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O PROBLEMA DA JUSTICA Hans Kelsen Martins Fontes ‘ooo 1998 Sumario Inirodugdo (© PROBLEMA DA JUSTICA, LAs normas da justisa ILA doutrina do direito natur Obras de Hans Kelsen sobre a justica Notas eae vir 9 123 Introdugio de Mario O. Lsano a edi itaana de © problema da justia 1. Origens do ensaio kelseniano sobre a justica [Na segunda edigdo de Teoria pura do direito, publica- dda em 1960, Hans Kelsen incluiu um grande ensaio sobre © problema da justiga!. Incluiu-o naquele volume porque I problema é de importancia decisiva para a politica ju- ridica”; contudo, isolou-o do texto, apresentando-o como apéndice “porque o problema da justica, enquanto proble ma valorativo, situa-se fora de uma teoria do direito que se limita & andlise do diteito positivo como sendo a reali- dade juridica”®, ‘O ensaio sobre a justiga, embora ja traduzido em 1966, no pode ser acrescentado & volumosa edigio italiana de La dotirina pura del diritto. Num primeiro momento, pen- sando em reunir num volume os textos de Kelsen sobre a justiga, em comum acordo com ele eu separara alguns en- saios que deveriam ter acompanhado o presente texto. O projeto, porém, no pode ser realizado ¢ 0 ensaio sobre a justica ficou engavetado por uma década na editora. Hoje ele € publicado num contexto profundamente di- ferente do existente hi dez anos. ‘0 pensamento jusnaturalista evigorou-se ea sociolo- aia do direito conquistou um lugar ao sol entre as discpl nas juridicas. A atengdo dos fildsofos do direito deslocou- se das teorias formalistas para as realistas no esforgo de vu 0 PRonLena Da susTICA preencher 0 hiato cada vez maior entre teoria¢ realidade Juridica, ou para as teorias analitico-linguisicas no esfor- 50 de elucidar uso e pressupostos do discurso juridico. O Felativismo kelseniano ea atitude tolerante a ele associada no parecem mais instrumentos adequados aesta época de uta politica sem quartel AA saida da teoria pura do dircito da polémica didria ccaminha pari passu com a sua avaliagdo hist6rica mais me- ditada. A morte do nonagenario Hans Kelsen — ocorrida em Berkeley, California, em 19 de abril de 1973 — assina la quase simbolicamente a cristalizagdo em forma defini vva de uma teoria recentemente inovada por seu autor. Ji em 1971, entretanto, o governo austriaco eriara em Viena um Hans Kelsen-Institut, com a funcio de “‘documentar a obra de Hans Kelsen, a teoria pura do diteto e sua for- tuna na patria e no exterior e de fornecer informagbes a seu respeito, favorecendo seu aprofundamento, continui- dade e desenvolvimento”. ‘A criagdo deste insticuto é uma resposta eficaz ao in- teresse geral por um reexame da obra de Kelsen em sua to- talidade: de fato, enquanto as polemicas passadas ocupa- +am-se principalmente de aspectos isolados de seus textos (em particular dos juridico-metodolégicos), nos wltimos anos voltou-se a iratar globalmente de outros aspectos im- portantes do pensamento de Kelsen: assim, vieram a lume as colepbes de trabalhos de critica ideolégica de Hans Kel- sen (que, em certo periodo de sua vida, esteve préximo dos ‘marxistas austriacos)e, mais recentemente, scus ensaios de cunho &tico ¢ filasético’ ‘A multiplicidade dos interesses de Kelsen se reflete no agrande nimero de artigos ¢ livros (mais de seiscentos), rm {os dos quais traduzidos para o italiano. A grande quan- tidade de textos pode constituir um obsticulo a0 conheci ‘mento dos varios componentes do pensamento kelseniano. Por isso, era importante completar suas obras constantes eraoougio, 1x 4a colegdo Einaudi com este ensaio sobre a justiga: em So- ciedade e natureza’, 0 Ieitor encontraré 0 pensamento de Kelsen sobre a realidade; nas varias edigdes da Teoria pura do direito,o seu pensamento sobre o ordenamento e a or- enact urea; em 0 problema da usta, seu pensamenio 2. A pureza metodologica e a teoria da justica (s autores que trataram dos sistemas normativos éti- «0 e juridico também tiveram de tratar do problema da jus- tiga. Portanto, ao apresentar este ensaio de Kelsen eu ti- tha duas possiblidades: por um lado, confrontar a teoria kKelseniana da justica com as de outros autores; por outro, identificar 05 nexos existentes entre a teoria da justiga de Kelsen (que cuida de um valor) ea sua teoria do direito que se define pura porque evi segunda possibilidade porque considero que um confronto ‘entre diversas teorias da justia pressupde um estudo de con- junto, inexistente até agora, sobre os nexos entre a teoria kelseniana do direitoe a teoria Kelseniana da justiga. Estas paginas se limitardo, portanto, a nog de justiea no am- bito da teoria pura do dircito. Do ponto de vista do método, Kelsen foi rigoroso a ponto de ser monétono; em seus ensaios sobre o direito ele retoma, revé e aperfeigoa continuamente o tema da pureza metodolégica, ou seja, do estudo do direito em sie por si, sem influéncias de outras isciplinas. Do ponto de vista da temética, a0 contrario, Kelsen tratou também dos temas sociol6gicos eétcos ligados a ordenacdo juridica, mas sem- re com a constante preocupagio de manter a distingao entre ‘a metodologia juridica ¢ a de outras disciptinas. No fun- do, a sociologiae a justica interessam-no apenas na medi- dda'em que interferem no diteito. x 0 Paonuena D4 susrica Conseqiientemente, é da sua teoria do direito que se deve partir caso se deseje compreender sua teoria da jus- tiga. Em particular, as grandes inhas da metodologia ado- ada por Kelsen na construgao de uma doutrina pura do direto e os problemas relacionados a essa metodologia ex plicam por que a teoria kelseniana da justiga se configura {do modo ilustrado neste volume. Os pardgrafos 3.a 6 da ‘minha introdugao sero, por isso, dedicados & pureza jurt- dica e aos problemas por ela sustitados; os sucessivos, a0 contrario, cuidardo da teoria kelseniana da justica 3. 0 debate sobre a auséncia de juizos de valor rnas ciéncias Socials seus reflexos na obra de Kelsen © problema da pureza metodologica é reflexo direto da posi¢do assumida por Kelsen na discussao sobre a au- séncia de juizos de valor nas ciencias sociais, vivssima na ‘Alemanha dos primeiros anos de nosso século. Embora ja fios decénios anteriores a discussio metodolésica sobre a economia (a “*Methodenstreit”) houvesse oposto Gustav Schmoller a Carl Menger, é possivel tomar uma data, um Acontecimento ¢ um texto como ponto iniial da discussio sobre 0s juizos de valor: em 1904, Max Weber, Werner Som- bart e Edgar Jaffé entram para a redagio da revista Ar- chiv fur Gesetzgebung und Statistik (Arquivo para alesis- Tagdo e a estatistica)e, depois de mudar o seu nome para Archiv fir Soziatwissenschaft und Socialpolitik (Arquivo para a cigncia e a politica social), publicam um artigo de ‘Max Weber no qual o programa dos novos redatores & ex- pressado com clareza incisiva: “‘Realizar a distingao entre © conhecer ¢ 6 valorar, ou seja, entre o cumprimento do ever cientifico de ver & verdade dos fatos eo cumprimen- to do dever pratico de defender os préprios ideas: este € 9 programa ao qual pretendemes mante-ns frmemente wsrnou¢i0 x Era.a declaragao de guerra a Schmoller e & escola eco- ndmica dos “socialistas da catedra”, formada em torno de sua revista. Em 1909, 0 grupo encaberado por Weber separa-se da Verein fur Sozialpotitik (Unido para a politi- ca social) de Schmoller. A polémica se acendera em 27 de setembro de 1909, na reunido vienense da Verein fir So- Zalpolitik, durante a qual os presidentes chegaram a cas- sar apalavra de muitos oradores que ndo respeitaram a proi- bigdo de formular juizos de valor; depois da reunio, os participantes trocaram cartas de reprovacao e Weber aban donou a Verein'®, Nascia assim a Deutsche Gesellschaft fir Soziologie (Sociedade alema para a sociologia), que se pro- ppunha discutir 0s temas sociopoliticos sem emitirjuizos de valor. ‘A posigdo de Schmoller era muito indefinida: “Eu daria raziio a Weber se, como ele, estivesse convencido da abso- lta subjetividade de todos 0s juizos de valor; isso pode ser verdade, mas ao lado dos julzos de valor subjetivos hd tam- bbém os objetivos, dos quais partilham nao s6 individuos ‘u estudiosos isoladamente mas também grandes comuni- dads, povos, épocas, na verdade, todo 0 universo cultu- ral. Quem 6 pensa nos juizos e nos ideais de classe, parti- do e interesse, dard razdo a Weber. Quem, a0 contraio, acredita na marcha vitoriosa dos juizos objetivos sobre os ideais morais e politicos unilateras, tanto na ciéncia quan: to.na vida, nio considerard com tanto desprezo, como faz Weber, a sua introdugio na ciéncia.”!! Kelsen, mesmo adotando posigdes weberianas, iniciaimente ndo ficou in- sensivel a esse tipo de argumentago, como se v8 nos tre- chos citados as pp. XXV-VI. 'No curso da polémica, Weber chega a ndo suportar mais nfo s6 0s juizos de valor como também quem 0s for- ‘mula, como se pode perceber em uma carta escrita depois do congresso de Berlim de 1912, durante o qual — escreve cle — as oradores oficiais, com uma tnica exceglo, “agi-

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