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Musas. en Portugués. 1
Musas. en Portugués. 1
de
Néstor Caballero
(1989)
com
Gaby de Saboya (Sylvia Plath)
Marcelle Sampaio (Frida Kahlo)
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Para Mariana Eloísa,
AMO onde ficar.
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Cena 1 – Frida e Sylvia / NORTE SUL
(ESCURO.)
SYLVIA: Frida! Frida!
FRIDA: Para de piscar, Sylvia, senão não consigo pintar você.
SYLVIA: Estou sufocando pelo norte, Frida.
FRIDA: Gostaria muito de dançar pelo sul, Sylvia.
SYLVIA: Seus pés estão me apertando.
FRIDA: Deixa eu ver seus olhos.
(Sylvia acende fósforo.)
(LUZ ABRE.)
SYLVIA: E se eles chegarem?
FRIDA: Que deixem de ser bobos e dancem com a gente.
(Entra música 1)
(Frida e Sylvia preparam sua próxima cena.)
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SYLVIA: Mãe, o inverno de Londres é que nem eu. A menina é que nem você.
Frieda come e nada lhe faz mal. Adora chucrute. Manda para mim a sua
receita de sopa de couve. O menino é que nem meu pai. Nicolas só come
olhando para o norte. Fecha os olhos quando não é papinha. E a
cenoura… tem dias que tenho que dar cenoura com gelatina para ele.
Odeia leite. Esta sou eu. Gosto de pegar as migalhinhas de cada um dos
pratos. (pausa curta) Mãe, em toda parte há um prato do Ted... em todos
os cantos. O que é que eu faço com o prato do Ted? (pausa curta)
Melhor você não vir, mãe, porque as crianças estão dormindo e o prato
do Ted continua vazio. (pausa curta) Vamos comer deste inverno, Ted.
(BLACK-OUT SOBRE SYLVIA. LUZ NA ÁREA DO ENCONTRO.)
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FRIDA: Bem doce.
SYLVIA: Ted não gosta de doce. Quando ele chegar lá, não sei o que será dele.
FRIDA: Manda para ele uma caveira de açúcar.
SYLVIA: Quando tomo chá, ponho um torrão de açúcar no meio dos dentes. E
bebo frio, num copo.
FRIDA: Poesia. Como é?
SYLVIA: Uma confissão.
FRIDA: É como pintar?
SYLVIA: Depois é uma absolvição.
FRIDA: É. Como pintar. E os filhos, Sylvia? Como são os filhos?
SYLVIA: Já estão acordando.
(Sai música 2 em fade.)
SYLVIA: Já estão chorando. Já tenho que ir. Ted está escrevendo. Não quero que
Frieda e Nicolas o interrompam.
FRIDA: (canta) “La cucaracha, la cucaracha,
ya no puede caminar,
porque le falta, porque no tiene
la patica principal”
(BLACK-OUT SOBRE FRIDA.)
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(BLACK-OUT LENTO SOBRE SYLVIA.)
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FRIDA: Começa-se com o vinho.
SYLVIA: Frida, se a lua sorrisse, pareceria com você.
FRIDA: Agora essa tequila vagabunda. (bebe um bom gole da tequila e oferece a
Sylvia) Bebe.
SYLVIA: (bebe um pouco. tosse) Frida, a eternidade é um tédio. (coloca para o
lado a garrafa de tequila)
FRIDA: Você tem que pingar um pouco de vinho num dos lados da toalha e
depois cobrir para que eu não possa ver.
(Sylvia assim o faz. Frida pega a garrafa de vinho, bebe um gole e borrifa a toalha.)
FRIDA: Por baixo do seu vinho, o meu.
SYLVIA: Um cadáver refinado?
FRIDA: Mas um cadáver feliz. Passa a tequila, comadre. Vão ter inveja do sorriso
do meu cadáver. (bebe)
SYLVIA: E agora?
FRIDA: Agora a pimenta. (polvilha) Vai você.
(Sylvia deixa cair pimenta na toalha.)
FRIDA: (bebe vinho e tequila) E por último, o açúcar.
(As duas fazem o mesmo jogo com o açúcar.)
SYLVIA: Preferia sal.
FRIDA: Aí não seria um cadáver feliz com essa ferida aberta. Esse é o ciclo da
vida... vinho, pimenta, e açúcar..
SYLVIA: E agora?
FRIDA: Aperta a toalha entre as mãos. Assim. Tem que ficar amarrotada.
(Sylvia assim o faz. Frida aperta e acende um baseado. Fuma.)
FRIDA: Quer fumar?
SYLVIA. Não. Faz mal. Muito mal.
FRIDA. Não se pode pretender ser o morto mais saudável do cemitério... (ri) O
morto mais saudável do cemitério... Que coisa boa. (oferece a Sylvia
novamente) Vai, um tapinha, é da boa. Plantada no cemitério de
Cuernavaca.
SYLVIA: Só uma provadinha.
FRIDA: Uma só... uma só.
(Sylvia fuma, começa a tossir. Frida fuma de novo e oferece a Sylvia. Sylvia fuma.)
FRIDA: Assim, assim, tente segurar a respiração para que possa ver estrelinhas.
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(Enquanto conversam, Frida dá o cigarro para Sylvia, que terminará por fumar de
maneira inconsciente.)
SYLVIA: (ri de repente) Gostei de “Raízes”.
FRIDA: Eu também.
SYLVIA: Densa.
FRIDA: No meu sonho era uma serpente muito velha. Nada como o “peyote” para
a gente voltar à raiz.
SYLVIA. Nunca tinha experimentado drogas. Não estou falando do “peyote”.
Estou falando de “Raízes”. A peça. A peça de teatro. Ai, Frida, uma peça
de teatro de Arnold Wesker.
FRIDA: Acho o teatro chato. Prefiro o cinema.
SYLVIA: “Um Cão Andaluz”?
FRIDA: Não. “Tarzan, o homem macaco”. (ri às gargalhadas)
Esses macacos que entendem o homem são fantásticos.
(Sylvia começa a rir baixinho. Frida dá outra gargalhada. Ambas riem. Bebem.
Fumam.)
FRIDA. Já pode soltar a toalha.
(Ambas estão concentradas observando as manchas da toalha.)
FRIDA: O quê há no seu desenho?
SYLVIA: Meu pai.
FRIDA: O meu é parecido com o velho Trotsky.
SYLVIA: Meu pai morreu quando eu era criança.
FRIDA: Muito grosso... muito rude, o velho Trotsky. Natália diante dele. Ao lado
dela, Diego. E do meu lado o Trotsky que, disfarçadamente começou a
apertar tão forte a minha coxa que quase me fez gritar. Essa era a maneira
dele se declarar.
SYLVIA: Minha mãe foi até o quarto e me disse: papai se foi, Sylvia,
agora está descansando.
(Sylvia coloca música na vitrola – Lado A, faixa 4.)
FRIDA: Lascivo, o velho Trotsky. Adorava ele. Se você tivesse visto, Sylvia, nas
posições que ele me colocava. Gostava do vai e vem... do balanço... do
cavalo galopando, mas da que mais gostava era a da borboleta flutuante.
Essa é muito fácil, você fica com as pernas... Ai, minha nossa Senhora de
Guadalupe, se a cama da minha irmã Cristina falasse.
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(Ambas continuam bebendo.)
SYLVIA: No dia em que meu pai morreu, fui para a escola. É que eu tinha uma
bolsa e não queria perdê-la. Escrevi no meu caderno: prometo não me
casar nunca mais. Levei para minha mãe e fiz com que ela assinasse.
(pausa curta) Minha mãe cumpriu.
FRIDA: Cansei do velho Trotsky. Sempre se culpando. Me chamava de
“Piochita” e depois saía correndo para escrever para mulher dele...
“Natalia, minha única, minha eterna, minha fiel, meu amor e minha
vítima”.
(Sylvia tira o disco da vitrola.)
FRIDA: Seu bobo, eu nunca deixaria o meu Diego por ele.
SYLVIA: Estou enjoada. Estou com vontade de vomitar, Frida.
FRIDA: Acabamos com a tequila e com o vinho.
SYLVIA. Um banheiro! Por favor, um banheiro!
FRIDA: Isso é viver!
SYLVIA. Um banheiro. Um banheiro, Ted, um banheiro!
FRIDA: Tomar banho, fazer amor e tomar banho de novo. Viva a
tequila!
(BLACK OUT NA ÁREA DO ENCONTRO.)
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Ted está plantando morangos. Frieda vai atrás dele com a sua pazinha.
Imita direitinho todos os gestos do Ted. Frieda parece um duendezinho
com essa jaqueta vermelha de capuz. Não sei quando publicarão meu
poema “Tulipas”. (ri) Imagino que quando florescerem. (chora)
(BLACKOUT LENTO SOBRE SYLVIA.)
(Entra música 4.)
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salinha, os galhos, as prateleiras, os livros pretos, o linóleo verde,
os poemas insípidos, a tábua para invocar os mortos, os ombros
inclinados em direção ao abismo, o ramo de narcisos debaixo da
língua, o olho raso d’água de Frieda, o papel de parede rasgado
onde dormem as aranhas, a farinha nas unhas cor-de-rosa de
Nicolas, as amoras para o café, o sótão dos santos inocentes, as
enormes palmas cor de pêssego, o nó na garganta, a macieira
bichada, a madressilva subindo para o quarto das crianças, o
fogão a gás que me abençoa. Deus! Deus, quando meu pai
morreu, jurei que nunca mais iria lhe dirigir a palavra, mas se o
Ted voltar estou disposta a reconsiderar o meu juramento!
(BLACKOUT LENTÍSSIMO SOBRE SYLVIA.)
(Entra música 5. Vai até o fim da faixa.)
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FRIDA: E é bonita?
SYLVIA: Não sei.
FRIDA: Poderiam ficar os três.
SYLVIA: O universo se afasta de mim.
FRIDA: Na praia acaba o desamor.
(Sylvia abre sombrinha; Frida levanta a saia.)
SYLVIA: Frida.
FRIDA: Sol! Sol! Sol!
SYLVIA: Frida.
FRIDA: Senta aí.
SYLVIA: Melhor... melhor você se cobrir.
FRIDA: Por quê?
SYLVIA: Alguém pode chegar.
FRIDA: E daí?
SYLVIA: Vão notar. Vão perceber que você...
FRIDA: Não tem nada de mal. As tehuanas não usamos calcinhas!
SYLVIA: (pausa) Onde estará?
FRIDA: Sinta a areia.
SYLVIA: E se eu for para Paris?
FRIDA: Odeio Paris.
SYLVIA: Talvez me acalme num café.
FRIDA: Os franceses se acham os deuses do mundo.
SYLVIA: Levou as minhas palavras.
FRIDA: Principalmente aquela barata velha do Breton.
SYLVIA: Chegará assim para mim? A morte chegará assim?
FRIDA. A morte deveria ser como ir ao cinema. Você se senta, assiste aos filmes
bebendo Milk-shake de chocolate.
SYLVIA: É. A morte foi feita para as palavras.
FRIDA: Nela vão estar todas as cores que eu quiser.
SYLVIA: Estarão os poemas.
FRIDA. Estará o verde, que é uma luz morna e boa.
SYLVIA. Não haverá um café.
FRIDA: Também estará a cor do café, que é como uma pétala de rosa velha, que
se vai.
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SYLVIA: Na morte os poemas serão coloridos? Será azul a
palavra azul ?
FRIDA: O azul é uma cor além da melancolia.
SYLVIA. E se nesse momento as letras desmaiarem? E se na morte as palavras não
se sustentarem? Será assim? Cairão desvalidas num papel sem fundo?
Desmaiadas... amarelas.
FRIDA: O amarelo me faz cosquinhas atrás das orelhas.
SYLVIA. Não. E se nesse momento ele chegar e não me encontrar? E se voltar para
jantar e eu não estiver? E se bater à porta do meu quarto e achar que
estou apenas dormindo? Venha, Ted, estou aqui! Ted respire debaixo do
meu lençol. Ted, por favor, chame mais alto. Grite, Ted. Não estou
dormindo. Não estou escutando você, Ted, quase não consigo escutar
você.
(Sai correndo)
FRIDA: O amarelo. O amarelo é a cor da roupa de baixo dos fantasmas. (ri) E o
sol? O sol é um Olhossauro que nos sonha! (canta e sai) “Mira que si te
quise,
fue por el pelo
Ahora que estás pelona
ya no te quiero.”
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SYLVIA: Pieker e Bunks, venham tomar o leite. Está bem frio. Vamos embora para
Londres. Vamos deixar Devon. Que ironia. O Ted falou tantas vezes que
Londres era a morte, e lá está ele. É. Vamos embora. Detesto essa vida de
vaca provedora. Vou embora para Londres. Lá eu sou conhecida.
Promoverei encontros com intelectuais na minha casa. Se o leite não
estiver frio o suficiente não me responsabilizo. Semana passada, na
revista Listener, meu nome foi citado como uma das seis mulheres que
ficarão para sempre na literatura. É uma lista que incluí nada mais e nada
menos que a Mariane Moore e as irmãs Brontë. Eu… eu estou nessa lista.
Nicolas já está com dois dentes. Está tudo virando cacos... meu aparelho
de jantar de porcelana... tudo. Até as minhas amadas abelhas, ontem,
vieram para cima de mim. Gostaria... gostaria. Gostaria tanto de ter o
meu caixote de madeira! O das maçãs. O caixote onde me metia para
brincar, quando era criança Mas... não gostaria de... não gostaria da
minha bola de jogar vôlei! Na escola, quando formavam os times de vôlei
e me escalavam num deles, ficava deprimida por causa das minhas
amigas. “A Sylvia está no nosso time, ou seja: já perdemos” Pieker,
Bunks. Venham! Venham, por favor, eu suplico. Mãe. Mãe, se você
soubesse como é bom conversar com os gatos. Pieker, Bunks... psss...
psss!
(BLACKOUT LENTO SOBRE SYLVIA.)
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FRIDA: Como estará Natália? Hoje está fazendo um mês que mataram Trotsky.
Essa aí não vai aguentar muito. Natália fica soterrada pelas lembranças.
É. A polícia nos fez passar um momento muito difícil. Que falta de
imaginação. Achar que tínhamos conseguido asilo para ele para
assassiná-lo. Esse ano foi nojento! Deixei a porta aberta para ele ir
embora de vez. Trotsky. Stalin assinando tratados com Hitler. A guerra.
Meu pé, meu casco cada vez mais duro. Está chegando o ano novo!
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FRIDA: Come, Sylvia. Não tem problema se você engordar, a depressão sempre é
gorda.
SYLVIA. (comendo) O nome dela é Ássia.
FRIDA: (servindo um prato e comendo) A nova amante do Diego é Maria.
SYLVIA: Ássia... tão distante.
FRIDA: Maria Felix.
SYLVIA: Ássia se hospedou na minha casa. Era minha amiga.
FRIDA. Normal.
SYLVIA: Esteve com o marido dela na minha casa. Eu tinha oferecido a minha
amizade a ela.
FRIDA. Normal. Lógico. Não sei por que a surpresa. Com quem mais poderiam
trair a gente? Com as amigas. Muito difícil que enganem você com uma
inimiga.
SYLVIA: Salvei o meu casamento apesar das alunas dele… que eram jovens, e ela,
uma mulher mais velha… e minha amiga.
FRIDA: Será sempre assim. Amigas... amigos. Foi assim com Noguchi.
SYLVIA: Noguchi?
FRIDA: Um escultor. Chegou lá em casa admirando a obra de Diego e...
SYLVIA: E?
FRIDA: Ficou admirando os meus seios. Era belo, o Noguchi. Parecia
uma pequena joia pré-colombiana.
SYLVIA: Morreu?
FRIDA: Quase. (serve suco) Quer?
SYLVIA: É de que?
FRIDA: Suco de Urubu. (ri) Mentira. (bebe) Noguchi e seus olhos verde-
esmeralda, como já diria Agustín Lara. Toma, bebe, é gostoso. A relação
terminou de um jeito engraçado.
SYLVIA: Ela que coloque em dia a correspondência dele. A Ássia que costure suas
meias.
FRIDA: Noguchi e eu fomos amantes desde que a gente se viu. Era muito intenso.
Nunca ficava cansado. Não me dava tempo nem para pintar. Decidimos
alugar um apartamento porque Diego aparecia nos momentos mais
cruciais. Fui numa loja e escolhi a cama. Uma cama larga de grades
douradas. Larguíssima, que desperdício!
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SYLVIA: Duvido ela acordar a qualquer hora para escutar um poema do Ted.
Imagina!
FRIDA: O vendedor de móveis levou a cama e, como Noguchi e eu estávamos
demorando para chegar ao apartamento, ele teve a ideia de levar a nota
fiscal para o Diego. Foi uma confusão. Diego pegou o revólver e foi
procurar o Noguchi. Apontou a arma no meio da testa dele e disse: “eu
não empresto minha mulher”. Noguchi foi embora para Estocolmo.
SYLVIA: Onde eu falhei?
(Sai música 7.)
FRIDA: Diego não é o marido de ninguém. Nunca será. Mas é um grande
companheiro.
SYLVIA: Logo com a Ássia que fala, fala e não diz nada. O que fomos
nós, Frida?
FRIDA: Musas. No meu caso, uma musa manca.
SYLVIA: Álvarez, o crítico, diz que eu, na minha poesia, dependo cada vez mais
do Ted.
FRIDA: Divorcie-se. A crítica tem que ser contrariada.
SYLVIA. E o que serei então?
FRIDA: Uma artista... uma artista, um laço de fita em torno de uma bomba.
SYLVIA: Sua ausência é pior que os eletrochoques.
FRIDA: A dor deixei nos meus quadros.
SYLVIA. Eu não sou nas minhas cartas. Sou nos meus poemas.
FRIDA: (dá um presente) Toma.
SYLVIA: Não precisava se incomodar. Eu não trouxe nada para você. É o…?
FRIDA: Abre.
SYLVIA: (abre o presente) Uma redoma de vidro! Frida, o que posso dar para
você?
FRIDA: (entrega para ela uma vara embrulhada em papel colorido e aponta
para a “piñata”) Bate nele.
SYLVIA: No bonequinho?
FRIDA: Não é um bonequinho. É uma “piñata”.
SYLVIA: Não tenho coragem.
FRIDA: As “piñatas” são assim, como a vida.
SYLVIA: É que ele é muito bonito.
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FRIDA: Como a dor. Como as surpresas. Tudo é assim. As surpresas a gente só
ganha depois de bater. Depois de quebrar uma coisa bonita, surge uma
mais bonita ainda. Bate.
(BLACK-OUT RÁPIDO.)
(Entra música 8, crescendo.)
FRIDA: Felizes separações!
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osso... Não... transpassaram não. Quando me transplantaram o osso
perguntei para o médico o nome do doador e... Ele disse... Francisco.
Francisco Villa. Já pensou? Francisco Villa como o nosso Pancho Villa.
Com esse novo osso fiquei com vontade de sair do hospital atirando, e
começar então uma outra revolução. Morfina! Diego, morfina. Quero que
me injetem morfina de novo! Te suplico. Diga para eles... diga para eles
que não estou vendo mais os animais avermelhados passeando embaixo
da minha cama. Meu casco já está acordando. Os ferros que ardem já
começaram a me cravar as costas! (Pausa. Adormece. Queixa-se)
Diego... não vou mais cortar o bigode. Serei tão viril como uma orquídea.
(Entra música 9.)
FRIDA: Morfina, morfina, morfina. Cristo não sabe nada! Cristo não usou vinte e
oito coletes durante a sua vida. Um colete de aço, três de couro e o
restante de gesso.
(Sylvia liga o rádio.)
FRIDA: Morfina! Aí está outra vez. Olha, é Judas. Está me olhando de ladinho.
Aí está. Não está vendo? Atrás do quadro dos macacos. Entrarei no
inferno com um pé só. Não se deve chorar os pés que se foram. Um outro
nascerá de novo se você o pintar. Meus pés frutescerão. Pinta um pé para
mim. Morfina, Diego, porra, morfina!
(BLACK-OUT RÁPIDO NA LATERAL ESQUERDA.)
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Depois você fica inocente como a luz do dia. E... E temos que brincar de
anagramas para aprender de novo as letras. Ninguém acreditou.
(Sylvia desliga o rádio.)
SYLVIA: Estava ouvindo o rádio com a minha mãe. Hitler não tinha morrido ainda.
Eu o tinha visto voando no teco-teco. Eu o vi, num dos seus aviões,
daqueles sem capota. Hitler pilotava, e na poltrona de trás estava Eva
Braun e... ela usava um lenço branco de bolinhas vermelhas na cabeça, e
me deu um adeus, assim, com a mão, lá de cima. Eu estava deitada na
praia. Pegando um sol... em Cabo Cod. Querido Yeats, poeta Yeats. Me
perdoe por alugar a sua casa. Eu vou tomar conta dela. É que eu não
estava suportando mais Devon, nem a caça às vagabundas. Eu... eu vou
limpá-la muito bem. Sou... fico com vergonha de dizer, mas... eu também
sou poeta. Sou... sou uma boa dona de casa. Vou lhe oferecer mel,
coalhada e caviar vermelho. (Dobra-se sobre si mesma. Grito longo.
Fica ereta novamente. Tranquila) Isso que acabou de grasnar foi a ave do
pânico. É ela que me impede de escrever. (Repete o movimento e o grito
anterior. Fica ereta) Ouviu? Ela... ela não me deixa escrever. (Repete
novamente todo o movimento. Fica ereta e respira fundo. Retém a
respiração. Vai soltando o ar lentamente) Vou descendo o meu rosto em
direção ao berço. Meu rosto está indo em direção ao berço. Já. Já está
bem. Não. Não deixarei de ser uma boa mãe. É. Entendo. Antes de ir-me
embora, vou deixar servido o café da manhã das crianças. Querido Yeats.
Poeta Yeats. Me abençoe.
(Sai música 9.)
(BLACK-OUT RÁPIDO SOBRE SYLVIA.)
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Creyó que el trigo era el agua.
Se equivocaba.
(pausa. tranquila) Não quero que o Diego entre, não quero que o meu
menino entre. Virou um sapo velho que berra. Não quero que ele entre
até que pare de chorar. Cristina, por favor, quero ser cremada. Não quero
ir para o túmulo deitada. A morte é uma farra. (enche balão de gás) Este
ano tem sido o ano dos caldos. Caldinho de carne, caldinho de frango,
caldinho de peixe. Caldinho de nada. (Cantarola de boca fechada parte
da canção. Fica cansada.) O que mais querem? Não podem me tirar mais
nada. Quiseram os meus dedos e agora já os têm. Quiseram a minha
perna e a levaram. Quiseram as minhas costas e não estou mais nelas.
Quero... que... que me tragam meu anel de pavão. Numa... numa... numa
bota só dançarei um “jarabe tapatío”. Tenho... tenho asas de sobra. “Se...
se equivocó la paloma... se equivocaba” As águas, para mim, sempre
foram vermelhas.
(Entra música 10, e vai até o fim da faixa.)
FRIDA: (sussurra, de maneira entrecortada, a primeira estrofe da canção) Está...
está. (respira fundo. fica assim por um instante. vai deixando sair o ar
com dificuldade) É... já está. (murmurando) Está anoitecendo na minha
vida... (Estoura o balão.) Que a partida seja breve e que eu não volte
nunca mais. (Morre)
(BLACK-OUT LENTISSIMO SOBRE FRIDA.)
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escrevia um poema, se limpava o chão ou se abraçava as crianças. Mas
ontem eu soube que hoje o meu sonho ficaria repleto de balões amarelos.
(solta balões a gás)
(BLACK-OUT RÁPIDO SOBRE SYLVIA.)
Fim
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