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Néstor Garcia Canclin! uaa hi aaee 18 Entrary Sai de la Moderidad CULTURAS HIBRIDAS ESTRATEGIAS PARA ENTRAR £ SAIR DA MODERNIDADE Dados nernaionis de Ca (Ciara asin eosnminOi0 CULTURAL OS ISBN 978-85.814.0982.8 Lar © wciedade ~ Ams ea Latina 2, Cultura ~ Amé = Save not "EDERAL DO PANPA 26.5 : ners ci cunaoo COM ELE Mngt av08 voce OUTROS Feretaag use tse Latina 8: Péwmodernidade -Amética Latina 1 wina I-Titwo, IL Série. 970507 Dp306.008 indice para catdogo sisteméico: Tradusto ana Regina 1. América Lat ina: Culturae Hibrida Sociologia 806.098 Heloise Pezza Cintra0 ado dens inese Are Printed i in Bresil 2011 Foi feito depssito legal x CCULTURAS HlBRIDAS Rosales ¢ Enrique Mercado me ajudaram a nao agravar a obscuridade de certos problemas com a de minha escrita Maria Eugenia Modena € a acompanhante mas préxima na tare fa de juntar, na vida didria e no trabalho intelectual, 0 que significa pensar as experiéncias dos enlis ¢ as novs raizes,€ 08 crszamentos interculturais que estio na base dessas reflexdes. Se o livro é dedicado a Teresa e Julian é por essa capacidade dos filhos de mostrar-nos que o culto ¢ © popular podem sintetizarse na cultura massiva, nos prazeres do consumo que eles, sem culpa nem pre- vengdes, inserem no cotidiano como atividades plenamente justificadas, Nada melhor para reconhecé-lo do que evocar aquele Natal em que Instituto Nacional do Consumidor repetia obsessivamente: “Presenteie afeto, nfo o compre", em seus anéincios anticonsumistas no rédio ¢ na tclevisio; Teresa empregou a palavra “afeto” pela primeira vez em sua linguagem vacilante dos quatro anos. “Vocé sabe 0 que quer dizer?” “Sei = respondeu rapido ~, que voce nio tem dinheiro.” INTRODUCAO A EDICAO DE 2001 ‘As Curruras HipriDas EM Tempos DE GLOBALIZACAO ina ou um campo do conhecimento ‘onceitos irrompem ‘Como saber quando uma dis ‘mudam? Uma forma de responder é: quando alguns c com forca, deslocam outros ou exigem reformuléos. Fo isso 0 que acon- teceu com 0 “dicionario” dos estudos culturais. Aqui me proponho a dis se pode afirmar que hibridagao & um desses termos ccutir em que sentido detonantes. Vou ocuparme de como os estudos sobre hibridagio modificaram 9 modo de falar sobre identidade, cultura, diferenga, desigualdade, multiculturalismo e sobre pares organizadores dos conflitos nas ciéncias sociais: tradigo-modernidade, norte-sul, local global. Por que a questio do hibrido adquiriu ultimamente tanto peso se é uma caracterfstica an- tiga do desenvolvimento histérico? Poderseia dizer que existem antecc- erciimbios entre sociedades; de fato, dentes desde que comecaram os in Plinio, o Velho, mencionou a palavra ao referirse aos migrantes que che- garam a Roma em sua época. Historidores ¢ antrop6logos mostraram papel decisivo da mestigagem no Mediterraneo nos tempos da Gréci cis sica (Laplantine & Nouss), enquanto outros estudiosos recorrem espech ‘ueTURAS HiBRIDAS a0 termo hibridagio para id a Europa se expandiu em dire¢io & Am ificar o que sucedeu desde que ica (Bernand; Gruzinski) i a coexisténcia, desde o princi as e populares. mais se estende a an hibridacao a diversos processos culturais é na década final do século XX. Mas também se discute o valor desse conceito, Ele é usado para descrever rocessos interétnicos ¢ de descolonizacio (Bhabha, Young); globalizad res (Hannerz); iagens ecruzamentos de fronteiras = tisticas,literdrias ¢ comunicacionais (De la Campa; Hall; Martin Barbero: Papastergiadis; Webner). Nao fatam estudos sobre como se hibridam da associacio de instituigdes piblicas e corporacées privadas, da museografia ocidental e das tiadigdes periféricas nas expos i sais (Harvey). Esta nova introduca 3 edo tem 0 oe propésito de valorizar esses usos segundo escreveu Jean Franco, . método” para “nio nos espartilharmos em falsas oposicées, tais como '.¢ popular, urbano ou rural, modemo ou tradicional” (Franco, 1992) ¢sta expansio dos studs exige a entrada nas novas avenidas do debate. Outrossim, tratarei de algumas das objecdes dirigidas por razbes incipais posicdes apresentadas. Na medida em que, suras Hiridas & um livro em busca de cientifico des ist Q 10 dessa nogio, distingui-la-ei de seu uso em biologia com o fim le considerar a gd expecificamente as contribuigdes ¢ as dificuldades que ela apresenta nas ciéncias sociais. No tocante a sua contribuigio 20 pei ‘ina. Temos que respo! sdade de bens, facilitado innpopucho A EDIGAO DE 2008 xx AS IDENTIDADES REPENSADAS A PARTIR.DA HIBRIDACAO lomecar discutindo se hibrido é uma boa ou uma ma pale Ha que c 1¢ a consideremos respeitavel. ra, Nao basta que seja muito usada para qu Pelo contrario, seu profuso emprego favorece que The sejam atrib significados discordantes, Ao transferi-la da biologis 3s andlises ocioculturais, ganhou campos de aplicaglo, mas perdeu univocidade: Dai que alguns prefiram continua falar de sineretismo em quest®es r= cosas, de mesticagem em histria ¢ antropologia, de fusio em misica. Qual éa vantagem, paraa pesquisa clenifica, de recorrer a um termo car regado de equivocidade? Encaremos, entio, a discussio epistemol6gica. Quero reconhecer suficientemente tratado em meu livro Culturas Hi sobre os trabalhos que esse aspecto fe Inidas. Os debates que houve sobre estas paginas, € 6 ‘utores, citados neste novo texto, permitem-me agora elabo- de hibridacao nas cién- de outros a izagao ¢ 0 estatuto do concei a primeira definigi Cabe esclarecer que as € hibridagSes, razio pela qual nao podem ser consideradas fontes puras ‘Um exemplo: hoje se debate se 0 spanglih, nascido nas comunidade latinas dos Estados Unidos e propagado pela internet a mnsinado em cétedras universitérias ~ como ocorre n« lc dicionstios especial jodo 0 mundo deve ser aceito, € Amherst College de Massachusetts ~ ¢ objeto di dos (Stavans). Como se 0 espanhol ¢ © inglés fossem idiomas ni end as linguas pré-colombianas. Se né: reconhecéssemos a longa (8 termos de raiz érabe, nem algarabia, Uma forma de descrever esse brido, ea novas formas discretas, é a formula “ciclos de hibridacio" pr posta por Brian Stross, segundo a qual, na histéra, passamos de form: fados com o latim, arabe ria impura do castelhano e extinpasseme mos sem aleachofas, alealdes, almohade 10 do discreto ao h fic x (CULTURA HleRIDAS ‘mais heterogéneas a outras mais homogéneas, e depois a outras relati vamente mais heterogéneas, sem que nenhuma sej ‘mente homogénea. fatos tio variados quanto os casamentos mestigos, a combinagao de an- trais afticanos, figuras indigenas e santos catolicos na umbanda bra- sileira, as collages publicitarias de monumentos hist6ricos com bebidas ¢ catros esportivos? Algo freqiiente como a fusio de melodias étnicas com imiisca clssica © contempordnea ou com o jazz a salsa pode ocorrer em fendmenos tio diversos quanto a chicka, mistura de ritmos andinos ¢ aribenhos; a reinterpretacio jazistica de Mozart, realizada pelo grupo atro-cubano Irakere; as reelaboracdes de melodias inglesas e hindus fetuadas pelos Beatles, Peter Gabriele outros misicos. Os artistas que exacerbam esses cruzamentos ¢ os convertem em eixos conceituais de seus trabalhos nio 0 fazem em condigdes nem com objetivos semelhan- ‘es. Antoni Muntadas, por exemplo, intitul ‘{et0s exibidos em 1988 no Centro de Arte Rainha Sofia, de Madri. Nessa ocasido, insinuow, mediante fotos, os deslocamentos ocortidos entre o an- ‘o como hospital e o destino artistico que depois Ihe {ei dado, Em outra ocasio, criou um website, 0 hyridspaes, no qual ex- ididticas. Grande par- idia ¢ multicultural: a imprensa ¢ a publicidade de rua inseridas na telesio, ou os diltimos dez ‘minutos da programacio, da Argentina, do Brasil e dos Estados Unidos Vstos simultaneamente, seguidos de um plano-seqi cia que contrasta autores a advertir sobre o risco de tras- Passar & sociedade e & cultura a esterilidade que costuma ser associada a see termo? Os que fazem essa critica recordam o exemplo infecundo da ‘mula (Cornejo Polar, 1997). Mesmo quando se encontra tal objego em “pura” ou plena- ITRODUGKO A EDICKO DE 2001 oa textos recentes, tratase do prolongamento de uma crenea do século XIX, quando a hibridagio era considerada com desconfianga ao supor que prejuicaria o desenvolvimento social. Desde que, em 1870, ca mos trou o enriquecimento produzido por cruzamentos genéticos em botani ca, abundam as hibridagdes ferteis para apr i las de plantas diferentes e melhorar seu crescimento, resistencia, qua- dade, assim como o valor economico ¢ nustvo de alimentos derivados delas (Olby; Callender aco de café, lores, cereals ¢ outros pro- dutos aumenta a variedade genética das espécies ¢ melhora sua sobrevi- véncia ante mudangas de habitat ou climéticas. De todo modo, ni cada qual toma um cor bes de outras disci i ties de uso na ciéncia de origem. Conceitos biolgicos como o de re produgio foram reclaborados para falar de reprodugio soc mica ¢ cu belece em relaco com a consisténcia tebrica e 0 poder explcaivo desse termo, nao por uma dep: fatal do sentido que Ihe atribuiu ou- tra ciéncia, Do mesmo modo, as polémicas sobre o emprego metafori co de conceitos econdmicos para examinar processos simbélicos, como © faz Pierre Bourdieu ao referir-se a0 a ral € 208 mercados ii \s, nZo tém que centrar-se na migracio desses termos de uma Aisciplina para outra, mas, sim, nas operacdes epistemol6gi ‘tuem sua fecundidade explicativa ¢ seus limites no interior dos discur- s0s culturais: permitem ou nao entender melhor algo que permanecia inexplicado? oe A construcio lingiistica (Bakhtin; Bhabha) ¢ a social (Friedman; iadis) do concei tro lado, para ider ‘rio pré-colombiano as cul as fecundas: por exemplo, 0 im: com 0 novorhispano dos colonizadores ¢ depois com o dasii turais (Bernand; Gruzinski), a estética popular com a dos turistas (De i CULTURAS HiBRiDAS Grandis), as culturas étnicas nacionais com as das mei6poles (Bhabha) €com as instituigdes globais (Harvey). Os poucos fragmentos escritos de tumna histéria das hibridagées puscram em evidéncia a produtividade e 0 Poder inovador de muitas misturas interculturais, Como a hibridacao funde estruturas ou priticas sociais discretas Para gerar novas estruturas e novas pritica? As vezes, isso ocorre de todo nio planejado ou € resultado imprevisto de processos migrat6rios, turisticos de intercmbio econémico ou comunicacional. Mas freqiien- temente a hibridagao sunge da criatividade individual e coletiva. Nao s6 has artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnol6gico. Busca-se reconverter um patriménio (uma fibrica, uma ¢apacitagao profssional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri- oem novas condigdes de produgio e mercado. Esclarecamos o significado cultural de reconversio: este termo é uti- lizado para explicar as estratégias mediante as quais um pintor se converte ‘em designer, ou as burguesias nacionais adquirem os idiomas e outras come eténcias necessérias para reinvestir seus capitais econdmicos ¢ simbéli- 0s em circuitos transnacionais (Bourdieu). Também sio encontradas cestratégias de reconversio econémica e simbélica em setores populares 0s migrantes camponeses que adaptam seus saberes para trabalhar e con. sumir na cidade ou que vinculam seu artesanato a usos modernos para nteressar compradores urbanos; 0s operdrios que reformulam sua cultura Ge trabalho ante as novas teenologias produtivas; 0s movimentos indige- ‘nas que reinserem suas demandas na politica transnacional ou em um discurso ecolégico e aprendem a comunicéclas por radio, televisio ¢ internet, Por essas razées, sustento que o objeto de estudo nao & a hibridez, mas, sim, os processos de hibridacio. A andlise empirica desses iculados com estratégias de reconversio, demonstra que a interessa tanto aos setores hegeménicos como aos populares ue querem apropriarse dos beneficios da modernidade. Esses processos incessantes, variados, de hibrida¢io levam a relativizar a nocio de identidade. Questionam, inclusive, a tendéncia ‘antropolégica e a cle um setor dos estudos culturais ao considerar as id insmoaugho AEDigko bE 2001 vot tidades como objeto de pesquisa. A énfase a hibrdaro nfo enclasura apenas a pretensio de estabelecer identidades “puras” ou “auténticas ‘Além disso, pe em evidénciao sco de delimitaridentidades locais autocontidas ou que tentem afirmarse como radicalmente opostas A so- ciedade nacional ow a globalizagio. Quando se define uma identidade mediante um processo de abstragao de tracos (ingua, tradigdes, condu- tas estereoipadss), reqientemente se tend a desvinelaresss priticas da historia de misturas em que se formaram. Como conseqiiéncia, é absolutizado um modo de entender a identidade e sio rejeitadas manei- ras heterodoxas de falar a lingua, fazer misica ou interpretar as t Acaba-se, em suma, obturando a possibilidade de modificar a cultura ¢ politica i Os estudos sobre narrativas identitarias com enfoques teéricos que Tevam em conta os processos de hibridagio (Hannerz; Hall) mostram que no & possve! falar das identidades como se se tratasse apenas de um con- unto de tacos ixos, nem airmitas como aessncia de wma etnia ou de ‘uma nagio. A hist6ria dos movimentos identitarios revela uma série de operagdes de selecio de elementos de diferentes épocas articulados pe- Jos grupos hegemdnicos em um relato que thes d coeréncia, dram: dade ¢ elogiiéncia Pelo que foi dito acima, alguns de nés propomos deslocar o objeto de estudo da identidade para a heterogencidade ¢ a hibridagao interculturais (Goldberg). Jé nao basta dizer que nio ha identidades caracterizadas por esséncias autocontidas ¢ aistéricas, nem entendé-las como as formas em que as comunidades se imaginam ¢ constroem relatos sobre sua origem desenvolvimento, Em um mundo tio fluidamente interconectado, as se- dimentagées identitarias organizadas em conjuntos hist6ricos mais ou menos estiveis (etnias, nagdes, classes) se reestruturam em meio a conjun- tosinterétnicos, transclassistas ¢ transtiacionais, As diversas formas em que ‘os membros de cada grupo se apropriam dos repertérios heterogéneos de bens ¢ mensagens dispontveis nos circuitos transnacionais geram novos modos de segmentac&o: dentro de uma sociedade nacional, por exemplo, ‘© México, hd milhdes de indigenas mesticados com os colonizadores bran- TTT av CULTURAS HlBRIOAS cos, mas alguns se “chicanizaram” ao viajar aos Estados Unidos; outros remodelam seus habitos no tocante as ofertas comunicacionais de massa; outros adquiriram alto nivel educacional ¢ enriqueceram seu patriménio ttadicional com saberes ¢ recursos estéticos de varios paises; outros se corporam a empresas coreanas ou japonesas ¢ fundem seu capital étnico ‘com os conhecimentos ¢ as disciplinas desses sistemas produtivos. Estudar processos culturais, por iso, mais do que levar-nos a afirmar identidades auto-suficientes, serve para conhecer formas de situarse em meio & heterogeneidade ¢ entender como se produzem as hibridacdes. DA DESCRIGAO A EXPLICACAO Ao reduzira hierarquia dos conceitos de identidade e heterogene- dade em beneficio da hibridacio, tiramos o suporte das politicas de ho- mogeneizacio fundamentalista ou de simples reconhecimento (segrega- do) da ‘pluralidade de culturas”, Cabe perguntar, entio, para onde con- duz a hibridagao e se serve para reformular a pesquisa intercultural e 0 projeto de politicas culturais ransnacionais ¢ transétnicas,talver globais, Uma dificuldade para cumprir esses propésitos & que os estudos sobre hibridagao costumam limitarse a desorever misturas interculturais, Mal comecamos a avancar, como parte da reconstrugao sociocultural do conceito, para darlhe poder explicativa: estudar os processos de hibridacao situando-os em relagdes estruturais de causalidade. E darlhe capacidade hermenéutica: tornéclo ttil para interpretar as relagdes de sen- tido que se reconstroem nas misturas, Se queremos ir além de liberar a andlise cultural de seus tropismos undamentalistas identitérios, deveremos situar a hibridagio em outra rede de conceitos: por exempl ,contradi¢ao, mesticagem, sineretismo, transculturacio e crioulizagio. Além disso, é necessatio véla em meio as * Gtizmsareconarse clizan 0 ess 0 ido dos Eados Unidos perten ‘orig mexican ali exsete (N. da}, ixtRoDucho A zDi¢ko DE 2001 ow ambivaléncias da industrializagao e da massificacio globalizada dos pro- .ces508 simbélicos ¢ dos conflitos de poder que suscitam. Outra das objegdes formuladas ao conceito de hibridacio é que pode sugerr cil integragao e fusio de culturas, sem dar suficiente peso 88 con fy tradigdes e ao que nio se deixa hibridar. A afortunada observagio de Pnina Webner de que 0 cosmopolitismo, a0 nos hibridar, nos forma como | * gourmets multiculturais” corre esse risco. Antonio Cornejo Polar assina- Jou em varios autores de que nos ocupamos, acerca desse tema, a “impres- sionante lista de produtos hibridos fecundos” ¢ “o tom celebrativo” com que falamos da hibridacio como harmonizagio de mundos “fragmenta- dos ¢ beligerantes” (Cornejo Polar, 1997). Também John Kraniauskas, considerou que, como o conceito de reconversio indica a utilizagio pro- a de recursos anteriores em novos contextos, a lista de exemplos analisados neste livro configura uma visio “otimista” das hibridagées. E factivel que a polémica contra o purismo ¢ 0 tradicionalismo fol dloricos me tenha levado a preferir os casos prosperos ¢ inovadores de hibridagZo. Entretanto, hoje se tornou mais evidente o sentido contradi- trio das misturas interculturais, Justamente ao passar do carter descri- tivo da nogio de hibridagao ~ como fusio de estruturas discretas = a elaboré-la como recurso de explicagio, advertimos em que casos as mis turas podem ser produtivas e quando geram conflitos devido aos quais permanece incompativel ou inconciliével nas praticas reunidas. O proprio Cornejo Polar contribuiu para esse avanco quando diz que, assim como se “entra e sai da modernidade”, também se poderiam entender de modo hist6rico as variagdes ¢ os conflitos da metéfora de que nos ocupamos se falssemos de “entrar e sair da hibridez” (Cornejo Polar, 1997). Agradeco a esse autor a sugestio de aplicar & hibridacao esse m mento de transito e provisionalidade que coloquei no livro Culturas Hi bridas, desde o subtitulo, como necessirio para entender as estratégias de ‘entrada e safda da modernidade. Se falamos da hibridagio como um pro- cesso a0 qual é possivel ter acesso ¢ que se pode abandonar, do qual po- demos ser excluidos ou ao qual nos podem subordinat, entenderemos as posigdes dos sujeitos a respeito das relagdes interculturais. Assim se tra- om ‘cUITURAS HlaRIDAS balhariam os processos de hibridacio em retagdo a desigualdade entre a culturas, com as possibilidades de apropriarse de varias simultanea- mente em classes € grupos diferentes e, portanto, a respeito das assimetrias do poder e do prestigio. Cornejo Polar somente insinuou esse caminho de andlise no ensaio péstumo citado, mas encontto um com. Plemento para expandir tal intuicio em um artigo que ele escreveu pou. co antes: "Una Heterogeneidad no Dialéctica: Sujeto y Discurso Migrantes en el Perit Moderno”. Nesse texto, diante da tendéncia a celebrar as migracées, recordou queo migrante nem sempre “esti especialmente disposto a sintetizar as diferentes estincias de seu itinerério, embora ~ como é claro Ihe seja im Possivel manté-las encapsuladas e sem comunicagao entre i”, Com exem» Plos de José Maria Arguedias,Juan Biondi e Eduardo Zapata, demonstrou ‘ue a oscilacdo entre a identidade de origem e a de destino as vezes leva © migrante a falar “com espontan lade a partir de varios lugares", sem Inisturélos, como provinciano e como limenho, como falante de qutchua ¢ de espanhol. Ocasionalmente, dizia, passam metonimica ou metafor. Camente elementos de um discurso a outro, Em outros casos, o sujeito aceita descentrarse de sua hist6ria e desempenta virios papeis i patie ¢ contraditérios de um modo ndo dialético": leo cé que sto também 0 ontem eo hoje, reforcam sua atitude enunciativa e podem tra ‘mar natrativas bifrontes ¢ ~ até se se quer, exagerando as coisas ~, esquizofrénicas” (Cornejo Polar, 1996: 841), Nas condigdes de globalizacio atuais, encontro cada vez mais razdes \com- Para empregar os conceitos de mesticagem e hibridacio. Mas, ao se in- ‘ensificarem as interculturalidades igratéria, econémicae mididtica, vé- Se, como explicam Francois Laplantine e Alexis Nouss, que nio ha somen- \e “a fasio, a coesio, a osmose e, sim, a confrontacdo eo didlogo", Nes fe tempo, quando “as decepgdes das promessas do universalismo abstra- ‘0 conduairam as crispacdes particularistas”(Laplantine & Nouss: 14), 0 Pensamento e as préticas mesticas sio recursos para reconhecer o difee “Ente ¢ elaborar as tensdes das diferengas. A hibridacio, como processo de intersegio ¢ transaeses,€0 que torna possvel que a muliculuraidade nrRopUGKa 2 E0IGKo DE 2001 av te 0 que tem de segregagio ¢ se converta em inlerulturalidade. As po- Ions de hibridago servriam para trabalhar democraticamente com as éria na uerras entre culturas, ivergéncias, para que a historia néo se reduza a guerras Soe mains a ston. Podemos escother viver em estado de como imagina Samuel Hu ru ‘ou em estado de hibridacao. . . - itil advertir sobre as versdes excessivamente amaveis da Stil advertir mestcagem. Por ss, convém insistr em que 0 objeto de — . hibrider.c, sim, o8 process de hibridacao, Asim € possivel reconhec 7 ue contém de desgarre ¢ o que ndo chega a fundirse. Uma teoria ni ingenua da hibridagio € inseparével de uma consciéncia critica . seus ines, do que nio se deixa, ou nfo quer ou nio pode ser hibridado. ‘A HIBRIDAGAO E SUA FAMILIA DE CONCEITOS Acesta altura, ha que dizer que 0 conceito de hibridacao € «il em ; i contatos interculturais smas pesquisas para abranger conjuntamente © geo pe dees aide ar aa ae ne ém outras misturas ineretismo de crencas € também out nominadas mestcagem, 0 sincrai i modernas entre o artesanal ¢ 0 industrial, o culto ¢ 0 popular, o escrito visual nas mensagens mididticas, Vejamos por que algumas dessas inter-relagdes no podem ser designadas por nomes clissicos, como mes- ticas ou sincréticas i A mistura de colonizadores espanhdis e portugueses, dept . ses € franceses, com indigenas americanos, a qual se acrescentaram escra- vos trasladados da Africa, tornou a mestigagem um processo ee ms sociedad do chamado Novo Mundo, Naatualidade, menos de : Populacio da América Latina €indigena. Sio minorias também as come nidades de origem européia que no se msturaram com osnativos. Masa importante historia de fusdes entre uns € outros requer utilizar a nogao de imestigagem tanto no sentido biol6gico ~ producio de fendtiposa par . de ruzam a istura de habitos, crengas ¢ for- mentos genéticos- como cultural: mistura : a p = to curopeus com os originarios das sociedades america: masde pensamento cur mT 20 ‘CULTURAS HlRIDAS nas, Ndo obstante, esse conceito & insuficiente para nomear ¢ explicar as formas mais modernas de interculturalidade. Durante muito tempo, foram estudados mais os aspectos fis nomi 0s € cromaticos da mesticagem. A cor da pele ¢ os tracos fisicos conti- znuam a pesar na construcao ordindria da subordinacéo para discriminar indios, negros ou mulheres, Entretanto, nas ciéncias socials ¢ no pensa- mento politico democratico, a mestigagem situase atualmente na dimen- s#o cultural das combinacées identirias. Na antropologia, nos estudos culturais ¢ nas politicas, a questio é abordada como o projeto de formas de convivéncia multicultural moderna, embora estejam condicionadas pela mesticagem biol6gica. Algo semelhante ocorre com a passagem das misturas religiosas a fusGes mais complexas de crencas. Sem dtvida, € apropriado falar de snertismo para referirse & combinacio de praticas religiosas tradicionais, Alntensificagio das migragdes, assim como a difusio transcontinental de Crengas e rituais no século passado acentuaram essas hibridagdes e, as ve- 7s, aumentaram a tolerdncia com relagio a elas, a ponto de que em pai ses como Brasil, Cubs, Haiti Estados Unidos tomouwse freqieente a dupla ou tipla pertenca religiosa; por exemplo, ser cat6lico e participar também de um culto afro-americano ou de uma ceriménia new age Se considerar- ‘mos o sincretismo, em sentido mais amplo, como a adesio simultanea a sistemas de creneas, ndo s6 religiosas, o fendmeno se expande no- ‘oriamente, sobretudo entre as multidées que recorrem, para aliviar certas enfermidades, a remédios indfgenas ou orientais e, para outras, 4 medick. na alopatica, ou a rituais cat6licos ou pentecostais. O uso sincrético de tais Tecursos para a satide costuma ir junto com fuses musicais e de formas imulticulturais de organizacio social, como ocorre na santera’ cubana, no ‘edu haitiano e no candomblé brasileiro (Rowe & Schelling, 1991) A palavra crioulizagio também serviu para referinse as misturas inerculturas, Em sentido estrto, designa a lingua ea cultura criadas por variacBesa partir da lingua basica e de outros idiomas no contexto do tri- oragio de wdades surgidas do canasereligio cataea (N. da}, IxtRoDUGKO A EDIGKO DE 2001 od fico de escravos. Aplica-se as misturas que o francés teve na América e no Caribe (Louisiane, Haiti, Guadalupe, Martinica) e no oceano fndico (Reunido, as ilhas Mauricio), ou 0 portugués na Africa (Guiné, Cabo Ver- de), no Caribe (Curacao) e na Asia (india, Sri Lanka). Dado que apre- senta tensdes paradigmaticas entre oralidade ¢ escritura, entre setores lade, UIf Hannerz suge- cultose populares, em um continuum de dive re estender set uso a0 Zmbito transnacional para denominar “processos de confluéncia cultural” caracterizados ‘pela desigualdade de poder, pres- tigio ¢ recursos materiais” (Hannerz, 1997). Sua énfase em que os fluxos crescentes entre centro ¢ periferia devem ser examinados, junto com as assimetrias entre os mercados, os Estados ¢ os niveis educacionais, ajuda a evitar 0 risco de ver a mesticagem como simples homogeneizagio ¢ re- conciliacao intercultural. Estes termos ~ mesticagem, sincretismo, crioulizagio ~ continuam a ser utilizadlos em boa parte da bibliografia antropoldgica ¢ etno-histé- rica para especificar formas particulares de hibridacio mais ou menos classicas. Mas, como designar as fusdes entre culturas de bairro e midiaticas, entre estilos de consumo de geragdes diferentes, entre misi= cas locais ¢ transnacionais, que ocorrem nas fronteiras e nas grandes ci- cio aparece mais dtictil para jiosos, mas dades (no somente ali)? A palavra nomear nao s6 as combinagdes de elementos étnicos ou rel também a de produtos das tecnologias avangadas € processos sociais modernos ou pos:modernos. Destaco as fionteiras entre paises ¢ as grandes cidades como contex- tos que condicionam os formatos, os estilos ¢ as contradigdes especificos da hibridacio. As fronteiras rigidas estabelecidas pelos Estados modernos se tornaram porosas. Poucas culturas podem ser agora descritas como unidades estiveis, com limites precisos baseados na ocupacio de um ter- ritério delimitado, Mas essa multiplicagio de oportunidades para hibridarse nao implica indeterminagio, nem liberdade irrestrita. A hibridacdo ocorre em condigdes hist6ricas e sociais especificas, em meio a sistemas de produgio € consumo que as vezes operam como coagdes, segundo se estima na vida de muitos migrantes. Outra das entidades so- TTT or CUETURAS HleRIDAS que auspiciam, mas também condicionam a hibridagio sio as cida- des. As megal6poles multlingies e multiculturas, por exemplo, Londres, Berlim, Nova York, Los Angeles, Buenos Aires, Sio Paulo, México e Hong Kong, sfo estudadas como centros em que a hibridacio fomenta maio. res conflitos ¢ maior criatvidade cultural (Appadurai; Hanner2). “AS NOCOES MODERNAS SERVEM PARA FALAR DE GlosaLizacdo? Os termos empregados como antecedentes ou equivalentes de hibridacao, ou seja, mesticagem, sincretismo e criouliza¢io, io usados em eral para referirse a processos tradicionais, ow a sobrevivencia de cost mes ¢ formas de pensamento pré-modernos no comeco da modernidade, ‘Uma das tarefas deste lvro € construir a nog de hibridacio para desig. hat as misturasinteeulturais propriamente modernas, entre outras, aque- tes getaa pela integracdes dos Estados nacionais, os populismos polit- cose asindiistrias culturais, Foi necessitio, por isso, discutir os vinculos ¢ desacordos entre modernidade, modernizacio e modernismo, assim como as dividas de que a América Latina seja ou nao um continente moderno, Nos anos 80 e principios dos 90, a modernidade era julgada a par Lr do pensamenio pésmoderno, Escrito em meio 3 hegemonia que essa tendéncia tinha entio, o livro apreciou seu antievolucionismo, sua valo- ‘acto da hetcrogeneidade multicultural e transistérica e aproveitou a critica aos metarrelatos para deslegitimar as pretensées fundamentalistas dos tradicionalismos. Mas, a0 mesmo tempo, resisti a considerar a pos modernidade como uma ctapa que substituiria a época moderna. Prefe- F concebéa como um modo de problematizar as aticulagées que a tmodernidade estabeleceu com as trades que tentou exclu ou supe- tar A descolepao dos patriménios étnicos e naci assim como a desterntoratzardo a reconversio de saberes ¢ costumes foram examinados como recursos para hibridarse, Os anos 90 reduziram o atrativo do pensamento pésmoderno ¢ co- locaram, no centro das ci encias sociais, a globalizacZo. Asim como hoje ese rRoDUGAO A EDICKO OE 2001 201 clareza que o pésmoderno nio encerrou a moder- jercebemos com mi ° tia problematica global também nao permite desinteressar-se dela Aguns dos t6ricos mais destacados da globalizagio, como Anthony Giddens ¢ Ulrich Beck, estudam-na como culminacio das tendéncia ¢ conflitos modernos. Nas palavras de Beck, a globalizacio nos coloca ante o desafio de configurar uma "segunda modemidade”, ms reflexive, que nio imponha sua racionalidade secularizante ¢, sim, que aceite pluralmente tradigdes diversas. i Os processos globalizadores acentuam a interculturalidade moder- za quando criam mercados mundiais de bens materiais ¢ dinheiro, men- sagens ¢ migrantes, Os fluxos e as interaces que ocorrem nesses proces- 0s diminuiram fronteiras ¢ alfandegas, assim como @ autonomia das trae digBes locais; propiciam mais formas de hibridagio produtiva, ‘comunicacional ¢ nos estilos de consumo do que no passado. As moda- lidades clissicas de fusio, derivadas de migracées, intercimbios comer- Cia das poiticas de integraco educacional impulsionadas por Estados nacionais, acrescentam-se as misturas geradas pelas indtistrias culturais. Embora este livro nao fale estritamente de globalizacio, examina proces: sos de internacionalizacio ¢ transnacionalizacio, pois se ocupa das indts- ‘culturais ¢ das migracdes da América Latina para os Estados Unidos. cas tradicionais sio analisadas com referéncia Até 0 artesanato e as mii de massa transnacionais, em que os produtos populares cos- propriados” por empresas tristicas ede comunicacio. Ao estudar movimentos recentes de globalizacdo, advertimos que {estes nfo s6integram e geram mesticagens também segregam, produ zem novas desigualdades © estimulam reagies diferenciadoras (Appadurai, 1996; Bec, 1997; Hannerz, 1996) As vezes,aprovetase a slobalizago empresarial e do consumo para afirmar e expandir particu s culturais, como ocorre com a miisica latina laridades étnicas ou regi nha atualidade (Ochoa; Widice). Alguns atores sociais encontram, nesses Processos, recursos para resist & globalizacio ou modificé-la e reproper as condigdes de intercdmbio entre culturas. Mas 0 exemplo das hibridacdes musicais, entre outros, evidencia as diferencas ¢ desigualda- WT od CUCTURAS HBRIORS des que existem quando cla se realzam nos paises centrais ou nas peri- ferias: basta evocar a dist ia entre as fusdes homogeneizadoras do la- Lino, dos diferentes modos de fazer misica latina; nas gravadoras de diversidade reconhecida pelas produtoras locais da Ar- gentina, do Brasil, da Colombia ou do México. ologia de hibridacdes tradicionais (mesticagem, sincretismo, crioulizacio), as operagdes de construgio hibri- da entre atores modemnos, em condigdes avancadas de globalizacio, En- contramos dois exemplos na formagéo multicultural do lating a) a neo- ispano-americaniza¢ao da América Latina, e b) a fusio interamericana, Com neohispancanericanizariorefiro-me & apropriacio de editoras, ‘aéreas, bancos etelecomunicagies por parte de empresas espanholas na Argentina, Brasil, Colombia, Chile, México, Peru e Venezuela. No Brasil os espanhéis ocuparam, em 1999, o segundo lugar, detendo 28% dos in. ‘estimentos estrangeiros; na Argentina, passaram para o primeiro lugar, ultrapassando os Estados Unidos no mesmo ano. De um lado, pode-se Pensar que convém diversificar os te da Europa para corrigira fercimbios com a Espanha e o restan- léncia anterior de subordinar-se som no-americanos. Sob o nome de fusto interamericana de “norte-americaniza¢io” dos paises latino-americanos e “Iatinizacdo* dos Estados Unidos. Incino-me a chamar fusdes a esss hibridacdes,jé que esta palavra, usada preferencialmente em mis papel proe cionais, o lugar de livro La Globalizacién Imaginada.) Falar de fuses no nos deve fazer dese levar em conta os movime: iTaODUGKO A EDIGAO De 2008 20a sincretismo religioso ¢ mestigagem intercultural. Existem resistencias a aceitar estas ¢ outras formas de hiridacio porque geram inseguranga nas cculturas e conspiram contra sua auto-estima etnocéntrica, Também é de- safiador para o pensamento moderno de tipo an: : parar binariamente o civilizado do selvagem, o nacional do estrangeiro, do latino. : cee (08 processos que chamaremos de hibridagio restita obr- gam-nos a ser cuidadosos com as generalizagées. A fluidez das comuni- nos apropriarmo-nos de elementos de muitas culturas, mas ica que as aceitemos indiscriminadamente; como dizia, Gustavo Lins Ribeiro, rferindo-e&fascinacio branca pelo afro-america- no, alguns pensam: “incorporo sua misica, mas que nao se case com mi- "0, acostumado a se- s2 pela lingua, russa ou japonesa pela origem, ¢catlica ou afrosameri cana pela. >. Essa variabilidade de regimes de pertenca desafia mais, uma vez 0 pensamento bindrio a qualquer tentativa de ordenar 0 mun- do em identidades puras e oposcdes simples. Enecessrio registrar aquilo ‘que, nos entrecruzamentos, permanece diferente. Como explica N. J.C. ‘Vasantkumar sobre o sincretismo, “ um processo de mistura do compa- tivel e fixacio do incompativel” (citado por Canevaccis 1996: 22). OQUEMUDOU NA Uirima DECADA ‘A América Latina esta ficando sem projetos nacionais. A perda de controle sobre as economias de cada pafs se manifesta no desaparecimen- to da moedsa propria (Equador, El Salvador), em suas desvalorizacdesfre- qientes (Brasil, México, Peru, Venemela) ou na fixagio maniaca pelo délar .). As moedas trazem emblemas nacionais, mas é representam Pouco a capacidade das nagdes de administrar de maneira soberana presente, Nio sao referéncias de realidade, embora, TT ov hiperinflaciondrio a uma re- lacdo verossimil com o pafs, o Brasil a tenha redesignado precisamente como real Essa apasta de confiar a um significante forte o revigoramento o incoi e endégeno da economia, Por que recorrer a doutrinas tio atrevidamente ingénuas para con- seguir efeitos estruturais? ~ pergunta Renato Janine Ribeiro, Como de- ‘monstra este iro no tocante a seu pais, amudanga de nome da moeda teve efeitos temporérios: tormou possivel que um presidente da Repiiblica fosse el nua alianca entre esquerda direita, ajudow a privatizar érgios estatais ¢ acalmou por alguns anos a tensio social. Seis anos depois, a desvalorizacio do real e a maior depen- déncia externa das variéveis econémicas Feconstituindo o si 86 um modo temporétio de ocultar ia de oportunidades perdidas, escolhas infelizes; em suma, descontrole dos processos econémicos ¢ s moeda propria aspira a representar (Ribeiro, 2000) Dos anos 40 aos 70 do século XX, a criagio de editoras na Argenti- na, Brasil, México, Colém| Peru, Uruguai ¢ Venezuela produ- iu uma “substituicao de importacdes" no campo da cultura letrada, tio significativo para a configuracio de nagées democriticas modernas; a par- tir de meados dos anos 70, a maioria dos editores faliu, ou vendeu seus as espanholas, que depois foram comprados por empre- as ¢ alema social das culturas | livro revela que um recurso-chave para a modernizacao foi m: estudantado universia Yamericanas que tracamos neste InoDuGkO A EDICKO De 2001 row ‘os jovens se frustrassem ha trinta, quarenta ou cin- das universidades, ¢ as vezes os melhores pesquisado- idos, a educacao superior Embora m qiienta anos ao res migrassem para a Europa ¢ os Estados bbuscava produzir intelectuais para o desenvolvimento nacional; hoje con- tinua frustrando a maioria; pior ainda, somente Ihe oferece optar entre ir trabalhar em cargos secunditios nos servigos do Primeiro Mundo ou tornar'se técnico nas transnacionais que controlam a produgao € 0 comér cio do proprio pats. Nada na sociedade induz a tentacio do voluntarismo politico; muito poucos cargos piiblicos requerem alto nivel profissional, a formacio na critica intelectual antes desqualifica a exercé-los a quem somente se pede preocupavahes como encurtar a distat ra, 0 que aflige os universitérios e profis €como flutuar no que resta do mundo culto e da classe média; se s40 co- Jombianos ou equatorianos, as perguntas so como ¢ para onde ir, ‘Todas as tendéncias de abdicagao do pul do nacional em favor do transnacio: acentuaram-se. Dois processos novos, inci sarcorientagao, Um é a digitalizacao e midiatizaco dos processos cul ais na produgdo, na circulagao € no consumo, que transfere a iniciativa © 0 controle econémico e cultural a empresas transnacionais. Outro en- volve o crescimento dos mercados informais, a precarizagio do trabalho ©, em sua modalidace mais espetacular, a narcorreorganizagao de gran- de parte da economia e da politica, com a conseqiiente destruicio violen- ta dos lacos sociais, Na cultura, persistem poucas fundagdes ¢ ages mecénicas por parte de empresatios de alguns p: ino-americanos, mas em toda parte foram fechadas instituigdes auspiciadas por atores privados € ptilicos. O lugar desses atores nacionais costuma ser ocupado por investidores estran- Seiros em telecomunicacées, distribuidoras e exibidoras de sl wagio es {€tica interessa cada vez. menos nos museus, nas editoras ¢ no cinema; ela {01 deslocada para as tecnologias eletronicas, para o entreteni ont CCULTURAS HioRIDAS couse quando nao depende dos tempos longos, da paciéncia artesanal cueruditae, sim, da habilidade para gerar hipertextos ¢ répidas edigdes audiovisuais ou eletrénicas. Conhecer as inovagées de diferentes paises © possibilidade de misturélas requeria, hd dee anos, viagens freqientes, assinaturas de revista estrangeiras e pagar avultadas contas telefonicas, agora se trata de renovar periodicamente o equipamento de computador € ter um bom servidor de internet. Apesar de vivermos em um presente torias da arte, da literatura e da cultura e itado consigo mesmo, as his tinuam a aparecer aqui ¢ i ‘como recursos narrativos, metéforas e ci \cbes prestigiosas. Fragmentos de classicos barrocos, romanticos e do jazz sio convocados no rock e na imisica tecno. A iconografia do Renascimento e da exper vanguardista nutre a publicidade das promessas tecnolégicas. Os coronéis que nao tinham quem thes escrevesse chegam com seus romances ao ci nema, € a meméria dos oprimidos e desaparecidos mantém seu testemu- nho em rasgados cantos de rock e videoclipes. Os dramas hi hibridam mais em movimentos cul 08 discursos de hoje. Entretanto, 0s perfis nacionais mantém vigéncia em algumas areas lo consumo, sobretudo nos campos em que cada sociedade dispe de ofertas préprias. Nao € 0 caso do cinema, porque os filmes norte-ameri- canos ocupam entre 80% ¢ 90% do tempo em cartaz em quase todo 0 mundo; ao dominio da producio e da distribuicao agora se acrescenta a apropriacdo transnacional dos circuitos de exibigio, com o qual se con- lizar o que resta das cinematografia européias,asiticas c latinoamericanas. diferente o que corre com a miisica: as majors (Sony, Warner, Emi Universal) contro- Jain 90% do mercado discogréfico mundial, mas as pesquisas de consu- mo dizem que em todos os pa que se ouve esté em espanhol. Por isso, as megaindtstrias fonogrificas ¢ @ MT dio atencao a nossa n inraopucko A EDIcAo De 2001 soon dinguiram, mas ha que buscé-las em Asculturas populares no se outros lugares ou nao-lugares. A enc : st -xposigdes folcléricas, em cenétios pol jta nos museus ¢ exposic © ; ae ‘com estratégias semelhantes as que analisei nos capitulos 5 ni ; ; . 6, embora a recomposicio, revalorizacao ¢ desvalorizagao de culturas Tocas na globalizacio acentuem, e 3s vezes alterem, alguns processos de gio do popular continua a ser icos e comu- idacio. ; £ mais claro do que quando escrevi ‘ tores populares com os hegemdnicos, do local com o transnacion: se deixa ler somente em carter de antagonismo. As majors da indiist ‘musical, por exemplo, sio empresas que se movem com desenvoltura en- tre o global e o nacional. Especialistas em glocalizar, elas criam condigées para que circulemos entre diversas escalas da producao ¢ do consumo. Em suma, nos processos globalizadores, ampliam-se as faculdades combinatéras dos consumidores, ma quase munca acontece 0 mesmo com a hibridagao endégena, ou seja, nos circuitos de producao locais, cada vex ‘ais condicionados por uma hiidazo htaénoma, coercitiva, que concen- ‘raasiniciativas combinatérias em poucas sedes transnacionais de geracio de mensagens ¢ bens, de edicio e administragao do sentido social ro que a interacio dos se- POLITICAS DE HIBRIDACAO E possivel democratizar no s6 0 acesso aos bens, mas também a capacidade de hibridistos, de combinar os reper' ulturais que esta época global expande? A resposta depende, antes de tudo, de agées politicas e econdmicas. Entre elas, quero destacar a urgéncia de que os acordos de livre-comércio sejam acompanhados por regras que ordenem e fortalecam o espaco pliblico transnacional. Um dos requisi- tos para isso é que, ademais, globalizemos os direitos cidadaos, que as hibridacdes multinacionais derivadas de migracdes em massa sejam re- . capaz de conhecidas em uma concepeio mais aberta da cidad: abranger miiltiplas pertencas. TT owt CUCTURAS HleRIDAS Quero dizer que reivindicar a heterogeneidade e a possibilidade de miiltiplas hibridagdes é um primeiro movimento politico para que 0 mundo nao fique preso sob a logica homogeneizadora com que o capi- tal financeiro tende a emparelhar os mercados, a fim de facilitar os lucros. Exigir que as finangas sejam vistas como parte da economia, ou seja, da producao de bens ¢ mensagens, ¢ que a economia seja redefinida como cenério de disputas politicas ¢ diferengas culturais € 0 passo seguinte para que a globalizacio, entendida como processo de abertura dos mercados € dos repert6rios simbélicos nacionais, como intensificagio de intercm- bios ¢ hibridacdes, ndo se empobreca como globalismo, ditadura homo- geneizadora do mercado mundial Ao que esto fazendo nessa direcio os movimentos de protesto contra o Banco Mundial, 0 FMIe a OECD (ecologists, pelos direitos hu- ‘manos etc.), € necessério acrescentar um trabalho especificamente in- tercultural, de reconhecimento da diversidade e afirmacio de solidarie- dades. Mencionei antes as fronteiras ¢ as grandes cidades como cené- rios estratégicos, Para essas tarefas, convém considerar também os exi- lios e as migragées, condi¢des propicias para as misturas e a fecundagao centre culturas. Edward W, Said explica: Considerar “o mundo inteiro como unta terra estrangeira” possibilita uma o {inalidade na visio. A maioria das pessoas & consciente sobretudo de uma cultura, de ‘um ambiente, de um la; os exilados sio conscientes de pelo menos dois, ¢ essa ide de visio da lugar a uma conseiéncia [xe] que ~ para u sio da misica ~ ¢ contrapontistca.. Para um exilado, os habitos de vida, expressio ou atividade no novo ambiente ocorre wvelmente em contraste com uma lem- branga de coisas em outro ambiente. Desse modo, tanto 0 novo ambiente como 0 anterior sio vividos, reas, e se dio juntos em um contraponto, jaar uma expres Ao comentar esse pardgrafo de Said, James Clifford sustenta que os discursos da diaspora ¢ de hibridacio nos permitem pensar a vida con- temporanea como “uma modernidade de contraponto” (Clifford: 313). Mas em outro lugar do mesmo livro ~ Itineraries Transculturales ~ ele se pergunta se a nogo de viagem é mais adequada do que outras usadas no IntRoDuGao A EDICRO DE 2001 soo pensamento pésmoderno: deslocamento, nomadismo, peregrinagio. ‘Além de assinalar as limitagdes destes iltimos vocdbulos, propée viagem como “termo de traductio” entre os demais, ou seja, “uma palavra de apli- cacio aparentemente geral, utilizada para a comparagao de um modo es- tratégico e contingente*. Todos os termos de tradugio, esclarece, “nos le- yam durante um trecho ¢ depois desmoronam. Traduttore tradittore, No tipo de tradugio que mais me interessa, aprende-se muito sobre os povos, sobre as culturas, sobre as hist6rias diferentes da propria, o suficiente para ‘comecat a perceber o que se esta perdendo” (Clifford: 56). Considero atraente tratara hibridario como um termo de traducio fusio ¢ 0s outros vocdbulos empregados centre mesticagem, sincretismo, para designar misturas particulares. Talvez a questio decisiva nao seja estabelecer qual desses conceitos abrange mais e € mais fecundo, mas, sim, como continuar a construir principios teéricos ¢ procedimentos metodol6gicos que nos ajudem a tornar este mundo mais traduzivel, ou seja, convivivel em meio a suas diferencas, ¢ a accitar 0 que cada um ga- nha e esti perdendo ao hibridar-se, Encontro em um poema de Ferreira Gullar, musicado por Raimundo Fagner em um disco no qual canta algu- mas cangdes em portugues e outras em espanhol, € no qual alterna sua voz e sua lingua de origem com as de Mercedes Sosa ¢ Joan Manuel Serrat, uma maneira excelente de expressar esses dilemas, © nome do disco é, como o poema de Gullar, Tradusirse m € todo mundo \guém, fundo sem fundo ‘Uma parte de Outra parte ‘Uma parte de mim é multidéo Outra parte estranheza e solidio Uma parte de mim pesa, pondera Outra parte dela ‘Uma parte de mim almoga e janca Outra parte se espanta ‘Uma parte de mim € permanente Outra parte se sabe de repente TIT x CULTURAS HleRIOAS ‘Uma parte de mim 6 56 vertigem Outra parte linguagem ‘Traduzir uma parce na outra parte Que é uma questio de vida e morte Serd arte? Vinculamos, assim, a pergunta pelo que hoje podem ser a arte ea cultura as tarefas de traducio do que dentro de nés e entre nés perma- nece desmembrado, beligerante ou incompreensivel, ou qui ibridarse. Este caminho talver libere as praticas musicai ‘ética abandona as tentatvas dos séculos XIX e XX de convertéla em pe- dagogia patridtica Devo dizer, huz do que desenvolvi antes, que outra ameaca substi= tui nestes dias aquele destino folelorizante ou nacionalista. E aquela que a seducio do mercado globalista traz: reduzir a arte a discurso de recon ciliagdo planetaria. As verses estandardizadas dos filmes ¢ das miisicas do mundo, do “estilo internacion: isu ratura, sus- pendem 3s vezes a tensio entre o que se comunica ¢ o separado, entre 0 que se globaliza e que insiste na diferenca, ou é expulso para as mar- gens da. mundializagdo. Uma visio simplificada da hibridacio, como a propiciada pela domesticagdo mercantil da arte, estéfacilitando vender zais discos, filmes e programas ivos em outras regides. Mas a equalizacio das diferengas, a simulacio de que se desvanecem as assimetrias entre centros ¢ periferias tornam dificil que a arte e a cultu- +a sejam lugares em que também se nomeie 0 que nao se pode ou nao se deixa hibridar. A primeira condigao para distinguir as oportunidades ¢ os tes da hibridacio é nfo tornar a arte e a cultura recursos para o realis- mo magico da compreensio universal. Trata-se, antes, de colocé-los no campo instivel, conflitivo, da tradugao e da “traigio". As buscas artisti- «as sio chaves nessa tarefa, se conseguem ao mesmo tempo ser Hingua- gem e ser vertigem, BIBLIOGRAFIA DA INTRODUCAO A EDICAO DE 2001 Ammpura, Arjun. 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Outros setores, ao comprovar que os salirios retrocedem a0 valor que tinham hi duas décadas e que a produgio dos paises mais prés- eros — Argentina, Brasil, México ~ permaneceu estanque durante os anos * 80, mse perguntado se a modernizacao é acessivel para a maioria. E tam- >bém é possivel pensar que ser moderno perdeu o sentido neste tempo em ue as filosofias pés-modernas desacreditam os movimentos culturais que Prometem utopias e auspiciam o progresso. Nao basta explicar essas discrepancias pelas diferentes concepcdes ‘que a economia, a politica e a cultura tém da modernidade. Ao lado da questo te6rica, esto em jogo dilemas . Vale a pena promover 0 artesanato, restaurar ou reaproveitar o patriménio histérico, continuar 18 CUCTURAS HiakiDAS lantes em cursos de humanas ou ite ou da cultura popular? © ingresso em massa de ligados a atividades em desuso da arte de ‘Tem sentido ~ pessoal ¢ coletivamente ~ ‘em longos estudos para acabar em cargos de baixa remuneracdo, repetindo técnicas ¢ conheci- mentos desgastados, em ver de dedicarse a microeletrénica ou a teleco- municagio? ‘Também nao é suficiente, para entender a diferenca entre as visbes da modernidade, recorrer a esse principio do pensamento moderno se- gundo o qual as divergéncias ideolégicas se deveriam ao acesso desigual que cidadaos e politicos, trabalhadores empresaios, artesios ¢ artistas ‘ém aos bens. A primeira hipotese deste livro € que a incerta em relacio ao sentido e ao valor da modernidade deriva no apenas do que separa nacdes, etnias e classes, mas também dos cruzamentos socioculturais em que o tradicional ¢ 0 moderno se misturam, Como entender 0 encontro do artesanato indigena com catilogos de arte de vanguarda sobre a mesa da televisio? O que buscam os res quando citam no mesmo quadro imagens pré-colombianas, ¢ € da indiistria cultural; quando as reelaboram usando computadores ‘ase? Os meios de comunicacio eletrOnica, que pareciam destinados a substituir a arte culta e ofolclore, agora os difundem macigamente. O rock € a misica “erudita” se renovam, mesmo nas metropoles, com melodias populares asiticas e afro-americanas. Nio se trata apenas de estratégias das instituigées e dos setores he- geménicos. E possivel vé-las também na “reestruturacio” econdmica ¢ sim- bélica com que os migrantes do campo adaptam seus saberes para viver interesse dos consumidores urba- na cidade ¢ seu artesanato para atrair hos; quando os operitios reformulam sua cultura de trabalho frente as novas tecnologias de produeo sem abandonar crengas antigas, e quan- indicagdes no radio € na do 08 movimentos poy serem stias televisio. Qi uum de nés tem em casa discos ¢ fitas em que se com- binam mtisica ¢ jazz, folelore, tango incluindo composito- 10 Piazzola, Caetano Veloso € Rubén Blades, que fundiram esses fos cruzando em suas obras tradigdes cultas e populares. ENTRADA 1” Assim como nio funciona a oposigao abrupta entre o tradicional e ‘moderno, 0 culto,o popular € 0 massivo' nao estio onde estamos habituados aencontritlos. Enecessirio demolir essa divisio em trés pavimentos, essa con- cepeio em camadas do mundo da cultura, eaveriguar se suahibridagio' pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente:a hrist6ria da arte ea literatura que se ocupam do “culto”; o folclore e a antro- pologia, consagrados ao popular; 0s trabalhos sobre comunicacio, especial zadosna cultura massiva, Precisamos de ciéncias sociais nomads, capazes de Circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que re- desenhem esses planos ¢ comuniquem os nfveis horizontalmente. A segunda hipétese é que o trabalho conjunto dessas disciplinas pode ‘gerar outro modo de conceber a. que como uma forca alheia ¢ dominadora, que operaria por substituicéo do tradicional e do tipico, como as tentativas de renovaco com que diver- 05 setores se encarregam da heterageneidade multitemporal de cada ‘Uma terceira linha de hip6tese sugere que esse olhar transei sobre os circuitos hibridos tem conseqiéncias que extrapolam gacdo cultural. A explicacio de por que coexistem culturas étnicas ¢ no- vas tecnologias, formas de produgao artesanal e industrial, pode iluminar Processos politicos; por exemplo: as razdes pelas quais tanto as camadas populares quanto as elites combinam a democracia moderna com relaces arcaicas de poder, Encontramos no estudo da heterogencidade cultural ‘uma das vias para explicar os poderes obliquos que misturam instituigdes liberais habitos autoritirios, movimentos sociais democraticos ¢ regimes aternalistas, ¢ as transagdes de uns com outros. taro send mantis especialmente quando ve refere * Ostermos matoe mado ep ultra e205 meio de 2 (CULTURAS HiRIDAS Temos, entdo, hibridas que Am se ocupam da cultura, para ver se é mais plausivel das contradigdes ¢ dos fracassos da nossa modernizacao. Em terceiro lugar, 0 que fazer ~ quando a modernidade se tornow um proje- to polemico ou suspeito ~ com essa mescla de meméria heterogénea € ssivel elaborar uma interpretacao inovagdes truncadas. NEM CULTO, NEM POPULAR, NEM MASSIVO Para analisar as idas e vindas da modernidade, os cruzamentos das herangas indigenas € coloniais com a arte contemporiinea € as ct eletrénicas,talvez fosse melhor ndo fazer um livro. Nem mesmo um nem uma telenovela, nada que se entregue em capitulos e vi de um co- ‘meco a um fim, Talvez se possa usar este texto como uma cidade, na qual do culto, do popular ou do massivo, Dentro, tudo, lo remete aos outros, ¢ entio jé ndo importa saber or qual acesso se entr ‘Mas como falar da cidade moderna, que s vezes esta deixando de ser moderna e de ser cidade? © que era um conjunto de bairros se espa- Tha para além do que podemos relacionar, ninguém da conta de todos 6s itinerarios, nem de todas as ofertas materiais e simbélicas desconexas we aparecem, Os migrantes atravessam a cidade em muitas direcdes € tos, suas barracas barrocas de do- instalam, precisamente nos cruzam¢ ces regionais ¢ radios de contrabando, ervas medicinais e videocassetes. Co -om que a cidade tenta conciliar tudo que chega e proli do pro ‘ano com o transnacion: de cartos diante das ma- nifestagdes de pro i o as demandas dos des todas as parte: xTRADA a Asciéncias soci tes escalas de observacio. O antropélogo chega a cidade a pé, 0 soci de carro e pela pista principal, o comunicélogo de aviio. Cada ‘o que pode, constréi uma visio diferente e, portanto, parcial. Hé uma quar- ta perspectiva, a do hi da cidade, partindo de seu centro antigo em direcao aos seus limites con- temporaneos. Mas o centro da cidade atu A historia da arte, a identificado repert6rios de conteiidos que deverfamos dominar para ser mos aultosno mundo moderno. Por outro lado, a antropologia ¢ 0 folclo- nos politicos, a0 reivindicar o saber ¢ as priti- cas tradicionais, constituiram o universo do popular. As indistrias culeurais geraram um terceiro sistema de mensagens massioas do qual se ocuparam novos especialistas: comunicdlogos e semidlogos®. ‘Tanto os tradicionalistas quanto os modernizadores quiseram cons- truir objetos puros, Os primeiros imaginaram culturas nacionais e popu- lates “auténticas”; procuraram preservi-las da industrializaco, da massi- ficacdo urbana e das influéncias estrangeiras. Os modernizadores conce- beram uma arte pela arte, um saber pelo saber, sem fronteiras territoriais, © confiaram a experimentacio ¢ & inovagdo auténomas suas fantasias de progresso. As diferencas entre esses campos serviram para organizar os bens e as instituicdes. O artesanato ia para as feiras e concursos popula- res, as obras de arte para os museus as bien: As ideologias modernizadoras, do liberalismo do século passado a0 desenvolvimentismo, acentuaram essa compartimentacio maniqueista 20 imaginar que a modernizacio acabaria com as formas de producio, as ‘am re, assim como 0s po} 2 CCULTURAS HipRIOAS crencas ¢ os bens tradicionais. Os mitos seriam substituidos pelo conheci- fico, 0 artesanato pela expansio da indistria, os livros pelos Hoje existe uma visio mais complexa sobre as relagGes entre tradi- Go € modernidade. © culto tradicional nao é apagado pela industrializa- livros ¢ edigdes de maior ti- ragem que em qualquer época anterior. Ha obras eruditas e a0 mesmo tempo massivas, como O Nome da Rosa, tema de debates hermenéuticos tambéan best sll, que havia vendido, no final de 1986, antes de ser exibida a versio para o cinema, cinco milhdes de exemplares em 25 linguas, Os relatos de Garcia Marquez e Vargas Llosa alcancam mais ico que os filmes baseados em seus textos. Do lado popular, é necessirio preocuparse menos com 0 que se extingue do que com 0 que se transforma, Nunca houve tantos artesios, ‘nem miisicos populares, nem semethante difusio do folclore, porque seus produtos mantém fungdes tradicionais (ar trabalho aos indigenas e cam- lo poneses) ¢ desenvolver outras modernas: atraem turistas € consu +es urbanos que encontram nos bens folcléticos signos de distineao, refe- réncias personalizadas que os bens industriais nao oferecem, A modernizacéo diminui o papel do culto ¢ do popular tradicionais no conjunto do mercado simbélico, mas nao os suprime. Redimensiona a arte € 0 folclore, o saber académico e a cultura industrializada, sob condi- des relativamente semethantes. O trabalho do artista e 0 do artesio se cia que a ordem simbélica especifica em aproximam quando cada um vi que se nutria é redefinida pela légica do mercado, Cada ver. podem pres indir menos da informacdo ¢ da iconografia modernas, do desencanta- ‘mento de seus mundos autocentrados e do reencantamento que a espeta- cularizacio da midia propicia, O que se desvanece nao sio tanto os bens ou populares, quanto a pretensio de uns € e de que as obras produzi- antes conhecidos como ‘outros de configurar universos autosuficies das em cada campo sejam unicamente “expressio” de seus criadores, E légico que também confluam as disciplinas que estudavam esses Lniversos. O historiador de arte que escrevia o catilogo de uma exposi- ENTRADA B léncia em uma sucessio articulada de bus- 4 artista ou a io situava 0 0 ma suc fs, um certo “avango” em relagio a0 que jf hava sido feito nesse campo f ¢ 0 antropélogo relacionavam 0 artesanato a uma matriz, folclorista . émomos que davam a esses obje- itica ou a um sistema sociocultural aut Js. Hoje, essas operacdes se revelam quase sempre cons- Jcondicionadas por agentes que transcendem 0 ar- tos sentidos prec ‘rugdes culturais mt tistico ou o simbélico, a : © que é2 arte nio € apenas uma questo esttica: € necessirio le- sar em conta como essa questo vai sendo respondida na interseccio do aque fazem 0s jornalistas € 05 crticos, os historiadores € os musedgrafos, os marchands, 0s colecionadores ¢ os especuladores. Da mesma forma, 0 popular nio se define por uma esséncia a prior, mas peas estratégias ns- tiveis, diversas, com que os proprios setores subalternos constroem suas posicdes, e também pelo modo como o folelorista ¢ 0 antropélogo leva cena a cultura popular para 0 museui ou para a academia, os socidlogos ‘os para 0s partidos, os comunicdlogos para a midia. eos pl [A MODERKIDADE DEPOIS DA POS-MODERNIDADE Essas transformagdes dos mercados simbélicos em parte radicalizam 6 projeto moderno, e de certo modo levam a uma situacio posmoderna entendida como ruptura com o anterior. A bibliografia recente sobre esse duplo movimento ajuda a repensar varios debates latino-americanos, prin- Gpalmente a tese de que as divergéncias entre o modernismo cultural ¢a sformariam numa versio deficiente da mo- modernizacio social nos tran dernidade canonizada pelas metr6poles'. Ou ao contrario: que por ser a 2 CUURAS HieaIDAS patria do pastiche e do bricolage, onde se encontram muitas épocas e esté- ticas, erfamos o orgutho de ser pés-modlernos ha séculos e de um modo ular, Nem o “paradigma” da imitacio, nem o da originalidade, nem a “teoria” que atribui tudo a dependéncia, nem a que preguicosamente nos pelo surrealismo latino-america- bridas, ‘Tratase de ver como, dentro da crise da modernidade ocidental ~ da qual a América Latina é parte -, sio transformadas as relagdes entre tradicéo, modernismo cultural e modernizagio socioecondmica. Para isso, € preciso ir além da especulacio filoséfica e do intuicionismo estético do- inantes na bibliografia pésmoderna. A escassez de estudos empiricos sobre o lugar da cultura nos processos chamados pésmodernos levou a : construir categori- reincidir em distorgdes do pensamento pré-moden as ideais sem comprovagio Factual. ‘Uma primeira tarefa € levar em conta as discrepantes concepedes da modernidade, Enquanto na arte, na arquitetura ¢ na filosofia as corren- tes posmodernas sio hegeménicas em muitos paises, na economia e na politica latino-americanas prevalecem os objetivos modernizadores. As "0s que acompanham os rio que nossos paises imas campanhas eleitorais e os discursos p planos de ajuste de reestruturagao julgam incorporem os avancos tecnolégicos, modernizem a economia, superem ‘mais, a corrupeao e outros rangos nas estruturas de poder as aliancas prémodernos, © peso cotidiano dessas “deficiéncias” faz com que a atitude mais freqitente perante os debates posmodernos seja, na América Latina, a subestimagio irénica. Para que vamos ficar nos preocupando com a pés- modernidade se, no nosso continente, os avancos modernos nio chega- ram de todo nem a todos? Nao tivemos uma industrializacio s6 ima tecnificacao generalizada da produgao agréria, nem uma organiza- ‘cio sociopolitica baseada na racionalidade formal e material que, con ame lemos de Kant a Weber, teria sido transformado em senso comum no Ocidente, « modelo de espaco piblico onde os cidadkios conviveriam de- I. Nem o progressismo ‘mocraticam! Ce ¢ participariam da evolucio s ENTRADA = evolucionista, nem 0 racionalismo democrético foram, entre nés, causas populares. “Como falar de psmodernidade tem tanto de prémod onde surge 0 Sendero perguntava ha pouco 0 generalizada de que, ainda que o liberalismo e seu regime de representa: tividade parlamentar tenham chegado as constituices, carecemos de uma coesio social ¢ de uma cultura politica modernas suficientemente firma das para que nossas sociedades sejam governaveis. Os caudillios con do. as deci ‘bes nisticas de forca. Os modernizaram a vida universta s politicas com base em aliancas informais e rela- sofos positivistas €a seguir os centistas sociais diz Octavio Paz, mas o caciquismo, a icacional conduzem o pensamento das massas. As elites cultivam a poesia ea arte de vanguarda enquanto as maiorias sio analfabetas’ A modernidade € vista ento como uma mascara. Um simulacro ur ido pelas elites ¢ pelos aparelhos estatais, sobretudo os que se ocupam da arte ¢ da cultura, mas que por isso miesmo os toma itrepresentativos ¢ As oligarquias liberais do final do século XIX e inicio do XX teriam feito de conta que constitufam Estados, mas apenas organizaram algumas areas da sociedade para promover um desenvolvimento subordi- enas € camponesas que evidenciam sua exclusio em mil revoltas nha migracao q {a que incorporavam esses setores excluidos, mas sua politica igualitaria “wanstorna’ as cidades. Os populismos fizeram de con- ern Pon de Cabin: Louie 988, p 166, pas ccuuTuRas Hi tar fazendo de conta que temos Estado ~ pergunta oeseritor Jose Cabrujas, quando consultado pela Comissio Pres dencial para a Reforma do Estado Venezuelano ~ se 0 Estado “é um esques mma de dissimulacdes"? A Venezuela, explica, foi sendo criada como um acampamento, habitado primeiro por tibos errantes e depois por espa s que a usaram como lugar de passagem na busca do ouro prometi- do, em diregao a Potosi ou El Dorado. Com o progresso, 0 que se fez foi transformar o acampamento em tum gigantesco hotel no qual os habitan- es ¢ o Estado, um gerente “em permanente fracasso tes se sentem héxped na hora de garantir 0 conforto de seus hospedes”. assumira vida, pretender que minhas agBes se traduzam em irico em direcio a um objetivo, € algo que s choca {que quando me hospedo em uit hotel nfo pretendo lesejos.Sim- Viver, quer dizer, algo, moversne em um tem ‘com 0 regulamento do hot transformar suas instalacbes, nem melhorias, nem adaptilas aos meus de plesmente 25 uso. Em algum momento pensouse que era necessirio um Estado capaz de administré-lo, um conjunto de instituigdes ¢ leis para garantir um mi fe ordem, “certos principios elegantes, apolineos mais que elegan- ‘mediante os quais pertencerfamos a0 mundo civilizado”. ai tes, ‘Feria sido mais justo inventar essas normas que lemos sempre ao entrar em wm quarto de hotel, quase sempre colocados na porta. “Como o senor deve vier aq’ sf que horas deve ir embora’, “favor no comer nos quaros’, “fica terinantemente prsbido 0 aceso de cachorros a este quarto” etc. etc, quer dizer, um regulamento rmativo, Este € 0 seu hotel, aproveite ¢ tente o e sem nenhum melindre pragma Jncomodar 0 menos possivel, poderia sera forma mais sincera de redigir 0 parigrafo da Co Nacional sas divergéncias entre os Estados latino-americanos, suas respecti= -a podem ser superadas? Antes de res- vas sociedades ¢ sua c 7. anda Ed. 5 Rept stad er, Coe “eEsadk ENTRADA idade continuaria tendo vinculos inevitaveis ~ na forma em que pensou Max Weber ~ com o desencantamento do mundo, com as ciéne! as experimentaise, sobretudo, com uma organizagao racionalista da socie- dade, que culminaria em empresas produtivas ¢ eficientes ¢ aparelhos, cestatais bem organizados. Essas caracteristicas nio so as tinicas que def nem a modernidade, nem nos autores pésmodernos, como Lyotard ou Deleuze, nem nas reinterpretacdes dos que continuam aderindo ao pro- _jeto moderno: entre outros, Habermas no texto citado, Perry Anderson’, Fredric Jameson®. Nosso livro procura conectar essa revisio da teoria da modernidade com as transformacdes ocorridas desde os anos 80 na América Latina, ‘como, por exemplo, as mudangas no que se entendia por modernizacio ‘econ6mica ¢ politica. Agora sio menosprezadas as propostas de industria- lizacio, a substituicao de importagdes e o fortalecimento de Estados na- Cionais auténomos por serem idéias antiquadas, culpadas pelo atraso das sociedades latino-americanas em seu acesso & modernidade. Ainda que permaneca como parte de uma politica moderna a exigéncia de que a prodluciio sejaeficiente e de que os recursos sejam aplicados onde rendam mais, passou a ser uma “ingenuidade pré-moderna” que um Estado pro- teja a producio do proprio pais ou, pior, que o faca em funcio de tresses populares que costumam ser julgados contraditérios com o avanco igico. Certamente, a polémica esté aberta e temos razdes para du- iéncia crdnica de nossos Estados, de suas politicas tecnc vidar de que a i desenvolvimentistas € protecionistas, seja resolvida liberando tudo & con corréncia imternacional, {Perry Anderson, Modernity and Resolution”, Nev ft cng 14, marcoabril de 1994 2 ‘CULTURAS HiBRIDAS ‘Também na sociedade ¢ na cultura mudou o que se entendia por ia-se nos anos 60 ¢ 70, dos comportamentos prescritivos aos eletivos, da inércia de costumes rurais ou herdados a condutas proprias de so- ciedades urbanas, em que os objetivos ¢ a organizacao coletiva seriam fi- xadlos de acordo com a racionalidade cientifica e tecnol6gica. Hoje con- cebemos a América Latina como uma articulagio mais complexa de trax digdes e modernidades (diversas, desiguais), um continente heterogéneo senvolvimento. Para repensar essa heterogeneidade é titi a reflexio anti- evolucionista do posmodernismo, mais radical que qualquer outra ante- rior, Sua critica aos relatos onicompreensivos sobre a histéria pode servir para detectar as pretensdes fundamentalistas do tradicionalismo, do etni- smo, para entender as derivagdes autoritirias do li beralismo e do socialism. Nessa linha, concebemosa pésmodernidade no como uma etapa ou tendéncia que substituiia o mundo moderno, mas como uma maneira de problematizar os vinculos equiivocos que ele armou coms tradicdes que quis cexcluir ou superar para constituirse. A relativizacio pésmoderna de todo o fundamentalismo ou evolucionismo facilta revisar a separacao entre o cul pular € 0 massivo, sobre a qual ainda simula assentarse a mo- demnidade, elaborar um pensamento mais aberto para abarcar as interagbes ¢ integracdes entre os niveis, géneros ¢ formas da sensibilidade coletiva Para tratar dessas questdes € inadequada a forma do livro que se de- pio a um final. Prefiro a malea sniveis. Como escreveu Clifford Geertz, 0 ensaio senvolve de um pi permite moverse em vi torna possivel explorar em varias direcdes, retificaro itinerério se algo no bbem, sem a necessidade de “defender-se durante cem paginas de io prévia, como em uma monografia ou em um tratado"", Mas ENTRADA 23 ‘ensai cientfico se diferencia do lterio ou filos6fico ao basearse, como nesse caso, ém investigaces empiricas, ao submeter, na medida do poss- vel, as interpretagdes a um mangjo controlado dos dados, “Também quis evtar a simples acumulagao de ensaios separados que reproduzitia a ompartimentacio, 0 paralelismo, jo da estrutura do livro, tento: ‘retrabalhar a conceituacao: s, com abordagens multifocais e com- entre dis ritérios. Por mei da modernidade em varias disci plementares. O primeiro capftulo e, em parte, 0s doi sobre modernidade ¢ pos modernidade nos paises metropolitanos, com ‘fim de examinar as contradicbes entre as utopias de criacdo autonoma zna cultura ¢ a industrializago dos mercados simbélicos, No segundo, € proposta uma reinterpretacio dos vinculos entre modernismo e moder- nizacio a partir de investigagdes historicas e sociol6gicas recentes sobre ‘as culturas latino-americanas, O terceiro analisa de que forma se compor- 1s pliblicos frente a duas opgdes basicas da xto io es > himos retomam areflexdo tam os artistas, intermedia modernidade: inovar ou democratizar. No quarto, quinto € se tudadas algumas estratégias de instituicbes ¢ agentes modernos 2o util ico e as tradicdes populares: como os levam A cena légicos, a sociolo- zar o patrimonio his ‘0s museus € as escolas, os estucdos folcléricos ¢ antrop gia da cultura e 0s populismos politicos. Por jitimo, examinamos as cul turas hibridas geradas ou promovidas pelas novas tecnologias comunica- ionais, pela reorganizacio do piblico e do privado no espaco urbano ¢ pela desterritorializacao dos processos simbélicos. Relacionar espacos tio heterogéneos nos leva experimentar o que mnalmente se ocupam de cada £ possivel saber algo mais ou ‘uma, caso aceitem os desafios dos vizinhi diferente sobre as estratégias da cultura moderna quando a antropologia estuda os rituais com que a arte se separa de outras praticas e a anzilise condicionamentos com que 0 mercado corréi essa ico e as culturas tradicionais revelam suas econémica mostra pretensio? O pat fungSes contemporaneas quando, da perspectiva da sociologia politica, indaga de que modo um poder duvidoso ou ferido teatraliza ¢ celebra 20 ‘cusTuras HiaRIOns passado para reafirmar-se no presente, A transnacionalizagio da cultura cfetuada pelas tecnologias comunicacionais, seu alcance e eficicia, sio mais bem apreciadios como parte da recomposicao das culturas urbanas, a0 lado das migragbes € do turismo de massa que enfraquecem as fron- teiras nacionais ¢ redefinem os conceitos de nacao, povo e identidade. Seri preciso esclarecer que esse olhar, que se multiplica em tantos fragmentos e cruzamentos, nfo procura encontrar a trama de uma ordem {inica que as separacdes disciplinares teriam encoberto? Convencidos de ismos sio tio precirias ¢ per racionalismo hegeliano ou dos que as integracoes roménticas dos nacior as. gosas quanto asintegracdes neoc! rmarxismos compactos, negamo-nos a admitir, contudo, que a preocupae ao coma totalidade social careca de sentido. E possivel esquecer a totali- dade quando nos interessamos apenas pelas diferencas entre os homens, ‘no quando nos preocupamos também com a desigualdade. “Temos presente que neste tempo de disseminacio pésmoderna ¢ descentralizacio democratizadora também crescem as formas mais concen- tradas de acumulacao de poder e de centralizacao transnacional da cul- tura que a humanidade conheceu. O estudo das bases culturais hetero- aggneas ¢ hibridas desse poder pode levar-nos a entender um pouco mais sobre 0s caminhos obliquos, cheios de transacdes, pelos quais essas forcas atuam, Permite estudar os diversos sentido da modernidade nio apenas como simples divergéncias entre correntes, mas também como manifes- tagio de conflitos nao resolvidos.

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