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O protagonismo histórico africano

A construção da identidade pela dimensão histórica é relevante por causa de uma das
maneiras para a colonização ter a sua expansão e controle bem-sucedidos, o “aniquilamento”
de qualquer proximidade com o passado, ou seja, a memória de um povo. Especificamente
acerca da filosofia africana essa memória tornou-se uma ferramenta de afirmação.
Com o “aniquilamento colonial” da memória ocultou-se a contribuição dos povos
africanos para o desenvolvimento intelectual humano, pois para o imaginário colonial não
haveria possibilidade de povos negros desenvolverem uma investigação lógica e,
principalmente, de terem uma filosofia que influenciaria o surgimento na Grécia antiga.
A origem etíope da filosofia possui uma articulação com os idiomas que ali circulavam
(o gue’ez e o aramaico) e as investigações se sucediam em grande parte sobre o humano, em
seu caráter cosmológico e vital.
A filosofia egípcia era praticada por filósofos-sacerdotes que escreviam sobre seshat: o
que está escondido, secreto. Dessa forma, de acordo com o autor, por mais que tenha havido
uma junção filósofos-sacerdotes, ocorreu o surgimento de uma multiplicidade de escolas que,
reunidas, formaram o sistema filosófico de Sais: “a pluralidade das escolas mostra uma riqueza
de nuances filosóficas, sem omitir o que era comum a todas estas escolas de pensamento: uma
teoria de criação e da natureza dos elementos básicos”.(Cosmologia e metafísica).
Por esse modo a vivência intelectual no Egito antigo não se reproduzia para atender
somente a prescrições da conduta humana. Inclusive, Obenga explica que haveria um ensino
embasado em alguns ensinamentos (sebaiyt) que formavam aqueles que escreviam as normas
e elaboravam argumentos cosmológicos sobre o ser humano e o mundo. Esses eram os escribas:
“[eles] forjaram o pensamento egípcio e mantiveram, durantes três milênios, os valores morais,
intelectuais, culturais, espirituais, científicos, etc. da sociedade faraônica” (OBENGA, 1990,
p. 207). Entretanto, nos círculos acadêmicos há sempre uma tentativa de desqualificação desta
filosofia por ela ser vinculada com princípios religiosos, o que, segundo tais círculos,
“impediria uma liberdade racional” para uma organização sistemática dos saberes, como havia
se efetivado na antiga civilização grega.
Para além de reducionista e etnocêntrico, este argumento revela uma estratégia
recorrentemente utilizada de atribuir um caráter de a-filosófico a outras matrizes filosóficas por
estarem vinculadas a princípios sagrados, ignorando que “a filosofia tem que ser compreendida
como unidade existencial; isto é, como complementaridade entre o pensamento e a vida
efetiva”. Além do que há uma literatura ocultada pela academia brasileira não apenas sobre a
existência de filosofia fora da Grécia, mas também sobre as influências e como os gregos se
apropriaram de tais filosofias. Isso reitera, o silogismo do racismo que assegura que “o negro
não tem filosofia, ele é uma mentalidade pré-lógica, etc.” (TOWA, 2015, p. 27). Por
conseguinte, a oposição a tal ideologia foi crucial através das descobertas sobre a presença
milenar de uma filosofia africana.
E acrescenta-se, no caso do Egito em particular, uma insistente dificuldade da mente
colonial de reconhecê-lo em sua força filosófica por um “detalhe”: o Egito antigo era uma
civilização negro-africana. Essa afirmação para o entendimento colonial não condiz com a
realidade, já que não há, nessa visão, possibilidade de povos negros terem produzido uma
“investigação lógica sobre o mundo”.
Identidade Africana
Ao tratar da identidade africana, se privilegia um aprofundamento teórico sobre a
dimensão racial pois a considera um dos elementos marcadores da identidade para o africano.
É verdade, é claro, que a identidade africana ainda está em processo de formação. Não
há uma identidade final que seja africana. Mas, ao mesmo tempo, existe uma identidade
nascente. E ela tem certo contexto e certo sentido. Porque, quando alguém me encontra,
digamos, numa loja de Cambridge, ele indaga: você é da África? O que significa que a África
representa alguma coisa para algumas pessoas. Cada um desses rótulos tem um sentido, um
preço e uma responsabilidade (ACHEBE, 198250 apud APPIAH, 2010, p. 112, grifos nossos).
Quem é o africano?
Primeiramente os termos civilização e raça, para Senghor, teriam a mesma
correspondência com a realidade, já que podem ser definidos como conjuntos que reúnem
aproximações territoriais ou físicas entre as populações. Assim, mesmo com o processo de
escravatura para a América, a população negra, apesar da mestiçagem e de um novo ambiente,
permaneceria com os modelos “psíquicos” dos\as africanos\as. Nesse sentido, a unificação dos
povos africanos não se determinaria exclusivamente pelo fenótipo( tipo físico), mas pelo
comportamento de interagir com o mundo.
Quem eu sou?
“Em que consiste realmente nosso ser próprio, e em geral, o ser próprio de um povo ou
um conjunto de povos?” (TOWA, 2011, p. 172). A dificuldade de responder a essa
problematização relaciona-se à dificuldade de identificar aquilo que é específico no Outro,
como a cultura, por exemplo. Towa explica que a primeira variedade que vem à mente é racial,
mas não há uma diversidade de raças, e sim uma racialização que hierarquiza.
Desse modo, a identidade se enraíza de maneira inconsciente, mas se conscientiza
quando é contestada ou ameaçada por Outros. E o principal ponto dessa interpretação do autor
é que a identidade é construída por causa do “Outro” e não por um “eu”: “julgando, condenando
meu próprio ser, o Outro me obrigou a retornar a mim mesmo um olhar angustiante para ver o
que sou” (TOWA, 2011, p. 178). Todavia, esse retorno “angustiante” do próprio olhar, de
acordo com o autor, motiva um reconhecimento das especificidades da “minha” identidade e
rejeita os termos pejorativos imputados ao “meu” ser. Com isso, Towa argumenta que no
âmbito cultural a contestação apenas seria possível justamente pela presença “estranha” que a
cultura do “Outro” revela à “minha cultura”.
Uma civilização, uma cultura somente afirmam a sua diferença diante da cultura que a
contesta e que ela pretende contestar em troca. Minha identidade, essa que afirmo meu próprio
ser e é determinada ao menos em parte pela identidade da cultura a qual eu me oponho. Pode-
se por consequência esperar que a definição da minha identidade mude substancialmente
conforme ao que me refiro a tal civilização ou a outra civilização (TOWA, 2011, 179).
A qual lugar pertenço?
Para Mbembe o debate sobre a identidade africana caracterizou-se por dois caminhos
que pretenderam “falar em ‘nome’ da África como um todo” (MBEMBE, 2001, 175). De um
lado um tipo político-nacionalista utilizando a retórica da autonomia, da resistência e da
emancipação com a intenção de legitimar um discurso “africano” autêntico e, de outro, um
movimento que partiu de uma ênfase à “condição nativa ” que buscava uma única identidade
africana tomando como base a raça.
Com isso, uma das possibilidades que Mbembe destaca para pensar uma identidade
mediante a variedade de encontros no continente africano é traduzi-la em termos da localidade.
Assim, para Mbembe, as tentativas anteriores e mais recentes de definir uma identidade
africana falharam por compreender o tempo como espaço e a identidade como uma geografia
e não se atentaram para o fato de uma inexistência de possível unificação por meio da
identidade africana:
Não há nenhuma identidade africana que possa ser designada por um único termo, ou
que possa ser nomeada por uma única palavra; ou que possa ser subsumida a uma única
categoria. A identidade africana não existe como substância. Ela é constituída, de variantes
formas, através de uma série de práticas, notavelmente as práticas do eu (MBEMBE, 2001, p.
198, grifos do autor).
Conforme tal definição, a identidade africana precisa ser tomada como local, por meio
do território. Com isso, a resposta da pergunta “a qual lugar pertenço?” compreenderia por
meio do caráter da “raça” uma convocação de alteridade. A partir disso, é possível aos povos
africanos orientarem cada um para uma série de identificações: “sou um escritor igbo, porque
essa é a minha cultura básica: nigeriano africano e escritor... não, primeiro negro, depois
escritor” (ACHEBE, 1982 apud APPIAH, 2010, p. 111).
Ao se referir a uma identidade africana por meio da raça, através desses três autores é
possível concluir que a raça determinou que a unidade apenas se efetiva por meio da
multiplicidade, além do que é a localidade que identifica o grupo humano e não uma atribuição
generalizante ou essencialista.
E a identidade africana tem sentido quando se refere primeiramente à localidade para
depois ter uma possível “globalização”, inclusive por causa do colonialismo e da escravatura
foi imposta à população diaspórica( a que foi obrigada a sair do continente africano) africana
o distanciamento histórico e geográfico da ancestralidade. Entretanto, esse distanciamento é
relativo por causa do corpo negro que expõe essa conexão tanto histórica quanto geográfica. A
partir disso, é importante ressaltar que o Iluminismo europeu inseriu o negro-africano dentro
de uma “diferença ontológica”(uma diferença no ser) (MBEMBE, 2001, p. 178) que o separava
da humanidade e o corpo negro seria justamente essa testemunha “que supostamente não
continha nenhuma forma de consciência, nem tinha nenhuma das características da razão ou
da beleza” (MBEMBE, 2001, 178). Nesse sentido, o “corpo negro” revela-se como a melhor
forma tanto de oposição ao ideário iluminista quanto, principalmente, de retomada da
experiência do pertencimento africano.

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