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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ


PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
Campus Universitário “Ministro Petrônio Portela” – Bairro Ininga
CEP 64.049-550 – Teresina - PI
Telefone: (86) 3237-1134; E-mail: ppgfil@ufpi.edu.br

GABRIEL DE ALMEIDA DE BARROS

ECOFENOMENOLOGIA
Do tronco à raiz latino-americana

TERESINA
2020
GABRIEL DE ALMEIDA DE BARROS

ECOFENOMENOLOGIA
Do tronco à raiz latino-americana

Dissertação apresentada como requisito parcial à


obtenção do título de Mestre em Filosofia, pela
Universidade Federal do Piauí.

Linha de Pesquisa: Linguagem, Conhecimento e


Mundo
Orientador: Prof. Dr. Gustavo Silvano Batista
Coorientador: Prof. Dr. Eduardo Marandola Jr.

TERESINA
2020
FICHA CATALOGRÁFICA
Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello
Branco Serviço de Processamento Técnico

B277e Barros, Gabriel de Almeida de Barros


Ecofenomenologia do tronco à raiz latino-americana / Gabriel de
Almeida de Barros. – Teresina, 2020.
88 f.

Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Filosofia) -


Universidade Federal do Piauí, 2020.
“Orientação: Prof. Dr. Gustavo Silvano Batista.”

1. Martin Heidegger. 2. Fenomenologia. 3. Natureza. 4. Ecologia


Poética. 5. Filosofia Ambiental. I. Marandola Jr, Eduardo, coorientador.
II. Título.

CDD 142.7
Verde

Que será do verde agora?


O verde clarão do mar
Fluidos de nossas memórias
Cheio de ilusão e cores.
Que será, parente,
Do verde das campinas
Onde o vento nos ensina
Trilhar soprando o ar?
Que será ver de nativa
Na porteira do sertão
Olhando a vida cativa
Saudosa, doce ilusão?
Ver de longe a travessura
Das ondas sobre as ilhas
E o sagui na grota escura
Saltando por baixo delas.
Que será viver de amarela
Jurando por nossa intriga
Amando nos ver de briga
Enquanto o verde se acaba?
Que será viver de lembranças
Nas páginas ver de rosa
O testamento da esperança
Composta no sertão: veredas?
Que será do verde, parente,
Se lamento não nos educa
Pelo sol de onda forte
Da luz tanta que machuca?!

Juvenal Teodoro Payayá


(Nheenguera, 2018, p. 28)
AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço ao meu fundamento mais elementar, minha família que


me permitiu viver toda a experiência que faz que eu seja quem sou hoje.
Agradeço ao meu orientador, Dr. Gustavo Silvano Batista, que em uma conversa
despretensiosa no corredor da UFPI, me incentivou a dar fogo a uma antiga e apagada
paixão, que era a filosofia, e aceitei o ousado desafio de finalmente ir mergulhar em seus
estudos.
Me permito fugir da ordem cronológica para agradecer ao meu coorientador, Dr.
Eduardo José Marandola Jr., que me recebeu de braços abertos na FCA/Unicamp, e que
tanto me ensinou com sua forma fenomenológica de lidar com cada aluno.
Agradeço aos membros da banca, Dr. Werther Holzer e Dr. José Ricardo Barbosa
Dias, pelas sugestões e questionamentos desde a qualificação que por fim foi de enorme
ajuda no desenvolvimento desse trabalho.
Aos meus amigos do Rio de Janeiro, dos quais me mantive bastante ausente nestes
dois anos, mas para os quais em breve retorno para colocarmos os acontecimentos em dia.
Aos amigos que me deram apoio em Teresina, colegas de classe, e em especial
Regina Celis (que me acompanhou nas duas etapas), Julio Sá, Cinthya Kós, Isana
Barbosa, Wagner, Adda Lygia, Teônia, Felipe Alves, Fabrício, Jamires, Seu Rufino e,
ainda mais especial Lyla Braga que me acolheu como família durante esta fase e serei
eternamente grato por seu carinho.
Aos amigos feitos durante o período sanduíche em Limeira, que me deram suporte
com conversas, conselhos e abraços em momentos necessários especialmente Bianca,
Bruna, Cido, Carol Braz, Manaus, Viviane, Karina, Bia, Dani, Bárbara, Punk, Jean,
Amanda, Ariely, Aline.
Aos amigos feitos no LAGERR da Unicamp, Tiago Rodrigues, Jamila Jardim,
Jamille Lima, Stephanie Maldonado e Carol Grilli, que compartilharam das angústias e
alegrias ocorridas na fase final da pesquisa
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela
bolsa concedida que viabilizou a realização desta pesquisa.
Por fim agradeço a todos os pesquisadores e os que acreditam na pesquisa
brasileira nos servindo de exemplo nesse período conturbado no qual a ciência é
bombardeada diariamente em nosso país para que sejamos desacreditados.
A todos os que fizeram parte dessa história e me incentivaram.
RESUMO
Não é possível pensar a atual relação entre o homem ocidental e a natureza sem considerar
a crise ambiental, o que pode ser justificado de acordo com a época na qual essa relação
se firmou e, a partir do momento de crise das ciências na tarefa de fundamentar a natureza.
Este trabalho busca entender de que forma essa crise se origina e sua implicação para uma
sociedade moderna ocidental a partir das obras de Martin Heidegger, dentre as quais se
destaca a interpretação ambiental do ensaio “A Questão da Técnica” (1953). Ao tentar
conciliar tal crise pelo campo filosófico, uma possibilidade que se manifesta é pela
ecofenomenologia. Como primeiro passo, busca-se antes entender a natureza
ontologicamente para daí então agregar à discussão seu viés relacional com os seres
humanos. Por sua vez, esse assunto ainda é novo na América Latina. Buscamos então
entender quem é o latino-americano contemporâneo e como a ecofenomenologia se
manifesta a partir da práxis da relação dele com a natureza que é demonstrada em
materiais artísticos como literatura, poesia e música. Por fim, são discutidas as práticas
que são características na região e por vezes são passadas de gerações a gerações,
explicitando o forte enraizamento que o latino-americano tem com a natureza.

Palavras-chave: Heidegger, fenomenologia, natureza, ecologia poética, filosofia


ambiental
ABSTRACT
It is not possible to think about the current relationship of the western human being with
nature without considering the environmental crisis, which can be justified according to
the period in which this relationship was established from the moment of crisis of the
sciences in the task of founding the nature. This work investigates how this crisis was
originated and its implication for a modern western society based on the works of Martin
Heidegger, among which the environmental interpretation of the essay “The Question of
Technique” (1953) stands out. When trying to reconcile such a crisis through the
philosophical field, a possibility that manifests itself is through ecophenomenology. As a
first step, we seek to understand nature ontologically and then add its relational bias with
humans to the discussion. In turn, this subject is still new in Latin America. We then seek
to understand who the contemporary Latin American is and how ecophenomenology
manifests itself from the praxis of his relationship with nature that is demonstrated in
artistic materials such as literature, poetry and music. Finally, the practices that are
characteristic in the region are discussed and sometimes passed from generations to
generations, explaining the strong rootedness that the Latin American has with nature.

Keywords: Heidegger, phenomenology, nature, poetic ecology, environmental


philosophy
RÉSUMÉ
Il n'est pas possible de penser à la relation actuelle entre l'homme occidental et la nature
sans considérer la crise environnementale, qui peut être justifiée selon la période au cours
dont cette relation a été établie et, à partir du moment de la crise des sciences dans la tâche
de justifier la nature. Cet ouvrage cherche à comprendre l'origine de cette crise et son
implication pour une société occidentale moderne à partir des travaux de Martin
Heidegger, parmi lesquels se distingue l'interprétation environnementale de l'essai “La
question de la technique” (1953). Lorsque l'on essaie de concilier une telle crise à travers
le champ philosophique, une possibilité qui se manifeste est à travers de
l'écophénoménologie. Dans un premier pas, nous cherchons à comprendre la nature
ontologiquement puis à ajouter son biais relationnel avec les humains à la discussion. À
son tour, ce sujet est encore nouveau en Amérique Latine. Nous cherchons ensuite à
comprendre qui est le latino-américain contemporain et comment l'écophénoménologie
se manifeste à partir de la pratique de sa relation avec la nature qui devient évident dans
des matériaux artistiques tels que la littérature, la poésie et la musique. Enfin, les pratiques
qui caractérisent la région sont discutées et parfois transmises de génération en génération,
ce qui explique le fort enracinement de l'Amérique Latine avec la nature.

Mots clés: Heidegger, phénoménologie, nature, écologie poétique, philosophie de


l'environnement
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................... 11
1. DO TRONCO À RAIZ .............................................................................. 20

1.1 Natureza ocidental em crise ....................................................................... 20


1.2 O ser humano no centro do mundo ............................................................ 23
1.3 Ocultação do ser ........................................................................................ 28
1.4 Crise nas ciências ....................................................................................... 29
1.5 O desabrigar ............................................................................................... 32
1.6 Pensamento técnico ................................................................................... 34
1.7 A técnica .................................................................................................... 36
1.8 Subsistência ............................................................................................... 39
1.9 Enquadramento .......................................................................................... 40

2. NATUREZAS LATINO-AMERICANAS ................................................ 45

2.1 O ser-no-mundo-na-América-Latina ......................................................... 45


2.2 Physis ......................................................................................................... 50
2.3 Iseda ........................................................................................................... 53
2.4 Ybi .............................................................................................................. 59

3. ECOFENOMENOLOGIA......................................................................... 64

3.1 A contribuição de Heidegger ..................................................................... 64


3.2 Ecofenomenologia latino-americana ......................................................... 71

CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 79


REFERÊNCIAS .................................................................................................. 82
11

INTRODUÇÃO

Lembro-me de uma aula durante a graduação onde foi colocado um caso de uma
criança europeia e de uma africana e questionaram a cada uma “o que é natureza?”.
Enquanto que a primeira respondeu ser esta as árvores, os animais não-humanos, o céu a
outra respondeu que a natureza era ela própria, assim como seus semelhantes humanos.
Me questionei então se essa divergência de respostas se daria pelo fato de cada um
experimentar a natureza de uma forma e assim cada um ter uma compreensão diferente.
O que é natureza para uma cultura será vista da mesma forma por outra? Qual o papel dos
humanos na natureza? Para responder essas questões achei necessário antes de tudo me
perguntar a mesma coisa, afinal “o que é natureza?”.
Sem possuir a mesma objetividade e clareza de ideias que uma criança tem como
habilidade, essa pergunta se torna complexa, em certo grau, para nossos cérebros já
carregados de informações difusas. E se invertemos a pergunta, podemos partir para a
negativa: “o que a natureza não é?” Para o escritor uruguaio Eduardo Galeano (2012), “a
natureza não é muda”. Ou seja, a natureza possui voz. Ela reclama quando se sente
ameaçada. O filósofo e biólogo Uexküll escutava a natureza, não apenas através de
queixas, mas de música. Para ele a natureza é uma orquestra que se manifesta através de
uma perfeita partitura musical, na qual cada instrumento exerce sua função encontrando
seus pontos exatos (UEXKÜLL, 1982).
No ano de 1962, porém, a bióloga Rachel Carson sentiu falta da melodia. A
primavera tinha uma característica da sonora presença dos pássaros, mas, naquele ano,
isso não ocorria. Em seu livro “Primavera Silenciosa” (1962), a autora relatou este
ocorrido que, após investigar qual teria sido sua causa, concluiu que tal silêncio era
consequência direta da ação do pesticida DDT nas lavouras. Atribui-se a este episódio o
surgimento do movimento ambientalista. O livro foi largamente repercutido e acabou
tendo como resultado a conscientização da comunidade e este produto químico foi
proibido em diversos países. É por essa época que surgem as primeiras organizações não-
governamentais (ONGs) ambientalistas. A princípio, o ativismo ambientalista se
preocupava pela conservação, com a utilização de pesticidas na agricultura e com a
poluição industrial. Posteriormente foi adquirindo outras formas e agregando outras
preocupações em sua luta, tendo por fim um viés mais de prevenir do que remediar danos
à natureza.
12

Ao conceito de “natureza”, com a licença que a poética pode proporcionar,


comparo aqui a uma árvore. Temos essa natureza manifesta, visível, facilmente
compreendida como natureza que equivale então à sua copa, considerando os galhos e as
folhas de uma árvore. O que sustenta essa visão da natureza é justamente o latino-
americano que a experiencia, metaforicamente sendo então seu tronco. Me preocupo nesta
dissertação em fazer o movimento de buscar justamente o que alicerça esse tronco, ir em
direção a seu terreno onde ele se enraíza. Argumentando contra o sentido de “raiz” como
algo fixo, recordo que apesar de não enxergarmos, as raízes continuam se desenvolvendo.
O mesmo movimento de crescimento do tronco se encontra também espelhado sob a terra
e é esse crescimento para baixo das raízes que permite que o tronco se sustente. As raízes
são basicamente a garantia da vida da planta, é através delas que ocorre a alimentação,
nutrindo-a e permitindo que ela se fortaleça. É então buscando nas raízes que investigarei
ao longo do trabalho como as diversas “naturezas” têm se desenvolvido.
Em, Guerra e Paz, um dos maiores clássicos da literatura mundial, Liev Tolstói
afirma que “[h]á quem passe pelo bosque e só enxergue lenha para sua fogueira”
(TOLSTÓI, 2011). Essa imagem de uma natureza tecnificada, metafísica, usada como
mera subsistência, é a que é vista por uma sociedade crescida e desenvolvida no julgo da
técnica moderna resultando na crise ambiental. Crise essa que se dá primeiramente em
seus fundamentos, afinal, de quantas formas diferentes podemos entender a natureza? Na
conferência “A Questão da Técnica” (1953) Heidegger critica essa natureza como
subsistência que é desvelada pela técnica moderna. Antes de tudo, o filósofo vem a
questionar onde essa se fundamenta: nas ciências da natureza, as quais ele aponta já
estarem passando por uma crise (HEIDEGGER, 2007; 2009a). Em seguida, continua pela
investigação que é o tema central de seu texto, a busca pela essência da técnica. Nessa
busca, ele chega então à perspectiva de que a essência da tecnologia não é dada por um
fator tecnológico, mas é o que ele chama de Gestell (enquadramento). A Gestell é a forma
como o ser humano enquadra a natureza, não possibilitando que ela se manifeste da sua
própria forma, mas sim da forma que melhor convém à técnica moderna. Nos termos da
Gestell tudo se apresenta como reserva permanente (Bestand). “Em linguagem mais
familiar, pode-se dizer que se revela como um mero recurso, como algo a ser usado e nada
mais” (JAMES, 2009, p. 70)1. Segundo Storey (2015, p. 135), Gestell se dá também como
o terceiro sentido de natureza em Ser e Tempo, que para ele é “a destruição da terra,

1
Tradução livre do original: “In more familiar language, one could say that it reveals itself as a mere
resource, as something to be used and nothing more”.
13

nihilismo e poiesis”2, pois encaminha ao entendimento de terra como sendo nada mais
que um depósito de recursos, seja de energia, de materiais, de alimentos. Heidegger busca
então novamente nas raízes do grego como a tecnologia se posiciona na história do ser.
“Assim, sua afirmação é que a tecnologia sustenta não apenas a ciência, mas também a
metafísica moderna, medieval e antiga” (STOREY, 2015, p. 128)3. Contudo, ao se
caracterizar a tecnologia aparecendo como base para as ciências naturais, ela se manifesta
como uma forma de dominação da natureza. Segundo Storey (2015, p. 128), “a antiga
suposição de que o ser é dasein é agora entendida como a vontade tecnológica de dominar
a natureza, incluindo a natureza humana”4.
Qual seria então o significado da natureza? Longe de procurar uma definição
metafísica, não tenho aqui a intenção de trazer um sentido universal para a palavra, mas
sim o seu sentido ontológico. Com esse propósito, Heidegger realiza o movimento de
retorno ao grego para entender o sentido originário das palavras, pois, a tradição
metafísica e a influência das traduções em nosso pensamento, assim como o uso cotidiano
que desgastaria o sentido primeiro das palavras, são responsáveis pelo esquecimento do
Ser. Por sua vez, a única forma para que a filosofia retome a discussão do ser seria com a
superação da metafísica a partir da “virada ontológica”. Assim, o sentido mais
aproximado no grego da nossa atual “natureza” seria a physis. Heidegger não busca aqui
um estudo etimológico, tampouco uma atividade de tradução que recairia novamente na
metafísica tradicional. Ao buscar o sentido ontológico de physis recorre-se ao sentido
mais essencial desse ser que, vigora a partir de três formas: emergência, desabrochar e
abertura.
Ao trazer a discussão para o contexto latino-americano, como ontologicamente a
natureza pode ser entendida? Para isso considero aqui as possibilidades que foram
somadas ao combinar a diversidade de culturas na qual se construiu a América Latina,
opto por partir de um pensamento situado mas sem deixá-lo preso no tempo ou no espaço.
Assim, desmistificando a ideia de que os povos originários subsistiam a partir de técnicas
primitivas e triviais, é importante lembrar que no período que antecede à colonização, eles
já tinham domínio da agricultura, gestão hídrica e aproveitamento de energia solar.
Segundo a antropóloga que se especializou em povos amazônicos Denise Schaan (2010,

2
Tradução livre do original: “destruction of earth, nihilism, and poiesis”.
3
Tradução livre do original: “thus, his claim is that technology underpins not just science, but also
modern, medieval, and ancient metaphysics”.
4
Tradução livre do original: “The ancient assumption that being is presence is now understood as the
technological will to master nature, including human nature”.
14

p. 75), o povo marajoara que habitou no Pará já tinha um evoluído controle de hidráulica
e reproduziam “técnicas de manejo onde quer que as condições ecológicas fossem
favoráveis”. Enquanto isso, em algumas grandes cidades europeias os primeiros
problemas ambientais já apareciam, como cidades superpovoadas, esgotamento de
recursos locais e doenças devido às más condições sanitárias. O modelo ocidental de
gestão dos recursos naturais, inclusive, foi um dos impulsionadores da corrida das grandes
navegações, que buscavam em lugares cada vez mais longe novas fontes de matérias-
primas enquanto as suas estavam comprometidas. Após um primeiro contato de violência
pura, a colonização se caracteriza pela dominação dos povos nativos e exploração
descontrolada de recursos naturais. Segundo Dussel (1993, p. 50), “[a] América Latina
foi a primeira colônia da Europa moderna”5. Esta sofre um processo europeu de
modernização que se assume a partir de uma “práxis erótica, pedagógica, cultural,
política, econômica” (DUSSEL, 1993, p. 50). Diferente da forma como as cidades se
desenvolveram na Europa, que era a partir do desenvolvimento agrícola possibilitando o
sustento da pólis e seu gradual crescimento, Angel Rama (1985, p. 35) mostra que na
América Latina partiu-se diretamente para a fundação das urbes esperando que daí se
desse o desenvolvimento agrícola. A partir do século XVIII, a modernização se manifesta
nas colônias pelo seu papel de consumidor de insumos manufaturados, ou, área de
descarga de produtos fabricados à exaustão após o surgimento da revolução industrial,
além de serem também as colônias as fornecedoras de matéria-prima para estes produtos.
Na Europa, com a revolução industrial, os problemas ambientais se massificam e as
diversas formas de poluição aumentaram sua exposição no ar, no solo, nas águas. A
colonização, além de exportar a cultura das metrópoles para as colônias, exportou também
as formas de pensar e a industrialização.
Desvela-se então mais uma problemática: quem é este ser latino-americano do
qual falo? Nas palavras de Dussel (1993, p. 51), a América Latina se configura como
“uma raça mestiça, uma cultura sincrética, híbrida, um Estado colonial, uma economia
capitalista [...] dependente e periférica desde seu início”. Como descrever o filho gerado
por esta terra? Mesmo sendo este um evidente fruto da combinação de diversas culturas,
entre as quais predominam a europeia, a africana e a indígena, não busco aqui um recorte
temporal das raízes que o compõe. Caso optasse por este caminho, acabaria negando a
totalidade do ser. Conforme afirma Heidegger (2016, p. 98) “[o] ponto de partida

5
Complementa o autor que “historicamente [a América Latina] foi a primeira ‘periferia’ antes da África ou
Ásia” (DUSSEL, 1993, p. 50)
15

adequado para a analítica [do dasein] consiste em se interpretar esta constituição”. A


analítica existencial heideggeriana é utilizada então como o caminho para a identificação
dos momentos do ser e consequente aprendizado com estes. Procuro dessa forma entender
como essas raízes repercutiram na existencialidade deste latino-americano
contemporâneo. Heidegger buscou no grego o sentido mais fundamental de natureza.
Grego, o idioma do berço da civilização ocidental. Mas, e para as civilizações deste lado
do Atlântico? Que sentido mais fundamental e livre de traduções metafísicas seria esse
para a natureza? Fazendo o mesmo movimento, busco nos idiomas dos povos mais
elementares, e não-ocidentais, que constituem a miscigenação do latino-americano qual
seria o significado de natureza, não querendo sobrepor os conceitos ocidentais que
herdamos, mas emergindo conceitos por muitas vezes relegados a um papel secundário.
Mas e como o ser humano, em sua individualidade, vem experimentando sua
noção de natureza? Justamente por entender que essa noção depende de uma experiência
de mundo vivido a qual depende que só ocorre quando existe uma ligação entre sujeito e
objeto, evito nesse trabalho partir de uma metodologia que se concretize a partir da
separação entre humanos e natureza, ou uma polaridade sujeito x objeto. Busco entender
essa relação fundamentalmente a partir de sua própria constituição. Para isso, será
buscado o método investigativo que permite de partida assegurar tanto a unidade quanto
a totalidade do ente investigado, a fenomenologia. Conforme descrita por Brown (2003,
p. 5), a fenomenologia permite discutir “as formas e estruturas da experiência, assim como
criticar as formas de fazer filosofia que operam de um ponto de vista ingênuo”6. Tais
experiências têm sua estrutura de descrição na filosofia husserliana através da ideia de
“retornar às coisas mesmas”, que adquire o sentido de “retorno ao mundo anterior ao
conhecimento” (FRANÇA, 2014, p. 86).
Para o “fundador da fenomenologia”, Edmund Husserl (1988, p. 176), esta é “a
doutrina das vivências em geral, abrangendo também a doutrina de todos os dados, não
só os genuínos, mas também os intencionais, que podem ser evidenciados nas vivências”.
Por sua vez, quando pensamos a natureza por uma perspectiva fenomenológica, nos
referimos à forma pela qual cada observador descreve o mundo. Por isto, inúmeras
possibilidades de descrição de vivência da natureza se manifestam. Para Brown (2003),
as descrições da experiência moral impulsionam uma abordagem fenomenológica da

6
Tradução livre do original: “Phenomenology is a method of philosophical research that describes the
forms and structures of experience as well as a critique of those ways of doing philosophy that operate
from a naive standpoint”.
16

filosofia moral, enquanto que uma filosofia fenomenológica da natureza “começa com
descrições de encontros com a natureza da vida-mundana, isto é, a natureza que
experimentamos antes da abstração teórica”7. Ana Patrícia Noguera (2009) acrescenta que

a filosofia ambiental, guiada pela fenomenologia da crise de Husserl e a


fenomenologia do habitar poético de Heidegger, começa com uma radical
mudança de atitude: a mudança de uma atitude de dominação do homem sobre
a natureza para uma atitude de nos reconhecermos como uma natureza em
expansão e reconhecer que tudo o que fazemos (arte, técnica, tecnologia,
ciência e, em geral, cultura) é expansão de nosso corpo, que é natureza.8
(NOGUERA, 2009, p. 263)

A esta filosofia fenomenológica da natureza adotaremos a terminologia


ecofenomenologia. Esta busca responder sobre a natureza a partir dela mesma e confronta
as abstrações deixadas pela ciência que, a partir de sua concepção, objetifica a natureza.
Para Heidegger (2008a, p. 148), a ciência só consegue se deparar e encontrar o que é
representado como possível objeto dela. Quando a natureza passa a ser objetificada, caem
no esquecimento diversas relações orgânicas que ela mantém. A objetificação a violenta,
a abstrai de seu sentido mais amplo, a abstrai de sua essência.
Por mais que não possa se dizer que tenha sido ele um filósofo ambiental,
certamente este foi um facilitador para a compreensão do sentido originário da natureza
como physis, além de outros mecanismos que podem ser enquadrados na discussão
posterior do meio. Após uma reflexão sobre o ser-no-mundo, um dos conceitos-chave
discutido por ele, a reflexão acerca da forma como o homem habita a terra permite que o
autor possibilite uma orientação ética. Por mais que o filósofo se exima diretamente de
qualquer valoração desse tipo, que pode ser comparada a uma condição metafísica de
atribuir valores a objetos independente da relação que se mantenha com eles, ainda assim
percebemos que existe um posicionamento relativo a tal questão:

[...] devemos deixar os seres serem, deixando-os desenvolver suas próprias


capacidades naturais, quaisquer que sejam; nossa postura deve ser de abertura
para a manifestação do ser; devemos nos esforçar por um relacionamento com

7
Tradução livre do original: “A phenomenological approach to moral philosophy begins with
descriptions of moral experience, while a phenomenological natural philosophy begins with
descriptions of encounters with life-worldly nature, that is, the nature we experience prior to theoretical
abstraction.”.
8
Tradução livre do original: “la filosofía ambiental, orientada por la fenomenología de la Krisis de
Husserl y la fenomenología del habitar poético de Heidegger, se inicia con un cambio radical de actitud:
el paso de una actitud de dominio del hombre sobre la naturaleza a una actitud de reconocernos como
naturaleza en expansión y reconocer que todo lo que hacemos (arte, técnica, tecnología, ciencia y, en
general, cultura) es expansión de nuestro cuerpo, que es naturaleza.”.
17

a tecnologia que não corrompa a natureza ou a nossa humanidade; e assim por


diante. (STOREY, 2015, p. 13-14)9

Quando Heidegger defende que devemos deixar os “seres serem”, podemos


entender como uma crítica radical ao antropocentrismo e inferir como uma defesa de que
o homem deve deixar a natureza se manifestar tal como é, em seu modo se ser. A partir
dessa, parece implícita a afirmação de que todos os seres teriam então igual valor. Por sua
vez, essa ideia conhecida também por “biocentrismo”, embasa movimentos
ambientalistas como o mundialmente conhecido por ecologista profundo. Em termos de
América Latina, investigamos outros grupos, ou até etnias e culturas, que, apesar de não
estarem academicamente alicerçados nas teorias heideggerianas, seguem paralelamente o
mesmo direcionamento ético ambiental.
Como resultado do movimento proposto por Heidegger de irrupção e emersão a
partir da linguagem, espera-se que, ao fazer esse caminho com o “modo de ser da
natureza” seja possível evidenciar seu sentido essencial. A partir de então, busca-se re-
assimilar para nosso contexto atual a importância desta figura e formas menos
dominadoras do ser humano compreendê-la. Procuro então realizar esta discussão a partir
da clareira da ecofenomenologia, a qual justamente permite desencobrir a questão
ambiental pela perspectiva fenomenológica. Enquanto que a fenomenologia exprime a
máxima “para as coisas elas mesmas!” (HEIDEGGER, 2016, p. 74), a ecofenomenologia
se ocupa de sua “coisa” particular: o meio relacional entre o ser humano e a natureza,
também chamado de “mundo circundante” (Umwelt)10, que é o meio “mais próximo do
dasein cotidiano” (HEIDEGGER, 2016, p. 114).11
Ao se desdobrar a pesquisa sobre a ecofenomenologia, é possível perceber como
o assunto se desenvolve principalmente entre filósofos europeus e norte-americanos.
Assim como a fenomenologia, que teve seu berço na Europa e por ali se desenvolveu até
romper barreiras continentais, a ecofenomenologia tem centrado o seu debate na realidade
europeia e norte-americana. Não que a forma como a discussão é conduzida no antigo
continente seja menos importante. No entanto, considero essencial situar o pensamento
para a realidade latino-americana por ser a qual baseia minha experiência de mundo, que

9
Tradução livre do original: “we should let beings be, letting them unfold their own natural capacities,
whatever those may be; our posture should be one of openness to the manifestation of being; we should
strive for a relationship with technology that does not corrupt nature or our humanity; and so on”.
10
Optei pela tradução de Umwelt como “mundo circundante para facilitar o paralelo com a palavra
Lebesnwelt, sendo que ambas possuem o radical -welt que significa “mundo”.
11
Diferente da tradução de Márcia Sá Cavalcante em “Ser e Tempo” (2016) em que usa “presença”, optei
nesse trabalho pela tradução por Dasein.
18

não é norte-americana nem europeia. E, para entender o sentido que a natureza tem para
os povos que habitam essa parte do continente, é imprescindível que se considere a
experiência que estes têm. Para isso, examino o que já foi desenvolvido nessa região sobre
filosofia ambiental, mesmo que de forma menos conceitual, mas um conhecimento
prático, buscando nos saberes tradicionais a expressão pessoal da relação direta entre
esses povos e a natureza.
Ao entender como se apresenta ontologicamente o latino-americano e já ter
discorrido sobre a importância da fenomenologia para o debate, parto para a discussão
sobre a práxis da ecofenomenologia na América Latina. Poderíamos então apontar a
existência de uma ecofenomenologia enraizada na América Latina? Com base na analítica
existencial discutida anteriormente, se existir essa fenomenologia latino-americana ela
seria fruto de quê? Precisamente pela dificuldade que teria em deduzir a partir de um
pensamento coletivo como este povo apreende a natureza, busco destacar a relação entre
eles a partir de elementos manifestos. E que elementos seriam esses que poderiam elucidar
a pesquisa? Como Heidegger teve grande preocupação com a arte ao longo de sua carreira,
achei aqui pertinente me apropriar também de obras artísticas originadas por mãos latino-
americanas que pudessem representar essa cultura, pois é na obra de arte que o artista, no
caso, o latino-americano tem sua origem, assim como o artista é a origem da obra
(HEIDEGGER, 2010, p. 37). Busco mostrar então como artistas representaram a relação
do latino-americano com a natureza através de poesias, músicas, literatura e pintura, pois,
conforme afirma o escritor mexicano Carlos Fuentes, é nessa dimensão, a da subjetividade
coletiva, que nossa coletividade é encarnada, “[...] ou seja, a nossa cultura” (FUENTES,
2007, p. 19).
Ao longo do trabalho, me aproprio de diversos conceitos trabalhados por Martin
Heidegger ao longo de sua obra que serviram para fundamentar a argumentação. No que
se refere à problemática da crise ambiental, alguns dos livros utilizados foram “Introdução
à Filosofia” (1920) para a discussão da crise das ciências que por sua vez fundamentam
temáticas chaves como, no caso das ciências naturais, a naturalidade da natureza.
“Contribuições à Filosofia: do acontecimento apropriador” (1989) dá a base para a
discussão sobre a ocultação e o desabrigar do ser, que preparam para a discussão da
conferência “A Questão da Técnica” (1953) onde é feita uma leitura da obra aplicando-a
especificamente para a discussão ambiental e complementa-se a discussão com a palestra
“Língua de tradição e língua técnica” (1962) e o discurso “Serenidade” (1965) nos quais
também fala sobre a técnica moderna.
19

A partir do segundo capítulo, para a analítica existencial e a discussão ontológica


sobra a natureza recorre-se à principal obra do filósofo “Ser e Tempo” (1927) e também
às passagens sobre a natureza em “Introdução à Metafísica” (1953). No último capítulo,
para desenvolver uma exegese sobre “ecofenomenologia”, parto dos discussão sobre
fenomenologia de “Ser e Tempo” (1927). Para fundamentar a busca pela poética, recorro
à “...poeticamente o homem habita...” (1951) e “A Origem da Obra de Arte” (1950).
20

1. DO TRONCO À RAIZ

1.1 Natureza ocidental em crise

A natureza tem muito a dizer, e já vai sendo hora de que nós, seus filhos,
paremos de nos fingir de surdos. E talvez até Deus escute o chamado [...] e
acrescente o décimo primeiro mandamento, que ele esqueceu nas instruções
que nos deu lá do monte Sinai: "Amarás a natureza, da qual fazes parte".
(GALEANO, 2008)

Como cidadão urbano, criado em uma das maiores metrópoles da América Latina,
a natureza que figurava predominantemente como minha realidade, com a qual tinha
contato, era a natureza de uma selva de concreto. A capital fluminense, ainda assim,
dentre as grandes cidades, é uma das poucas que reserva inúmeras possibilidades para os
aventureiros de final de semana buscarem. Para aqueles que tem mais vigor físico e
energia para superar os obstáculos no acesso, e para os que conseguem se estabelecer em
pontos estratégicos da cidade, é possível manter um contato mais próximo com a natureza
- essa dita aqui no contexto do típico “verde”, ou fauna e flora - o que compreende trilhas
pela Floresta da Tijuca, praias, cachoeiras, lagoas, morros e montanhas. Já para os que
não dispõem de tanta energia, talvez sem tanta disposição ou mesmo tempo de passear
com a família, essa natureza é apresentada por uma realidade metafísica. Não se
experimenta a natureza de forma direta. A natureza é percebida através de documentários
em televisões. Dia do meio ambiente pressupõe plantar uma árvore. Contato com a fauna
é feito por zoológico ou aquário. “O maior da América do Sul!”12 Que garante que animais
marinhos sejam vistos fora de seu habitat. Fora de seu mundo, desprovidos de sua
essência. O contato direto com a natureza pode causar inclusive estranhamento.
O romancista Eça de Queiroz (2006) descreve em “A Cidade e as Serras” como
se dá o contato de um homem urbano, Jacinto, com a natureza

Ao contrário no campo, entre a inconsciência e a impassibilidade da Natureza,


ele tremia com o terror da sua fragilidade e da sua solidão. Estava aí como
perdido num mundo que lhe não fosse fraternal; nenhum silvado encolheria os
espinhos para que ele passasse; se gemesse com fome nenhuma árvore, por
mais carregada, lhe estenderia o seu fruto na ponta compassiva de um ramo.
Depois, em meio da Natureza, ele assistia à súbita e humilhante inutilização de
todas as suas faculdades superiores. De que servia, entre plantas e bichos —
ser um gênio ou ser um santo? [...] Toda a intelectualidade, nos campos, se
esteriliza, e só resta a bestialidade! Nesses reinos crassos do Vegetal e do
Animal duas únicas funções se mantêm vivas, a nutritiva e a procriadora.
Isolada, sem ocupação, entre focinhos e raízes que não cessam de sugar e de

12
Conforme vem exposto no site do AquaRio Porto Maravilha como se fosse motivo de orgulho “Com 26
mil m² de área construída e 4,5 milhões de litros de água, o AquaRio é o maior aquário marinho da América
do Sul e tem mais de 5 mil animais, de 350 espécies diferentes” (RIOMARCA AGÊNCIA WEB, 2019).
21

pastar, sufocando no cálido bafo da universal fecundação, a sua pobre alma


toda se engelhava, se reduzia a uma migalha de alma, uma fagulhazinha
espiritual a tremeluzir, como morta, sobre um naco de matéria; e nessa matéria
dois instintos surdiam, imperiosos e pungentes, o de devorar e o de gerar. Ao
cabo de uma semana rural, de todo o seu ser tão nobremente composto só
restava um estômago e por baixo um falo! E a alma? Sumida sob a besta. E
necessitava correr, reentrar na Cidade, mergulhar nas ondas lustrais da
Civilização, para largar nelas a crosta vegetativa, e ressurgir reumanizado, de
novo espiritual e Jacíntico! (QUEIROZ, 2006, p. 22-23)

Jacinto experimenta um terrível apavoramento com a possibilidade de encontrar


espécies que por ele só são conhecidas fora de seu meio natural. “Todas as flores que não
tivesse já encontrado em jardins, domesticadas por longos séculos de servidão
ornamental, o inquietavam como venenosas” (QUEIROZ, 2006, p. 23). Seu incômodo ao
adentrar o bosque de Montmorency só é desanuviado quando retorna aos Boulevards
parisienses. Enfim de volta à cidade grande, seu mundo.
Que tipo de relação as crianças podem vir a criar ao aprender a natureza neste
contexto, separadas por telas de televisão, vidros, grades? Esses meios que limitam o
contato direto da pessoa com a natureza não esvaziaria sua compreensão ontológica? Para
o filósofo Guattari (2012, p. 8), essa relação que estabelecemos com a natureza é uma
“relação da subjetividade com sua exterioridade - seja ela social, animal, vegetal, cósmica
- que se encontra assim comprometida numa espécie de movimento geral de implosão e
infantilização regressiva”. Alguns impactos dessa relação já se encontram manifestos,
dentre os quais temos o esgotamento de diversos recursos naturais que não acompanharam
o intenso ritmo de exploração imposto pelo sistema econômico predominante. Outro
impacto que se evidencia é o processo de extinção de espécies que, apesar de fazer parte
do ciclo evolutivo da natureza, um estudo da ONU (ONU BRASIL, 2018) mostra que a
intervenção humana o acelerou em 1000 vezes do que o comparado com um cenário
espontâneo. Grandes felinos, que naturalmente não teriam predadores, são os que correm
mais risco. Um exemplo são os tigres asiáticos que, há um século, existiam em uma
quantidade de 100 mil e hoje sua população está em torno de 4 mil. Outro sintoma é o da
poluição. Seja das águas, do solo ou do ar, seus focos que um dia atingiam apenas
comunidades que estivessem próximas, hoje já conseguem impactar a comunidade em
um nível global. O compositor Luiz Gonzaga (1989) já se engajava e cantava para o Brasil
sua preocupação com a poluição e seus impactos de forma bem direta e compreensível
em sua música Xote Ecológico:

Não posso respirar, não posso mais nadar


A terra tá morrendo, não dá mais pra plantar
22

Se planta não nasce se nasce não dá


Até pinga da boa é difícil de encontrar
Cadê a flor que estava ali?
Poluição comeu.
E o peixe que é do mar?
Poluição comeu
E o verde onde que está?
Poluição comeu
Nem o Chico Mendes sobreviveu (BATISTA; GONZAGA, 1989)

Os autores citam na música alguns dos impactos da poluição a partir do ponto de


vista de um cidadão nordestino, evidenciando atividades cotidianas de alguém da região,
assim como eles próprios. Terminam por fim citando o seringueiro Francisco Alves
Mendes Filho, ativista ambientalista que dedicou sua vida à defesa dos trabalhadores e
povos das florestas. Chico Mendes, que foi reconhecido pela ONU como um dos mais
importantes defensores da natureza em 1987, foi assassinado em 22 de dezembro de 1988
(EQUIPO TÉCNICO DE ECOLOGÍA POLÍTICA, 2013). Ele, que também foi um ativo
sindicalista, nunca teve lições teóricas sobre como aprender a natureza, inclusive foi
alfabetizado apenas aos 19 anos, mas todo o conhecimento que fundamentou sua luta
ambiental foi prático. Os músicos se referenciam a ele, em tom irônico, como se nem
quem luta contra a poluição tivesse conseguido resistir a ela.
Devido à poluição, a mistura de gases atmosféricos se modificou a ponto de
desencadear mais um problema: as mudanças climáticas. Segundo estatísticas da FAO
(2018)13, o agravamento de condições naturais extremas em decorrência das variações
climáticas como secas e enchentes fez com que o número de pessoas passando fome no
mundo aumentasse para 821 milhões em 2017. Além destes, a atual figura máxima da
Igreja Católica, Papa Francisco (2015), se desdobra sobre outros problemas manifestos
em sua encíclica de nome Laudato Si dedicada a abordar a degradação ambiental.
Ressaltando que a questão já é uma preocupação da alta cúpula dessa instituição, o
pontífice cita também:

 Consumismo e cultura do descarte;


 A questão da água;
 Degradação da qualidade da vida humana e degradação social;
 Desigualdade Planetária: ambiente humano e ambiente natural;
 A fraqueza das reações políticas: submissão às finanças e tecnologia;

13
Food and Agriculture Organization of the United Nations. Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura.
23

 Diversidade de opiniões: a técnica resolverá os problemas ambientais a


partir de seu próprio progresso.

O sociólogo mexicano Enrique Leff (2010), um dos principais intelectuais


ambientalistas latino-americanos, defende que essa crise, a ambiental, é a crise de nosso
tempo. Para ele, esta crise nos marca o limite do real que inclui “limite do crescimento
econômico e populacional; limite dos desequilíbrios ecológicos e das capacidades de
sustentação da vida; limite da pobreza e da desigualdade social” (LEFF, 2010, p. 191).
Diversas situações de problemas ambientais que temos enfrentado colocam em questão
nosso conhecimento de mundo.
Para acompanhar os impactos ambientais e fomentar discussões sobre o tema, um
ramo da ciência tem se engajado e é conhecido por ciências naturais. Seus esforços em
desenvolver pesquisas e gerar dados facilmente permitem a compreensão de que o
ambiente está em crise. Sendo as equipes fundamentalmente formadas por biólogos,
cientistas da terra, meteorologistas e engenheiros que buscam soluções científico-
tecnológicas, não é de se espantar que filósofos estejam também ali presentes. Estes
últimos, em meio à discussão, se incubem de dar o encaminhamento que possibilite a
reflexão filosófica. Entre suas tarefas, está a de identificar e criticar as ações humanas que
permitiram que se desse tal desequilíbrio e também traçar novas diretrizes que permitam
superar a crise ambiental. Bruce Foltz (1995, p. 22), em seu livro “Habitar a Terra”, no
qual busca trazer contribuições potenciais de Heidegger para a filosofia ambiental,
defende que “o problema é portanto definido como envolvendo a profunda e anômala
destruição pelos seres humanos de uma biosfera que consiste em ‘sistemas’ sobrepostos
e auto-reguladores”. O autor considera que a questão mais básica que está envolvida com
a crise ecológica é o fato de não estarmos a par do resto da natureza. Tal perspectiva
envolve tanto a forma como nos enxergamos no mundo como a forma como enxergamos
a natureza.

1.2 O ser humano no centro do mundo


Antes de se dar como crise ambiental, a problemática se revela então acima de
tudo como uma questão filosófica na qual a ontologia e a epistemologia contestam a forma
que a civilização ocidental compreende “o ser, os entes e as coisas” (LEFF, 2010, p. 194).
Pela concepção dessa civilização, o ser humano não se enxerga mais pertencente a um
organismo integrador, o cosmos. Vindo a palavra “crise” do grego krínein, cuja semântica
remete a “diferenciar”, “separar para distinguir”, podemos entender crise ambiental como
24

uma mudança de perspectiva ambiental. Logo, crise ambiental, quando pensada


etimologicamente remete à diferenciação de um cenário ambiental de outro, à
diferenciação da forma como este cenário é visto e, consequentemente, experimentado,
vivido pelos que com ele interagem. Se nessa distinção identificamos a ação de agentes
humanos, nunca poderemos analisá-la apenas superficialmente. As ações que, direta ou
indiretamente, modificaram espaço, quando provém de um cogito não devem ser
encaradas como acontecimentos fortuitos. Falo aqui não do cogito cartesiano, mas sim do
ricoueriano que atribui essa ação a uma questão hermenêutica. “Só atinjo as coisas
atribuindo um sentido a um sentido” (RICOEUR, 1977a, p. 30). Se uma ação humana
provoca uma diferenciação do ambiente natural no qual está inserido, isso se deve a uma
questão de sentido atribuído por esse agente ao ambiente em questão, ou à natureza. E
além disso, ao sentido que ele dá a si mesmo no mundo ao qual está inserido.
Como o ser humano enxerga então seu papel no mundo? Para Unger (2001)

Ele pode experienciar o universo como uma hierofania, à maneira das


sociedades arcaicas, ou como uma máquina cujas partes podem ser
desmembradas para serem conhecidas. Ou ele pode redescobrir o universo
como uma tessitura de inter-relações, um acontecimento multidimensional e
caleidoscópico, como sugerem algumas interpretações da física quântica. Em
todos estes momentos, a pergunta a respeito de nossa identidade é também uma
pergunta a respeito do todo, da vida, do ser. (UNGER, 2001, p. 20)

Historicamente o ser humano, por séculos, se colocou como o centro do universo.


No mundo ocidental, e entende-se por ocidental a civilização que tem entre suas
características básicas as religiões cristãs e o uso de idiomas derivados das línguas grega
e latina14, a concepção geocêntrica perdurou até que se desenvolvesse a cosmologia
copernicana. Até então, a metafísica clássica e a religião sustentavam que o universo se
estruturava seguindo uma ordem hierárquica. Por essa hierarquia os humanos, que se
representam como a imagem e semelhança de Deus, ocupam então o lugar de destaque.
O advento da concepção heliocêntrica provoca a dessacralização do cosmo e com isso se
desenvolve a divisão entre a ciência e a religião. Como afirma Unger (2001, p. 23), “um
mundo dessacralizado torna-se um mundo passível de cálculo e manipulação pelo sujeito
humano, visto daí em diante como centro ontológico do universo”.
Ao se enxergar fora do Cosmo15, o ser humano não assume uma posição de
humildade, mas se coloca em uma posição de superioridade aos demais seres e

14
Conforme Huntington (2010, p.58), "civilização é definida por elementos objetivos comuns, tais como
língua, história, religião, costumes, instituições e pela auto identificação subjetiva das pessoas".
15
A grafia de “Cosmo” aqui com inicial maiúscula busca representar a sacralidade da palavra que com
novas concepções acabou sendo perdida.
25

consequentemente perde “a possibilidade de se experienciar como cosmopolita - como


um ser que tem no Cosmo a sua pólis, a sua morada.” (UNGER, 2001, p. 23). Provoca-se
assim uma ruptura entre ele e a natureza da qual faz parte, entre sujeito e objeto, e se
coloca em uma espécie de auto-exílio. “[A] tentativa de suprir esta falta se expressa como
um anseio insaciável de poder e controle” (UNGER, 2001, p. 23).
De que forma essa visão culturalmente criada de não-pertencimento traz
implicações na prática? Primeiramente, enquanto nos colocamos na posição de espécie
soberana do planeta diversos impactos são causados a elementos geofísicos e a outras
espécies.
Sobre o primeiro grupo, a espécie humana, devido à sua ação de “revolver a terra,
modificar o ritmo dos ciclos de vida da Terra e alterar a química dos solos, das águas e
do ar” (ALVES, 2017 apud. DANTAS, 2017, p. 64), nos encontramos atualmente como
um dos principais agentes causadores de desordens ecológicas. Essa atuação do ser
humano como modificador de ambientes já o caracteriza atualmente como a principal
força geológica e, conforme Dantas (2017), chegou a designar nossa atual a fase geológica
nomeada por Antropoceno16. A década de 1950 foi escolhida como final da fase anterior,
Holoceno, para o início dessa devido a alguns motivos entre os quais:

1) Ascensão de testes nucleares em escala ampla, produzindo o elemento


químico plutônio;
2) aumento vertiginoso da concentração de dióxido de carbono na atmosfera
(por conta da queima de combustíveis fósseis);
3) aparecimento de plásticos ou de alumínio puro, materiais nunca vistos no
planeta antes do século passado
(ALVES, 2017 apud. DANTAS, 2017, p. 65)

Diferente das eras geológicas anteriores, nas quais as transformações ocorriam por
agentes naturais, no Antropoceno o que impulsiona a modificação do planeta é justamente
uma “concepção metafísica, filosófica, ética, científica e tecnológica do mundo” (LEFF,
2010, p. 194). O Antropoceno se caracteriza então por um grande aumento do
consumismo, que impacta diretamente em um maior consumo de energia elétrica,
matérias-primas, aumento da geração de resíduos e gases atmosféricos testando os limites
do poder de auto-depuração do planeta, um processo de canibalização do planeta. “O

16
Conforme Ricardo Dantas cita em sua dissertação “Antropoceno ‘é a Era dos Humanos’. Seu sentido
advém da junção ‘[d]o prefixo grego antropo [que] significa humano; e [d]o sufixo ceno [que] denota as
eras geológicas’ [...] ‘O termo foi proposto por Paul Crutzen [...] para substituir o Holoceno (que começou
há cerca de 10 mil anos). Antropoceno significa que os seres humanos se transformaram em força geológica
que tem o poder de revolver a terra, modificar o ritmo do ciclo de vida da Terra e alterar a química dos
solos, das águas e do ar’ (ALVES, 2017)” (DANTAS, 2017).
26

Antropoceno é o lixo deixado pelo banquete canibal” (PRECIADO, 2014, p. 21 apud.


VALENTIM, 2018, p. 20). Essa era tem se utilizado de um caminho curto em direção à
catástrofe, o qual chamamos de “ecocídio” que designa violações contra a natureza
(REGO, 2019). O termo tenciona aos princípios do genocídio aplicados à destruição
ambiental, contudo sua discussão se origina não pela preocupação com os impactos sobre
a natureza, mas notadamente com a preocupação dos efeitos ecológicos sobre a saúde
humana e seus impactos em nossa vida. É a partir deste quadro epistemológico no qual o
ser humano enxerga a si fora do cosmo e objetifica a natureza que os ocidentais constroem
sua relação. Tal relação se apresenta de forma predominante como capitalista e moderna.
Para o filósofo Peter Singer (2002, p. 282), a conduta dos ocidentais frente à natureza
surge de uma mistura do povo hebreu, como são representadas nos primeiros livros da
Bíblia, e pela filosofia dos gregos antigos, em particular à de Aristóteles.

De acordo com a tradição ocidental dominante, o mundo natural existe para o


benefício dos seres humanos. Deus deu a eles o domínio sobre o mundo natural
e não se importa com a maneira como o tratamos. Os seres humanos são os
únicos membros moralmente importantes desse mundo. Em si, a natureza não
tem nenhum valor intrínseco, e a destruição de plantas e animais não pode
configurar um pecado, a menos que, através dessa destruição, façamos mal aos
seres humanos. (SINGER, 2002, p. 283)

Enquanto nos encontramos isolados, existencialmente se cria um mundo


discordante do real. Manifesta-se partir de então uma relação de domínio que é fruto da
dicotomia tirania-serventia. “A tiranização do real cria solidão e servidão” (UNGER,
2001, p. 43) e esta é construída devido à ausência de trocas com outros seres. O seu
entorno perde seu sentido ontológico. Em contraposição à tirania, que se funda no
isolamento e esquecimento, há a liberdade que se fundamenta na amizade. Ao nos
questionarmos sobre o motivo do ser humano acabar adotando esse posicionamento de
tirano, existencialmente estamos nos perguntando sobre nossa identidade e o papel que
ocupamos no mundo. A própria divisão entre humanos e não-humanos concede aos
humanos um papel de primazia ontológica que se apropria dos não-humanos ao relativizá-
los com esse “não-” (VALENTIM, 2018). Os seres não-humanos não têm assim
respeitada a sua alteridade, mas sua relação de existência depende desse que é, conforme
diz Heidegger, é concedida a “afirmação da sua não-essência” (HEIDEGGER, 1998, p.
161 apud. VALENTIM, 2018, p. 157).
Esse domínio não se limita ao seu mundo, às espécies que são “não-”, mas também
se estende ao domínio do ser humano como tirano de si mesmo. Distorções como racismo,
sexismo, LGBTfobia, intolerância religiosa se revelam justamente a partir dessa falta de
27

troca do ser humano com o próprio ser humano. Objetificar os diversos entes com quem
coexistimos tem gerado movimentos autoritários e fundamentalistas que impõem um
modelo de identidade já previamente enquadrada, e dessa forma, aprofundando ainda
mais esse desenraizamento.
Algumas interpretações direcionadas à leitura da Bíblia acabam legitimando a
posição de dominador do ser humano sobre a natureza. Diferente de outras religiões indo-
americanas, orientais e africanas, a doutrina judaico-cristã por vezes se sustenta sobre o
argumento de grandeza antropológica, na qual ocupamos posição de destaque. Na cosmo-
visão africana, assim como na ameríndia, existe uma profunda comunhão e participação
com a natureza, “trata-se de uma dimensão relacional de homem/natureza na sua
individualidade e coletividade integrada” (DOMINGOS, 2011, p. 2) desconhecida pelo
nosso sistema econômico.
Para o teólogo Leonardo Boff, os principais elementos antiecológicos do judaico-
cristianismo são:

1) patriarcalismo: raiz cultural comum ao Antigo e Novo Testamento. O


valor do masculino se impõe em todos os planos com o conseguinte
reducionismo e agressão ao equilíbrio dos sexos;
2) monoteísmo: um princípio único criador e provedor universal contraposto
ao mundo. [...] Também no plano político, o monoteísmo propiciou
variadas formas de autoritarismo. Façamos o homem à nossa imagem,
conforme a nossa semelhança (Gn.1, 26). A crença de que o ser humano
prolonga o ato criador de Deus coloca os humanos em uma posição central
que é negada para o resto dos seres;
3) antropocentrismo: “Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-
a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus [...] (Gn.
1,28)... “E o temor de vós e o pavor de vós virão sobre todo o animal da
terra, [...] nas vossas mãos são entregues” (Gn. 9,2) [...];
4) ideologia tribal da eleição: comum a judeus, muçulmanos e cristãos. O
sentir-se eleito ou portador de uma mensagem única possibilita uma
atitude arrogante e de exclusão a respeito dos outros que não foram. Assim
pode se explicar em parte as guerras que essas três religiões levaram aos
que não estiveram dispostos a abraçar sua fé;
5) pecado original: pelo qual todo o universo cai às custas do demônio
introduzido no mundo pelo ser humano. O universo perde assim seu
caráter sagrado para passar a converter-se em matéria corrompida. [...]
“Maldita é a terra por causa de ti” (Gn. 3-17). “Darei fim a todos os seres
humanos, porque a terra encheu-se de violência por causa deles” (Gn. 6-
13) (apud. GIARDINA, 2015, p. 32-33)

Por último, adiciono uma crítica do filósofo tcheco Erazim Kohák que questiona
da parte dessas religiões a visão de um Deus intocável, incoercível como impactante no
contexto da conceitualização da natureza. Para ele, “a natureza parece-nos morta em
grande parte porque nos acostumamos a pensar em Deus como ‘sobrenatural’, ausente da
natureza e que não pode ser encontrado nela” (KOHÁK, 1986, p. 182).
28

1.3 Ocultação do ser


Na obra “Epistemologia Ambiental”, Enrique Leff (2010), assim como o
pensamento heideggeriano, reforça o papel da metafísica na produção dessas formas de
relação de domínio e controle sobre o mundo. Para o autor essa crise se dá também como
crise do pensamento ocidental que se estruturou na determinação metafísica a partir das
separações entre o ser-ente realizada por Platão e sujeito-objeto por Descartes. Esta, a
metafísica, “ao pensar o ser como ente, abriu o caminho para a racionalidade científica e
instrumental que produziu a modernidade como uma ordem coisificada e fragmentada”
(LEFF, 2010, p. 191). A natureza, ao ser objetificada pela metafísica, é privada de sua
interioridade e são renegadas as relações orgânicas que ela mantém em diversos níveis
cósmicos, negando consequentemente o seu sentido. À “objetificação” atribui-se aqui o
sentido defendido por Heidegger de ser o ato de transformar qualquer coisa em objeto
(DUBOIS, 2000, p. 192). Não se inclui na discussão o que já é tido como objeto, mas sim
quando um ente é transformado em objeto. “O mundo natural se transforma, assim, em
‘objetalidade pura’, o que na realidade significa paradoxalmente a mais radical
subjetificação da natureza e da sociedade, pois por detrás de seu caráter objetivo está a
ação humana” (OLIVEIRA, 2013, p. 134).
Para Heidegger, tal problema já teria se iniciado a partir do momento do
“esquecimento do ser”. A questão pelo “ser” “como pergunta temática de uma
investigação efetivamente real” (HEIDEGGER, 2012, p. 33) já vem de muito tempo
silenciada, sendo remetida a Aristóteles e Platão, que nortearam sua filosofia ao pensar,
respectivamente, a questão da ousia e do eidos, traduzidos como substância e aparência.
Ainda durante essa fase de ocultação, uma cronologia filosófica revela que o foco, por
sua vez, passa a ser durante a Idade Média o pensar sobre Deus, período no qual a Terra
se dessacraliza e se destaca do Cosmo. Ainda na modernidade, a temática passa pela
questão da consciência, Nietzsche torna central a pesquisa pela vontade, e Husserl retoma
a consciência, porém dessa vez a partir da intencionalidade. Ao acreditar que é justamente
na investigação do ser que a verdade se funda, Heidegger fundamenta aí sua ontologia e
inclusive defende que “toda ontologia aponta para o âmbito da questão fundamental:
como o ser se essencia? Qual a verdade do ser?” (HEIDEGGER, 2015, p. 201). Ao
realizar tal virada ontológica, o alemão busca justamente a desocultação do ser tendo
como base o momento no qual essa questão se fundamenta: na Grécia antiga. Não
discutirei aqui as implicações gerais da mudança proposta por Heidegger, mas sim no que
se aplica à discussão da natureza, a qual, inclusive, ele se questiona em “Contribuições à
29

filosofia: do acontecimento apropriador” (1989) o que ela era outrora, no período anterior
a Aristóteles. A esta questão afirma que a natureza era “[o] sítio do instante da chegada e
da estada dos deuses, quando ela, ainda φύσιζ, se baseava na essenciação do seer”
(HEIDEGGER, 2015, p. 272).
A “ocultação do ser” teve influências não apenas no que se refere à filosofia, mas,
consequentemente, se aplica ao que se refere às ciências e à relação com a natureza. Para
Heidegger, a ciência tornou a natureza um ente e a expôs “à imposição radical da
maquinação calculadora e economia” (HEIDEGGER, 2015, p. 272) que, por meio da
técnica, provoca a destruição crescente da natureza colocando-a em direção ao seu fim.

1.4 Crise nas ciências


A questão da origem da razão e da razão como destino histórico para as ciências
se tornam para Heidegger cada vez mais urgentes em sua obra, de acordo com o passar
dos anos. Em “Ser e Tempo” (1927) ele coloca a ontologia fundamental como
estabelecedora da primazia ontológica para determinar a questão do ser que acabaria
incorrendo por fim nas ciências positivas. Para isso, é necessário determinar o sentido do
“ser” para fornecer os meios fundantes das “ontologias regionais” que, assim, antecipam
ou liberam determinado setor do ente em sua constituição ontológica que, por sua vez,
orientam o trabalho das pesquisas ônticas das ciências positivas, cada qual em sua área de
investigação. Ou seja, a ontologia da física então, uma ciência da natureza, para
determinar o “ser natural” que é seu objeto de estudo, se ocupa de compreender antes de
tudo o que é a naturalidade. Da mesma forma, a partir dos eventos históricos, a ontologia
histórica se ocupa de compreender a historicidade. Cada ciência tem como dever entender
seus conceitos mais fundamentais para que seu objetivo seja atingido. Para isso precisam
da ajuda das ontologias regionais, que, por sua vez, permanecerão cegas caso não sejam
orientadas por uma ontologia fundamental, que se pergunta pelo “sentido do ser em
geral”. Devido ao esquecimento do ser provocado pela ciência, o § 3 dessa obra aponta
para uma crise de fundamentos das ciências, tanto na matemática, quanto na física, na
biologia, nas ciências humanas, e na teologia. No caso da física, é questionada a ainda
recente teoria da relatividade pela forma como tal teoria acessa e evidencia a natureza.
Com relação à biologia, o questionamento se dá pela forma como essa ciência se relaciona
com o ser vivente que tenderia a um mecanicismo. Em “Contribuições à Filosofia: do
Acontecimento Apropriador” (1989), considerado como uma continuação de “Ser e
30

Tempo” (1927), Heidegger aprofunda seu questionamento à ciência biológica da forma


como apresentada.

Pode haver ‘biologia’, enquanto faltar a ligação fundamental com o vivente,


enquanto o vivente não tiver se transformado na outra ressonância do ser-aí?
Mas, afinal, precisa haver ‘biologia’ lá onde ela só deriva o seu direito e a sua
necessidade do domínio da ciência no interior da maquinação moderna? Toda
biologia não destruirá necessariamente o ‘vivente’ e impedirá a relação
fundamental com ele? A ligação com o ‘vivente’ não precisa ser buscada
completamente fora da ‘ciência’? E em que espaço deve se manter essa
ligação? (HEIDEGGER, 2015, p. 271)

No § 8 de sua obra “Introdução à Filosofia” (1920), o filósofo se refere a essa crise


como sendo na verdade uma crise tripla da ciência, e enumera na sequência os três
aspectos. Primeiramente, explica a crise que se dá na relação do indivíduo com a ciência.
A esta, ele acrescenta que, devido a um período de paralisia da ciência acadêmica após a
primeira Guerra Mundial, popularizou-se a ideia da posição existenciária da ciência. A
implicação deste fato foi que se generalizou uma aversão à ciência e um clamor pela
revolução científica através da “busca de inovação e da crença fantástica de poder alterar
a ciência com o auxílio de certos programas” (HEIDEGGER, 2009a, p. 31). Heidegger
aponta então ser problemática a posição de uma essência existencial da ciência, pois, ao
compreender a essência da ciência manifestamente “no contexto do ser-aí humano como
tal e a partir de sua constituição fundamental” (HEIDEGGER, 2009a, p. 32), as demais
definições da ciência que não seguem nessa direção fracassam. A ciência não é uma
estrutura que permita relações pessoais, relações que deixem livre arbítrio ao indivíduo
para que a direcione de acordo com sua vontade.
A segunda crise citada é "a crise da ciência em vista de sua posição no todo do
ser-aí histórico-social" (HEIDEGGER, 2009a, p. 33). Aqui, ele cita como uma
problemática a popularização da ciência. Tal problema causa estranhamento num
primeiro momento, mas é possível entender que o motivo que Heidegger acusa é que essa
popularização provoca uma desvalorização interna da ciência. A popularização, por sua
vez, propaga uma essência de ciência mal compreendida em seus fundamentos e isso
ocorre porque "o essencial da ciência não reside no que é meramente transmissível, no
que pode ser passado de mão em mão, mas no que é sempre apropriado novamente"
(HEIDEGGER, 2009a, p. 35).
Por fim, a terceira crise é a "crise na estrutura interna da própria ciência"
(HEIDEGGER, 2009a, p. 37). Nesta, recorre-se ao popular bordão de indicá-la como uma
crise de fundamentos. Mesmo ciências milenares como a matemática que, por isso,
31

aparentava ser inabalável, passam por essa crise. Dessa forma, desponta a reflexão para
“compreender o que significam os fundamentos de uma ciência e em que medida a crise
dos fundamentos revela justamente os limites essenciais da ciência como tal.”
(HEIDEGGER, 2009a, p. 41). Heidegger acrescenta ainda em “Sobre o Humanismo”
(1947) que

[t]ambém os nomes, “lógica”, “ética”, “física”, só surgiram quando o


pensamento originário chegou ao fim. Em seus grandes tempos, os gregos
pensaram sem esses títulos. Nem mesmo de “filosofia” chamaram o
pensamento” (HEIDEGGER, 1967, p. 28)

Heidegger (2012) defende então a necessidade de uma “ontologia filosófica”


como orientadora das ciências de forma geral, uma ontologia que forneça os conceitos
fundamentais a serem investigados, pois, as ciências quando colocadas com um caráter
auto-fundante não são suficientes para responder às necessidades ônticas da ciência da
qual tratam. O que é necessário nesse ponto é “determinar o ser do ente, objeto da ciência,
em vista de determinar esse objeto, de colocar um fundamento em vista e para o fundado”
(DUBOIS, 2000, p. 184). Sendo assim, tais ciências necessitam de uma clarificação, de
uma consideração que leve em conta seu fundamento próprio, o que ocorre a partir de um
fundamento filosófico. A única forma de concebê-las se dá a partir de uma fenomenologia
do ente que a ciência conheça, e que conheça de certa forma o seu ser antes que este tenha
se tornado objeto de conhecimento científico. Por exemplo, para conceber o estudo da
história é necessária a determinação de seu ser, a historicidade. No caso da natureza,
fornecer uma ontologia dessa área de estudo é determinar a naturalidade da natureza, o
que não pressupõe a validação das ciências naturais, mas ao contrário, uma ontologia da
natureza permite compreender a natureza antes de compreender seu sentido. Dessa forma,
desenha-se então um projeto de fundação sendo ele anterior ao projeto de conhecimento,
um projeto então pré-teórico. A determinação do ser da natureza pré-teoricamente deve,
consequentemente, nos permitir compreender o sentido e o desenrolar das ciências
naturais. “Na tarefa de fundação é então incluída a tarefa da compreensão fenomenológica
do comportamento conhecedor próprio, o qual deve estar instalado em seu direito próprio
- e limitado” (DUBOIS, 2000, p.187). Para tencionar que natureza seja compreendida, é
necessário então cortar sua significação, ou mesmo a possibilidade de significação de
forma que o conhecimento seja compreendido a partir do ser-no-mundo, e não o contrário.
32

1.5 O desabrigar
O conhecimento, por ser uma forma de clarificação adquirida a partir do ser-no-
mundo, é considerado por Heidegger (2007, p. 380) na conferência “A Questão da
Técnica” como uma forma de desabrigar. “Desabrigar”, entende-se como perder ou sair
do abrigo, como um despertar de si próprio, daquilo que é ou simplesmente se transforma
em algo. Já com relação ao “conhecimento”, em sentido amplo, existem dois
correspondentes em grego que andavam em par no período da “essenciação do ser”, ou
seja, dos tempos mais antigos até Platão, que são a episteme (ἐπιστήμη) e a techné (τέχνη).
Em discussão realizada em algumas de suas obras, o sentido de aletheia (αλήθεια)
se envereda por um caminho similar. Em “Ser e Tempo” (1927) a palavra grega, que pode
ser traduzida como “verdade”, toma o sentido de “abertura” (HEIDEGGER, 2016, p. 291)
e se aprofunda em “clareira para o encobrir-se” (HEIDEGGER, 2015, p. 337) em
“Contribuições à Filosofia: do Acontecimento Apropriador” (1989). Neste último livro, a
verdade se assume como a forma primária na qual o ser se apresenta e a partir deste
assume uma dinâmica de se clarear e ocultar. Essa é a essência da verdade, essenciar o
verdadeiro do ser e assim se tornar “origem para o abrigo do verdadeiro no ente, por meio
do que esse ente se torna pela primeira vez presente” (HEIDEGGER, 2015, p. 339). É aí
que reside o sentido tanto de “clareira” quanto de “encobrimento”, pois a verdade permite
que o “ser” continuamente se “encubra” e “desencubra”, “clareie” e “anuvie”. Tais
palavras não assumem uma separação, como se fossem duas coisas separadas e
antônimas, “mas [são] a essenciação do uno, da própria verdade” (HEIDEGGER, 2015,
p. 340). “Verdade” fenomenologicamente não assume um sentido estático, mas se
essencia conforme o ser se encobre ou manifesta a partir do acontecimento apropriador.
Assumir simplesmente o sentido de “desvelamento” seria equivocado, pois esse
desvelamento necessita um “velar” para que se desvele, e assim sucessivamente.
Em seu livro “A Origem da Obra de Arte” (1950), Heidegger explora mais uma
forma a partir da qual a verdade se essencia, que é justamente a partir da arte. O filósofo
conclui que a essência da obra de arte se dá em “pôr-se-em-obra da verdade do ente”
(HEIDEGGER, 2010, p. 87). Podemos entender que a verdade se instaura a partir da obra
de arte. A obra de arte possibilita a abertura para que a verdade seja pensada. “A verdade
encaminha-se para a obra” (HEIDEGGER, 2010, p. 159). Esse encaminhamento ou
desvelamento da verdade a partir da obra de arte se dá a partir de um “produzir” (ποιησις)
que possui como sentido tanto a criação de uma obra, quanto a confecção de um utensílio.
A este produzir, Heidegger assume o sentido de “fazer vir a ser”, “fazer emergir no
33

aberto” (HEIDEGGER, 2010, p. 60). Por mais que seja de fácil assimilação esse duplo
sentido para o “produzir”, o filósofo assume a dificuldade de diferenciação para a essência
para os dois modos de produzir: criar obras e confeccionar utensílios. O “trabalho
manual” traduzido de Handwerk se apresenta como sendo o trabalho que não produz
obras, mas justamente representa o segundo sentido do “produzir”, sendo de fato o
trabalho mecânico, não artístico. Contudo, a criação de obras depende também do
resultado do trabalho a partir das mãos do artesão, o que implica que tenha o mesmo
comportamento “na atividade do oleiro e do escultor, do marceneiro e do pintor”
(HEIDEGGER, 2010, p. 149). De tal forma, ambas as atividades se misturam. Exaltando
o apreço dos gregos para as obras de arte, Heidegger (2010) afirma que estes usam uma
mesma palavra (τέχνίτης) para remeter a artesão (como trabalhador manual) e artista,
assim como usam também o mesmo nome (τέχνη) para “trabalho manual” e “arte”. Isso
se deve ao fato de ambas possuírem o mesmo sentido em se “pensar o produzir em toda
a sua amplitude” (HEIDEGGER, 2007, p. 379).
No ensaio “A Questão da técnica”, Heidegger (2007, p.379) ratifica o sentido do
produzir (ποιησις) para além da confecção manual e da manifestação do poético-artístico
e acrescenta que a φύσις é também um produzir (ποιησις) pois, ela proporciona a irrupção
do produzir a partir de si mesma, a sua auto-emergência. Devido a isso a “φύσις é
inclusive ποιησις no mais alto sentido” (HEIDEGGER, 2007, p. 379). Em contrapartida,
as outras formas de produzir emergem não de si mesmas, mas a partir de outros, no caso,
no artesão e no artista. Logo, são eles os agentes que originam esse produzir. Conforme
o alemão cita de Platão, “[t]odo ocasionar para algo que, a partir de uma não-presença
sempre transborda e se antecipa numa presença, é ποιησις, produzir” (Platão, (s.d.) apud.
HEIDEGGER, 2007, p. 379).
Após enunciadas as formas de “produzir” em sentido amplo, qual delas impacta
nosso meio ambiente pela ação humana? A φύσις por mais que tenha esse sentido,
conforme visto se refere a uma produção de si para si mesma por se apresentar a partir de
uma auto-insurgência. O surgimento de uma flor no florescer, dessa forma, não se trata
de uma produção humana. A produção de uma obra de arte, por mais que seja uma autoria
humana e cause impactos, limita seus impactos ao campo da percepção humana ao
manifestar um “mundo”. Porém, “mundo” na concepção de Heidegger (2010) é sempre
não-objetivo. “Mundo nunca é um objeto que fica diante de nós e pode ser visto”
(HEIDEGGER, 2010, p. 109). Nos preocupamos aqui então com o produzir a partir da
técnica.
34

A técnica é justamente o tema que inquieta Heidegger motivando-o a escrever o


ensaio questionando sobre sua essência. Mais especificamente seu questionamento em “A
Questão da Técnica” (1953) se lança não sobre a técnica conforme se entendia pelos
gregos, mas a técnica moderna que repousa na “moderna ciência exata da natureza”
(HEIDEGGER, 2007, p. 381), a qual, conforme discutido anteriormente, passa por uma
crise de fundamentos. O ensaio possui como pergunta norteadora a questão “de que
essência é a técnica moderna para que incorra no emprego da ciência exata na natureza?”
(HEIDEGGER, 2007, p. 381). O filósofo, antes de entrar na discussão sobre o que seria
a essência da técnica, busca delinear o que consiste de fato a essência para a partir daí
então abordar a questão da técnica de fato. Ao resgatar de forma originária, conforme
propõe por diversas vezes em sua filosofia, o que é a essência, ele explicita que esta não
se dá a partir de uma qualidade ou de um objeto que se manifesta pura e simplesmente.
De antemão, ele já assume que tal essência, a da técnica, não é técnica, da mesma forma
que a essência de uma árvore também não é uma árvore. O mesmo se aplica ao falarmos
sobre a essência humana, que não é nada humana. Neste caso, a essência humana é sua
relação histórica com o ser (DUBOIS, 2000).

1.6 Pensamento técnico


A forma de pensar estabelecida pela cultura ocidental moderna se coloca como
um empecilho para entender a essência da técnica diferente desta forma criticada por
Heidegger. Este pensamento técnico, chamado por ele de “pensamento calculador” ou
“pensamento que calcula (das rechnende Denken)” (HEIDEGGER, 1955, p. 13) é
objetivo e é a forma empregada principalmente pelos cientistas e economistas da era
tecnológica.
Conforme seu nome evidencia, serve para cálculos matemáticos, investigações e
planejamento para atingimento de metas (HEIDEGGER, 1966, p. 46). É um pensamento
superficial que visa basicamente resumir nosso mundo a números que se apliquem a
equações matemáticas e manipule situações para atender a demandas da técnica moderna,
como a produtividade de uma empresa, de um ser humano utilizado como mão-de-obra,
da natureza como matéria-prima. A natureza quando pensada de forma calculativa perde
sua essência e passa a representar meramente como algo para atender necessidades e
satisfações humanas, é a “capitalização da natureza” (LEFF, 2001, p. 11). Transformar os
processos cotidianos em um grande sistema calculador acaba implicando no caminho
único do ocultamento do ser. Heidegger em 1955, por ocasião das comemorações de 175
35

anos de nascimento do compositor Conradin Kreutzer, discursou em Messkirch sobre os


caminhos de pensamento e conclui que, devido ao seu caráter, o pensamento calculador
“não é um pensamento que medita (ein besinnliches Denken), não é um pensamento que
reflecte (nachdenkt) sobre o sentido que reina em tudo o que existe” (HEIDEGGER, 1955,
p. 13)17.
O caminho do pensar alternativo ao calculativo é o pensamento contemplativo ou
“pensamento que medita (ein besinnliches Denken)” (HEIDEGGER, 1955, p. 13). Já este
segundo caminho é o que permite a reflexão sobre o sentido do que existe a partir da
meditação. Pensar de forma contemplativa é observar nosso entorno, envolver-nos
intrinsecamente com ele, permitir a manifestação da práxis. Como forma de permitir o
desenvolvimento deste pensamento reflexivo, Heidegger recorre ao termo alemão
Gelassenheit que varia do radical -lassen cujo significado é deixar, abandonar.
“Heidegger toma Gelassenheit como a essência do pensamento futuro, não pertencente
ao reino do calcular e do querer” (HABITZREUTER, 2011, p. 4). O primeiro passo para
o Gelassenheit é renunciar voluntariamente “o querer” e permitir a observação das coisas
da forma como elas são. Essa é também a forma de mostrar que, apesar de manter o
pensamento elevado, os pés continuam no solo, tendo contato com a realidade, dando
conta de assuntos correntes, caso contrário não possuem serventia. O filósofo adverte,
porém, sobre o perigo do pensamento puramente reflexivo, para que não se perca esse
contato com a práxis e ocorra um distanciamento da realidade.

E, por fim, diz-se que a pura reflexão, a meditação persistente, é demasiado


“elevada” para o entendimento comum. Nesta desculpa a única coisa correcta
é que é verdade que um pensamento que medita surge tão pouco
espontaneamente quanto o pensamento que calcula. O pensamento que medita
exige, por vezes, um grande esforço. Requer um treino demorado. Carece de
cuidados ainda mais delicados do que qualquer outro verdadeiro ofício.
Contudo, tal como o lavrador, também tem de saber aguardar que a semente
desponte e amadureça (HEIDEGGER, 1955, p. 14)

Por outro lado, quando o pensamento calculativo se sobressai sobre o


contemplativo, o pensamento tende a, além de ocultar a originariedade do ser, tomar a
direção do desenvolvimento tecnológico degenerado e atendimento à falsa sensação de
satisfação da técnica.

17
O discurso de Heidegger de 30 de outubro de 1955 foi publicado juntamente com “Para a discussão da
serenidade: de uma conversa sobre o pensamento que teve lugar num caminho de campo” de 1945 em uma
obra denominada “Serenidade”, publicada em 1959, cuja edição em português da Editora Piaget não
apresenta data.
36

1.7 A técnica
Antes de retomar a discussão na qual Heidegger investiga a essência da técnica,
considero ser de apropriado primeiramente entender que técnica é essa da qual se fala,
que se nutre do pensamento calculador, e que se manifesta a partir da “produção”.
Conforme discutido anteriormente, a partir de sua similaridade de sentido com a
palavra episteme (ἐπιστήμη), originalmente a palavra technè (τέχνη) indica, antes de
qualquer coisa, um modo de saber. Por “saber”, o filósofo alemão atribui o significado de
“ter visto, no sentido amplo de ver, o qual significa: perceber o que se presentifica como
um tal” (HEIDEGGER, 2010, p. 151). A essência do saber, no pensamento grego, repousa
na aletheia (ἀλήθεια), ou seja, no desencobrimento do ente. A technè (τέχνη), por sua vez,
“pertence ao produzir, à ποιησις; é algo poético <Poietisches>” (HEIDEGGER, 2007, p.
380). Produzir, novamente, ao ser pensado da forma grega, não assume o caráter de
fabricar um artefato, operar uma máquina para manufaturar algo, mas sim o sentido de
pôr aqui, de trazer “para o manifesto aquilo que anteriormente não era dado como
presente” (HEIDEGGER, 1999, p. 22). Desta forma, technè encontra-se por sua vez
ligada ao âmbito do saber e não ao do fazer. Technè (Τέχνη) é então um produzir do ente.
“Produzir do ente” aqui com o sentido de trazer adiante um ente que se encontrava velado,
permitindo que ele possa aparecer e ser notado.
Conforme já havia sido visto anteriormente, a poiesis é uma forma de aletheia, ao
afirmar que a techné pertence à poiesis, podemos inferir diretamente que “τέχνη é um
modo da ἀλήθειν” (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Heidegger, contudo enfatiza que esse
raciocínio sobre a essência da técnica é válido quando se trata do pensamento grego para
a técnica manual, porém não se aplica para “a moderna técnica das máquinas de força”
(HEIDEGGER, 2007, p. 381). E que “moderna técnica” é essa da qual Heidegger fala?
A partir da conferência realizada em 18 de julho de 1962 em Combourg que se
intitulou de “Língua de tradição e língua técnica”, conclui-se que, primeiramente, esta
pode significar “o conjunto das máquinas e dos aparelhos que se apresentam”
(HEIDEGGER, 1999, p. 15), sendo estes dados como “simplesmente a mão”
(Zuhandenheit); pode ser também a produção de tais objetos e; por mais que o filósofo
explicite que não é o sentido ao qual ele se refere, poderia ser ainda “a co-pertença num
conjunto de produtos e de homens ou grupos humanos que trabalham na instalação, na
manutenção e na vigilância das máquinas e dos aparelhos” (HEIDEGGER, 1999, p. 15).
Heidegger (1999) nessa conferência enumera 5 teses que caracterizam a técnica
moderna, sendo as seguintes:
37

1. A técnica moderna é um meio inventado e produzido pelos homens, isto é,


um instrumento de realização de fins industriais, no sentido mais lato,
propostos pelo homem.
2. A técnica moderna é, enquanto instrumento em questão, a aplicação prática
da ciência moderna da natureza.
3. A técnica industrial fundada sobre a ciência moderna é um domínio
particular no interior da civilização moderna.
4. A técnica moderna é a continuação progressiva, gradualmente aperfeiçoada
da velha técnica artesanal segundo as possibilidades fornecidas pela civilização
moderna.
5. A técnica moderna exige, enquanto instrumento humano assim definido, ser
igualmente colocada sob o controlo do homem - e que o homem se assegure
do domínio sobre ela assim como da sua própria fabricação. (HEIDEGGER,
1999, p. 15-6)

De acordo com essas afirmações, algumas diferenças entre a técnica e a técnica


moderna se evidenciam. A esta última é correto afirmar que ela seja “um meio para fins”
(HEIDEGGER, 2007, p. 376), fins que, conforme visto acima possuem caráter industrial,
de acordo com a necessidade humana. Porém, quando se fala da técnica, isso depende da
forma de lidar com ela enquanto meio. Para Heidegger, “[o] querer-dominar se torna tão
mais iminente quanto mais a técnica ameaça escapar do domínio dos homens”
(HEIDEGGER, 2007, p. 376). Já a técnica moderna já é em si um “dominar” e serve para
atender o fim de suprir à “vontade”. Reside aí então a principal diferença na qual a técnica
moderna se destaca que se pode concluir a partir das cinco afirmações enunciadas na
conferência: a técnica moderna, que se fundamenta na ciência moderna da natureza, busca
atender aos anseios da civilização moderna controlando a natureza, que até então emergia
de sua forma própria.
Ela também se caracteriza como um desabrigar, mas um desabrigar diferente do
sentido da poiesis (ποιησις). Este “é um desabrigar como desafiar (Herausfordern) que
estabelece, para a natureza, a exigência de fornecer energia suscetível de ser extraída e
armazenada enquanto tal” (HEIDEGGER, 2007, p. 381). Diferentemente do exemplo
citado neste ensaio sobre o moinho de vento, o qual utiliza a energia que a corrente de ar
dispõe para mover suas hélices, podemos imaginar em contrapartida uma usina de energia
eólica. Apesar de aplicar o mesmo princípio de utilização da energia a partir da
movimentação de massas de ar, a técnica moderna se apropria aqui destas massas de ar
de forma que ela seja transformada, a partir de conjuntos moto-geradores, em energia
elétrica podendo assim ser dominada e armazenada. A partir de então, o vento desabriga-
se como uma fonte de geração energética, bastante utilizada na Europa e na região
Nordeste do Brasil, e não mais como aquele soprar com o qual as hélices de moinho de
38

vento são familiarizadas ou como as correntes de vento alísios e contra-alísios que


possibilitam a manifestação de uma riquíssima biodiversidade na região amazônica.
A técnica moderna se particulariza por “pôr” (Stellen) a natureza, ficando ela ao
seu dispor. Esse “pôr”, Heidegger explica que é no sentido do desafio e, conforme
acrescenta, “[o] pôr que desafia as energias naturais é um extrair (Födern) em duplo
sentido” (HEIDEGGER, 2007, p. 382). Primeiramente extração se evidencia como
exploração, em seguida se apresenta como a disposição de “exigir outra coisa, (...) impelir
adiante para o máximo de proveito” (HEIDEGGER, 2007, p. 382). Da mesma forma que
as turbinas eólicas colocam (no sentido de stellt) o vento em função da geração de energia
elétrica, o filósofo cita o exemplo da central hidroelétrica que se encontra no rio Reno.
Considerando a partir desse contexto, o rio Reno, a contar da construção da central
hidrelétrica nele instalada, passa a ser meramente um recurso hídrico encomendado para
girar as turbinas e gerar eletricidade.

A central hidroelétrica não está construída no rio Reno como a antiga ponte de
madeira, que há séculos une uma margem à outra. Pelo contrário, é o rio que
está construído na central elétrica. Ele é o que ele agora é como rio; a saber, a
partir da essência da central elétrica, o rio que tem a pressão da água
(HEIDEGGER, 2007, p. 382)

Apesar de ambas as narrativas tratarem do rio Reno, existe uma grande diferença
entre este Reno instalado na sala de máquinas da central hidrelétrica e o Reno que o poeta
favorito de Heidegger, Hölderlin, representa em sua poesia. Poderíamos questionar que,
ainda assim, o rio Reno mantém seu caráter de ser apreciado como “rio da paisagem”
(FOLTZ, 1995, p. 174). Porém, ele se manifesta aqui como um mero objeto “que uma
indústria de turismo encomendou (bestellt)” (HEIDEGGER, 2007, p. 382) para grupos de
turismo poderem visitar. Podemos observar que é com esse mesmo caráter que as leis
ambientais brasileiras inclusive põem (ainda no sentido de stellt) a natureza. A Resolução
Conama 35718 é o instrumento responsável por definir os critérios de classificação e
enquadramento dos corpos hídricos, os quais terão como fator determinante as condições
de poluição da água ali disposta. A classificação desses corpos hídricos nada mais é que
a definição de qual a forma na qual o rio será encomendado. Pela lei, eles podem ser
enquadrados desde classe especial, que é o mais limpo e pode ser usado para consumo
humano com pouca necessidade de tecnologia para tratamento (encomendado para o
abastecimento doméstico?), até a classe 4, rios mais comprometidos mas que ainda podem

18
Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente-CONAMA nº 357, de 17 de Março de 2005.
39

ser encomendados como meio de navegação e “harmonia paisagística” (CONAMA 357,


2005).
Procurando no Brasil um rio que poderia ser devoção de tanta atenção e poesia
como o rio Reno é para Hölderlin, temos o rio São Francisco. Esse rio também possui
significados os mais variados possíveis, principalmente para sua população ribeirinha, os
quais serão discutidos no capítulo 3, mas cito aqui mais uma forma pela qual a técnica
moderna “coloca” o rio. Apesar de nele também estarem instaladas diversas usinas
hidrelétricas e ser um rio colocado também para a demanda dos agricultores, a técnica
moderna permitiu que o domínio e o controle da natureza, nesse caso, fosse uma aliada
para os que habitam em situações ambientais mais desfavorecidas.

1.8 Subsistência
A obra de transposição do rio São Francisco, que se encontra próxima de sua
conclusão, mais uma vez coloca a natureza para o atendimento humano. Porém, “coloca”
permitindo que populações de regiões que sofrem periodicamente com seca em regiões
áridas do Nordeste tenham acesso à água, favorecendo o cultivo de vegetais para a
produção de comida, realização de atividades de higiene básica e dessedentação.
A exploração do rio São Francisco, seja para a produção de energia a partir das
diversas centrais hidrelétricas instaladas ao longo de sua extensão, seja para a irrigação
das culturas pelas quais ele atravessa, seja ainda para a subsistência das famílias que serão
beneficiadas pelas obras de transposição, são formas de desabrigar pertencentes à técnica
moderna. Conforme enumera Heidegger (2007, p. 382), são modos de desabrigar:
“[e]xplorar, transformar, armazenar e distribuir”. Este “desafiar” com o caráter de “pôr
no sentido do desafio” tem a particularidade de não desabrigar de forma indeterminada,
mas trazendo “para si mesmo os seus próprios e múltiplos caminhos engrenados, porque
os dirige”. O “desabrigar desafiante” consegue impor, então, a direção na qual a natureza
será desabrigada. Ao ser desabrigada dessa forma, ela é invocada através de uma “posição
de subsistência (Bestand)” (HEIDEGGER, 2007, p. 383). De uma forma geral, quando
algo se dispõe como subsistência, ele se oculta segundo o que é e não se coloca mais
diante de nós como um objeto, mas fica cedido como reserva. Ele deixa de ser subsistência
para voltar a se essencializar como um objeto a partir do momento em que sua estrutura
é solicitada, quando “desafia”. A demanda de carvão e minérios desafia dessa forma o
solo. “A riqueza da terra desabriga-se agora como reserva mineral de carvão, o solo como
espaço de depósitos minerais” (HEIDEGGER, 2007, p. 381). Este “desabrigar” da terra
40

em muito se difere do que é realizado pelo camponês que, ao preparar o solo, está
cuidando e guardando. Conforme conclui Heidegger, “[o] fazer do camponês não desafia
o solo do campo. Ao semear a semente, ele entrega a semeadura às forças do crescimento
e protege seu desenvolvimento” (HEIDEGGER, 2007, p. 381). Por mais que o camponês
também desabrigue a terra, não a desabriga no sentido da técnica moderna.
Observando-se a partir de uma escala maior, a região amazônica tem sido colocada
a partir da posição subsistência por atividades que têm forte impacto como a mineração e
a pecuária. Um projeto de lei, o qual cumpre uma das promessas de campanha do atual
presidente, está em vias de ser enviado para votação no Congresso Nacional brasileiro e
este permite que terras indígenas sejam exploradas economicamente de forma ampla.
Segundo notícia do jornal O Globo (Ventura, 2020), estas atividades não se restringem à
mineração, mas também possibilita a construção de mais hidrelétricas, exploração de
petróleo e gás, pecuária, extrativismo entre outros. Prevalece aqui fortemente a posição
de uma Amazônia como reserva (Bestand) em sua forma mais radical em contraposição
a um desabrigar no sentido de “cuidar e guardar” conforme realizado pelos povos
originários que ainda hoje mantém seu tradicional estilo de vida em terras onde já habitam
há séculos.

1.9 Enquadramento
Heidegger não tem por pretensão em seu texto criticar a técnica, inclusive afirma
em sua entrevista a Richard Wisser em 1969 que nunca falou contra a tecnologia nem
teria a demonizado. O filósofo tcheco Erazim Kohák expressa a mesma ideia de
neutralidade com relação à técnica ao afirmar estar ciente de que a techné também pode
ser autenticamente um modo humano de ser-no-mundo, capaz de possibilitar os humanos
livres para serem parentes da natureza, não seus escravos ou mestres (KOHÁK, 1986, p.
x)19. Contudo, ainda assim seria possível inferir crítica de sua parte à situação exposta
sobre a Amazônia pelo que foi visto até agora do texto “A Questão da Técnica” (1953).
A técnica, ao ser pensada como um modo de ser-no-mundo, define o comportamento dos
seres humanos com relação ao seu pensar e à forma de explorar e desafiar a natureza. O
comportamento que invoca o ser humano a desafiar para desocultar algo da forma como
subsistência Heidegger chama de enquadramento (Ge-stell) (HEIDEGGER, 2007, p.
384). Ao enquadramento, o filósofo atribui “o modo de desabrigar que impera na essência

19
Tradução livre do original: “I am aware that technê, too, can be an authentically human mode of being in
the world, capable of setting humans free to be nature's kin, not her slaves or master”.
41

da técnica moderna e [que] não é propriamente nada de técnico” (HEIDEGGER, 2007, p.


385). Esse “enquadramento”, que em algumas traduções também aparece como
“armação”20, dá o modo de desencobrimento a partir do qual a técnica moderna põe (stell)
o “real enquanto subsistência” (HEIDEGGER, 2007, p. 385-6). O comportamento onde
primeiro isso se mostra, para Heidegger é “no surgimento da moderna e exata ciência da
natureza” (HEIDEGGER, 2007, p. 386), que coloca a natureza objetivada e sintetizada a
cálculos matemáticos. Conforme cita a frase de Kant em “Língua de tradição e língua
técnica” (1999), “[a] natureza é obrigada a manifestar-se numa objectividade calculável”
(HEIDEGGER, 1999, p. 25). A ciência moderna questiona então a natureza definindo
como esta deve ser projetada para que, de forma objetiva, “os processos naturais sejam
calculados a priori” (HEIDEGGER, 1999, p. 25). Parece estranha a colocação de que a
ciência moderna esteja em função da técnica moderna, visto que a primeira já existia 200
anos antes da outra. Contudo, o alemão afirma que, a partir de uma “intimação
provocante”, a técnica moderna se apoiou na ciência exata da natureza para conseguir se
desenvolver. Em conformidade, explica que “não seria a ciência da natureza a base da
técnica, mas a técnica moderna seria a estrutura fundamental de sustentação da ciência
moderna da natureza.” (HEIDEGGER, 1999, p. 26). A partir disso, ele reconhece que
essa ciência seja precisamente a preparação da essência da técnica moderna. Existe aqui
mais uma problemática, além da importância do questionamento sobre a essência da
técnica, conforme discutido no início desse capítulo, é também imperioso refletir sobre a
essência da ciência moderna que a fundamenta.

Porque a essência da técnica moderna reside [no enquadramento], esta


necessita empregar a ciência exata da natureza. Desse modo, nasce a aparência
enganadora de que a técnica moderna é uma ciência da natureza aplicada. Esta
aparência se sustentará até que a proveniência essencial da ciência moderna e
a essência da técnica moderna sejam adequadamente questionadas.
(HEIDEGGER, 2015, p. 387)

Em “Contribuições à Filosofia: do Acontecimento Apropriador” (1989)


Heidegger questiona mais uma vez o fundamento das ciências. No trecho a seguir, como
já citado na página 27, discute-se em específico o caráter da biologia como ciência
moderna em função da técnica moderna

Pode haver ‘biologia’, enquanto faltar a ligação fundamental com o vivente,


enquanto o vivente não tiver se transformado na outra ressonância do ser-aí?
Mas, afinal, precisa haver ‘biologia’ lá onde ela só deriva o seu direito e a sua
necessidade do domínio da ciência no interior da maquinação moderna? Toda

20
Optei pela tradução de Gestell como “enquadramento” por entender que esta forma é mais facilmente
compreensível e visualizável em português.
42

biologia não destruirá necessariamente o ‘vivente’ e impedirá a relação


fundamental com ele? (HEIDEGGER, 2015, p. 271)

Com base do que foi exposto em “A questão da técnica” (1953), Heidegger então
infere que a essência da técnica moderna é o que ele chama de enquadramento. Esse
enquadramento, conforme havia sido dito, não é nada de técnico. O enquadramento é a
forma pela qual o ser humano põe a realidade e a desabriga como desafio. O ser humano,
enquanto desabriga a natureza a requerendo como subsistência, ou como um fundo de
reserva, se situa no âmbito do enquadramento. “Enquanto desafiar no requerer, [o
enquadramento] envia num modo de desabrigar” (HEIDEGGER, 2007, p. 388). O
enquadramento, como essência da técnica moderna pertence ao desabrigar. Desta forma,
ele afirma que então esta essência não é ôntica, mas sim ontológica.
Diante desse cenário, surge então mais um problema, o qual o filósofo virá a
chamar de “perigo”. Esse perigo consiste justamente no fato de nós, ao estarmos no
âmbito do enquadramento, o qual possui como destino o desabrigar, fiquemos presos a
esse único caminho de desabrigar. Dessa forma ficaríamos restritos a esse único destino,
negando outra possibilidade: a de descobrirmos a essência do que se discute, nos
entregarmos a essa essência e experimentarmos esse outro desabrigar como essência. Para
o filósofo, é esse então o “perigo do desabrigar”.

Ao mesmo tempo, o descobrimento, segundo o qual a natureza se apresenta


como um contexto efetivo e calculável de forças, pode, certamente, permitir
asseverações corretas, mas justamente por meio deste resultado pode
permanecer o perigo de em todo o correto se retrair o verdadeiro
(HEIDEGGER, 2007, p. 389)

O desabrigar já é em si um perigo, e um perigo ainda maior quando esse se dá no


modo do enquadramento. É por esse caminho que o ser humano, ao perder o interesse
pelo objeto após a descoberta, requerê-lo como subsistência. É dessa mesma forma que o
ser humano se coloca na posição de dominador da natureza. “Desse modo, amplia-se a
ilusão de que tudo o que vem ao encontro subsiste somente na medida em que é algo feito
pelo homem” (HEIDEGGER, 2007, p. 390). Para Heidegger, isso traz a falsa impressão
de nos encontrarmos cada vez mais a nós mesmos em todos os lugares, contudo, o fato é
que não conseguimos mais encontrar nossa essência. O desabrigar se evidencia então com
um duplo sentido da técnica moderna. Diferentemente do desabrigar da poiesis (ποιησις),
que é um desabrigar mais autêntico no qual “deixa surgir-à-frente no aparecer aquilo que
se apresenta” (HEIDEGGER, 2015, p. 390), o desabrigar do enquadramento aponta para
o requerer, ocultando a verdade originária. É um desabrigar que cobra a subsistência. No
43

primeiro caso o humano deixa aparecer, viger a coisa naquilo que ela é, deixar assentada
nela mesma. No segundo caso o ser humano a tudo domina, se antecipa na forma da
dominação do aparecer de algo. Só é o que ele pode dominar pela técnica que “cobra
subsistência”.
No âmbito do enquadramento o próprio homem pode ser desabrigado por outro
como subsistência. É do jargão do meio corporativo expressões como “capital humano”.
Não seria justamente esse um exemplo prático de como nos reduzimos ao papel de
subsistência?

A máquina, sua essência. O serviço que ela exige, o desenraizamento que ela
traz. ‘Indústria’ (funcionamento); os trabalhadores de indústria, arrancados da
terra natal e da história, transpostos para o ganho.
Educação de máquinas; a maquinação e o negócio. Que transformação do
homem se insere aqui? (Mundo - terra?) Maquinação e negócio. O grande
número, o gigantesco, pura extensão, nivelamento e esvaziamento crescentes.
A decadência necessária no kitcsh e no inautêntico. (HEIDEGGER, 2015, p.
382)

Ao mesmo tempo que nos aproximamos da essência da técnica nos encontramos


afastados dela. Isso ocorre justamente por ela desvelar um modo de verdade, um modo de
aletheia, a partir de seu produzir, mas ainda assim é um desabrigar que conduz ao perigo.
Um modo de essenciação do ser que o filósofo nomeia como “maquinação” é justamente
uma inessenciação do ser (HEIDEGGER, 2015, p. 125). A maquinação é causada pela
técnica, a qual, neste livro, o filósofo aponta ser “o caminho histórico para o fim, para a
recaída do último homem no animal tecnizado que perde, com isso, até mesmo a animali-
dade originária do animal introduzido, ou será que ela pode, assumida de antemão como
abrigo, ser inserida na fundação do ser-aí? [itálico no original]” (HEIDEGGER, 2015,
p. 270)
Ainda que pensássemos a técnica através de um viés humanista não seria possível
pensar a técnica como um destino do ser, pois, assim como Heidegger enuncia em “Sobre
o Humanismo” (1979), “A técnica é, em sua essência, um destino ontológico-historial da
verdade do ser, que reside no esquecimento. [...] Enquanto uma forma da verdade, a
técnica se funda na história da Metafísica.” (HEIDEGGER, 1979, p. 163)
A essência da técnica proporciona ao ser humano achar o que não encontraria, ou
mesmo não existe, a partir de si mesmo. Isso passa a falsa impressão de que somos os
donos da técnica (VANIN, 2015, p. 113), contudo, ela apenas permite que participemos
do desabrigar. “Enquanto representarmos a técnica como um instrumento,
permaneceremos presos à vontade de dominá-la” (HEIDEGGER, 2015, p. 394). É
44

indispensável uma profunda reflexão a partir da história do ser para o desenvolvimento


de uma resoluta compreensão, tanto de nós mesmos, quanto da ciência e da natureza.
Conforme diz Heidegger, “[e]sta é uma fase privilegiada da história do ser e a única da
qual, até agora, podemos ter uma visão de conjunto” (HEIDEGGER, 1979, p. 163).
45

2. NATUREZAS LATINO-AMERICANAS

Neste capítulo proponho uma discussão acerca do ser e da natureza para uma
melhor compreensão de ambos. Parto nesse capítulo da discussão de um ser-no-mundo
em particular. Este ser-no-mundo é um ser-na-América-Latina, o qual primeiramente terá
como tópico o seu caráter existencial como questão. Em seguida, incluo uma reflexão
sobre a natureza. Esse tema se mostra amplamente rico ao se levar em consideração a
multiplicidade de compreensões que podem se desdobrar considerando que a região foi
povoada por diversos povos que ali coabitaram e se misturaram, constituindo o latino-
americano moderno. A cultura latino-americana se fundamenta a partir de diversas outras
culturas, assim como continua se desenvolvendo e aglutinando mais outras diversas
contribuições se desenvolvendo sobre si mesma também internamente. Como o tronco de
uma árvore, diversos enraizamentos sustentam sua base e permitem seu vigoroso
crescimento. Da mesma forma, ao se falar da análise existencial do latino-americano,
considero essa como um “combinado de ontologiaS”, de acordo com o que argumenta o
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2005):

Ontologias, por favor, no plural deliberadamente provocativo. Você pode falar


de epistemologias no plural, como se falar de culturas no plural, mas
‘ontologia’ é como ‘natureza’, só tem uma: é a Realidade, com ‘r’ maiúsculo,
e essa não tem plural. Não há ontologias, só há uma realidade, e o discurso
ontológico é o discurso do Um. Ora, eu quero saber como funcionaria o
conceito de ontologia dos "multiversos" sem Um das cosmologias indígenas.

Por esse motivo considero as compreensões originárias de natureza das principais


culturas que historicamente compuseram essa multiculturalidade. É necessário considerar
a ressalva de Heidegger (2012a) de que estas culturas mencionadas devem ser “niveladas
em seu caráter ontológico em função das demais (como plantas)” (HEIDEGGER, 2012a,
p. 44). Cada uma delas deve ser presentificada para que nenhuma se sobreponha uma à
outra. Por outro lado, não podemos ignorar que academicamente as atenções se voltam de
forma hegemônica para a primeira dessas concepções o que pode fazer com que as outras
ainda sejam vistas com certo estranhamento.

2.1 O ser-no-mundo-na-América-Latina
As religiões judaico-cristãs, dentre as quais merece destaque a religião católica,
tiveram obviamente grande influência na construção da moral da civilização latino-
americana por serem a religião do colonizador europeu. A colonização do continente teve
o acompanhamento de perto dos religiosos que estiveram presentes abençoando tanto os
46

aventureiros exploradores das primeiras naus que chegaram, quanto os bandeirantes que
participaram da expansão do domínio dos territórios. Já em 1493, o rei da Espanha,
Fernando de Aragão, teve o domínio sobre as ilhas concedido através de uma bula papal
do papa Alexandre VI. Conforme afirma Dussel (1993) na seção de seu livro dedicada à
discussão da “conquista espiritual”, “[a] práxis conquistadora estava fundamentada num
desígnio divino” (1993, p. 59).
Contudo, além do catolicismo como contribuição religiosa trazida pelos ibéricos
para a construção da complexa matriz religiosa latino-americana, africanos e indígenas
que conseguiram conservar suas crenças também influenciaram essa formação. Apesar de
que os indígenas que tiveram contato com os europeus nos primeiros séculos de
colonização se viram obrigados a renunciar sua religião e se catequizar por uma política
de dominação representada pela expressão “entre a cruz e a espada”, os que se inseriram
posteriormente nos meios multi-étnicos por vezes conseguiram manter seus princípios
religiosos. Já dentre os africanos, que foram trazidos escravizados, se destaca o culto aos
orixás da religião do candomblé e a umbanda que, por mecanismo de resistência, agrega
figuras do catolicismo. Por vezes as manifestações religiosas nessa região se dão através
de sincretismos religiosos que combinam divindades dos diversos povos que se
incorporam nessa cultura.
Certamente diversas diferenças podem ser apontadas entre uma população
sertaneja que habita a caatinga do nordeste brasileiro, os mapuches que mantém suas
tradições no centro-sul chileno, os gaúchos que habitam o norte argentino, os paulistanos
que movimentam a cidade mais populosa da América do Sul, os quechuas da região
andina e diversas outras… Assumo aqui que é um erro adotar a América Latina como um
modo único de vida e tendo apenas uma cultura. Não busco em algum momento
negligenciar a enorme variedade de culturas que estão enraízadas nesta região e
desabrocham cada qual à sua maneira. Contudo, para dar início à discussão sobre a relação
com a natureza, partirei do pressuposto de um ente latino-americano que acumula toda
essa mescla de manifestações culturais que caracterizam esse mundo pluralista chamado
pelo escritor mexicano Carlos Fuentes (2007, p. 53) de “América indígeno-afro-ibérica”.
Assim, me fundamento em Heidegger (2016, p. 87) que afirma que “[p]or mais provisória
que seja, a análise exige que se assegure um ponto de partida conveniente”. Com relação
a esse ponto de partida, posto que tenha servido para inaugurar a discussão, é importante
ter a consciência de que ele não é um ponto estático que será mantido ao longo do
percurso. Mas pelo contrário, assim que possível ele deve ser revisto. Não considero, que
47

seja preciso jogar fora a escada uma vez que esta já tenha sido utilizada para subir,
conforme afirma o filósofo Ludwig Wittgenstein (1968, p. 129), mas sim que esta escada,
ou ainda o “ponto de partida”, deve ser questionado ao longo de todo o processo e sempre
que possível.
Enquanto condição existencial, o latino-americano é marcado por essa pluralidade
étnica que vem desde a sua base formando essa figura contemporânea. Tomando a figura
do indivíduo latino-americano como ponto de partida para o desenvolvimento filosófico
da questão, busco na analítica existencial de Heidegger os alicerces para este debate.
Conforme o filósofo afirma,

[...] a analítica existencial [do dasein] mobiliza igualmente uma tarefa, cuja
urgência não é menor que a da própria questão do ser, a saber, a liberação do a
priori [itálico no original], que se deve fazer visível, a fim de possibilitar a
discussão filosófica da questão ‘o que é o homem’ (HEIDEGGER, 2016, p. 89)

Com o cuidado de não partir da falsa premissa de que o único modo de ser do
latino-americano possível é o que se encontra fora de influências externas advindas da
colonização, como se fosse um indivíduo isolado que não tivesse interagido com povos
vindos de outras regiões, parto aqui para algum terreno onde mais possibilidades brotem.
Assumir tal premissa incorreria no erro histórico de negar o próprio latino-americano
contemporâneo, que é alguém que se construiu a partir de diversas misturas culturais.
Outro erro elementar ao qual seria levado partindo dessa escolha é o de que negaria a
própria existência de povos originários que de alguma forma tenham se adequado ao
modo de vida do cidadão urbano. Seria o mesmo que dizer que indígenas que utilizam
celular, tem carro, ou utilizam roupas de acordo com os moldes ocidentais não poderiam
ser reconhecidos como indígenas.
Outro cuidado a ser tomado, tratando-se de uma multiculturalidade, é o de manter
todas as culturas em um mesmo nível ontológico, sem conceder primazia a nenhum dasein
passado sobre os demais modos de ser, conforme adverte Heidegger em suas preleções
do semestre de verão de 1923, pulicados pelo nome de “Ontologia” (1923). Poderia, para
desenvolver essa discussão, buscar respostas precisamente na ciência que se ocupa de
estudar o ser humano, a antropologia. Porém, baseado em uma crítica heideggeriana
realizada durante a conferência “A época da imagem do mundo” (1938), Heidegger
identifica limitações filosóficas para essa ciência:

Antropologia é aquela interpretação do homem que no fundo já sabe o que o


homem é e, por isso, nunca pode perguntar quem é ele. É que com esta questão
ela teria de se confessar a si mesma abalada e superada, [...] não tendo como
particularidade uma outra significação a não ser efetuar uma segurança
48

suplementar para a autoconsciência do sujeito. (Heidegger, 1979, p. 98 apud.


Kirchner, 2016)

O terreno que melhor possibilita a discussão desse ente, o latino-americano, é a


analítica existencial do dasein, à qual Heidegger se dedica nos § 9, 10 e 11 de “Ser e
Tempo”. Nesta seção do livro, identifica-se a abertura para a possibilidade de uma
“antropologia filosófica”, contudo, uma antropologia ontologicamente fundamentada
(HEIDEGGER, 2016, p. 54). A distinção entre uma antropologia filosófica não-
existencial, a qual Heidegger critica, e uma antropologia existencialmente fundada se dá
no fato de esta segunda implicar “o reconhecimento de que o seu "objeto" de estudo não
é nenhum objeto, mas é o ente que é no modo de ser da existência (Existenz), para o qual
é ontologicamente inconveniente a sua determinação como coisa meramente presente”
(DUARTE, 2004, p. 49). Neste capítulo, o filósofo sobrepõe a analítica existencial frente
a outras ciências que seriam aqui aplicáveis, como a psicologia, a antropologia e a
biologia. Para Heidegger, nenhuma dessas consegue abordar o tema de forma tão precisa,
atingindo tal grau de penetração e profundidade.
Nego aqui que o latino-americano tenha um único modo de ser e que este modo
de ser seja “simplesmente dado” (Vornhandenheit), da mesma forma que discorri
anteriormente no que se refere a adotar esse modo de ser para a natureza. Logo, me
fundamento aqui na afirmação de que “[o dasein] é sempre possibilidade” (HEIDEGGER,
2016, p. 86). Assim, deixamos o campo aberto não para um modo de ser, mas sim para
todas as suas possibilidades de manifestações.
Para uma analítica do dasein, Heidegger afirma que o primeiro passo a se dar é
interrogar o ente que possui o caráter do dasein. Por sua vez, delimita que ente é esse:
“[o] ente que temos a tarefa de analisar somos nós mesmos” (HEIDEGGER, 2016, p. 85).
Este ente se relaciona com o seu ser diretamente sendo, e quem assume este ser é o dasein.
Por conseguinte, quem designa o dasein é então a existência. Para Heidegger, “[a]
‘essência’ [do dasein] está em sua existência” (HEIDEGGER, 2016, p.85). A partir desta
afirmação, a qual o filósofo inclusive escreve em destaque em “Ser e Tempo” (1927), ele
busca não deixar dúvidas de que, mais importante que propriedades e características
simplesmente dadas de um ente, o que o designa é essencialmente sua existência. Dois
modos de ser são então apresentados: o da propriedade e o da impropriedade. O segundo
modo é o que aqui mais interessa. Para Heidegger, a impropriedade não significa um grau
“inferior” de ser, mas sim que “a impropriedade pode determinar toda a concreção [do
dasein] em suas ocupações, estímulos, interesses e prazeres” (HEIDEGGER, 2016, p. 86).
49

Já que falamos aqui do latino-americano, absorto em toda a multiculturalidade que o


constitui, é a partir da impropriedade que conseguimos chegar mais perto do seu modo de
ser que abrange tantos elementos que se manifestam em menor ou maior grau.
Afirmando então ontologicamente o latino-americano como resultado da
influência dos fatores históricos e culturais que constituíram a sua existência, ratifico o
que foi anteriormente dito a partir da premissa de que, para Heidegger (2016, p. 86), “[o
dasein] não tem, nem nunca pode ter o modo de ser dos entes simplesmente dados dentro
do mundo”.
Apesar de tomar a analítica do dasein como mais profunda frente a outras ciências,
após fazer sua delimitação positiva Heidegger se preocupa em delimitá-la negativamente.
A afirmação continua verdadeira de uma perspectiva ontológica. Entretanto,
epistemologicamente não se pode fazer esta colocação com a mesma conveniência devido
à estrutura de ciência dessas disciplinas.
A partir do § 11 de “Ser e Tempo” (1927), Heidegger apresenta então um modo
de ser que se revela como de grande importância para nossa discussão, o da cotidianidade,
que segundo ele não deve ser identificado como primitividade. “Cotidianidade é, antes,
um modo de ser da [dasein], justamente e sobretudo quando [o dasein] se move numa
cultura altamente desenvolvida e diferenciada” (HEIDEGGER, 2016, p. 95) enquanto que
a primitividade evidencia fenômenos de povos primitivos que são menos complexos,
remetendo a um sentido pré-fenomenológico. Para o estudo dos povos primitivos, o
filósofo cita a etnologia como sendo a ciência que possui nesta temática interesse. Esta
disciplina parte de concepções prévias e “já pressupõe em si mesma uma analítica
suficiente [do dasein] que lhe serve de guia nas pesquisas” (HEIDEGGER, 2016, p. 96).
Contudo, ao pensar no cidadão contemporâneo, não me ocupo aqui dos povos primitivos
estudados pela etnologia, exceto como ponto de partida para algumas breves discussões.
Por fim, a complexidade da temática da análise existencial do dasein em um caso
de multiculturalidade como o do latino-americano se evidencia segundo o trecho que se
assemelha ao nosso caso:

A comparação sincrética de tudo com tudo e a redução de tudo a tipos ainda


não garante de per si um conhecimento autêntico da essência. A possibilidade
de se dominar a multiplicidade variada dos fenômenos num quadro de conjunto
não assegura uma compreensão real do que é assim ordenado (HEIDEGGER,
2016, p. 97)

Tal ordenação, por sua vez, só se torna possível a partir do constitutivo do dasein
“mundo”. Mundo, no nosso caso, como América Latina. Não recorro aqui a uma definição
50

geopolítica, mas sim ao seu caráter existencial. Mundo, portanto, como sendo onde os
fenômenos se manifestam, é um conceito fundamental da fenomenologia heideggeriana e
que será brevemente retomado na seção seguinte.

2.2 Physis
Já no ano de 1929, em “Que é Metafísica?”, Heidegger defende que a metafísica
pertence à “natureza do homem”, ou seja, seria ela um acontecimento essencial no âmbito
do Dasein. Contudo, não seria esta a primeira vez que o ainda jovem Heidegger abordaria
a questão da natureza, que já havia sido discutida em outro sentido em “Ser e Tempo”
(1927), onde ele questiona sobre o equívoco de tratar esta como “mundo”, já que
“[e]nquanto conjunto categorial das estruturas de ser de um ente determinado, que vem
ao encontro dentro do mundo, a ‘natureza’ nunca poderá tornar compreensível a
mundanidade.” (HEIDEGGER, 2016, p. 113). Mas para o filósofo, qual seria então a
forma de compreender o sentido ontológico do fenômeno “natureza”? Pelo que ele indica
no mesmo livro, ontologicamente o conceito de “natureza” só poderia ser apreendido
“através da analítica do dasein” (HEIDEGGER, 2016, p. 113), ou seja, a partir de um
determinado modo de ser.
Para a compreensão da natureza a partir de seu modo de ser, realizo os dois
movimentos propostos por Zarader (1986): primeiro o retorno ao idioma e, o segundo,
utilizando a fundamentação do passo anterior, avança-se na direção do pensamento.
O movimento de retorno à língua grega busca o sentido original de “natureza”
antes ainda da tradição metafísica e da influência das traduções, as quais vieram a
distorcer o esse sentido ao ser passado para idiomas que não conseguem explica-lo com
a mesma exatidão.

O pensar romano assume as palavras gregas, traduzidas sem a experienciação


igualmente originária que corresponda ao que elas dizem, sem a experiencial
palavra grega [itálico no original]. Com este traduzir começa a carência de
chão firme do pensamento ocidental. (HEIDEGGER, 2010, p. 53)

Como nossa civilização ocidental teve como berço a Grécia Antiga, a raiz dos
idiomas falados pelos ocidentais se fundamenta no latim e principalmente no grego,
considerando a influência que este povo exerceu sobre a Roma Antiga. Para Heidegger,
a tradição metafísica ao compreender os fenômenos a partir do ente teria sido a
responsável pelo esquecimento do ser, além disso, o próprio tempo, o uso cotidiano seria
também responsável pelo desvirtuamento do sentido das palavras, somando-se ambos
teríamos uma visão equivocada do que este sentido originalmente representava. O
51

significado então de natureza, traduzido de uma forma geral, encontrado no grego é physis
(φύσιζ).
O segundo movimento é, conhecendo então este termo, interpretá-lo, e não mera-
mente traduzí-lo do grego, o que, segundo defende Dias (2017, p. 151) poderia inferir em

uma restrição da physis [itálico nosso] na direção do meramente físico: do vigor


para o vigorado. Isso significa [...] que prevaleceu a ideia de que physis [itálico
nosso] (o ente como tal em sua totalidade) se experimenta naquilo de que, de
certo modo, impõem-se de maneira mais imediata: o ente natural. Para o
moderno é o ente natural que serve e se mostra como base de apoio.

Zarader (1986) define esta palavra a partir de um conceito mais profundo e


defende que ela é uma palavra-chave para o pensamento no grego antigo, pois representa
o sentido mais original de ser. E o que physis tenciona dizer? Physis tem sua origem em
phuyen (φύειν), que quer dizer “crescer” ou “fazer crescer”. Para Heidegger, “crescer” no
sentido de “emergir” é um fenômeno que pode ser vivenciado em qualquer lugar, por
exemplo: “em processos no céu (o nascer do sol), no surgimento do mar, no crescimento
de plantas, no surgimento de animais e seres humanos desde o ventre” (HEIDEGGER,
2014, p. 16)21. Contudo, mais do que o sentido de “emergir”, o que importa para
Heidegger é o sentido de “auto-emergir” de physis. “Crescer” tampouco teria o sentido
de “aumentar”, “evoluir” ou “se tornar”. O caminho a ser tomado é justamente o contrário.
A physis vigora, se apresenta em seu sentido mais próprio, ou seja, o que faz dela o que é
e como é, a partir das palavras: emergir (Hervorgehen), desabrochar (Aufgehen) e abertura
(Sichöffnen)22. É a partir deste entendimento que Heidegger (2010, p. 103) demonstra em
“A Origem da Obra de Arte” (2010): “[a] árvore e a grama, a águia e o touro, a serpente
e o grilo aparecem no realce de sua figura e se apresentam assim no que eles são. Este
surgir e desabrochar em-si e no todo, os gregos denominaram, há muito tempo, a physis.”
Colocado desta forma, o desabrochar de uma rosa, por exemplo, representa o seu
desvelamento “a rosa desabrocha, emerge em sua abertura, ela dura nessa abertura, se
mantem e se implementa, e assim se oferece ao olhar” (ZARADER, 1986, p. 36)23.
Mesmo que Heidegger, por sua linguagem poética, tenha preferência por
exemplos do reino vegetal, essa emergência da abertura pode ser estendida a todo ser

21
Tradução livre do original: “in processes in the heavens (the rising of the sun), in the surging of the sea,in
the growth of plants, in the coming forth of animals and human beings from the womb”.
22
Apesar das palavras em português usadas não serem o correspondente mais imediato das palavras em
alemão, foi feita uma adequação de acordo com o contexto e com a derivação utilizada do francês (avancée,
épanouissement e ouverture)
23
Tradução livre do original: “la rose s’épanouit en ce que, avancée dans l’ouvert, elle dure dans cet
ouvert,s’y maintient en se déployant, et ainsi s’offre au regard”.
52

porque permite a qualquer ente, seja homem ou deus, de vir ao dasein e se instalar. Desta
forma, a physis não se ocupa apenas de seres naturais, ela é uma característica
fundamental a todo ente que vem a ser. Dando continuidade ao segundo passo para a
compreensão do modo de ser da natureza em seu sentido original, Zarader (1986) defende
que não basta evitar o erro de identificar a physis pura e simplesmente como natureza,
mas saber pensar através do contexto dado e reconstruir o modo que ela se aplica para
chegar a uma noção. Para Heidegger, não foi através de processos naturais que os gregos
observaram a physis pela primeira vez, mas sim através da experiência fundamental do
ser na poesia e no pensamento. O filósofo declara que physis, então, “significa
originalmente ambos céu e terra, ambos a pedra e a planta, ambos o animal e o humano,
e a história humana como trabalho dos humanos e deuses; e finalmente e antes de tudo,
significa os deuses que estão sob o destino.” (HEIDEGGER, 2014, p. 16)24
Mesmo assumindo physis como sendo o próprio “ser”, não há aqui contradição
com o conceito dado de “como o ser se se mostra no mundo”. Essa ideia, na verdade,
ratifica a anterior e será peça-chave no rompimento com a metafísica. “A physis deveria
então ser definida como o reino do que, desabrocha para fora, ao mesmo tempo em que
permanece em si-mesmo” (ZARADER, 1986, p. 38). É importante ressaltar que o
“desabrochar” aqui mencionado não diz respeito a um “desabrochar” como estado ou
momento que tenha sido alcançado, mas como o de algo que está em movimento de
constante desabrochar. Chego assim a um conceito último pela parte de Heidegger que,
em “Introdução à Metafísica” (1953), declara:

Physis é a maneira de ser apresentada pelas entidades em geral, pela qual elas
podem emergir e desdobrar-se por sua vontade própria para fora de si mesmas
– ressaindo sem serem compelidas da desocultação, tornando-se por esse meio
manifestas, entrando na aparência numa soberania duradoura e durável – e ao
mesmo tempo permanecendo enraizadas na ocultação a partir da qual esta
emergência que se desdobra a si própria teve sua origem, e por esse meio
recuando para si próprias tanto simultânea como finalmente. (HEIDEGGER
(1966) apud. FOLTZ, 1995, p. 155-6)

Apesar de a physis ser “experienciada acima de tudo através daquilo que de uma
certa maneira se impõe a si próprio mais imediatamente” (FOLTZ, 1995, p. 156), seu
caráter auto-emergente se evidencia e prevalece de forma mais explícita justamente nas
coisas da natureza. Segundo Foltz (1995), seria talvez por esse motivo que Heidegger as

24
Tradução livre do original: “phusis originally means both heaven and earth, both the stone and the plant,
both the animal and the human, and human history as the work of humans and gods; and finally and first of
all, it means the gods who themselves stand under destiny”
53

utilizava como exemplos para ilustrar a auto-emergência da physis no seu sentido mais
estrito, que seria o da natureza.

O por quê
A rosa é sem porquê.
Floresce porque floresce,
Não se auto-contempla
Nem pergunta se alguém a vê.
(SILESIUS, 1992, p. 156)

2.3 Iseda
Os países que constituem a América Latina, além de compartilharem o uso de uma
língua derivada do latim, viveram um processo violento de ocupação e colonização dos
europeus no qual milhões de africanos foram trazidos para executar trabalhos forçados.
Segundo a linguista Margarida Petter (2011, p. 79), que estuda a influência de idiomas
africanos na América Latina, “estima-se que a América espanhola tenha recebido cerca
de um milhão de escravos e o Brasil por volta de 3,5 milhões, ou 38% dos escravos
trazidos para o Novo Mundo”. Um número tão expressivo de africanos migrados
forçadamente pela diáspora negra provocou significativa influência cultural nos países
latino-americanos. Para manter sua identidade pessoal e histórica, foram diversas as
formas de resistência pelas quais os negros em terras americanas tiveram de lutar. Dentre
esses movimentos, diversas manifestações podem ser observadas a partir de sua influência
nos mais diversos âmbitos: “de caráter linguístico, religioso, artístico, social, político, de
hábitos, gestos, e assim por diante.” (NASCIMENTO, 2008, p. 71-72)
Para Petter (2007), a mais forte evidência do contato linguístico e cultural da
presença africana, no caso do Brasil, se apresenta através do léxico. O encontro social
entre os povos que passaram a residir neste país gerou uma necessidade comunicativa que
resultou no empréstimo de expressões dessas outras culturas que não falavam o português.
Para a linguista, essas trocas “[d]istribuem-se nos mais diversos campos léxico-
semânticos: os de origem banto (quimbundo, principalmente), mais antigos, têm uma
distribuição mais abrangente; os de origem iorubá, mais recentes, referem-se à religião e
à música, sobretudo” (PETTER, 2007, p. 83-84).
Da mesma forma que busquei o retorno do sentido originário de natureza da
cultura ocidental na linguagem, a partir do idioma grego, faço o mesmo movimento para
entender seus sentidos de natureza dos povos africanos e autóctones. A importância de
buscar os outros sentidos de naturezas que compõem nossa compreensão atual se deve a
um esforço de, por ter sido uma região colonizada, não se ater à posição da cultura de
54

nossa metrópole. Conforme afirma Frantz Fanon, (2008, p. 34) “[t]odo povo colonizado
[...] toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura
metropolitana”. Ao realizar novamente esse movimento, busco o retorno à nossa
originalidade cultural e enriquecimento da descrição de nossas experiências.
Para o escritor Nei Lopes (2008), os povos do grande grupo etnolinguístico banto
entendem os seres da natureza, incluindo a fauna e a flora, como “forças vivas, em
processo, nunca como entidades estáticas” (LOPES, 2008, p. 196). Essas forças vitais são
a sustentação de uma cadeia formada de elos entre eles, seus familiares ascendentes e
também seus descendentes.

Essa noção é a base do culto aos ancestrais, que não são simples parentes
defuntos, mas antepassados ilustres, cuja passagem pela vida terrena foi
marcada por fatos significativos para sua comunidade, expressos ou por sua
liderança, inteligência, coragem e fidelidade ao grupo ou por sua simples
condição de fundadores, inauguradores de linhagens familiares. (LOPES,
2008, p. 196)

Existe entre esses povos uma ligação muito forte com seus antepassados, não só
por lhes proporcionado a vida, mas também pelos ensinamentos passados de uma geração
para outra sucessivamente. A condição de reverência por seus antepassados traz como
costume entre os povos bantos o pedido de autorização e proteção do espírito de seus
ancestrais antes da realização de trabalhos agrícolas e mineiros, caça e pesca, segundo
Lvova (1987, p. 174). Dessa forma, a tradição dos povos bantos considera toda terra
sagrada, assim como as águas de rios e mares, não só pelo fato de estas fornecerem
recursos para eles, mas principalmente por terem servido aos seus ancestrais. Lopes
(2008, p. 197) completa que, “assim como a terra e as águas, são sagradas as árvores e as
plantas, por fornecerem sombra, alimento e remédio e também por sua ligação com os
antepassados ilustres de cada comunidade.”
A sacralidade, por sua vez, tornou-se o caminho pelo qual os povos vindos do
continente africano puderam formar sua resistência cultural e coesão social a partir da
religião como forma de expressão. Roger Bastide, que teve um destacado trabalho na
antropologia ao descrever a cosmologia do candomblé, relata em “As religiões africanas
no Brasil” (1971) que neste país houve também povoamento de africanos que seguiam o
islamismo. Contudo, além de serem minoria comparando-se com etnias que seguiam
outras religiões, estes eram “negros islamizados, convertidos e não semitas puros” e se
isolavam socialmente de povos que seguiam outras crenças. O islamismo impunha regras
sociais diferentes como a permissão da poligamia para homens e proibia para seus
55

seguidores a embriaguez, “proibição essa inflexível para os infelizes escravos que


buscavam na cachaça uma fuga à realidade” (ALMEIDA (1940) apud. BASTIDE (p. 218,
1971)). “Enquanto no Islã negro o maometanismo constituía a religião oficial e os velhos
cultos passavam por ser somente magia, aqui, por uma inversão das coisas, é o
maometanismo que se tornou e que permaneceu feitiçaria.” (BASTIDE, 1971, p. 218).
Dessa forma, a principal expressão de religiosidade africana na América Latina se deu
através do candomblé.
No livro “Guerreiras da Natureza” (2008), escrito por autores com formações
diversas e dedicado a explicar multidisciplinarmente a relação entre o protagonismo da
mulher afro-brasileira, as comunidades-terreiros de candomblé e o meio ambiente, o pai-
de-santo José Flávio Pessoa de Barros explica que o candomblé pode ser compreendido
e definido como um “complexo cultural no qual se verifica um conjunto de significados
transmitidos historicamente, que são elaborados em novo contexto e dão origem a formas
simbólicas por meio das quais os adeptos transmitem e desenvolvem seu conhecimento e
suas atitudes em relação à vida” (BARROS; TEIXEIRA, 2008, p. 201-2)
Seu culto se volta às figuras dos orixás, palavra a qual, conforme explica o
antropólogo Ordep Serra (2005, p. 190), tem sua origem no iorubá orisa e “designa
divindades concebidas como capazes de manifestar-se no mundo da natureza e no
horizonte da cultura, embora tenham sede num domínio transcendente” (SERRA, 2005,
p. 190). Os orixás, por sua vez, têm uma forte relação com a natureza, pois, cada um
representa uma força ou um elemento desta (CARNEIRO; CURY, p. 127, 2008). Esta
íntima relação e a consequente consciência ecológica das religiões afro-brasileiras é
expressada pelo ditado iorubano “Omi kosi, éwè kosi, òrìsà kosi” que tem como
significado “Sem água, sem folha, não há orixá” (MOREIRA, 2008, p. 160)
(CARNEIRO; CURY, 2008) (BARROS, TEIXEIRA, 2008, p. 207) (NASCIMENTO,
2008, p. 152). Tal frase, além de portar uma mensagem de preservação da natureza,
explicita o grau de importância que esta tem dentro da religião. Ainda no livro “Guerreiras
da Natureza” (2008), no capítulo de nome “Natureza, morada dos orixás”, além de
sustentar a tese auto-explicativa do título, o músico de canções de candomblé Aderbal
Moreira (2008, p. 161) dá um passo a mais e declara que “Orixá é natureza”! De forma
mais pormenorizada, a organizadora deste livro, Elisa Larkin Nascimento, explica que:

Os orixás são as próprias forças da natureza e a manifestação simbólica dos


princípios da harmonia cósmica. Exu, o orixá filho, faz a ligação entre os vários
reinos do cosmos e impulsiona os intercâmbios entre o orum e o aiyê. Ossaim,
orixá-folha soberano do reino da natureza, ensina ao povo de santo a ciência e
56

a prática da medicina e da farmacologia tradicionais africanas. As iyabá, orixás


femininas, desempenham papel central na cosmologia afro-brasileira. Iemanjá,
mãe de todas as águas, é o princípio gerador dos seres da natureza, do reino
humano e do reino espiritual. Oxum, deusa do amor e da água doce, simboliza
a fertilidade, a procriação e o princípio da criatividade. Iansã, deusa do raio,
significa o poder feminino na luta pela vida e pela justiça. Nanã simboliza a
fecundidade. Obá, a pureza das cascatas internas das matas. Euá, a essência
pura da água cristalina. (NASCIMENTO, 2008, p. 151-152)

No livro “O animismo fetichista dos negros baianos” de 1900, Nina Rodrigues,


um dos primeiros a academizar os estudos sobre religiões afro-brasileiras, demonstrava-
se intrigado pelo fato de que tais religiões ao consagrarem pedras, árvores ou objetos de
ferro, reverenciarem tais elementos da natureza como sendo as próprias entidades, e não
o que seria equivalente à “imagem” de um santo, como na religião católica. Conforme
declara o antropólogo Marques (2018, p. 221), foi a partir de então que Nina Rodrigues
soube que “Xangô era a própria pedra de raio onde o santo estava encarnado” (2006, p.
43); e que “qualquer objeto de ferro pode ser adorado como Ogum, contanto que tenha
sido consagrado pelo feiticeiro” (2006, p. 44). Estes artefatos, após um ritual de
consagração realizado por pessoas em específico, se tornam “ferramentas de santo” e
passam a fazer parte do assentamento dos orixás e, desta forma, fazem a ligação entre
estes últimos e seus filhos humanos.
Se compararmos o princípio pelo qual os orixás representam a essência dos
elementos da natureza, muitos aspectos se aproximam ao que Heidegger buscou como a
“experiência fundamental”, ou seja, o acesso ao ser como ser, ao ente como ente. O
próprio filósofo, que dificilmente teve contato com a filosofia ou cosmogonia de religiões
africanas cita em “Ser e Tempo” (1927) que “[o] ser [...] apenas ‘é’ na compreensão dos
entes a cujo ser pertence uma compreensão do ser” (HEIDEGGER, 2016, p. 249). Para
isso, buscou no saber fundamental, no saber da diferença ontológica, ou seja, diferença
entre ser e ente, fundamentos os quais creditou aos gregos como sendo os primeiros no
ocidente a terem conseguido fazer tal discernimento. Porém, teriam sido mesmo os gregos
os primeiros? Não partiria em paralelo a cosmogonia do candomblé da mesma ideia de
que o orixá é o ser dos elementos da natureza, vistos esses não por olhos ocidentais como
objetos inanimados, mas como entes que possuem energia vital?
Para Marques (2018, p. 224), essa ontologia do candomblé pode ser explicada pelo
princípio de que

[...] cada parte do universo pertence e é parte de cada orixá; ou seja, onde a
divisão mítica iorubana do universo se expandiria para as formas, pessoas,
cores, matérias, perfumes, elementos da natureza, datas, tempos, espaços etc.
Cada divindade possuiria um conjunto de materiais que a expressa e por meio
57

do qual ela se materializa no mundo. Se pegarmos como exemplo as


ferramentas de santo, veremos que cada uma delas é fabricada com matérias-
primas e formatos específicos ligados ao orixá do qual ela faz parte. Assim,
orixás caçadores, como Exu, Ogum, Oxóssi, Ossain e Oxumarê, por exemplo,
possuem ferramentas feitas de ferro e com formas que remetem, de uma
maneira ou de outra, à caça, à guerra, à agricultura ou à mata. Outros orixás,
mais ligados às águas, possuem a prata, o ouro ou o metal branco(latão) como
matéria-prima, como Iemanjá, Oxum ou Oxalá, por exemplo. Outros, ainda,
como Xangô e Iansã, são feitos em cobre ou bronze, e possuem como formas
machados, espadas e coroas; e assim por diante... No limite, cada entidade –
em sua qualidade particular – possui uma ferramenta específica, feita com o
material característico daquele orixá e respeitando um determinado “padrão”
de cores e formas mais ou menos variável (MARQUES, 2018, p. 224)

No processo de feitura (não chamo aqui de fabricação devido às singulares


características desse processo artesanal) principalmente dos artefatos metálicos, a fase de
forja demanda uma atenção especial a qual somente mãos preparadas para tal são capazes
de realizar pois representa todo um jogo onde sensibilidade e habilidade específicas e
sinergias são envolvidos. Conforme Marques (2018, p. 230), “[i]r ao fogo é lidar com
uma série de energias que compõem a atividade e se correlacionam”, o processo e a forma
pela qual o fogo será manipulado, assim como todo o aparato de martelo, fole, etc. serão
responsáveis por invocar a energia que tomará conta dos objetos. Mesmo sem ter tido
contato direto com as religiões de matriz africana, Heidegger em “A questão da técnica”
(1950) descreve como se presentifica a questão do comprometimento em um processo
análogo. O filósofo, por sua vez, fala sobre a fabricação de uma taça de cálice,
possivelmente por ser uma “ferramenta” representada em sua religião, a cristã. Para ele,
a relação que se forma entre o objeto e a matéria que o dá forma é tão forte que, através
do processo de fabricação a taça “agradece à prata por aquilo em que subsiste [...].
Enquanto taça, o que está comprometido com a prata aparece no aspecto de taça e não no
de uma fivela ou de um anel” (HEIDEGGER, 2007, p. 378). Esse comprometimento
mencionado não tenciona que o objeto tenha uma obrigação moral para com a sua matéria,
mas sim um comprometimento que seria resultado do processo de aparecimento de
alguma coisa.
Nesse processo de aparecimento na feitura dos símbolos do candomblé, a tríade
pessoas-objetos-orixás, que por sua vez se relacionam intimamente, se compromete
investindo mais ou menos energia, esta chamada de axé. O axé está presente em tudo o
que existe e pode existir no universo, começando por orixás, passando por pessoas e
objetos encontrados na natureza, e pode ser manipulado através de rituais. Cada ente
possui uma modulação específica de axé a qual atravessa distintos modos de existência.
O próprio processo de feitura é uma poiesis que, a partir de um material bruto da natureza,
58

e com a utilização da técnica e energia necessárias, desvela uma aletheia. Contudo, essa
aletheia remete novamente à natureza ao se criar um símbolo de um orixá, manifestação
de formas de natureza nas religiões de matriz africana.
Outro elemento de grande importância nestas religiões, e que não podemos deixar
de reparar que está mais uma vez fortemente ligado à natureza é a origem dos orixás que,
em uma das versões dos mitos, teria se dado a partir da seiva da sagrada árvore Iroko, o
que faz com que esta seja considerada “pai de todas as plantas” entre os iorubás.
Conforme conta Sueli Conceição em sua dissertação dedicada a estudar o processo de
urbanização como reestruturação das religiões de matriz africana, apesar de Iroko não ser
propriamente um orixá na cultura iorubá, a árvore “é um caminho para a divindade e ali
mora um personagem espiritual, mas não há sacerdote ou liturgia de culto a Iro[k]o.”
(CONCEIÇÃO, 2008, p. 73). A origem dos orixás reforça mais uma vez o caráter
ecológico das religiões de matriz africana pois, a partir de sua cosmogonia, o primeiro
contato que suas entidades mais importantes teriam tido na Terra é com uma planta.
Ainda no livro “Guerreiras da Natureza”, Barros e Teixeira (2008) apresentam
uma cantiga (ou korin ewe) que, além de ressaltar a importância dos ancestrais femininos
quando cita o pássaro, símbolo do poder das “mães-feiticeiras”, faz saudação à árvore que
teria sido morada dos ancestrais e de alguns orixás.
E Ìrókò ìí koro o Iroko não é semeado
O igi eiye ti temi Árvore de pássaro, meu
O igi eije ko gbo’jo Árvore de pássaro não recebe chuva!
A Ìrókò akin degun Iroko, poderoso refúgio.
E a Ìrókò ìí roko o Iroko não é semeado
A ye igi eiye ti temi Árvore de pássaro, meu
O igi eiye Ìrókò Árvore de pássaro, Iroko.
A Ìrókò ìí roko o Iroko, poderoso refúgio.
A Ìrókò akin degun Sim Iroko não semeado,
A ye igi eiye ti temi Árvore de pássaro não recebe chuva!
O igi eiye ko gbo’jo Iroko, poderoso refúgio!
A Ìrókò akin degun Ah, Iroko poderoso refúgio
Akindebon, akin degun
AÌrókò aki degun Calma é de Iroko
Iroko não falha
Èrò Ìrókò Calma é de Iroko, calma não falha
Ìrókò ìso (BARROS; TEIXEIRA, 2008, p. 211-
Érò Ìrókò ìso èrò 212)

No artigo onde aborda a questão do ser em Heidegger a partir de uma perspectiva


mística, Habitzreuter compara a relação ser/dasein em Heidegger como sendo análoga a
de Deus/alma em Eckhart, de quem o filósofo recebeu grandes influências, inclusive a do
pensamento profundo ou meditativo. Da mesma forma que o Deus de Eckhart é o
possuidor da alma, para Heidegger o ser é revelado pelo dasein. Ilustro através desses
59

exemplos para acrescentar a relação que se dá entre os orixás e os elementos da natureza,


que é onde também estes se manifestam. Acrescentando ao que o autor declara que
“[a]ssim como a alma é receptiva para Deus, assim o dasein faz a abertura para o ser”
(HABITZREUTER, 2011, p. 9), assim também a natureza faz a abertura para as entidades
dessas religiões. A diferença é apontada para onde esses eventos teriam seu lugar. O autor
cita que enquanto para Eckhart a união mística com Deus e feita “pela purificação e
divinização da alma através do amor, em Heidegger a verdade do ser se desvela no dasein
pelo Ereigns, evento apropriador do ser. Seria-nos permitido mais uma vez fazer uso
dessas analogias e arriscar que, em se falando de Candomblé, essa união é realizada
através da incorporação de orixás por pais-de-santo em seus rituais religiosos.
Ao se considerar a influência que veio destes povos, sua relação com a natureza
destaca-se principalmente em dois fatores. O primeiro deles é a partir da sacralidade que
é dada à terra que serviu aos seus antepassados. Segundo Foltz (1995, p. 167), Heidegger
não enxerga a terra como sendo “apenas o solo do qual a planta emerge e no qual fixa as
suas raízes; a terra é também aquilo que abriga e sustenta o surgimento da planta no
aberto”. A terra pode ser aqui entendida como uma “natureza” que abriga tudo o que
emerge. Ao possibilitar emergir seus familiares e emergir o alimento que deu sustento aos
mesmos durantes suas vidas, a natureza atinge um ar de sacralidade. A sacralidade se
reafirma no segundo fator de destaque na relação destes com a natureza, que é quando a
natureza se entifica pela figura dos orixás. Estes orixás, conforme foi visto, quando é feita
a produção de símbolos para eles, existe uma grande preocupação com a matéria que dará
forma (eidos) a estes símbolos. A natureza vista aqui como matéria, diferente do habitual
da physis que tenciona uma auto-emergência ou auto-abertura, é um auto-fechamento
(Foltz, 1995, p. 166). Nem sempre as coisas desabrocham e emergem, por vezes elas
também se retiram e se voltam às suas raízes Conforme Heidegger, “[a] emergência auto-
desdobrante é, em si, um retorno para si mesmo” (HEIDEGGER, 1987, p. 209)25

2.4 Ybi
Neste trabalho evito utilizar o termo índio que seria uma denominação europeia
associando os povos originais da América aos da Índia, um equívoco histórico e até hoje
reproduzido. Opto por seguir o termo “indígena” que é o qual o ativista Daniel

25
Tradução livre do original: “Lo schiudersi che si dispiega è, in sé, un ritornare in sé”.
60

Munduruku declara possuir preferência em seu livro Banquete dos Deuses, “indígena, que
é o mesmo que nativo ou natural da terra” (MUNDURUKU, 2009, p. 13).26
Até 300 anos atrás o tupi era o idioma mais falado no Brasil (AGL, 2009). Por
mais que nos três últimos séculos o idioma português tenha assumido essa posição,
principalmente devido a manobras políticas, entre as quais decretos que proibiram que
outros idiomas senão o do colonizador fossem falados, o tupi, assim como o iorubá,
representam grande influência no vocabulário do português brasileiro. O tupi foi o idioma
facilitador do contato entre diversas etnias. Em conversa com Letícia Indi Oba, ativista
do movimento indígena e pertencente à etnia Payayá, ela conta que

os payayá desciam para o litoral através do rio Paraguaçú mas também tinham
contato com os indígenas do litoral falantes de tupi, no norte de Minas que são
os Macrojê, e também sobe para o litoral norte baiano considerado também
Macrojê, e nesse movimento se compreendiam na mesma língua.

Através da conversa tenho alguma dificuldade para compreender como se


desenrola a diferente forma de estruturar a linguagem para os Payayá. Tento entender a
questão da natureza e poder relacionar como essa se manifesta para este povo, assim,
busco alguma palavra com origem no tupi equivalente à “natureza” para a partir daí tentar
atingir seu sentido mais originário. O mais perto que consigo é ybi. Contudo, se desvela
a necessidade de fazer um movimento anterior ainda para que seja possível compreender
o conceito que esta palavra passa. Esse movimento prévio é o movimento de
enraizamento, assim como o proposto anteriormente por Zarader (1986) para a palavra
physis. Percebo aí a grande importância que a terra tem para os povos autóctones. O
enraizamento é um movimento sobretudo de transgressão, ao trazer o conceito de volta à
terra, traz-se de volta ao seu bem mais precioso, pois a terra é sagrada para eles. É de onde
todos viemos e é para onde vamos. A terra, assim como também para os povos que vieram
da África, remete aos ancestrais. É na terra também onde as raízes de sua cultura estão

26
Conforme discute a geógrafa Jamille Lima (2019) “A expressão ‘indígena’ designa essa condição de
autoctonia, mas ‘[...] entre nós, ficou marcada por indicar aqueles que habitavam as Índias Ocidentais, nome
que os espanhóis atribuíam não só ao novo continente, como também às Filipinas’ [terra de Filipe]
(PORTO-GONÇALVES, 2009, p. 26). Essa significação consiste, segundo Porto-Gonçalves (2009), em
uma radical violência simbólica cometida contra os povos originários de ‘Abya Yala’. Trata-se do domínio
da conformidade, cujo processo de significação se refere ao que o filósofo e urbanista Paul Virilio denomina
de ‘unicidade exterminadora’ (VIRILIO, 1984, p. 154), dado o sentido de generalização sob uma forma
única, neste caso, reduzida ao termo ‘indígena’.
Entretanto, a expressão indígena é paradoxal, pois como argumentado por Porto-Gonçalves (2009), ao
mesmo tempo em que ela desconsidera as especificidades dos povos autóctones, ela contribui para unificá-
los não somente sob a ótica dos conquistadores, mas também como designação que fundamenta a unidade
política daqueles que percebem a história comum de vilipêndio, opressão e exploração de sua população e
de esbulho e destruição de seus ‘recursos’ naturais.” (LIMA, 2019, p. 133).
61

contidas. O escritor Daniel Munduruku relata em seu livro sobre as culturas indígenas que
esta se apresenta como “o ventre de que nós saímos, o solo do qual nos alimentamos e o
coração a que retornaremos e em qual encontraremos os entes queridos que conosco
conviveram durante sua passagem pela Terra” (MUNDURUKU, 2009, p. 29)
Consequentemente, negar o direito à terra a esses povos é privá-los do direito de
ter contato com o que tem de mais sagrado. É privá-los de sua identificação com seus
antepassados, privá-los de seu próprio ser. Segundo Jamille Lima, que em sua tese de
doutorado aborda a questão do sentido geográfico da identidade dos Payayás, e quem me
facilitou o contato com Letícia Indi Oba,

[...] o desterramento é fruto da colonialidade que provoca um hiato na relação


homem-terra, seja pelo europeísmo ou mesmo pelo americanismo, mas
sobretudo ele é o sufocamento da possibilidade de externalizar uma identidade,
inserindo o corpo em um sistema de coação e de privação, de obrigações e de
interdições, tal como na relação castigo-corpo descrita por Foucault (2011) ao
refletir sobre o corpo dos condenados. (LIMA, 2019, p. 112)

“Terra” no tupi é ybi (VOCABULÁRIO, 1998). E esta terra americana possuía


diversos nomes, de acordo com os idiomas das etnias que a habitavam. “Quem morava
no litoral chamava o território de Pindorama, terra das palmeiras. Quem tá lá nos Andes
chama de Abya Yala. Sinônimo de divindade da natureza é Tupã, que dominava as forças
naturais. Ybirapuera, ybirá é árvore. Ypiranga, y é rio, piranga vermelho, então é o rio
vermelho” (Letícia Indi Oba, 2019).
Em um primeiro momento, para quem está preso em um modo de pensar e em
pretensões da metafísica (HEIDEGGER, 2015, p. 16) causa estranheza uma palavra ter
tantos sentidos e que sejam tão amplos. “Natureza”, “terra”, “água”, ainda assim, é
possível perceber como elas se relacionam. Tanto “terra”, quanto “água” não deixam de
ser natureza. Poderia pressupor que ybi seja então a natureza assim como seus elementos
naturais? A resposta que recebo é a de que “é uma coisa que levanta da terra” (Leticia
Indi Oba, 2019). Tal resposta remete a “o que emerge da terra”. Assim como a physis,
que em seu sentido ontológico emerge sobre si mesma, a ybi emerge da terra. Sendo a ybi
um dos sentidos de terra, temos então que ela, ao levantar da terra, emerge sobre si mesma.
Outro sentido de ybi que se manifesta e emerge da terra é ybi como árvore.
Para esta etnia, além da ybi cujo sentido se mostra profundamente enraizado na
forma como lidam com a natureza, outro elemento de grande importância é a árvore
gameleira que, assim como no candomblé onde é chamada por Iroko, é também sagrada.
Segundo Jamille Lima (2019), essa árvore é uma referência para os payayá, o que se
62

evidencia em seu nome em tupi yayá. A gameleira é tão emblemática que os payayá não
receberam sobrenomes europeus, mas utilizaram em seu lugar o nome “Gameleira”, por
exemplo: Esmeraldo Gameleira, Antônio Gameleira. Em sua tese, Jamille Lima (2019)
ressalta que a gameleira simboliza o “enraizamento topológico” para eles, e promove a
tensão ocorrida entre a abertura e o fechamento resultante da relação lugar-território para
esse povo.
Não só os payayás, mas os povos indígenas brasileiros, quando se falando sobre
suas relações com a natureza, teriam alguns aspectos em comum, conforme declara Daniel
Mundukuru (2009), esses povos promovem uma mensagem de amor e profundo respeito
pela natureza, tal qual é atribuído a uma mãe, e esse é um aprendizado que é passado
desde o nascimento.

A criança vai sendo introduzida no convívio social ao longo dos momentos


marcantes do seu processo de crescimento. Até mesmo no ato de ouvir uma
história narrada por um velho da aldeia, a criança está aprendendo como deve
ser o seu relacionamento com a natureza e que, em tempos imemoriais, eram
os animais, as plantas, os peixes, as árvores e as aves que mandavam no mundo
e até no homem. (MUNDURUKU, 2009, p. 29)

Dentre esses contos, destaco a forma como os humanos se relacionam em situação


de igualdade com outros animais onde conseguem se comunicar todos em uma mesma
linguagem e sem relação de dominação de uma espécie para a outra. Neste meio, animais
humanos e não-humanos fazem igualmente parte da natureza compondo todos os seres
vivos a teia da vida (MUNDUKURU, 2009, p. 31). Para fins de ilustrar como isso ocorre,
recorro ao trecho de um conto do povo Guarani, conforme narrado por Daniel Munduruku

Um dia, o grande herói Apopocúva retornou de uma longa viagem que fizera.
Seu nome era Nhanderequeí, Guerreiro respeitado por todo o povo, decidiu que
iria roubar o fogo dos urubus. Reuniu todos os animais, aves e homens da
floresta e contou o plano que tinha para enfrentar os temidos urubus, guardiões
do fogo. Até mesmo o pequeno cururu, que fora convidado, compareceu dizen-
do que também tinha muito interesse no fogo. (MUNDURUKU, 2004, p. 15)

Neste conto, assim como em outros trazidos em seu livro “Contos Indígenas
Brasileiros” (2004), se evidencia como tradicionalmente o ser humano faz parte de um
cosmo e está no mesmo nível das demais espécies de animais. E isso se dá por um motivo,
para estes povos não apenas fazemos parte da natureza como somos interdependentes um
do outro sendo necessária uma harmonia entre ambos para que todos possam coexistir.
Essa harmonia não surge com um incentivo de exploração sustentável de recursos, onde
a terra que habitam seria simplesmente a provedora de sustento, mas se baseia na ideia de
63

admiração pela natureza. Esta terra, a qual reverenciam com seus cantos e respeito, para
eles, possui também uma alma.

É sob essa ótica que eu compreendo a fala de meu avô, quando dizia que era
preciso andar sobre a terra com os pés suaves, fazendo carinho nela,
aprendendo com ela, ou, os momentos de danças rituais, em que queremos
fazer a terra cantar conosco ao som dos nossos pés, invocar o som imemorial
escondido no coração do mundo. Como seria possível imaginar nossos velhos
nos pedindo para ouvir o murmurar do rio e aprender com ele os caminhos de
paciência, se o rio não tivesse uma voz, um coração e uma alma?
(MUNDURUKU, 2009, p. 31-32)

Por fim, Mundukuru (2009) aponta como outro ponto em comum entre os povos
indígenas a gratidão que esses têm à “Mãe Terra”. Para essa mãe que possui alma e
provém a vida é necessário sempre lembrar de ser grato. É para ela que indígenas de
diversas etnias dançam, cantam e se pintam em diversos momentos de suas vidas. “É uma
gratidão permeada pela crença de que a vida é oferecida como dádiva da natureza e como
tal deve ser vivida.” (MUNDURUKU, 2009, p. 32). É através dessa ideia de oferenda que
o autor afirma que somos “banquete dos deuses”, o que dá nome ao seu livro. “Banquete”
se dá no sentido de nossa reverência servir de alimento para essa grande Mãe.
A imagem da natureza que, para os povos indígenas, se entifica através dessa
figura materna, em paralelo muito se assemelha a entificação da mesma a partir dos orixás
das religiões de matriz africana. Nestas, a ideia de oferenda encontra-se muito presente,
principalmente quando nos referimos ao candomblé. Em ambas as culturas, de uma forma
geral, a ideia de sacralidade da natureza encontra-se muito presente. Observando por outro
viés, um aspecto que que se mostrou recorrente nesses três grupo principais que
participaram da estruturação do que se entende por cultura latino-americana, é o caráter
ontológico da natureza se manifestando como algo que emerge de si próprio e também se
encerra em si próprio. Algo que se desvela e se esconde. Por mais que, nesse ser-na-
América-Latina as ideias de cada povo se comuniquem e uma interfira na outra
continuamente fazendo com que seja o que é hoje, percebe-se que esse princípio de uma
natureza auto-emergente já era existente tanto na Grécia Antiga, quanto na África pré-
diaspórica e também na América pré-colombiana.
64

3. ECOFENOMENOLOGIA

A fenomenologia tem sua importância reconhecida em diversas áreas que não


apenas na filosofia, mas também na psicologia, geografia, arquitetura, podendo ser
extrapolada para qualquer outra ciência humanista que considere o valor das experiências
humanas para a contextualização e enraizamento do tema. Apesar das divergências
metodológicas que foram se originando, quando Husserl, pai da fenomenologia,
introduziu seu projeto que valorizava as experiências pessoais em detrimento de respostas
estáticas e universais, ela se explicava pela expressão “de volta às coisas mesmas”. O
ponto de partida então para a investigação filosófica a partir de uma perspectiva
fenomenológica se dá pelo mundo da forma como o experienciamos.

3.1 A contribuição de Heidegger


O discípulo de Husserl, Martin Heidegger, filósofo do qual utilizei de seus
conceitos para o embasamento de um projeto ecofenomenológico neste trabalho, coloca
a fenomenologia em uma situação de “oposição às construções soltas no ar, às descobertas
acidentais, à admissão de conceitos só aparentemente verificados” (HEIDEGGER, 2016,
p. 57). Em “Ser e Tempo” (2016), após analisar os componentes da palavra, notadamente
“fenômeno” e “logos”, Heidegger conclui que sua composição não exprime exatamente
“ciência dos fenômenos”, conforme poderia se inferir. O filósofo, contudo, parte para a
interpretação a partir de uma íntima conexão entre as palavras. Essa conexão então,
segundo ele, traz o significado de “deixar e fazer ver por si mesmo aquilo que se mostra,
tal como se mostra a partir de si mesmo” (HEIDEGGER, 2016, p. 65).
A fenomenologia, ao partir da apreensão dos fenômenos por um ponto de vista
originário ou intuitivo, possibilita que as formas e estruturas da experiência sejam
discutidas. Além disso, critica também as formas de fazer filosofia que operam
ingenuamente de um ponto de vista “casual, ‘imediat[o]’ e impensad[o]” (HEIDEGGER,
2016, p. 67). Diferentemente de uma realidade metafísica que já se manifesta como
previamente dada, estática, a fenomenologia coloca o campo das possibilidades em
posição mais elevada do que a da realidade. Conforme afirma Heidegger (2016, p. 69-
70), “[a] compreensão da fenomenologia depende unicamente de se apreendê-la como
possibilidade”. Ao concebê-la como possibilidade, Heidegger viabiliza, além da descrição
dos fenômenos, a dos não fenômenos, onde fenômenos não se manifestam, se velam,
conceito chamado de encobrimento (HEIDEGGER, 2016, p. 66). Finalmente, a
65

fenomenologia busca então descrever as experiências e desencobrir fenômenos


experienciais permitindo a discussão do discurso filosófico que tenha sido previamente
dado.
Ao acrescentar à palavra o componente “eco”, de origem do grego oikos (“casa”),
conforme o sentido utilizado pelo biólogo alemão Ernst Haeckel, pai da ciência conhecida
por ecologia, chegamos ao que se chama ecofenomenologia. Para Haeckel, sua ciência se
ocupava do estudo do ambiente natural, o que incluía as relações dos organismos entre si
e com o meio do qual faziam parte (ODUM, 2015, p. 3). Fenomenologicamente, este meio
do qual se discute seria o que para Heidegger é chamado de “mundo circundante”
(Umwelt). De todos os sentidos discutidos da palavra “mundo” em “Ser e Tempo” (2016),
esse é o que mais se aproxima do dasein cotidiano (HEIDEGGER, 2016, p. 114).
Enquanto que para Husserl Lebenswelt é considerado o “mundo da vida”, Heidegger
(2016) enfatiza que essa palavra vai além de um sentido espacial. Seu caráter espacial só
poderia ser entendido através de uma estrutura que o filósofo categoriza como
mundanidade. Por sua vez, “mundanidade” ele explica como sendo “um conceito
ontológico e significa a estrutura de um momento constitutivo de ser-no-mundo”
(HEIDEGGER, 2016, p. 111). Não me atenho aqui à complexa discussão da
mundanidade, contudo, Heidegger aproveita, ao introduzir tal conceito, para fazer uma
crítica à ontologia tradicional que, além de ter mal interpretado tal fenômeno
movimentando-se num beco sem saída, propagou seu erro no entendimento da “natureza”.

Um passar de olhos pela ontologia tradicional mostrará que, junto com a


ausência da constituição [do dasein] como ser-no-mundo, também se salta por
cima do fenômeno da mundanidade. Em seu lugar, tenta-se interpretar o mundo
a partir do ser de um ente intramundano e, ademais, de um ente intramundano
não descoberto como tal, ou seja, a partir da natureza. Entendida em sentido
ontológico-categorial, a natureza é um caso limite do ser de um possível ente
intramundano. [O dasein] só pode descobrir o ente como natureza num
determinado modo de seu ser-no-mundo. Esse conhecimento tem o caráter de
uma determinada desmundanização do mundo. Enquanto conjunto categorial
das estruturas de ser de um ente determinado, que vem ao encontro dentro do
mundo, a “natureza” nunca poderá tornar compreensível a mundanidade. Do
mesmo modo, o fenômeno “natureza”, no sentido do conceito romântico de
natureza, só poderá ser apreendido ontologicamente a partir do conceito de
mundo, ou seja, através da analítica [do dasein] (HEIDEGGER, 2016, p. 113).

À primeira palavra “natureza” do trecho anterior, Heidegger (2016, p. 540)


acrescenta em nota “‘natureza’ aqui entendida kantianamente, no sentido da física
moderna”. Buscando que sentido seria esse ao qual é feito referência, temos a partir de
“Primeiros princípios metafísicos da ciência da natureza” a declaração de Kant (1990,
p.14)
66

A natureza, tomada nesta acepção da palavra, e segundo a diferença


fundamental dos nossos sentidos, tem duas partes principais: uma contém os
objetos dos sentidos exteriores, a outra o objeto do sentindo interno; por
consequência, é possível uma dupla teoria da natureza – a doutrina dos corpos
e a doutrina da alma: a primeira considera a natureza extensa, e a segunda, a
natureza pensante

Ambas as formas apresentadas por Kant (1990) são problemáticas para a filosofia
heideggeriana por limitar a natureza, seja res cogitans, ou coisa pensante, seja res extensa,
ou uma natureza corporificada. Ainda assim, Heidegger (2016) no trecho acima foca em
fazer referência especificamente à natureza extensa, ou sólida, conforme estudada pela
física moderna. Porém, as coisas sólidas são apenas uma parte ínfima do que podemos
interpretar da natureza.
A crítica exposta por Heidegger deixa aberto o caminho para que novas
possibilidades de sentido de “natureza” venham a ser discutidos a partir da
fenomenologia. Podemos pensar a fenomenologia não apenas como um conceito, mas
como uma atitude a qual podemos replicar em nossa relação com a natureza pela
ecofenomenologia. O filósofo, apesar de ter aberto o caminho para a discussão, nunca
chegou a se dedicar sobre esse tema especificamente. Porém, conforme visto acima, não
apenas instiga a discussão como contribui com outras temáticas facilmente replicáveis
para repensar a questão ecológica. Além disso, o assunto aparece recorrentemente de
forma coadjuvante ao longo de sua obra para fundamentar suas argumentações. Storey
(2015) no livro onde se dedica a identificar a contribuição de Heidegger para a temática
ambiental, divide sua obra em dois momentos de acordo com esse tema. Um primeiro, no
qual se situa “Ser e Tempo” (1927), onde aponta a virada ontológica como uma drástica
mudança no entendimento da humanidade sobre o ser, o qual permitiria os seres humanos
viverem autenticamente. Na segunda parte estaria sua preocupação com a discussão sobre
“habitar a terra”, assim como com a questão da técnica moderna. Justamente por estas e
outras discussões que vem a ser levantadas, alguns estudiosos o reconhecem como um
proto-ecofenomenólogo (STOREY, 2015, p. 11).
Dentre as correntes dos movimentos que buscam a discussão da temática
ambiental, um dos que mais se destacam que buscou fundamentação na filosofia
heideggeriana é a chamada Ecologia Profunda (Deep Ecology). A Ecologia Profunda é
um movimento tanto político quanto intelectual que se aproxima do filósofo alemão ao
tencionar a discussão de “uma proposta de planejamento ambiental que parta do mundo-
vivido e da consciência ecológica – e não de paradigmas da ética ambiental ou do
ambientalismo” (BRANDÃO, 2017, p. 78). Para que tal ocorra é necessária uma
67

reorganização radical da sociedade o que só se torna possível a partir de uma mudança na


forma como a humanidade se enxerga no mundo. A arquiteta e urbanista Gabriela
Brandão (2017, p. 77) em seu ensaio sobre a ecologia profunda, destaca a importância da
“experiência direta dos fenômenos” para o movimento, principalmente devido à proposta
de experiência sensível. “A experiência sensível em ecologia profunda é proposta com
objetivo de sentir a ecologia profunda em vez de apenas apreender intelectualmente seus
princípios” (BRANDÃO, 2017, p. 77). A ecologia profunda possui entre seus objetivos o
de se identificar com a natureza, o que ocorreria precisamente apoiado na ideia de
repensar a essência dos seres, fora dos moldes que foram propostos pela metafísica
clássica. Ou seja, só seria possível repensar a sociedade e suas relações partindo da
“virada ontológica” proposta por Heidegger. A compreensão sobre a ecologia profunda
se aprofunda a proporção de que esta é entendida ontologicamente (BRANDÃO, 2017,
p. 77). Nesse ensaio, Brandão (2017, p. 89) ainda explicita a atuação da experiência do
ser-no-mundo como um caminho para a ética ambiental, ou seja, a partir da
fenomenologia da percepção que possibilita a experiência sensível.

Nesse sentido, em última instância a ecologia profunda influenciará sim em


uma nova ética ambiental e no ambientalismo, mas não apenas isso, pois, ao
fundar uma percepção do mundo-vivido a partir de uma experiência sensível
da relação intrínseca dos fenômenos da Terra, esta é agregada nos modos de
manifestação e expressão do ser-no-mundo – entendimento, pensamentos,
atitudes. Um planejador ambiental que tenha como base paradigmas que
compõem um método para ética ambiental planejará de modo muito distinto
daquele que tem como base uma consciência ecológica ampla fundada na
experiência direta da interdependência dos fenômenos. Este último pode
associar ao seu planejamento os paradigmas do método, mas o primeiro não é
capaz de associar a experiência da conexão entre os fenômenos a menos que
ele a viva. (BRANDÃO, 2017, p. 89)

Segundo Storey (2015), em uma plataforma publicada com oito diretrizes na qual
se baseia a ecologia profunda, seu criador, o filósofo Arne Naess, defende inclusive a
ideia de que “a vida humana e não humana, assim como coletivos humanos e não
humanos, incluindo espécies, habitats naturais, e culturas humanas, possuem valor
inerente que a biodiversidade é um valor intrínseco”27 (STOREY, 2015, p. 16). Tal ideia
se relaciona com a “bioequalidade”, a crença de que todas as coisas que possuem vida
têm valor moral igual e uma forma originária de se colocar no mundo vivido.
Outros pontos em comum a serem apontados conforme Devall e Sessions (1985)
são: a priorização pelo pensamento meditativo, profundamente reflexivo e receptivo ao

27
Tradução livre do original: “... possess inherent worth and that biodiversity is an intrinsic value”
68

ser, em contraposição ao pensamento calculativo, não reflexivo e esquecedor do ser;


afeição pelos pré-Socráticos; crítica à Gestell, ou enquadramento da técnica moderna; e
seu apelo aos humanos para habitar poeticamente a terra.28
Talvez seja este último ponto a peça-chave, o principal horizonte almejado pela
ecofenomenologia. “Habitar”, para Heidegger, tem sua essência na poética, e é nessa onde
se encontra a capacidade fundamental do habitar. Conforme ele diz, “[s]e o poético
acontece com propriedade, o homem habita esta terra humanamente” (HEIDEGGER,
2008c, p. 180). É a partir desta forma poética de interpretar o “habitar” que o filósofo
expõe seu entendimento do que seria o propósito principal dos movimentos
ambientalistas: como podemos salvar a terra.

Os mortais habitam à medida que salvam a terra [...]. Salvar não significa
erradicar um perigo. Significa, na verdade: deixar alguma coisa livre em seu
próprio vigor. Salvar a terra não é assenhorar-se da terra nem tampouco
submeter-se à terra, o que constitui um passo quase imediato para a exploração
ilimitada (HEIDEGGER, 2008b, p. 130)

Por “terra” podemos entender aqui “natureza”, conforme um dos oito sentidos de
natureza identificados por Foltz (1995, p. 166) na obra de Heidegger. Esse sentido da
palavra “terra” como “natureza” também é encontrado em “A Origem da Obra de Arte”
(2010) e fica mais compreensível no trecho em que Heidegger a descreve: “Ela [Terra] é
a que faz surgir e que abriga. A Terra é a que não sendo forçada a nada é sem esforço e
infatigável. Sobre a Terra e nela o homem histórico fundamenta seu morar no mundo”
(HEIDEGGER, 2010, p. 115). A filósofa Solange Costa (2014, p. 127) enfatiza que já
esse sentido de “terra” não se refere a uma natureza cuja existência é completamente
autônoma, mas ao “modo como [ela] ganha sentido a partir de um mundo estabelecido
em relação ao fazer e habitar humano”.
O primeiro passo, portanto, para que se torne possível salvar a natureza apoiado
na ecofenomenologia é dado em direção a um esforço de entender o que é natureza.
Repetindo as palavras dos ecofenomenólogos Brown e Toadvine (2003), que se baseiam
na máxima de Husserl, é fazer um “retorno à terra mesma”. A este sentido, além do

28
Apesar de ser um ponto polêmico pelo fato de o filósofo nunca ter se posicionado explicitamente, alguns
críticos sustentam que existem barreiras para considerá-lo um pensador ecológico pelo fato de atribuir a
primazia ontológica aos humanos, assim como por sua insistência em não admitir evidências biológicas de
que humanos são animais. Em “Eco-phenomenology”, Zimmerman (2003) acrescenta sua relação com o
partido nazista e sua falta de interesse em considerar a cosmologia (ZIMMERMAN, 2003, p. 86). Storey
(2015) ainda inclui como barreira as ressalvas de Heidegger sobre a ciência, incluindo sua rejeição ao
darwinismo, devido à influência do filósofo e biólogo Uexküll.
69

sentido husserliano de trazer as coisas de volta ao que elas são fora de suas representações,
acrescento a necessidade de um retorno à terra como reenraizamento. Não apenas graças
a um modo de pensar ocidental que se galgou na metafísica clássica, conforme criticado
por Heidegger, mas também devido à cultura do consumo, nossa relação com a natureza
foi desenraizada porque seu sentido como physis foi perdido. Para que possamos retomar
essa relação de forma autêntica, poética, originária, emerge a necessidade de retornarmos
ao sentido de nossa raiz. E nossa raiz se encontra nessa terra, terra como natureza, a qual
antes de tudo é preciso entender de que forma podemos compreendê-la. Para Heidegger,
esse sentido é originário do grego physis, conforme discutido no capítulo anterior.
O segundo passo, após compreender a natureza fenomenologicamente, é
reconstruir essa relação mais estreita entre os organismos nos diversos níveis ecológicos,
o que Brown e Toadvine chamam de uma “ecologia filosófica” (BROWN; TOADVINE,
2003, p. xii). A relação buscada aqui, é uma relação que foge da habitual polaridade
sujeito x objeto, conforme utilizado por modelos de investigação cientificistas.
Utilizando-se desse esquema, seria necessário justificar e esclarecer a relação do “dentro”
(= eu, sujeito) com o “fora” (= outros-eus, objetos). Reforçamos aqui o método
fenomenológico heideggeriano para prosseguir na discussão. Este não se preocupa em
desfazer ou responder tal polaridade, mas sim partir de uma condição fundamental desta
relação, ou co-relação.

Sua preocupação volta-se para o antes da polaridade, melhor, para o meio da


co-relação sujeito–objeto. Colocam-se, então, perguntas como: o que significa
fazer uma descrição "da experiência que se dá já sempre", quer dizer, antes da
e na co-relação sujeito–objeto, subjetivo–objetivo? (KIRCHNER, 2016, p.
118)

Procura-se a compreensão da relação fundamentada em sua totalidade. O sujeito,


não é mais um mero sujeito, mas é como um degustador que sente a natureza que o
revolve. Por sua vez, seu entorno não é algo que ocupa o papel de preencher os espaços
vazios, mas toda a infinidade de vidas e não-vidas o convidam a participar dessa
experiência.

Eu mesmo nunca olho realmente a paisagem. Sinto-lhe a transformação


contínua, dia e noite, no grande ir e vir das estações. A gravidade da montanha
e a dureza da rocha primitiva, o crescer contido dos abetos, o brilho luminoso
e simples dos prados em flor, o regato marulhando na montanha durante as
noites longas do outono, a simplicidade dos planos todo cobertos de neve, tudo
isso se apinha, se aglomera e vibra lá em cima através e na existência de todos
os dias. Mas também não se dá em momentos, marcados pelo desejo de uma
imersão no prazer ou de uma compreensão artificial (HEIDEGGER, 1977a, p.
44).
70

Reconhecendo a complexidade das possibilidades de interações ecológicas que se


dão no ambiente, tal polaridade recai em um método reducionista de analisar a natureza,
enquanto que a ecofenomenologia, por sua vez “é a busca das relações do envolvimento
mundano, tanto humano quanto de outras criaturas”29 (WOOD, 2003, p. 213). Desta frase
de David Wood expressa no livro “Eco-phenomenology: back to the earth itself” (2003),
podemos entender por “outras criaturas” a tentativa de Heidegger de incluir à discussão a
relação de animais não-humanos com sua percepção de mundo.
No que diz respeito a esse tema, o filósofo se aprofundou apenas até determinado
ponto. Apesar de seu fôlego filosófico, sabendo de sua finitude nesse sentido, não pôde
dar conta de todas as questões precisando, assim, priorizar umas sobre outras, ainda assim
enfatizo que os demais pontos mencionados aparecem ainda com bastante potência na
discussão do pensamento ambiental. Sobre a animalidade, Storey (2015, p. 38) pontua
que a obra de Heidegger pode ser dividida em três fases nas quais seu pensamento se
modifica. Na primeira, anterior a “Ser e Tempo” (1927), Heidegger se fundamenta na
influência de Aristóteles e Uexküll para tecer argumentos biológicos que o levam a uma
ontologia da vida, o que traz conceitos de “revelação” (Offenbarung), “ser-no-mundo” (in
der Welt sein), “ser-com” (mitsein), permitindo a significação para animais não-humanos.
Na segunda fase, a que inclui “Ser e Tempo” (1927) e “Conceitos Fundamentais da
Metafísica” (1983), ele admite que os animais são dotados de mundo (Umwelt), porém,
neste segundo livro determina de acordo com limitações do seu modo de ser que eles são
“pobres de mundo”. Na terceira fase, em “Introdução à Metafísica” (1953) e
posteriormente, ele nega que animais não-humanos tenham mundo e o assunto não é mais
retomado, o que podemos inferir que seu interesse nessa discussão tenha sido perdido.
Como com relação a essa discussão da animalidade a obra de Heidegger ficou
inconclusa, acrescento uma quarta opinião, a do fenomenólogo francês Maurice Merleau-
Ponty que em seu livro “A Natureza” (2006) considera não apenas que os animais não
humanos sejam dotados de mundo, como possuem percepções diferentes. Merleau-Ponty,
assim como Uexküll, distingue os animais não-humanos em duas categorias: a dos
inferiores e a dos superiores. Os inferiores, como os ouriços, possuem Umwelt, mas são
adaptados inteiramente para viver apenas naquele meio. Os superiores, por sua vez, são
dotados de um “mundo em contrapeso” (Gegenwelt), possuem sistema nervoso e podem
viver em um mundo exterior que seja cópia do mundo ao qual estão acostumados.

29
Tradução livre do original: “Eco-phenomenology is the pursuit of the relationalities of worldly
engagement, both human and those of other creatures”.
71

A ecofenomenologia brota então deste terreno da filosofia ambiental como uma


alternativa que preenche esse vazio que havia ficado em suspenso. Devido ao seu caráter
abrangente, Wood (2003) considera que ela se desdobra de uma junção entre uma
fenomenologia ecológica e uma ecologia fenomenológica, que não encerra seu acesso à
natureza pelo conceito das ciências naturais nem da metafísica clássica. A
ecofenomenologia permite a discussão transpassando fronteiras, sejam éticas,
metodológicas, epistemológicas ou culturais.

3.2 Ecofenomenologia latino-americana


Por esse motivo justamente a ecofenomenologia não se prende a territórios fixos.
Ela se permite viajar, absorver diferentes perspectivas de natureza de acordo com o
terreno visitado. Essa característica surgiu como de grande importância pois, na etapa de
buscar referências bibliográficas sobre a ecofenomenologia, constatei a predominância de
material sobre esse tema vindo de filósofos europeus ou norte-americanos. Mesmo
considerando que tenham sido estes territórios os berços dos principais movimentos
filosóficos, entre os quais a própria fenomenologia, causa estranheza a percepção de que
tal assunto tenha tão pouca discussão desdobrada em uma região onde filosofia ambiental
já tenha atingido considerável estágio de maturidade. O filósofo norte americano Henry
David Thoreau é recorrentemente citado em livros de pensadores ambientais devido à sua
experiência contado em “Walden” (1854) onde vai ao encontro da natureza em seu estado
com menor intervenção humana. Conforme James (2009, p. 83) explica, é a partir deste
fato que Thoreau infere que não seria a pessoa que ele é se não fosse por seu envolvimento
“com a natureza selvagem”. Brown (2003) concorda que a experiência de mundo que
Thoreau expõe é uma parte integral do mesmo e sua observação permite descrever amplas
possibilidades de mundo. Como a fenomenologia parte do respeito à experiência, ela
fundamenta na experiência o seu significado. Contudo, conforme aponta criticamente o
escritor uruguaio Angel Rama (1985, p. 88), “[e]ntre os latino-americanos não houve em
todo o século XIX um Thoreau, que fosse viver na natureza, a proclamar suas glórias e a
escrever seu Diário [itálico no original]”.
O geógrafo francês Éric Dardel (2011), ao buscar um traço humanista à geografia,
recorre à fenomenologia como um método de apreensão da realidade circundante.
Conforme escreve David Davim (2016, p. 250) em sua resenha sobre o livro “O Homem
e a Terra: natureza da realidade geográfica” (1952), para Dardel, “as condições
fundamentais de apreensão de mundo, em meio à existência” são oferecidas precisamente
72

pela “experiência existencial ocorrida em meio a uma adesão contigua (ou cumplicidade
entre homem e terra”. A terra, entendida aqui ainda como physis30, “sempre é em relação
ao homem e o modo como ele habita seu mundo” (COSTA, 2014, p. 127), sendo o
“habitar” a experiência existencial construída entre eles.
Recorro aqui a uma condição, a qual Fernanda de Paula (2015) em seu artigo sobre
geopoética chama por “Condição Corpo-Terra”. Essa é a condição na qual nos
manifestamos como corpos sensíveis e a experiência do encontro desse meu corpo se
relacionando com o lugar é por ele afetado. “Em suma, meu corpo não é apenas um objeto
entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons,
vibra para todas as cores...” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 317). Pelo outro lado, a Terra
se coloca à disposição para convidar meu corpo, convite esse “com um tom de obrigação”
(DE PAULA, 2015, p. 61). Me apropriando do exemplo da autora, que se utiliza de um
auditório para ilustrar como esse corpo é convidado pelo lugar, tenciono a imaginação a
um exemplo que siga o caminho da latinidade, ou pelo menos de um morador do Rio de
Janeiro. É como se estivéssemos sentados na areia da praia (Ipanema talvez) e o mar com
sua variação de azuis, indo do claro até o mais escuro, passando por tonalidades de verde,
convidasse todos que sentem o calor do sol em suas peles a dar um mergulho. O barulho
das ondas quebrando praticamente deixa alguns hipnotizados com o som que se repete
seguindo determinado padrão de intervalo de tempo. Ao grito súbito do vendedor de mate
que destaca por ser mais alto que o das ondas, as cabeças são convidadas a se voltar e
olhar de onde este vem.
Busco na ecofenomenologia uma contribuição que se faz essencial na geopoética
e na ecologia profunda que é a força do processo descritivo das experiências “nascidas da
relação do ser-no-mundo com a Terra, e produtoras de sensações e percepções peculiares”
(BRANDÃO, 2017, p. 82). Essas descrições são responsáveis também por fazer brotarem
sensações, que não brotam “[nem] da Terra, nem do homem, mas do encontro entre
ambos”. Assumo que na primeira vez em que li “Eco-Phenomenology: Back to the Earth
Itself” (2003) me senti decepcionado por estar esperando um postulado no qual se

30
Conforme explicita DAVIM (2016, p. 250), “[a] terra para Dardel (2011) [...] é uma materialidade dotada
de vida, potência e dinamismo próprio. Deste modo, a terra, assim como o espaço geográfico, é a própria
matéria, a substância gasosa que compõe os céus (espaço aéreo); as águas que formam os oceanos os rios e
lagos, assim como o gelo que caracteriza as formações glaciais (espaço aquático); a areia que se espraia por
costas e desertos, as rochas que se consolidam em serras e montanhas, o solo e a vegetação que compõe
campos e florestas (espaço telúrico); o concreto, o aço e o vidro que sustentam as cidades e suas
infraestruturas (espaço construído). Trata-se de um espaço vivo, móvel e que nos afeta como em uma
espécie de combate, oferecendo acolhimento, obstáculo, estímulo e resistência à liberdade de construir e
habitar do humano”.
73

detalhasse o que seria a ecofenomenologia. Encontrei, porém, um compilado de artigos


nos quais boa parte se dedicava à descrição de paisagens ou de sensações, como o de Irene
Klaver (2003) que fala sobre a fenomenologia das pedras (ou rochas), o que achei, nesse
caso em particular, bastante incomum.
Reenraizando o poder da descrição para observar como se manifesta a relação ser
humano e natureza na América Latina, Nancy Mangabeira Unger escreveu um livro no
qual conta sua experiência e encontros ao atravessar o Rio São Francisco de sua foz à sua
nascente. Em determinado trecho, ela relata uma celebração ao santo de mesmo nome do
rio da qual participou na comunidade de Bom Jesus, em Minas Gerais. Durante a
peregrinação são feitas saudações às diversas espécies que possuem uma intrínseca
relação com o rio. Dentre elas, aos peixes, que se dá conforme a seguir:

Sobre os peixes,
surubim, dourado, matrixã,
piranha-preta, mandim, pocomã,
pescada, curimatá, pirambeta,
piau-de-cheiro, piau-cavalo, piranha-amarela,
pirá, piaba, molão,
sardinha, corvina, maria-oião,
E todos os que vivem nas águas (UNGER, 2001, p. 67)

Conversando com a filósofa, um dos moradores da comunidade, chamado por seu


Chico, assim como o rio, compartilha de sua alegria: “[o] que eu achei mais bonito foi a
gente rezando na beira do rio e os peixes tudo alegre, ouvindo a gente dizer o nome deles”
(UNGER, 2001, p. 67). Essa mesma alegria é compartilhada por outro ribeirinho, seu
Valdemar, que Unger encontra mais tarde em uma comunidade em Curaçá, Bahia.
Valdemar que também possui uma relação tão íntima com o rio, que o vive, sente, não
conhece seu Chico. Mas ao saber da história relatada em Minas Gerais, prontamente
confirma sua veracidade: “é coisa que claro que acontece. E eu no momento me recordei
do que aconteceu” (UNGER, 2001, p. 68).
Não se pode dizer que Seu Chico e seu Valdemar sejam ingênuos por
experienciarem estes momentos de tal forma, contudo, suas formas de vivenciar estes
fenômenos estão relacionados muito mais ao âmbito do pensar. O poeta brasileiro Manoel
de Barros resume este mesmo modo de pensar a partir de um simples verso que remete à
essência não só dos sertanejos, mas das demais pessoas que mantém essa intrínseca
relação com a natureza: “[f]ui criado no mato e aprendi a gostar das coisinhas do chão”
(BARROS, 2011).
74

A relação de sacralidade na América Latina aparece dessa forma especial na


natureza não apenas com o rio, assim como visto acima. Aparece também por aquela que
podemos tomar como sendo a semente que fará brotar córregos, riachos, rios. Aquela que
será a fonte para alimentar lagoas, lençóis freáticos e açudes, ou seja, a chuva, constitui
com o latino-americano uma relação que também é transcendida para o campo do sacro.
Talvez pela especificidade geográfica que se encontra em países do hemisfério sul, falo
aqui do regime de secas, a chuva ganha fundamental importância na vida das pessoas que
moram nessas regiões que acumulam longos meses consecutivos sem que as valiosas
gotas d’água caiam do céu. Seja para São Pedro (catolicismo), Oxumaré (iorubá), Tupã
(tupi-guarani), Viracocha (inca), as preces pela chuva fazem com que essa seja preenchida
de um sentido especial para quem dela precisa.
Em “...poeticamente o homem habita…”, Heidegger (2008c, p. 165) questiona
“como entender que ‘o homem’, ou seja, que cada homem habite sempre poeticamente?”.
Respondo que é através desse sentido que encontram para a chuva que milhões de homens
e mulheres encontram nela sua poesia. É pelo meio de suas súplicas a entidades superiores
pedindo esse fenômeno atmosférico que proporciona a vida que eles encontram a práxis
para o verso no qual Hölderlin diz que “poeticamente o homem habita a terra”
(HÖLDERLIN, 2012, p. 257).
Essa poesia se popularizou internacionalmente pela voz de Marisa Monte que dá
sonoridade à composição de Carlinhos Brown, na música “Segue o seco” (1994),
cantando essa relação particular com a chuva, inclusive manifestando como
intrinsecamente o simbolismo religioso está presente nos fenômenos naturais.

Ó chuva vem me dizer


Se posso ir lá em cima
Prá derramar você
Ó chuva preste atenção
Se o povo lá de cima
Vive na solidão

Se acabar não acostumando


Se acabar parado calado
Se acabar baixinho chorando
Se acabar meio abandonado
Pode ser lágrimas de São Pedro
Ou talvez um grande amor chorando
Pode ser o desabotoado céu (BROWN, 1994)

O escritor peruano Mario Vargas Llosa é outro que se rende à mágica


proporcionada pela chuva quando no livro “A Casa Verde” (1966) esta chega na desértica
cidade de Piura, terceira cidade mais antiga fundada pelos espanhóis na América do Sul,
75

e na qual se desenrola o romance. Este fenômeno, considerando o conceito de “fenômeno”


em termos tanto das ciências atmosféricas, como da ontologia que, para Heidegger (2012,
p. 75), significa “aquilo que se mostra como tal, em seu mostrar-se”, é descrito
poeticamente começando pelo vento, como se este fosse um privilegiado modo de ser da
chuva.

Ao cruzar a região das dunas, o vento que desce da cordilheira se abrasa e


endurece: armado de areia, segue o curso do rio e quando chega à cidade
aparece entre o céu e a terra como uma deslumbrante couraça. Ali esvazia suas
entranhas: todos os dias do ano, à hora do crepúsculo, uma chuva seca e fina
como serragem de madeira, que só pára à alvorada, cai sobre as praças, os
telhados, as torres, os campanários, as sacadas e as árvores, e assoalha de
branco as ruas de Piura. (LLOSA, 1987, p. 27)

A chuva é também por sua vez um dos principais personagens de um dos maiores
clássicos da literatura latino-americana, e certamente não por acaso. Em “Cem anos de
solidão” (1967), Gabriel García Márquez por diversas vezes retoma a ela. Ela aparece,
seja molhando outros personagens num final da tarde, até a devastadora chuva que dura
quatro anos e é responsável pela apropriação histórica de uma das cenas mais violentas
da cidade de Macondo, evento que tão bem representa o que Walter Benjamin traz em
“Teses sobre o conceito de história” (1940), onde afirma que."[a] empatia com o vencedor
beneficia sempre, portanto, esses dominadores. [...] Todos os que até hoje venceram
participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos
que estão prostrados no chão." (BENJAMIN, 1985, p. 225).
O livro começa com a fundação de Macondo, um povoado que representa tão
fielmente a história de milhares outros povoados latino-americanos. A árvore genealógica
de seus fundadores é enraizada na descendência espanhola e indígena, assim como a de
tantos povoados latino-americanos, e que reforça a presença de elementos de ambas as
culturas. No trecho onde Gabriel García Márquez descreve a matriarca precisando de
ajuda na criação das crianças, ele diz:

Recomendaram-nas Visitación, uma índia guajira que chegou ao povoado com


um irmão, fugindo de uma peste de insônia que flagelava a sua tribo há vários
anos. [...] Foi assim que Arcadio e Amaranta falaram a língua guajira antes do
castelhano e aprenderam a tomar sopa de lagartixas e a comer ovos de aranhas,
sem que Úrsula reparasse (MÁRQUEZ, 1994, p. 25).

Além de perceber como se dá essa relação de culturas diferentes, neste trecho há


também a presença de receitas que podem parecer incomuns diante da forte influência
que a indústria farmacêutica exerce em nossas vidas. Identifica-se aqui mais uma relação
com a natureza que se encontra muito forte na América Latina: o seu poder medicinal.
76

Algumas sopas incomuns para o cardápio ocidental podem ser ricas em nutrientes, assim
como raízes terem propriedades específicas para algumas doenças, conforme
(MÁRQUEZ, 1994, p. 20) mostra: “‘Estes meninos andam sorumbáticos’, dizia Úrsula.
‘Devem estar com lombrigas.’ Preparou-lhes uma repugnante poção de erva-de-santa-
maria amassada”.
Das pessoas que possuem grande conhecimento para buscar remédios na natureza
estão as benzedeiras. Essas mulheres se encontram espalhadas por praticamente toda a
América Latina e, conforme explica o antropólogo João Baptista Borges Pereira, “no
Brasil, a benzedeira passa elementos sincréticos, misturados, com influências indígenas e
africanas, ligada às influências portuguesas” (MARTINS, 2017). Não apenas um exemplo
da singular religiosidade que surge a partir desse sincretismo, elas representam uma forte
relação com as espécies de vegetais que compõem o ambiente onde vivem. O
conhecimento das receitas e propriedades terapêuticas dos vegetais tradicionalmente não
são obtidos através do estudo de botânica, mas sim passados pela oralidade de uma
geração para a outra. O que conta muito nessa atividade mais uma vez é a experiência, já
que, quem costuma exercer o papel de benzedeira geralmente são as pessoas de mais idade
da família.
Essas práticas e receitas podem causar certo espanto a quem tem contato com elas
pela primeira vez, contudo, assim como diz Carneiro Leão (1997, p. 13 apud. UNGER,
2001, p. 137), “o espanto se tornou logo curiosidade e a busca do interessante substituiu
rapidamente a admiração”. Esse mesmo espanto é a semente do pensamento filosófico. É
ele que impulsiona a investigação ao aguçar a curiosidade. Essa abertura ao não-saber,
que para Heidegger é “abertura ao mistério” permite um novo enraizamento do
conhecimento. O mistério, por sua vez, abre o caminho para a contemplação, ou o
pensamento meditativo, o qual, conforme discutido anteriormente, permite observas as
coisas como elas são.
Essa forma de reflexão demonstra as diversas nuances a partir das quais os latino-
americanos se envolvem com a natureza. Um exemplo emblemático de uma dessas formas
através da qual lidamos com a natureza é a Floresta da Tijuca, a qual mencionei
anteriormente como tendo sido um ambiente no qual passei expressiva parte de minha
infância e adolescência. Conforme conta Aderbal Moreira Costa (2008), que coordena
organizações de manutenção e resgate do complexo cultural dos povos tradicionais de
terreiros, no tempo do Império, a monocultura do café cultivado na região por grandes
fazendeiros e proprietários portugueses foi a responsável por severos impactos ambientais
77

entre os quais erosão do solo pela perda da vegetação nativa e, consequentemente, redução
na disponibilidade de recursos hídricos, sendo essa região o abrigo de nascentes de
diversos rios que servem à cidade carioca. Devido a essa escassez hídrica, a população
começou a sofrer com uma série de faltas d’água fazendo com que Dom Pedro II tivesse
que intervir. A solução da intervenção foi o reflorestamento da enorme área e recuperação
dos mananciais, que teve como resultado o “primeiro reflorestamento heterogêneo (com
espécies diversificadas) do Ocidente”! (COSTA, 2008). Atualmente, essa região que se
tornou um Parque Nacional possui, mesmo que plantadas por ação antrópica, uma enorme
diversidade de flora nativa característica do bioma Mata Atlântica. Conforme Costa
(2008) conta:

O sucesso desse projeto teria sido impossível sem a participação maciça da


população, que se empenhou em recuperar a floresta, [...] a sobrevivência da
floresta foi assegurada pela ação e engajamento espontâneos da população.
Mais que isso: quilombos e comunidades indígenas ocupavam boa parte da
área, e tudo indica que a cultura de preservação ambiental de matriz indígena
e africana assegurou a mobilização e o compromisso de grande parte da
população que ali habitava, assim garantindo efetivamente a reposição da
vegetação. (COSTA, 2008, p. 154-155)

Para o autor, é essa uma evidente amostra da cultura florestal afro-ameríndia.


Talvez apenas devido à práxis de uma população com tal característica demográfica onde
há a expressiva constituição de povos com uma forte cultura florestal, no que se inclui
suas religiões, que o projeto de uma floresta tropical secundária dessa magnitude consiga
ser tão bem sucedido. Essa cultura florestal afro-ameríndia inclusive a aprece mais uma
vez marcada na literatura evidenciando como a influência dessa herança se encontra
presente cotidianamente. A árvore sagrada para os povos, ambos afros e ameríndios, a
gameleira, aparece com papel de importância no conto “A terceira margem do rio” de
Guimarães Rosa. Neste conto, onde o pai do narrador decide ir viver à deriva no rio,
morando em uma canoa, era justo na gameleira que ele encontrava alimento para poder
sustentar seus dias no rio. “Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua
luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase;
mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira [...]” (ROSA, 2001, p.
82).
A natureza não é apenas a fonte que fornece a alimentação, a moradia e os recursos
de trabalho do latino-americano, mas ela é também rica de significações religiosas,
crendices, tem poderes curativos. Certamente não afirmo que esta forma na qual o latino-
americano se relaciona com a natureza tenha se fundamentado na filosofia de Heidegger,
78

mas ao longo do trabalho pude perceber o quanto diversos elementos mostram que suas
formas de pensar encontravam-se em algum grau alinhados. Esta forma “ingênua” de
conceitos teóricos, mas que se explicitam através da práxis ecofenomenológica do latino-
americano se traduz a partir da frase que Chico Mendes em certa ocasião diz para sua
amiga de lutas Marina Silva: “Nega velha, isso que a gente faz aqui é ecologia. Acabei de
descobrir isso no Rio de Janeiro” (LÖWY, 2014, p. 16).
79

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Era na província, mais especificamente na Floresta Negra, onde Heidegger


conseguia ter seu contato, digamos talvez mais íntimo ou mais reservado com a natureza.
Nesse local praticava esqui durante o inverno e dava caminhadas com Edmund Husserl,
Hans-Georg Gadamer, Karl Löwith, Karl Jaspers, Jean Beaufret entre outros (SHARR,
2006, p. 79) durante o verão. É ali também que se encontra uma pequena cabana de
madeira de seis por quatro metros onde o filósofo escreveu boa parte de seus livros,
sentado em uma mesa em frente a uma janela. Conforme ele afirma em “Por que ficamos
na província?” (1934), ali está o seu “mundo de trabalho visto com os olhos curiosos do
turista ou do veranista” (HEIDEGGER, 1977a, p. 44), é ali onde ocorre filosofia, onde
escuta o que “dizem as montanhas, os bosques e as casas dos camponeses”
(HEIDEGGER, 1977a, p. 46).
É quase inevitável não fazer um paralelo entre esse hábito do filósofo e algumas
de suas grandes influências como o Zaratustra de Nietzsche (2007), que por anos viveu
isolado em sua montanha, ou o poeta Hölderlin que por três meses ficou na aldeia
Hauptwil (HEIDEGGER, 1977b, p. 53), mas de onde o seu ato de retornar foi fonte de
inspiração para sua obra. É notória a admiração que o filósofo mantinha pelo poeta e
certamente a linguagem poética de Hölderlin acaba de alguma forma sensibilizando sua
escrita. O frequente retorno de Heidegger entre a Floresta Negra e sua casa em Freiburg-
im-Breisgau também causa alguns impactos como o do que podemos perceber com
relação à sua observação da natureza. Se baseando em um verso que Hölderlin teria escrito
um ano antes de morrer, Heidegger o reescreve aproveitando para remeter, em sua versão,
uma crítica aos impactos ambientais ao afirmar que “[o] brilhar da natureza está poluído
de entulho e lhe é vedado aparecer numa parusia” (HEIDEGGER, 1977b, p. 54).
Heidegger contribui não apenas com seu modo fenomenológico-hermenêutico de
observação e de envolvimento com os fenômenos, o que possibilita radicalizar a
abordagem da temática ambiental, mas também seu questionamento sobre a essência das
coisas o que tenciona repensar de que forma elas se fundamentam. Ao questionar os
fundamentos das ciências, manifesta-se o momento de crise que estas passam. As ciências
naturais, por sua vez, ao questionarmos sobre seus fundamentos, somos remetidos à
objetalidade de seu objeto: a natureza.
Ao situar a discussão na América Latina, busquei observar as possíveis
desenvolturas que poderia ter essa natureza ao considerar um povo onde houve tanta
80

mistura de culturas e hábitos que resultaram nesse ser plural. A crise ambiental, por sua
vez, é global. Apesar de impactos se darem em maior ou menor escala de localidade, eles
ocorrem em algum grau, seja na Europa, na Oceania ou na América, quis ao longo do
desenvolvimento do trabalho discutir sobre o que nós, latino-americanos, temos a partir
de uma ótica da ecofenomenologia. Percebi, a partir do produzir da obra de arte, como
essa relação com a natureza se manifesta. Contudo, com base nas questões levantadas,
quais caminhos temos abertos ainda para trilhar essa ecofenomenologia?
Um ramo das ciências naturais que se propõe a abordar a questão da natureza por
um viés existencialista, o que segue em linha com as perspectivas de Heidegger é a
geografia. A geografia pode ser considerada a ciência vanguardista ao agregar em sua
ementa a discussão sobre uma nova relação entre natureza e sociedade (MARANDOLA
JR, 2017). A preocupação com esse tópico foi enriquecida com o uso da fenomenologia
na experiência geográfica, possibilitando uma ciência com viés mais humanista e novos
valores e experiência ambiental. O resultado é que os estudos desta ciência “têm
contribuído para que a compreensão da relação natureza-sociedade inclua a perspectiva
da experiência” (MARANDOLA JR., p. 14, 2017). Surge a partir daí, então, uma
geografia romântica na qual a paixão se associa com a razão, é uma ciência que permite
que sentimentos sejam vividos. Consequentemente, a problemática ambiental passa, dessa
forma, a ser enxergada a partir de um comprometimento existencial, uma ciência que
compreende a filosofia, “que desvia da geometria em busca da geografia. Essa grafia é a
própria existência humana em sua relação orgânica com a Terra [itálico no original]”
(MARANDOLA JR, 2015, p. xiii). Desdobra-se assim, uma resposta à crise de
fundamentos da ciência, conforme enunciado por Heidegger (2009a), ao se buscar a
essência das ciências, voltando-as para a interdisciplinaridade dos campos do
conhecimento, o que possibilita nesse caso, o da geografia, refletir sobre a relação do ser
humano com a natureza (MARANDOLA, 2015).
Não considero a ecofenomenologia como uma disciplina rígida, onde está definido
severamente seu escopo, mas sim um campo no qual se baseia a interdisciplinaridade. Da
mesma forma, a ecofenomenologia não busca se fundamentar sobre imperativos éticos,
também rígidos, mas o caminho que se segue é o contrário. Conforme afirma a filósofa
colombiana Ana Patricia Noguera “a singularidade do ethos ambiental é que esse emerge
da terra, como território conceitual que permite habitar a terra poeticamente”
81

(NOGUERA, 2017, p. 10)31. Ecofenomenologia lida com a relação que temos com a
natureza, não poderia então ser a geografia humanista estudada por Holzer (1999),
Oliveira (2000) e Marandola Jr (2005) uma ecofenomenologia? Ou, da mesma forma, a
geopoética que também se fundamenta nesse “habitar poeticamente a terra”, assim como
abordado por De Paula (2016), Noguera (2017), Gratão (2002)? Ou ainda a ecologia
cosmocena de Pereira (2016) e a hidropoética de Bernal (2015) e Unger (2001), por mais
que a última não utilize esse termo?
Ao fundamentar a discussão na América Latina, busquei trazer como a
ecofenomenologia se evidencia de forma naturalmente poética, corroborando com o que
afirma Noguera (2017), o pensamento ambiental do hemisfério sul significa habitar
poeticamente a terra para que a vida floresça. Essa forma poética de habitar é que
fundamenta o cuidado e a preservação com a natureza. Para o líder de lutas camponesas
e indígenas peruanas, Hugo Blanco, as comunidades originárias já seguem esses ideais há
vários séculos (LÖWY, 2014).
A América Latina é aqui a terra que sustenta uma grande árvore. Na raiz da árvore
estão as diversas culturas que acabaram dando base para o que é o latino-americano
moderno, que por sua vez é o tronco. Algumas dessas raízes estão tão profundas que não
as conhecemos exatamente, mas ainda assim contribuíram para o crescimento dessa
árvore. Os galhos e folhas, são as diversas formas nas quais a natureza se manifesta
fenomenologicamente, ou auto-emerge. Lima (2019) conta em sua tese sobre o caso de
uma Gameleira que foi cortada e submersa em Yapira após a construção de uma barragem.
No início de 2018, foi realizada uma atividade de retirada de sedimentos, e os payayá
mais antigos, que recordavam da existência da árvore na beira da barragem, ficaram
surpresos ao constatar que sua raiz continuava intacta. Contudo, a árvore não vivia. É
necessário que as folhas se oxigenem, recebam luz continuamente, e se espalhem para
que a vida se preserve.

31
Tradução livre de: “La singularidad del ethos ambiental es que este emerge de la tierra, como territorio
conceptual que permite habitar la tierra poéticamente.”
82

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