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+. O inicio do questionamen- to referente ao papel da es- cola na sociedade capitalista: as teorias critico-reproduti- vistas de educaciio g & z g 41 As teorias critico-reprodutivistas Fieeadlecios como criticas as concepgdes de educagao que percebem ser impossivel compreender a educacdo separada dos condicionantes sociais. As primeiras teorias que apontaram de maneira inequivoca a intima relagao entre 0 modo como se or- ganiza a sociedade e a educagao escolar foram denominadas por Saviani como critico-reprodutivistas. Criticas porque reconhecem a relagio entre educagio ¢ sociedade, reprodutivistas pois “che- gam invariavelmente 4 conclusio de que a fungio prépria da edu- cago consiste na reprodugio da sociedade em que ela se insere” (Saviani, 1989, p. 27). Os autores das teorias que Saviani (1989) classifica como critico-reproduti- vistas consideram que, embora a escola tivesse, em suas origens, uma fungio equalizadora, esta foi se tornando cada vez mais “discriminadora e repressi- va" (Saviani, 1991, p, 27), de modo a contribuir muito mais para a reprodu- fo da sociedade de classes do que para a igualdade social, obedecendo aos ditames do modo de produgio capitalista. Entre as teorias que apontam a inequtvoca telagio da educagio com a sociedade capitalista e consideram que ela reproduza o sistema vigente, Saviani cita trés delas (1989): * ateoria do sistema de ensino como violéncia simbolica; + a teoria da escola como aparelho ideolégico do Estado; * ateoria da escola dualista. Observe que o autor se refere a teorias e nao a pedagogias, pois esses estudos nao se configuraram como propostas de ensino ¢ aprendizagem, e sim como anilises da relagao entre educacio e sociedade que indicavam néo ser possivel, sob o capitalismo, haver uma proposta pedagégica vinculada aos interesses da classe trabalhadora. Mesmo que nfo se constituam como pedagogias, essas teorias sio de grande importancia, pois revelaram o carter subordinado da educagio, mostrando que ela nao € neutra, muito pelo contrario: ela cumpre um papel importante na manutengao da sociedade capitalista. Para Gazim et al. (2005, p. 47), elas “pdem em evidén- cia o comprometimento da educag&o com os interesses da classe dominante” e afirmam que: todos os esforgos realizados na/pela escola na luta pela trans- _formagio da sociedade revertem sempre no reforcamento dos interesses da classe dominante. Dessa forma, a possibilidade de a escola ser um instrumento de luta proletdria é descartada. Para esse grupo de teorias, a sociedade € dividica em classes tarnicas (a dos donos dos meios de produgao ¢ a dos traba- thadores), constituindo-se em espaco entre clas. O sistema de produgio capitalista institui relagdes de exploragao e dominagio da classe dos trabalhadores pela classe dos donos dos meios de produgéo. Em um cenario como esse, a escola cumpre um papel de grande importancia, seja inculcando a ideologia dominante (teoria da escola como aparelho ideolégico do Estado), seja con- trolando elementos da cultura considerados legitimos e valorizados (teoria do sistema de ensino enquanto violéncia simbdlica), seja se com uma rede para os filhos dos rganizando de forma dualis' clite (teoria da escola dualista). valhador ¢ outra para os d As trés teorias anteriormente citadas tem em comum a con- cepeao de que na sociedade capitalista a educagao tem, ao contrario do que propunham as teorias nfo criticas, um papel marcante no processo de discriminacao social. Sua fungao nao seria a de equa- lizacdo, mas, sim, de dominagao ¢ marginalizago das camadas trabalhadoras pelos donos dos meios de produgio. Inge Renate Frise Suhr Ly sung 3 Passaremos a seguir a analisar brevemente cada uma das trés teorias citadas, comegando pela teoria do sistema de ensino como violéncia simbélica. ensino como violéncia simbélica ) Perce Bovirdien Jean-Claude Passeron sao os principais au- tores dessa teoria, que foi expressa em obra de 1975, intitulada 4 reprodusdo: elementos para uma teoria do sistema de ensino (1982). Saviani (1989, p, 30) relata que a violencia simbslica é um reforco da vio- Iéncia material ¢ se manifesta na “formacio da opiniao publica através dos meios de comunicagio de massa, jornais etc.; a pregagao religiosa; a ativi- dade artistica e literdria; a propaganda e a moda; a educagao familiar, etc” Nesse sentido, o sistema escolar seria o mais acabado dos sistemas de violéncia simbélica pois impée a todas as criangas © capital cultural da classe dominante, criando o habitus, uma “formacao durdvel, produto da interiorizacao dos princfpios do arbitrério cultural capaz de perpetuar-se apés a cessagiio da agio pedagégica” (Gazim et al., 2005, p. 47). Pierre Bourdieu (1930-2002), socidlogo francés, realizou uma investigacio sobre © conhecimento do ponto de vista socio~ L6gico ¢ detectou um jogo de dominagao ¢ reproducao de valores da classe domi- nante, Esereveu junto com Jean-Claude Passeron 0 livro A reprodusdio: elementos ‘para uma tearia do sistema de ensi- no. Nessa obra, os autores tomam por base o funcionamento do siste~ ma escolar francés ¢ concluem que, em vez de favorecer a transformacio (como se pensava na época), a escola vinha reproduzindo e reforgando as desigualdades sociais, Segundo esse livro, como a escola é um ambiente marcado por carac~ teristicas de classe, quando a crianca comeca a frequenti-la, € recebida num ambiente que lhe transmite o capital cultural da classe dominan- te e, com isso, indiretamente, prepara-a para uma adaptacdo ao staéus quo. Bourdieu publicou mais de 300 titulos, entre livros ¢ artigos, e em seus estudos mais atuais demonstrou ser um grande critico da globali- zagho econdmica e cultural. Ponte: Adaptado de Ferrari, 20081. Jean-Claude Passeron é professor de Sociologia da Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Escola de Estudos Avangados em Ciencias Sociais), na Franca, Analisou a es- cola francesa ¢ sua relagao com a reprodugao, social, Fonte: Adaptado de Uapaccisella, 2003. ae Vejamos como isso ocorre: todas as criangas sio submetidas ao mesmo ensino, a0 mesmo curriculo, definido com base nos sabe- res da classe dominante. Como as criangas dessa classe tm mais acesso fora da escola a esse tipo especifico de conhecimento (acesso ao capital cultural), teraéo maior chance de sucesso no ambiente escolar. Jé as criangas das classes trabalhadoras, exatamente por nao terem acesso a esse mesmo conhecimento fora da escola, tendem a enfrentar maiores dificuldades no processo de escolarizagao. Com a continuidade dos estudos em niveis mais avangados, é ainda mais dificil. Assim, a escola estaria contribuindo para manter a situagio exatamente como esta ¢ ainda justificaria 0 fato da diferenca das condigdes de vida entre as classes por meio do fracasso individual, ou seja, aquelas pessoas que nao aleangaram niveis mais elevados de estudo nao se esforgaram o suficiente, jf que as oportunidades foram dadas, Uma vez que nao concluiram os estu- dos mais avangados, devem mesmo permanecer em posigées subalternas na sociedade, obedecendo aos que se dedicaram ¢ obtiveram sucesso na escola €, consequentemente, tém o direito de comandar. Além de justificar as dife- fengas, a escola ainda contribuiria para mascarar essa realidade ao produzir o habitus que leva as pessoas a considerarem essa situacio como normal. Saviani (1989, p. 32), ao se referir A teoria do sistema de ensino como violéncia simbélica, afirma que: de atordo com essa teoria, marginalizados séo os grupos ou classes dominados. Marginalizados socialmente porque néo possuem forga material (capital econémico) e marginaliza- dos culturalmente, porque nao possuem forca simbélica (ca- pital cultural). Ea educagdo, longe de ser um fator de supe ragao da marginalidade, constitui um elemento reforcador da mesma. Nessa visio, ao contrario do que foi defendido pelas teo- rias nao criticas de educasio, a escola seria mais um elemento reforcador na marginalizacao de parcelas da populagao ¢ nao 0 grande agente em prol da igualdade social. 42 A teoria da escola como aparelho ideoldgico do Estado Louis Althusser, 0 grande autor dessa teoria, afitma que 0 y out | O primeiro desses aparelhos de Estado é denominado por (ARE), que funcio- nam principalmente pel aio cles p , O segundo grupo € composto pelos chamados|apavelB0s ideoldgicas do Rstado (ATE), que agem principalmente por meio (da ideologia. Os aparelhos ideol6gicos citados por Althusser sio principalmente Althusser como ALTHUSSER, L. Aparelhos ideolégicos de Estado. Rio de Janeiro: Paz ¢ Terra, 2010. Caso vocé queira se estender no estudo das consideragdes desse autor, leia essa obra que analisa de forma profunda essa aparente ligagao umbilical en- tre a escola ¢ os designios ideolégicos da chamada classe dominante. Para o autor, o mais importante desses aparelhos ideolégicos é a escola, pois ela recebe todas as criancas, indiferentemente de sua origem de classe, ¢ nelas incule de modo qué todas passem a ver'0 . E esse modo de compreender 0 real é aquele que esta de acordo com os interesses das classes dominantes. E importante ressaltarmos que, diferentemente de Bourdieu e Passeron, Althusser C Em trecho citado por Saviani (1989, p. 35, grifo do original), Althusser afirma que “os AIE podem ser nao s6 0 a/vo mas também o /ocal da luta de classes e por vezes de forma renhidas da luta de classes”. Esse é um elemento importante porque nos aponta que #@scola, emiborandos como defendiam as teorias nao criticas, també: aos ditames da dlassé dominante. Embora Althusser considerasse muito dificil aescola contribuir na constituicao da contraideologia, outros pen- sadores posteriores a ele e que estudaremos na sequéncia apostam nessa possibilidade. 43 A teoria da escola dualista Em 1971, Christian Baudelot ¢ Roger Establet publicaram a obra intitulada A escola capitalista na Franca, na qual procuram demonstrar que a escola, embora aparentemente seja tinica e ofe- rega espaco para todos indiferentemente de sua origem de classe, _ est dividida em duas grandes redes: primério-profissional (PP) Secundario-supetior (SS). Essas duas redes correspondem exa- tamente a divisio da sociedade capitalista em duas classes: a rede PP forma o proletariado e a rede SS, a burguesia. rin Hal oe em Sociologia, especialista em Educagio e Sociologia do Trabalho, professor emérito de Sociologia do Departamento de Cigncias Sociais na Bole Normale Supérieure. Tem ajudado a difundir « sociologia da cultura. AROZE EADIE é professor emérito de Sociologia na Université de Provence, Aix-en-Provence, ¢ refletiu, junto com Baiidelot, sobre o papel ocupado pela excclna spuiedace eapicaistay Para conhecer melhor o penstmento desses autores, leia a entrevista por eles concedida em 2008, no seguinte fink: BAUDELOT, C.; ESTABLET, R. Tornar-se sociélogo. 2008. Entrevista. Disponivel em: . Acesso em: 5 mar. 2011. 24g 230ny aneusyp AB |. Assim como Boudieu e Passeron, Baudelot e Establet Desse modo, ao transmitir a ideo- logia da classe burguesa, a escola estaria, a0 mesmo tempo, formando »con- tribuindo para que os trabalhadores aceitem a divisaio entre planejamento € decisio (cabe A burguesia) ¢ execugao (cabe aos trabalhadores) existente no modo capitalista de produgio. Essas trés teorias (sistema de ensino como violéncia simbé- lica, escola como aparelho ideolégico do Estado, escola dualista) sio denominadas por Saviani (1989) como critico-reprodutivistas exatamente por nao acreditarem no poder emancipador, na escola como espaco de luta de classes. Elas contribuiram para mostrar que a escola nao é neutra, e sim comprometida com os interesses dominantes, mas trouxeram, principalmente nos anos 1970, um clima de pessimismo ¢ desinimo entre os educadores. Esse tom Pessimista ante a possibilidade de uma escola articulada com og interesses da maioria da populagio foi ressignificado por outro Erupo de teorias, chamados por Saviani (1989) de seoriascriticas ¢ Por Libaneo (1990) de seorias progressistas, as quais estudaremos no préximo capitulo, Sintese N este capitulo, abordamos as teorias critico-reprodutivistas de educagdo. Mostramos como tiveram um importante papel: de- monstrar que a educa¢ao niio é neutra, mas que esta intimamente ligada com o modo como se organiza a sociedade. Analisamos brevemente as contribuigdes de Althusser, Bourdieu e Passeron, Baudelot e Establet ¢ mostramos que com base em suas reflexoes outras teorias pedagégicas puderam surgir, Estas reconhecem que a educagao no capitalismo esta relacionada a sociedade de classes ¢ que tende a reproduzir os interesses das classes domi- nantes, mas apontam que a escola também pode, contraditoria- mente, ser um espago a favor das classes trabalhadoras.

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