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Transdi: ciplinaridade e Saude Coletiva' Naomar de Almeida Filho* Resumo: Este texto apresenta inicialmente uma revisto de alguns aspectos histéricos, epistemoldgicos € etimolbgicos associados a construgio das nogdes de anélise, método ¢, principalmente, disciplina Em Seguida, avalia criticamente alguns aspectos i6gicos € epistemologicos do esquema de Jantsch-Vasconcelos- Bibeau para uma definicdo da disciplinaridade € comelatos (multidisciplinaridacle, pluridisciplinaridade, inter- disciptinaridade, metadisciplinaridade, transdisciplinaridade). Por ultimo, discute uma contribuigio pessoal do autor no sentido de definit mais precisamente 0 conceito de transdisciplinaridade, em uma perspectiva pragmitica, explorando suas possibilidades de aplicago no campo da Satie Coletiva. Palavras-chave Métado em Satide Coletiva; Epistemologia; Disciplinaridade e suas Inter Summary: The paper reviews, from historical, epistemological and etymological standpoints, topics linked to the shaping of the concepts of analysis, methed, and, specially, discipline. In a second moment, it evaluates critically the logical and epistemological foundations of Jantsch-Vasconeclos-Bibeau's sketch, towand a.definition of disciplinarity and correlate terms (*multcisciplinarity, pluridiseiplinarity, interdiscipli ity, metadisciplinarity, transdisciplinarity"). Finally, the author discusses his own concepts in the sense of a more accurate definition of transdisciplinarity, from a pragmatic point of view, exploring its potential uses in the realm of Public Health. Keywords: Scientific Method in Public Health; Epistemology; Disciplinarity and its Intervelations ' Uma primeira vero deste trabalho foi apresentada mit Mess-Reddoncht “Bases Filosfiens cla Medicina”, no. XXXIV Congresso Brasileiro de Educagio Médiea, Salvador, Bahia, em 18/10/96, PhD em idemiologia, Professor Adjunio do institute de Saiide Coletivs, Universidacle Feclerat cla Bahia Professor Associad, Departamento de Epidemiologia, University of Noh Carolina at Chapel Hill, Pesquisidor LA de Consetho Nacional de Desenvolvimento Cientifico ¢ Tecnolégica CNPq CIENCIA & SAUDE COLETIVA 1111/2), 1997 5 Em outra oportunidade, discutinclo a cri- se dos paradigmas no campo da satide cole- tiva (Almeida Filho, 19954), terminei por in- dicar alguns termos que considerava essenci- ais para a superacdo dos atuais impasses epi temoldgicos © metodolégicos das ciéncias da saide: complexidade, pluralidade, praxis ¢ transdisciplinaridade. Transdisciplinaridade... Além de palavra comprica, que soa bem ¢ impressio- ‘na audigncias incautas seduzidas por novida- “uma des, « Gnica certeza que temos sobre ela é que se refere a um conceito em busca de sistematizagio. Tenho lido € ouvido diferen- les acepgdes para este termo, que muitas veres se referem & febre dos novos paradig- mas, quase sempre implicando significados bastante distintos entre si. De fato, creio que se trata de um abuso conceitual, dado que o emprego do termo no Ambito da Coletiva, em geral em intervengdes ou co- municagées orais, quase nunca vem acompa- nhado de algum esforgo de definigto. Efeti- vamente encontrei poucos autores que pro- poem alguma sistematizaglo deste conceito, como por exemplo Jantsch (1972) e, princi- pilmente, Morin (1990), no contexto do desenvolvimento de uma teoria da compie- xidadle No presente artigo, gostaria de inicial- mente rever alguns aspectos hist6ricos, epis temolégicos ¢ etimoldgicos associados 4 cons: io das nogdes de anilise, método e, principalmente, disciplina, Em seguida, pre- tendo avaliar criticamente alguns aspectos logicos © episiemolégicos do esquema de Jantsch-Vasconceles-Bibeau para uma defini- gho da disciplinaridade e correlatos (multi- disciplinaridade, pluridisciplinaridade, inter- disciplinaridade, metadisciplinaridade, tans- disciplinaricade). Por dltime, gos de ua- zer uma contribuigto pessoal no sentido de definir mais precisamente © conceito de trai disciplinaridade, em uma perspectiva prag- mitica, explorando suas possibilidades de aplicagio no campo da Sadde Coletiva. tide Uma das disjuntivas cruciais na filosofia hist6rica da ciéncia ocidental parece ser aque- la entre anilise € sintese. Base do racionalis- mo caracteristico do pensamento cientifico, esta dual ade assumiu inicialmente uma fungio estratégica de superagio das formas intuitivas de conhecimento definidas como pré-cientificas (magico-religiosas) ou Uicas (ogico-filoséficas). Privilegiav: contexto da emergéncia da modernidade, 0 pélo analitico da disjuntiva, afirmando-se desse modo a natureza materialist jeto originario do conhecimento cientifico, firmemente baseado na observagao © na experimentagao (Rorty, 1982; Rensoli, 1987) A nova pritica de producao de saberes que ‘a os Claustros € cortes da Re a do pro~ entiio assol tematizada em seus nascenga européia, sis principios fundamentais por figuras @o dis. Lantes no tema € no espago como Copérnico, Bacon € Galiteu, apresentava-se como essen- cialmente parte de um proceso de popula- Refiro-me a este aspecto talvez como uma ironia histérica, principalmente considerando 0 elitismo ex plicito da ciéncia destes tempos atuais. De fato, 0 grande trunfo dos fundadores da cién- cia moderna foi o seu cariter democritico, ou melhor, © seu aburguesamento, aqui no sentido estrito de tomé-la desde © principio acessivel a qualquer burgués, niio-aristocriiti- 0, nfo-iniciado, nao-clerical. A qualquer individuo era dado a partir dese momento © poder de fazer ciéncia, bastando para isso seguir rigorosamente passos definidos € cer- tas regras racionais (o método). Dess:t forma, qualquer um tornar-se-ia um cientista. pelo rizagio do conhecimento, que poderia fazer e produzir ¢ nio pelo que (ou & quem) representava E com esse espirito que, no seminal Discurso do Método, Descartes (1970 (1637) inaugura a epistemologia, enfati raz é igualmente compantilhada por tod os seres humanos, mesmo os “homens co- muns". A razio ou 0 senso comum, orient da pelo método, seria suficiente para o aces- lo que a CIENCIA & SAUDE COLETIVA 11/2), 1997 so A verdade, no mais privilégio exclusive de poucos cleitos, herdeitos iniciados ou membros de ordens secretas. Este momento de ruptura com o saber esotérico, este ousa- dlo desafio do principio, de autoridade, esta lizago do conhecimento, enfim este grande esforso de desmoralizagio das acade- mits misticas € iconoclasticamente: avaliado por Norman Brown (1972:277), da seguinte maneira O ressentimento democrético nega qual- quer coisa que nao possa ser vista por todos; na academia democrética a verdade submete- se & verificagéo publica; a verdade ¢ 0 que qualquer imbecil pode ver. Isto € © que se de: entende quando se fala de método cientifico: © que recebe 0 nome de ciéncia é a tentativa de democratizar o conhecimento; 0 esforgo de substituir @ perspicécia pelo método, 0 génio pela mediocridade, mediante um procedimen- to uniforme de operagéo. Os grandes equali- zadores produzidos pelo método cientifico sao. ‘as ferramentas analiticas. D: da dis cia do método & advém a impo! iplina enquanto ferramentas_privile- giadas capazes de alcangar a andlise. E 0 que € ‘anilise? Com o sentido primitive de “de rag2o”, foi titulo atribuido a uma das is de Aristételes (As Analiticas), porém o mons! ob seu uso modemo, significando uma forma especial de raciocinio em Légica € em Filo- sofia, foi primeiro estabelecido por Descar- Tes, em 1637, j4 assinalando-o em oposicio a nogio de sintese. Ftimologi lise’ provém do Grego ana, prefixo de se- mente, “and- el, “atrits", “inverso”, “sempre” , € -lusis (dissolugao, decompo- sigho, destruigao). O emprego do termo ‘and- lise’ foi sucessivamente estendido para a igebra € geo- metria analiticas) € para as ciéncias naturais (por exemplo, 2 andlise quimica € geolé- gica), no final do século XVI; para a gramd- ica (analise sintética e semintica) € para as no século XVIII (Rey, matematica (por exemplo, protopsicologias, ji CIENCIA & SAUDE COLETIVA (1/2), 1997 1993). © termo ‘sintese’ vem do Grego synthesis (de syrt-thenaé: reunir, compor, jun- Kant baseou-se fortemente nesta catego- ria para criticar a nogio de racionalidade dos primeiros epistemélogos, em sua obra-mes: ua A Critica da Razao Pura, onde define a sintese como “ato de juntar diversas represen- tocdes umas ds outras e de conceber sua mulliplicidade sob o forma de um conhecimento Unico” Capud Japiassu 1990:225). A dialética hegeliana incorpora 0 termo no sentido de uma etapa de do da contradigio entre tese ¢ antitese. Esta poluridade tornou-se mais especificada no sistema kantiano de classificagio dos ju como anal definiggo do sujeito, © sintéticos ~ valores justificados pela observa 1994), © século XVII de fato foi um periode de grande efervescéncia intelectual ¢ intercdm- bio de idéias, com Marcondes, aper 108 — verdades dependentes da dos fatos (Samaja, contribuigdes de Des- Berkeley, Locke € Leibniz para o desenvolvimento de cartes, Hobbes, Pascal, Spinoza uma filosofia da ciéncia moderma (Russel, 1972; Rorty, 1982; Rensoli, 1987). efetivamente foi Descartes (1970 [1637)) quem formulou os principais Porém, elementos desta nova forma de produgao de saberes, que mereci- damente veio a ser designaca com o adjeti- vo cartesiano. Na perspectiva cartesiana, © xcional implica va uma série de operagées de decomposicio a conhecer, buscando reduzila as suas partes mais simples. O modelo prototipico do objeto de conhecimento que processo do conhecimento da cois: se pretendia hegeménico nesse modo de produgio de saber era sem divida 0 “meca- indo as nhecimento do mundo como essencialmente mecanicista (Lévy, 1987). Nesse sentido, conhecer impli cessariamente uma etapa inicial de fragmen- ago (para ser mais chiro, de destruigao) da nismo autmato”, justifi © reco coisa a ser tansformada em objeto de co- nhecimento. Este seria 0 prego minim (es- tivamos em uma €poca pré-faustiana, cabe lembrar) que ao conhecimento racional. Entio © principio da parciménia, no sentido da simplificagao reducionista, valicaria os modelos explicativos do nove modo de produgio de conheci- ¢ deveria pagar para ascender mento = pois 0 conhecer reduzia 0 agora objeto aos seus componentes. elementares. Apesar da deckirada indissociabilidade entre andlise e sintese, estava fora de questo, pelo reconhecimento do primado da experiéncia, que © conhecimento poderia ser de algum modo totalizante, conforme, com clareza atesta Locke (1988 [1690}:188): Néo devemos, pois, incorporar sistemos duvidosos como ciéncias completas, nem no es ininteligiveis por demonsiracoes cientifi- cas. No conhecimento dos corpos devemos nos contentar a recolher © que pudermos dos ex- perimentos particulares, desde que néo pode mos, da descoberia de suas esséncias reais, aprender ao mesmo tempo fodo © conjunto, © @s pressas compreender a natureza e pro- priedades de todas as espécies reunidas. (grifos nossos) Em outras palavras, este paradigma cons- oi € Uata, muito bem, dos objetos simples. Tem sido designado como um paradigma da explicagao, justamente por bus paréneia e uma publicidade (sem ironia), car ume trans- termos al 4s contidos no sentido original de explicar (ea-plicare, des-enrolar, des-envol- ar) (Rey, 1993). E necessirio neste momento aprofundar ver, externali ter simbidtico da rela- um pouco mais 0 «: glo entre cigncia e técnica, to importante para a legitimagao social da ciéncia nas eta- pas precoces da sua luta por hegemonia no contexto intelectual do Iluminismo (Rorty, 1982). A formagio econémico-social emer- gente, baseada no modo de produgio capi- talista, tazia para o equivalente modo de produgio de conhecimento cientifico uma clara demanda pelos objetos simples, a fim de que a tecnologia resultante propiciasse produgio dos objetos complicados da induis- tia, Em outras palavras, a fragmentagio dos problemas cientificos determinava um apro- fundamento dos processos de produgio de conhecimento sobre as. partes resultant necessidade concreta daquela etapa de cle- senvolvimento do modo de produgio do capitalismo industrial (Rensoli, 1987). Inte- ressante € sutil ciclo de expectativas: a com- plexidade do mundo real seria traduzida em modelos simples, viabilizando através da te nologia a manufatura de produtos complica- dos; enquanto a inddstria se organizava em torno da racionalidade cientifica, a ciéncia por sua vez se aparelhava para tansformar saber em técnica, A legitimaga0 social € politica do novo modo de produgao de ¢o- nhecimento, bem como o financiamento das suas incipientes instituigSes e dos seus agen- tes pioneiros, poderia ser retribuida direta- mente como forga produtiva, sob forma de processos € produtos, geracos pela estraté- gia analitica da ciéncia Como um corolirig da analitica mente sua mais poderosa estratégic de operagio, a cigncia ocidental se desen- volve com biuse na nogio de especialidade (e seus correlatos especialista © especializa- 20). © ideal renascentista do sa cientista, encarnado na genialidade de Da Vinci, € 0 movimento iluminista do enciclo- pedismo exemplificado pelo talento miliplo dos pioneiros cientistas (que eram simulta neamente fisicos, médicos, fildsofos, mate- miticos, astOnomos, naturalistas ¢ alguns até literatos € politicos), eram em certa medida marginais em relagio A histéria da ci€ncia normal. Por um lado, a ampliagio do escopo da nascente ‘pritica institucional da ciéncia, com suas sociedades € academias, produz campos disciplinares cack vez mais rigorosi- mente delimitados, como se fossem ~ ¢ eram ~ tertitérios inexplorados, demarcados e apro- priadlos pelos seus desbravadores. Por outro lado, na arena cient valorizava a espectalizago, tanto no sentido: cartesian ha, cer bio-artista- ia ica, mais € mais se CIENCIA & SAUDE COLETIVA 11/2}, 1997 de criag2o de novas disciplinas cientificas quanto na diregio de subdivisées internas nos préprios campos disciplinares; no campo das priticas sociais, novas profissdes eram criadas; no Ambito da reprodugio ampliada, um novo sistema de ensino e formagio estruturava-se com base nesta “estratégia minimalista” dle recomposi¢io histérica” da ciéncia ¢ da técnica, Podemos em principio designar esta estratégia de organizacio histé- rico-institucional da ciéricia,-baseada na frag- mentagio do objeto € numa crescent espe- Gializagio do sujeito cientifico, como a disci plinaridade. Antes de prosseguir; cabe uma breve discussio sobre a histétia © a etimologia do termo ‘disciplina’ e seus dlerivadas (Rey, 1993; Bibeau, 1996). Em um sentido contempori- neo comum, a palavri disciplina conota ti- gor na atuagdo,”um certo ascetismo, uma continuidade ou perseveranga no enfrenta- mento de problemas, O anténimo ‘indisci- plina’ refere-se em geral a um defeito de conduta (comporta pois um julgamento moral) de alguém que no segue as regras ou que carece de efetividade por disper fusiio. Em Latim, a palavra discipulus parece ter sido empregada inicialmente em oposi- “io a magister, primeiro num contexto de iniciagao religiosa; depois o sentido da pala- vra se estende progressivamente aos domi- nios intelectual e artistico. Os discipuli eram originalmente os seguidores de um mestre, de uma escola ou de um grupo, passando em seguida a designar aqueles que aderiam A filosofia ou ao método de uma escola ou que se ligavam a um mesmo modo de pen- sar, Nesta familia semantica, a diseiplina ini- cialmente significava a ago de aprender, de instruir-se; em seguida, a palavra for empre- gacla para referir-se a um tipo’ particular de iniciagdo, a uma doutrina, a um método de Posteriormente, veio a conotar o ensino-aprendizado em geral; incluindo to- das as formas de educagio € formagio. Por metonimia, a partir do século XIV, com a ‘ou con- ensino. CIENCIA & SAUDE COLETIVA 11/2), 1997 organizagio das primeiras universidades ain- da no contexto da escolistica, disciplina passou a designar uma matéria ensinada, um ramo particular do conhecimento, 0 que depois viria a se chamar de “ci extensio, a disciplina tornou-se equivalente 4 principios, regras © métodos caracteristicos de uma ciéncia particular © movimento histérico da ciéncia impli- ca a ampliagis do seu campo de aplicagao € uma incessante incorporagio de novos objetos. Nos séculos XVIII e XIX, face as demandas de um modo de produgio que se organiza para a primeira onda de expansio conhecida como a Revolugao Industrial, ob- servav ¢ fa entre ciéncia ¢ tecnologia, como vimos m nesse contexto esforgos de recuperagio do oposto da anilise, a nogao de sintese, enguanto forma privilegiada de construgio do objeto da ciéncia-técnica (Castoriadis, 1988). O conceito de sintese, ness e uma tendéncia de integra 0 es: tei acima. Sur, conjuntura ideolégica, reforgava obje- tos-modelos analdgicos em relaclo aos seres vivos, determinados pelo extraordinario uvan- co da Biologia resultante da universal” das teorias da evolu taxonamia natural Por esse motivo, alguns autores tém a lado que © paradigma mecanicista teria sido dominante nesta fase inicial da historia da ciéneia, porém, de nenhum modo era 0 anico, disputando palmo a palmo a hegemonia dos campos cientificos de maior maturidade epis- a temologica com um paradigma organici @ensoli, 1987). Em outras palavras mantinha-se como uma etapa conclusiva porém secundaria do proceso de produgao do conhecimento cientifico, tal como ji con- templada na filosofia cartesiana Foi preciso uma fase posterior de ex- pansilo do imperialismo cientifico, jt no pre- sente século, para que alguma estratégia de abordagem sintética do problema do conhe- cimento fosse retomada, com a formagio de novos campos disciplinares (Maheu, 1967). a sintese Nessa perspectiva, a producio do conhec mento cientifico implicava nio mais a des- Ao de objetos através de um processo de composiga0, ou mont gem, de elementos constituintes. Nlo mai uma busca de desintegraco (ou seja, andli- mM uma integragao totalizadore (a sin- tese). Dessa forma, de algum modo se con- sede templava a produgao de objetos complexos, agueles que nao se subordinam a nenhuma ‘aproximagio meramente explicativa, e que nem por isso mereceriam ser excluides do campo de visio da ciéncia justamente por I-se entio nio mas de entender; serem, apenas de explicar, somente de produzir a descriglo rigorosa ou ficago precisa, mas também a com- preensio de uma dada questo cientifica (Minayo, 1992). Podemos concordar que esta cestratégi 1 de construgio de um dado campo cientifico configura um paradigma alternative que, seguindo Morin (1990), de signamos como 0 paridigma da elucicgio. Elucidar significa abordar as especificidades € os enigmas dos eventos, processos, fend- menos, na natureza, na historia € na socie- dade, enquanto uma sintese proviséria de miliplis determinagées, Dizem que agora «t ciéncia contempori- nea passa por uma importante crise paradig- a (Santos, 1989; Maturana & Varela, 1992). No seio de uma pritica que flagean. temente reafirma a fragmenta res Clentistas, atuando na vanguarda das chamadas “ciénci (principalmente fisico-quimica, genética, biologia molecular, neurociéncias), se do conta de que ndo mais podem deterse em (ou serem detidos por) indisciplinados. Tratava io sintéti to, os melho- duras” cientificas localizadas, tornando-se is de um tnico tema (Maheu, 1967; ; Prigogine & Stengers, 1986; questdes Powers, 198: Gleick, 1986; Maturana & Varela, 1992; 1994). Em outras palavras, tornam-se conscien- tes de que € necessitio abrir a ciéncia a ques- tionamentos em um nivel mais global ¢ fun damental, sob pena de terem suas disciplinas maja, tansformadas em um mero repert6rio de tée- © conhecimentos desde 4 superados. Segundo Bibeau (1996), referindose a este problema no campo da pesquisa em sadde, paralelamente (e contraditoriamente) & superespecializagéo assistimos a um apagamen- to de fronteiras (pessoal-politico; privado-pu- blico; local-global; individucl-coletivo; sogra- do-profano; objelo-sujeito) que faz com que seja cada vez mais dificil ao pesquisador reen- contrar-se nas préticas de pesquise. NGo mais se sabe a que disciplina perience o autor de uma dade pesquisa ou artigo cientifico. Esta situagée parece provocar um duplo efeito con- trdrio, De um lado, encontra-se ambigiidade, caos e incoeréncia a que se seguem fendme- nos de fusdo, mistura, hibridizagdo e mestica- gem entre métodos e teorias; e de outro lado, ume abertura de fronteiras, uma consideragao dos contextos, ume desinsularizagao das disci plinas. E certo que a medicina torna-se indissocidvel do social, mas isso nao impede © superdesenvolvimento de enfoques estritamente biomédicos em seus esiudos sobre os problemas de saide {mesmo no caso da violéncia, que alguns pesquisadores nao hesitam em atribuir a um excesso de cerlos neurchorménios). De fato, cresce no campo cientifico a consciéncia de que a ciéncia se configura cada vez mais como uma pritica de constru- de modelos, de formulagao € solugae de problemas num mundo em constante muta ‘Mo (Maturana & Varela, 1992; Samaja, 1994), De certo modo, o narcisismo antropocéntrico, tipico do cientista de tradi¢ao cartesiana nto tem mais lugar em uma ciéncia que mais € mais valoriza a descentragao € a relatividade. Por outro lado, esta crise ocorre porque pritica da ciéneia estt continuamente produ- zindo objetos novos, Nao somente novas formas para referenciar os mesmos velhos objetos, mas de fato objeto: novos, realmente emergentes. De acorco com Lewin (1992), 0 termo mais adequado para resumir este conjunto de propriedudes dos radicalmente CIENCIA & SAUDE COLETIVA 1K1/2}, 1997 objetos de conhecimento, aqueles objetos de efetivo interesse para a ciéncia contempor nea, seri sem diivida ‘complexidade’. © que € um objeto complexo? Para tes ponder a esta questio devemos considerar que a atribuigio de complexidade pode as- sumir distintas manifestagdes (Morin, 1990). Em primeiro lugar, 0 objeto complexo é minimamente um objeto-modelo sistémico, ou seja, faz parte de um sistema de totalida- des parciais € pode ser compreendido ele mesmo como um sistema, também incorpo- rando totalidades parciais de nivel hierdrqui- co inferior, Em segundo lugar, podemos chamar de objeto complexo aquele que, em sua forma de objeto heuristico (Bunge, 1972), nao pode ser explicado por modelos linea- res de determinagao. Em outras palavras, trata- de um objeto-modelo submetide a fun- gdes de determinacio nao-linear. Por isso 0 objeto complexo nio possibilita a predicao, nem a partir dele se pode gerar tecnologia. Em terceiro lugar, metodologicamente 0 obje- to complexo € aquele que pode ser apreen- dido em miltiplos niveis de existéncia, dado que opera em distintos niveis da realidade. Em quarto lugar, © objeto complexo € mubtifacetado, alvo de diversas miradas, fonte de miltiplos discursos, extravasando os recor (cs disciplinares da ciéncia. Dat que para cons- tuFlo como referente € preciso operigdes de sintese, produzindo modelos sintéticos, e part igné-lo apropriadamente € necessitio © recurso 2 polissemia resultante do cruzamento de distintos discursos disciplinares. Em suma, 0 objeto complexo € sintético, nao-inear, miltiplo, plural e emergente. Para uma abordagem respeitosa destes intrigantes atributos, a organizagao convencional da cién- cia, em disciplinas auténomas € até estan- ques, precisa ser superada por novas moda- lidades da préxis cientifica, instaurando for mas alternativas da disciplinaridade. Coerentemente preocupado com a inci- dencia desta questio no Ambito educacional, CIENCIA & SAUDE COLETIVA 1/2), 1997 Jantsch (1972) propds uma detalhada classi- ficaglo evolutiva das alternativas de intera- Glo ou integrago de distintos campos disci- plinares. A base desta tipologia, retomada € adaptada por Vasconcelos (1996) ¢ Bibeau (1996), seria a observag2o da propria pritica cientifica e dos corpos de discursos por cla alimentados. Estes autores define as seguin- tes etapas sucessivas: Multidisciplinaridade. conjunto de disci- plinas que simultaneamente tratam de uma dada questio, problema ou assunto (diga- mos, uma tematica , sem que os profissio- nais implicados estabelegam entre si efetivas relagdes no campo técnico ou cientifico, E um sistema que funciona através da justapo- siglo de disciplinas em um tinico nivel, es- tando ausente uma cooperagao sistemética entre os diversos campos

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