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Carta Manifesta | Balanço do Carnaval de Rua 2023

No dia 1º de março reunimos blocos e coletivos do carnaval de rua para realizar um balanço do carnaval de
rua de 2023. Estavam presentes Arrastão dos Blocos, Comissão Feminina do Carnaval de Rua de SP,
Fórum de Blocos de SP, ABASP, UBECRESP, OCUPA-SP, TREME-SP e dezenas de blocos. Esta carta
manifesta nosso descontentamento e vem a público pedir que Ricardo Nunes e Aline Torres, prefeito e
secretária de cultura da cidade, cumpram com seu papel de gestores de política pública e escutem quem de
fato constrói a cultura viva dessa cidade: os blocos de carnaval de rua.

Foi maravilhoso voltar às ruas e viver o Carnaval de rua mais esperado da democracia
brasileira: muita alegria, resistência e amor por nossa cidade. Em festa a São Paulo da diversidade
cultural, do encontro das diferenças, do arco-íris de gliter que insiste em brilhar em meio ao asfalto cinza.

Infelizmente, 2023 foi o ano mais difícil para quem organiza a folia. O agigantamento do nosso
carnaval vem combinado com escolhas de gestão que têm prejudicado a existência do carnaval de rua
livre, comunitário, participativo e democrático. No cenário atual vence a desconfiança: a prefeitura não
confia nos blocos de rua e os blocos não confiam na prefeitura. Nunes e Torres sentaram com a empresa
patrocinadora e receberam a imprensa, mas não conversaram de fato com quem faz a festa.

Por meio desta viemos dizer que não aceitaremos em silêncio o aprofundamento da política
que asfixia os princípios ancestrais de nossa festa ao levar ao declínio dos laços territoriais, à extinção
de blocos tradicionais e ao cerceamento da livre manifestação cultural.

Falta de Participação Social

O conhecimento histórico acumulado em nossas agremiações foi ignorado pela gestão


Nunes-Torres. Os modelos de representação foram ineficazes e retiraram os blocos da mesa de decisões.
Alegam inúmeras reuniões, mas a quantidade de encontros não reflete a qualidade de comunicação,
péssima. O carnaval de 2023 foi marcado pela ausência de transparência, confusão de informações,
descaso com os dados, desentendimento e ameaças durante o planejamento e execução da festa.

O comitê criado este ano foi composto de maneira arbitrária e nunca teve a chance de representar a
diversidade de blocos. Não é papel da Secretaria Municipal de Cultura e de ninguém do poder público
decidir quem fala em nosso nome.

A tentativa de aplicar modelos como o da Virada Cultural, do Réveillon, do Aniversário de São Paulo
ou até mesmo do Carnaval do Anhembi, para formatar o carnaval de rua, além de não funcionar, é
altamente desrespeitosa e ataca princípios e tradições carnavalescas. Carnaval não é apenas um evento a
mais na agenda, é patrimônio histórico e cultural, construído comunitariamente e precisa ser respeitado em
sua complexidade. O modelo de gestão de carnaval de rua deve ser próprio e específico às
peculiaridades carnavalescas, construído democraticamente e com participação popular.

Nunes e Torres, nós apelamos novamente: nos recebam. Precisamos de uma avaliação sincera
e de construção de fato participativa para garantir que o carnaval de 2024 não repita os erros deste ano.
Fomento para o Carnaval de Rua

A pandemia e o isolamento social atingiram brutalmente o setor cultural, um dos primeiros a parar e
últimos a retomar. Dentro do setor cultural, o último segmento de trabalhadores a voltar foi o setor
carnavalesco. Passamos três anos lutando para sobreviver e criando alternativas para manter nossos
blocos vivos.

A prefeitura de São Paulo pareceu acenar para nossas dificuldades financeiras em dois momentos:
no edital “Tô me Guardando", que em 2021 prometeu 3 mil reais por projeto de Live e, recentemente, no
edital de Premiação dos Blocos que prometeu fomentar 300 blocos com 14 mil reais para cada. O primeiro
foi cancelado e muitos blocos que investiram para realizar as atividades levaram calote. O segundo teve
problemas técnicos, desencontros de informações e diversos entraves burocráticos, resultando em
apenas cerca de 75 blocos contemplados, que receberam (ou ainda esperam para receber) 3 mil reais a
menos do que o prometido. O que colocou blocos em situação de insegurança, muitos cancelamentos
e dívidas com fornecedores, afetando a cadeia econômica do carnaval.

É urgente que a Secretaria Municipal de Cultura honre seu compromisso, pague integralmente
os 14 mil prometidos, e desenvolva de maneira participativa uma política pública de fomento efetivo ao
carnaval de rua comunitário e popular. Esse que mantém, durante todo o ano, viva a chama
carnavalesca.

Violência policial, abuso de autoridade, punições e cerceamentos

A parte mais infeliz e inaceitável do carnaval de rua 2023 foi o abuso de autoridade, a
violência policial e a punição aos blocos de rua. Não admitimos a violência contra foliões como
forma de desocupar a rua. Tivemos foliões com as cabeças abertas por cacetetes, mulheres levando
pontapés na costela, invasões de desfiles, presenças ostensivamente agressivas, ameaças de violência e
multas.

As atrocidades vem se intensificando nos últimos anos e chegaram em seu ponto mais grave
neste carnaval. A Defensoria Pública já foi acionada e está acompanhando o caso. Exigimos a punição e
exoneração dos responsáveis pela violência física, mas não só isso. Temos consciência de que os
problemas são resultado da falta de diálogo e da escalada da tensão entre a gestão Nunes-Torres e
os blocos e exigimos uma mudança na postura.

Não compactuamos com a política que usa como chantagem fornecer serviços essenciais
para a cidade (tais quais limpeza urbana, banheiro, segurança, poda de árvores e controle de tráfego) para
pressionar e censurar blocos. Não admitiremos a culpabilização e criminalização dos blocos pela
ausência da prefeitura na gestão da coisa pública.

O que vimos foi um show de proibições: proibição de desfiles noturnos, redução do tempo de
cortejos sem justificativa, ameaças de multa, restrição de trajetos, bloqueios de bairros, gradis e tapumes
fechando áreas públicas, pressão para o cumprimento de regras que foram feitas a despeito de quem faz a
festa. Tudo isso combinado com falta de experiência, desorganização e assédio.
Enquanto todas as cidades carnavalescas do país explodiram em alegria noite adentro, a gestão
Nunes-Torres comemorava o “sucesso do carnaval de rua” que impôs um toque de recolher e fez a
cidade que não dorme parecer uma cidade fantasma a partir das 19h, limpa e silenciosa como em
nenhum outro dia do ano.

O modelo da política pública de carnaval de rua que possibilitou a retomada do carnaval foi
desvirtuado de tal modo que não o reconhecemos mais. As dinâmicas atuais são inaceitáveis e nos
empurram cada vez mais para uma lógica que asfixia a liberdade e alegria da festa. É imperativo
re-pactuar a política pública de maneira democrática, garantindo as condições para que ela exista.

O trânsito atravanca cidade de São Paulo cotidianamente, assim como ocorrem furtos de celulares,
falta limpeza urbana e banheiros públicos. Nenhum desses problemas é exclusivo do carnaval, e
culpabilizar a grande tradição cultural brasileira por problemas da gestão pública é hipocrisia pura.

Por trás da fala daqueles que defendem o discurso da “ordem”, tenta ressurgir na cidade uma
agenda política moralista, conservadora e violenta: racista, misógina, homofóbica, transfóbica e anti-cultura.
Sabemos que o carnaval incomoda, pois a felicidade de corpos tradicionalmente excluídos
ocupando a rua pública atormenta quem nos preferia mortas e tristes, mas não vencerão.

Seguiremos celebrando o carnaval de rua, nossos laços comunitários e nossa cultura,


apesar da atual gestão. A cidade de São Paulo é superlativa, é o oposto da ordem. Ela pulsa
constantemente no compasso de nossos tambores. Não calarão nossa festa.

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