendigo?

—Morava uma pá de mendigo nesse casarão, porque tava abandonado. No


primeiro dia, tivemo que mandar todo mundo embora. O que eles pudero carregar,
carregaro, mas agora o alemão não deixa eles entrar pra pegar o que ficou pra trás. Vai
ir tudo fora.

—Porra, esse tal alemão é ruim mesmo.

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—Tô te falando. Mas esse lance não é coisa dele, na real. Ele é só o encarregado
da obra, arquiteto, engenheiro, sei lá. A dona mesmo, pelo que eu entendi, e uma outra
alemoa, que aparece aí de vez em quando, e foi ela que falou que não era pra deixar os
mendigo voltar pra pegar os bagulho.

Começamos a trabalhar. Cavamos, carregamos, martelamos, serranos: tudo


debaixo de sol forte, porque não havia uma minúscula sombra sequer no terreno inteiro.
Para piorar, a água do local ainda não fora ligada, de maneira que, após o almoço,
quando a tarde ia a meio, já não aguentávamos mais de sede.

—Olha lá a mulher regando as planta. Vamo lá com uma garrafinha e vamo pedir
um pouco d’água.

Tivemos que abandonar o trabalho por um instante para procurar garrafinhas de


refrigerante ou qualquer coisa assim que alguém eventualmente houvesse jogado fora.
Em seguida, já de posse dos recipientes, nos aproximamos da vizinha da

Obra, que regava distraidamente suas samambaias.

— Boa tarde, tia. Será que a senhora consegue um pouco d'água?

Ela nos olhou de cima a baixo, de baixo a cima, e disparou:

— Não.

Incapaz de acreditar naquela categórica negativa, imaginei que a mulher talvez


tivesse entendido errado.

—Só um pouco de água nessas garrafinhas aqui, é. Claro que não queremo usar a
água da senhora na obra.

—Não — repetiu ela, ainda mais categórica.

Voltamos com o rabo entre as pernas, rindo de nossa própria desgraça. E o


Michel, ciente de que, entre suas palhaçadas daquele dia, eu gostara particularmente de
vê-lo imitando o alemão, tornou a entrar no personagem.

—Vem cá, tchê, mas em que mundo tu vive? Tu pensa que a água é de graça, é?

Para nossa sorte, havia um supermercado na outra esquina, e o Michel tinha


trazido consigo uns trocados, que deveriam bastar para comprar uma garrafinha de água
mineral. Para nosso azar, os seguranças do supermercado não nos deixaram entrar
alegando que constrangeríamos os clientes por estarmos muito sujos.

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—Vem cá, tchê, mas em que mundo tu vive? Tu pensa que pode entrar nos
lugares assim, parecendo um indigente, e?

E o resto do dia não foi melhor. O tempo arrastou-se como nunca antes, cada
minuto parecendo durar um mês inteiro à medida que íamos experimentando infortúnio
após infortúnio. A cereja do bolo foram os sacos de cimento. Trezentos sacos de
cimento, para ser preciso. Tínhamos passado a tarde inteira esperando chegar a carreta
que os traria, engolindo a vontade de chorar que nos assaltava só de imaginar que
teríamos que carregá-los um a um até um canto adequado, e quando por fim o relógio
marcou seis e meia da tarde sem que houvesse o menor sinal da carga, fomos ingênuos
o bastante para nos deixar arrebatar pelo alívio de ter escapado pelo menos daquilo.
Trocamos de roupa, usamos a saliva e o polegar para remover dos braços uma ou outra
sujeira mais grossa e tentamos disfarçar nosso bodum com desodorante. Tão logo
estávamos prontos para ir embora, a carreta chegou.

Desnecessário comentar que nem por um segundo passou pela cabeça do alemão
mandar a carreta ir embora e voltar no dia seguinte; ao contrário, bastou o veículo
aparecer e buzinar, lá estava ele com a maior boa vontade do mundo fazendo as vezes
de flanelinha.

—Isso, estaciona aqui, pode vir, pode vir mais, isso, vem, vem, mais um pouco…

Tornamos a colocar as roupas de trabalho e nos pusemos a descarregar a carreta


levando saco de cimento após saco de cimento até o local que o alemão achara melhor:
do outro lado do terreno, exatamente no ponto mais afastado possível de onde a carreta
tinha estacionado.

O leitor por acaso já carregou cimento? Há algo curioso a respeito disso: quanto
mais sacos se carrega, tanto mais parece pesar cada um deles. Quando chegamos ao
saco de número duzentos, a dor permanente que havia se instalado em nossas costas
era o de menos: nossos joelhos, a essa altura, pareciam ter adquirido vontade própria e,
de vez em quando, num passo ou outro que dávamos com o acréscimo de cinquenta
quilos no ombro, ameaçavam se dobrar sob o peso extra, de tal modo que precisávamos
fazer esforço para não cairmos de quatro no chão.

Numa das ocasiões em que eu ia levando um saco e meus joelhos vacilaram


brevemente, o Michel, que cruzava comigo naquele preciso instante, bem no meio do
terreno, já retornando com o ombro livre após largar seu saco lá do outro lado, tentou
me fazer rir para que eu perdesse as forças de vez e acabasse de quatro no chão: parou
onde estava, colocou as mãos nas cadeiras e se empertigou todo, dizendo:

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—Vem cá, tchê, mas em que mundo tu vive? Tu tá morrendo pra carregar esse
saco de cimento, é?

Até hoje imitamos aquele alemão nas mais variadas circunstâncias. Eu, por
exemplo, tenho ímpetos de imitá-lo quando aparecem os progressistas de meia-tigela,
os intelectuais de araque, que não sabem da missa a metade, que não fazem a mais
vaga ideia do que as pessoas sempre passaram em Porto Alegre e que se surpreendem
com o fato de a ascensão fascista dos últimos tempos ter sido amplamente apoiada na
capital gaúcha só porque era aqui que aconteciam as cirandas do Fórum Social Mundial.

—Vem cá, tchê, mas em que mundo tu vive? Tu acha que uma cidade vira fascista
da noite pro dia, é?

FALERO, José. Mas em que mundo tu vive? Todavia; 1ª edição, 2021.

30
Banhos de Mar
Clarice Lispector

Meu pai acreditava que todos os anos se devia fazer uma cura de banhos de mar.
E nunca fui tão feliz quanto naquelas temporadas de banhos em Olinda.

Meu pai também acreditava que o banho de mar salutar era o tomado antes do
sol nascer. Como explicar o que eu sentia de presente inaudito em sair de casa de
madrugada e pegar o bonde vazio que nos levaria para Olinda, ainda na escuridão?

De noite eu ia dormir, mas o coração se mantinha acordado, em expectativa. E de


puro alvoroço, eu acordava às quatro e pouco da madrugada e despertava o resto da
família. Vestíamos depressa e saíamos em jejum. Porque meu pai acreditava que assim
devia ser: em jejum.

(…)Eu não sei da infância alheia. Mas essa viagem diária me tornava uma criança
completa de alegria. E me serviu como promessa de felicidade para o futuro. Minha
capacidade de ser feliz se revelava. Eu me agarrava, dentro de uma infância muito feliz,
a essa ilha encantada que era a viagem diária.

O mar de Olinda era muito perigoso. Davam-se alguns passos em um fundo raso
e de repente caía-se num fundo de dois metros, calculo. Outras pessoas também
acreditavam em tomar banho de mar quando o sol nascia. Havia um salva-vidas que, por
uma ninharia de dinheiro, levava as senhoras para o banho: abria os dois braços, e as
senhoras agarravam-se a eles para lutar contra as ondas fortíssimas do mar.

O cheiro do mar me invadia e me embriagava. As algas boiavam. Oh, bem sei que
não estou transmitindo o que significavam como vida pura esses banhos em jejum, com
o sol se levantando pálido ainda no horizonte. Bem sei que estou tão emocionada que
não consigo escrever. O mar de Olinda era muito iodado e salgado. E eu fazia o que no
futuro sempre iria fazer: com as mãos em concha, eu as mergulhava nas águas e trazia
um pouco de mar até minha boca: eu bebia diariamente o mar, de tal modo queria me
unir a ele.

Não demorávamos muito. O sol já se levantara todo, e meu pai tinha que
trabalhar cedo. Mudávamos de roupa nas cabinas, e a roupa ficava impregnada de sal.
Meus cabelos salgados me colavam na cabeça. Então esperávamos, ao vento, a vinda do
bonde para Recife. No bonde a brisa ia secando meus cabelos duros de sal.

A quem devo pedir que na minha vida se repita a felicidade? Como sentir com a
frescura da inocência o sol vermelho se levantar? Nunca mais? Nunca mais. Nunca.

LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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Vergonha de viver
Clarice Lispector

Há pessoas que têm vergonha de viver: são os tímidos, entre os quais me incluo.
Desculpem, por exemplo, estar tomando lugar no espaço. Desculpem eu ser eu. Quero
ficar só! grita a alma do tímido que só se liberta na solidão. Contraditoriamente quer o
quente aconchego das pessoas.

E para pedir aumento de salário - a tortura. Como começar? Apresentar-se com


fingida segurança de quem sabe quanto vale em dinheiro - ou apresentar-se como se é,
desajeitado e excessivamente humilde.

O que faz então? Mas é que há a grande ousadia dos tímidos. E de repente cheio de
audácia pelo aumento com um tom reivindicativo que parece contundente. Mas logo
depois, espantado, sente-se mal, julga imerecido o aumento, fica todo infeliz.

Sempre fui uma tímida muito ousada. Lembro-me de quando há muitos anos fui
passar férias numa grande fazenda. Ia-se de trem até uma pequeníssima estação
deserta. Donde se telefonava para a fazenda que ficava a meia hora dali, num caminho
perigosíssimo, rude e tosco, de terra batida e estreito, aberto à beira constante de
precipícios. Telefonei para a fazenda e eles me perguntaram se queria carro ou cavalo.
Eu disse logo cavalo. E nunca tinha montado na vida.

Foi tudo muito dramático. Caiu uma grande chuva de tempestade furiosa e fez-se
subitamente noite fechada. Eu, montada no belo cavalo, nada enxergava a minha frente.
Mas os relâmpagos revelavam-me verdadeiros abismos. O cavalo escorregava nos cascos
molhados. E eu, ensopada, morria de medo: sabia que corria risco de vida. Quando
finalmente cheguei à fazenda, não tinha força de desmontar: deixei-me praticamente
cair nos braços do fazendeiro.

De 12 para 13 anos mudamo-nos do Recife para o Rio, a bordo de um navio inglês.


Eu não sabia ainda inglês. Mas escolhia no cardápio ousadamente os nomes de comida
mais complicados. E me via tendo de comer, por exemplo, feijão-branco cozido na água
e sal. Era castigo de minha desenvoltura de tímida.

E quando eu era pequena em Recife meu encabulamento nunca me impediu de


descer do sobrado, ir para a rua, e perguntar a moleques descalços: “Quer brincar
comigo?” Às vezes me desprezavam como menina.

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Com sete anos eu mandava histórias e histórias para a seção infantil que saía às
quintas-feiras num diário. Nunca foram aceitas. E eu, teimosa, continuava escrevendo.

Aos nove anos escrevi uma peça de teatro em três atos, que coube dentro de
quatro folhas de um caderno. E como eu já falava de amor, escondi a peça atrás de uma
estante e depois, com medo de que a achassem e me revelasse, infelizmente rasguei o
texto. Digo infelizmente porque tenho curiosidade do que eu achava do amor aos nove
precoce anos.

LISPECTOR, Clarice. Todas as crônicas. Rio de Janeiro, Rocco, 2018, pp. 523-525. Publicada,
originalmente, no Jornal do Brasil de 14/10/1972

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Referências Bibliográficas

ANGELO, Ivan. Devagar, divagar. Veja São Paulo. São Paulo: Abril, n. 2174, 21 jul. 2010.

BRAGA, Rubem. O pavão. In: BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro,
RJ: Record, 2005. p. 363.

CANDIDO, Antonio. A vida ao rés do chão. In. Para gostar de ler: crônicas. Volume 5.
São Paulo: Ática, 2003. p. 89.

COLASANTI, M. eu sei, mas não devia. Rocco; 1ª edição, 1 janeiro 1996.

FALERO, José. Mas em que mundo tu vive? Todavia; 1ª edição, 2021.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, Clarice. Todas as crônicas. Rio de Janeiro, RJ: Rocco, 2018.

PIETROFORTE, A. V. S. . Leituras de um brasileiro: 'As cores da literatura'. Disponível


em: https://www.geledes.org.br/leituras-de-um-brasileiro-as-cores-da-literatura/ Acesso
em: 08/02/2023

PRATA, Antonio. Bar ruim é lindo, bicho. In: PRATA, Antonio. Meio intelectual, meio de
esquerda. São Paulo, SP: Editora 34, 2010. p. 30-32

RODRIGUES, Nelson. À sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol/ Nelson


Rodrigues; seleção e notas Ruy Castro. — São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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Declaração de amor
Clarice Lispector

Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa.

Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo
pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um
verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem
de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro
desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das
pessoas a primeira capa de superficialismo.

Às vezes ela reage diante de um pensamento mais complicado. Às vezes se


assusta com o imprevisível de uma frase. Eu gosto de manejá-la — como gostava de
estar montada num cavalo e guiá-lo pelas rédeas, às vezes a galope.

Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo em minhas mãos. E este


desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastaram para nos
dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos estamos
fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida.

Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com
uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega.

Se eu fosse muda e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que


língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas, como não nasci
muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo
era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que
a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.

LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

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