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PINA DE MORAIS SANGUE PLEBEU A Audiéncia do Diabo © extremo norte da Beira Alta e na altura em que os uiltimos contrafortes do Montemuro Se vém morrer no rio Douro, a Leste da estrada gue vai de Lamego 4 Régua, ha um caminho romano que prova- yelmente tinha o fim de ligar a tegiéo ribeirinha com as alturas a Sul. ¢ por fim, galgadas as serras, ir até aos vales do centro beirio. Este caminho remano € ainda hoje utilizado em parte e serve sobretudo para © trajecto entre Valdigem e Sande, Figueira ¢ Cambres. Serpeia a meia encosta das duas vertentes do Varosa, aberto quase na rocha e atingindo declives inverosimeis ao unir- se na ponte que atravessa este rio. Esta ponte romana ¢ perfeita ainda e fica mesmo ao acabar a goela das vertentes prestes a cer- rarem-se como duas fauces cansadas de jamais apanharem a sua presa. A entrada da ponte uma fraga, do lado oposto a esta uma cruz escura ¢ enorme, um Senhor morto, crucificado, que 0 povo diz ser o Senhor dos Aflitos. Se é dos aflitos também € meu. Dos caminheiros que por aqui passam, tiram o chapéu os homens ¢ as mulheres mexem os 140 Sangue Plebeu labios ¢ s6 desprendem o olhar da cruz ao contornarem a ilharga da fraga. E que este lugar € téo cheio de lendas presagas ¢ de contos sinistros que de noite raros se aventuram a passar ali, pre- ferindo dar uma volta de duas léguas pela estrada de Lamego. Parece que 0 Montemuro, ameno em quase todas as suas lom- bas, onde se apascenta o gado e crescem os cereais, guardou toda a revolta ingente das suas entranhas para explodir naquele lugar. O rio faz uma curva para se meter & ponte; nfo é uma curva doce, é uma curva de tortura, uma curva de serpente envene- nada. A Agua vai batida como as ideias dos homens ¢ dos Deuses, entre ravinas téo fundas, que nunca se fartam de beber © Wo fundas que € 0 tinico lugar do mundo onde a espuma é negra. As prdprias aves talham o voo de largo e nunca ali desli- zou a sombra duma asa abertal Apenas um pinheiro se ergue como um troféu entre a turba- multa do fraguedo. Aquilo foi semente virgem que 0 vento arras- tou ¢ procura ansiada, A custa de tudo, etguer o tronco ¢ abrir os bragos, a ver se encontra a mao do semeador. Ea rama verde sobre tanta atitude de desgraga incompreendida parece exprimit que nfo h4 mal sem esperanca, O povo tem razo, o diabo deve ali dar audiéncia, Hid recantos de terra como recantos de cérebro que a onda do conhecimento e do instinto nao galgam, As fragas vieram das eminéncias em torno, despedacadas, rolando em tropel, em espantosa derrocada, ¢ ao chegarem 20 abismo recuaram, encastelaram-se em detradeira coragem e sus- pensées que © pavor equilibra. Cobrindo toda a paisagem uma hostilidade ctua, tao crua que faz estremecer. Um lugar assim faz pensar que a terra odeia, O diabo escolhen este lugar para dar audiéncia ¢ a sugestio popular confirma-se também, porque existe um hemiciclo fan- By aU eulT aeniichT AD)! pia Albno) tdstico de calhaus negros que a curva do rio concentra ¢ porque ao meio deste hemiciclo infernal se ergue mais alto, dominando, uma cribuna. E a tribuna de Satan! Contudo hé naquela paisagem, onde a agua se enodoa e aflige ¢ as pedras hostilizam e enlouquecem, um minuto de beleza. As existéncias ainda as mais trégicas tém um momento de felici- dade. Esse minuto de beleza é quando o sol ao meio-dia, do mais alto do céu, jorra a luz — a luz doirada fulge € rasga-se por entre 0 fraguedo maldito ¢ tomba ferida como um corpo gene- roso numa batalha, O Belau, ao deitar as contas ao tempo que gastaria a chegar a casa, contrariou-se por ver que jé passaria de noite na ponte de Valdigem. Trabalhara toda a tarde no baldio de Figueita a derru- bar lenha para a sua lareira. Ninguém Id ia por ser longe ¢ dar cabo dum homem sé a subida da serra. O Belau ria-se, tijo como ago, juntava lenha para um Inverno em menos de uma semana. O sol quente do meio da tarde langava sobre o ar ene- voado e branco golpes de furta-fogo. Podia vir trovoada, isso nao fazia minga; 0 pior era a ponte. Escondeu o machado entre a urze, enrolou a faixa, cobriu a véstia e largou. Ao chegar & povoacao deu de cara com 0 tio Miguel, o sineiro que ia tocar as Trindades. — Louvado seja Deus, tio Miguel! — Para sempre seja louvado, senhor Anténio. — Como vai a obrigacao? Sempre me lembra de o conhecer na igreja ¢ hd bem anos, tem uma boa nomeada, tio Miguel. ~ LA isso tenho. Tenho tocado a muitas almas, nao é por falta de sino que S. Pedro nao Ihes vem abrir a porta. Este Sudeste t20 temporao dé cabo dos fenos. 71] 42 | sangue Plebes — Hi sol que rega ¢ vento que seca, retorquiu o Belau numa reviravolta de conversa. E palrando, foram juntos até & igreja por calhar o caminho a ambos, O tio Miguel tomou a maozeira de arame ¢ despreocu- pado, com uma energia maior que permitia a sua velhice, arran- cou de puxao. © arame rangeu ao longo da empena forte de gra- nito € 0 sino escuro ficou mudo. Como a igreja ficava alta, ouvit-se na meia claridade do crepisculo 0 assobiar do vento na torre quadrada. O tio Miguel teve um encolher de ombros para o sino e disse em vor baixa ao Belau: — E hoje! — Hoje 0 qué, tio Miguel? — Dé.o diabo audiéncia... nao vas! No siléncio estarrecido ouviram apenas 0 vento mais longe. — Aqueles assobios é para aquela banda, disse 0 Miguel, apon- tando com 0 queixo para o lado da ponte. Era 0 vendaval que se erguera stibito ¢ que assobiava sinistro por entre as coxias do formidavel hemiciclo de quilémetros de raio. Depois a voz mais mitida, ao ouvido numa confissao: — Olhe, senhor Anténio, olhe para o sino quando eu puxar 0 arame que obriga a dar as badaladas, ora olhe... ¢ puxou com forca. O sino escuro continuou mudo. O Belau fixou o olhar em torno do sino, a ver, a ver 0 que 0 tio Miguel queria dizer. — Nao vejo nada! o sino, mais nada... O tio Miguel riu-se como uma crianga com um brinquedo novo e, aproximando a voz do ouvido do Belau, informou: — No toca o sino, repare na meia luz, no alto da torre, onde batem as sombras dos torredes, repare, olhe, nao vé? A AvDIENcIA Do Dias | — Duas maos estranhas, descarnadas, agarrando com as falan- ges desmesuradas 0 sino ¢ uma boca delirante ¢ trégica colada ao rebordo do bronze? — Ah! nao vé? — comentou o tio Miguel ~ € melhor que nao vyeja. Sé me custa uma coisa, € que, no povo, vo dizer que o tio Miguel se esqueceu de tocar as trindades ¢ perde a Nossa Senhora muita Ave-Maria. Olhe, senhor Ant6nio, fique <4, ha audiéncia! O Belau despediu-se & pressa, a superstigao a trabalh4-lo como um veneno, os nervos a estremecerem como arames ¢ lar- gou as passadas fortes para apanhar depressa 0 tempo perdido e galgar cedo a ponte. Ainda o descansava a ideia de, vendo-se muito atrasado, ficar em casa do moleiro, ao fundo da ponte, 0 pai da Aurora... Leva rumor! Naquela noite havia audiéncia! O andamento nao rende, o Belau agitado néo anda como quetia, trocando os passos e cheio de receios por tudo, alanceado de interrogagées misteriosas, quedava-se a dizer letras de oracao ¢ a circunvagar o olhar na noite que descia. Ainda ia no Cabouco ¢ jd a escuridao era cerrada. A agua do rio tem 0 rufdo sombrio. como se fosse 0 arfar de toda aquela escuridao. A noite envolvia 0 Belau. As sombras sacm da terra como se a esventrassern, impe- lindo & superficie as escuridées misteriosas que ha no fundo dos pocos. Hé uma vida intensa em toda aquela escuridao. Palpita naquele seio torvo um sangue escuro e profundo em alquimias incompreendidas. © monstro da noite tem de vez em quando um artepio no desenho intenso de linhas de escuridao maior. Relampagos de negrume, tempestade de sombra na sombra. Recorreu ao seu animo ¢ procurando animar-se, exclamou: — Eh! Diabo! 143 44 Sangue Phebeu O Belau transido sente a sua volta uma populagéo espantosa de vultos. A Agua do rio deixa nos ouvidos do Belau um falario como vozear de gente, vindo do boqueirao sombrio onde corre a égua. A espantosa comogao da treva empolga-o, absorve-o, domina-o. Os sentidos espalham-se em feicao tentacular indefinida e per- dida. A noite apodera-se dele como duma presa. A noite que, diz © povo, Jesus temeu, nao teme ninguém, tem uma alma tio inyencivel como sombria. Jé ld vio algumas horas sem chegar a ponte, embora tenha coberto algumas voltas do caminho, Pelas aldeias 0 siléncio é tao amplo como fundo. No interior das habitagdes tudo dorme, A tia Ana Joaquina, de sessenta anos, uma estriga branca de cabelo caido sobre o albornoz, é que ainda se nao deitou ¢ tem um ciciar aflitivo nos lébios, Quando ia a erguer-se da lareira, sentiut barulho na giga de vime e feno onde guardava o pao. Foi ver, nao fosse algum murganho que desse com o pio novo pade- jado no mesmo dia. Nao. Persigna-se to trémula que néo atina com os lugares das cruzinhas, espalhando-as a esmo sobre si. A Pobre velha dera com o pio a mexer-se sozinho sem ninguém Ihe tocar, dentro da alcofa, batendo as cédeas até voltar 0 lado do lar para cima. A senhora Ana Joaquina viu logo que havia audiéncia aquela noite, louvado Deus. Quem hé-de acreditar 0 que anda no mundo, pensow a longa vida de contemplacéo da tia Ana. O que aterrorizava a velhinha era a ideia das desgracas que sempre aconteciam quando havia audiéncia. © Belau chegou ao iiltimo lango de caminho que dé para a ponte. Jé estava acesa a lampada de azeite que alumiava o Senhor dos Aflitos. Era uma jéia encastoada na sombra como em veludo negro. Resoluto, atravessou a ponte, mas nao teve forgas para continuar ¢, intensamente trabalhado pela superstigio, abrigou- Fhe AG UR Diu ingtc Ae Dio: = Dre AND HO) se A imagem sagrada do Senhor dos Aflitos, do temporal que the ia na alma. De joelhos, fixou o olhar no Senhor dos Aflitos, que Ihe pareceu ter uma afligéo maior. ‘A sua crenca transformou a pintura bogal sobre os rectangu- los de madeira; faz das imperfeicdes do desenho torturas sagra~ das; vé na imagem uma afligéo téo grande que desanatomiza as linhas ¢ degrada os contornos. © zarcio vermelho das chagas € tao sanguinolento que aperta o coragio, Uma ave-maria tortu- rada pelo esquecimento, a palavra desencontrada pelo medo, tropecou-lhe na boca. Serenou. Parecia-lhe que 0 Senhor dos Aflitos guardava as afligoes que se Ihe dirigiam, ¢ relanceia os olhos para o Cristo onde o pobre Belau via, comovido, emogio ¢ arte em todas as imperfeicdes. © Belau impressionou-se tanto com a imagem que julgou misteriosamente as chagas abertas por cada dor que ali ia bater, © que sendo assim nunca se poderiam fechar, ‘Afinal o esttanho pintor do Senhor dos Aflitos era 0 cotagio do povo, que de geracéo em geracio ali deixava as suas tintas de mégoa. © Belau serenou e abengoou a mao piedosa que acendia aquela luz todas as noites, a filha do moleiro da represa grande, que vivia mergulhada na ravina envolvida em nuvens de farinha. Mais tranquilo, numa entreaberta do temporal, 0 Belau lem- brou-se de rogat ao Senhor dos Aflitos para 0 ajudar até ao fin da jornada, mas sobretudo de pedir perdao por quanto haveria de mau e inferior na sua vida, ¢ entGo da sua alma profunda saiu, como de um seio virgem, a pureza, a oracio, as palavras mal deal- bando & superficie dos labios, perdidas de intensidade e peniténcia. ~ Senhor dos Aflitos! Leva as minhas afligées, que me roem e me esfrangalham, leva as minhas afligoes, que me secam a carne como a febre, me azulam as pélpebras e me nfo deixam dormir. Senhor! levai-me a afligao que faz. roxa de sangue aos meus olhos 145 146 | Sangue Plebeu a manha clara de todo o Verao. Senhor, 86 0s vossos dedos naza- renos sabem o segredo de abrir 0 laco a esta sirga que me certa a garganta. Senhor dos Aflitos, sofzo tanto, que néo vieste 20 mundo por mais ninguém! Senhor dos Aflitos, s6 0 contorno das vossas chagas se ajusta 20 meu coragao € o nao deixa estalar, Senhor dos Aflitos, guardai nas cinco chagas, como nos cinco mares da terra, tanto softimento! Nunca vos trouxe as minhas alegrias, Senhor, porque eram pequenas; trago-vos sé as aflicées Porque quando dou, sou como um Rei, Senhor. Nem vés éreis senhor, Senhor! se vos nao dera um reino imenso a dor dos homens. J4 que tanto vos dou, dai-me Por vossa vez a humildade derradeira. Humildade t4o grande que 0 meu coragio chegue Para todos o pisarem, humildade tio grande que nao deixe higar para caber um pecado. Deixai a minha alma e a minha boca tocar as vossos pés, guardai o meu coragéo escurecido do pé dos caminhos. Fazei a minha vida clara como o amanhecer e dai-me os olhos do meu amor que sao duas cotovias, O tiltimo mexer dos ldbios acabou sobre a madeira fria € deserta da cruz, A sombra ululou num golpear de vento. A noite fez uma sarabanda apocaliptica e trégica, vendo-se nitidamente um esbar- rar de ondas de negrume de encontro & penhascada. A Aurora, a filha do moleiro, acordou sobressaltada; pareceu- lhe ver erguerem 0 chamadoiro de moinho. Levou as maos aos olhos, aténita, vendo a mé encanzinada rodando louca, substi- tuindo a musselina da farinha por uma poalha de lume. A dgua salta como um cavalo nas pds da roda grande, como se a massa liquida tivesse uma rede nervosa. Chama-se a Nossa Senhora ¢, toda trémula, deixa passar a tempestade, as mos postas sobre o peito, encostada num canto do moinho. A AUDIENCIA DO DIABO Fora, a sombra domina. Domina, absorve, iguala ¢ confunde. ‘A Aurora tem o pavor do mistérios a lembranga de que se ia dar audiéncia deixou-a transida, Na sua vida tinha acontecimen- tos que 0 seu entendimento nao esclarecia e que a faziam estre- mecer diante das forcas ignoradas do mundo. Quando sua mae morreu, a hera secular do moinho, que segurava a parede, foi-se pouco a pouco finando, transformando a folhagem verde numa camada ocre até tombar por fim deixando uma tecelagem de bracos descarnados tristes. A morte abrangera no mesmo sopro queimador 0 corpo transhiicido da moleirinha velha ¢ a vida da hera. E se nao fora a tia Ana Joaquina dizer-lhe que pusesse luto na colmeia, Id iriam, mortas de pena, as abelhas intranquilas que enchiam 0 boido de mel ¢ 0 eido do moinho de alegria, can- tando e desenhando fios doirados. Como elas morrem de pena! Se Maeterlink soubesse, que bela pagina escreverial Jé Michelet nao soube que as aves matam os filhos encarcerados. Sumida sobre a parede, esperou. ‘A noite tornara-se infinita. Vagas claridades de ermida, que as veres teimam de to alto a luta com a sombra, no existem. Duma vertente & outra crucitam, entendidas, as aves da noite, Estas aves abrem a garganta a expelir sombras ¢ prességios. A Agua do Varosa, encorpada pelo vento, bate mais violenta, espumejando mais negra sobre as ossaturas das margens. O vento revolve a escuridao as bracadas, 0 lampadario tosco do Senhor dos Aflitos agita-se como a luz da proa em mar de temporal. A luz de azeite, dangando sobre a imagem, amplia-a, torna-a mais angustiada — como se a cruz naufragasse naquele mar de sombra. © vento continua, o lampadario por fim oscila, choca com o madeiro, parte-se e tomba. A luz. clara bate como asas aflitivas, deixando no tiltimo relancear, na pintura grosseira, 47 14g Sangue Plebew uma angtistia de Calvario, uma anguistia de quem no tem mais sangue para verter pelo mundo, E a cruz ampliou os bracos na noite, II Mela noite, A vida para. A audiéncia vai comecat, Ha um negrume maior ordenado ¢ coleante, descendo de Figueira pela meia encosta fora até a entrada do hemiciclo — é uma guarda de honra de besteiros. O Belau, pregado & terra, nao podia mover-se, Do lado de Valdigem, no mirante de fraga mais alto que domina todo o vale, apareceu, num segundo, um cavaleiro de lume, de luz tao intensa que cegaria se durasse mais tempo. Da populacao imensa da noite saiu um clamor ovante ¢ mal- dito! De toda a figura de lume distinguiu-se a fronte torva, um olhar negro e fulgurante. Depois apenas se ouviu o resfolgar do coreel, galopando diabolicamente em esticdes espantosos, abran- gendo de cada andamento um quilémetro de encostada. Onde assentava as ferraduras, ouvia-se frigir o granito que derretia, para deixar gravada a passagem do ginete para todo 0 sempre, Ao contornar a ponte romana, 0 ginete, dum galao, firmou- se ao lado da tribuna maior ¢ a indumentiria flamejante do cavaleiro rebrilhou um segundo na sombra, como um grito no siléncio, O Belau ainda teve forcas para titubear: — Maldito sejas, Satan! Eial A chegada de Satan o vasto hemiciclo agitou-se confusa- mente, as sombras mexeram-se como ramarias duma floresta & KWDEBNGIA BO BEAL imagindtia, calhaus houve que rolaram sob pegadas brutais. Deualhes de feicdes, remendos de contornos, membros soltos, remexeram na sombra as suas formas de claridade instantaneas, que os olhos do Belau acompanhavam como o relampago duma trovoada. Era como se 0 corpo da sombra, informe e pesado, se reta- Ihasse impiedosamente em vagos ¢ delirantes destrogos huma- nos. Satan relanceou o olhar torvo sobre o hemiciclo espantoso, um olhar de general que avalia 0 seu exército, ¢ exclamou a praga eterna que 0 perdeu. A sua voz catadupou a abrir a audi- éncia, chamuscando a rocharia, requeimando as estevas humil- des ¢ alambarando pelo amplo circuito. © Belau sentiu nos olhos um ricochetear de brasas. E a assembleia ululou um clamor de vitéria ¢ irrompeu da noite por milhdes de bocas ocultas aplauso ovacionante a Satan. — Eo diabo maioral! — disse 0 Belau consigo. E mais intimamente pensou: — Acabam aqui os dias da minha vidal Nunca as fragas deram guarida a gente assim! Satan sottia. O Belau viu rasgar aquela face diabélica, de con- tornos de lume, ¢ comentou: — Por aqui nfo andou Cristo, nem esta terra esteve nas maos de Deus. © Belau teve um arrepio indefinido, que lhe interminava 0 corpo e a sensibilidade. Legendatias figuras do mal, que a arte fixou € as consciéncias soldaram a vida da humanidade, dese- nharam-se na sombra. © Belau abrangeu com um olhar corajoso a assembleia a que ju-lhe comen- Satan presidia, € um segundo de razao clara permi tar: ug 150 Sangue Plebeu ~ O que anda por este mundo! Habituou o olhar a ver aquele ambiente de sabat. Entdo havia, sem se verem, bocas invisiveis que devoram ¢ que segredam, mos que estrangulam sem deixar equimoses, que arrastam aos precipicios, que torturam, que, a0 contririo da Rainha Santa, mudam as flores em pio amargo de softimento? © Belau, que generosamente dava existéncia ao mistério, deixando-se envolver na aspiragao dos mundos, abracando-o, absorvendo-o nobremente, infilerando a sua alma na alma mis. teriosa universal, teve a impoténcia alanceada de todas as incompreensées. © entendimento ficou a guizalhar loucamente dentro da sabeca, quando reconhecen na assembleia figuras de mal que ajustava aos acontecimentos dolorosos da sua vida e que ihe explicavam as desgracas que passavam ao seu lado, E to vigorosa foi essa impressio, que erpueu os bragos, pro- vocando, e tougucjou para a escuridao: ~ Foi aquele! Foi aquele! E viu 0 Zé Augusto exactamente como naquela tarde de Agosto, o sol ardente pencirando diante da vista a cinza das canfculas, pimpio diante dos bois campeiros, descendo arrojado a ladeira da Cabrada. O carro ia pesado com 0 bojo enorme duma pipa de vinho ¢ ainda, para contrapeso, coisa de oito alqueites de pio nas chedas. Fiava do gado 0 lavrador. As mos. cas ferroavam impertinentes, zumbindo em torno dos animais, € 0 ¢ixo de azinho espacava a cantilena a cada solavanco ou escorregio do rodado. Num pedregulho do caminho desgra- sado teve um solavanco brutal, a pipa oscilou como um mons. tr0, 0 Zé Augusto gritou ao gado, que esticou as sogas © aguen- tou firme 0 carto; ia bem. E seguitia assim até ao fando da Barroca ~ ah! mas ao chegar a ultima volta, fechada como um i Arc oitesenGaoky DG) aeRO || punho ¢ empinada como um certo, © carro pega de zorro, os bois fulvos impotentes deslizam angustiados, escorregando especadas as quatro patas aos estremegoes da rigidez e desen- contro dos movimentos. Os bois, num ultimo esforgo, curvam ‘os dorsos unindo as patas, os pescogos tensos como tirantes, tentando deter a avantesma que rola. O Zé Augusto vai em polises e, animoso como era, atira fora a aguilhada, mete o ombro ao apeiro entre as molhelhas e grica ao ado ¢ anima-o... € aguele, aquele que via ali, movendo na sombra uma silhueta de tragos rubros e instantineos, pega nos cornos do boi da esquerda, o Bonito, torce-lhe a t4bua do pes- coco, leva-lhe as ventas cheias de baba a tocarem nos peitorais, as sogas esticaram, rangeram, partiram, 0 apeiro saltou € 0 carro, como um molusco gigantesco, parte solavancando. O Zé Augusto enrodilha-se no gado, ¢ 0 carro tomba escondendo-lhe © peito estoirado debaixo do bojo enorme, a boca golfando. ‘Ah! e tinha sido aquele, ninguém vira. Se 0 Zé Augusto soubesse, valente como era... ¢ 0 Belau pensou na vinganga justa, habituado a compreender a luta franca ¢ leal. LA estava também, de riso sanguinolento, o que desviara os pés do Zé da Ana, quando a ganhar 0 pao para os filhos, cimen- tava a cornija da fébrica ¢ o impelira na queda a estatelar-Ihe a arca do peito no lajedo pior, deixando-the o corpo como um molho... € que largou um sopro a incendiar-lhe o casebre na mesma hora negra, enquanto a mulher, confiada, lavava no rio os trapos com que fingiam vestir-se. ‘A assembleia prosseguia no hemiciclo fraguento ¢ na noite miseravel. Nas aldeias em torno, quando o assobio prolongado ¢ dis- forme do vendaval, vindo da serra, se abatia sobre os telhados de 151 152 Sangue Plebew telha va, despertando as pessoas, estas Pensavam na audiéncia do diabo ¢ diziama palavras de exorcismo, A moleira, transida no canto do moinho, a tia Ana Joaquina vam, A Gloria, a mulher do Belau, inquictava-se com a demora do seu homem; veio a porta ver o tempo ¢ logo se recolheu cheia de 152 Sangue Plebey telha va, despertando as pessoas, estas Pensavam na audiéncia do diabo e diziam palavras de exorcismo, A moleira, transida no canto do moinho, a tia Ana Joaquina tos da corte celestial, que mantinham apertada confianga com a tia Ana. No contente rezava ainda pelos animais que a cerca- vam. A Gloria, a mulher do Belaa, inquietava-se com a demora do seu homer; veio & porta ver o tempo e logo se recolheu cheia de Atinou 0 Belau com a ideia de que esta boca era a que, invi- Sfvel, se adapta & pobre boca dos homens Para falar tantas vezes! A boca monstruosa fer-se pequena e doce, e meliflua imitou © segredar melédico que leva ao siléncio das longas premedita- ses dos homens, que faz levantar criminoso © que se deitou nec eerece como a folha de magnélia um seio de viegem. Pareceu acabar 0 que tinha a dizer — porque na escuridao infinita teve um bocejo longo, oscilante, em que o alyeolado de A AUDIENCIA DO DIABO Quando Satan chegara, houve centenares de mios que exul- taram, ovacionando. Essas maos feriam agora mais a sombra sacudidas pelo desespero, fazendo desenhos tragicos onde o san- gue ndo secaya. Acabaram por se esfrangalhar na sombra ovacio- nando Satan, que ria. Afinal, ele que se julgava firme sobre os seus sapatos ferrados, espantou-se de se ver tristemente vivendo num mundo rodopi- ando como uma folha no vendaval. O seu desejo seria irromper com desassombro na audiéncia ¢, como nos seus tempos de rapaz, estilhacar num sarilho do seu lédao afamado aquele arraial diabélico. A garganta presa, os ner- vos trémulos, perdido, cambaleava e tinha medo de estender as m4os a amparar-se como se 0 ar fosse cheio de gumes de nava- Ihas. Teve 0 terror de tudo, ao reconhecer o mar de ignoto em que vivia e até a respiragao lhe queimava os pulmées. Todo ele, a sua consciéncia € 0 seu corpo, era afinal como uma rama de drvore de que ninguém via as raizes. Ao cair de borco, misturou jé com a terra este grito: - Minha mae! Satan tiv como uma sombra que se pontua de lume. Rebrilhou 0 olbar fulgurante, que endureceu sobre a assembleia demontaca. ‘As sombras da noite aquietaram, os vultos indecisos fragmen- tados de lume assentaram-se no fraguedo, como pinguinhos, as méos que revolvem o mal penderam fatigadas ¢ a boca alveolada de lume cerrow-se. Satan ouvira toda a noite ¢ exclamou, estendendo a sinistra vor sobre os seus stibdicos: — A mim, Satan, tudo o que é mal! 153 154 Sangue Plebeu Todas as forcas ocultas tio fortes como as que erguem as sei- vas ¢ anseiam as dguas; que rolam os planetas e os coragées, fagam o mall Derrubem ¢ maculem, contrariem e enlouquegam. A mao que assassina, a mao que incendeia e a mo que viola. Continuai © vosso trabalho para a minha imortalidade e para no perecer 0 mundo de Satan! Tendes amanhé, pareceu ao Belau que ouvia, tendes amanha de afogar a filha do Belau, ¢ ainda ourar 0 Manuel para toda a vida; ao amanhecer, apontou Satan para o lado esquerdo do hemiciclo a uma sombra determinada, matai o Joaquim da Cruz! Envenenai da vossa maldade mil existéncias! Fazei o pio mais negro, se nao puder ser nas més que o moem, nas mos que o pattem, se néo puder ser nas mios, na boca que © mastiga! Torai as lagrimas mais amargas, que sejam amargas a0 longo de todo o seu curso, Tornai o cidme mais violento, a fome mais Cortante, os costumes mais torpes. Buscai quanto oir queira 0 avaro, derrubai a drvore do cami. ho, esfarrapai mais a capa do pobre, néo deixeis arder a Ienha no lat parai as éguas dos moinhos, o sangue das artérias ¢ 4 csiola no seu curso, Nao deixeis embalar os bergos! Estancei as fontes e as consolacées! De tudo Satan ser contente! Destru, se no for um mundo, um pais, se néo for um pais, um homem, se no uma erva basta! O meu reino extinguia-se se nao fora a vossa colaboragao leal ¢ franca. Devido a ela ainda ha lugares onde domino, Aprendei sobretudo a atacar as consciéncias ¢ as virtudes, devagar! como a humidade ataca o ferro, Aprendel a amaldicoar, enchei a boca de pragas e as maos de pedras! A AUDIENCIA DO DIABO F preciso espiar as almas para nao perder o segundo que jamais voltarial Nada de desesperar, 0 Universo é meu. Ide, meus filhos! A higubre assembleia ululou ¢ mugiu no vendaval desfeito. ‘A filha do moleiro, que ficara sumida num canto do moinho, den conta da mé retardar a roda viva do andamento, 0 chama- doito recomegava a saltitar sobre o granito rugoso, como um par- dal sobre um crivo e 0 milho comegou a cair em contas doiradas no olho da mé. A farinha safa a cada volta em golfadas de alvura. Devia ter acabado a audiéncia, pensou. Embora fosse ainda noite saiu ao eido ¢ a primeira coisa que fez foi deitar os olhos a boca da ponte a ver se a limpsda do Senhor dos Aflitos estava acesa. Foi buscar os lumes prontos, acendeu 0 lampio do moinho, deu uma volta a reparar na boca da cale ¢ subiu a capela. ‘Acendeu a limpada ao Senhor e ao persignat-se deu com um vulto enrodilhado no chao. — O homem de Deus! Homem de Deus! — chamou a moga aproximando a lanterna do corpo enrolado. E destes desgragados que andam no mundo sem eira nem beita ¢ ficam onde Deus quer, pensou, oxald nao esteja morto. Ajoclhou para lhe erguer a cabeca ¢ ouviu alegre uma respirago fatigada e branda e de todo surpreendida ao reconhecer as fei- ges do Belau, exclamou: ~ Vocemect, senhor Antonio?! e eu que o tomara por maltés... © Anténio ia voltando a si com as feigdes lividas e desarru- madas, justificou: — Que queres, rapariga, passei aqui jé noite velha, vinha da lenha e 0 diabo ou quer que seja agarrou-me aqui pelos gorgo- milos ¢ aqui me ia matando. 155 156 Sangue Plebeu — Passar aqui em dia de audiéncia, credo, senhor Anténio, do sci como esta vivo, 0 pior € 0 que iré por ai acontecer hoje, depois da audiéncia, ha sempre desgraga, Deus nos valha! O Belau pareceu sacudir um pesadelo insuportével, passou a mao pela testa que ardia ¢ responden encolhendo os ombros: — Sei li! — Venha até ao moinho, tornou a Aurora, sempre se acoita ¢ tenha fé, senhor Anténio, reze ao Senhor comigo. O Belau que consetvava reflexos de assombro, levado pela frescura da vox da moleira, ia seguindo a oracéo como um cego a quem o guia. No alto da serra, onade as fragas assomam para outros hori- zontes, antevé-se, como nas alturas de certas musicas de Beethoven, a claridade imortal do amanhecer.

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