Você está na página 1de 9

Trabalho de Campo enquanto parte

do Processo Etnográfico

Docente: Ricardo de Seiça Alves Salgado


Discente: Ana Beatriz Romão Pacheco, nº 2017241170
Disciplina: Leituras Aplicadas à Antropologia
Curso: Licenciatura em Antropologia
Ano letivo: 2021/2022
Introdução
No âmbito da disciplina Leituras Avançadas em Antropologia foi nos facultada,
pelo docente, a escolha de um tema visando uma das fases do processo etnográfico, para
tal efeito escolhi o trabalho de campo como temática a ser desenvolvida.

Vou, portanto, neste trabalho expor a dinâmica do “triangulo antropológico” –


etnografia, comparação e contextualização- e a sua relação direta como o trabalho de
campo e as várias fases e práticas associadas a este, enquanto parte da pesquisa
etnográfica, tendo sempre como base os textos fornecidos pelo docente na bibliografia
da cadeira e complementando com outros por mim escolhidos.

Etnografia e o “Triangulo Antropológico”

O processo etnográfico surge no final do século XIX início do seculo XX, com a
necessidade de entender os traços culturais das comunidades e grupos sociais, como diz
a própria palavra etnografia: etno/ethnos significa cultura e grafia/graphein, por sua vez,
escrita, ou seja, a cultura escrita. Esta consiste numa metodologia usada nas ciências
sociais, tendo como objetivo o estudo das culturas e do comportamento de diversos
grupos sociais. É preciso notar que a palavra “etnografia” também possui um carater de
dupla valência, uma vez que pode ser encarada como um produto escrito, ou como um
processo.

Para se dar um sistema operacional, onde os antropólogos adquirem e usam


dados etnográficos na escrita, é necessária a junção de três práticas que constituem o
designado triangulo antropológico, a própria etnografia, a comparação e a
contextualização (Sanjek, Roger 2002). A comparação experimenta-se de duas formas,
no campo e através da escrita. No campo, dá-se no momento em que existe o “choque
cultural” e o antropólogo tem como necessidade comparar tudo o que o envolve,
interpretando as diferenças e as semelhanças (Gingrich e Fox 2002 citado por Gay Y
Blasco, P. e Wardle, H.O.B 2019). Se a comparação é a primeira fase na escrita
etnográfica, a contextualização surge como a segunda, onde os escritores estabelecem
contextos sociais e culturais para ações que parecem inicialmente inexplicáveis, por
estarem inseridas em contextos particulares. São também observadas, neste contexto,
relações entre diversos níveis e áreas de experiência de maneira a serem adquiridas mais
perspetivas analíticas sobre um determinado contexto (Gay Y Blasco, P. e Wardle, H.
O. B 2019). As etnografias usando meios de comparação e reflexão levam a cabo novos
padrões para a contextualização de mais documentos. Os três conceitos acabam por
estar sempre intrinsecamente ligados. O triangulo acaba por ser a engrenagem que a
antropológica sociocultural necessita para funcionar como uma disciplina, que explica e
interpreta a diversidade cultural e social humana. As etnografias constituem, portanto,
um género individualizado, marcado por uma escrita condicionada pelo processo de
construção de conhecimento, que pode ser facilmente sintetizada através do triangulo
antropológico.

“Ethnography, both product and process, has a history and pattern of development of
its own.” SANJEK, Roger (2002)

Trabalho de campo

O processo etnográfico é composto por várias fases que vão desde a pré-
imaginação, ao trabalho de campo e a escrita do resultado. Focando no trabalho de
campo, tema do trabalho, este consiste numa técnica de pesquisa, usada pelas Ciências
Sociais, em especial pela Antropologia. Antes de se iniciar o trabalho de campo, fase
designada por “pré-imaginação”, dá-se uma coletânea de informação, literatura,
métodos, é realizada uma tabela temporal e apurado um “budget”. Como o trabalho de
campo requer contacto direto para que a experiência seja bem-sucedida é também
necessária a inserção do pesquisador na sociedade, comunidade ou grupo a ser estudado,
de modo que este possa acompanhar as práticas diárias, que além de observadas devem
ser vivenciadas pelo mesmo. Vários autores discutem as possíveis durações para o
trabalho de campo, embora nunca se tenha chegado a um consenso, por exemplo para a
etnografia clássica este seria de 6 meses a 2 anos ou mais em campo (Fetterman, David
M. 2010). No entanto, nem sempre é possível uma permanência tão duradora ou
contínua em campo, também se encontra em causa o estudo ser sobre uma cultura
estrangeira ou não, pois esse fator ajuda na delineação de um cronograma temporal. A
melhor altura para a partida será mesmo quando já está reunida informação suficiente
para descrever o estudo ou para responder a perguntas formuladas anteriormente. Assim
que o mesmo padrão se continue a reafirmar é hora de organizar a informação e dedicar
tempo ao papel.

“The ethnographer enters the field with an open mind, not an empty head” -
(Fetterman, David M. 2010).

No começo do trabalho de campo o etnógrafo tem que estar livre de falsas


premissas e aberto a questionar as suas, de modo a não entrar em conflito e preconceito
com o seu objeto de estudo. Os primeiros tempos do antropólogo em campo são vistos
como um tempo de analise, onde este se dedica a aprender os básicos como a linguagem
“nativa”, informação estatística sobre a população, conhecimentos básicos da estrutura
social de relações, assim como os conceitos culturais subentendidos na sociedade onde
se encontra a trabalhar, que lhe serão futuramente necessários. No entanto, o fator mais
importante no trabalho de campo é estar no local e essencialmente observar, questionar
e apontar o que se passa em redor. Isto não quer dizer que o investigador tenha de
escrever tudo o que vê, até porque nem sempre é possível. O investigador passa a ser
uma personagem com uma espécie de dupla ação, onde conta uma “história” o mais
próximo possível do ponto de vista nativo, concebendo um maior entendimento do que
está a ser exposto, ao mesmo tempo que revela os dados científicos por si adquiridos.
Dá-se, portanto, numa primeira instância um período de observação participante, onde
se procura adquirir um conhecimento base do atual contexto. No caso de a pesquisa ser
na própria sociedade onde o etnógrafo se insere, a primeira coisa a fazer é não tomar
como garantido que a sua perspetiva seja partilhada pelos demais. Só após este processo
de “ambientação” estar realizado é que o etnógrafo deverá envergar pelas entrevistas
etnográficas. Apresentarei agora alguns subtópicos intimamente ligados ao trabalho de
campo.

Papeis do Investigador

Existem quatro tipos de papeis que o antropólogo pode adquirir em campo,


participante, participante-observante, observante-participante e observante, usando
Gold, R. (1958) e Burgess (1997) como referência, irei explicar sinteticamente cada um
deles. No primeiro dos quatro, participante, o pesquisador insere-se no ambiente sem
expor os seus objetivos e até mesmo identidade, toma uma posição de observador
disfarçado, que nem sempre poderá ser considerada ética, devido ao modo como os
dados são adquiridos sem qualquer tipo de consentimento. Relativamente ao
participante como observador, este já possui consentimento do grupo, que ciente da
presença do investigador aceita a realização da observação, o seu contacto com os
informantes é breve e formal, pode haver problemas relacionados com o enviesamento
devido aos contactos e interações serem breves. No que diz respeito ao observador
como participante, este envolve-se no contexto social objeto do estudo enquanto
observa simultaneamente, são desenvolvidas também relações benéficas com os
informantes. Face ao observador completo, este por sua vez não participa de maneira
alguma no contexto social do grupo estudado, não possui interação com o informante,
acabando por evitar o “tornar-se nativo” e acaba por levantar problemas referentes ao
etnocentrismo, muitas vezes o seu trabalho assenta na visualização de gravações para
sustentar o seu trabalho.

Existem, também, alguns fatores relativamente ao investigador que podem


influenciar a sua pesquisa, tais como a experiência, idade, sexo e etnia (Burgess 1997).
A experiência do investigador, na medida em que é um fator decisivo na produção de
informação. A idade, que apesar de pouco ser tomada em consideração pode vir a
influenciar a prática de certas atividades por parte do investigador. O sexo,
principalmente na forma como o sexo feminino influencia os papeis atribuídos e como
isso pode prejudicar a desenvolvimento da pesquisa, intrinsecamente ligado com
estereótipos sobre a mulher. Etnia, uma vez que esta implica contacto com outros
“povos”, o que leva à problemas de linguagem, onde se torna necessário arranjar um
intérprete.

Observação-Participante

Dando enfase à abordagem designada observação participante, na qual


Malinowski está ligado à sua fase embrionária, esta permite uma perspetiva holística e
natural, assim como uma análise qualitativa, o investigador é a principal ferramenta
desta e o seu interesse passa pela sua inserção no ambiente alheio, de modo a poder
visualizar as práticas de um grupo no seu meio, produzindo uma “descrição densa”
(Geertz 1973), e não se deixando ficar apenas pela recolha individual de respostas as
questões por si formuladas. No entanto, apesar da utilidade da abordagem, é necessário
complementá-la através de entrevistas, por exemplo, para atingir um estudo mais
fundamentado. O investigador no desenvolver da observação participante tenta
perceber, comparar e contextualizar os diferentes traços culturais, mantendo-se ao
mesmo tempo com um sujeito exterior ao ambiente em que se encontra. Uma das
críticas posta a este método é a possibilidade de os investigadores influenciarem a
investigação, ou serem influenciados devido as relações pessoais que se desenrolam.
Surge também a hipótese das respostas dadas, em contexto de entrevista por exemplo,
serem adulteradas pela própria pessoa devido à inibição face ao investigador.

Notas de campo

“Field notes are the brick and mortar of an ethnographic edifice.” (Fetterman, David
2010)

Como dita Fetterman (2010), as notas de campo, são peças essenciais para a
construção de uma etnografia, estas podem constituir informações relativas a
observações ou a dados de entrevistas. Tendo em conta, que as memórias se vão
dissipando, as notas têm um carater de extrema importância e devem ser apontadas
enquanto a informação se encontra “fresca”. A escrita cronológica de eventos em
diários é uma das chaves para manter as informações organizadas e surge como um
meio de o etnógrafo se lembrar das suas reações, sentimentos e frustrações relacionadas
ao trabalho de campo (Sanjek, Roger 1990). Em alguns momentos, surge a necessidade
dos etnógrafos se afastarem para gravar ou escrever explicações sobre determinados
temas. Os métodos e técnicas para adquirir dados, como o instrumento humano, são
peças de analise fundamentais que permitem o processo virar produto.

A constituição das notas de campo possui três momentos distintos de acordo


com James Clifford (1990), o momento de inscrição, quando o etnógrafo aponta
palavras ou frases para se recordar de uma observação ou de que o que alguém disse; o
momento de transcrição, um exemplo é o investigador se sentar com o informante a
“desvendar” as informações coletadas, e por ultimo a descrição que consiste na escrita
de texto mais coerente sobre a realidade cultural observada, este ultimo momento é o
que Geertz (1973) designa por “descrição densa”.

Uma das soluções para não deixar acumular trabalho, ou correr o risco da
informação ou contextualização das notas cair em esquecimento, os etnógrafos
aproveitam os seus tempos livres, muitas das vezes à noite no seu retiro, para compor
texto ou transcrever informações gravas visualmente ou por áudio. Ao mesmo tempo
que vão sendo organizados os dados, enquanto decorre a investigação, é possível que o
etnógrafo vá formulando ideias. A otimização da escrita das notas através de
abreviações, também possui um carater chave, que permite ao etnógrafo apontar o
máximo de informação possível com a maior brevidade possível, estes símbolos servem
também como gatilhos para desencadear memórias relativas a acontecimentos
observados em campo (Fetterman, David 2010)

Entrevista Etnográfica

De acordo com Davies, Charlotte Aull (1999), as entrevistas são usadas pelos
etnógrafos que usam como método principal a observação participante. Estas poderão
ser não estruturadas, o que se assemelha a conversas informais, o facto de não serem
estruturadas não implica que não haja tópicos que o etnógrafo procure explorar;
estruturadas, que implicam uma elaborada pesquisa antes, existem perguntas pré-
determinadas, apesar do rigor há uma certa liberdade face as respostas dadas pelo
entrevistado e por último temos, surgindo como um meio termo, a entrevista
semiestruturada, esta tem uma abordagem divergente de uma interação social normal,
implica uma estrutura, mesmo que informal, apesar desta podem sempre ser inclusos
novos tópicos e perguntas suplementares, os entrevistados têm sempre liberdade para
expandir as suas respostas, sem serem sujeitos a restrições associadas a noções pré-
concebidas dos etnógrafos.

As entrevistas semiestruturadas têm sido o método de pesquisa qualitativa, mais


popular em áreas das ciências sociais, tal como a Antropologia. As entrevistas
etnográficas num único individuo também são proveitosas para a realização de histórias
de vida, embora estas impliquem no mínimo duas a três entrevistas e bastantes horas de
transcrição, são um bom meio qualitativo, que no seu fim pode ser utilizado para reunir
informações de modo a criar uma base de conhecimento. Normalmente são usados
gravadores para gravar as entrevistas e a transcrição destas são feitas no campo nos
tempos livres, de modo a não acumular muita informação, uma vez que as transcrições
são por norma bastante demorosas.

Existem, porém, algumas problemáticas associadas ao modelo da entrevista,


estas podem passar pela inibição do entrevistado, não permitindo o desenvolvimento da
entrevista e contradições apresentadas nas respostas dadas pelo inquirido. Torna-se
necessário, o desenvolver de uma confiança entre o entrevistador e o entrevistado para
que a entrevista possa fluir naturalmente.
Questões éticas

As questões éticas surgem com um grande pesar no trabalho de campo, e são


algo de que devemos estar sempre conscientes. Como são geradas relações de
proximidade, é normal que possa haver uma complexidade de envolvimentos, que
levante questões sobre valores incompatíveis, no entanto esses têm que ser respeitados.
A escolha tomada no campo tem que visar sempre o que é eticamente correto, de acordo
com o AAA (1998), pois a partir do momento que o antropólogo adentra o campo,
existem obrigações éticas com as pessoas com quem lida, tem que existir consentimento
sobre a informação coletada por parte dos informantes ou entrevistados, assim como é
esperado que sejam respeitados.

Conclusão

Este ensaio permitiu-me ter um maior entendimento sobre a dinâmica do


triangulo etnográfico, onde a comparação e a contextualização surgem como elementos
base para a elaboração de uma etnografia. O trabalho de campo, por sua vez, mostra-se
mais complexo do que o que aparenta, pois encontra-se dependente de várias fases,
métodos e técnicas. Os métodos surgem como uma importante ferramenta que nos
auxilia a penetrar a realidade que procuramos estudar, facilitando a compreensão que
temos sobre o “outro”, de modo a percebermos as suas práticas. Torna-se, neste sentido,
necessário manter uma aprendizagem continua e a mente aberta de modo a melhorar
cada vez mais o processo etnográfico. Tendo sempre em mente, que devido à
complexidade do processo, talvez o etnógrafo acabe por gerar mais hipóteses do que
achados concretos.

Em conclusão, apesar de todos os problemas adjacentes ao processo etnográfico,


este não deixa de ser um processo satisfatório com elevada importância a nível cultural,
que traz aos antropólogos ligados à área social um sentimento de autossatisfação, uma
vez que para si o trabalho de campo também funciona como uma espécie ritual de
passagem. Espero também um dia no futuro poder experienciar em primeira mão, a
complexa, mas satisfatória experiência que é o trabalho de campo.
Bibliografia

American Anthropological Association, “Code of Ethics” from Washington, DC


American Anthropological Association, 1998.
Burgess, Robert. (1997) “Métodos De Pesquisa De Terreno I: A Observação
Participante” e “Registar e Analisar Informação de Campo”, in A Pesquisa De Terreno:
Uma Introdução
CLIFFORD, James (1990). “Notes on (field)notes”. In Roger Sanjek (ed.),
Fieldnotes: the makings of anthropology. Ithaca e London: Cornell University Press: pp.
47-70.
DAVIES, Charlotte Aull (1999). “Observing, participating”. In Reflexive
Ethnography: A guide to researching selves and others. London and New York,
Routledge: pp. 67-92.
DAVIES, Charlotte Aull (1999). “Interviewing”. In Reflexive Ethnography: A
guide to researching selves and others. London and New York, Routledge: pp. 94-116.
FETTERMAN, David M. (2010). “Recording the Miracle: Writing”. In
Ethnography: step by step (3rd edition). Los Angeles, London, New Delhi, Singapore,
Washington DC, Sage Publications: pp. 113-131.
FETTERMAN, David M. (2010). “Walking in Rhythm: Anthropological
Concepts”. In Ethnography: step by step (3rd edition). Los Angeles, London, New
Delhi, Singapore, Washington DC, Sage Publications: pp. 15-32.
GAY Y BLASCO, P., and WARDLE, H. O. B. (2019). “Comparison: The
ethnographic outlook”. In How to Read Ethnography (2 ed.). London and New York,
Routledge: pp. 25-50
GAY Y BLASCO, P., and WARDLE, H. O. B. (2019). “Introduction: The
concerns and distinctiveness of ethnography”. In How to Read Ethnography (2 ed.).
London and New York, Routledge: pp. 12-24.
Geertz, Clifford, 1973. The interpretation of cultures: selected essays. Nova
Iorque
Gold, R. (1958). Roles in sociological field observation. Social Forces, v.3,
p.217-223.
SANJEK, Roger (1990). “A vocabulary for fieldnotes”. In Roger Sanjek (ed.),
Fieldnotes: the Makings of Anthropology. Ithaca and London, Cornell University Press:
pp. 92-121.
SANJEK, Roger (2002). “Ethnography”. In Alan Barnard and Jonathan Spencer
(eds.), The Routledge Encyclopedia of Social and Cultural Anthropology. London and
New York, Routledge: pp. 295-302.

Você também pode gostar