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OEU EOID (1923) TITULO ORIGINAL: DAS ICH UNO DAS ES, PUBLICADO PRIMEIRAMENTE EM VOLUME AUTONOMO: LEIPZIG, VIENAE ZURIQUE: INTERNATIONALER PSYCHOANALYTISCHER VERLAG [EDITORAPSICANALITICA INTERNACIONAL], 1920, 7? PP. TRADUZIDO DE GESAMMELTE WERKE Xill, PP. 237-89; TAMBEM SE ACHA EM STUDIENAUSGABE III, PP. 273-330. QEVEOID Estas consideragGes retomam um curso de pensamentos que iniciei em Além do principio do prayer (1920), pensa~ mentos que eu proprio olhava com certa curiosidade be- névola, como lA afirmei. Elas lhes dao prosseguimento, ligam-nos a diversos fatos da observagio analitica, procu- ram deduzir novas conclusées a partir dessa relacao, mas nao fazem novos empréstimos a biologia, e por isso estao mais proximas da psicandlise do que aquela obra. Tém antes o carater de uma sintese que de uma especulagao, parecem ter se colocado uma meta elevada. Mas sei que no ultrapassam 0 que é apenas aproximativo, e aceito in- teiramente esse limite. ‘Ao mesmo tempo, tangenciam coisas que até agora nao foram objeto da elaboracao psicanalitica, e inevitavelmen- te tocam em algumas teorias que foram enunciadas por nao analistas ou por ex-analistas, ao se afastarem da psica- ndlise. Sempre estive disposto a reconhecer as dividas para com outros pesquisadores, mas neste caso sinto que nao carrego tais dividas. Se até agora a psicanlise nao apre- ciou certas coisas, isto nao aconteceu por ignorar-lhes os efeitos ou querer negar-lhes a importancia, mas porque se- guiu um caminho determinado, que ainda nao tinha leva- do aquele ponto. E, por fim, chegando até ali, as coisas Ihe aparecem também de forma distinta do que para 0s outros. 1. CONSCIENCIA EINCONSCIENTE Nesta seco introdutéria nao ha nada de novo a dizer, e | CONSCIENCIAE INCONSCIENTE nao ha como evitar a repetigao do que ja foi dito antes com alguma frequéncia. A diferenciagao do psiquico em consciente e incons- ciente é a premissa basica da psicandlise e o que lhe permite compreender e inscrever na ciéncia os proces- sos patolégicos da vida psiquica, tao frequentes e im- portantes. Dizendo-o mais uma vez e de outra forma: a psicanilise nao pode pér a esséncia do psiquico na consciéncia, mas é obrigada a ver a consciéncia como uma qualidade do psiquico, que pode juntar-se a outras qualidades ou estar ausente. Se eu pudesse imaginar que todos os interessados em psicologia leriam este trabalho, esperaria que ja neste ponto um bom niimero de leitores parasse e nao seguisse adiante, pois aqui esta o primeiro xibolete* da psicanilise. Para a maioria daqueles que tém cultura filoséfica, é tao inapreensivel a ideia de algo psiquico que no seja tam- bém consciente, que lhes parece absurda e refutavel pela simples légica. Acho que isto se deve ao fato de nao terem jamais estudado os pertinentes fenémenos da hipnose e do sonho, que — sem considerar o dado patolégico — obri- gam a tal concepgao. A sua psicologia da consciéncia é in- capaz de resolver os problemas do sonho e da hipnose. * “Xibolete. s.m., sinal convencionado de identificagao; senha. Do hebr. shibolech, ‘espiga’, palavra através de cuja proniincia os soldados de Jefté identificavam os efraimitas, que a articulavam como siboleth” (Dicionério Houaiss da Lingua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001). [As notas chamadas por asterisco e as interpolagdes as notas do autor, entre colchetes, so de autoria do tradutor. As notas do autor sio sempre numeradas.] 5 OEVEOIO “Estar consciente” é, em primeiro lugar, uma ex- pressao puramente descritiva, que invoca a percep¢ao imediata e segura. A experiéncia nos mostra, em se- guida, que um elemento psiquico — por exemplo, uma ideia — normalmente nao é consciente de forma dura- doura. E tipico, isto sim, que o estado de consciéncia passe com rapidez; uma ideia agora consciente nao o é mais no instante seguinte, mas pode voltar a sé-lo em determinadas condigées faceis de se produzirem. Nesse intervalo ela era ou estava — nao sabemos 0 qué. Pode- mos dizer que era /atente, com isso querendo dizer que a todo momento era capaz de tornar-se consciente. Ou, se dissermos que era inconsciente, também fornecere- mos uma descri¢ao correta. Este “inconsciente” coinci- de com “latente, capaz de consciéncia”. E certo que os filésofos objetariam: “Nao, o termo ‘inconsciente’ nao pode ser usado aqui; enquanto a ideia estava em estado de laténcia nao era nada psiquico”. Se j4 os contradis- séssemos neste ponto, cairiamos numa disputa pura- mente verbal, que a nada levaria. Mas nés chegamos ao termo ou conceito de incons- ciente por um outro caminho, elaborando experién- cias em que a dindmica psiquica desempenha um papel. Aprendemos — isto é, tivemos de supor — que existem poderosos processos ou ideias psiquicas (e aqui entra em consideragao, pela primeira vez, um fator quanti- tativo, e portanto econdmico) que podem ter, na vida psiquica, todos os efeitos que tém as demais ideias, in- cluindo efeitos tais que por sua vez podem tornar-se conscientes como ideias, embora eles mesmos no se 16 | CONSCIENCIAE INCONSCIENTE tornem conscientes. Nao é necessdrio repetirmos em detalhes o que j4 foi exposto com alguma frequéncia. Basta dizer que aqui aparece a teoria psicanalitica, afir- mando que tais ideias nao podem ser conscientes porque uma certa forga se ope a isto, que de outro modo elas poderiam tornar-se conscientes, e entao se veria como elas se diferenciam pouco de outros elementos psiquicos reconhecidos. Essa teoria torna-se irrefutavel por terem sido encontrados, na técnica psicanalitica, meios com cujo auxilio pode-se cancelar a forga opositora e tornar conscientes as ideias em questao. Ao estado em que se achavam estas, antes de tornarem-se conscientes, deno- minamos repressdo, e dizemos que durante o trabalho analitico sentimos como resisténcia a forga que provo- cou e manteve a repressao. Portanto, adquirimos nosso conceito de inconscien- te a partir da teoria da repressao. O reprimido é, para nés, 0 protétipo do que é inconsciente. Mas vemos que possuimos dois tipos de inconsciente: o que é latente, mas capaz de consciéncia, e o reprimido, que em si e sem dificuldades nio é capaz de consciéncia. Esta nossa viso da dinamica psiquica nao pode deixar de influir na terminologia e na descrigéo. Ao que é latente, tao s6 descritivamente inconsciente, e nao no sentido dina- mico, chamamos de pré-consciente; 0 termo inconsciente limitamos ao reprimido dinamicamente inconsciente, de modo que possuimos agora trés termos, consciente (cs), pré-consciente (pcs) e inconsciente (ics), cujo sen- tido nao é mais puramente descritivo. O Pcs, supomos, esta muito mais préximo ao Cs do que o Ics, e, como 7 OEVEOID qualificamos o Jcs de psiquico, tampouco hesitaremos em qualificar o Pes latente de psiquico.* Mas por que nao permanecemos de acordo com os fildsofos e coeren- temente separamos tanto 0 Pcs como o Ics do psiquico consciente? Os filésofos entao nos proporiam descrever 0 Pes e 0 Jes como duas espécies ou dois estagios do psi- coide, e se estabeleceria a concordancia. Mas dificulda- des sem fim apareceriam por conta disso na exposigao, e o Unico fato importante, o de que esses estagios psicoi- des coincidem em quase todos os outros pontos com 0 que é reconhecidamente psiquico, seria empurrado para segundo plano, em favor de um preconceito vindo de um tempo em que ainda nao se conheciam esses psicoi- des ou o que é mais importante neles. Agora podemos comodamente empregar nossos trés termos, cs, pcs e ics, mas nao esquecendo que no senti- do descritivo ha apenas dois tipos de inconsciente, e no sentido dinamico, apenas um. Para fins de exposi¢ao po- demos, as vezes, negligenciar tal distingao, mas outras vezes ela é naturalmente indispensavel. Em todo caso, j4 nos habituamos bastante a essa ambiguidade do in- consciente, e pudemos lidar bem com ela. Nao é possivel evita-la, pelo que vejo; a diferenciagao entre conscien- te e inconsciente é, afinal, uma questo de percepgao, a que se deve responder com “sim” ou “nao”, e 0 ato da percep¢3o mesmo nio informa por qual razo algo é * Freud recorrea iniciais miniisculas para grafarcs, pes e ics quan- do estes sio adjetivos, e a maitisculas quando sio substantivos. A distingdo é ignorada na edigao Standard inglesa, que sempre utili- za iniciais maidsculas. B |. CONSCIENCIA E INCONSCIENTE. percebido ou nao. Nao podemos nos queixar porque 0 dinamico acha expresso apenas ambigua no fendmeno.' P 1 Veja-se, a propésito, as minhas “Observagées sobre 0 conceito de inconsciente” (1912). Uma nova diregao tomada pela critica do inconsciente merece ser aqui apreciada. Alguns pesquisadores que no se furtam areconhecer os fatos psicanaliticos, mas ndo querem admitir o inconsciente, buscam uma saida no fato incontroverso de que também a consciéncia — enquanto fenémeno — apresenta muitas gradag6es de intensidade ou nitidez. Assim como ha pro- cessos que sio conscientes de maneira muito viva, forte, tangivel, também experimentamos outros que so conscientes de forma dé- bil, quase imperceptivel, e os mais debilmente conscientes seriam bem aqueles aos quais a psicanilise deseja aplicar o inadequado termo “inconsciente”. Mas eles seriam também conscientes ou es- tariam “na consciéncia”, e poderiam ser tornados conscientes de modo intenso e completo, se lhes fosse dada suficiente atengao. Se for possivel influir com argumentos na decisio de uma questo assim, que depende da convengao ou de fatores emocio- nais, as seguintes observagdes podem ser feitas. A referencia a uma escala de nitidez da consciéncia nada tem de conclusivo e nao possui maior forca demonstrativa do que, digamos, estas proposi- ges andlogas: “Havendo tantas gradagées de iluminacio, da luz mais evidente e ofuscante ao mais fraco bruxuleio, nao existe ab- solutamente escurid’o”. Ou: “Ha diversos graus de vitalidade, portanto nao existe morte”. Estas afirmagdes podem, de certo modo, fazer sentido, mas sio inadmissiveis na pratica, como se constata ao fazermos certas inferéncias a partir delas; por exem- plo: “Entéo nao é preciso acender uma luz”, ou “Ento todos os organismos sio imortais”. Além do mais, ao subsumir o imper- ceptivel no consciente, tudo o que obtemos é estragar a tinica cer- teza imediata que existe no psiquico. Uma consciéncia da qual nada se sabe parece-me bem mais absurda do que algo psiquico inconsciente. Por fim, uma tal equiparagio do imperce consciente foi claramente feita sem levar em conta as relagées di- namicas, que foram decisivas para a concepgio psicanalitica. Pois ha dois fatos que so ai negligenciados: primeiro, é muito dificil, Jo ao in- a OEVEOID Mas no curso posterior do trabalho psicanalitico verifica-se que também essas diferenciagdes nao bas- tam, sao insuficientes na pratica. Entre as situagdes que o demonstram, a seguinte sobressai como a deci- siva. Formamos a ideia de uma organizagao coerente dos processos psiquicos na pessoa, e a denominamos o Eu* da pessoa. A este Eu liga-se a consciéncia, ele domina os acessos 4 motilidade, ou seja: a descarga das excitagSes no mundo externo; é a instancia psiqui- ca que exerce o controle sobre todos os seus proces- sos parciais, que a noite dorme e ainda entio pratica a censura nos sonhos. Desse Eu partem igualmente as repressGes através das quais certas tendéncias psi- quicas devem ser excluidas nao sé da consciéncia, mas também dos outros modos de vigéncia e ativida- de. Na analise, o que foi posto de lado pela repressao se contrapée ao Eu, e ela se defronta com a tarefa de abolir as resisténcias que o Eu manifesta em ocupar- -se do reprimido. Ora, durante a analise observamos requer um enorme esforgo, dedicar suficiente atengao a algo assim impercebido; segundo, quando se consegue isto, o antes imperce- bido no é entao reconhecido pela consciéncia, mas parece-lhe, com frequéncia, inteiramente desconhecido, a ela oposto, € é ru- demente rejeitado. Portanto, recorrer a0 pouco percebido ou nao percebido, evitando o inconsciente, é apenas um derivado do pre- conceito que vé como estabelecida de uma vez por todas a identi- dade do psiquico com o consciente. * Preferimos o pronome pessoal portugués para traduzir das /ch, acompanhando outras linguas latinas (0 espanhol yo, catalao /o, 0 italiano io, o francés moi) e diferentemente da edigio Standard inglesa, que, como se sabe, recorreu ao pronome latino, ego. |. CONSCIENCIAE INCONSCIENTE que o doente experimenta dificuldades quando lhe colocamos certas tarefas; suas associagées falham quando devem aproximar-se do reprimido. Ai lhe dizemos que ele se acha sob o dominio de uma resis- téncia, mas ele nada sabe disso, e mesmo que intua, por suas sensagGes de desprazer, que uma resisténcia atua nele entdo, nao sabe dar-lhe nome ou descrevé-la. Mas como certamente essa resisténcia vem do seu Eu ea ele pertence, achamo-nos diante de uma situagio imprevista. Encontramos no préprio Eu algo que é também inconsciente, comporta-se exatamente como o reprimido, isto é, exerce poderosos efeitos sem tor- nar-se consciente, e requer um trabalho especial para ser tornado consciente. Para a pratica psicanalitica, a consequéncia dessa descoberta é que deparamos com intmeras obscuridades e dificuldades, se mantemos a nossa habitual forma de expressao e, por exemplo, fa- zemos derivar a neurose de um conflito entre o cons- ciente e o inconsciente. A partir da nossa compreen- sao das relagGes estruturais da vida psiquica, temos de substituir essa oposi¢ao por uma outra: aquela entre o Eu coerente e aquilo reprimido que dele se separou.” As consequéncias para a nossa concepgio do incons- ciente sao ainda mais significativas. A consideragao di- namica havia nos levado a primeira corre¢ao, a com- preensaio estrutural nos leva & segunda. Reconhecemos que o /cs nao coincide com o reprimido; continua certo que todo reprimido é ics, mas nem todo Jes é também 2 Cf. Além do principio do prayer [1920]. 2 OEVEOD reprimido. Também uma parte do Eu — e sabe Deus quao importante é ela — pode ser ics, é certamente ics. E esse /cs do Eu nao é latente no sentido do Pcs, senao nao poderia ser ativado sem tornar-se cs, e torna-lo consciente nao ofereceria dificuldades tao grandes. Se nos vemos assim obrigados a instituir um terceiro Ics, um nao reprimido, temos de conceder que a caracteris- tica da inconsciéncia perde alguma importancia para nds. Torna-se uma qualidade ambigua, que nao autori- za as conclusées abrangentes e inevitaveis para as quais desejariamos utiliza-la. Mas nao devemos negligenci -la, pois a qualidade de ser consciente ou nao 6, afinal, a Unica luz na escuridao da psicologia das profundezas. IL QEUEOID A investiga¢ao patolégica fez o nosso interesse dirigir- ~se muito exclusivamente para o reprimido. Gostaria- mos de saber mais sobre o Eu, depois que aprendemos que também o Eu pode ser inconsciente no verdadei- ro sentido da palavra. Nosso unico ponto de apoio, em nossas pesquisas, foi até o momento o trago distintivo de ser consciente ou inconsciente; e afinal percebemos quao ambiguo pode ser ele. De modo que todo o nosso conhecimento esta sem- pre ligado a consciéncia. Também o /cs s6 podemos conhecer ao torna-lo consciente. Porém, alto 14, como é possivel isto? Que significa tornar algo consciente? Como pode isto suceder? 22 WOEVEOID Ja sabemos de onde devemos partir quanto a isso. Dissemos que a consciéncia é a superficie do aparelho psiquico, isto é, atribuimo-la, como fungao, a um sis- tema que espacialmente é o primeiro desde o mundo externo. Espacialmente, alias, nao apenas no sentido da fungao, mas ai também no sentido da dissecg4o ana- témica.* Também a nossa investigacao deve ter como ponto de partida esta superficie percipiente. Desde 0 inicio cs so todas as percepgdes que vem de fora (percepgées sensoriais) e de dentro, as quais chamamos de sensagées e sentimentos. E quanto aos processos internos que podemos — de forma tosca e imprecisa — reunir sob o nome de processos de pen- samento? Eles, que se efetivam como deslocamentos da energia psiquica a caminho da ago, em algum lu- gar dentro do aparelho, avancam para a superficie que faz surgir a consciéncia? Ou a consciéncia vai até eles? Esta é, notamos, uma das dificuldades que sur- gem ao considerarmos seriamente a ideia espacial, ro- polégica, do funcionamento psiquico. As duas possibi- lidades so igualmente impensaveis, deve haver uma terceira. Em outro lugar’ fiz a suposigo de que a verdadei- ra diferenga entre uma ideia ics e uma pcs (um pensa- mento) consiste em que a primeira se produz em algum material que permanece desconhecido, enquanto na segunda (a pes) acrescenta-se a ligagdo com representa- 3 Cf. Além doprincipiodo prayer (1920). 4 “O inconsciente” [1915]. 4 OEVEOID ges verbais.* Foi esta uma primeira tentativa de ofere- cer, para os sistemas Pes e Ics, tragos distintivos que nao sejam a relagdo com a consciéncia. A questao: “Como algo se torna consciente?” seria, mais apropriadamente formulada: “Como algo se torna pré-consciente?”. Ea resposta seria: pela liga¢do com as representagGes ver- bais correspondentes. Essas representagGes verbais sao residuos de mem6- ria; foram uma vez percepgées e, como todos os resi- duos mneménicos, podem voltar a ser conscientes. An- tes de seguirmos tratando de sua natureza, ocorre-nos, como uma nova descoberta, que apenas pode tornar- -se consciente aquilo que uma vez ja foi percep¢ao cs, e que, excluindo os sentimentos, o que a partir de dentro quer tornar-se consciente deve tentar converter-se em percepgGes externas. O que se torna possivel mediante 0s tragos mnemOnicos. Imaginamos os residuos de memGria como estando contidos em sistemas adjacentes ao sistema Pep-Cs, de forma que Os seus investimentos podem, com facilida- de, prosseguir nos elementos desse sistema a partir do interior. Aqui pensamos logo na alucinagao e no fato de que a lembranga mais viva é sempre diferenciada tanto da alucinagéo como da percep¢4o externa, mas também de imediato se apresenta a informagao de que, ao se reavivar uma lembranga, o investimento é conservado * “Representacdes verbais”: Wortvorstellungen; ver nota sobre a versio desse temo em “O inconsciente”, parte vil (v. 12 destas Obras completas).. N.OEVEOIO no sistema mneménico, ao passo que a alucinagao nao distinguivel da percepgdo pode surgir quando o inves- timento nao s6 se propaga para o elemento Pep, a partir do trago mneménico, mas passa inteiramente para ele. Os residuos verbais derivam essencialmente de per- cepgées actsticas, de modo que ao sistema Pes é dada como que uma origem sensorial especial. Pode-se ini- cialmente ignorar os componentes visuais da represen- tagao verbal como secundarios, adquiridos mediante a leitura, e assim também seus acompanhamentos moto- res,* que, exceto no caso dos surdos-mudos, tém o papel de sinais auxiliares. A palavra é, afinal, o residuo mne- ménico da palavra ouvida. Mas nao podemos, em nome da simplificagdo, esque- cer a importancia dos residuos mneménicos éticos — das coisas — ou negar que é possivel, e em muitas pessoas parece ser privilegiado, que os processos de pensamento se tornem conscientes mediante o retorno aos residuos vi- suais. O estudo dos sonhos e das fantasias pré-conscientes, conforme as observagies de J. Varendonck, pode nos dar uma ideia da natureza especifica deste pensamento visual. Vemos que nele, em geral, apenas o material concreto do pensamento se torna consciente, mas nao pode ser dada expressao visual as relagdes que caracterizam particular- * “Acompanhamentos motores”: Bewegung sbilder. As versbes es- trangeiras consultadas — a espanhola da Biblioteca Nuova, a ar- gentina da Amorrortu, a italiana da Boringhieri e a Standard in- glesa — so mais literais nesse ponto, com excegio da primeira: sus componentes de movimiento, imagenes motrices de palayra, imma- gini motorie della parola, the motor images of words. 25 OEVEOID mente o pensamento. Pensar em imagens é, portanto, uma forma bastante incompleta de tornar-se consciente. De al- gum modo, também se acha mais préximo dos processos inconscientes do que pensar em palavras, e é sem divida mais antigo, ontogenética e filogeneticamente. Logo, para retornar ao nosso argumento, se esta é a maneira como algo inconsciente em si torna-se cons- ciente, a questao de como tornamos (pré-)consciente algo reprimido deve ser respondida assim: ao estabe- lecer tais elos intermedidrios pcs, por meio do trabalho analitico. A consciéncia permanece em seu lugar, entao, mas tampouco 0 /cs subiu, digamos, até 0 Cs. Enquanto o vinculo entre a percep¢ao externa e 0 Eu é bem evidente, aquele entre a percepgao interna e o Eu requer uma investigagao especial. Faz surgir, mais um vez, a diivida sobre a justeza de referir toda a cons- ciéncia a um unico sistema superficial, o Pcp-Cs. A percepgao interna traz sensages de processos vin- dos das camadas mais diversas, e certamente mais pro- fundas, do aparelho psiquico. Elas sao mal conhecidas; as da série prazer-desprazer ainda podem ser vistas como o melhor exemplo delas. Sao mais primordiais, mais ele- mentares do que as que vém de fora, mesmo em estados de consciéncia turva podem ocorrer. Sobre a sua maior significagao econémica e os fundamentos metapsicolégi- cos para isso pude manifestar-me em outro lugar. Estas sensag6es sao pluriloculares como as percepgoes exter- nas, podem vir simultaneamente de lugares diversos, e com isso ter qualidades diversas, também opostas. As sensagGes de carater prazeroso nada possuem de W.OEUEOIO premente em si, mas as sensag6es desprazerosas tém isso em alto grau. Elas premem por mudanga, por des- carga, e portanto referimos o desprazer a uma elevacao € o prazer a uma diminuicao do investimento de ener- gia. Se denominamos o que se torna consciente como prazer e desprazer algo quantitativa-qualitativamente outro no curso psiquico, a questao é se um tal outro pode se tornar consciente no proprio lugar ou se tem de ser conduzido ao sistema Pep. A experiéncia clinica decide por esse ultimo caso. Ela mostra que esse outro comporta-se como um impulso re- primido. Ele pode desenvolver for¢a impulsora, sem que o Eu note a pressao. Somente resisténcia a pressao, estor- vo da reagao de descarga, torna esse outro imediatamente consciente como desprazer. Assim como as tensdes da ca- réncia, também a dor pode permanecer inconsciente, esta coisa intermedidria entre percep¢ao externa e interna, que se comporta como uma percep¢ao interna mesmo quan- do se origina do mundo exterior. E correto, portanto, que também sensages e sentimentos tornam-se conscientes apenas ao atingir o sistema Pep; se o caminho é barrado, nao se produzem como sensagées, embora 0 outro que a elas corresponde no curso da excitagao seja o mesmo. De maneira mais curta, nao inteiramente correta, falamos en- tao de sentimentos inconscientes; conservamos a analogia, n4o inteiramente justificada, com ideias inconscientes. Pois a diferenga est em que, para a ideia ics, precisam an- tes ser criados elos que a conduzam ao Cs, e isso nao vale para os sentimentos, que continuam diretamente. Em ou- tras palavras: a diferenga entre Cs e Pcs nao tem sentido 7 OEVEOID para os sentimentos, 0 Pes aqui nao cabe, os sentimentos sao conscientes ou inconscientes. Mesmo ao serem ligados a representagGes verbais, nao devem a elas o fato de tor- nar-se conscientes, mas fazem-no diretamente. O papel das representagGes verbais é agora perfeita- mente claro. Pela sua intermediagao, processos de pensa- mento internos sao transformados em percepgies. E como se fosse demonstrada a proposigao de que todo saber tem origem na percepgao externa. Num superinvestimento do pensar, todos os pensamentos sao percebidos realmente — como de fora —e por isso tidos como verdadeiros. Apés assim clarificar as relagdes entre percepcao externa e interna e o sistema superficial Pap-Cs, pode- mos passar a desenvolver nossa concepgao do Eu. Nos 0 vemos partir do sistema Pep, seu niicleo, e inicialmente abarcar o Pcs, que se apoia nos residuos mneménicos. Mas, como aprendemos, o Eu é também inconsciente. Agora sera de grande proveito para nés, creio, acom- panharmos a sugestdo de um autor que em vao assegu- ra, por motivos pessoais, nada ter com a ciéncia estrita e elevada. Refiro-me a Georg Groddeck, que esta sempre a enfatizar que aquilo a que chamamos nosso Eu con- duz-se, na vida, de modo essencialmente passivo, que somos, como diz, “vividos” por poderes desconhecidos e incontrolaveis.° Nés todos tivemos esta impressio, em- bora ela nao nos tenha dominado a ponto de excluir as § Groddeck, Das Buch vom Es [O livro do Id), Internationaler Psychoanalytischer Verlag, 1925. [Ed. bras.: O livro disso, trad. Teixeira Coelho. Sao Paulo: Perspectiva, 1987.] 28 OEUEOIO demais, e nao hesitamos em atribuir a intuig&o de Grod- deck um lugar no conjunto da ciéncia. Proponho que a levemos em considerago, chamando de £u a entidade que parte do sistema Pep e é inicialmente pcs, e de /d,* segundo 0 uso de Groddeck, a outra parte da psique, na qual ela prossegue, e que se comporta como ics. Logo veremos se sera possivel tirar alguma vanta- * Tendo adotado Eu e Super-eu para Ich e Uber-Ich, em lugar dos tradicionais ego e superego, seria de esperar que optéssemos por [sso para verter Es. No caso, porém, a estranheza causada por /sso (maior que a de Eu e Super-eu, acreditamos) levou-nos a sacrificar a coeréncia. Inspirados na edigao italiana das obras completas de Freud, que traduz as trés instancias da psique por io, super-io e es, conservando o original alemao nesta dltima, resolvemos manter 0 id latino da versio tradicional (pois o Es alemao poderia gerar con- fusio com o verbo ser, além de soar estranho). Naturalmente, quem preferir /sso deve continuar usando esse pronome. O que importa, nas tradugdes dos termos técnicos, é nao esquecer que as diferentes denominagées se aplicam & mesma coisa. Como disse Freud numa carta a Groddeck, nesse caso especifico: “Quem reconhece que transferéncia e resisténcia slo 0 eixo do tratamento, esse jd pertence irremediavelmente ao ‘bando selvagem’ [referéncia jocosa aos psi- canalistas). Nao faz diferenga que chame o ‘Ics’ de ‘Es (em G. Groddeck/ S. Freud, Briefwechsel [Correspondéncia]. Wiesbaden: Limes, 1970, p. 20, carta de 5 de junho de 1917). A dificuldade em traduzir esses nomes das instdncias da psique é o tema de um capi- tulo do livro As palavras de Freud, de autoria deste tradutor (So Paulo: Companhia das Letras, novaed. revista, 2010, pp. 92-9). 6 O préprio Groddeck seguiu provavelmente o exemplo de Niet- asche, que com frequéncia utiliza esse termo gramatical para que em nés é impessoal e, digamos, necessirio por natureza. [So- bre o uso de Espor Nietzsche, ver, por exemplo, o aforismo 17 de Além do bem e do mal e a nota correspondente do tradutor (S40 Paulo: Companhia das Letras, 1992).] Ei OEVEOIO gem disso para a descri¢ao e a compreensao. U m indivi- duo é entdo, para nés, um Id [um algo] psiquico, irreco- nhecido e inconsciente, em cuja superficie se acha o Eu, desenvolvido com base no sistema Pcp, seu nicleo. Se buscamos uma representagao grafica, podemos acres- centar que o Eu nao envolve inteiramente 0 Id, mas apenas a medida que o sistema Pep forma a sua superfi- cie [do Eu], mais ou menos como o “disco germinal” se acha sobre o ovo. O Eu nao é nitidamente separado do Id; conflui com este na dirego inferior. Mas também o reprimido conflui com o Id, é so- mente uma parte dele. O reprimido é claramente sepa- rado do Eu apenas pelas resisténcias da repressao; pelo Id pode comunicar-se com ele. Logo percebemos que quase todas as demarcagées que a patologia nos levou a fazer concernem apenas as camadas superficiais do apa- relho psiquico, as tinicas que conhecemos. Poderiamos esbogar um desenho desta situagao, desenho cujas linhas servem apenas exposi¢’o, nao solicitam nenhuma in- terpretacao particular. Digamos também que o Eu tem um “boné auditivo”, apenas de um lado, conforme atesta a anatomia cerebral. Usa-o de lado, por assim dizer. 30 MOEVEOIO E facil ver que o Eu é a parte do Id modificada pela influéncia direta do mundo externo, sob mediagdo do Pep-Cs, como que um prosseguimento da diferenciagao da superficie. Ele também se esforga em fazer valer a influéncia do mundo externo sobre o Id e os seus prop6- sitos, empenha-se em colocar o principio da realidade no lugar do principio do prazer, que vigora irrestrita- mente no Id. A percepgao tem, para o Eu, o papel que no Id cabe ao instinto. O Eu representa 0 que se pode chamar de razao e circunspecgao, em oposi¢ao ao Id, que contém as paixdes. Tudo isso corresponde a noté- rias distingSes populares, mas deve ser entendido tao sé como aproximadamente ou idealmente correto. A importancia funcional do Eu se expressa no fato de que normalmente lhe é dado o controle dos acessos 4 motilidade. Assim, em relacao ao Id ele se compara ao cavaleiro que deve pér freios 4 forca superior do cavalo, com a diferenga de que o cavaleiro tenta fazé-lo com suas préprias forgas, e o Eu, com forgas emprestadas. Este simile pode ser levado um pouco adiante. Assim como 0 cavaleiro, a fim de nao se separar do cavalo, muitas vezes tem de conduzi-lo aonde ele quer ir, tam- bém o Eu costuma transformar em ato a vontade do Id, como se ela fosse a sua propria. Um outro fator, além da influéncia do sistema Pep, parece ter tido efeito sobre a génese do Eu e sua diferen- ciag’o do Id. O corpo, principalmente sua superficie, é um lugar do qual podem partir percepgées internas e externas simultaneamente. E visto como um outro ob- jeto, mas ao ser tocado produz dois tipos de sensagies, 31 OEVEOIO um dos quais pode equivaler a uma percepgao interna. JA se discutiu bastante, na psicofisiologia, de que ma- neira 0 corpo sobressai no mundo da percepgao. Tam- bém a dor parece ter nisso um papel, e 0 modo como adquirimos um novo conhecimento de nossos érgaos, nas doengas dolorosas, é talvez um modelo para a forma como chegamos a ideia de nosso corpo. O Eué sobretudo corporal, nao é apenas uma entida- de superficial, mas ele mesmo a proje¢ao de uma super- ficie’” Procurando uma analogia anatémica para ele, po- demos identific4-lo com o “hominculo do cérebro” dos anatomistas, que fica no cortex, de cabega para baixo e com os calcanhares para cima, olha para tras e, como se sabe, tem no lado esquerdo a zona da linguagem. A relacao do Eu com a consciéncia ja foi varias ve- zes examinada, mas ha alguns fatos importantes a serem apontados aqui. Acostumados a sempre levar uma escala de valores social ou ética, nao nos surpreendemos ao saber que a atividade das paixGes inferiores se di no inconscien- te, mas esperamos que as fungGes psiquicas tenham mais facilmente acesso seguro a consciéncia quanto mais eleva- das se situem nessa escala. Nisso a experiéncia psicanaliti- 7 Ou seja, o Eu deriva, em dltima instncia, das sensages corpo- rais, principalmente daquelas oriundas dasuperficie do corpo. Pode ser visto, assim, como uma projegio mental da superficie do corpo, além de representar, como vimos acima, as superficies do aparelho psiquico. (Esta nota nao se acha na edicao alemé utilizada. Segundo informa James Strachey, foi acrescentada a traducio inglesa de 1927 (feita por Joan Riviere), com a observagao de haver sido autorizada por Freud. Ela foi incorporada, porém a Studienausgabe.] NLOEUEOI ca nos decepciona, porém. Temos comprovagao, por um lado, de que mesmo o trabalho intelectual dificil e sutil, que normalmente requer estrénua reflexao, também pode ser efetuado pré-conscientemente, sem chegar a conscién- cia. Esses casos sao indubitaveis, verificam-se, por exem- plo, durante o sono, evidenciando-se no fato de um indi- viduo saber, imediatamente apés o despertar, a solugao de um dificil problema matematico ou de outro género, que no dia anterior se esforgara em vao por encontrar.* Bem mais peculiar é uma outra constatagao. Apren- demos, em nossas anilises, que ha pessoas nas quais a autocritica e a consciéncia [moral],* ou seja, agGes psi- quicas altamente valorizadas, s4o inconscientes e, en- quanto tais, produzem os efeitos mais importantes; 0 fato de a resisténcia permanecer inconsciente na anilise nao é, portanto, a tinica situagao desse tipo. Mas a nova constatag4o, que nos obriga, apesar de nossa melhor compreensio critica, a falar de um sentimento de culpa inconsciente, desconcerta-nos bem mais e nos ofere- ce novos enigmas, sobretudo quando gradualmente notamos que um tal sentimento de culpa inconsciente tem papel decisivo, em termos econémicos, num gran- de numero de neuroses, e ergue os maiores obstaculos 8 Um caso assim me foi comunicado recentemente; como objegio, na verdade, & minha descricao do “trabalho do sonho”. * Gewissen: designa a consciéncia moral, diferentemente de Bewuftsein, que designa o estado de consciéncia. Em portugués ha uma s6 palavra para os doiscasos. Incluiremos 0 adjetivo “moral” entre colchetes, quando no for claro, pelo contexto, que Freud utiliza o termo Gewissen no original. B OEVEOID na diregdo da cura. Querendo retornar a nossa escala de valores, teremos de afirmar: “Nao sé as coisas mais fundas do Eu, também as mais altas podem ser incons- cientes”. E como se nos fosse demonstrado, dessa ma- neira, 0 que ja afirmamos sobre o Eu consciente: que ele ésobretudo um Eu do corpo. Ill, O EU EO SUPER-EU (IDEAL DO EU) Se o Eu fosse apenas a parte do Id modificada por in- fluéncia do sistema perceptivo, o representante do mun- do externo real na psique, estariamos diante de algo simples. Mas hd outras coisas a serem consideradas. Os motivos que nos levaram a supor uma grada¢ao no Eu, uma diferenciagao em seu interior que pode ser chamada de “ideal do Eu” ou Super-eu,* foram explici- * Uber-ich, no original. O Vocabulario de psicanélise, na sua 11" edi- 0 brasileira (Sao Paulo: Martins Fontes, 1991), apresenta supereu como alternativa para superego. A forma com hifen (e com maitiscu- la) nos parece melhor, porque mantém em destaque o “Eu”, como no original. Quanto alternativa super-eu/superego, ha argumentos a favor de ambas as formas. Super-eu tem a vantagem da relagio com Eu (que achamos preferivel a ego), mas talvez ainda soe estranha, a0 asso que superego estd difundido, tem o peso da “tradiga0” criada pela edigao Seandard brasileira, que 0 tomou da Standard inglesa. Sobre a versio desses termos, ver nota no v. 18 destas Obras comple- tas, p. 213 (na 31° das Novas conféréncias introdutdrias). Lembremos ainda que o prefixo “super” é aqui usado na acepgao de “em cima de”, como em “superpor” e “supercilio”, e no no sentido de abun- dancia ou excesso, como em “superfaturar” e “superprotecio”. 34 Ill OEUE OSUPER-EU (IDEAL D0 EU) tados em outros trabalhos.’ Eles continuam validos.'° A novidade que exige explicagao é o fato de essa parcela do Eu ter relag&o menos estreita com a consciéncia. Aqui nés temos que abarcar um Ambito maior. Bem no inicio, na primitiva fase oral do individuo, investimento objetal e identifica¢ao provavelmente nao se distinguem um do outro. S6 podemos supor que mais tarde os investimentos objetais procedam do Id, que sente como necessidades os impulsos eréticos. O Eu, inicialmente ainda fragil, toma conhecimento dos 9 “Introdugio a0 narcisismo” [1914], Psicologia das massas ¢ and- lise do Eu (1921) 10 Mas parece erréneo, e necessitado de corregao, o fato de eu ha- ver atribuido a fungio do exame da realidade a esse Super-eu. Estaria perfeitamente de acordo com as relagées do Eu para com o mundo da percepgo que o exame da realidade permanecesse tarefa dele proprio. — Também declaragées anteriores, formula- das um tanto imprecisamente, a respeito de um nicleo do Ew, de- vem ser corrigidas no sentido de que sé o sistema Prp-Cs pode ser visto como niicleo do Eu. 11 “Luto e melancolia” (1917]. 35 OEVEOIO investimentos objetais, aprova-os ou procura afasta-los mediante 0 processo da repressio.'” Se um tal objeto sexual deve ou tem de ser abando- nado, nao é raro sobrevir uma alteragao do Eu, que é preciso descrever como estabelecimento do objeto no Eu, como sucede na melancolia; ainda nao conhecemos as circunstancias exatas dessa substituicao. Talvez, com essa introjecao que é uma espécie de regressao ao meca- nismo da fase oral, o Eu facilite ou permita o abandono do objeto. Talvez essa identificagio seja absolutamente a condigao sob a qual o Eu abandona seus objetos. De todo modo, o processo é muito frequente, sobretudo nas primeiras fases do desenvolvimento, e pode possi- bilitar a concepgao de que o carater do Eu é um preci- pitado dos investimentos objetais abandonados, de que contém a histéria dessas escolhas de objeto. Desde logo ha que se conceder, naturalmente, uma gradaclo da ca- pacidade de resisténcia, até que ponto o carater de uma pessoa rejeita ou acolhe estas influéncias da histéria de suas escolhas eréticas de objeto. Em mulheres que ti- veram muitas experiéncias amorosas acreditamos poder 12 Um interessante paralelo para a substituigio da escolha objetal pela identificagao se acha na crenga dos povos primitivos, e nas proibigdes nela baseadas, de que as caracteristicas do animal in- corporado como alimento persistem no cardter daquele que o de- vora. Sabe-se que essa crenga é também parte dos fundamentos do canibalismo, e prossegue atuando em toda a série de costumes ligados a refeigao totémica, até a Sagrada Comunhio. As conse- quéncias que ai se atribuem & posse oral do objeto verificam-se de fato na posterior escolha sexual do objeto. 36 M.0 EU EO SUPER-EU (IDEAL 00 EU) mostrar facilmente, nos seus tragos de cardter, os vesti- gios de seus investimentos objetais. Também devemos considerar o investimento objetal e a identificagao si- multdneos, ou seja, uma alteragao do carater anterior a0 abandono do objeto. Nesse caso a mudanga do carater poderia sobreviver a relagao objetal e, num certo senti- do, conserva-la. Segundo outro modo de ver, essa transformagao de uma escolha erdtica de objeto numa alteragao do Eu é também uma via pela qual o Eu pode controlar o Id e aprofundar suas relagdes com ele, embora 4 custa de uma larga tolerancia para com as experiéncias dele. Se 0 Eu assume os tragos do objeto, como que se oferece ele prdprio ao Id como objeto de amor, procura compensa- ~lo de sua perda, dizendo: “Veja, vocé pode amar a mim também, eu sou tao semelhante ao objeto”. A transformagio da libido objetal em libido narcisica, que entao ocorre, evidentemente acarreta um abandono das metas sexuais, uma dessexualizacao, ou seja, uma espécie de sublimagao. E surge mesmo a questio, digna de um tratamento mais aprofundado, de que este seria talvez o caminho geral da sublimagio, de que talvez a sublimagio ocorra por intermediagao do Eu, que primei- ro converte a libido objetal sexual em libido narcisica, para depois dar-lhe qui¢d outra meta.” Mais adiante con- 13 Agora, apés a distingdo entre Eu e Id, temos de reconhecer o Id como o grande reservat6rio da libido, no sentido da “Introdugo ao narcisismo” [1914]. A libido, que aflui para o Eu através das identi- ficagbes aqui mostradas, produz o seu “narcisismo secunddrio”. 37 OEVEOID sideraremos se tal transformagao no pode ocasionar ou- tros destinos para os instintos, como, por exemplo, uma disjungao* dos diversos instintos amalgamados. Embora constitua uma digressao, relativamente ao nosso objetivo, nao podemos evitar que a nossa atengao se volte momentaneamente para as identifi- cagées objetais do Eu. Se estas predominam, tornam- se muito numerosas e fortes, incompatibilizando-se umas com as outras, um desfecho patolégico é pro- vavel. Pode-se chegar a uma fragmentagao do Eu, quando as varias identificagdes se excluem umas as outras mediante resisténcias, e o segredo dos casos chamados de multipla personalidade talvez esteja em que as varias identificagdes tomam alternadamente a consciéncia. Mesmo nio indo tao longe, ha a questao dos conflitos das diferentes identificagdes em que 0 Eu se distribui, conflitos que, afinal, nao podem ser claramente descritos como patolégicos. Mas, como quer que seja depois a resisténcia do ca- rater as influéncias dos investimentos objetais abando- nados, serao gerais e duradouros os efeitos das iden- tificagdes iniciais, sucedidas na idade mais tenra. Isso nos leva de volta a origem do ideal do Eu, pois por tras dele se esconde a primeira e mais significativa identi- ficagao do individuo, aquela com o pai da pré-histéria * “Disjungao”: Entmischung, ou seja, 0 contrario de Mischung, “mistura”. As verses consultadas apresentam: disociacién, desme- cla, disimpasto, defusion; 0 termo também aparece em ““Psicanali- se’ e ‘Teoria da libido” (1923) e “A negago” (1925). II. 0 EU E OSUPER-EU (IDEAL 00 EU) pessoal." Esta nao parece ser, 4 primeira vista, resul- tado ou consequéncia de um investimento objetal; é uma identificagao direta, imediata, mais antiga do que ualquer investimento objetal. Mas e assim reforcar a De todo modo, se torna necessario descrevé-las com mais vagar. Simplificadamente, 0 caso se configura da forma seguinte para o menino. Bastante cedo ele desenvolve 14 Seria talvez mais prudente dizer “com os pais”, pois pai e mae no sio avaliados de forma diversa, antes do conhecimento seguro da diferenga entre os sexos, da falta do pénis. Ha pouco tempo ouvi, de uma jovem senhora, que, desde que notara a auséncia de pénis em si mesma, no excluia da posse desse érgio todas as mu- heres, mas apenas aquelas tidas por inferiores. A mie o conserva- ra, na sua opiniao. Para simplificar a exposigao, abordarei apenas a identificagao com o pai WC. Paelpiadar ava eandlvedo Eu, c4p Vi OEVEOID tificagdo com o pai assume uma tonalidade hostil, muda para o desejo de elimina-lo, a fim de substitui-lo junto 4 mie. Desde entao é ambivalente a relagao com o pai; é como se a ambivaléncia desde 0 inicio presente na iden- tificagZo se tornasse manifesta. A postura ambivalente ante o pai ea relagao objetal exclusivamente terna com amie formam, para o menino, o contetido do complexo de Edipo simples e positivo. Gragas a dissolugao do com- plexo de Edipo, a masculinidade no carater do meni- no experimentaria uma consolidagdo. De modo intei- ramente analogo, a postura edipica da menina pode resultar num fortalecimento (ou no estabelecimento) de sua identificagio com a mie, que fixa o carter fe- minino da crianga. Tais identificagdes nao correspondem 4 nossa ex- pectativa, pois nao introduzem no Eu o objeto aban- donado; mas esse desfecho também ocorre, e pode ser observado mais facilmente nas garotas do que nos meninos. A questao, claramente, é se suas dis- MO EU EO SUPER-EU (IDEAL D0 EU) posigdes masculinas sao fortes o bastante — nao im- portando em que consistam. Portanto, o desenlace da situagao edipica numa identificagao com o pai ou a mie parece depender, em ambos os sexos, da relativa forca das duas disposigées sexuais. Esta é uma das formas como a bissexualidade intervém no destino do complexo de Edipo. A outra é ainda mais importante. Pois temos a impressao de que © complexo de Edipo simples nao é absolutamente o mais frequente, mas corresponde a uma simplificagio ou esquematizaco que, nao ha divida, com frequén- cia se justifica em termos praticos. Uma investigacao mais penetrante mostra, em geral, o complexo de Edi- Po mais completo, que é duplo, um positivo e um nega- tivo, dependente da bissexualidade original da crianga; isto €, 0 menino tem nao s6 uma atitude ambivalente para com o pai e uma terna escolha objetal pela mae, mas ao mesmo tempo comporta-se como uma garota, exibe a terna atitude feminina com o pai e, correspon- dendo a isso, aquela ciumenta e hostil em relagio 4 mie. Essa interferéncia da bissexualidade torna mui- to dificil compreender as primitivas identificagdes e escolhas objetais, e ainda mais dificil descrevé-las de modo inteligivel. Também pode ser que a ambivalén- cia constatada na relacdo com os pais deva se referir inteiramente a bissexualidade, e nao, como apresentei acima, ter se desenvolvido a partir da identificagao, pela atitude de rivalidade. Acho que convém supor, em geral e muito espe- cialmente nos neuréticos, a existéncia do complexo 4 oEvEOL de Edipo completo. A experiéncia analitica ensina, entéo, que em bom numero de casos um ou outro componente dele se reduz a tragos quase impercepti- veis, de modo que se produz uma série, numa ponta da qual esta o complexo de Edipo normal, positivo, e na outra ponta aquele contrario, negativo, enquanto os elos intermedidrios exibem a forma completa, com as coisas sucederao de forma andloga na identificagao com a mie. O peso maior ou menor das duas disposigdes sexuais serd refletido na diferente intensidade das duas identificagées. Podemos supor, entao, que o resultado mais comum da fase sexual dominada pelo complexo de Edipo é um precipitado no Eu, consistindo no estabelecimento dessas duas identificasoes, de algum modo ajustadas uma & ou- tra. Essa alteragéo do Eu conserva a sua posigéo especial, surgindo ante o conteiido restante do Eu como ideal do Eu ou Super-eu. Mas o Super-eu nao é simplesmente um residuo das primeiras escolhas objetais do Id; possui igual- mente o sentido de uma enérgica formagio reativa a este. Sua relagao com o Eu nao se esgota na advertén- cia: “Assim (como 0 pai) vocé deve ser”; ela compreen- Il, O EU E0 SUPER-EU (IDEAL 00 EU) de também a proibigao: “Assim (como 0 pai) vocé ndo pode ser, isto é, nao pode fazer tudo o que ele faz; ha coisas que continuam reservadas a ele”. Essa dupla face do ideal do Eu deriva do fato de ele haver se em- penhado na repressio do complexo de Edipo, de até mesmo dever sua existéncia a essa grande reviravol- ta. Claramente, a repressio do complexo de Edipo nao foi tarefa simples. Como os pais, em especial o pai, foram percebidos como obstaculo 4 realizagao dos desejos edipicos, o Eu infantil fortificou-se para essa obra de repressao, estabelecendo o mesmo obs- taculo dentro de si. Em certa medida tomou empres- tada ao pai a forga para isso, e esse empréstimo é um ato pleno de consequéncias. O Super-eu conservara o carater do pai, e quanto mais forte foi o complexo de Edipo tanto mais rapidamente (sob influéncia de autoridade, ensino religioso, escola, leituras) ocorreu sua repressdo, tanto mais severamente o Super-eu tera dominio sobre o Eu como consciéncia moral, tal- vez como inconsciente sentimento de culpa. — Mais adiante apresentarei uma conjectura acerca de onde ele tira forgas para esse dominio, o carater coercivo que se manifesta como imperativo categérico. Considerando uma vez mais a génese do Super-eu, tal como foi aqui descrita, nds 0 vemos como 0 resulta- do de dois fatores biol6gicos altamente significativos: 0 longo desamparo e dependéncia infantil do ser humano € 0 fato do seu complexo de Edipo, que relacionamos a interrupgao do desenvolvimento da libido pelo periodo de laténcia e, assim, ao comego em dois tempos da vida 4B OEVEOID sexual.* Essa ultima caracteristica, especificamente hu- mana, ao que parece, tem uma hipétese psicanalitica, segundo a qual é uma heranga da evolugio para a cul- tura imposta pela era glacial. Com isto a diferenciagio do Super-eu em relagao ao Eu nao é algo fortuito, re- presenta os tragos mais significativos da evolucao da in- vestigagao e da espécie; e, dando expressao duradoura a influéncia dos pais, perpetua a existéncia dos fatores a que deve sua origem. Ja intimeras vezes se fez a psicanilise a objegao de nao se importar com o que é elevado, moral e suprapes- soal no homem. Tal objecao é duas vezes injusta: tanto histérica como metodologicamente. No primeiro caso, porque desde o inicio atribuimos as tendéncias morais e estéticas do Eu o estimulo a repressao; no segundo, porque no se quis ver que a investigacao psicanaliti- ca nao podia apresentar-se como um sistema filos6fico, com um edificio teérico inteiro e completo, mas teve que abrir seu caminho para o entendimento das com- * Na Standard inglesa ha duas mudangas nesta passagem, que Ja- mes Strachey informa, numa nota, haverem sido feitas por ordem expressa de Freud. Eis a mesma passagem no texto da Standard: “Considerando uma vez mais a génese do Super-eu [super-ego], tal como foi aqui descrita,nés 0 vemos como o resultado de dois fato- res altamente significativos, um de natureza biolégica e 0 outro, histérica: Esta passagem também é reproduzida numa nota da Studienausgabe; em inglés, pois nao chegou a ser redigida em alemio. lO EU E OSUPER-EU (IDEAL 00 EU) plicagdes da psique passo a passo, através da dissecagao analitica de fendmenos normais e anormais. Enquanto nos ocupavamos do estudo do reprimido na vida psi- quica, nao precisamos partilhar a trémula afligao com © paradeiro do elevado no ser humano. Agora que nos langamos a andlise do Eu, podemos responder 0 seguin- te, a todos os que, abalados em sua consciéncia ética, queixaram-se de que tem de haver algo elevado* no ho- mem: “Sem davida, e é este 0 algo elevado, o ideal do Eu ou Super-eu, o representante de nossa rela¢ao com os pais. Quando pequenos nés conhecemos, admira- mos, tememos estes seres elevados; depois os acolhe- mos dentro de nés”. O que a biologia e as vicissitudes da espécie humana criaram e deixaram no Id é assumido pelo Eu, através * “Algo elevado”: ein hiheres Wesen, em alemio; Wesen pode significar “ser, natureza, esséncia”. Logo adiante, na referéncia a0 pais como “estes seres elevados”, encontra-se a mesma pala- vra no original. 4s OEVEOID da formagio do ideal, e revivenciado nele individual- mente. Gracas 4 hist6ria de sua formacio, o ideal do Eu tem amplos lagos com a aquisigao filogenética, a heran- ga arcaica do individuo. O que fez parte do que é mais profundo na vida psiquica de cada um se torna, através da formagio do ideal, no que é mais elevado na alma humana, conforme nossa escala de valores. Mas em vao nos empenhariamos em localizar o ideal do Eu, ainda que apenas de modo semelhante ao que fizemos com 0 Eu, ou inseri-lo numa das imagens com que tentamos figurar a relagao entre Eu e Id. Nao é dificil mostrar que o ideal do Eu satisfaz tudo © que se espera do algo elevado no ser humano. Como formagio substitutiva do anseio pelo pai, contém o gér- men a partir do qual se formaram todas as religides. O juizo acerca da prdpria insuficiéncia, ao comparar o Eu com seu ideal, produz o sentimento religioso de humil- dade que o crente invoca ansiosamente. No curso pos- terior do desenvolvimento, professores e autoridades le- vam adiante o papel do pai; suas injungées e proibigdes continuam poderosas no ideal do Eu, e agora exercem a censura moral como consciéncia. A tensao entre as ex- pectativas da consciéncia e as realizag6es do Eu é per- cebida como sentimenzo de culpa. Os sentimentos sociais repousam em identificagdes com outras pessoas, com base no mesmo ideal do Eu. Religiao, moral e sentimento social — os contei- dos principais do que é elevado no ser humano —'é 16 Deixando aqui de lado a ciéncia e a arte. 46 Ml, O EVE OSUPER-EU (IDEAL 00 EU) foram originalmente uma sé coisa. Segundo a hipétese de Totem e tabu, foram adquiridos filogeneticamente no complexo paterno; religido e limitagao ética, pelo dominio sobre o complexo de Edipo mesmo; os senti- mentos sociais, pela obrigagao de superar a rivalidade restante entre os membros da nova geragao. Em todas essas conquistas éticas 0 sexo masculino parece ter to- mado a frente; a heranga cruzada levou esse patrimé- nio também as mulheres. Ainda hoje os sentimentos sociais nascem, no individuo, como uma superestru- tura sobre os impulsos de citime e rivalidade contra os irmaos. Como a hostilidade nao pode ser satisfeita, ocorre uma identificag¢ao com o inimigo inicial. Ob- servacées feitas em casos de homossexualidade leve apoiam a suspeita de que também essa identificagao é substituto para uma escolha objetal terna, que tomou o lugar da postura agressiva-hostil.'” Entretanto, com a mengio da filogénese aparecem novos problemas, aos quais hesitarfamos em oferecer resposta. Mas nao ha safda, é preciso arriscar, ainda que receando que isso ponha 4 mostra a insuficiéncia de todo o nosso esforgo. A questao é: Foi o Eu ou o Id do homem primitivo que naquele tempo adquiriu religido e moralidade do complexo paterno? Se foi o Eu, por que nao falamos simplesmente de uma transmissao heredi- taria no Eu? Se foi o Id, como se harmoniza isso com 17 Cf. Psicologia das massas ¢ andlise do Eu (1921) e “Alguns mecanismos neuréticos no citime, na paranoia e na homosse- xualidade” (1922). OEVEOIO o carater do Id? Ou nao se pode estender a diferencia- ao de Eu, Super-eu e Id a uma época tao remota? Ou deve-se francamente admitir que toda esta concep¢a0 dos processos do Eu em nada contribui para o entendi- mento da filogénese e nao é aplicavel a esta? Respondamos primeiramente 0 que pode ser respon- dido com maior facilidade. A diferenciagao entre Eu e Id temos de atribuir nao s6 ao homem primitivo, mas tam- bém a organismos muito mais simples, pois é a inevita- vel expresso da influéncia do mundo externo. Quanto ao Super-eu, achamos que derivou justamente daquelas vivéncias que conduziram ao totemismo. A questo de se foi o Eu ou Id que experimentou e adquiriu tais coisas nao se sustenta. A reflexdo logo nos diz que o Id é inca- paz de viver ou experimentar vicissitudes externas endo através do Eu, que nele representa o mundo externo. Mas nao se pode falar de uma transmissio hereditaria no Eu. Aqui surge o hiato que separa 0 individuo real do con- ceito de espécie. Também nao se deve tomar rigidamente a distingao entre Eu e Id, e nao esquecer que o Eu é uma parte do Id especialmente diferenciada. As vivéncias do Eu parecem inicialmente perdidas para a heranga, mas, quando se repetem com frequéncia e forga suficientes, em muitos individuos que se sucedem por geracées, elas como que se transformam em vivéncias do Id, experién- cias cujas impressGes sao mantidas hereditariamente. As- sim, o Id hereditario alberga os residuos de incontaveis existéncias de Eu, e, quando o Eu cria seu Super-eu a partir do Id, talvez apenas faga aparecer de novo ante- riores formas de Eu, proporcione-lhes uma ressurrei¢ao. 8B IV. AS DUAS ESPECIES DE INSTINTOS A histéria da génese do Super-eu torna compreen- sivel que velhos conflitos do Eu com os investimentos objetais do Id possam prosseguir em conflitos com o herdeiro destes, o Super-eu. Quando o Eu nao conse- gue dominar o complexo de Edipo, o investimento de energia deste, oriundo do Id, volta a operar na forma- Go reativa do ideal do Eu. A profusa comunicagao en- tre esse ideal e esses impulsos instintuais ics resolve 0 enigma de o ideal mesmo poder ficar em grande par- te inconsciente, inacessivel ao Eu. A luta que ja se deu nas camadas mais profundas, e que nao chegou ao fim mediante rapida sublimagao e identificagao, prossegue numa regiao mais elevada, como na pintura de Kaul- bach sobre a Batalha dos Hunos.* IV. AS DUAS ESPECIES DE INSTINTOS Dissemos que, se a nossa divisdo da psique em um Id, um Eu e um Super-eu significa um progresso em nos- so conhecimento, ela deve revelar-se também um meio para a compreensao mais profunda e melhor descricdo das relag6es dindmicas da vida psiquica. Também ficou * Segundo esclarece James Strachey, esta foi a batalha, mais co nhecida como batalha de Chalons, em que Atila, rei dos Hunos, foi derrotado por romanos e visigodos, no ano de 451. O pintor Wilhelm von Kaulbach (1805-74) retratou-a num afresco, no qual 0s guerreiros mortos continuam lutando no céu, acima do campo da batalha — conforme uma lenda medieval. 49 OEVEOID claro, para nés, que o Eu se acha sob a influéncia parti- cular da percepgao, e que é possivel dizer, grosso modo, que as percepgées tém, para o Eu, a mesma importan- cia que os instintos para o Id. Mas o Eu esta sujeito ao influxo dos instintos assim como o Id, do qual é apenas uma parte especialmente modificada. Acerca dos instintos desenvolvi recentemente (em Além do principio do prazer) uma concepgao que aqui manterei e tomarei como base para as discussdes que seguem. De acordo com ela, ha que distinguir duas es- pécies de instintos, das quais uma, Os instintos sexuais ou Eros, é de longe a mais visivel e mais acessivel ao co- nhecimento. Ela compreende nao apenas o préprio ins- tinto sexual desinibido e os impulsos instintuais subli- mados e inibidos na meta, dele derivados, mas também o instinto de autoconservagao, que devemos consignar ao Eu e que no inicio do trabalho analitico opusemos, com boas razées, aos instintos objetais sexuais. Deter- minar a segunda espécie de instintos foi mais dificil para nds; afinal viemos a enxergar no sadismo o seu representante. Com base em reflexées tedricas ampa- radas pela biologia, supusemos que ha um instinto de morte, cuja tarefa é reconduzir os organismos viventes ao estado inanimado, enquanto Eros busca o objetivo de, agregando cada vez mais amplamente a substan- cia viva dispersa em particulas, tornar mais complexa a vida, nisso conservando-a, naturalmente. Ambos os instintos comportam-se de maneira conservadora no sentido mais estrito, ao se empenhar em restabelecer um estado que foi perturbado pelo surgimento da vida. 50 IV.AS DUAS ESPECIES DE INSTINTOS Este surgimento seria, entao, a causa da continuagao da vida e, ao mesmo tempo, da aspiragao pela morte, a prépria vida sendo luta e compromisso entre essas duas tendéncias. A questao da origem da vida permaneceria cosmolégica, a da finalidade e propésito da vida seria respondida de forma dualista. A cada uma dessas duas espécies de instintos estaria associado um processo fisiol6gico especial (assimilagao e desassimilagao [anabolismo e catabolismo]), em cada fragmento de substancia viva estariam ativas as duas, mas em mistura desigual, de modo que uma substancia poderia assumir a principal representagao de Eros. Ainda nao podemos conceber de que modo os ins- tintos das duas espécies se ligam, misturam, amalga- mam uns com 0s outros; mas que isto sucede regular- mente e em larga medida é uma suposigao inescapavel em nosso contexto. Devido 4 ligagao dos organismos elementares unicelulares em formas de vida pluricelula- res, haveria éxito em neutralizar o instinto de morte da célula singular e desviar os impulsos destrutivos para © mundo externo, por meio de um 6rgio especial. Esse 6rgio seria a musculatura, e o instinto de morte se ma- nifestaria entao — mas provavelmente sé em parte — como instinto de destruigéo voltado para o mundo exter- no e outras formas de vida. Havendo admitido a concepgao de uma mescla [ou jungao] das duas espécies de instintos, impde-se-nos a possibilidade de uma — mais ou menos completa — disjungao desses instintos. No componente sadico do instinto sexual teriamos o exemplo classico de uma 5 OEVEOW mescla instintual adequada a um fim; no sadismo que se tornou independente como perversao, o modelo de uma disjungao, embora nao levada ao extremo. En- tao se descortina para nés um largo 4mbito de fatos, que ainda nao foi considerado sob essa luz. Percebe- mos que 0 instinto de destruigao é habitualmente posto a servigo de Eros para fins de descarga, suspeitamos que o ataque epiléptico seja produto e indicio de uma disjungao de instintos, e aprendemos a ver que, entre os efeitos de algumas neuroses graves — as neuroses ob- sessivas, por exemplo —, merecem particular atengao a disjungo instintual e a proeminéncia do instinto de morte. Numa generalizagao rapida, conjecturamos que a esséncia de uma regressao libidinal, da fase genital a sadico-anal, por exemplo, baseia-se numa disjungao instintual, e, inversamente, 0 avango da fase genital inicial 4 definitiva tem por condigao um acréscimo de componentes eréticos. Surge também a questo de a ambivaléncia ordinaria, que com frequéncia é fortale- cida na disposigo constitucional 4 neurose, poder ser apreendida como resultado de uma disjungao; mas ela é tao primordial que deve ser antes uma mescla instintual nao consumada. Nosso interesse se volta naturalmente para a ques- tao de se havera nexos significativos entre as supostas formagées do Eu, Super-eu e Id, por um lado, e as duas espécies de instintos, por outro lado; também para a questo de se é possivel atribuir, ao principio do prazer que rege os processos psiquicos, uma posi¢ao fixa ante as duas espécies de instintos e as diferenciagGes psiqui- IV.AS DUAS ESPECIES DE INSTINTOS cas. Antes de entrar nessa discusso, temos de lidar com uma divida que diz respeito 4 colocagao mesma do pro- blema. E certo que no ha divida em relagio ao princi- pio do prazer, [e] a organizagao do Eu tem justificagao clinica, mas a disting’o das duas espécies de instintos nao parece bastante assegurada, e é possivel que fatos da anilise clinica liquidem tal pretensao. Parece haver um fato assim. Para a oposi¢ao entre as. duas espécies de instintos podemos introduzir a polari- dade de amor e ddio. Nao temos dificuldade em achar uma representagado para Eros, mas ficamos satisfeitos em poder encontrar no instinto de destruigéo, para 0 qual o aponta o ddio, um representante do instinto de morte, de tao dificil apreensio. Ora, a observagio cli- nica nos mostra que 0 édio é nao somente o inespera- do acompanhante regular do amor (ambivaléncia), nao apenas o seu frequente precursor nas relagdes huma- nas, mas também que o édio, em varias circunstancias, transforma-se em amor, e 0 amor, em édio. Quando essa transformagao é mais do que mera sucesso tem- poral, simples substituicdo, claramente desaparecem os alicerces para uma distingao fundamental como essa en- tre instintos erdticos e de morte, que pressupde proces- sos fisiologicos que correm em direges opostas. Claramente nio faz parte de nosso problema o caso em que primeiramente se ama e depois se odeia a mes- ma pessoa, ou 0 contrario, quando esta deu motivos para tanto. Tampouco 0 caso em que um amor ainda nao manifesto se exterioriza primeiramente por hosti- lidade e tendéncia 4 agressao, dado que o componente 533 OEVEOW destrutivo pode ai antecipar-se no investimento objetal, até que o erético a ele se junte. Mas conhecemos varios casos da psicologia das neuroses que talvez admitam a hip6tese de uma transformagio. Na paranoia persecut6- ria o enfermo se defende de uma ligac3o homossexual muito forte a determinada pessoa de uma certa manei- ra, € 0 resultado é que essa pessoa tao amada se torna um perseguidor, contra o qual se dirige a agressio — muitas vezes perigosa — do doente. E licito acrescen- tarmos que uma fase anterior transformara o amor em 6édio. Na génese da homossexualidade, mas também dos sentimentos sociais dessexualizados, a pesquisa psicanalitica nos deu a conhecer ha pouco a existéncia de vigorosos sentimentos de rivalidade que levam a in- clinagGes agressivas; somente apés a superagao deles o objeto antes odiado. torna-se amado ou objeto de uma identificagao. Cabe perguntar se nesses casos devemos supor uma conversao direta de dio em amor. Trata-se, aqui, de mudangas puramente internas, em que nao par- ticipam variagdes de conduta do objeto. Mas a investigacao psicanalitica do processo envol- vido na mudanga paranoica nos familiariza com a pos- sibilidade de um outro mecanismo. Desde 0 inicio esta presente uma atitude ambivalente, e a transformagao ocorre por meio de um deslocamento reativo do inves- timento, quando se subtrai energia do impulso erético e se introduz energia no impulso hostil. Nao a mesma coisa, mas algo semelhante acontece na superago da rivalidade hostil que leva 4 homosse- xualidade. A atitude hostil nao tem perspectiva de sa- 54 IV.AS DUAS ESPECIES DE INSTINTOS tisfagao, por isso — por motivos econémicos, entao — ela é substituida pela atitude amorosa, que oferece maior perspectiva de satisfagao, ou seja, possibilidade de descarga. Com isso nao precisamos supor, em ne- nhum desses casos, uma transformacio direta de édio” em amor, que seria incompativel com a diferenga quali- tativa das duas espécies de instintos. Mas notamos que, ao considerar esse outro mecanis- mo de transformacao de amor em ddio, fizemos tacita- mente uma outra suposigao, que deve ser explicitada. Procedemos como se houvesse na psique — seja no Eu ou no Id — uma energia deslocavel, que, em si indife- rente, pode juntar-se a um impulso erotico ou destruti- vo qualitativamente diferenciado e elevar o investimen- to total deste. Sem supor uma tal energia deslocavel nao avangamos. A questo é de onde procede, a que perten- ce e 0 que significa. O problema da qualidade dos impulsos instintuais e da sua conservagao nos diferentes destinos dos ins- tintos é ainda obscuro e quase nao foi abordado até hoje. Nos instintos sexuais parciais, que se prestam especialmente 4 observa¢4o, pode-se constatar al- guns processos que se enquadram na mesma ordem; por exemplo, que ha certo grau de comunicagao en- tre os instintos parciais, que 0 instinto de uma fonte particularmente erégena pode ceder a sua intensidade para o fortalecimento de um instinto parcial de outra fonte, que a satisfagao de um instinto substitui a de outro, e outras coisas assim, que devem dar animo para arriscar certas hipéteses. 5 OEveoO E na presente discussao tenho apenas uma hipéte- se a oferecer, nao uma prova. Parece plausivel que essa energia operante no Eu e no Id, deslocavel e indiferente, provenha da reserva de libido narcisica, seja Eros desse- xualizado. Pois os instintos eréticos nos aparecem como mais plasticos, desvidveis e deslocaveis do que os instin- tos de destruigao. Entao podemos prosseguir, sem maior dificuldade, dizendo que essa libido deslocavel trabalha para o principio do prazer, a fim de evitar represamentos e facilitar descargas. Nisso é possivel notar uma certa in- diferenga quanto ao caminho pelo qual sucede a descar- ga, desde que ela acontega. Conhecemos esse trago como algo tipico dos processos de investimento que ha no Id. Ele se acha nos investimentos eréticos, em que se mostra particular indiferenga quanto ao objeto, muito especial- mente nas transferéncias durante a andlise, que tém de se realizar, nao importando em quais pessoas. Recente- mente, Rank apresentou bons exemplos de reagdes neu- r6ticas de vinganga dirigidas contra as pessoas erradas. Ante essa conduta do inconsciente é impossivel nao lem- brar a divertida anedota em que um dos trés alfaiates de uma aldeia tem de ser enforcado, porque o tinico ferreiro da aldeia cometeu um crime capital. E necessario haver castigo, ainda que nao recaia sobre o culpado. A mes- ma imprecisdo jé haviamos notado nos deslocamentos do processo primario ocorridos no trabalho do sonho. Ali os objetos eram relegados a uma segunda linha de consi- deragao, assim como, no presente caso, as vias da agao de descarga. Seria proprio do Eu insistir numa maior exati- dio na escolha do objeto e da via de descarga. 1V.AS DUAS ESPECIES DE INSTINTOS Se esta energia deslocavel é libido dessexualizada, pode ser também descrita como energia sublimada, pois ainda manteria a principal intengao de Eros, a de unir e ligar, na medida em que contribui para a unidade — ou 0 esforco por unidade — que caracteriza o Eu. Se inclui- mos entre tais deslocamentos os processos de pensamento no mais amplo sentido, também 0 trabalho do pensamen- to é provido pela sublimagao de forga instintual erdtica.* Aqui nos achamos novamente ante a possibilidade, ja discutida, de que a sublimagao acontega regularmen- te por intermédio do Eu. Lembramos do outro caso, em que o Eu lida com os primeiros investimentos objetais do Id, e sem divida também com os posteriores, aco- Ihendo em si a libido deles e ligando-a 4 mudanga do Eu produzida pela identificagao. A essa transformagao em libido do Eu vincula-se naturalmente um aban- dono dos objetivos sexuais, uma dessexualizagao. De todo modo, assim compreendemos um importante pa- pel do Eu em sua relago com Eros. A medida que se apodera de tal forma da libido dos investimentos obje- tais, arvora-se em tinico objeto de amor, dessexualiza ou sublima a libido do Id, ele trabalha de encontro as intengGes de Eros, coloca-se a servigo dos impulsos ins- tintuais contrarios. Tem de tolerar uma outra porgao de investimentos objetais do Id, como que participar deles. * Erotische Triebkraft, no original; Triebkraft também pode ser ver- tida por “forga motriz”, segundo o uso corrente alemio, registra- do nos diciondrios bilingues. As tradugGes estrangeiras consulta- das empregam: energia instintiva erética, fuerza pulsional erética, ‘forge motrici erotiche, erotic motive forces. OEVEON Depois viremos a falar de outra consequéncia possivel dessa atividade do Eu. Um importante desenvolvimento haveria de ser feito agora na teoria do narcisismo. Bem no inicio, toda a li- bido se acha acumulada no Id, enquanto o Eu ainda esta em formagio ou é fraco. O Id envia parte dessa libido para investimentos objetais eréticos, e com isso o Eu for- talecido procura apoderar-se dessa libido objetal e im- por-se ao Id como objeto de amor. O narcisismo do Eu é entao um narcisismo secundario, subtraido aos objetos. Sempre tornamos a comprovar que os impulsos ins- tintuais cuja pista podemos seguir revelam-se derivados de Eros. Nao fossem as consideragdes apresentadas em Além do principio do prazer e, por fim, as contribuigées sddicas a Eros, teriamos dificuldade em manter a con- cepgao dualista fundamental. Mas, tendo que adota-la, somos levados a impressao de que os instintos de mor- te so mudos essencialmente, e de que o fragor da vida parte geralmente de Eros."* E da luta contra Eros! E dificil nao imaginar que o principio do prazer serve ao Id como uma biussola no combate 4 libido, que introduz perturbag6es no curso da vida. Se, conforme Fechner, o principio da constan- cia governa a vida, que seria uma descensio na morte, so as exigéncias de Eros, dos instintos sexuais, que, en- quanto necessidades instintuais, impedem a diminuigao 18 Pois, segundo nossa concep¢ao, os instintos de destruigao vol- tados para o exterior foram desviados do prdprio Eu pela media- glo de Eros. 38 V.ASRELACOES DE DEPENDENCIA DOEU do nivel e introduzem novas tensdes. O Id, guiado pelo principio do prazer, isto é, pela percepgao do desprazer, defende-se delas por varios meios. Em primeiro lugar, pela rpida indulgéncia para com as reivindicagdes da libido nao dessexualizada, ou seja, o empenho na sa- tisfagao das tendéncias diretamente sexuais. De modo bem mais amplo, numa forma particular dessas satisfa- gGes, em que convergem todas as exigéncias parciais, livrando-se das substancias sexuais, que sao vefculos saturados, por assim dizer, das tensGes erdticas. A ex- pulsdo de matérias sexuais no ato sexual corresponde, em certa medida, 4 separacao de soma e plasma germi- nal. Dai a semelhanga entre o estado que segue a plena satisfago sexual e a morte, sendo que nos animais in- feriores a morte coincide com 0 ato da procriagao. Tais seres morrem na reprodugao, na medida em que, apés se excluir Eros mediante a satisfagao, o instinto de mor- te fica livre para levar a cabo suas intengGes. Finalmen- te, como vimos, o Eu facilita para o Id o trabalho de su- peracio, ao sublimar partes da libido para si e seus fins. V. AS RELACOES DE DEPENDENCIA DO EU Talvez a complexidade da matéria sirva de desculpa para © fato de nenhum dos titulos corresponder inteiramente ao teor do capitulo, e de sempre retornarmos a coisas ja tratadas quando queremos estudar novos aspectos. 9

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