Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ecofenomenologia Do Tronco À Raiz Latino-Americana: Gabriel de Almeida de Barros
Ecofenomenologia Do Tronco À Raiz Latino-Americana: Gabriel de Almeida de Barros
ECOFENOMENOLOGIA
Do tronco à raiz latino-americana
TERESINA
2020
GABRIEL DE ALMEIDA DE BARROS
ECOFENOMENOLOGIA
Do tronco à raiz latino-americana
TERESINA
2020
FICHA CATALOGRÁFICA
Universidade Federal do Piauí
Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello
Branco Serviço de Processamento Técnico
CDD 142.7
Verde
INTRODUÇÃO ................................................................................................... 11
1. DO TRONCO À RAIZ .............................................................................. 20
3. ECOFENOMENOLOGIA......................................................................... 64
INTRODUÇÃO
Lembro-me de uma aula durante a graduação onde foi colocado um caso de uma
criança europeia e de uma africana e questionaram a cada uma “o que é natureza?”.
Enquanto que a primeira respondeu ser esta as árvores, os animais não-humanos, o céu a
outra respondeu que a natureza era ela própria, assim como seus semelhantes humanos.
Me questionei então se essa divergência de respostas se daria pelo fato de cada um
experimentar a natureza de uma forma e assim cada um ter uma compreensão diferente.
O que é natureza para uma cultura será vista da mesma forma por outra? Qual o papel dos
humanos na natureza? Para responder essas questões achei necessário antes de tudo me
perguntar a mesma coisa, afinal “o que é natureza?”.
Sem possuir a mesma objetividade e clareza de ideias que uma criança tem como
habilidade, essa pergunta se torna complexa, em certo grau, para nossos cérebros já
carregados de informações difusas. E se invertemos a pergunta, podemos partir para a
negativa: “o que a natureza não é?” Para o escritor uruguaio Eduardo Galeano (2012), “a
natureza não é muda”. Ou seja, a natureza possui voz. Ela reclama quando se sente
ameaçada. O filósofo e biólogo Uexküll escutava a natureza, não apenas através de
queixas, mas de música. Para ele a natureza é uma orquestra que se manifesta através de
uma perfeita partitura musical, na qual cada instrumento exerce sua função encontrando
seus pontos exatos (UEXKÜLL, 1982).
No ano de 1962, porém, a bióloga Rachel Carson sentiu falta da melodia. A
primavera tinha uma característica da sonora presença dos pássaros, mas, naquele ano,
isso não ocorria. Em seu livro “Primavera Silenciosa” (1962), a autora relatou este
ocorrido que, após investigar qual teria sido sua causa, concluiu que tal silêncio era
consequência direta da ação do pesticida DDT nas lavouras. Atribui-se a este episódio o
surgimento do movimento ambientalista. O livro foi largamente repercutido e acabou
tendo como resultado a conscientização da comunidade e este produto químico foi
proibido em diversos países. É por essa época que surgem as primeiras organizações não-
governamentais (ONGs) ambientalistas. A princípio, o ativismo ambientalista se
preocupava pela conservação, com a utilização de pesticidas na agricultura e com a
poluição industrial. Posteriormente foi adquirindo outras formas e agregando outras
preocupações em sua luta, tendo por fim um viés mais de prevenir do que remediar danos
à natureza.
12
1
Tradução livre do original: “In more familiar language, one could say that it reveals itself as a mere
resource, as something to be used and nothing more”.
13
nihilismo e poiesis”2, pois encaminha ao entendimento de terra como sendo nada mais
que um depósito de recursos, seja de energia, de materiais, de alimentos. Heidegger busca
então novamente nas raízes do grego como a tecnologia se posiciona na história do ser.
“Assim, sua afirmação é que a tecnologia sustenta não apenas a ciência, mas também a
metafísica moderna, medieval e antiga” (STOREY, 2015, p. 128)3. Contudo, ao se
caracterizar a tecnologia aparecendo como base para as ciências naturais, ela se manifesta
como uma forma de dominação da natureza. Segundo Storey (2015, p. 128), “a antiga
suposição de que o ser é dasein é agora entendida como a vontade tecnológica de dominar
a natureza, incluindo a natureza humana”4.
Qual seria então o significado da natureza? Longe de procurar uma definição
metafísica, não tenho aqui a intenção de trazer um sentido universal para a palavra, mas
sim o seu sentido ontológico. Com esse propósito, Heidegger realiza o movimento de
retorno ao grego para entender o sentido originário das palavras, pois, a tradição
metafísica e a influência das traduções em nosso pensamento, assim como o uso cotidiano
que desgastaria o sentido primeiro das palavras, são responsáveis pelo esquecimento do
Ser. Por sua vez, a única forma para que a filosofia retome a discussão do ser seria com a
superação da metafísica a partir da “virada ontológica”. Assim, o sentido mais
aproximado no grego da nossa atual “natureza” seria a physis. Heidegger não busca aqui
um estudo etimológico, tampouco uma atividade de tradução que recairia novamente na
metafísica tradicional. Ao buscar o sentido ontológico de physis recorre-se ao sentido
mais essencial desse ser que, vigora a partir de três formas: emergência, desabrochar e
abertura.
Ao trazer a discussão para o contexto latino-americano, como ontologicamente a
natureza pode ser entendida? Para isso considero aqui as possibilidades que foram
somadas ao combinar a diversidade de culturas na qual se construiu a América Latina,
opto por partir de um pensamento situado mas sem deixá-lo preso no tempo ou no espaço.
Assim, desmistificando a ideia de que os povos originários subsistiam a partir de técnicas
primitivas e triviais, é importante lembrar que no período que antecede à colonização, eles
já tinham domínio da agricultura, gestão hídrica e aproveitamento de energia solar.
Segundo a antropóloga que se especializou em povos amazônicos Denise Schaan (2010,
2
Tradução livre do original: “destruction of earth, nihilism, and poiesis”.
3
Tradução livre do original: “thus, his claim is that technology underpins not just science, but also
modern, medieval, and ancient metaphysics”.
4
Tradução livre do original: “The ancient assumption that being is presence is now understood as the
technological will to master nature, including human nature”.
14
p. 75), o povo marajoara que habitou no Pará já tinha um evoluído controle de hidráulica
e reproduziam “técnicas de manejo onde quer que as condições ecológicas fossem
favoráveis”. Enquanto isso, em algumas grandes cidades europeias os primeiros
problemas ambientais já apareciam, como cidades superpovoadas, esgotamento de
recursos locais e doenças devido às más condições sanitárias. O modelo ocidental de
gestão dos recursos naturais, inclusive, foi um dos impulsionadores da corrida das grandes
navegações, que buscavam em lugares cada vez mais longe novas fontes de matérias-
primas enquanto as suas estavam comprometidas. Após um primeiro contato de violência
pura, a colonização se caracteriza pela dominação dos povos nativos e exploração
descontrolada de recursos naturais. Segundo Dussel (1993, p. 50), “[a] América Latina
foi a primeira colônia da Europa moderna”5. Esta sofre um processo europeu de
modernização que se assume a partir de uma “práxis erótica, pedagógica, cultural,
política, econômica” (DUSSEL, 1993, p. 50). Diferente da forma como as cidades se
desenvolveram na Europa, que era a partir do desenvolvimento agrícola possibilitando o
sustento da pólis e seu gradual crescimento, Angel Rama (1985, p. 35) mostra que na
América Latina partiu-se diretamente para a fundação das urbes esperando que daí se
desse o desenvolvimento agrícola. A partir do século XVIII, a modernização se manifesta
nas colônias pelo seu papel de consumidor de insumos manufaturados, ou, área de
descarga de produtos fabricados à exaustão após o surgimento da revolução industrial,
além de serem também as colônias as fornecedoras de matéria-prima para estes produtos.
Na Europa, com a revolução industrial, os problemas ambientais se massificam e as
diversas formas de poluição aumentaram sua exposição no ar, no solo, nas águas. A
colonização, além de exportar a cultura das metrópoles para as colônias, exportou também
as formas de pensar e a industrialização.
Desvela-se então mais uma problemática: quem é este ser latino-americano do
qual falo? Nas palavras de Dussel (1993, p. 51), a América Latina se configura como
“uma raça mestiça, uma cultura sincrética, híbrida, um Estado colonial, uma economia
capitalista [...] dependente e periférica desde seu início”. Como descrever o filho gerado
por esta terra? Mesmo sendo este um evidente fruto da combinação de diversas culturas,
entre as quais predominam a europeia, a africana e a indígena, não busco aqui um recorte
temporal das raízes que o compõe. Caso optasse por este caminho, acabaria negando a
totalidade do ser. Conforme afirma Heidegger (2016, p. 98) “[o] ponto de partida
5
Complementa o autor que “historicamente [a América Latina] foi a primeira ‘periferia’ antes da África ou
Ásia” (DUSSEL, 1993, p. 50)
15
6
Tradução livre do original: “Phenomenology is a method of philosophical research that describes the
forms and structures of experience as well as a critique of those ways of doing philosophy that operate
from a naive standpoint”.
16
filosofia moral, enquanto que uma filosofia fenomenológica da natureza “começa com
descrições de encontros com a natureza da vida-mundana, isto é, a natureza que
experimentamos antes da abstração teórica”7. Ana Patrícia Noguera (2009) acrescenta que
7
Tradução livre do original: “A phenomenological approach to moral philosophy begins with
descriptions of moral experience, while a phenomenological natural philosophy begins with
descriptions of encounters with life-worldly nature, that is, the nature we experience prior to theoretical
abstraction.”.
8
Tradução livre do original: “la filosofía ambiental, orientada por la fenomenología de la Krisis de
Husserl y la fenomenología del habitar poético de Heidegger, se inicia con un cambio radical de actitud:
el paso de una actitud de dominio del hombre sobre la naturaleza a una actitud de reconocernos como
naturaleza en expansión y reconocer que todo lo que hacemos (arte, técnica, tecnología, ciencia y, en
general, cultura) es expansión de nuestro cuerpo, que es naturaleza.”.
17
9
Tradução livre do original: “we should let beings be, letting them unfold their own natural capacities,
whatever those may be; our posture should be one of openness to the manifestation of being; we should
strive for a relationship with technology that does not corrupt nature or our humanity; and so on”.
10
Optei pela tradução de Umwelt como “mundo circundante para facilitar o paralelo com a palavra
Lebesnwelt, sendo que ambas possuem o radical -welt que significa “mundo”.
11
Diferente da tradução de Márcia Sá Cavalcante em “Ser e Tempo” (2016) em que usa “presença”, optei
nesse trabalho pela tradução por Dasein.
18
não é norte-americana nem europeia. E, para entender o sentido que a natureza tem para
os povos que habitam essa parte do continente, é imprescindível que se considere a
experiência que estes têm. Para isso, examino o que já foi desenvolvido nessa região sobre
filosofia ambiental, mesmo que de forma menos conceitual, mas um conhecimento
prático, buscando nos saberes tradicionais a expressão pessoal da relação direta entre
esses povos e a natureza.
Ao entender como se apresenta ontologicamente o latino-americano e já ter
discorrido sobre a importância da fenomenologia para o debate, parto para a discussão
sobre a práxis da ecofenomenologia na América Latina. Poderíamos então apontar a
existência de uma ecofenomenologia enraizada na América Latina? Com base na analítica
existencial discutida anteriormente, se existir essa fenomenologia latino-americana ela
seria fruto de quê? Precisamente pela dificuldade que teria em deduzir a partir de um
pensamento coletivo como este povo apreende a natureza, busco destacar a relação entre
eles a partir de elementos manifestos. E que elementos seriam esses que poderiam elucidar
a pesquisa? Como Heidegger teve grande preocupação com a arte ao longo de sua carreira,
achei aqui pertinente me apropriar também de obras artísticas originadas por mãos latino-
americanas que pudessem representar essa cultura, pois é na obra de arte que o artista, no
caso, o latino-americano tem sua origem, assim como o artista é a origem da obra
(HEIDEGGER, 2010, p. 37). Busco mostrar então como artistas representaram a relação
do latino-americano com a natureza através de poesias, músicas, literatura e pintura, pois,
conforme afirma o escritor mexicano Carlos Fuentes, é nessa dimensão, a da subjetividade
coletiva, que nossa coletividade é encarnada, “[...] ou seja, a nossa cultura” (FUENTES,
2007, p. 19).
Ao longo do trabalho, me aproprio de diversos conceitos trabalhados por Martin
Heidegger ao longo de sua obra que serviram para fundamentar a argumentação. No que
se refere à problemática da crise ambiental, alguns dos livros utilizados foram “Introdução
à Filosofia” (1920) para a discussão da crise das ciências que por sua vez fundamentam
temáticas chaves como, no caso das ciências naturais, a naturalidade da natureza.
“Contribuições à Filosofia: do acontecimento apropriador” (1989) dá a base para a
discussão sobre a ocultação e o desabrigar do ser, que preparam para a discussão da
conferência “A Questão da Técnica” (1953) onde é feita uma leitura da obra aplicando-a
especificamente para a discussão ambiental e complementa-se a discussão com a palestra
“Língua de tradição e língua técnica” (1962) e o discurso “Serenidade” (1965) nos quais
também fala sobre a técnica moderna.
19
1. DO TRONCO À RAIZ
A natureza tem muito a dizer, e já vai sendo hora de que nós, seus filhos,
paremos de nos fingir de surdos. E talvez até Deus escute o chamado [...] e
acrescente o décimo primeiro mandamento, que ele esqueceu nas instruções
que nos deu lá do monte Sinai: "Amarás a natureza, da qual fazes parte".
(GALEANO, 2008)
Como cidadão urbano, criado em uma das maiores metrópoles da América Latina,
a natureza que figurava predominantemente como minha realidade, com a qual tinha
contato, era a natureza de uma selva de concreto. A capital fluminense, ainda assim,
dentre as grandes cidades, é uma das poucas que reserva inúmeras possibilidades para os
aventureiros de final de semana buscarem. Para aqueles que tem mais vigor físico e
energia para superar os obstáculos no acesso, e para os que conseguem se estabelecer em
pontos estratégicos da cidade, é possível manter um contato mais próximo com a natureza
- essa dita aqui no contexto do típico “verde”, ou fauna e flora - o que compreende trilhas
pela Floresta da Tijuca, praias, cachoeiras, lagoas, morros e montanhas. Já para os que
não dispõem de tanta energia, talvez sem tanta disposição ou mesmo tempo de passear
com a família, essa natureza é apresentada por uma realidade metafísica. Não se
experimenta a natureza de forma direta. A natureza é percebida através de documentários
em televisões. Dia do meio ambiente pressupõe plantar uma árvore. Contato com a fauna
é feito por zoológico ou aquário. “O maior da América do Sul!”12 Que garante que animais
marinhos sejam vistos fora de seu habitat. Fora de seu mundo, desprovidos de sua
essência. O contato direto com a natureza pode causar inclusive estranhamento.
O romancista Eça de Queiroz (2006) descreve em “A Cidade e as Serras” como
se dá o contato de um homem urbano, Jacinto, com a natureza
12
Conforme vem exposto no site do AquaRio Porto Maravilha como se fosse motivo de orgulho “Com 26
mil m² de área construída e 4,5 milhões de litros de água, o AquaRio é o maior aquário marinho da América
do Sul e tem mais de 5 mil animais, de 350 espécies diferentes” (RIOMARCA AGÊNCIA WEB, 2019).
21
13
Food and Agriculture Organization of the United Nations. Organização das Nações Unidas para a
Alimentação e a Agricultura.
23
14
Conforme Huntington (2010, p.58), "civilização é definida por elementos objetivos comuns, tais como
língua, história, religião, costumes, instituições e pela auto identificação subjetiva das pessoas".
15
A grafia de “Cosmo” aqui com inicial maiúscula busca representar a sacralidade da palavra que com
novas concepções acabou sendo perdida.
25
Diferente das eras geológicas anteriores, nas quais as transformações ocorriam por
agentes naturais, no Antropoceno o que impulsiona a modificação do planeta é justamente
uma “concepção metafísica, filosófica, ética, científica e tecnológica do mundo” (LEFF,
2010, p. 194). O Antropoceno se caracteriza então por um grande aumento do
consumismo, que impacta diretamente em um maior consumo de energia elétrica,
matérias-primas, aumento da geração de resíduos e gases atmosféricos testando os limites
do poder de auto-depuração do planeta, um processo de canibalização do planeta. “O
16
Conforme Ricardo Dantas cita em sua dissertação “Antropoceno ‘é a Era dos Humanos’. Seu sentido
advém da junção ‘[d]o prefixo grego antropo [que] significa humano; e [d]o sufixo ceno [que] denota as
eras geológicas’ [...] ‘O termo foi proposto por Paul Crutzen [...] para substituir o Holoceno (que começou
há cerca de 10 mil anos). Antropoceno significa que os seres humanos se transformaram em força geológica
que tem o poder de revolver a terra, modificar o ritmo do ciclo de vida da Terra e alterar a química dos
solos, das águas e do ar’ (ALVES, 2017)” (DANTAS, 2017).
26
troca do ser humano com o próprio ser humano. Objetificar os diversos entes com quem
coexistimos tem gerado movimentos autoritários e fundamentalistas que impõem um
modelo de identidade já previamente enquadrada, e dessa forma, aprofundando ainda
mais esse desenraizamento.
Algumas interpretações direcionadas à leitura da Bíblia acabam legitimando a
posição de dominador do ser humano sobre a natureza. Diferente de outras religiões indo-
americanas, orientais e africanas, a doutrina judaico-cristã por vezes se sustenta sobre o
argumento de grandeza antropológica, na qual ocupamos posição de destaque. Na cosmo-
visão africana, assim como na ameríndia, existe uma profunda comunhão e participação
com a natureza, “trata-se de uma dimensão relacional de homem/natureza na sua
individualidade e coletividade integrada” (DOMINGOS, 2011, p. 2) desconhecida pelo
nosso sistema econômico.
Para o teólogo Leonardo Boff, os principais elementos antiecológicos do judaico-
cristianismo são:
Por último, adiciono uma crítica do filósofo tcheco Erazim Kohák que questiona
da parte dessas religiões a visão de um Deus intocável, incoercível como impactante no
contexto da conceitualização da natureza. Para ele, “a natureza parece-nos morta em
grande parte porque nos acostumamos a pensar em Deus como ‘sobrenatural’, ausente da
natureza e que não pode ser encontrado nela” (KOHÁK, 1986, p. 182).
28
filosofia: do acontecimento apropriador” (1989) o que ela era outrora, no período anterior
a Aristóteles. A esta questão afirma que a natureza era “[o] sítio do instante da chegada e
da estada dos deuses, quando ela, ainda φύσιζ, se baseava na essenciação do seer”
(HEIDEGGER, 2015, p. 272).
A “ocultação do ser” teve influências não apenas no que se refere à filosofia, mas,
consequentemente, se aplica ao que se refere às ciências e à relação com a natureza. Para
Heidegger, a ciência tornou a natureza um ente e a expôs “à imposição radical da
maquinação calculadora e economia” (HEIDEGGER, 2015, p. 272) que, por meio da
técnica, provoca a destruição crescente da natureza colocando-a em direção ao seu fim.
aparentava ser inabalável, passam por essa crise. Dessa forma, desponta a reflexão para
“compreender o que significam os fundamentos de uma ciência e em que medida a crise
dos fundamentos revela justamente os limites essenciais da ciência como tal.”
(HEIDEGGER, 2009a, p. 41). Heidegger acrescenta ainda em “Sobre o Humanismo”
(1947) que
1.5 O desabrigar
O conhecimento, por ser uma forma de clarificação adquirida a partir do ser-no-
mundo, é considerado por Heidegger (2007, p. 380) na conferência “A Questão da
Técnica” como uma forma de desabrigar. “Desabrigar”, entende-se como perder ou sair
do abrigo, como um despertar de si próprio, daquilo que é ou simplesmente se transforma
em algo. Já com relação ao “conhecimento”, em sentido amplo, existem dois
correspondentes em grego que andavam em par no período da “essenciação do ser”, ou
seja, dos tempos mais antigos até Platão, que são a episteme (ἐπιστήμη) e a techné (τέχνη).
Em discussão realizada em algumas de suas obras, o sentido de aletheia (αλήθεια)
se envereda por um caminho similar. Em “Ser e Tempo” (1927) a palavra grega, que pode
ser traduzida como “verdade”, toma o sentido de “abertura” (HEIDEGGER, 2016, p. 291)
e se aprofunda em “clareira para o encobrir-se” (HEIDEGGER, 2015, p. 337) em
“Contribuições à Filosofia: do Acontecimento Apropriador” (1989). Neste último livro, a
verdade se assume como a forma primária na qual o ser se apresenta e a partir deste
assume uma dinâmica de se clarear e ocultar. Essa é a essência da verdade, essenciar o
verdadeiro do ser e assim se tornar “origem para o abrigo do verdadeiro no ente, por meio
do que esse ente se torna pela primeira vez presente” (HEIDEGGER, 2015, p. 339). É aí
que reside o sentido tanto de “clareira” quanto de “encobrimento”, pois a verdade permite
que o “ser” continuamente se “encubra” e “desencubra”, “clareie” e “anuvie”. Tais
palavras não assumem uma separação, como se fossem duas coisas separadas e
antônimas, “mas [são] a essenciação do uno, da própria verdade” (HEIDEGGER, 2015,
p. 340). “Verdade” fenomenologicamente não assume um sentido estático, mas se
essencia conforme o ser se encobre ou manifesta a partir do acontecimento apropriador.
Assumir simplesmente o sentido de “desvelamento” seria equivocado, pois esse
desvelamento necessita um “velar” para que se desvele, e assim sucessivamente.
Em seu livro “A Origem da Obra de Arte” (1950), Heidegger explora mais uma
forma a partir da qual a verdade se essencia, que é justamente a partir da arte. O filósofo
conclui que a essência da obra de arte se dá em “pôr-se-em-obra da verdade do ente”
(HEIDEGGER, 2010, p. 87). Podemos entender que a verdade se instaura a partir da obra
de arte. A obra de arte possibilita a abertura para que a verdade seja pensada. “A verdade
encaminha-se para a obra” (HEIDEGGER, 2010, p. 159). Esse encaminhamento ou
desvelamento da verdade a partir da obra de arte se dá a partir de um “produzir” (ποιησις)
que possui como sentido tanto a criação de uma obra, quanto a confecção de um utensílio.
A este produzir, Heidegger assume o sentido de “fazer vir a ser”, “fazer emergir no
33
aberto” (HEIDEGGER, 2010, p. 60). Por mais que seja de fácil assimilação esse duplo
sentido para o “produzir”, o filósofo assume a dificuldade de diferenciação para a essência
para os dois modos de produzir: criar obras e confeccionar utensílios. O “trabalho
manual” traduzido de Handwerk se apresenta como sendo o trabalho que não produz
obras, mas justamente representa o segundo sentido do “produzir”, sendo de fato o
trabalho mecânico, não artístico. Contudo, a criação de obras depende também do
resultado do trabalho a partir das mãos do artesão, o que implica que tenha o mesmo
comportamento “na atividade do oleiro e do escultor, do marceneiro e do pintor”
(HEIDEGGER, 2010, p. 149). De tal forma, ambas as atividades se misturam. Exaltando
o apreço dos gregos para as obras de arte, Heidegger (2010) afirma que estes usam uma
mesma palavra (τέχνίτης) para remeter a artesão (como trabalhador manual) e artista,
assim como usam também o mesmo nome (τέχνη) para “trabalho manual” e “arte”. Isso
se deve ao fato de ambas possuírem o mesmo sentido em se “pensar o produzir em toda
a sua amplitude” (HEIDEGGER, 2007, p. 379).
No ensaio “A Questão da técnica”, Heidegger (2007, p.379) ratifica o sentido do
produzir (ποιησις) para além da confecção manual e da manifestação do poético-artístico
e acrescenta que a φύσις é também um produzir (ποιησις) pois, ela proporciona a irrupção
do produzir a partir de si mesma, a sua auto-emergência. Devido a isso a “φύσις é
inclusive ποιησις no mais alto sentido” (HEIDEGGER, 2007, p. 379). Em contrapartida,
as outras formas de produzir emergem não de si mesmas, mas a partir de outros, no caso,
no artesão e no artista. Logo, são eles os agentes que originam esse produzir. Conforme
o alemão cita de Platão, “[t]odo ocasionar para algo que, a partir de uma não-presença
sempre transborda e se antecipa numa presença, é ποιησις, produzir” (Platão, (s.d.) apud.
HEIDEGGER, 2007, p. 379).
Após enunciadas as formas de “produzir” em sentido amplo, qual delas impacta
nosso meio ambiente pela ação humana? A φύσις por mais que tenha esse sentido,
conforme visto se refere a uma produção de si para si mesma por se apresentar a partir de
uma auto-insurgência. O surgimento de uma flor no florescer, dessa forma, não se trata
de uma produção humana. A produção de uma obra de arte, por mais que seja uma autoria
humana e cause impactos, limita seus impactos ao campo da percepção humana ao
manifestar um “mundo”. Porém, “mundo” na concepção de Heidegger (2010) é sempre
não-objetivo. “Mundo nunca é um objeto que fica diante de nós e pode ser visto”
(HEIDEGGER, 2010, p. 109). Nos preocupamos aqui então com o produzir a partir da
técnica.
34
17
O discurso de Heidegger de 30 de outubro de 1955 foi publicado juntamente com “Para a discussão da
serenidade: de uma conversa sobre o pensamento que teve lugar num caminho de campo” de 1945 em uma
obra denominada “Serenidade”, publicada em 1959, cuja edição em português da Editora Piaget não
apresenta data.
36
1.7 A técnica
Antes de retomar a discussão na qual Heidegger investiga a essência da técnica,
considero ser de apropriado primeiramente entender que técnica é essa da qual se fala,
que se nutre do pensamento calculador, e que se manifesta a partir da “produção”.
Conforme discutido anteriormente, a partir de sua similaridade de sentido com a
palavra episteme (ἐπιστήμη), originalmente a palavra technè (τέχνη) indica, antes de
qualquer coisa, um modo de saber. Por “saber”, o filósofo alemão atribui o significado de
“ter visto, no sentido amplo de ver, o qual significa: perceber o que se presentifica como
um tal” (HEIDEGGER, 2010, p. 151). A essência do saber, no pensamento grego, repousa
na aletheia (ἀλήθεια), ou seja, no desencobrimento do ente. A technè (τέχνη), por sua vez,
“pertence ao produzir, à ποιησις; é algo poético <Poietisches>” (HEIDEGGER, 2007, p.
380). Produzir, novamente, ao ser pensado da forma grega, não assume o caráter de
fabricar um artefato, operar uma máquina para manufaturar algo, mas sim o sentido de
pôr aqui, de trazer “para o manifesto aquilo que anteriormente não era dado como
presente” (HEIDEGGER, 1999, p. 22). Desta forma, technè encontra-se por sua vez
ligada ao âmbito do saber e não ao do fazer. Technè (Τέχνη) é então um produzir do ente.
“Produzir do ente” aqui com o sentido de trazer adiante um ente que se encontrava velado,
permitindo que ele possa aparecer e ser notado.
Conforme já havia sido visto anteriormente, a poiesis é uma forma de aletheia, ao
afirmar que a techné pertence à poiesis, podemos inferir diretamente que “τέχνη é um
modo da ἀλήθειν” (HEIDEGGER, 2007, p. 380). Heidegger, contudo enfatiza que esse
raciocínio sobre a essência da técnica é válido quando se trata do pensamento grego para
a técnica manual, porém não se aplica para “a moderna técnica das máquinas de força”
(HEIDEGGER, 2007, p. 381). E que “moderna técnica” é essa da qual Heidegger fala?
A partir da conferência realizada em 18 de julho de 1962 em Combourg que se
intitulou de “Língua de tradição e língua técnica”, conclui-se que, primeiramente, esta
pode significar “o conjunto das máquinas e dos aparelhos que se apresentam”
(HEIDEGGER, 1999, p. 15), sendo estes dados como “simplesmente a mão”
(Zuhandenheit); pode ser também a produção de tais objetos e; por mais que o filósofo
explicite que não é o sentido ao qual ele se refere, poderia ser ainda “a co-pertença num
conjunto de produtos e de homens ou grupos humanos que trabalham na instalação, na
manutenção e na vigilância das máquinas e dos aparelhos” (HEIDEGGER, 1999, p. 15).
Heidegger (1999) nessa conferência enumera 5 teses que caracterizam a técnica
moderna, sendo as seguintes:
37
A central hidroelétrica não está construída no rio Reno como a antiga ponte de
madeira, que há séculos une uma margem à outra. Pelo contrário, é o rio que
está construído na central elétrica. Ele é o que ele agora é como rio; a saber, a
partir da essência da central elétrica, o rio que tem a pressão da água
(HEIDEGGER, 2007, p. 382)
Apesar de ambas as narrativas tratarem do rio Reno, existe uma grande diferença
entre este Reno instalado na sala de máquinas da central hidrelétrica e o Reno que o poeta
favorito de Heidegger, Hölderlin, representa em sua poesia. Poderíamos questionar que,
ainda assim, o rio Reno mantém seu caráter de ser apreciado como “rio da paisagem”
(FOLTZ, 1995, p. 174). Porém, ele se manifesta aqui como um mero objeto “que uma
indústria de turismo encomendou (bestellt)” (HEIDEGGER, 2007, p. 382) para grupos de
turismo poderem visitar. Podemos observar que é com esse mesmo caráter que as leis
ambientais brasileiras inclusive põem (ainda no sentido de stellt) a natureza. A Resolução
Conama 35718 é o instrumento responsável por definir os critérios de classificação e
enquadramento dos corpos hídricos, os quais terão como fator determinante as condições
de poluição da água ali disposta. A classificação desses corpos hídricos nada mais é que
a definição de qual a forma na qual o rio será encomendado. Pela lei, eles podem ser
enquadrados desde classe especial, que é o mais limpo e pode ser usado para consumo
humano com pouca necessidade de tecnologia para tratamento (encomendado para o
abastecimento doméstico?), até a classe 4, rios mais comprometidos mas que ainda podem
18
Resolução do Conselho Nacional do Meio Ambiente-CONAMA nº 357, de 17 de Março de 2005.
39
1.8 Subsistência
A obra de transposição do rio São Francisco, que se encontra próxima de sua
conclusão, mais uma vez coloca a natureza para o atendimento humano. Porém, “coloca”
permitindo que populações de regiões que sofrem periodicamente com seca em regiões
áridas do Nordeste tenham acesso à água, favorecendo o cultivo de vegetais para a
produção de comida, realização de atividades de higiene básica e dessedentação.
A exploração do rio São Francisco, seja para a produção de energia a partir das
diversas centrais hidrelétricas instaladas ao longo de sua extensão, seja para a irrigação
das culturas pelas quais ele atravessa, seja ainda para a subsistência das famílias que serão
beneficiadas pelas obras de transposição, são formas de desabrigar pertencentes à técnica
moderna. Conforme enumera Heidegger (2007, p. 382), são modos de desabrigar:
“[e]xplorar, transformar, armazenar e distribuir”. Este “desafiar” com o caráter de “pôr
no sentido do desafio” tem a particularidade de não desabrigar de forma indeterminada,
mas trazendo “para si mesmo os seus próprios e múltiplos caminhos engrenados, porque
os dirige”. O “desabrigar desafiante” consegue impor, então, a direção na qual a natureza
será desabrigada. Ao ser desabrigada dessa forma, ela é invocada através de uma “posição
de subsistência (Bestand)” (HEIDEGGER, 2007, p. 383). De uma forma geral, quando
algo se dispõe como subsistência, ele se oculta segundo o que é e não se coloca mais
diante de nós como um objeto, mas fica cedido como reserva. Ele deixa de ser subsistência
para voltar a se essencializar como um objeto a partir do momento em que sua estrutura
é solicitada, quando “desafia”. A demanda de carvão e minérios desafia dessa forma o
solo. “A riqueza da terra desabriga-se agora como reserva mineral de carvão, o solo como
espaço de depósitos minerais” (HEIDEGGER, 2007, p. 381). Este “desabrigar” da terra
40
em muito se difere do que é realizado pelo camponês que, ao preparar o solo, está
cuidando e guardando. Conforme conclui Heidegger, “[o] fazer do camponês não desafia
o solo do campo. Ao semear a semente, ele entrega a semeadura às forças do crescimento
e protege seu desenvolvimento” (HEIDEGGER, 2007, p. 381). Por mais que o camponês
também desabrigue a terra, não a desabriga no sentido da técnica moderna.
Observando-se a partir de uma escala maior, a região amazônica tem sido colocada
a partir da posição subsistência por atividades que têm forte impacto como a mineração e
a pecuária. Um projeto de lei, o qual cumpre uma das promessas de campanha do atual
presidente, está em vias de ser enviado para votação no Congresso Nacional brasileiro e
este permite que terras indígenas sejam exploradas economicamente de forma ampla.
Segundo notícia do jornal O Globo (Ventura, 2020), estas atividades não se restringem à
mineração, mas também possibilita a construção de mais hidrelétricas, exploração de
petróleo e gás, pecuária, extrativismo entre outros. Prevalece aqui fortemente a posição
de uma Amazônia como reserva (Bestand) em sua forma mais radical em contraposição
a um desabrigar no sentido de “cuidar e guardar” conforme realizado pelos povos
originários que ainda hoje mantém seu tradicional estilo de vida em terras onde já habitam
há séculos.
1.9 Enquadramento
Heidegger não tem por pretensão em seu texto criticar a técnica, inclusive afirma
em sua entrevista a Richard Wisser em 1969 que nunca falou contra a tecnologia nem
teria a demonizado. O filósofo tcheco Erazim Kohák expressa a mesma ideia de
neutralidade com relação à técnica ao afirmar estar ciente de que a techné também pode
ser autenticamente um modo humano de ser-no-mundo, capaz de possibilitar os humanos
livres para serem parentes da natureza, não seus escravos ou mestres (KOHÁK, 1986, p.
x)19. Contudo, ainda assim seria possível inferir crítica de sua parte à situação exposta
sobre a Amazônia pelo que foi visto até agora do texto “A Questão da Técnica” (1953).
A técnica, ao ser pensada como um modo de ser-no-mundo, define o comportamento dos
seres humanos com relação ao seu pensar e à forma de explorar e desafiar a natureza. O
comportamento que invoca o ser humano a desafiar para desocultar algo da forma como
subsistência Heidegger chama de enquadramento (Ge-stell) (HEIDEGGER, 2007, p.
384). Ao enquadramento, o filósofo atribui “o modo de desabrigar que impera na essência
19
Tradução livre do original: “I am aware that technê, too, can be an authentically human mode of being in
the world, capable of setting humans free to be nature's kin, not her slaves or master”.
41
20
Optei pela tradução de Gestell como “enquadramento” por entender que esta forma é mais facilmente
compreensível e visualizável em português.
42
Com base do que foi exposto em “A questão da técnica” (1953), Heidegger então
infere que a essência da técnica moderna é o que ele chama de enquadramento. Esse
enquadramento, conforme havia sido dito, não é nada de técnico. O enquadramento é a
forma pela qual o ser humano põe a realidade e a desabriga como desafio. O ser humano,
enquanto desabriga a natureza a requerendo como subsistência, ou como um fundo de
reserva, se situa no âmbito do enquadramento. “Enquanto desafiar no requerer, [o
enquadramento] envia num modo de desabrigar” (HEIDEGGER, 2007, p. 388). O
enquadramento, como essência da técnica moderna pertence ao desabrigar. Desta forma,
ele afirma que então esta essência não é ôntica, mas sim ontológica.
Diante desse cenário, surge então mais um problema, o qual o filósofo virá a
chamar de “perigo”. Esse perigo consiste justamente no fato de nós, ao estarmos no
âmbito do enquadramento, o qual possui como destino o desabrigar, fiquemos presos a
esse único caminho de desabrigar. Dessa forma ficaríamos restritos a esse único destino,
negando outra possibilidade: a de descobrirmos a essência do que se discute, nos
entregarmos a essa essência e experimentarmos esse outro desabrigar como essência. Para
o filósofo, é esse então o “perigo do desabrigar”.
primeiro caso o humano deixa aparecer, viger a coisa naquilo que ela é, deixar assentada
nela mesma. No segundo caso o ser humano a tudo domina, se antecipa na forma da
dominação do aparecer de algo. Só é o que ele pode dominar pela técnica que “cobra
subsistência”.
No âmbito do enquadramento o próprio homem pode ser desabrigado por outro
como subsistência. É do jargão do meio corporativo expressões como “capital humano”.
Não seria justamente esse um exemplo prático de como nos reduzimos ao papel de
subsistência?
A máquina, sua essência. O serviço que ela exige, o desenraizamento que ela
traz. ‘Indústria’ (funcionamento); os trabalhadores de indústria, arrancados da
terra natal e da história, transpostos para o ganho.
Educação de máquinas; a maquinação e o negócio. Que transformação do
homem se insere aqui? (Mundo - terra?) Maquinação e negócio. O grande
número, o gigantesco, pura extensão, nivelamento e esvaziamento crescentes.
A decadência necessária no kitcsh e no inautêntico. (HEIDEGGER, 2015, p.
382)
2. NATUREZAS LATINO-AMERICANAS
Neste capítulo proponho uma discussão acerca do ser e da natureza para uma
melhor compreensão de ambos. Parto nesse capítulo da discussão de um ser-no-mundo
em particular. Este ser-no-mundo é um ser-na-América-Latina, o qual primeiramente terá
como tópico o seu caráter existencial como questão. Em seguida, incluo uma reflexão
sobre a natureza. Esse tema se mostra amplamente rico ao se levar em consideração a
multiplicidade de compreensões que podem se desdobrar considerando que a região foi
povoada por diversos povos que ali coabitaram e se misturaram, constituindo o latino-
americano moderno. A cultura latino-americana se fundamenta a partir de diversas outras
culturas, assim como continua se desenvolvendo e aglutinando mais outras diversas
contribuições se desenvolvendo sobre si mesma também internamente. Como o tronco de
uma árvore, diversos enraizamentos sustentam sua base e permitem seu vigoroso
crescimento. Da mesma forma, ao se falar da análise existencial do latino-americano,
considero essa como um “combinado de ontologiaS”, de acordo com o que argumenta o
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (2005):
2.1 O ser-no-mundo-na-América-Latina
As religiões judaico-cristãs, dentre as quais merece destaque a religião católica,
tiveram obviamente grande influência na construção da moral da civilização latino-
americana por serem a religião do colonizador europeu. A colonização do continente teve
o acompanhamento de perto dos religiosos que estiveram presentes abençoando tanto os
46
aventureiros exploradores das primeiras naus que chegaram, quanto os bandeirantes que
participaram da expansão do domínio dos territórios. Já em 1493, o rei da Espanha,
Fernando de Aragão, teve o domínio sobre as ilhas concedido através de uma bula papal
do papa Alexandre VI. Conforme afirma Dussel (1993) na seção de seu livro dedicada à
discussão da “conquista espiritual”, “[a] práxis conquistadora estava fundamentada num
desígnio divino” (1993, p. 59).
Contudo, além do catolicismo como contribuição religiosa trazida pelos ibéricos
para a construção da complexa matriz religiosa latino-americana, africanos e indígenas
que conseguiram conservar suas crenças também influenciaram essa formação. Apesar de
que os indígenas que tiveram contato com os europeus nos primeiros séculos de
colonização se viram obrigados a renunciar sua religião e se catequizar por uma política
de dominação representada pela expressão “entre a cruz e a espada”, os que se inseriram
posteriormente nos meios multi-étnicos por vezes conseguiram manter seus princípios
religiosos. Já dentre os africanos, que foram trazidos escravizados, se destaca o culto aos
orixás da religião do candomblé e a umbanda que, por mecanismo de resistência, agrega
figuras do catolicismo. Por vezes as manifestações religiosas nessa região se dão através
de sincretismos religiosos que combinam divindades dos diversos povos que se
incorporam nessa cultura.
Certamente diversas diferenças podem ser apontadas entre uma população
sertaneja que habita a caatinga do nordeste brasileiro, os mapuches que mantém suas
tradições no centro-sul chileno, os gaúchos que habitam o norte argentino, os paulistanos
que movimentam a cidade mais populosa da América do Sul, os quechuas da região
andina e diversas outras… Assumo aqui que é um erro adotar a América Latina como um
modo único de vida e tendo apenas uma cultura. Não busco em algum momento
negligenciar a enorme variedade de culturas que estão enraízadas nesta região e
desabrocham cada qual à sua maneira. Contudo, para dar início à discussão sobre a relação
com a natureza, partirei do pressuposto de um ente latino-americano que acumula toda
essa mescla de manifestações culturais que caracterizam esse mundo pluralista chamado
pelo escritor mexicano Carlos Fuentes (2007, p. 53) de “América indígeno-afro-ibérica”.
Assim, me fundamento em Heidegger (2016, p. 87) que afirma que “[p]or mais provisória
que seja, a análise exige que se assegure um ponto de partida conveniente”. Com relação
a esse ponto de partida, posto que tenha servido para inaugurar a discussão, é importante
ter a consciência de que ele não é um ponto estático que será mantido ao longo do
percurso. Mas pelo contrário, assim que possível ele deve ser revisto. Não considero, que
47
seja preciso jogar fora a escada uma vez que esta já tenha sido utilizada para subir,
conforme afirma o filósofo Ludwig Wittgenstein (1968, p. 129), mas sim que esta escada,
ou ainda o “ponto de partida”, deve ser questionado ao longo de todo o processo e sempre
que possível.
Enquanto condição existencial, o latino-americano é marcado por essa pluralidade
étnica que vem desde a sua base formando essa figura contemporânea. Tomando a figura
do indivíduo latino-americano como ponto de partida para o desenvolvimento filosófico
da questão, busco na analítica existencial de Heidegger os alicerces para este debate.
Conforme o filósofo afirma,
[...] a analítica existencial [do dasein] mobiliza igualmente uma tarefa, cuja
urgência não é menor que a da própria questão do ser, a saber, a liberação do a
priori [itálico no original], que se deve fazer visível, a fim de possibilitar a
discussão filosófica da questão ‘o que é o homem’ (HEIDEGGER, 2016, p. 89)
Com o cuidado de não partir da falsa premissa de que o único modo de ser do
latino-americano possível é o que se encontra fora de influências externas advindas da
colonização, como se fosse um indivíduo isolado que não tivesse interagido com povos
vindos de outras regiões, parto aqui para algum terreno onde mais possibilidades brotem.
Assumir tal premissa incorreria no erro histórico de negar o próprio latino-americano
contemporâneo, que é alguém que se construiu a partir de diversas misturas culturais.
Outro erro elementar ao qual seria levado partindo dessa escolha é o de que negaria a
própria existência de povos originários que de alguma forma tenham se adequado ao
modo de vida do cidadão urbano. Seria o mesmo que dizer que indígenas que utilizam
celular, tem carro, ou utilizam roupas de acordo com os moldes ocidentais não poderiam
ser reconhecidos como indígenas.
Outro cuidado a ser tomado, tratando-se de uma multiculturalidade, é o de manter
todas as culturas em um mesmo nível ontológico, sem conceder primazia a nenhum dasein
passado sobre os demais modos de ser, conforme adverte Heidegger em suas preleções
do semestre de verão de 1923, pulicados pelo nome de “Ontologia” (1923). Poderia, para
desenvolver essa discussão, buscar respostas precisamente na ciência que se ocupa de
estudar o ser humano, a antropologia. Porém, baseado em uma crítica heideggeriana
realizada durante a conferência “A época da imagem do mundo” (1938), Heidegger
identifica limitações filosóficas para essa ciência:
Tal ordenação, por sua vez, só se torna possível a partir do constitutivo do dasein
“mundo”. Mundo, no nosso caso, como América Latina. Não recorro aqui a uma definição
50
geopolítica, mas sim ao seu caráter existencial. Mundo, portanto, como sendo onde os
fenômenos se manifestam, é um conceito fundamental da fenomenologia heideggeriana e
que será brevemente retomado na seção seguinte.
2.2 Physis
Já no ano de 1929, em “Que é Metafísica?”, Heidegger defende que a metafísica
pertence à “natureza do homem”, ou seja, seria ela um acontecimento essencial no âmbito
do Dasein. Contudo, não seria esta a primeira vez que o ainda jovem Heidegger abordaria
a questão da natureza, que já havia sido discutida em outro sentido em “Ser e Tempo”
(1927), onde ele questiona sobre o equívoco de tratar esta como “mundo”, já que
“[e]nquanto conjunto categorial das estruturas de ser de um ente determinado, que vem
ao encontro dentro do mundo, a ‘natureza’ nunca poderá tornar compreensível a
mundanidade.” (HEIDEGGER, 2016, p. 113). Mas para o filósofo, qual seria então a
forma de compreender o sentido ontológico do fenômeno “natureza”? Pelo que ele indica
no mesmo livro, ontologicamente o conceito de “natureza” só poderia ser apreendido
“através da analítica do dasein” (HEIDEGGER, 2016, p. 113), ou seja, a partir de um
determinado modo de ser.
Para a compreensão da natureza a partir de seu modo de ser, realizo os dois
movimentos propostos por Zarader (1986): primeiro o retorno ao idioma e, o segundo,
utilizando a fundamentação do passo anterior, avança-se na direção do pensamento.
O movimento de retorno à língua grega busca o sentido original de “natureza”
antes ainda da tradição metafísica e da influência das traduções, as quais vieram a
distorcer o esse sentido ao ser passado para idiomas que não conseguem explica-lo com
a mesma exatidão.
Como nossa civilização ocidental teve como berço a Grécia Antiga, a raiz dos
idiomas falados pelos ocidentais se fundamenta no latim e principalmente no grego,
considerando a influência que este povo exerceu sobre a Roma Antiga. Para Heidegger,
a tradição metafísica ao compreender os fenômenos a partir do ente teria sido a
responsável pelo esquecimento do ser, além disso, o próprio tempo, o uso cotidiano seria
também responsável pelo desvirtuamento do sentido das palavras, somando-se ambos
teríamos uma visão equivocada do que este sentido originalmente representava. O
51
significado então de natureza, traduzido de uma forma geral, encontrado no grego é physis
(φύσιζ).
O segundo movimento é, conhecendo então este termo, interpretá-lo, e não mera-
mente traduzí-lo do grego, o que, segundo defende Dias (2017, p. 151) poderia inferir em
21
Tradução livre do original: “in processes in the heavens (the rising of the sun), in the surging of the sea,in
the growth of plants, in the coming forth of animals and human beings from the womb”.
22
Apesar das palavras em português usadas não serem o correspondente mais imediato das palavras em
alemão, foi feita uma adequação de acordo com o contexto e com a derivação utilizada do francês (avancée,
épanouissement e ouverture)
23
Tradução livre do original: “la rose s’épanouit en ce que, avancée dans l’ouvert, elle dure dans cet
ouvert,s’y maintient en se déployant, et ainsi s’offre au regard”.
52
porque permite a qualquer ente, seja homem ou deus, de vir ao dasein e se instalar. Desta
forma, a physis não se ocupa apenas de seres naturais, ela é uma característica
fundamental a todo ente que vem a ser. Dando continuidade ao segundo passo para a
compreensão do modo de ser da natureza em seu sentido original, Zarader (1986) defende
que não basta evitar o erro de identificar a physis pura e simplesmente como natureza,
mas saber pensar através do contexto dado e reconstruir o modo que ela se aplica para
chegar a uma noção. Para Heidegger, não foi através de processos naturais que os gregos
observaram a physis pela primeira vez, mas sim através da experiência fundamental do
ser na poesia e no pensamento. O filósofo declara que physis, então, “significa
originalmente ambos céu e terra, ambos a pedra e a planta, ambos o animal e o humano,
e a história humana como trabalho dos humanos e deuses; e finalmente e antes de tudo,
significa os deuses que estão sob o destino.” (HEIDEGGER, 2014, p. 16)24
Mesmo assumindo physis como sendo o próprio “ser”, não há aqui contradição
com o conceito dado de “como o ser se se mostra no mundo”. Essa ideia, na verdade,
ratifica a anterior e será peça-chave no rompimento com a metafísica. “A physis deveria
então ser definida como o reino do que, desabrocha para fora, ao mesmo tempo em que
permanece em si-mesmo” (ZARADER, 1986, p. 38). É importante ressaltar que o
“desabrochar” aqui mencionado não diz respeito a um “desabrochar” como estado ou
momento que tenha sido alcançado, mas como o de algo que está em movimento de
constante desabrochar. Chego assim a um conceito último pela parte de Heidegger que,
em “Introdução à Metafísica” (1953), declara:
Physis é a maneira de ser apresentada pelas entidades em geral, pela qual elas
podem emergir e desdobrar-se por sua vontade própria para fora de si mesmas
– ressaindo sem serem compelidas da desocultação, tornando-se por esse meio
manifestas, entrando na aparência numa soberania duradoura e durável – e ao
mesmo tempo permanecendo enraizadas na ocultação a partir da qual esta
emergência que se desdobra a si própria teve sua origem, e por esse meio
recuando para si próprias tanto simultânea como finalmente. (HEIDEGGER
(1966) apud. FOLTZ, 1995, p. 155-6)
Apesar de a physis ser “experienciada acima de tudo através daquilo que de uma
certa maneira se impõe a si próprio mais imediatamente” (FOLTZ, 1995, p. 156), seu
caráter auto-emergente se evidencia e prevalece de forma mais explícita justamente nas
coisas da natureza. Segundo Foltz (1995), seria talvez por esse motivo que Heidegger as
24
Tradução livre do original: “phusis originally means both heaven and earth, both the stone and the plant,
both the animal and the human, and human history as the work of humans and gods; and finally and first of
all, it means the gods who themselves stand under destiny”
53
utilizava como exemplos para ilustrar a auto-emergência da physis no seu sentido mais
estrito, que seria o da natureza.
O por quê
A rosa é sem porquê.
Floresce porque floresce,
Não se auto-contempla
Nem pergunta se alguém a vê.
(SILESIUS, 1992, p. 156)
2.3 Iseda
Os países que constituem a América Latina, além de compartilharem o uso de uma
língua derivada do latim, viveram um processo violento de ocupação e colonização dos
europeus no qual milhões de africanos foram trazidos para executar trabalhos forçados.
Segundo a linguista Margarida Petter (2011, p. 79), que estuda a influência de idiomas
africanos na América Latina, “estima-se que a América espanhola tenha recebido cerca
de um milhão de escravos e o Brasil por volta de 3,5 milhões, ou 38% dos escravos
trazidos para o Novo Mundo”. Um número tão expressivo de africanos migrados
forçadamente pela diáspora negra provocou significativa influência cultural nos países
latino-americanos. Para manter sua identidade pessoal e histórica, foram diversas as
formas de resistência pelas quais os negros em terras americanas tiveram de lutar. Dentre
esses movimentos, diversas manifestações podem ser observadas a partir de sua influência
nos mais diversos âmbitos: “de caráter linguístico, religioso, artístico, social, político, de
hábitos, gestos, e assim por diante.” (NASCIMENTO, 2008, p. 71-72)
Para Petter (2007), a mais forte evidência do contato linguístico e cultural da
presença africana, no caso do Brasil, se apresenta através do léxico. O encontro social
entre os povos que passaram a residir neste país gerou uma necessidade comunicativa que
resultou no empréstimo de expressões dessas outras culturas que não falavam o português.
Para a linguista, essas trocas “[d]istribuem-se nos mais diversos campos léxico-
semânticos: os de origem banto (quimbundo, principalmente), mais antigos, têm uma
distribuição mais abrangente; os de origem iorubá, mais recentes, referem-se à religião e
à música, sobretudo” (PETTER, 2007, p. 83-84).
Da mesma forma que busquei o retorno do sentido originário de natureza da
cultura ocidental na linguagem, a partir do idioma grego, faço o mesmo movimento para
entender seus sentidos de natureza dos povos africanos e autóctones. A importância de
buscar os outros sentidos de naturezas que compõem nossa compreensão atual se deve a
um esforço de, por ter sido uma região colonizada, não se ater à posição da cultura de
54
nossa metrópole. Conforme afirma Frantz Fanon, (2008, p. 34) “[t]odo povo colonizado
[...] toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto é, da cultura
metropolitana”. Ao realizar novamente esse movimento, busco o retorno à nossa
originalidade cultural e enriquecimento da descrição de nossas experiências.
Para o escritor Nei Lopes (2008), os povos do grande grupo etnolinguístico banto
entendem os seres da natureza, incluindo a fauna e a flora, como “forças vivas, em
processo, nunca como entidades estáticas” (LOPES, 2008, p. 196). Essas forças vitais são
a sustentação de uma cadeia formada de elos entre eles, seus familiares ascendentes e
também seus descendentes.
Essa noção é a base do culto aos ancestrais, que não são simples parentes
defuntos, mas antepassados ilustres, cuja passagem pela vida terrena foi
marcada por fatos significativos para sua comunidade, expressos ou por sua
liderança, inteligência, coragem e fidelidade ao grupo ou por sua simples
condição de fundadores, inauguradores de linhagens familiares. (LOPES,
2008, p. 196)
Existe entre esses povos uma ligação muito forte com seus antepassados, não só
por lhes proporcionado a vida, mas também pelos ensinamentos passados de uma geração
para outra sucessivamente. A condição de reverência por seus antepassados traz como
costume entre os povos bantos o pedido de autorização e proteção do espírito de seus
ancestrais antes da realização de trabalhos agrícolas e mineiros, caça e pesca, segundo
Lvova (1987, p. 174). Dessa forma, a tradição dos povos bantos considera toda terra
sagrada, assim como as águas de rios e mares, não só pelo fato de estas fornecerem
recursos para eles, mas principalmente por terem servido aos seus ancestrais. Lopes
(2008, p. 197) completa que, “assim como a terra e as águas, são sagradas as árvores e as
plantas, por fornecerem sombra, alimento e remédio e também por sua ligação com os
antepassados ilustres de cada comunidade.”
A sacralidade, por sua vez, tornou-se o caminho pelo qual os povos vindos do
continente africano puderam formar sua resistência cultural e coesão social a partir da
religião como forma de expressão. Roger Bastide, que teve um destacado trabalho na
antropologia ao descrever a cosmologia do candomblé, relata em “As religiões africanas
no Brasil” (1971) que neste país houve também povoamento de africanos que seguiam o
islamismo. Contudo, além de serem minoria comparando-se com etnias que seguiam
outras religiões, estes eram “negros islamizados, convertidos e não semitas puros” e se
isolavam socialmente de povos que seguiam outras crenças. O islamismo impunha regras
sociais diferentes como a permissão da poligamia para homens e proibia para seus
55
[...] cada parte do universo pertence e é parte de cada orixá; ou seja, onde a
divisão mítica iorubana do universo se expandiria para as formas, pessoas,
cores, matérias, perfumes, elementos da natureza, datas, tempos, espaços etc.
Cada divindade possuiria um conjunto de materiais que a expressa e por meio
57
e com a utilização da técnica e energia necessárias, desvela uma aletheia. Contudo, essa
aletheia remete novamente à natureza ao se criar um símbolo de um orixá, manifestação
de formas de natureza nas religiões de matriz africana.
Outro elemento de grande importância nestas religiões, e que não podemos deixar
de reparar que está mais uma vez fortemente ligado à natureza é a origem dos orixás que,
em uma das versões dos mitos, teria se dado a partir da seiva da sagrada árvore Iroko, o
que faz com que esta seja considerada “pai de todas as plantas” entre os iorubás.
Conforme conta Sueli Conceição em sua dissertação dedicada a estudar o processo de
urbanização como reestruturação das religiões de matriz africana, apesar de Iroko não ser
propriamente um orixá na cultura iorubá, a árvore “é um caminho para a divindade e ali
mora um personagem espiritual, mas não há sacerdote ou liturgia de culto a Iro[k]o.”
(CONCEIÇÃO, 2008, p. 73). A origem dos orixás reforça mais uma vez o caráter
ecológico das religiões de matriz africana pois, a partir de sua cosmogonia, o primeiro
contato que suas entidades mais importantes teriam tido na Terra é com uma planta.
Ainda no livro “Guerreiras da Natureza”, Barros e Teixeira (2008) apresentam
uma cantiga (ou korin ewe) que, além de ressaltar a importância dos ancestrais femininos
quando cita o pássaro, símbolo do poder das “mães-feiticeiras”, faz saudação à árvore que
teria sido morada dos ancestrais e de alguns orixás.
E Ìrókò ìí koro o Iroko não é semeado
O igi eiye ti temi Árvore de pássaro, meu
O igi eije ko gbo’jo Árvore de pássaro não recebe chuva!
A Ìrókò akin degun Iroko, poderoso refúgio.
E a Ìrókò ìí roko o Iroko não é semeado
A ye igi eiye ti temi Árvore de pássaro, meu
O igi eiye Ìrókò Árvore de pássaro, Iroko.
A Ìrókò ìí roko o Iroko, poderoso refúgio.
A Ìrókò akin degun Sim Iroko não semeado,
A ye igi eiye ti temi Árvore de pássaro não recebe chuva!
O igi eiye ko gbo’jo Iroko, poderoso refúgio!
A Ìrókò akin degun Ah, Iroko poderoso refúgio
Akindebon, akin degun
AÌrókò aki degun Calma é de Iroko
Iroko não falha
Èrò Ìrókò Calma é de Iroko, calma não falha
Ìrókò ìso (BARROS; TEIXEIRA, 2008, p. 211-
Érò Ìrókò ìso èrò 212)
2.4 Ybi
Neste trabalho evito utilizar o termo índio que seria uma denominação europeia
associando os povos originais da América aos da Índia, um equívoco histórico e até hoje
reproduzido. Opto por seguir o termo “indígena” que é o qual o ativista Daniel
25
Tradução livre do original: “Lo schiudersi che si dispiega è, in sé, un ritornare in sé”.
60
Munduruku declara possuir preferência em seu livro Banquete dos Deuses, “indígena, que
é o mesmo que nativo ou natural da terra” (MUNDURUKU, 2009, p. 13).26
Até 300 anos atrás o tupi era o idioma mais falado no Brasil (AGL, 2009). Por
mais que nos três últimos séculos o idioma português tenha assumido essa posição,
principalmente devido a manobras políticas, entre as quais decretos que proibiram que
outros idiomas senão o do colonizador fossem falados, o tupi, assim como o iorubá,
representam grande influência no vocabulário do português brasileiro. O tupi foi o idioma
facilitador do contato entre diversas etnias. Em conversa com Letícia Indi Oba, ativista
do movimento indígena e pertencente à etnia Payayá, ela conta que
os payayá desciam para o litoral através do rio Paraguaçú mas também tinham
contato com os indígenas do litoral falantes de tupi, no norte de Minas que são
os Macrojê, e também sobe para o litoral norte baiano considerado também
Macrojê, e nesse movimento se compreendiam na mesma língua.
26
Conforme discute a geógrafa Jamille Lima (2019) “A expressão ‘indígena’ designa essa condição de
autoctonia, mas ‘[...] entre nós, ficou marcada por indicar aqueles que habitavam as Índias Ocidentais, nome
que os espanhóis atribuíam não só ao novo continente, como também às Filipinas’ [terra de Filipe]
(PORTO-GONÇALVES, 2009, p. 26). Essa significação consiste, segundo Porto-Gonçalves (2009), em
uma radical violência simbólica cometida contra os povos originários de ‘Abya Yala’. Trata-se do domínio
da conformidade, cujo processo de significação se refere ao que o filósofo e urbanista Paul Virilio denomina
de ‘unicidade exterminadora’ (VIRILIO, 1984, p. 154), dado o sentido de generalização sob uma forma
única, neste caso, reduzida ao termo ‘indígena’.
Entretanto, a expressão indígena é paradoxal, pois como argumentado por Porto-Gonçalves (2009), ao
mesmo tempo em que ela desconsidera as especificidades dos povos autóctones, ela contribui para unificá-
los não somente sob a ótica dos conquistadores, mas também como designação que fundamenta a unidade
política daqueles que percebem a história comum de vilipêndio, opressão e exploração de sua população e
de esbulho e destruição de seus ‘recursos’ naturais.” (LIMA, 2019, p. 133).
61
contidas. O escritor Daniel Munduruku relata em seu livro sobre as culturas indígenas que
esta se apresenta como “o ventre de que nós saímos, o solo do qual nos alimentamos e o
coração a que retornaremos e em qual encontraremos os entes queridos que conosco
conviveram durante sua passagem pela Terra” (MUNDURUKU, 2009, p. 29)
Consequentemente, negar o direito à terra a esses povos é privá-los do direito de
ter contato com o que tem de mais sagrado. É privá-los de sua identificação com seus
antepassados, privá-los de seu próprio ser. Segundo Jamille Lima, que em sua tese de
doutorado aborda a questão do sentido geográfico da identidade dos Payayás, e quem me
facilitou o contato com Letícia Indi Oba,
evidencia em seu nome em tupi yayá. A gameleira é tão emblemática que os payayá não
receberam sobrenomes europeus, mas utilizaram em seu lugar o nome “Gameleira”, por
exemplo: Esmeraldo Gameleira, Antônio Gameleira. Em sua tese, Jamille Lima (2019)
ressalta que a gameleira simboliza o “enraizamento topológico” para eles, e promove a
tensão ocorrida entre a abertura e o fechamento resultante da relação lugar-território para
esse povo.
Não só os payayás, mas os povos indígenas brasileiros, quando se falando sobre
suas relações com a natureza, teriam alguns aspectos em comum, conforme declara Daniel
Mundukuru (2009), esses povos promovem uma mensagem de amor e profundo respeito
pela natureza, tal qual é atribuído a uma mãe, e esse é um aprendizado que é passado
desde o nascimento.
Um dia, o grande herói Apopocúva retornou de uma longa viagem que fizera.
Seu nome era Nhanderequeí, Guerreiro respeitado por todo o povo, decidiu que
iria roubar o fogo dos urubus. Reuniu todos os animais, aves e homens da
floresta e contou o plano que tinha para enfrentar os temidos urubus, guardiões
do fogo. Até mesmo o pequeno cururu, que fora convidado, compareceu dizen-
do que também tinha muito interesse no fogo. (MUNDURUKU, 2004, p. 15)
Neste conto, assim como em outros trazidos em seu livro “Contos Indígenas
Brasileiros” (2004), se evidencia como tradicionalmente o ser humano faz parte de um
cosmo e está no mesmo nível das demais espécies de animais. E isso se dá por um motivo,
para estes povos não apenas fazemos parte da natureza como somos interdependentes um
do outro sendo necessária uma harmonia entre ambos para que todos possam coexistir.
Essa harmonia não surge com um incentivo de exploração sustentável de recursos, onde
a terra que habitam seria simplesmente a provedora de sustento, mas se baseia na ideia de
63
admiração pela natureza. Esta terra, a qual reverenciam com seus cantos e respeito, para
eles, possui também uma alma.
É sob essa ótica que eu compreendo a fala de meu avô, quando dizia que era
preciso andar sobre a terra com os pés suaves, fazendo carinho nela,
aprendendo com ela, ou, os momentos de danças rituais, em que queremos
fazer a terra cantar conosco ao som dos nossos pés, invocar o som imemorial
escondido no coração do mundo. Como seria possível imaginar nossos velhos
nos pedindo para ouvir o murmurar do rio e aprender com ele os caminhos de
paciência, se o rio não tivesse uma voz, um coração e uma alma?
(MUNDURUKU, 2009, p. 31-32)
Por fim, Mundukuru (2009) aponta como outro ponto em comum entre os povos
indígenas a gratidão que esses têm à “Mãe Terra”. Para essa mãe que possui alma e
provém a vida é necessário sempre lembrar de ser grato. É para ela que indígenas de
diversas etnias dançam, cantam e se pintam em diversos momentos de suas vidas. “É uma
gratidão permeada pela crença de que a vida é oferecida como dádiva da natureza e como
tal deve ser vivida.” (MUNDURUKU, 2009, p. 32). É através dessa ideia de oferenda que
o autor afirma que somos “banquete dos deuses”, o que dá nome ao seu livro. “Banquete”
se dá no sentido de nossa reverência servir de alimento para essa grande Mãe.
A imagem da natureza que, para os povos indígenas, se entifica através dessa
figura materna, em paralelo muito se assemelha a entificação da mesma a partir dos orixás
das religiões de matriz africana. Nestas, a ideia de oferenda encontra-se muito presente,
principalmente quando nos referimos ao candomblé. Em ambas as culturas, de uma forma
geral, a ideia de sacralidade da natureza encontra-se muito presente. Observando por outro
viés, um aspecto que que se mostrou recorrente nesses três grupo principais que
participaram da estruturação do que se entende por cultura latino-americana, é o caráter
ontológico da natureza se manifestando como algo que emerge de si próprio e também se
encerra em si próprio. Algo que se desvela e se esconde. Por mais que, nesse ser-na-
América-Latina as ideias de cada povo se comuniquem e uma interfira na outra
continuamente fazendo com que seja o que é hoje, percebe-se que esse princípio de uma
natureza auto-emergente já era existente tanto na Grécia Antiga, quanto na África pré-
diaspórica e também na América pré-colombiana.
64
3. ECOFENOMENOLOGIA
Ambas as formas apresentadas por Kant (1990) são problemáticas para a filosofia
heideggeriana por limitar a natureza, seja res cogitans, ou coisa pensante, seja res extensa,
ou uma natureza corporificada. Ainda assim, Heidegger (2016) no trecho acima foca em
fazer referência especificamente à natureza extensa, ou sólida, conforme estudada pela
física moderna. Porém, as coisas sólidas são apenas uma parte ínfima do que podemos
interpretar da natureza.
A crítica exposta por Heidegger deixa aberto o caminho para que novas
possibilidades de sentido de “natureza” venham a ser discutidos a partir da
fenomenologia. Podemos pensar a fenomenologia não apenas como um conceito, mas
como uma atitude a qual podemos replicar em nossa relação com a natureza pela
ecofenomenologia. O filósofo, apesar de ter aberto o caminho para a discussão, nunca
chegou a se dedicar sobre esse tema especificamente. Porém, conforme visto acima, não
apenas instiga a discussão como contribui com outras temáticas facilmente replicáveis
para repensar a questão ecológica. Além disso, o assunto aparece recorrentemente de
forma coadjuvante ao longo de sua obra para fundamentar suas argumentações. Storey
(2015) no livro onde se dedica a identificar a contribuição de Heidegger para a temática
ambiental, divide sua obra em dois momentos de acordo com esse tema. Um primeiro, no
qual se situa “Ser e Tempo” (1927), onde aponta a virada ontológica como uma drástica
mudança no entendimento da humanidade sobre o ser, o qual permitiria os seres humanos
viverem autenticamente. Na segunda parte estaria sua preocupação com a discussão sobre
“habitar a terra”, assim como com a questão da técnica moderna. Justamente por estas e
outras discussões que vem a ser levantadas, alguns estudiosos o reconhecem como um
proto-ecofenomenólogo (STOREY, 2015, p. 11).
Dentre as correntes dos movimentos que buscam a discussão da temática
ambiental, um dos que mais se destacam que buscou fundamentação na filosofia
heideggeriana é a chamada Ecologia Profunda (Deep Ecology). A Ecologia Profunda é
um movimento tanto político quanto intelectual que se aproxima do filósofo alemão ao
tencionar a discussão de “uma proposta de planejamento ambiental que parta do mundo-
vivido e da consciência ecológica – e não de paradigmas da ética ambiental ou do
ambientalismo” (BRANDÃO, 2017, p. 78). Para que tal ocorra é necessária uma
67
Segundo Storey (2015), em uma plataforma publicada com oito diretrizes na qual
se baseia a ecologia profunda, seu criador, o filósofo Arne Naess, defende inclusive a
ideia de que “a vida humana e não humana, assim como coletivos humanos e não
humanos, incluindo espécies, habitats naturais, e culturas humanas, possuem valor
inerente que a biodiversidade é um valor intrínseco”27 (STOREY, 2015, p. 16). Tal ideia
se relaciona com a “bioequalidade”, a crença de que todas as coisas que possuem vida
têm valor moral igual e uma forma originária de se colocar no mundo vivido.
Outros pontos em comum a serem apontados conforme Devall e Sessions (1985)
são: a priorização pelo pensamento meditativo, profundamente reflexivo e receptivo ao
27
Tradução livre do original: “... possess inherent worth and that biodiversity is an intrinsic value”
68
Os mortais habitam à medida que salvam a terra [...]. Salvar não significa
erradicar um perigo. Significa, na verdade: deixar alguma coisa livre em seu
próprio vigor. Salvar a terra não é assenhorar-se da terra nem tampouco
submeter-se à terra, o que constitui um passo quase imediato para a exploração
ilimitada (HEIDEGGER, 2008b, p. 130)
Por “terra” podemos entender aqui “natureza”, conforme um dos oito sentidos de
natureza identificados por Foltz (1995, p. 166) na obra de Heidegger. Esse sentido da
palavra “terra” como “natureza” também é encontrado em “A Origem da Obra de Arte”
(2010) e fica mais compreensível no trecho em que Heidegger a descreve: “Ela [Terra] é
a que faz surgir e que abriga. A Terra é a que não sendo forçada a nada é sem esforço e
infatigável. Sobre a Terra e nela o homem histórico fundamenta seu morar no mundo”
(HEIDEGGER, 2010, p. 115). A filósofa Solange Costa (2014, p. 127) enfatiza que já
esse sentido de “terra” não se refere a uma natureza cuja existência é completamente
autônoma, mas ao “modo como [ela] ganha sentido a partir de um mundo estabelecido
em relação ao fazer e habitar humano”.
O primeiro passo, portanto, para que se torne possível salvar a natureza apoiado
na ecofenomenologia é dado em direção a um esforço de entender o que é natureza.
Repetindo as palavras dos ecofenomenólogos Brown e Toadvine (2003), que se baseiam
na máxima de Husserl, é fazer um “retorno à terra mesma”. A este sentido, além do
28
Apesar de ser um ponto polêmico pelo fato de o filósofo nunca ter se posicionado explicitamente, alguns
críticos sustentam que existem barreiras para considerá-lo um pensador ecológico pelo fato de atribuir a
primazia ontológica aos humanos, assim como por sua insistência em não admitir evidências biológicas de
que humanos são animais. Em “Eco-phenomenology”, Zimmerman (2003) acrescenta sua relação com o
partido nazista e sua falta de interesse em considerar a cosmologia (ZIMMERMAN, 2003, p. 86). Storey
(2015) ainda inclui como barreira as ressalvas de Heidegger sobre a ciência, incluindo sua rejeição ao
darwinismo, devido à influência do filósofo e biólogo Uexküll.
69
sentido husserliano de trazer as coisas de volta ao que elas são fora de suas representações,
acrescento a necessidade de um retorno à terra como reenraizamento. Não apenas graças
a um modo de pensar ocidental que se galgou na metafísica clássica, conforme criticado
por Heidegger, mas também devido à cultura do consumo, nossa relação com a natureza
foi desenraizada porque seu sentido como physis foi perdido. Para que possamos retomar
essa relação de forma autêntica, poética, originária, emerge a necessidade de retornarmos
ao sentido de nossa raiz. E nossa raiz se encontra nessa terra, terra como natureza, a qual
antes de tudo é preciso entender de que forma podemos compreendê-la. Para Heidegger,
esse sentido é originário do grego physis, conforme discutido no capítulo anterior.
O segundo passo, após compreender a natureza fenomenologicamente, é
reconstruir essa relação mais estreita entre os organismos nos diversos níveis ecológicos,
o que Brown e Toadvine chamam de uma “ecologia filosófica” (BROWN; TOADVINE,
2003, p. xii). A relação buscada aqui, é uma relação que foge da habitual polaridade
sujeito x objeto, conforme utilizado por modelos de investigação cientificistas.
Utilizando-se desse esquema, seria necessário justificar e esclarecer a relação do “dentro”
(= eu, sujeito) com o “fora” (= outros-eus, objetos). Reforçamos aqui o método
fenomenológico heideggeriano para prosseguir na discussão. Este não se preocupa em
desfazer ou responder tal polaridade, mas sim partir de uma condição fundamental desta
relação, ou co-relação.
29
Tradução livre do original: “Eco-phenomenology is the pursuit of the relationalities of worldly
engagement, both human and those of other creatures”.
71
pela “experiência existencial ocorrida em meio a uma adesão contigua (ou cumplicidade
entre homem e terra”. A terra, entendida aqui ainda como physis30, “sempre é em relação
ao homem e o modo como ele habita seu mundo” (COSTA, 2014, p. 127), sendo o
“habitar” a experiência existencial construída entre eles.
Recorro aqui a uma condição, a qual Fernanda de Paula (2015) em seu artigo sobre
geopoética chama por “Condição Corpo-Terra”. Essa é a condição na qual nos
manifestamos como corpos sensíveis e a experiência do encontro desse meu corpo se
relacionando com o lugar é por ele afetado. “Em suma, meu corpo não é apenas um objeto
entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons,
vibra para todas as cores...” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 317). Pelo outro lado, a Terra
se coloca à disposição para convidar meu corpo, convite esse “com um tom de obrigação”
(DE PAULA, 2015, p. 61). Me apropriando do exemplo da autora, que se utiliza de um
auditório para ilustrar como esse corpo é convidado pelo lugar, tenciono a imaginação a
um exemplo que siga o caminho da latinidade, ou pelo menos de um morador do Rio de
Janeiro. É como se estivéssemos sentados na areia da praia (Ipanema talvez) e o mar com
sua variação de azuis, indo do claro até o mais escuro, passando por tonalidades de verde,
convidasse todos que sentem o calor do sol em suas peles a dar um mergulho. O barulho
das ondas quebrando praticamente deixa alguns hipnotizados com o som que se repete
seguindo determinado padrão de intervalo de tempo. Ao grito súbito do vendedor de mate
que destaca por ser mais alto que o das ondas, as cabeças são convidadas a se voltar e
olhar de onde este vem.
Busco na ecofenomenologia uma contribuição que se faz essencial na geopoética
e na ecologia profunda que é a força do processo descritivo das experiências “nascidas da
relação do ser-no-mundo com a Terra, e produtoras de sensações e percepções peculiares”
(BRANDÃO, 2017, p. 82). Essas descrições são responsáveis também por fazer brotarem
sensações, que não brotam “[nem] da Terra, nem do homem, mas do encontro entre
ambos”. Assumo que na primeira vez em que li “Eco-Phenomenology: Back to the Earth
Itself” (2003) me senti decepcionado por estar esperando um postulado no qual se
30
Conforme explicita DAVIM (2016, p. 250), “[a] terra para Dardel (2011) [...] é uma materialidade dotada
de vida, potência e dinamismo próprio. Deste modo, a terra, assim como o espaço geográfico, é a própria
matéria, a substância gasosa que compõe os céus (espaço aéreo); as águas que formam os oceanos os rios e
lagos, assim como o gelo que caracteriza as formações glaciais (espaço aquático); a areia que se espraia por
costas e desertos, as rochas que se consolidam em serras e montanhas, o solo e a vegetação que compõe
campos e florestas (espaço telúrico); o concreto, o aço e o vidro que sustentam as cidades e suas
infraestruturas (espaço construído). Trata-se de um espaço vivo, móvel e que nos afeta como em uma
espécie de combate, oferecendo acolhimento, obstáculo, estímulo e resistência à liberdade de construir e
habitar do humano”.
73
Sobre os peixes,
surubim, dourado, matrixã,
piranha-preta, mandim, pocomã,
pescada, curimatá, pirambeta,
piau-de-cheiro, piau-cavalo, piranha-amarela,
pirá, piaba, molão,
sardinha, corvina, maria-oião,
E todos os que vivem nas águas (UNGER, 2001, p. 67)
A chuva é também por sua vez um dos principais personagens de um dos maiores
clássicos da literatura latino-americana, e certamente não por acaso. Em “Cem anos de
solidão” (1967), Gabriel García Márquez por diversas vezes retoma a ela. Ela aparece,
seja molhando outros personagens num final da tarde, até a devastadora chuva que dura
quatro anos e é responsável pela apropriação histórica de uma das cenas mais violentas
da cidade de Macondo, evento que tão bem representa o que Walter Benjamin traz em
“Teses sobre o conceito de história” (1940), onde afirma que."[a] empatia com o vencedor
beneficia sempre, portanto, esses dominadores. [...] Todos os que até hoje venceram
participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de hoje espezinham os corpos dos
que estão prostrados no chão." (BENJAMIN, 1985, p. 225).
O livro começa com a fundação de Macondo, um povoado que representa tão
fielmente a história de milhares outros povoados latino-americanos. A árvore genealógica
de seus fundadores é enraizada na descendência espanhola e indígena, assim como a de
tantos povoados latino-americanos, e que reforça a presença de elementos de ambas as
culturas. No trecho onde Gabriel García Márquez descreve a matriarca precisando de
ajuda na criação das crianças, ele diz:
Algumas sopas incomuns para o cardápio ocidental podem ser ricas em nutrientes, assim
como raízes terem propriedades específicas para algumas doenças, conforme
(MÁRQUEZ, 1994, p. 20) mostra: “‘Estes meninos andam sorumbáticos’, dizia Úrsula.
‘Devem estar com lombrigas.’ Preparou-lhes uma repugnante poção de erva-de-santa-
maria amassada”.
Das pessoas que possuem grande conhecimento para buscar remédios na natureza
estão as benzedeiras. Essas mulheres se encontram espalhadas por praticamente toda a
América Latina e, conforme explica o antropólogo João Baptista Borges Pereira, “no
Brasil, a benzedeira passa elementos sincréticos, misturados, com influências indígenas e
africanas, ligada às influências portuguesas” (MARTINS, 2017). Não apenas um exemplo
da singular religiosidade que surge a partir desse sincretismo, elas representam uma forte
relação com as espécies de vegetais que compõem o ambiente onde vivem. O
conhecimento das receitas e propriedades terapêuticas dos vegetais tradicionalmente não
são obtidos através do estudo de botânica, mas sim passados pela oralidade de uma
geração para a outra. O que conta muito nessa atividade mais uma vez é a experiência, já
que, quem costuma exercer o papel de benzedeira geralmente são as pessoas de mais idade
da família.
Essas práticas e receitas podem causar certo espanto a quem tem contato com elas
pela primeira vez, contudo, assim como diz Carneiro Leão (1997, p. 13 apud. UNGER,
2001, p. 137), “o espanto se tornou logo curiosidade e a busca do interessante substituiu
rapidamente a admiração”. Esse mesmo espanto é a semente do pensamento filosófico. É
ele que impulsiona a investigação ao aguçar a curiosidade. Essa abertura ao não-saber,
que para Heidegger é “abertura ao mistério” permite um novo enraizamento do
conhecimento. O mistério, por sua vez, abre o caminho para a contemplação, ou o
pensamento meditativo, o qual, conforme discutido anteriormente, permite observas as
coisas como elas são.
Essa forma de reflexão demonstra as diversas nuances a partir das quais os latino-
americanos se envolvem com a natureza. Um exemplo emblemático de uma dessas formas
através da qual lidamos com a natureza é a Floresta da Tijuca, a qual mencionei
anteriormente como tendo sido um ambiente no qual passei expressiva parte de minha
infância e adolescência. Conforme conta Aderbal Moreira Costa (2008), que coordena
organizações de manutenção e resgate do complexo cultural dos povos tradicionais de
terreiros, no tempo do Império, a monocultura do café cultivado na região por grandes
fazendeiros e proprietários portugueses foi a responsável por severos impactos ambientais
77
entre os quais erosão do solo pela perda da vegetação nativa e, consequentemente, redução
na disponibilidade de recursos hídricos, sendo essa região o abrigo de nascentes de
diversos rios que servem à cidade carioca. Devido a essa escassez hídrica, a população
começou a sofrer com uma série de faltas d’água fazendo com que Dom Pedro II tivesse
que intervir. A solução da intervenção foi o reflorestamento da enorme área e recuperação
dos mananciais, que teve como resultado o “primeiro reflorestamento heterogêneo (com
espécies diversificadas) do Ocidente”! (COSTA, 2008). Atualmente, essa região que se
tornou um Parque Nacional possui, mesmo que plantadas por ação antrópica, uma enorme
diversidade de flora nativa característica do bioma Mata Atlântica. Conforme Costa
(2008) conta:
mas ao longo do trabalho pude perceber o quanto diversos elementos mostram que suas
formas de pensar encontravam-se em algum grau alinhados. Esta forma “ingênua” de
conceitos teóricos, mas que se explicitam através da práxis ecofenomenológica do latino-
americano se traduz a partir da frase que Chico Mendes em certa ocasião diz para sua
amiga de lutas Marina Silva: “Nega velha, isso que a gente faz aqui é ecologia. Acabei de
descobrir isso no Rio de Janeiro” (LÖWY, 2014, p. 16).
79
CONSIDERAÇÕES FINAIS
mistura de culturas e hábitos que resultaram nesse ser plural. A crise ambiental, por sua
vez, é global. Apesar de impactos se darem em maior ou menor escala de localidade, eles
ocorrem em algum grau, seja na Europa, na Oceania ou na América, quis ao longo do
desenvolvimento do trabalho discutir sobre o que nós, latino-americanos, temos a partir
de uma ótica da ecofenomenologia. Percebi, a partir do produzir da obra de arte, como
essa relação com a natureza se manifesta. Contudo, com base nas questões levantadas,
quais caminhos temos abertos ainda para trilhar essa ecofenomenologia?
Um ramo das ciências naturais que se propõe a abordar a questão da natureza por
um viés existencialista, o que segue em linha com as perspectivas de Heidegger é a
geografia. A geografia pode ser considerada a ciência vanguardista ao agregar em sua
ementa a discussão sobre uma nova relação entre natureza e sociedade (MARANDOLA
JR, 2017). A preocupação com esse tópico foi enriquecida com o uso da fenomenologia
na experiência geográfica, possibilitando uma ciência com viés mais humanista e novos
valores e experiência ambiental. O resultado é que os estudos desta ciência “têm
contribuído para que a compreensão da relação natureza-sociedade inclua a perspectiva
da experiência” (MARANDOLA JR., p. 14, 2017). Surge a partir daí, então, uma
geografia romântica na qual a paixão se associa com a razão, é uma ciência que permite
que sentimentos sejam vividos. Consequentemente, a problemática ambiental passa, dessa
forma, a ser enxergada a partir de um comprometimento existencial, uma ciência que
compreende a filosofia, “que desvia da geometria em busca da geografia. Essa grafia é a
própria existência humana em sua relação orgânica com a Terra [itálico no original]”
(MARANDOLA JR, 2015, p. xiii). Desdobra-se assim, uma resposta à crise de
fundamentos da ciência, conforme enunciado por Heidegger (2009a), ao se buscar a
essência das ciências, voltando-as para a interdisciplinaridade dos campos do
conhecimento, o que possibilita nesse caso, o da geografia, refletir sobre a relação do ser
humano com a natureza (MARANDOLA, 2015).
Não considero a ecofenomenologia como uma disciplina rígida, onde está definido
severamente seu escopo, mas sim um campo no qual se baseia a interdisciplinaridade. Da
mesma forma, a ecofenomenologia não busca se fundamentar sobre imperativos éticos,
também rígidos, mas o caminho que se segue é o contrário. Conforme afirma a filósofa
colombiana Ana Patricia Noguera “a singularidade do ethos ambiental é que esse emerge
da terra, como território conceitual que permite habitar a terra poeticamente”
81
(NOGUERA, 2017, p. 10)31. Ecofenomenologia lida com a relação que temos com a
natureza, não poderia então ser a geografia humanista estudada por Holzer (1999),
Oliveira (2000) e Marandola Jr (2005) uma ecofenomenologia? Ou, da mesma forma, a
geopoética que também se fundamenta nesse “habitar poeticamente a terra”, assim como
abordado por De Paula (2016), Noguera (2017), Gratão (2002)? Ou ainda a ecologia
cosmocena de Pereira (2016) e a hidropoética de Bernal (2015) e Unger (2001), por mais
que a última não utilize esse termo?
Ao fundamentar a discussão na América Latina, busquei trazer como a
ecofenomenologia se evidencia de forma naturalmente poética, corroborando com o que
afirma Noguera (2017), o pensamento ambiental do hemisfério sul significa habitar
poeticamente a terra para que a vida floresça. Essa forma poética de habitar é que
fundamenta o cuidado e a preservação com a natureza. Para o líder de lutas camponesas
e indígenas peruanas, Hugo Blanco, as comunidades originárias já seguem esses ideais há
vários séculos (LÖWY, 2014).
A América Latina é aqui a terra que sustenta uma grande árvore. Na raiz da árvore
estão as diversas culturas que acabaram dando base para o que é o latino-americano
moderno, que por sua vez é o tronco. Algumas dessas raízes estão tão profundas que não
as conhecemos exatamente, mas ainda assim contribuíram para o crescimento dessa
árvore. Os galhos e folhas, são as diversas formas nas quais a natureza se manifesta
fenomenologicamente, ou auto-emerge. Lima (2019) conta em sua tese sobre o caso de
uma Gameleira que foi cortada e submersa em Yapira após a construção de uma barragem.
No início de 2018, foi realizada uma atividade de retirada de sedimentos, e os payayá
mais antigos, que recordavam da existência da árvore na beira da barragem, ficaram
surpresos ao constatar que sua raiz continuava intacta. Contudo, a árvore não vivia. É
necessário que as folhas se oxigenem, recebam luz continuamente, e se espalhem para
que a vida se preserve.
31
Tradução livre de: “La singularidad del ethos ambiental es que este emerge de la tierra, como territorio
conceptual que permite habitar la tierra poéticamente.”
82
REFERÊNCIAS
AGL. Dicionário indígena resgata língua original brasileira. Portal Galego da Língua.
[S. l.], 16 set 2009. Disponível em: https://www.pglingua.org/especiais/espaco-
brasil/1250-dicionario-indigena-resgata-lingua-original-brasileira. Acesso em: 22 set
2019.
BARROS, J. F. P.; TEIXEIRA, M. L. L. Sassanhe: o “cantar das folhas” e a construção
do ser. In: NASCIMENTO, E. L. (Org.) Guerreiras de natureza: Mulher negra,
religiosidade e ambiente. Série Sankofa: Matrizes Africanas da Cultura Brasileira. Vol.
3. São Paulo: Selo Negro, 2012, p. 201-227.
BARROS, M. D. Poesia Completa. São Paulo: Editora Leya, 2011.
BASTIDE, R. As Religiões Africanas no Brasil: Contribuição a uma Sociologia das
Interpenetrações de Civilizações. Primeiro Volume. Tradução Maria Eloisa Capellato e
Olívia Krähenbühl. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1971.
BATISTA, A.; GONZAGA, L. Xote ecológico. Vou te matar de cheiro. 1989.
BENJAMIN, W. Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, W. Obras Escolhidas.
Tradução Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, v. 1, 1985.
BERNAL, D. A. A rosa do deserto: hidropoéticas do lugar no habitar urbano
contemporâneo. 2015. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Universidade Estadual de
Campinas, Campinas.
BONZI, R. S. Meio século de Primavera silenciosa: um livro que mudou o mundo.
Desenvolvimento e Meio Ambiente, Curitiba, p. 207-215, jul-dez 2013.
BRANDÃO, G. G. Investigações sobre a experiência em ecologia profunda. REVISTA
DO NUFEN, v. 9, p. 75-90, 2017.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente. Conselho Nacional do Meio Ambiente.
Resolução Conama 357, de 17 de março de 2005. Dispõe sobre a classificação dos corpos
de água e diretrizes ambientais para o seu enquadramento, bem como estabelece as
condições e padrões de lançamento de efluentes, e dá outras providências. Diário Oficial
da União: nº 053, Brasília, DF, 18 mar. 2005. Disponível em
http://www2.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=459 Acesso em 06 jan.
2020.
BROWN, C. Segue o seco: Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão. 1994.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=l4WLDrN_5k0 . Acesso em 4 abr.
2019.
BROWN, C. S. The Real and the Good: Phenomenology and the Possibility of an
Axiological Rationality. In: BROWN, C. S.; TOADVINE, T. (Eds.) Eco-
phenomenology: back to the earth itself. New York: State University of New York Press,
2003. p. 3-18.
BROWN, C.; TOADVINE, T. (Eds.) Eco-phenomenology: back to the earth itself. Nova
Iorque: SUNY, 2003.
CARSON, R. Primavera Silenciosa. Tradução Raul de Polillo. 2. ed. São Paulo: Edições
Melhoramentos, 1966.
83
Equipo técnico de Ecología Política. Chico Mendes, 25 Años Después. Ecología Política,
no. 46, 2013, p. 136–147. JSTOR, Disponível em: www.jstor.org/stable/43526899.
Acesso em: 22 Fev 2020.
FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. 1 ed. Salvador:
EDUFBA, 2008.
FAO; FIDA; UNICEF; PMA; OMS. El estado de la seguridad alimentaria y la
nutrición en el mundo. Fomentando la resiliencia climática en aras de la seguridad
alimentaria y la nutrición. FAO. Roma, p. 218. 2018.
FOLTZ, B. V. Habitar a Terra: Heidegger, ética ambiental e a metafísica da natureza.
Lisboa: Instituto Piaget, 1995.
FRANÇA, J. L. D. F. Acerca da Fenomenologia existencial de Merleau-Ponty. In: LIMA,
A. B. M. (Org.) Ensaios sobre fenomenologia: Husserl, Heidegger e Merleau-Ponty.
Ilhéus: Editora da UESC, 2014. p. 77-102.
GALEANO, E. La Naturaleza no es muda. Semanario Brecha. Montevideu: [s.n.]. 18
abr 2008.
_____. Os Filhos dos dias. 2. ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 2012.
GIARDINA, M. La pregunta por la tierra. In: VATTIMO, G.; GIARDINA, M.;
POBIERZYM, R. P. Heidegger y la cuestión ecológica. Buenos Aires: [s.n.], 2015. p.
25-68.
GRATÃO, L. H. B. A poética d’ “O Rio” – ARAGUAIA! De Cheias... &... Vazantes...
(À) Luz da Imaginação! 2002. 354p. tese (Doutorado em Geografia) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.
GUATTARI, F. As três ecologias. Tradução Maria Cristina F. Bittencourt. 19. ed.
Campinas: Papirus, 2012.
HABITZREUTER, V. O Ser em Heidegger: Mística? Revista Humus, v. 1, p. 93-104,
2011.
HEIDEGGER, M. A Coisa. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências. Tradução
Márcia Sá Cavalcante Schuback. 5. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008a. p. 143-164.
_____. A Origem da Obra de Arte. São Paulo: Edições 70, 2010.
_____. A questão da técnica. Scientiae Studia, São Paulo, v. 5, n. 3, 2007, p. 375-398.
_____. A Questão sobre a Morada do Homem. Tradução Emanuel Carneiro Leão In:
Revista de Cultura. Petrópolis: Vozes, n. 4, ano 71, vol. LXXI, maio 1977b, p. 333-334
(53-54).
_____. Construir, Habitar, Pensar. In: HEIDEGGER, M. Ensaios e Conferências.
Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback. 5. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2008b. p.
125-141.
_____. Contribuições à Filosofia: do acontecimento apropriador. Tradução Marco
Antonio Casanova. 1. ed. Rio de Janeiro: Via Vérita, 2015.
_____. Introdução à Filosofia. Tradução Marco Antonio Casanova. 2 ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2009a.
_____. Introduction to Metaphysics. Tradução Gregory Fried e Richard Polt. 2. ed.
London: Yale University Press, 2014.
85