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Contos - Unidade de acao e brevidade narra © termo conto aplica-se normalmente a uma narrativa breve, pouco circunstanciada, com uma ago simples e Unica, que se enraiza no contexto milenar do ser humano, O conto de autor é pouco extenso, apresenta um nimero reduzido de personagens, habitualmente ouco complexas, desenvolve um enredo simples com pouca variedade de acontecimentos e com con- p centragao de tempo e de espaco. Na narrativa ficcional, o modo de tratar o tema e o movimento da acao permite distinguir 0 conto, a novela e 0 romance: + quanto a estrutura, 0 conto trata um tinico tema, enquanto a novela e romance apresentam aces ou enredos paralelos; + 0 conto concentra a aco, tornando-se sintético, enquanto a novela e o romance sao mais analiticos a0 decomporem as situagées ficcionais; + numa perspetiva quantitativa, o conto é mais breve € rapido que a novela esta mais breve e menos demorada e complexa nas andlises que 0 romance. Mais antigo que o romance e a novela na histdria da literatura, o conto surge, no inicio, na forma oral e popular; na Europa, adquire o estatuto de escrita lterdria a partir do século XIV, com Boccaccio e com os arabes que habitam o Sul da Peninsula Hispanica. y ! " Grandes autores portugueses e universais cultivaram este género narrativo, Basta lembrar Eca de Queirés, Miguel Torga, Sophia de Mello Breyner Andresen, Mia Couto, Isabel Allende e outros, para além dos que Sao objeto de estudo neste capitulo. Personagem Ver p.214. Concentracao de tempo e espace § Tempo i 2 Otempo éa categori: da narrativa diretamente associada quer dimensao temporal da a¢ao (dominio fe ‘enunciacao (forma como a historia € representada). Pode ser analisado sob €specifico da historia) quer 4 Quatro angulos distintos: 320 ———————— ‘ye de enquadramento 2 acao. histérico Refere-se 3 época ou ao momenta historico que serve de end Tempo histori Resulta do tratamento do tempo cronolégico pelo narrador, que pode apresentar os acontecimentos + segundo a ordem pela qual aconteceram (linearmentel + alterando a ordem temporal Tempo da narrativa — snalepse (ou flashback) recuando no tempo 1u tempo narrativo (ieee » prolepse: avangando no tempo; > elipse: omitindo acontecimentos: » sumario: resumindo/condensando acontecimentos: > pausa: interrompendo a historia para apresentar descrigoes e/ou comentarios, Refere-se 8 forma como as personagens vivenciam 0 tempo, de acordo com 0 seu estado Tempo psicolgico jon Espaco A ras. O espago ¢ a categoria da narrativa que estabelece a articulagao funcional das restantes categorias, Pode ser concebido em termos fisicos, socials e psicolégicos. Local geogrético onde a acéo se realize, podendo ser constituido por referencia a lugares Espaco fisico interiores ou exteriores, reais ou fcticios. ‘Ambiente/meio social em que a acao se desenrola, sendo configurado em funcao da pera so! presenca de personagens-tipo e de figurantes. Espaco psicolégico —_Atmosfera/espaco que evidencia os pensamentos e as reflexdes de uma personagem, ConteUdos essenciais Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia” . Introducgao Manuel da Fonseca (1911-1993) foi um dos pioneiros da poesia neorrealista, embora tenha sido no género conto que encontrou a expressao mais adequada para veicular 0s conflitos sociais provincianos na dura vivéncia alentejana. ’ Publicado em 1953, 0 Fogo eas Cinzas, considerado o livro que espelha a maturidade literdria do autor, apresenta onze contos ancorados no ambiente rural alentejano, sendo o décimo ~"Sempre é uma compa nhiat - uma comovente narrativa em que o tema da questo social, tdo querido aos neorrealistas, marca presenca importante. b, Resumo do conto Batola, apelido de Anténio Barrasquinho, é 0 ocioso proprietario tregue a uma vida de monotonia e de solidao, e que tem na sua mull @ 05 negécios. Como tantos outros casamentos, também aqui nao ha vitima de violéncia fisica nos dias em que Batola nao conse aquela mulher tao determinada. Naquela modorra de ser de uma venda (café) no Alentejo, en- her o pilar que sustenta o casamento ternura nem carinho, sendo a esposa ‘gue encarar a humilhacao que sente perante ‘mpre, Batola vai relembrando o velho Rata, 2 Contos mendigo que percorria outras terras e elo mundo. No entanto, apés o suiciai perdidas (ganhas?) a ouvir 0 mendigo Porém, tudo muda quando um carr que voltava venda rico em novidades que faziam 0 Batola viajar io do Rata, jé s6 resta ao dono da venda relembrar as tardes inteiras © evitar enfrentar aquela vida de "sonoléncia pegada”. ; 0 para em frente a venda e traz a novidade da telefonia, a caixa que vai alterar a vida nao s6 do casal como de toda a aldeia, Apesar da oposicao inicial da mulher do Batola, ‘numa postura firme que surpreende pela situagao de violéncia vivida, que nao permite a compraa crédito (assinar letras”), Batola, habituado a receber ordens, impde-se e a telefonia fica um més “a ‘experiéncia”. Os habitantes, que geralmente voltavam para as suas casas apés 0 extenuante dia de trabalho, encontram-se agora na venda e ouvem as noticias da guerra, comentam assuntos, ouvem misica, as mulheres dancam. Num més, a aldeia conhece uma dinamica social nunca antes vista. Da clausura, do iso- lamento fisico, mas principalmente social, passou-se para um convivio salutar e as transformagées indivi- duais também ocorreram, Be ice tits 4 sldeia de Alcarta muda. Nas tarnbléi Batola ke pébsod 8 debilor cede a atender os clientes na vendl a vaticinar sobre os assuntos da guerra. Ao fim de um més, a aldeiatinha “um sopro de vida’ nunca antes sentido e Batola tinha conquistado a admiracdo da mulher. Assim, a telefonia fica, por- que ‘sempre é uma companhia” naquele deserto, ¢. Caracterizacao das Personagens e relacao entre elas Com um nuicleo reduzido de personagens, este conto apresenta ao leitor velhos ceifeiros, condenados exclusao social quer pela pobreza quer pelo esquecimento, ¢ cuja existéncia sofre uma reviravolta coma chegada da telefonia, O aparecimento daquele vendedor com aquele aparelho vai ser a forca motora que desencadeia a mudanca de toda uma aldela. Anténio Barrasquinho, 0 Batola Apresentado desde logo como preguicoso, este homem “atarracado", de “pernas arqueadas” e com “a cara redonda amarfanhada num bocejo" é 0 arquétipo da ociosidade, de olhos “semicerrados” para nao enxergar a monotonia da sua existéncia Bebendo muito (exceto as refeicoes),Batola arrasta-se na venda, numa existéncia entediante e que foi suavizada até a morte do Rata, Incapaz de tomar uma posicdo face a atitude controladora da mulher, Anténio afoga a sua impoténcia 2 sua humilhacao no vinho, acabando por agredir a mulher, situacao bem conhecida por todos na al- deia e que dura ha ja 30 anos. Pela primeira vez, assume uma atitude assertiva quando resolve ficar coma telefonia, ainda que contra avontade da mulher, e altera 0 seu comportamento a partir daf — torna-se ativo e enérgico. ‘Ao fim de um més, consegue a admiracao da mulher que, ‘com uma quase expressdo de ternura’, Ihe da a possibilidade de escolher se ficam com 0 aparelho ou nao. Mulher do Batola Responsivel pela organizacio de toda a logistica da venda, contrastafisica e psicologicamente com 0 marido, visto que nao s6€ ‘muito alte, grave com] um rosto ossud’, como possi ‘um sossego de manei- ras que se vé logo que é ela quem alipée edisp6e".Enérgica, por oposicao ao laxismo do Batola, dedica-se }. a lida doméstica depois de “avialr) aquela meia diizia de frequeses de todas as manhazinhas’. F indiferente & argumentacao do vendedor, esta mulher ameaca Batol, afirmando, num tom vagaroso e {que o marido terd de escolher entre ela ea telefonia, confiante, . & Capitulo mt - Educogdo Lileraria «12 0 més, 3 experiéncia ~,a figura fe = ynia durante um ora a tue a leva, nofinal, a abandonar do seu marido, 0.4 nservar ou nao a telefonia, Ao aceitar a proposta do vendedor - ficar c« = minina esta, sem o saber, a permitir a transforma¢ao en ‘seu tom superior ea pedir ao Batola que tome a decisao de c Velho Rata a it jicagdo do dono da venda com o Companhia habitual de Batola, esta figura marginal permitia a comunicagao do dot mundo, visto que trazia novidades que evitavam o seu alheamento. Incapaz de enfrentar 0 imobilismo que o reumatismo Ihe impos, sui aldeia, ida-se, atirando-se para a ribeira da Vendedor e Calcinhas Persuasivo como todos os vendedores, instala 0 confflito no casal, ja que a mulher do Batola ¢ avessa compra da telefonia, Com malabarismos linguisticos, conseque agradar ao casal e acaba por instaurar a mudanca. O aju- dante, Calcinhas, é uma figura que assiste passiva a encenagao do vendedor. Ceifeiros e habitantes da aldeia Habituados a uma vida dura e estéril, os inicialmente tristes e sorumbaticos ceifeiros passam a juntar-se a0 final do dia, na venda, para ouvir a telefonia e afastar a solidéo permanente das suas vidas. Ao olhar para as personagens, facilmente se parte para o estudo das relagdes que entre elas se estabe- lecem. Pela analise do casal, aborda-se o tema da repressao sexual a que as mulheres nas décadas de 40/50, sobretudo num ambiente provinciano, estavam sujeitas. Apesar de ditar as leis quanto a organizacao da casa e da venda, a mulher de Batola era vitima de vio- léncia fisica e estava submetida ao poder varonil de quem descarrega as frustracées da sua solidao perma- nente na pessoa com quem partilha essa mesma existéncia solitéria, O equilibrio é atingido quando a mulher observa as transformagGes que se operaram em Batola durante o periodo de experiéncia da telefo- nia, dirigindo-se de forma conciliadora ao seu marido. Entre este casal e 0s habitantes da aldeia hd uma relacdo distante, devido a ardua vida dos ceifeiros no campo, que Ihes tira a vontade de conviver no fim de mais um dia de jornada, No entanto, a partir do dia em que telefonia se instala na venda, tudo se altera e o convivio é evidente, d. Solidao e convivialidade Num espaco rural mitificado no imaginario neorrealista de Manuel da Fonseca enquanto lugar de frus- ‘racdo, movimentam-se personagens pobres, personagens marginais (0 relembrado Rata), mas, acima de tudo, movimentam-se personagens solitarias, inadaptadas & triste realidade em que vivem, A apresentasao inicial do Batola pinta logo essa preguica existencial que domina o dono da venda, cansado do tédio, derrotado por viver em solidéo permanente. “Espreguica-se, boceja e arrasta-se até @ Caixa delata enferrujada” para mediro café “a olho, um olho cheio de tédio, caido sobre o canudinho de papel!” Esta “sonoléncia pegada’ é ainda pior no verao, quando os dias sdo longos e a solidao maior. Ao Batola resta relembrar as historias que o velho Rata Ihe contava, enquanto se arrasta para o exterior da casa, depois de dormir a sesta, para olhar para a mesma paisagem carregada de siléncio profundo. Os ceifeiros regressam a casa jé bem de noite, na tarde em que a telefonia passa a reinar, todo “noticias da guerra’: : “cansados da faina”, e nem passam pela venda. Contudo, todos acodem a venda, com um “olhar admirado’, para OUvIF Tudo muda entao: nessa noite, jantam a pressa e voltam a venda e assim fardo nos dias seguintes, deslumbrados Por essa stibita ligagao ao mundo, por saberem ‘o que acontece fora dali”, sen- tindo que “ndo estdo jd tdo distantes as suas pobres casas’. A animacao reina na pequena povoacae e 0s dias passam to velozmente que nem percebem que o periodo de experiéncia esta a terminar. © desanimo regressa ~ como enfrentar novamente a realidade do abandono e da solidao depois de dias tao intensa- mente partilhados? “lam todos, de novo, i a recuar para muito longe, Id para o fim do mundo, onde sempre tinham vivido e. Caracterizagao do espaco: fisico, psicolégico e sociopolitico Ancorado no Alentejo rustico, simples e em decomposigao dos anos 40 e 50, com gente pobre e que assistia distante aos pasos lentos do progresso, é inevitavel recuar no tempo e enquadrar este conto no contexto histérico-social. Espagofisico Aldeia de Alcaria, com “quinze casinhas desgarradas e nuas’, rodeada pela “solidao dos campos". | Alteracdo do comportamento das personagens apés a instalagao da telefonia: > autoritaria e oponente 8 compra da telefonia, a mulher do Batola revela possuir densidade psicol6gica, ja que, ao fim de um més, faz um pediido submisso ao marido. A mulher respeita agora o“novo"Batola; » ocioso e letargico, Batola torna-se ativo apés a chegada da telefonia que o arranca da sua solidao; Espaco. psicolégico » 05 ceifeiros, outrora solitarios e condenados a uma existéncia érida, encontram naquele pequeno aparelho a esperanca de comunicagéo como mundo. Espaco social _Espaco rural pobre, duras condigbes de vida dos ceifeiros, alheamento social e falta de informacao. f.Importancia das peripécias inicial e final Este conto apresenta dois momentos estruturantes para o universo diegético: 0 aparecimento da tele- fonia e a manutencao (inesperada) deste aparelho. Num primeiro momento, é descrito 0 espaco fisico em que as personagens se movem, caracterizado pela pobreza, mas essencialmente pela clausura face a0 mundo. Também a caracterizacao das persona- gens é crucial, sobretudo a psicol6gica, para que se possa entender a evolucao tanto de Batola como da sua mulher face a situacdo desencadeadora do conflito, porém também da mudanga, anunciada pela voz omnisciente do narrador nao participante ~ “E, sem pressentir que aquela noite é a véspera de um extraordi- nario acontecimento, Id se vai deitar Batola, derrotado por mais um dia”. Neste sentido, antes da presenca da telefonia, a existéncla daqueles homens e daquelas mulheres era marcada pela aridez, por uma vida de trabalho e de alheamento da realidade. No entanto, tudo muda num més ea aldeia transfigura-se, resultado da alegria que marca o convivio entre aquelas pessoas de sempre, Fembora sempre desconhecides. O café acaba por ser epicentro de um universo onde se encontram his- F térias mais ou menos picarescas, mais ou menos draméticas, mas onde ha, acima de tudo, 0 abrir-se ao = outro, numa espécie de neorrealismo universal que coloca o ser individual num plano que aponta para a = realizaco do ser coletivo. ) ; Maria Judite de Carvalho, “George” a. Introdugao Nascida em Lisboa, em 1921, local onde também faleceu,, 2 b 3 pela profundidade de uma obra que aborda as grandes questoes da vida, com em Seta Despedida (1995), tao bem retrata. em 1998, Maria Judite de Carvalho destaca-se= 0 conto "George", inserido b, Resumo do conto Através de uma persuasiva técnica narrativa assente em “flashes” cinematograficos, ler "George" ¢ ler 0 percurso de uma figura ao longo das trés etapas da vida, acompanhando as naturais transformacdes ocor- ridas ao mesmo tempo em que se mergulha na solidao da existéncia de um ser para a morte’ Numa primeira sequéncia narrativa, é esbocado o retrato fugaz de uma jovem cheia de sonhos e de ambicdes que esbarram nos projetos tracados pelos seus pais e que passam por um casamento tradicional © por uma vida sossegada. Contudo, Gi, assim se chama a jovem, tem na liberdade o seu porta-estandarte, dai renunciar ao noivo e a uma relacao duradoura. As mudangas constantes de /ook ou a vontade de alugar casas jé mobiladas sao a expresso dessa vontade de ser independente e de nao estar presa a convengbes nema espacos. Assiste-se, depois, num segundo momento, ao didlogo entre duas mulheres, facilmente identificadas - a Gi da juventude dialoga agora com a adulta George. Esta identificacao € pressagiada pela pergunta que George coloca a jovem sobre se ainda desenha, ao que esta responde que tem ‘jeitinho’, ou ainda pelo beijo (que nao o é efetivamente) trocado na despedida. O comboio chega e George despede-se do seu passado, embarcando numa viagem ao fantasma do futuro. Assim, esboca-se 0 retrato de uma idosa com quem George conversa - a terceira etapa da vida, O ciclo completa-se e a foto que acompanhava a jovem Gi é a mesma que agora aparece, com 0 pormenor dos 6culos referidos no inicio. O reencontro com as memérias do passado, personificado em Gi, o conflito interior na adulta George ou a solidao profunda que envolve Georgina constituem 0 universo ficcional deste conto trespassado por uma viséo desencantada da realidade através de uma personagem fragmentada colocada perante a situa- do-limite da sua existéncia. As trés idades da vida e 0 didlogo entre rea lidade, memoria eimaginagao As trés idades da vida humana so também as trés vidas da personagem feminina: a vida vivida, a vida que se vive, a vida a viver. Sobressai, nos didlogos estabelecidos, a solidao do abandono pressagiado pela personagem. Ao percor- rer a sua vida como se de um éllbum de fotografias se tratasse, George evoca a meméria no seu reencontro com o passado representado na juventude irreverente de Gi, Este reencontro faz aflorar as recordacdes do tempo em que tudo era possivel e em que nao havia limites para os sonhos que desafiam as fronteiras das Convengdes sociais. O confronto com aquela ‘cujo nome quase quis esquecer, quase esqueceu”, ou seja, Gi reaviva a memoria de quem procurou sempre fugit da vila no ‘cu de Judas’, mas também de #l propria. AO regressar da cidade, regressa a um outro “eu’, jovem e preso as convengées sociais, para ee a nao pode ser mais do que um hobby para o verdadeiro trabalho que éserdoméstica, Mas a Jovem Inguleta melariprfoseow-se na reconhecida fntata George, pseucténimo de afmaall (feminina?) num mundo predominantemente masculino. E no. auge da ete tits itrora jovem Gi concretiza os seus desejos de autonomia ao morar em casas jé mobiladas ou « oat ae George recusou ser igual a tantas outras mulheres daquela vila, daquela época. Abandonou 0 seu petit nom (diminutivo), abandonou convengoes, desatou lagos afetivos e tornou-se dona de si mesma. Mas messe Feencontro com o passado anuncia-se a melancolia da dor da perda de que a viagem de comboio € metafora concreta — a janela, George vé o pasado ficar para tras. ‘ Ea partir do momento presente que a figura feminina convoca o mundo da imaginacao, que, curiosa~ mente, transporta um nome bem real: Georgina. A velha que ja ndo pinta (convém relembrar que “George detesta eufemismnos’, dai recusar a palavra idosa), que tem as economias no banco e que olha com calma desesperanca o silencio fatal, é, afinal, 0 paradigma da condigéo humana: a vida corre inexoravelmente paraa morte. A fragmentacao do ‘eu revela, entao, 0 profundo vazio que jé se anunciara na voz de um dos amores fugazes da personagem, quando Ihe aponta que o desapego nao passa de uma mascara, porque, em suma, “toda essa desertificacdo” é produto do esforco e do sofrimento. d. Metamorfoses da figura feminina As trés idades da vida humana sao também as trés vidas da personagem feminina: vivida, em vivéncia, aviver. Embora apresentada em pinceladas breves, a jovem que caminha com George tem “dois olhos largos, semicerrados, uma boca fina, cabelos escuros, lsos, sobre um pesco¢o alto de Modigliani” ~ 0 pintor italiano célebre pelos retratos femininos com rostos e pescocos alongados. Oretrato esbocado é de Gi, uma jovem irreverente como todos os jovens de 18 anos, que mora numa vila pacata. Com tendéncia artistica, no dominio pictérico, Gi rebela-se contra o poder paternal, que espera dela uma existéncia quotidiana, tal como a deles. Ao sair de casa e da vila, Gi esta a abandonar ndo sé os Pals ¢ os planos que estes tinham projetado para ela, bem como o noivo e o enxoval. Ela quer subverter esteredtipos e ser uma mulher livre e independente, Recusa a vida convencional e a falta de loucura saud4- vel do noivo, cujos planos passam por “comprar uma terra, construir uma casa a seu modo’. George, que vive em Amesterdio, 6 uma aclamada pintora nos marchands das grandes cidades euro- elas que preza a liberdade e que vive entre caras malas de rodinhas, que Ihe possibilitam a mobilidade que ela tanto preza e sao tao distantes da “velha mala de cabedal riscado” que usou quando partiu da casa Paterna. Um dia regressa, ao fim de vinte anos, vila onde morou para vender a casa de familia que rece- beu de heranga e a qual associa a velhice ea clausura, George quer enterrar 0 seu passado e rejeita liminar- mente a estabilidade que essa casa parece proporcionar. A pintora cultiva o alheamento social, recusa lacos ou objetos que a prendam, que a oprimam, dai nao ter mobilia propria, para poder, em qualquer momento, partir. mesmo se pode dizer das suas relacdes fugazes - “Teve muitos amores, grandes e néo tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se, divor. ciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes?”", Georgina, a par das outras figuras ja referidas, tem tracos indefinidos, no entanto, o seu sortiso € dis- tinto do da jovem Gi, pois Georgina ronda os 70 anos de idade e esta consciente da inexorabilidade da Morte. Ao contrdrio da jovem Gi, esta figura que viaja no comboio com George nao tem planos, nada es- Pera e tem apenas a certeza da soliddo que a todos espera, Se tivesse ouvido George falar sobre as econo. mmias guardadas no banco e que sao, na perspetiva da mulher de 45 anos, a garantia de que nao se esté s6, certamente teria esbogado um sortiso condescendente de quem sabe que a aridez da existéncia nao se preenche com valores materiais: “o dinheiro no banco", Assumindo-se como arauto da sabedoria, a velha anuncia a George que no futuro moram a solidao ea [melancolia. Como facilmente se compreende, as naturais metamorfoses fisicas acarretam, necessariamente, meta- [morfosespsicoldgcas desde a ingenuidade puede Gi, passando pela segurancaaltva de George, culminar na solidao de Georgina. até Coptlo M: Edvcobo Lies 12° one ynagem NO mesmo sentido da estetica pes. sol ntagao. No au! didlogo poli construgao da per ige da su2 vide, 2 Personagem Neste sentido, & possivel entender a fonico que & simultaneamente, eae e soana, em que a multiplicacao implica a dolores foes ancia nul chcontra-se com os fantasmas da sua propria existence : jsteza interior. uma despersonalizacio exterior de uma profunda tristeza int e. Acomplexidade da natureza humana pela inquietacao € pela profunda consciéncia da A solidao é presenca indelével num conto marcado passagem do tempo e do vazio da existéncia. Na sequéncia de abertura, a pintora deambula ; eco perfeito de quem perdeu o rumo na vida enquanto erta nesse © ae : os projetos, 7 ae da jovem Gi acabam por redundar na yelhice de Georgina, vivida no refugio de uma casa alugada e mobilada. De nada valeu a mascara social de um nome sonante rodeado de malas reves e de uma vida sem lacos afetivos nem materiais, porque nada pode Raval 2 passagem inexoravel do tempo. A velhice, °o unico crime sem perddo” do qual George tanto tentou fugir, éa terceira e derradeira etapa da existéncia humana e nem uma vida de isolamento e de desprendimento conseguem travar esta certeza inabalavel. ‘Avontade de George em saldar as contas ¢ do passado, com a jovem subversiva e transgressora, que relembra, a custo, 0 pasado em que as escolhas foram feitas. © encontro com o fantasma do futuro, a velha Georgina, éa certeza de que a condicao de exilio que a personagem para si escolheu ao negar casas proprias, mobilias ou bibelots que carregem recordacées icada’, tao arida quanto os quartos e as casas alugadas. la vila da sua infancia/Juventude ¢ ess erranciaé 0 minho para casa, com o seu passado é também o reencontro com as memérias mas também com a idosa incapacitada de pintar e levou a uma existéncia “deser encontro com encontro com opassado co futuro, Pe mune mulher idosa sonhadora desencantada As trés fases da vida humana b. Recursos expressivos f Ametafora O.uso expressivo Aironia _ Aenumeracao do adjetivo nunca bebe durante as | “Muito alta, grave, um para alifica com um = refeigoes’:apesat de | rostoassudoeum “Sempre éuma “Agora para aliestd, 0 olhar mortico: companhia’ | diante doco ye _| oadjetivorealaa | Deber bastante, Batola | sossegode maneiras foo tern 5 : imatande 2 fee: ndo ingere vinho que se vé logo que é “um suspiro inércia de Batola. f q Guando éconvencional ela quem ali poe e estrangulado sai-the , dispoe’: das entranhas € fares : caracterizacio fisica engrossa até se | ‘ e psicolégica da alongar’:a metafora a : her de Batola - esté a0 servigo da jeqoulher de Batola caracterizacao de oustetae Batola. determinada “George” “Oesquecimento *Calore também “Eelesacham que tenho | “teve muitos amores, dexeusobreambas’: | aquelaaragemmacia | multojeitinho, quehei | grandes e nao tanto, através da metéfora, | ecomoqueredonda, deumdiaseruma boa casos divorciou-se, acentua-se a de forno aberto” senhora da vila, uma _partiu, chegou, voltou dissolucéo do “Trazem ambas | esposa exemplar, uma | apartire a chegar, passado, vestidos claros, | mae perfeita, tudoisso quantas vezes?’: amplos’: com muitojeito parao__enumeracao breve caracterizagaodo | desenho":forma irénica do que foi a vida de ambiente e da como George encaraas George. indumentéria expectativas dos pais | face ao seu futuro. Sintese de conteddos CONTO Unidade de aco | previa 2 Concentracao. Concentragao | Numero limitado le narrativa de espaco de tempo ‘ de personagens “Sempre é cu) Atransformagio Espaco rural da Alusioaum periodo | Anténio Barrasquinho companhia operada na vida de aldeia de “Alcaria’, de um més, do qual_| (0 Batola);a esposay uma pequenaaldeia coma “venda” do sio relatados a os habitantes da alentejanaapartirda —_Batolae “quinze “vésperae a "tarde”da | aldeia; o vendedor instalacao da telefonia | casinhas desgarradas | chegadadoaparelho | eo seuajudante navendadoBatola. __ enuas',esquecidas__e, depois,a decisio de | (Calcinhas). | Na “solidao dos manter a telefonia. E* Poe | campos”. “George” | Aviagem pelas trés Referénciaa “longa | Alusao a dois dias: Amesma figura idades da vidae rua" da juventude de __ 0 dia em que George | triptica: areflexdo sobre a George e 20 comboio | regressa a casa da | Gi; ‘complexidade da quealevaa | familia e 0 dia George: natureza humana. Amesterdao. | seguinte, quando Georgina. | regressaaAmesterdao | (‘Amanha'). Exercicios resolvidos Exercicio 1 a5 suas respostas aos Leia com atengdo 0 texto que se segue. Apresente, de forma clara e bem estruturada, Postas aos itens. o Batola esti tao desalentado como os ceifeiros. O més passou de ‘a mulher. Sobe ao balcao, desliga 0 fio e ueadas, com 0 chapeirao a Dentro da venda, tal modo veloz que se esqueceu de preparar arruma o aparelho. Um pouco dobrado sobre as pernas ard : encher-lhe a cara de sombra, observa magoadamente a preciosa cabxa. |, Assim esta, quando um pressentimento 0 obriga a voltar a cabeca: que dé para os fundos da casa, a mulher olha-o com um ar submisso, “Qui ido?" pensa o Batola, admirado de a ver ainda levantada aquela hora. ~ Ant6nio - murmura ela, adiantando-se até ao meio da venda. - Eu queria pedir-te junto da porta fe tera aconte- uma coisa... ‘0 Suspenso, o homem aguarda. Entao, 08 olhos negros brilham com uma quase expressdo de ternura: | ~ Olha... Se tu quisesses, a gente ficava com o aparelho. Sempre é uma companhia neste deserto. cla desabafa, inclinando 0 rosto ossudo, onde Manuel da Fonseca, “Sempre é uma companhia’ in O Fogo eas Cinzas, Caminho, 2000, 1. Aponte trés tracos caracterizadores da personagem Batola, justificando com expressées textuais. Sugestdo de resposta Percurso de resposta Batola esté desanimado ("tdo desalentado como os ceifeitos", porque o més de + Identificagio dos tracos experiéncia da telefonia passou velozmente e é chegado o dia de o devolver. caracterizadores e justificacao ‘Assim, apresenta-se resignado no momento de desligar 0 aparelho ~ “observa textual, ‘magoadamente a preciosa caixa’. Porém, fica expectante quando observa o vulto da mulher, a grande contestataria da aquisicdo deste aparelho, interrogando-se sobre o porqué do seu ar submisso ("Suspenso, 0 homem aguarda’) 2. Analise 0 efeito expressivo do recurso a0 tom coloquial na linha 12, no pedido que a mulher dirige a Batola, ae ugestdo de resposta eee ‘Ao recorrer a um tom coloquial no pedido que a mulher faz a Batola, o autor est a conferir credibilidade ao seu texto, + Identificagao do registo coloquial. + Explicacdo da intencao do recurso Desta forma, a uilizagao da expressio “a gente’, intensifica a verosimilhanca do 20 registo coloquial ual. seu regsto,colocando uma expresso popular na voz de uma mulher do povo, simples e humilde, que se expressa sem artificos. : eres resoidos 3. Aluz da leitu ra integral do cor ; 3 momento, nto, explicite a relagdo que se estabelece entre Batola e a sua mulher nest Sugestio de resposta i Percurso de resposta No inicio da ago, é apresentado parece ter entre si He ume ecto! Um casa que poucos ago afetvos + Explcitacdo da elagao distante e fia ones peace ramen lstantee fra, em que os papéis entre ambos no inicio do conto, com todas as decides que czem respond ee a emia el deta apneic Batola a tudo assiste, submis fominante. te, submisso, embora a viléncia fisica seja uma realidade em _ « Inversio dos papéts, com a mulher a dias de bebedeira, ser submissa ea pedir algo a Batola No eran, no exert apes qu conespae ao deseo dain hi uma clara inversio de paps visto que a mulher qu se apresenta solos, pedindo, 20 invés de impor ou de exigir, a0 seu marido que mantenha a telefonia, porque “Sempre é uma companhia neste desert: Exercicio 2 Leia com atengao 0 texto que se segue. Apresente, de forma clara e bem estruturada, as suas respostas aos itens. AA figura vai-se formando aos poucos como um puzzle gasoso, inquieto, informe, Vo-se um pedacinho bem nitido e colorido mas que logo se esvai para aparecer dai a pouco, nitido ainda, mas esfumado. George fecha os olhos com a forca possivel, tem sono, volta a abri-los com dificuldade, olhos de pupilas escuras, semicirculares, boiando 5 num material qualquer, esbranquicado ¢ oleoso. ‘A sua frente uma senhora de idade, primeiro esbocada, finalmente completa, olha- -a atentamente. De idade nao, George detesta eufemismos, mesmo s6 pensados, uma mulher velha. Tem as maos enrugadas sobre uma carteira preta, cara, talvez italiana, italiana, sim, tem a certeza, A velha sorri de si para consigo, ou entao partiu para qual- quer lugar e deixou o sorriso como quem deixa um guarda-chuva esquecido numa sala de espera. 0 seu sorriso no tem nada a ver com o de Gi ~ porque havia de ter? sdo como o dia e a noite. Uma velha de cabelos pintados de acaju, de rosto pintado de varios tons de rosa, & certo que discretamente mas sem grande perfeicao. A boca, por exemplo, est um pouco esborratada. ‘Sem voz e sem perder 0 sorriso diz Vert que ha de passar, tudo passa. Amanha é sempre outro dia. S6 hd wma coisa, um crime, que ninguém nos perdoa, nada a fazer. Mas isso ainda estd longe, muito longe, para qué pensar nisso? Ainda ninguém a acusa, ainda ninguém a condena, Que idade tem? ~ Quarenta e cinco anos. Porqué? _ E muito nova - afirma. - Muito nova, - sinto-me velha, ds vezes. ~ £ normal, Eu tenho quase 70 anos. Como estava a chorar, pense Encolhe os ombros, responde aborrecida: ws Nao tive desgosto nenhum, nenhum. Um encontro, um simples encontro.. Maria Judite de Carvalho, “George? in George e Seta Despedida, Porto Editora, 2016 opi = EccocBo rie 12° ono ceorge dialogs nina com quem é 40 da figura femin 1. Explicte a técnica presente na apresentagao ' + percurso de resposta « apresentacio da figurasegundouma, _ a _ Bxplictagéo da intencdo do narrador sogestio de espasta A fgraeminina com quer George dloe ciemotogeins camo pz que pauatment “prmeraesborata nent comple” ee a " sta figura ‘ho recorrera esta ténica, a vor narrativa adensa 0 mistério sobre “velha’de mios enrugadas ecu somrso eausente to “como quem delxa umn guarda-chuva es. 2. Comente a expressividade do recurso a comparagao no segmen quecido numa sala de espera” .10-. Sugestio de resposta : Percurso de resposta través do uso da comparacéo,¢fita uma analogia com um acontecimento_—_«.Expicitagdo.do uso da comparacéo | ao servigo da caracterizagao da figura banal, quoticiano, como ode abandonar um quarda-chuva que jé nao é necesséria, por exemplo,esquecido em algum lugar. De facto, sortso da velha parece esquecido naquele roto, como seo seu es aC0 interior estve desligado do fisic, abandonada que estava as sus refexdes. feminina de 70 anos. 3. Tendo em conta a leitura integral do conto, analise a importancia das palavras que a velha dirige a George. Percurso de resposta ‘Ao ver George a chorar,a figura feminina olha-a atentamente e acaba por the + Andlise das palavras da figura dirigir a palavra, dando conselhos tipicos de quem & mais velho ejé tem um saber: feminina enquanto pessoa mais feito de experiénci dizendo-the que “Verd que ha de passa, tudo passa. Amanhdé : velhae mais experiente, que tenta dar conselhos de vida a George. Sugestéio de resposta sempre outro dia’ Assn, ps 0 encontro com ajovem Gi, no momento em que regress ao seular para « Identificacdo desta figura como vender, George encontra-se agora com ofantasma dofuturo, metonimicamente | sendo George na idade madura. representado nesta velha, que jé no possul os sonhos da juventude nem sequer 2a certeza obstinada da independente George, ber-sucedida profssionalmente, ‘mas soltaia, Representa o que esta reservado & protagonista, se mantiver o seu ‘comportamento,

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