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M 1949, Simone de Beauvoir publica-

vana revista Les Temps modernes al-


guns capítulos de seu próximo livro,
O segundo sexo. Pioneiro, o texto causou grande
comoção por seu feminismo audacioso e con-
sagrou a autora no panteão dafilosofia mundial.
Em homenagem aos setenta anos desta
obra revolucionária, a Editora Nova Fronteira
preparou esta edição especial, que conta com
a colaboração de grandes pensadorasbrasilei-
ras. A antropóloga Mirian Goldenberg, a his-=
toriadora Mary Del Priore e a filósofa Djamila
Ribeiro abordam, em textos inéditos, a impor-
tância da obra ao longo das décadas. O livreto
traz também o impactante ensaio “Quem tem
medo de Simone de Beauvoir??, da filósofa
Marcia Tiburi, e uma entrevista com Sylvie Le
Bon de Beauvoir, herdeira e editora da eseri-
tora francesa, publicada pela Cult.
O material conta ainda com fotos que per-
passam a vida de Simone de Beauvoir, uma das
mentes mais brilhantes do século xx.
O
segundo
— Sexo
/O anos
ACDpOIS
Mirian Goldenherg
Mary Del Prioro
Djamila Ribeiro
Marcia Diburi
Sylvie Le Hon de Heauvolr
tem entrevista e Magda Guadalupe dos Santos)
A——ODDo E ee RD ci ão —s e
Direitos de edição da obra emlíngua portuguesa noBrasil adquiridos pela Editora
Nova Fronteira Participações S.A, Todos os direitos reservados, Nenhuma parte
desta obra pode ser apropriada e estocada /emsistema de banco de dados ou pro-
cesso similar, em qualquerforma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação
ete., sem a permissão do detentor docopirraite,

Otexto “Osegundosexo ainda tem muito que dizer às mulheres”, por Magda
Guadalupe dos Santos, foigentilmente cedido pela revista C2/!t paraesta edição,

Direção editorial: Daniele Cajueiro


Editora responsável; Ana Carla Sousa
Produçãoeditorial: Adriana Torres, Luisa Suassuna
Revisão: André Matinho
Diagramação: Larissa Fernandez Carvalho

Crédito das imagens

p.4- O Art Shay Archive 2019


p. 7 - O Getty Images Brazil/ Gamma-Rapho - RMEditorial Images
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p; 10-O Art Shay Archive 2019
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p: 15- O Art Shay Archive 2019
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p; 21 - O Getty Images Brazil / Gamma-Rapho - RMEditorial Images
p: 22 - O ArtShay Archive 2019
p: 24 - O Getty Images Brazil / APR - RMEditorial Tmages
p: 29= O Getty Images Brazil/ Corbis Entertainment
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p; 32 Algrensde Beauvoir 1948-1950 Travel Photography (O Art Shay Archive 2019,
Sumário

Ninguém nascelivre: torna-se livre,


por Mirian Goldenberg

ho] Ser ou não ser Simone...,


por Mary Del Priore

TA 70 anos de uma obra insuperável,


por Djamila Ribeiro

23 Quem tem medo de Simone de Beauvoir?,


pot Marcia Tiburi

27 “O segundo sexo ainda tem muito que dizer


às mulheres” (Entrevista com Sylvie Le Bon de Beauvoir),
por Magda Guadalupe dos Santos
Ninguém nascelivre: torna-se livre
Mirian Goldenberg

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher.”


A célebre frase que abre o segundo volume de O segundo sexo
sintetiza as teses apresentadas por Simone de Beauvoir nas mais
de novecentas páginas de um estudo fascinante sobre a condição
feminina.
Considerada “a bíblia do feminismo”, a obra persegue obs-
tinadamente as respostas para a questão existencial: o que é uma
mulher?
O primeiro volume, Fatos e mitos, examina profundamente a
condição feminina nas dimensões biológica, psicológica e históri-
ca. O segundo, A experiência vivida, analisa as diferentes fases da
vida de uma mulher, desde a infância à velhice, discutindo ques-
tões como iniciação sexual, casamento e maternidade.
Por fim, a parte que teve maior impacto na minha vida: “A
caminho da libertação.” Nela, Simone de Beauvoir mostra que a
“mulher independente” — aquela mulher excepcional que luta
pela sua autonomia econômica, social, psicológica e intelectual —
“está apenas nascendo” (p. 539, v. 2). Argumenta que,se as difi-
culdades são mais evidentes para uma “mulher livre”, é porqueela
escolheu a luta, não a resignação.
Simone de Beauvoir defende que foi pelo trabalho que a mu-
lher cobriu em grande parte a distância que a separava do homem e
que só com otrabalhoela podeconquistar umaliberdade concreta:
“Produtora, ativa, ela reconquista sua transcendência; em seus
projetos afirma-se concretamente como sujeito; pela sua relação
com o fim a que visa, com o dinheiro e os direitos de que se apro-
ptia, põe à prova sua responsabilidade.” (p. 503, v. 2)
Ela enfatiza que muitas mulheres, mesmo entre as que exer-
cem os ofícios mais modestos, têm consciência da importância de
serem independentes economicamente para conseguirem ser mais
livres e plenas.
“Ouvi uma mulher quelavava o piso de um saguão de hotel
declarar: Nunca pedi nadaa ninguém. Venci sozinha.” Mostrava-se
tão orgulhosa quanto um Rockefeller, por se bastara si mesma.”(p.
503, v. 2)
Simone de Beauvoir admite que as diferenças biológicas de-
sempenham algum papel na construção da inferioridade feminina,
mas defende que a importância social que se dá a essas diferençasé
muito mais determinante para a opressão que as mulheres softem.
Ser mulher não é somente nascer com um determinado sexo, mas
é, principalmente, ser classificada de uma forma negativa pela so-
ciedade. É ser educada, desde o nascimento, a ser frágil, passiva,
dependente, apagada, delicada, discreta, submissa e invisível.
Portanto, ser mulher não é um dado da natureza, mas da cul-
tura,já que não há um destino biológico que defina a mulher como
um ser inferior ao homem. Foi a história da civilização que fabricou
a sua situação de submissão e subordinação social. Depois, para
cada mulher em particular, é a história da sua vida, em especial a da
sua infância, que a define como “o inessencial perante o essencial”
(p. 13,v. 1). O homem é o Sujeito, ela é o Outro: o segundosexo.
Publicado na França em 1949, o magnífico estudo teórico foi
empreendido por uma mulher que só bem mais tarde, na déca-
da de 1970, se tornou uma militante feminista. Ela reconhece que
nunca experimentou a condição de inferioridade da mulher que
descreve. E que somente quando começou a pesquisar e escrever
O segundo sexo constatou que havia “uma infelicidade propria-
mente feminina”.
Simone de Beauvoir na coletiva de imprensa do Comitê
Internacional pelos Direitos das Mulheres, em 13 de
março de 1979, na França.

Simone de Beauvoir viveu sua própria condição de intelectual


sem nuncater sido hostilizada pelos homens, sem nuncater sofrido
o que a maioria das mulheres sofre apenas por ter nascido com de-
terminado sexo. Como nuncaquis casar nem ter filhos, não teve um
tipo de vida doméstica que considerava opressiva para as mulheres.
Ela acreditava que, assim, tinha conseguido escapar das servidões
da condição feminina. Rompeu com o destino secundário tradicio-
nalmente reservado às mulheres e se tornou uma das maiores pro-
tagonistas das lutas feministas.
Quando minhas jovens alunas me perguntam: “Quelivro devo
ler para começara estudar a questão feminina?”; quando mulheres
me pedem: “Você pode me indicar um livro que me ajude enten-
der melhor os meus desejos e sofrimentos?”; ou quando certos ho-
mens me indagam “Qual é o livro mais importante para compreen-
der a condição feminina?”, respondo semhesitar: O segundo sexo.
No meu concurso para professora titular da Universidade Fe-
deral do Rio de Janeiro, em 2015, a banca se surpreendeu por eu ter
citado apenas umaautora: Simone de Beauvoir. Em todas as minhas
palestras e livros, ela sempre é a minha referência mais fundamen-
tal, muitas vezes a única,
Como muitas mulheres da minha geração, O segundo sexo de-
terminou toda a minhatrajetória de vida. A minha primeira leitura
do livro, aos 16 anos, influenciou decisivamente as minhas escolhas
pessoais e profissionais. Desde então, li e reli, incontáveis vezes,
todosos livros de Simone de Beauvoir. Se eu estava condenada a
ser “uma moça bem-comportada”, a obra de Simone de Beauvoir
me transformou em “uma antropóloga malcomportada”. Ela foi
a minha maior inspiração para estudar as mulheres brasileiras e
também para pesquisar e escrever de um jeito menos convencional
dentro do mundo acadêmico.
Fazer uma novaleitura de O segundo sexo, mais de quarenta
anos apósa primeira, teve um sabor muito especial. Pude perceber
porque ele foi — e continua sendo — o livro mais importante de
toda a minhavida.
Quando alguém me pergunta se O segundo sexo ainda é uma
leitura obrigatória, respondo com os dados de uma pesquisa recen-
te que fiz com cinco mil homens e mulheres de 17 a 96 anos.
Perguntei às mulheres: “O que você mais inveja em um ho-
mem?”
Independentemente da idade, todas responderam emprimei-
tíssimo lugar: liberdade, Elas invejama liberdade sexual, a liber-
dade com o corpo, a liberdade deir e vir, a liberdade de rir e de
brincar, a liberdade de fazer xixi em pé e muitas outras liberdades
masculinas. Já os homens, quando perguntados sobre o que inve-
jam em uma mulher, responderam categoricamente: nada.
É impressionante que, setenta anos depois da publicação de
O segundo sexo e após tantas lutas e avanços na condição feminina,
as mulheres continuem invejando fortemente a liberdade mascu-
lina — enquanto os homens demonstram não enxergar nada de
invejável nas mulheres.
“Não há, para a mulher, outra saída senão a de trabalhar pela
sualibertação”, adverte Simone de Beauvoir. Para tanto, cumpre-
-lhe “recusar os limites de suasituação e procurar abrir para si os
caminhos do futuro; a resignação não passa de uma renúncia e de
uma fuga” (p. 439, v. 2).
Para ela, “hoje em dia, lhe é possível tomar o destino nas
mãos, em vez de entregá-lo ao homem” (p. 120, v. 2). Porém, “é
muito difícil às mulheres assumirem concomitantemente sua con-
dição de indivíduo autônomo e seu destino feminino;[...] é mais
confortável suportar uma escravidão cega que trabalhar para se
libertar”? (p. 339, v. 1).
No entanto, como sua obra demonstra, a luta pela libertação
é uma exigência não só das mulheres, mas também dos homens,
já que senhorese escravos são aprisionados pela mesmalógica de
dominação. Enquanto homens e mulheres não se reconhecerem
comoiguais não poderãoviver plenamente a sualiberdade.
A maiorlição que O segundo sexo deixa para as novas gera-
ções é a de que querer ser livre é também querer que os outros se-
jam livres. Afinal, homens e mulheres não nascem livres: tornam-se
livres.

Simone em 1953.
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Ser ou não ser Simone...
Mary Del Priore

Há mais de umséculo ela está no centro dos debates sobre


a igualdade entre homens e mulheres. Nascida a 9 de janeiro de
1908, Simone Lucie Ernestine Marie Bertrand de Beauvoir figura
entre os mais marcantes pensadores do século XX, por suas teses
sobre a condição feminina. A personalidade desta quefoifilósofa,
romancista, memorialista e ensaísta está ligada a de outro grande
pensador do século XX: seu companheiro, o existencialista Jean-
-Paul Sartre.
Filha de uma família burguesa, Simone nasceu em Patis, no
bairro de Montparnasse, e, aos cinco anos, começou ser escolari-
zada no Couts Desir, colégio para “meninas de boa família”. Porém,
depois da Primeira Guerra Mundial,a falência do avô lançou a famí-
lia em dificuldadesfinanceiras. Desgostosa, ela viu o casamento dos
pais ruir ao mesmo tempo que o dote materno minguava.
Aos 15 anos,já tinha se decidido: seria umaescritora célebre!
Depois de estudar letras latinas e matemática, a jovem Simone se
interessou porfilosofia. Diplomada em 1929, tornou-se professora.
Educada de maneira extremamente piedosa pela família, muito jo-
vem se tornouateia, opondo-se ferrenhamente ao casamento e de-
senvolvendo teses sobre a liberdade e a autonomia dos indivíduos,
particularmente das mulheres. Na Universidade de Paris, Simone
encontrou outros jovens intelectuais, a quem se ligou: Boris Vian,
Maurice Merleau-Ponty e Jean-Paul Sartre. Contribuiu para fundar
com elesa revista Les Temps modernes. Teve início uma relação mí-
tica com Sartre — a quem Simonejulgava um gênio — que somente
a morte interromperia. Ele a considerava seu “amor necessário”, em
contraste com o que chamava de “amores contingentes”, que, aliás,
ambos viveram. Na época, Simone também abandonou a ideia da
magistratura para viver pobremente assumindoseu verdadeiro ofí-
cio: a escrita.

Simone de Beauvoir com Jean-PaulSartre em 1977.

Em 1949, ela publicou seu livro mais célebre: O segundo


sexo. A ideia central nasceu de uma conversa com Sartre, dois
anos antes. Ele tinha lhe perguntado o quesignificava para ela
ser mulher. “Abandonei o projeto de uma confissão pessoal para
me ocupar da condição feminina em sua generalidade”, regis-
trou Simone mais tarde em A força das coisas, um dos volumes de
suas memórias. Baseada em rigorosa pesquisa acadêmica, a obra
avançou teses inovadoras: atacou violentamente a ordem sexual
dominante, pregou liberalização da contracepção e do aborto,
reabilitou a homossexualidade feminina, denunciou a violência
das relações entre gêneros e desmontou os mitos do instinto ma-
terno, da feminilidade e da maternidade. Foi a primeira vez que
uma mulher reivindicou seus direitos através de um livro dessa
forma.
Na França,a recepção dos dois volumes de O segundo sexo
foi muito polêmica. Quando surgiram os primeiros capítulos,
publicados em Les Temps modernes, o renomado escritor Fran-
çois Mauriac foi aos jornais denunciar que literatura “feita em
Saint-Germain-des-Prés” atingira o “limite da obscenidade”.
Com título de “A iniciação sexual da jovem mulher”, em seu
texto ele convidava a juventude cristã a reagir. Ademais, fez uma
piada de mau gosto, referindo-se à posição de Simone em Les
Temps modernes: “Agora sei tudo sobre a vagina de sua patroa.”
A imprensa aproveitou o ataque para contestar a hegemonia cul-
tural de Sartre e de sua revista, usando Beauvoir para atingir o
casal. Com argumentos semelhantes, tanto os grupos de direita
quanto os comunistas, afeitos à moral tradicional, mostraram-
-se ainda mais agressivos em relação ao livro, enquanto cristãos
progressistas e a esquerda não comunista ampararam, em parte,
as teses da autora. O Vaticano se juntou aos críticos e colocou
a obra nalista de livros proibidos, mas o escândalo catapultou
Simone ao sucesso. Nas livrarias, foram vendidos mais de 22 mil
exemplares na primeira semana.
O segundo sexo é uma obra revolucionária porque Simone
foi a primeira feminista a justificar suas posições por meio de
teses filosóficas e interpretações históricas. Ela revela que a desi-
gualdade entre homens e mulheres foi histórica e ideologicamen-
te construída. Em seu entender, as mulheres devem tomar posse
de seus destinos não como mulheres, mas como homens, Assim,
elas não seriam mais representantes do sexo inferior diante de
um Ser Absoluto, e sim um indivíduo igual. Segundo a autora,
se a existência humana é um jogo ambíguo entre transcendência
e imanência e os homens são capazes de expressar sua transcen-
dência através de projetos, as mulheres não deviam seguir obri-
gadas à vida repetitiva e pouco criativa da imanência. Pelas rela-
ções desiguais, Beauvoir via responsáveis de ambos os lados: os
homens por sexismo e covardia e as mulheres por sua submissão
voluntária. A moral existencialista, porém, as convidava a assu-
mir escolhas em total liberdade. Mas como sair da dependência
e da alienação?
Noprimeiro volume, sob a ótica antropológica, biológica,
psicanalítica, literária e materialista histórica ela analisa os mitos
geradores do papel feminino como um Outro do homem. Às-
sim, se diferenças biológicas como a gravidez, o aleitamento ou
a menstruação contribuíram para identificar singularidadesentre
os sexos, não eram suficientes para justificar a ordem desigual
entre homens e mulheres. A seguir, ela analisa o mito do “eterno
feminino”, que integra tantas representações: a mãe, a virgem, a
pátria-mãe, a natureza — imagensideais capazes de negara indi-
vidualidade das mulheres.
O segundo volumese inícia com a frase mais célebre: “Nin-
guém nasce mulher: torna-se mulher.” A autora destrói o essen-
cialismo que pretendia serem as mulheres criaturas simplesmente
definidas por seu sexo, mostrando, ao contrário, que elas eram
construídas e doutrinadas para representar papéis idealizados
pela sociedade. A cada etapa da vida, da meninice à adolescência
e desta à maturidade, seriam forçadas a abandonar suasreivindi-
cações à subjetividade transcendente, em favor da submissão a
um “papel passivo” e “alienado”, deixando aos homensos papéis
ativos e subjetivos. Eles, sujeito; elas, objeto. A complexa análi-
se de Simone também enfoca as mulheres responsáveis por sua
própria submissão, fugindo à condição de transcendência para se
fixar em crenças e valores predeterminados. Na conclusão, Beau-
voir faz recomendações práticas para favorecer a emancipação
feminina. Segundo ela, é fundamental “transcender-se”, através
de projetos próprios. A mulher moderna deve pensar, agir e tra-
balhar nas mesmas condições que os homens.
Outro aspecto dessa obra é o fato de Beauvoir escrever sem-
pre em primeira pessoa. Esse eu é político. Ela não se esconde
atrás do nós, desse nós majestático que a universidade inventou
no século XIX. Nesse sentido, ela ousa ir à praça pública dizer o
que pensa — como cidadã, como intelectual — e afirmar o que
chamava de “a aventura deser si mesma”.
O resultado é que hoje há milhões de estudos sobre condi-
ção feminina e gênero. Estes se dividem em duas linhagens: os
beauvoiristas, com posição mais universalista e interessados nas
estruturas sociais que modelam o “ser mulher”, e os diferencialis-
tas, que apostam nas especificidades e singularidades do gênero.
A partir dos anos 1990, o tema se ampliou, e as comemorações do
centenário de nascimento da autora e do aniversário de cinquen-
ta anos de O segundo sexo convidaram a análises cada vez mais
profundas dessa obra que se renova a cada leitura e pelos olhos
de cadaleitorae leitor.

Simone de Beauvoire o escritor norte-


-americano Nelson Algren
70 anos de uma obra insuperável
Djamila Ribeiro

A convite da editora Nova Fronteira, escrevo sobre uma obra


que marcou minha graduação e meu mestrado em Filosofia Polí-
tica pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP): O se-
gundo sexo, monumental trabalho da filósofa francesa Simone de
Beauvoir. Aceitei de pronto, pois, além da admiração intelectual
ao texto produzido pela autora, tenho por ele um carinho pessoal
ante minha caminhada acadêmica. Não foram poucas as tardes em
que me debrucei sobreos livros de Beauvoir, inclusive seus roman-
ces. E a partir do contato com sua produção, pude estudar uma
perspectiva pouco ou nada incentivada em meus tempos de aluna.
Então, com base em um trabalho sobreela, fui aos Estados Unidos
em 2011, apresentar na Universidade de Oregon minha pesquisa de
iniciação científica à época subsidiada pela FAPESP — durante
a Simone de Beauvoir Society Conference,realizada pela Beauvoir
Society, que reúne estudiosas da pensadora espalhadas pelo mun-
do. Foi minha primeira experiência internacional enquanto acadê-
mica, ainda graduanda, e lá encontrei várias referências nas quais
me aprofundar — o quefoi um bálsamoante o desértico incentivo
empreendido pelos departamentos de filosofia para se estudar o
tema. Foi quando voltei ao Brasil que comecei a ministrar cursos
sobre a obra, algo que façoaté hoje. A ida à Beauvoir Society Con-
ferencefoi apenas um dentre tantos episódios de afeto que guardo
com a autora, além da admiração que tenho pela obra.
Em O segundo sexo, a categoria de gênero é pensada a partir
de uma perspectiva existencialista, A obra é um marco da crítica
ao modo como a mulher foi retratada na história da filosofia. Beau-
voir, além de romper com a visão histórica que cria uma inferio-
ridade natural da mulher, coloca-a no centro do debate e realiza
um estudo esmiuçadode suasituação, apontando para um projeto
de emancipação. Para isso, mobiliza categorias do pensamento de
Hegel, Merleau-Ponty, Heidegger e Sartre, entre outros, algo co-
mum na tradição filosófica.
Partindo desse empreendimento filosófico, podemos en-
tão falar em um “feminismo existencialista”, sendo o feminismo
aqui entendido como um projeto de autoafirmação da mulher
para além do gênero que a define. Com a famosa frase “Ninguém
nasce mulher: torna-se mulher”, a filósofa constrói uma crítica ao
“eterno feminino” evidenciando que o gênero para a mulheré algo
imposto. No projeto de Simone de Beauvoir, o gênero é simulta-
neamente condição para se pensar a mulher e objeto decrítica. É
quase inédito seu esforço em reconhecera situação da mulher (ou
a mulher comosituação).
Na obra em questão, a filósofa inicia este projeto refutando
a existência de uma natureza feminina, tributária do gênero, dada
pela biologia. A crítica a seguir contrapõe a psicanálise e os con-
ceitos freudianos e, por fim, refuta a teoria marxista em relação
à mulher. Beauvoir considera que essas três instâncias bloqueiam
a liberdade da mulher ao interpor à radicalidade do projeto (de
cada um e cada uma) uma mediação inerte que o mitiga e até certo
ponto o nega: o gênero.

Aolado,fotos de nove famosas feministas francesas es-


tão penduradas na fachada do Panteão de Paris em 5 de
março de 2008, três dias antes do Dia Internacional da
Mulher. Simone de Beauvoir está no centro da imagem,
comsuafamosafrase: “Ninguém nasce mulher: torna-se
mulher.” Além dela, aparecemnafoto: Colette, George
Sand, N ismes, Olympe de Gouges, Louise Mi-
chel, Mar arlotte Delboe Solitude.
PCI
LA PATRIE
[ESAVER
|

PRN
E Ene

Tomando como ponto de partida a dialética do senhor e do


escravo de Hegel, Beauvoir cunhará o conceito de Outro. Segundo
o diagnóstico de Beauvoir, a relação que os homens mantêm com
as mulheres é esta: a da submissão e dominação. As mulheres es-
tariam enredadas na má-fé dos homens que as veem e as querem
como um objeto. Beauvoir mostra em seu percurso filosófico sobre
a categoria de gênero que a mulher não é definida em si mesma,
mas em relação ao homem e através do olhar masculino, que a
confina em um papel de submissão que comporta significações hie-
rarquizadas. Este olhar funda a categoria do Outro beauvoiriano. À
categoria do Outro é antiga e comum, segundoa filósofa, nas mais
antigas mitologias, e em sociedades primitivas já se encontrava pre-
sente uma dualidade: a do Mesmoe a do Outro. Esta divisão não
teria sido estabelecida inicialmente tendo como base a diferença
entre os sexos, pois a alteridade seria uma categoria fundamental
do pensamento humano. Nenhuma coletividade, portanto, se de-
finívia como Umasem colocar imediatamente a Outra diante desi.
Por exemplo, para os habitantes de certa aldeia, todas as pessoas

19
que não pertencem àquele lugar são os “outros”; para os cidadãos
de um país, as pessoas de outra nacionalidade são consideradases-
trangeiras. Atualmente, esse conceito é trabalhado de forma ainda
mais aprofundada, como nas reflexões de Grada Kilomba de que
as mulheres negras seriam o “Outro do Outro”, a dupla antítese
de branquitude e masculinidade. Sobre o Outro beauvoiriano, a
filósofa francesa desenvolve:

Osjudeus são “outros” para o antissemita, os


negros para os racistas norte-americanos, os indí-
genaspara os colonos, os proletários para as classes
dos proprietários. Ao fim de um estudo aprofun-
dado das diversas figuras das sociedades primiti-
vas, Lévi-Strauss pôde concluir: “A passagem do
estado natural ao estado cultural define-se pela ap-
tidão por parte do homem em pensar as relações
biológicas sob a forma desistemas de oposições:
a dualidade, a alternância, a oposição e a simetria,
que se apresentam sob formas definidas ou formas
vagas, constituem menos fenômenos a serem ex-
plicados que os dados fundamentais e imediatos
da realidade social.” Tais fenômenos não se com-
preenderiam se a realidade humana fosse exclusi-
vamente um zxitseir baseado nasolidariedade e na
amizade. Esclarecem-se, ao contrário, se, segundo
Hegel, descobrimos na própria consciência uma
hostilidade fundamental em relação a qualquer ou-
tra consciência; o sujeito só se põe em se opondo:
ele pretende afirmar-se como essencial e fazer do
outroo inessencial, o objeto (p.13-14, v. 1).

Trata-se de apenas um dos pontos de destaque de O segundo


sexo, obra realmente revolucionária. Quandoo livro foi publicado,

20
era inimaginável para os homens da intelectualidade, progressista
ou conservadora, que uma mesma obra fosse refletir sobre a situa-
ção da mulher e desafiar cânones como Freud, Marx e a biologia.
Assim que foi publicada, uma febre tomou conta da França e 22
mil exemplares foram vendidos somente na primeira semana, mas
depois a obra foi retirada das livrarias diante da reação hostil de
vários setores. Quem está à frente de seu tempo incomoda muito
e muita gente. O furor foi tamanho que setenta anos depois ain-
da se estuda o impacto desse livro quefoi para o Index daIgreja
Católica e proibido em países como Portugal e Rússia. Seja como
for, a trajetória, o rigor e o brilhantismo do trabalho de Simone de
Beauvoir em O segundo sexo foram capazes de responder a todos
que não souberam suportar a vanguarda.

Simone de Beauvoir em um debate sobre sua obra em


Paris, em 15 de maio de 1984.
Quem tem medo de
Simone de Beauvoir?
Marcia Tiburi

Se hoje em dia fizéssemos uma resenha de O segundo sexo,


livro publicado por Simone de Beauvoir em 1949 — portanto, há
setenta anos —, ainda estaríamos sendo atuais. Diante daqueles
que dizem que O segundo sexo é um livro ultrapassado,nessa épo-
ca em que as mentalidades e os comportamentos parecem retroce-
der no tempo devemos nos perguntar: ultrapassado para quem?
Certamente não para o Brasil, infelizmente, cada vez mais atrasado
em tudo o que importa relativamente ao tema gênero: questões
comoa legalização do aborto, a equiparação salarial e, em um nível
cotidiano, a habitual e normalizada desigualdade doméstica, que
faz pesar em escala privada as naturalizações gritantes na escala
pública.
O Brasil se torna, a cada dia, o país do atraso. Afunda cada
vez mais no obscurantismo no que tange ao tema gênero, sobretu-
do quando ocorrem fatos comoa retirada dessa questão das me-
tas da educação nacional, quando se brada por todo lado sobre a
“ideologia de gênero”, ocultando o quão ideológica essa decisão
mesmaé, Raçae classe social também são assuntos que devem ser
mantidos longe para que haja a manutenção da miséria da educa-
ção brasileira, que contribui, por sua própria inanição, para uma
cultura cada vez mais empobrecida no que se refere à reflexão.
Seria a reflexão que, na base de tudo, poderia orientar ações em
outra direção.
Nesse contexto, fazer feminismo hoje implica perceber os ar-
tanjos quesão próprios à dominação de gênero e todas as demais
formas de dominação ela ligadas.
Nesse cenário em que o obscurantismo avança, o conteúdo
de O segundo sexo assusta. Salvo exceções — as feministas estudio-
sas, comprometidas com a teoria para a qual o livro é um clássico
—, ninguém leu as suas mais de quinhentas páginas. Dizer quese
trata de um clássico pode ser pouco profícuo. Talvez fosse melhor
que as pessoas tratassem O segundo sexo como uma espécie de
“autoajuda”, ou até como bula de remédio. Que perdessem o
medo de Simone de Beauvoir e o lessem de uma vez, sempre em
favor da cultura, da democracia, da liberdade de existir. Ele deve-

Simonee Sartre na praia de Copacabana, em


21 setembro de 1960.
ria ser lido não apenas por feministas, mas por mulheres, homens
e todas as pessoas que, de um modo ou de outro, estão marcados
pela questão de gênero. E isso porquese trata de um livro básico,
que nos ensina a pensar sobre as desigualdadese os privilégios de
gênero, aqueles que experimentamos como os mais naturais sem
perceber como nos marcam e nos fazem sofrer. Em palavras bem
simples: quem nunca se sentiu incomodada por ser “marcada”
como mulher antes de ser uma pessoa como qualquer outra? Os
homens não sabem o queé isso, mas lendo O segundo sexo certa-
mente entenderão que é preciso mudarse quiserem umasociedade
mais justa.
O livro de Simone de Beauvoir foi fundamental para colocar
os pingos nos is de questões como essa. Se o feminismo sempre
foi a teoria que buscou legitimar a reivindicação de direitos para
as mulheres, com Simone de Beauvoir ele se tornou a consciên-
cia crítica e, ao mesmo tempo, transformadora da desigualdade
de gênero. A frase “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”
desmascara a invenção histórica que fez “homens” e “mulheres”
padecerem sob estereótipos em nada relacionados à sua autocom-
preensão subjetiva. Com essa ideia começa o que muitos chamam
de “segunda onda” do feminismo, caracterizada justamente pela
desmontagem da questão de gênero.
Quem defende ou elogia hoje a teoria queer, que realmente é
umateoria riquíssima, não se dá conta de que no Brasil não che-
gamos nem à básica teoria feminista de Simone de Beauvoir, que
questiona a condição feminina ainda naturalizada entre nós nos
estratos mais fundamentais da cultura, nas instituições e no coti-
diano. “Naturalização” é o que experimentamosno dia a dia quan-
do vivemos dentro do binarismo “homem-mulher”, considerando
todas as formas que não se encaixam nesse padrão heterossexual
como inadequadas, ou então como um erro da natureza. No que
concerne ao gênero, isso implica divisão do trabalho, dentro e fora
de casa, e um sistema de preconceitos que converge com os privi-
légios masculinos.
Simone de Beauvoir aposta na crítica do patriarcado enquan-
to analisa sua história e, mais ainda, ela aposta na autocrítica da
condição feminina e se afasta, por meio dela, do que muitos erro-
neamente — ou com má-fé — entendem como “vitimização”. A
fragilidade feminina é uma invenção do patriarcado. À vitimização
pode ser a estratégia de certos posicionamentos que leva direto
a uma armadilha: a vítima desperta o desejo de violência. Quem
inventou a fragilidade das mulheres inventou sua condição de ví-
timas. Beauvoir não nos fará pensar que não existem vítimas, mas
nos levará a ver que a vítima feminina é forjada dentro do patriar-
cado. E que as posturas que não a superam reproduzem aquilo que
gostariam de negar. Assim, a diferença entre uma vítima concreta
e aquilo que podemos chamar de vítima ideológica, o sujeito da
proscrição, precisa ser desfeita, pois essa estrutura acaba por se
reproduzir simbolicamente fazendo repetir-se o próprio sistema
em que é gerada. Se, como disseram os autores da Dialética do
esclarecimento dois anos antes da publicação de O segundo sexo, o
proscrito desperta o desejo de proscrever, é preciso atenção. Em
palavras simples: uma mulher frágil desperta o desejo de fragilizar.
Umavítima em potencial é um convite para a agressão. Por isso,
cabe perguntar com Simone de Beauvoir: como uma mulher faz o
aprendizado da condição de fragilidade que a tornará vítima em
potencial? O queé a fragilidade? Se uma resposta já não pode se
sustentar do ponto de vista da “natureza”, que cultura é essa que
a inventa?
O quese ganha é a manutenção do poder na mão de homens,
mas também na mão de todos aqueles que pregam a moral-violên-
cia machista contra a qual devemos sustentar uma ético-política
feminista que inclua todas as pessoas em um cenário de direitos e
de respeito à singularidade para além de marcações.
“O segundo sexo ainda tem muito
que dizer às mulheres”, diz herdeira
e editora de Beauvoir:
Magda Guadalupe dos Santos

Apresento ao público leitor Sylvie Le Bon de Beauvoir tal


como ela mesma gosta de se nomear: “herdeira e editora de Simo-
ne de Beauvoir.” Bem mais do que uma filha escolhida e adotada
pela filósofa e escritora,ela se fez verdadeira guardiã de suas obras.
Entre as duas intelectuais, apesar da diferença de idade, desenvol-
veu-se uma grande amizade, um firme vínculo de recíproca con-
fiança e solidariedade, recontado numadas obras de autobiografia
de Beauvoir, Tout compte fait (1972), traduzida no Brasil com o tí-
tulo de Balanço final. Após a morte da escritora, competiu a Sylvie
Le Bon de Beauvoir a edição de suas cartas, seu diário de juventu-
de e seusescritos inéditos.

CULT — De que maneira a senhora compreende a recepção de O


segundo sexo hoje? À senhoracrê que nas últimas décadas a condi-
ção das mulheres mudoutão radicalmente que O segundo sexo tem
poucoa nos dizer hoje em dia?

Sylvie Le Bon de Beauvoir — É inegável que, desde algumas


décadas, muita coisa mudou para as mulheres: em muitos países
elas adquiriram direitos que as colocam, no trabalho, na convivên-
cia conjugal e na família, em igualdade com os homens, e conti-
nuaram a conquistar sua independência econômica, fazendo serem
E Entrevista publicada naedição 207 da revista Cult, em 6 de junhode 2017.
reconhecidas e aceitas as suas competências em muitas profissões
antesa elas vetadas. O acesso à contracepçãoe a liberdade de aborto
são, na história da humanidade, uma revolução sem precedentes,
fundamento concreto de todos os outros progressos. O que mudou
no estado de direito nos últimos trinta anos é que agora a voz das
mulheres existe, mesmo quandoela é desrespeitada, abafada,tidicu-
larizada. Não se poderá mais fazê-la calar.
A posição do feminismo poderia ser definida assim: “Nada se
deve às mulheres porque são mulheres, mas nada develhesser proi-
bido porque são mulheres.” Ora, essa reivindicação, que tem a sim-
plicidade das grandes verdades,está longedeser ouvida em todos os
lugares; as razões, portanto, persistem, e O segundo sexo ainda tem
muito que dizer às mulheres. O fato de que não se para de tradu-
zi-lo para as línguas mais variadas ao redor do mundo é uma prova
indireta disso.
Antes de tudo, os ganhos reais mencionadossão efetivos apenas
em certos países ricos e desenvolvidos. Mesmo nesses casos prívile-
giados, nenhum direito se encontra total e definitivamente garanti-
do, todos podem ser ameaçados — bastando lembrar o exemplo dos
Estados Unidos, onde os oponentes do direito ao aborto não se dei-
xam desarmar. Quanto às imensas regiões do mundo onde reinam
os fundamentalismos religiosos ou o puro machismo, o estatuto de
ser humano continua negado às mulheres: desprezadas, oprimidas,
violentadas, elas permanecem como seres inferiores e humilhados.
Por outro lado, e disso se esquece com frequência, O segun-
do sexo não reivindica apenas a emancipação das mulheres, ele
reivíndica sua liberdade — duas coisas que não devem ser confun-
didas. Pode-se dizer que a liberdade só começa onde a emancipa-
ção é adquirida. A segunda condição não implica necessariamente
a primeira. Simone de Beauvoir expõe nesse ensaio uma filosofia
da condição feminina cuja força está no radicalismo. Resume-se sua
filosofia geralmente com a famosa fórmula: “Não se nasce mulher,
torna-se mulher.” Se é uma conclusão rápida, nem por isso é erra-
da. Desde que se compreenda bem a fórmula: seu antinaturalismo
não se presta a qualquer tipo de compromisso. Muitos ideólogos
a falseiam tendenciosamente: assim, as feministas essencialistas não
temem reativar, revestindo com uma terminologia ultramoderna, a
antiga crença em uma “natureza feminina” preexistente.
Simone de Beauvoir nos dá um exemplo impressionante em
seus Diários de juventude (Cahiers de jeunesse), que ressuscitam as
angústias de sua aventura pessoal (e de toda sua vida): ela fez do
caráter insubstituível da individualidade humana um valor absoluto.
Muitos, ao contrário, no mundo de hoje, sucumbem às seduções das
ideologias dominantes e dos particularismos, ainda que eles sejam,
sem exceção, alienantes e opressivos.

Simone de Beauvoir e Sylvie Le Bon de Beauvoir no


Palácio do Eliseu, em 1984.
€C — O quea senhora podenos dizer sobre a atenção que Beauvoir
dispensava a seus leitores e especialmente sobre a recepção de seus
livros autobiográficos?

S — Com osleitores ela desejava falar “de pessoa para pessoa” e,


defato,ela foi desse tipo raro de autora que consegue uma comuni-
cação emocional imediata com seu público — muito além de uma
relação intelectual ou puramente literária. Seus leitores se sentem
envolvidos porela, pelo que ela escreve. Jamais assume ares de su-
perioridade com relação a eles, e seu modode falar de si é o modo
como fa'a dos outros. Ela tem uma maneira de questionar o outro,
mas com amizade. Isso vem do que há de particular em sua since-
ridade, que — coisa rara — não tem qualquer artifício: ela tem um
relacior mento justo consigo mesma. Possui um mododese aceitar
e se crit car ao mesmo tempo que faz com que cada um possa se
reconhe er: nem muito severa, nem muito indulgente. É de umaes-
pontanc dadelivre, que vai direto ao encontro do outro, sem rodeios
esem mi tiras.
De :ua preocupação com os leitores dá testemunho também a
imensa correspondência que recebeu (a qual pode ser consultada na
Biblioteca Nacional da França) e a que ela sempre respondeu com
generosa atenção.

C— À autobiografia ocupa um lugar importante na obra de Simone


de Beauvoir. O que a senhora pensa disso?

S — A autobiografia certamente representa uma parte importante


da obra de Simone de Beauvoir. O queela descobriu foi a importân-
cia que as citcunstâncias, “a força das coisas”, tinham no desenrolar
de uma existência, tanto que, em sua juventude, ela acreditava que
sua vida era umabela história que ela contava para si. Foi a Histó-
tia, em primeiro lugar o choque da Segunda Guerra Mundial, que
causou essa mudança interior, essa evolução. Seu engajamento —
contra a guerra na Argélia, contra a guerra do Vietnã, em favor do
feminismo militante e não apenas teórico, em favor da esquerda em

30
1968 — explica o lugar assumido pelos acontecimentose encontros.
Assiste-se, pois, ao longo de suas memórias, a uma passagem do pri-
vado para o público, a uma abertura para o mundo, mas sempre da
perspectiva privilegiada de seu olhar sobre si mesma,do conjunto de
suas recusas e escolhas.
Assim, se ela fala muito sobre outras pessoas, sobre aconteci-
mentos, é para melhorfalar de si, daquilo de que se nutriu ou se
distanciou, na medida em quetudo isso teve importância, profunda
ousuperficial, para ela. É que o gênero “memórias”, segundo Simo-
ne de Beauvoir, não é nem da esfera do puramente subjetivo nem

Simone na primeira sessão do Tribunal Interna-


cional de Crimes de Guerra (Tribunal Russell).
do puramente objetivo. Tão longe da confissão narcisista quanto do
registro histórico, seu propósito é refletir uma subjetividade — a sua
própria —, o que representa a seus olhos a única abordagem con-
creta de uma verdadevivida. Trata-se de reconstituir o mais hones-
tamente possível — sem vaidade ou humildade — a perspectiva de
uma consciência singular que, longe de estar fechada em si mesma
como uma mônada, abrange em perspectiva a totalidade do mundo
— num dado lugar, num dado momento da História, numa sequên-
cia de totalizações constantemente revistas.
Sua curiosidade, sua coragem, sua abertura, seus compromis-
sos, sua generosidade, bem como sua posição de célebre escritora
fizeram com queos encontros, as amizades, os amores, as viagens, as
experiências, os acontecimentos, os dramas privados e políticos, as
guerras e revoluções — com que todos esses componentes do “mun-
do” fossem excepcionalmente abundantes e diversificados em sua
vida, que outros certamente preenchem, mas sem nunca escondê-la
ou substituí-la: é sim a sua vida,é ela que está no primeiro plano.

Simone em viagem pela América Central, em foto tirada


por Nelson Algren.
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