Você está na página 1de 2

O sombrio

I. A aldeia

O céu azul dançava os mapikos nostálgicos e prenunciava pela primeira vez uma
calmaria depois de uma sangrenta guerra risível tanto pelos deuses como pelos homens. As
estratégias usadas por eles, os indivíduos sem rosto, eram curiosas e um pouco previsíveis
como as Técnicas expostas na arte da Guerra de Sun Tzu.

As comunidades, com a chamada natalina, aglomeram-se alegres, mas temerosas pelo


pecado de simplesmente ter nascido. Uns nascem para liberdade; outros para os lares
claustrofóbicos da religião; ainda outros como realizadores dos anseios dos preceitos divinos
jogando projecteis terríveis aos que se entregam a autopromoção. É um sacrilégio brutal fugir
da sina da solidão e da jovialidade da vida e suas amarras sem o arco-íris anunciar o desfecho
das cores que bombardeiam àquele céu que, inevitavelmente, foi motivo de sonhos e alegrias
para muitos.

A nordeste de Lutingina, uns seiscentos metros dali, vê-se uma opípara e exuberante
mata que sangra em suas veias místicas árvores, cajueiros frondosos e riachos com o silêncio
da morte que se beijam em uma beleza inextinguível, pastoril e maconde. No lado esquerdo,
passa um caminho estreito, onde nas madrugadas os transeuntes acordam as choupanas
perfiladas nas bermas com as conversas animadas, taciturnas e sinistras.

- Malditos muçulmanos! Maldita religião! – Vocifera Shadida. Uma mulher analfabeta


das letras, mas que conhece os alfabetos de uma paixão sinuosa e das incongruências dos
homens.

Conhecida pelo seu harmonioso corpo que lembra uma guitarra. Os olhos pequenos,
nariz arrebitado, peitos redondos qual gémeas destinadas a ficar juntas para sempre. Quando
ela fala, os homens calam. Não se sabe porque eles se calam. Ou é por respeito ao acto
comunicativo, um processo que não pode ocorrer simultaneamente; um deve falar e outro
ouvir ou vice-versa. Ou pelos encantos femininos que tão fácil, como pássaro na armadilha,
enlaçam os homens.

Os homens são enigmáticos, ela pensa. Os homens são imprevisíveis. Fingem que nos
amam quando, na verdade, querem o prazer e descortinar o mistério das mulheres. Sem esse
mistério feminino perde-se o galanteio. Controlam-nos, machicizam-se por nos fazer parir.
Têm uma sensação de poder.

- Não culpe a religião islâmica. Estamos aqui depois que fomos expulsos da nossa
terra há mais de um ano. Não sabemos quem nos ataca e não sabemos se podemos dar
humanidade a essas pessoas. Não sabemos, apenas sabemos que estamos de volta aos
sepulcros dos nossos ancestrais, ao farol das nossas crianças e a cultura que se pretende
soterrar. Como nos podem fazer esquecer as nossas terras facilmente mesmo que banhem o
território com sangue? – Perguntava incisivamente Catomua como alguém que defende uma
causa conatural e o anseio mais sagrado.

- Nós somos macondes! – Parecia concluir as ideias com essa exclamação pacata.

Transcorridos dias nenhuns, o sol já pairava no horizonte sem nuvens, azulado e destemido. A
aldeia dançava a azáfama das mulheres ao moerem o milho nas almofarizes, a alegria do odor
da carne vinda da caça, as conversas descontraídas e gargalhadas nostálgicas dos velhos,
maridos e rapaziada a admirar a eloquência que epopeitiza os tempos idos e saudosos.

– Ah! Que pena ter nascido! – Filosofava ingénuo o Bartolomeu, um menino de 13 anos de
cabelo encarapinhado que se destoa da beleza comum, a qual, os rapazes obstinados em
cortejos sem o saberem se elevam além dos seus conceitos e, sedutor e inexplicavelmente, as
meninas sentem-se atraídas mortal e eternamente enlaçadas a lembrar da primavera da
ingenuidade e aventura dos seus pequenos grandes romances. Coisas da juventude.

No pico do dia, quase às 12 horas, a voz nos alpendres sai mais animada a descrever
frequências e veias rítmicas harmoniosas. Avizinha-se o almoço. Na África valoriza-se mais a
pança! Diz-se que a barriga desnuda é o selo da miséria política, da súplica desonrosa e a
perpetuação dos políticos déspotas, mas detentores de comida. Em outros mundos o diabo a
ser vencido é a fome. É o bicho espiritual e real que expulsou deus na consciência de milhões
de crianças africanas vítimas reais das algazarras excruciantes da desnutrição. A fome é a
oração que Deus não quer atender na África. É o diabo com vagas lacaias para subservientes
bajuladores, os vencidos por ela, e vêem uma gloriosa vantagem entregar-se ao sistema.

Você também pode gostar