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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LARISSA NADAI

Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o


Instituto Médico Legal e suas tramas

CAMPINAS
2018
LARISSA NADAI

Entre pedaços, corpos, técnicas e vestígios: o


Instituto Médico Legal e suas tramas

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e Ciências


Humanas da Universidade Estadual de Campinas
como parte dos requisitos exigidos para a obtenção
do título de Doutora em Ciências Sociais.

Orientadora: Dra. Maria Filomena Gregori

ESTE EXEMPLAR CORREPONDE À


VERSÃO FINAL DEFENDIDA PELA
ALUNA LARISSA NADAI E
ORIENTADA PELA PROFA. DRA.
MARIA FILOMENA GREGORI.

CAMPINAS
2018.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A Comissão Julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos


Professores Doutores a seguir descritos, em sessão pública a ser realizada em 26 de
março de 2018, considerou a candidata Larissa Nadai aprovada.

Profª. Dra. Maria Filomena Gregori (Orientadora)


Profª. Dra. Adriana de Resende Barreto Vianna (Museu Nacional – UFRJ)
Profª. Dra. Fernanda Arêas Peixoto (USP)
Profª. Dra. Heloísa André Pontes (UNICAMP)
Profª. Dra. Regina Facchini (UNICAMP)

A Ata de Defesa, assinada pelos membros da Comissão Examinadora, consta no


processo de vida acadêmica da aluna.
Dedico esta tese a Pedro Oliveira Souza.
Agradeço em “letra e melodia” os rodopios e viagens que emaranharam nossas
vidas e deram aos dias vividos certeza, leveza, poesia e brilho.
Agradecimentos

“Life is path dependent, and chance affects what roads are, or are not,
there to be taken” (RUBIN, 2011, p. 3).

Depois de muitos anos, percebo com clareza que um doutorado é antes de tudo uma
jornada. Um caminho cercado por distintas paisagens. Ou seja, muitas vezes doutorar-se é um
caminho linear de paisagens homogêneas e conhecidas de antemão. Outras tantas, é uma
estrada de sinuosas curvas e muitos atalhos. Para mim, em particular, foi um percurso feito
pelo prazer da caminhada e não em função do ponto a que, por fim, acabei por chegar. Tratou-
se de uma trilha de presenças, solidão, intrigantes descobertas e muitos afetos.
Agradeço, em primeiro lugar, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP) pela bolsa a mim concedida, entre março de 2014 e junho de 2016, por meio
do processo 2013/22349-5. Esse auxílio foi fundamental para a realização da pesquisa, para a
excelência alcançada pela tese e para a divulgação de meu trabalho em congressos e eventos,
no Brasil e no exterior. Sou grata também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) pelos primeiros um ano e oito meses de auxílio, entre julho
de 2012 a fevereiro de 2014, que me permitiram traçar as primeiras rotas desta pesquisa, além
de cursar, no Museu Nacional – UFRJ, duas importantes disciplinas de formação,
fundamentais a esta tese.
Agradeço, também, aos interlocutores da pesquisa – médicos-legistas, peritos
criminais e professores da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), da UNICAMP. Diante do
indeferimento formal de meu trabalho de campo, as entrevistas a mim concedidas, as
conversas, os e-mails trocados e as aulas de medicina legal foram primordiais ao resultado
desta tese. Seria impossível expressar em palavras minha gratidão pelas minuciosas e
pacientes explicações às dúvidas mais pueris de uma cientista social que se aventurou a
investigar um tema árido como os saberes de medicina legal. Gostaria de nomeá-los um a um,
contudo, por cautela, preferi mesmos em meus agradecimentos proteger suas identidades
pessoais. Em tempos politicamente tão terríveis como os atuais, minha escolha procura
proteger esses profissionais de “canetadas”, repreensões e quaisquer problemas
administrativos.
Agradeço a Bibia Gregori que, além de orientadora, inspiração e exemplo, foi, durante
esta pesquisa, compreensiva e capaz de entender os momentos em que a escrita era impossível
e as agruras da vida impediam que as palavras tomassem forma. Sua maternagem foi um
afago frente aos tropeços e obstáculos impostos à pesquisa. Com muita generosidade e afeto,
Bibia me ensinou a ser, tal como ela é, uma acadêmica séria, rigorosa, mas enormemente
generosa com os textos, as opiniões e as reflexões de alunos, amigos e colegas de profissão.
Sou imensamente grata pela confiança, pelos mais de dez anos de trocas e incentivos e por ela
ter lapidado ao meu lado, cada pedacinho deste texto final.
Agradeço também ao grupo de orientandos do qual pude fazer parte, exatamente, pelos
efeitos agregadores e formativos que Bibia jamais deixou de incentivar. A tese responde as
reuniões e leituras incríveis que compartilhei ao lado de pessoas como Carol Branco, Carol
Parreiras, Julian Simões, Cil Veiga, Maisa Fidalgo, Ju Valente, Rafa Nascimento, Deborah
Fromm, Everton de Oliveira, Denise Monzani, Gleidson Vieira, Rodolfo Reis, Antony Diniz,
Isa Venturosa, Claudio Leandro, Jaqueline Moraes Teixeira e Ana Laura Lobato.
Agradeço aos professores que fizeram parte dessa jornada e aqueles que foram esteio
durante toda a minha formação. Agradeço a Fernanda Peixoto pelos estimulantes debates feito
a parte desta pesquisa e, principalmente, por ter aceito participar da banca de defesa desta
tese. Os descaminhos que me levaram a tramas e trajetórias intelectuais transformam as
reflexões e as pesquisas realizadas por Fernanda Peixoto em uma bússola às minhas novas
empreitadas em arquivos pessoais e campos de saber. A Heloísa Pontes, sou grata pelo seu
lugar basilar em minha formação em antropologia e por ter acompanhado minhas pesquisas,
desde os seus primeiros passos, quando ainda no mestrado eu começava a tatear os itinerários
metodológicos e teórico-analíticos que deram corpo a minha dissertação e agora a esta tese.
Em especial, agradeço por ter aceito estar em minha banca de doutorado e por ser uma
entusiasta e uma inspiração aos meus novos caminhos por entre trajetórias intelectuais e
arquivos pessoais.
A Regina Facchini, agradeço por seu lugar ímpar em minha formação em gênero e
sexualidade; pela horizontalidade com a qual você exerce a docência, debate os trabalhos e
ideias de colegas e alunos e ensina, com generosidade e rigor, a arte de fazer pesquisa.
Agradeço, em especial, pela sua presença em minha banca de qualificação e pelo seu aceite
em participar desta banca de defesa de tese. Espero que as lamúrias sobre o não acesso ao
IML tenham se convertido em boas reflexões sobre a produção de autoridades e autorizações.
A Adriana Vianna, os agradecimentos ficam marejados de lágrimas e sorrisos. Quando
perdida eu comecei a tatear as pilhas sujas de papéis esquecidos da DDM, não poderia
imaginar aonde eu chegaria. Sua leitura generosa de minha dissertação de mestrado foi um
bálsamo às agruras que eu encontrei até perceber que, desde o princípio, eu sempre realizei
uma “etnografia de e feita por meio de documentos”. Seus ensinamentos, leituras,
comentários e suas aulas extraordinárias foram primordiais a esta tese. Sua presença em
minha banca de qualificação e seu aceite em participar desta banca de defesa são felicidades e
presentes que tornam as palavras miúdas e desbotadas. Espero que a “a saga da menina
Larissa” tenha sido convertida em uma potente etnografia feita por entre documentos, papéis,
insígnias, assinaturas, carimbos e instâncias estatais.
Agradeço a Isadora Lins França por participar ativamente de minha formação em
gênero e sexualidade e pela doçura em aceitar participar como suplente de minha banca de
defesa. Agradeço, também, a Sérgio Carrara por tentar de todo modo alinhar sua agenda às
possíveis datas de minha defesa. Diante da impossibilidade, a suplência é uma singela
homenagem frente à enorme importância que seus trabalhos e reflexões têm para esta tese.
Agradeço a Antônio Carlos de Souza Lima pela sua presença marcante em minha
formação acadêmica, por ter permitido minha presença na disciplina ministrada por ele no
Museu Nacional – UFRJ e pelos maravilhosos comentários em seminários, eventos e
congressos. Em especial, agradeço a Antônio, por me mostrar como instâncias estatais, papéis
e burocracias são objetos antropológicos intrigantes e politicamente essenciais à disciplina. À
Maria Gabriela Lugones qualquer agradecimento seria pouco e infinitamente menor frente à
importância que seus comentários, livros e artigos têm para esta pesquisa. Sua voz inebriante
e suas análises contundentes serviram de farol às reflexões aqui tramadas. Em especial, meu
muito obrigada a seus incentivos que me ajudaram a olhar para aulas de medicina legal,
técnicas de acesso e expedientes burocráticos como modalidades basilares da administração
de crimes e violências.
A Gabriel Feltran, meu agradecimento mais que sincero por ser um leitor, uma
referência e um amigo daqueles que tornam a vida acadêmica boa de ser vivida. Agradeço,
também, pela participação em seus grupos de pesquisa e de orientação. Neles aprendi o quão
importante pode ser construir trocas acadêmicas honestas, horizontais e generosas. Meu
carinho a Ronaldo de Almeida pela presença marcante em toda a minha formação acadêmica,
mas também pelos cafés compartilhados e pelos primeiros ensinamentos de pesquisa, quando
eu ainda muito jovem queria estudar a política e seus escândalos midiáticos. Esta tese enlaça
parte desses pueris projetos que seguem guardados carinhosamente em meus cadernos de
campo e pilhas de papel arquivadas. Agradeço também a Adriana Piscitelli, Susana Durão,
Maria Cláudia Coelho, Jane Russo, Eva Muzzoppapa, Valeria Barbuto, Lucia Eilbaum,
Frederico Policarpo, Bruno Zilli, Guilherme Passamani, Everton de Oliveira, Laura
Lowenkron e Letícia Ferreira pelos debates instigantes feitos ao meu trabalho durante esses
seis anos de doutorado.
Finalmente agradeço, in memoriam, ao professor Dr. John Monteiro. Como escrevi,
horas depois de saber de sua repentina partida em virtude de um absurdo acidente de carro:
“Só tenho a agradecer a John Monteiro. Com ele aprendi que devo defender aquilo em que
acredito com elegância, serenidade e justiça. John Monteiro não era apenas querido por
muitos; ele era uma daquelas raras pessoas que agregam, que compartem o conhecimento
com uma generosidade ímpar e que não abandonam um debate, nem por mesquinharias,
menos ainda por discordâncias ou posições políticas divergentes. Raridade no mundo
acadêmico, sua falta será para sempre irreparável”.
Dos agradecimentos que enredam afetos, linhagens e inspirações intelectuais, eu não
poderia deixar de mostrar minha gratidão aos amigos que dentro e fora da universidade fazem
da vida, uma deliciosa aventura por entre casas, grupos de trabalhos, eventos e cidades.
Ao bonde escândalo do Rio de Janeiro, agradeço a Letícia Ferreira, Laura Lowenkron,
Raquel Sant’ana, Ju Farias, Silvia Aguião, Flávia Medeiros, Lucas Freire, Everton Rangel e
Marina Liberatori – a argentina mais carioca do mundo. É maravilhoso poder debater e ter
cada uma de vocês como leitoras, amigas e inspirações acadêmicas. A Letícia Ferreira, em
particular, agradeço pelas muitas parcerias que renderam seminários, dossiês, grupos de
trabalho e workshops. Sou grata também por seu nome estar entre os suplentes de minha
banca de defesa de doutorado. Letícia é uma daquelas inspirações que mudam o rumo da vida
de uma pessoa. Suas reflexões me acompanharam antes mesmo de eu ter a honra de conhecê-
la pessoalmente e tê-la como uma grande amiga. Seus livros foram meu amuleto da sorte e
minha maior inspiração. Espero que esta tese faça jus a esse nosso maravilhoso encontro na
vida.
Agradeço também aos amigos que deram pouso, aconchego e café às estadias cariocas.
Em especial, agradeço a Raquel Sant’ana pelas conversas astrológicas, marxistas, acadêmicas
e hilárias que suavizaram as saudades dos amigos campineiros e a escrita da tese. A Nivea
Patrocínio e a Fernando Aglio, sou grata pela amizade ímpar que construímos. O tipo de
amizade bem capixaba e mineira: que abre a casa, reparte a cerveja, faz almoços, planeja os
sambas e as andanças e, claro, dá sustento e afago aos tropeços da vida. Sou profundamente
grata a Aldrey Iscaro, amiga de toda uma vida, com quem se faz carnaval e festa, com que se
chora e se reconforta. Sem você, o Rio não teria as tais epifanias que se fazem nas areias de
Copacabana, na sacada em São Cristóvão e nos botecos da Lapa. Também, agradeço a Lygia
Ribeiro que fez da sua casa um pedacinho de família e aconchego num Rio de Janeiro que, em
2012, simplesmente transbordava.
Aos amigos e amigas campineiras e todos aqueles que passaram por Campinas e pelas
muitas casas que me deram aconchego nesses seis anos de doutorado. Seria impossível dizer
nestes agradecimentos o quão maravilhoso foi dividir a vida com vocês. Estão entre eles:
Julian Simões, Mari Petroni, Ernenek Mejía, Cil Veiga, Alcione, Natália Corazza, Douglas
Gonçalves, Ariane Brilhante, Ju Valente, Rafa Nascimento, Aldrey Iscaro, Carla Camargo,
Everton de Oliveira, Roberto Efrem, Guilherme Passamani, Ana Carolina Almeida, Thiago
Conti, Rafael Cremonini, Nersão, Carol Branco, Carol Bonomi, Fabiana de Andrade,
Nathanael Araújo, Gleidson Vieira, Rodolfo Reis, Carol Parreiras, Aline Balestra, Pedro
Galdino, Deborah Fromm, Eduardo Martins, Kiko (Francisco Aranha), Ellen Correa, Bruno
Puccinelli, Wilon, Renan, Lari Segatto, Denis Forigo, Lucas Magnin, Henrique Dutra e Paula
Togni (in memorian). Sou grata a cada um deles por fazerem do transitório, permanente. Cada
um a seu modo, estando perto ou longe, faz parte de um grupo de amigos dos quais nunca se
esquece; para os quais se deseja força e as melhores coisas do mundo, se brinda os
aniversários, se caminha lado a lado, se telefona nos momentos de desespero e com os quais
se divide as maiores alegrias e conquistas. O agradecimento curto e genérico sublinha o
óbvio: não é necessário dizer em papéis e teses aquilo que se partilha todos os dias, nos
meandros da vida, regados por sorrisos, lágrimas e incentivos etílicos.
Agradeço, em especial, a Mari e Ernenek pela amizade sólida e cheia de delicadezas;
pelas teses e vidas que se fazem na mesa de casa, com cerveja, açaí, sorrisos, muita política e
camaradagem. A Ariane Brilhante, sou grata pela casa compartida, pelo café e pelos afetos
partilhados: seus mimos e cuidados fizeram dos retornos para casa, um bálsamo. Meus
agradecimentos a Everton de Oliveira pelas parcerias acadêmicas que, entre workshops e
grupos de trabalhos, nos renderam ótimas viagens antropológicas, incursões gastronômicas e,
claro, memoráveis debates etílicos. A Carla Camargo, agradeço pelos telefonemas, leituras e
socorros que suavizaram a escrita da tese e deram solidez à amizade tecida
independentemente de distâncias e ansiedades. A Roberto Efrem, com todo meu afeto e
carinho, agradeço pela revisão, séria e generosa, do texto final desta tese. Não tenho dúvidas
de que um presente como este só é oferecido aos grandes amigos.
Agradeço a Julian Simões, Natália Corazza, Ju Valente e Cil Veiga pela parceria de
escrita que se faz no dia a dia, lado a lado. Sou grata, principalmente, às correções,
comentários e leituras feitas num piscar de olhos, para diminuir as ansiedades e venenos de
textos e parágrafos. A Julian Simões, agradeço ainda pelas conversas, sorrisos e afagos que
suavizaram as arestas de uma saudade latente e tornaram pequena a enorme distância entre
Brasil e Barcelona. Ao fazerem ressoar os incomunicáveis jeitos aquarianos de ser, nossos
momentos me permitiram enfrentar os medos e incertezas e viver as delicadezas que colorem
a vida. Para Natália Corazza, a moça sem a qual não haveria samba, Chico e outras lindezas,
não há palavras, apenas o silêncio de um minuto, de um suspiro e de um amor que é maior
que o mundo. A Ju Valente, agradeço pela paciência, pelo resumo em inglês, por me escutar
reclamar da tese e suas agruras, pelos cafés e bolos que fizeram de 2017 um ano cuja
amargura se afronta com doçuras. A Cil Veiga, queria ser possível explicar o inexplicável ou
transmutar em poesia a profundidade de um encontro de almas. A quem entende tudo aquilo
que parece torto, troncho ou maluco, uma frase inspirada na amizade de Montaigne e Etienne
de la Boétie: eu a amo “porque era ela, porque era eu”.
Agora sim, agradeço a meus pais por eles estarem presentes em todos os momentos,
mesmo aqueles mais corriqueiros de minha vida. Como afirmei nos agradecimentos que fiz a
minha dissertação de mestrado, eles não só bancaram financeiramente meus sonhos, como
foram esteio e exemplo em todo esse trajeto, que começou lá trás, nos primeiros livros e
cadernos comprados e encapados com carinho. Sou extremamente grata por vocês serem,
apenas e sobretudo, vocês. Ao meu pai, Cláudio Nadai, agradeço pelas muitas viagens feitas
de Rio Claro a Campinas só por minha causa, por respeitar minhas decisões e escolhas e por
dar sustento, cuidado e afeto aos períodos de escrita que se faz sem bolsa e sem perspectivas
concretas de que o texto da tese fique pronto. Sou especialmente grata ao futebol, à cerveja e
aos ensinamentos sobre pequenos consertos domésticos que me fizeram rir das precárias e
inúteis divisões de gênero. A minha mãe, Maria Elisa Andriozzi Nadai, agradeço por ter me
priorizado por tantas vezes, e muitas delas se esquecendo de si mesma. Hoje, com um pouco
mais de maturidade, percebo que mais do que um exemplo e uma incentivadora, ela é a minha
primeira referência de feminismo: uma mulher forte, materna, inteligente e muito a frente de
seu tempo. Agradeço por você ter me impulsionado a ser valente, perspicaz e inventiva. De
todos os livros, desenhos e ensinamentos tomados no aconchego da manta azul, guardo o mais
precioso: a garantia de um porto seguro para onde retornar e um abraço de mãe para me
acalmar. A Priscila Maquea, amiga-irmã, agradeço por você estar sempre presente, pelas
angústias e alegrias partilhadas, pelas mensagens e áudios gigantes e pelo abraço que é só seu
lôra! Agradeço também a Eunice Oliveira e Alex Souza pelo apoio, carinho e respeito. A
Eunice Oliveira, em especial, sou grata pelos amparos e cuidados que se fazem sem pensar
duas vezes e que ajudam a diminuir ansiedades, inseguranças e desterros. A Nicholas Souza
agradeço por me ensinar a ser mais paciente e amorosa, por me fazer perceber que cativar
alguém é uma responsabilidade, mas também uma aventura, feita com muita pipoca, lição de
casa e brincadeiras de criança.
Finalmente, a Pedro Oliveira Souza, a quem dedico esta tese, sou grata por ter feito
comigo uma família e um lar. Seus olhos verdes e lindos, seu abraço apertado e reconfortante,
seus afagos amorosos e únicos fizeram dos dias vividos, uma linda poesia, embalada por
sambas, malemolências, rodopios e aconchegos. Agradeço, em especial, por ter mudado sua
vida e a do Nicholas para estarmos juntos, sem pontes áreas, sem saudades; com uma casa,
com cheiros, sorrisos, rotinas e epifanias.
"O que é a carne? O que é esse Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor sobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.

O que é o osso? Este viço luzente


Desejoso de envoltório e terra.
Luzidio rosto.
Ossos. Carne. Dois Issos sem nome".
(HILST, 2004).

“A carne é o que se nomeia, a carne é aquilo de que se fala, a carne é o que se diz”.
(FOUCAULT, 2001, p. 257).
Resumo

Esta tese de doutorado se debruça sobre técnicas, procedimentos e tramas políticas e


institucionais que dão sustentação ao Instituto Médico Legal (IML) enquanto uma corporação
policial, técnica e científica. Ao dar atenção a tais engrenagens, eu intento, por um lado,
transpor as dificuldades impostas a minha pesquisa, e, por outro, evidenciar as relações, por
vezes intrincadas, que conectam esta corporação a uma gama variada de instâncias estatais:
polícias, universidades, órgãos públicos etc. Para tanto, busquei tomar o IML de Campinas
como uma circunscrição empírica, cujas fronteiras são móveis e construídas mediante meus
próprios percursos de investigação. Nesse sentido, o indeferimento de minha solicitação de
pesquisa protocolada junto a Comissão Científica do IML, em São Paulo, tece as costuras que
organizam a tese. Dos “balcões” e “checkpoints” impostos a investigação, eleva-se um
emaranhado de fragmentos: minuciosas técnicas de documentar a documentação, aulas de
medicina legal, textos canônicos destinados à disciplina, laudos de corpo de delito, técnicas de
necropsia, além de carreiras, vaidades e conflitos institucionais. Por efeitos de similitude e
contraste, os documentos periciais destinados aos crimes de estupro e ato libidinoso,
acessados ainda em minha pesquisa de mestrado, iluminam as tramas políticas, midiáticas e
institucionais que enredam casos e peritos. Enquanto a ideia de pedaço materializa o sexo de
certas mulheres por meio de himens, fissuras e (in)conclusões periciais, tais tramas
requalificam o fazer padronizado e burocrático posto em ação nessa corporação. É, também,
nesse entrecruzamento produtivo que um tipo bastante específico de autoridade técnico-
científica é forjada e, continuamente, colocada em risco por meio de materialidades periciais,
corpos, pedaços e vestígios.

Palavras chaves: Medicina Legal; Documentos Oficiais; Estado; Gênero; Sexualidade.


Abstract

This doctoral thesis focuses on the techniques, procedures, and political and institutional
threads that make up the Institute of Legal Medicine (Instituto Médico Legal - IML) in
its function as a branch of the police department that conducts forensic science. In the
process of examining such mechanisms, I attempt, on the one hand, to overcome the
difficulties imposed on my research, and, on the other, to expose occasionally intricate
relations that connect this department to a wide range of agencies that, together,
constitute the state: police departments, universities, public agencies etc. Therefore, I try
to understand Campinas’ IML as an empirical circumscription, with borders that were
mobile and built during the process of my research. In this sense, the denial of my
requisition to access the IML, sent to IML’s Scientific Commission in São Paulo,
stablishes the foundation that organizes the thesis. From the "counters" and
"checkpoints" imposed on my research, a medley of fragments emerges: techniques for
documenting the documents, legal-medicine classes, canonical texts in the discipline,
forensics reports, necropsy techniques, in addition to careers, vanities and institutional
conflicts. Through the use of juxtapositions, the material evidences found on the
victim’s bodies of the crimes of rape and sexual assault, accessed during my master's
research, give light to the political, mediatic and institutional threads that entangle
affairs and forensic experts. While the idea of pieces embodies certain women’s “sex”
by means of hymns, fissures, and forensic uncertainties, the above-mentioned threads
requalify the standardized and bureaucratic characteristic of this police department. It is
also in this productive intersection that a very specific type of technical-scientific
authority is forged and, simultaneously, continually put at risk by means of material
evidences, bodies, pieces, and traces.

Key-words: Legal Medicine; Official Documents; State; Gender; Sexuality.


Lista de Quadros e Figuras

Figura 1: Fragmentos e peças disparatadas .................................................................... 31


Figura 2: Classificação dos orifícios himenais por Oscar Freire ................................. 125
Figura 3: Himens .......................................................................................................... 126
Figura 4: Esquema para lesões himenais, segundo Oscar Freire .................................. 130
Figura 5: Técnica para o exame dos órgãos genitais externos femininos .................... 131
Figura 6: Reconstituição facial de Josef Mengele ........................................................ 177
Figura 7: Romeu Tuma apresenta a reconstituição da cabeça de Josef Mengele ......... 180
Figura 8: Identificação por sobreposição de imagens de Eduardo Mayr ..................... 194
Figura 9: Simulação sobre as mortes de PC Farias e Suzana Marcolino ..................... 202
Lista de Siglas e Abreviaturas

ABA Associação Brasileira de Antropologia


AJURIS Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
ALN Ação Libertadora Nacional
AMLESP Associação de Médicos-Legistas do Estado de São Paulo
AMLIRJ Arquivos de Medicina Legal e Identificação do Rio de Janeiro
ANML Academia Nacional de Medicina Legal
AVP Atentado Violento ao Pudor
BO Boletim de Ocorrência
CAISM Centro de Atenção Integral da Saúde da Mulher
CAAF Centro de Antropologia e Arqueologia Forense
CEMIT Departamento de Cemitérios
CFM Conselho Federal de Medicina
CNPq Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico
COPOM Centro de Operações da Polícia Militar
CONSU Conselho Universitário
CPF Cadastro de Pessoas Físicas
CPI Comissão Parlamentar de Inquérito
CPTM Companhia Paulista de Trens Metropolitanos
CREMESP Conselho Regional de Medicina de São Paulo
CRM Conselho Regional de Medicina
DAC Diretoria Acadêmica
DDM Delegacia de Defesa da Mulher
DGPTC Departamento Geral da Polícia Técnico Científica
DPTC Departamento da Polícia Técnico Científica
DMLE Departamento de Medicina Legal e Ética
DNA Deoxyribonucleic acid (ácido desoxirribonucleico)
DOI-CODI Destacamento de Operações Internas – Centro de Operações
de Defesa Interna
DOPS Departamento de Ordem Política e Social
EAAF Equipe Argentina de Antropologia Forense
EMTU Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos
ENADIR Encontro Nacional de Direito
EPAF Equipe Peruana de Antropologia Forense
EPC Empresa de Participações e Construções
EUA Estados Unidos da América
FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
FCM Faculdade de Ciências Médicas
FIESP Federação das Indústrias de São Paulo
FMUSP Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
FOP Faculdade de Odontologia de Piracicaba
FUNDAÇÃO CASA Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao
Adolescente
GDL Sistema Gestor de Laudos
GTP Grupo de Trabalho de Perus
HC Hospital das Clínicas
IC Instituto de Criminalística
IFCH Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
IML Instituto Médico Legal
IMLAP Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto
IP Inquérito Policial
IPC Instituto de Patologia de Campinas
IPESIT Instituto de Pesquisa, Som, Imagem e Texto
IOF Instituto Oscar Freire
MOLIPO Movimento de Libertação Popular
MOSSAD Instituto para Inteligência e Operações Especiais (tradução do
hebraico)
MRT Movimento Revolucionário Tiradentes
MR-8 Movimento Revolucionário 8 de Outubro
NEV Núcleo de Estudos da Violência
NPML Núcleo de Perícias Médico-Legais
OMS Organização Mundial da Saúde
ONG Organização Não-Governamental
PANAL Planejamento e Assessoria de Alagoas
PCB Partido Comunista Brasileiro
PCdoB Partido Comunista do Brasil
PCR Partido Comunista Revolucionário
PF Polícia Federal
PM Polícia Militar
PMDB Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PP Partido Progressista
PPGCS Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais
PRN Partido da Reconstrução Nacional
PS Pronto-Socorro
PSDB Partido da Social Democracia Brasileira
PT Partido dos Trabalhadores
PUCCAMP Pontifícia Universidade Católica de Campinas
PV Partido Verde
RA Registro Acadêmico
RG Registro Geral
ROTA Rondas Ostensivas Tobias Aguiar
SABESP Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo
SAP Secretaria da Administração Penitenciária
SETEC Serviços Técnicos Gerais
SS Schutzstaffel (Tropa de Proteção)
SVO Serviço de Verificação de Óbito
TAM Táxi Aéreo Marília
TELEBRÁS Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Telecomunicações
S.A.
UERJ Universidade Estadual do Rio de Janeiro
UFAL Universidade Federal do Alagoas
UFF Universidade Federal Fluminense
UFMG Universidade Federal de Minas Gerais
UFPB Universidade Federal da Paraíba
UFPE Universidade Federal de Pernambuco
UFRGS Universidade Federal do Rio Grande do Sul
UFRN Universidade Federal do Rio Grande do Norte
UNC Universidade Nacional de Córdoba
UNE União Nacional dos Estudantes
UNICAMP Universidade Estadual de Campinas
UNIFESP Universidade Federal de São Paulo
UNIMEP Universidade Metodista de Piracicaba
USP Universidade de São Paulo
VPR Vanguarda Popular Revolucionária
Sumário

Apresentação. Dos enredos e miradas que fazem a pesquisa ......................................... 23


Uma breve história pregressa: das circunscrições e funções que delimitam o IML . 24

Das escolhas que fazem a tese: a pesquisa e seus limites .......................................... 27

Organização dos capítulos: dos fragmentos que forjam o IML e suas relações ......... 32

Capítulo I. Entre oficialidades e relações pessoais: o não acesso como forma de acesso
........................................................................................................................................ 36
Entre palavras, insígnias e atos de fé: ou como se documenta a documentação? ...... 38

Sobre “balcões”, trânsitos e carimbos: por onde caminha a documentação? ............. 47

Entreatos: Os enredos e artimanhas dos labirintos kafkanianos ................................. 57

Nem tudo que não se pode ver está escondido: sobre dar autorização, arriscar
autoridade................................................................................................................... 58

Capítulo II. Entre laudos, necropsias e aulas de medicina legal ou dos fragmentos pelos
quais se visita o IML. ..................................................................................................... 82
Sobre sons, cheiros e dissecações de rotina: notas sobre a arte de assistir a necropsias
.................................................................................................................................... 82

Fios soltos de tramas complexas: a necropsia como pedagogia ................................. 87

Sobre trânsitos e fixações: onde aulas de medicina legal e laudos de perícia


encontram seu lugar .................................................................................................... 95

Dia 25 de abril de 2015: Auditório da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP. ............................ 96

Uma ficção para muitas histórias: uma entre muitas Alices .................................... 97

Capitulo III. Vasculhar pedaços, produzir papéis: sobre vestígios e técnicas de perícia
...................................................................................................................................... 106
Por entre formas e formulários: quais pedaços para quais lacunas? ........................ 106

“Do visto e observado”: o hímen e suas roturas ...................................................... 119

Sobre ânus e fissuras: deslocamentos etnográficos .................................................. 140

Entre “prejudicados” e “não recentes”: sobre arremates narrativos e (in)conclusões


médico-legais ............................................................................................................ 151
Capítulo IV. “Por que converso com os mortos”: entre histórias, casos e
acontecimentos. ............................................................................................................ 162
“A face do Anjo da Morte”: um crânio, um departamento e dois IMLs. ................. 167

“As ossadas da discórdia”: o ato de exumar e identificar como reparação............. 183

Capítulo V. Sobre tramas e contenciosos que fazem a instituição: entre vaidades,


arquivos malditos e folhetins detetivescos ................................................................... 201
“Uma manhã macabra em Guaxuma”: entre laudos e contra laudos do caso PC
Farias ....................................................................................................................... 201

“Vamos acabar com esse herói nacional”: entre tramas institucionais e vaidades
pessoais ..................................................................................................................... 220

Notas finais. Dos muitos fragmentos que fazem o Estado: os (des)caminhos entre
ciência, aparato policial e políticas de justiça e reparação. .......................................... 241
Bibliografia ................................................................................................................... 251
Imagens e figuras ...................................................................................................... 251

Reportagens de jornal e televisão e documentários .................................................. 251

Verbetes biográficos, dicionários e sites utilizados para a pesquisa ........................ 256

Leis, relatórios e documentos públicos .................................................................... 258

Livros, teses e artigos ............................................................................................... 260

Anexos .......................................................................................................................... 271


I. Dos Documentos ................................................................................................... 271

 Como se documenta a documentação ........................................................... 271

 Modelos de laudo de corpo de delito ............................................................. 287

 Termo de Consentimento ............................................................................... 291

II. Quadro sobre as ocorrências policiais e laudos de corpo de delito em casos de


estupro e atentado violento ao pudor ........................................................................ 292

III. Dos jornais e casos – resumo dos itinerários de pesquisa .................................. 302

IV. Quadro das tramas e de seus principais personagens ......................................... 304


23

Apresentação. Dos enredos e miradas que fazem a pesquisa

“[a pesquisa] é mais voltada para violência sexual? (...) Ele [filho do
entrevistado, formado em Ciências Sociais] falou: ela só vai te perguntar
sobre isso. Ele viu seu currículo...” (Entrevista realizada em janeiro de
2015).

“É que você está sempre fazendo a pergunta focalizada para violência


sexual! Você faz uma questão geral, mas, [em seguida] você volta para
violência sexual. [Um pouco incomodada, eu retruco] Não, não é isso! É
que... [Sem muita cerimônia meu entrevistado me interrompe e diz] Não,
não!!! Eu sei!” [ênfase e risos]. (Entrevista realizada em janeiro de 2015).

Dia 19 de janeiro de 2015: Rua Barão de Parnaíba, 300 – Botafogo, Campinas – SP

São 7h30. O trajeto até o centro de Campinas flui com certa tranquilidade. Pela janela do carro, observo os pedestres
que pouco a pouco vão tomando as calçadas e vielas. Em pouco tempo, eu me vejo frente a frente ao portão gradeado
que dá acesso ao Instituto Médico Legal (IML). A espera, característica marcante de minha pesquisa, mais uma vez se
reafirmava. A porta fechada do Núcleo de Perícias zombava de meus desejos de acesso. Repasso na cabeça o longo
roteiro de entrevistas redigido que carrego comigo. Entre uma olhadela para o relógio e outra para o portão que dá
acesso ao IML, pensamentos de alerta se acendem dentro de minha cabeça: “não esqueça! Não esqueça!”. Sem folga,
volto aos mesmos questionamentos que há meses me importunam: “como realizar uma boa entrevista, se não conheço
o cotidiano de trabalho realizado por um funcionário do IML?” . Resolvo caminhar pelo entorno do prédio. Pontualmente
às 8h, eis que vislumbro, com certa animação, que a porta de vidro, finalmente, está aberta. Caminho até a antessala e
me apresento ao funcionário que ocupa a cadeira atrás do “balcão”. Informo ao funcionário que aguardo por Dr.
Rubens. O atendente cordialmente me comunica que ele ainda não chegou. Um rapaz, de aparentemente trinta anos,
com a perna envolta em uma estrutura metálica repleta de pinos, já está acomodado num dos cantos da sala.
Permaneço sentada por aproximadamente meia hora. Vestido de branco da cabeça aos pés, Dr. Rubens, parecia a mim
inconfundível assim que adentrou o Núcleo de Perícias. Depois de espiar por detrás do balcão, Rubens veio em minha
direção e afirmou: “sabia que você era a Larissa. Não tem cara, nem jeito de vítima”. (Diário de Campo).
24

Uma breve história pregressa: das circunscrições e funções que delimitam o IML1

Data de 1886 a fundação do primeiro Serviço Médico-Legal do estado de São Paulo.


Designado como Secção Médica da Polícia, a partir de 1896, e de Gabinete Médico-Legal
depois de 1906, foi, somente, entre os anos de 1906 e 1910, que suas atribuições foram mais
bem delineadas. Em 1924, um pequeno serviço de expediente e um arquivo foram criados.
Nesse momento, também, o número de legistas dobrou e o atendimento, até então bastante
diminuto, passou a contar com um total de oito profissionais. Sediados na capital de São
Paulo, em Campinas e em Santos, o serviço médico-legal carecia de recursos e um novo
desenho institucional. (CREMESP, 2008).
Em 1933, por decreto do interventor federal indicado por Getúlio Vargas, Armando de
Salles Oliveira, o Gabinete Médico-Legal da capital e os Postos Médico-Legais Regionais do
interior foram reestruturados. O novo projeto idealizado por José Líbero, chefe do Gabinete à
época, reuniu no mesmo órgão, agora denominado, Serviço Médico-Legal, o Gabinete, os
laboratórios de toxicologia, anatomia patológica e microscopia e outros treze postos
distribuídos pelo interior do estado2. A designação do serviço como Instituto Médico Legal
data de 1959. O nome mantido até hoje foi regulamentado por decreto assinado no governo de
Carlos Alberto de Carvalho Pinto. (CREMESP, 2008). Sem delimitações claras, as relações
entre a Polícia Civil de carreira e as funções médico-legais e periciais permaneceram, até
1998, bastante imiscuídas. Administrado pela Polícia Civil, o IML “[nessa] época, tinha uns
5000 delegados de polícia e uns 500 legistas”. (Entrevista realizada em abril de 2015). Os
números bastante desiguais favoreciam relações amistosas e cordiais que mais tarde, com a
autonomia do IML, seriam, aos olhos de meu entrevistado, transformadas: “os delegados de

1
A história pregressa construída desse primeiro tópico da apresentação toma como material empírico o site
oficial da Polícia Técnico-Científica, em especial a seção destinada ao Instituto Médico Legal (IML), bem como
o manual técnico-operacional para médicos-legistas do estado de São Paulo, publicado pelo Conselho Regional
de Medicina do estado de São Paulo (CREMESP), em 2008. Tal manual apresenta um breve histórico sobre o
serviço médico-legal no estado de São Paulo. Busco complementar tais referências com elementos recolhidos
por mim em entrevista, mas apenas em situações onde tais dados aparecem como relevantes. Por sua vez, o uso
do adjetivo pregresso tem por intuito incitar o leitor a correlacionar tais histórias àquelas forjadas pela Polícia
Civil para acusados ou averiguados em crimes dos mais diversos. Esse documento designado “Informações da
vida pregressa” produz uma espécie de anamnese do autor/indiciado, discriminando sua infância, sua vida
conjugal, se tem filhos, seus empregos nos últimos tempos, se faz uso de substâncias psicoativas etc. Tal
documentação oficial é também um dos principais artifícios por meio dos quais se produz um indivíduo como
um possível “criminoso” (NADAI, 2012). Ao incitar tais correlações, busco, portanto, explorar a imagem oficial
construída sobre esse serviço e também evidenciar o efeito linear e coerente que essas histórias conformam. No
decorrer desta tese, intento decompor e apresentar as articulações e relações que sustentam tal ilusão de
coerência. Para acessar o referido site: http://www.policiacientifica.sp.gov.br/iml-instituto-medico-legal/.
2
Os treze Postos Médico-Legais estão distribuídos pelas seguintes cidades: Araraquara, Bauru, Botucatu,
Campinas, Casa Branca, Guaratinguetá, Itapetininga, Penápolis, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, Rio Preto,
Santos e Sorocaba.
25

polícia jamais aceitaram essa separação da Policia Científica da Polícia Civil. Nunca
aceitaram isso. (...) essa Polícia Científica, não sei, mudou um pouco a relação”3. (Entrevista
realizada em abril de 2015).
A separação de que fala meu interlocutor foi resultado do Decreto-lei nº 42.847, de 9
de fevereiro de 1998. Assinado pelo governador em exercício, Mario Covas, o ordenamento
desvinculava a “Secretaria da Polícia Técnico-Cientifica da Polícia Civil, elevando-a ao
nível de Coordenadoria subordinada diretamente ao secretário de Segurança Pública”
(CREMESP, 2008)4. A “nova estrutura organizacional”, denominada Superintendência da
Polícia Técnico-Científica, reuniu num mesmo corpo institucional o Gabinete da
Superintendência, o Instituto de Criminalística (IC), o IML e uma divisão administrativa.
Subdivididos em centros, núcleos e equipes, tanto o IC quanto o IML dispõem de inúmeras
sedes espalhadas pela capital e por inúmeras cidades do interior do estado de São Paulo.
Ambos os órgãos técnico-científicos têm seus próprios diretores e revezam a coordenação da
Superintendência.
No decreto-lei foram, também, determinadas as atribuições de ambos os serviços.
Tanto para o IML quanto para o IC, a lista é extensa. Ao que interessa a essa tese gostaria de
destacar o caráter técnico – os exames em vivos, cadáveres, ossadas, bem como, análises
laboratoriais diversas – e os aspectos científicos conferidos à corporação. Para cumprir esse
último objetivo, o IML deve “desenvolver pesquisas no campo da medicina legal”,
“promover o estudo e a divulgação de trabalhos científicos”, “elaborar trabalhos
fotográficos de pessoas, peças e instrumentos relacionados com as perícias” etc. (Decreto-lei
nº 42.847/98). As mesmas funções se aplicam ao IC, com alterações apenas no que caracteriza
a atuação técnica do mesmo. Entre elas está proceder a perícias em acidentes de trânsito,
peças, armas e outros instrumentos apreendidos, bem como à atenta inspeção das cenas que se
configuram como o local do crime.

3
Em complemento a tais conformações, segundo um dos legistas que entrevistei, tais cordialidade eram ainda
mais intricadas nas cidades pequenas e mais ao interior do estado. Em suas palavras: “Lá mais no interior, a
coisa funcionava incrivelmente mais precária do que aqui [Campinas]. Lá funcionava muito na base de
delegado tinha que ter amizade, ter jogo de cintura... Na época, o IML não era independente. Então, o delegado
conseguia as coisas na base da conversa, no local. Então, por exemplo, combustível o Estado não dava. Ele
conseguia com um produtor aqui, um produtor de cana lá. Quebrava o carro, não sei quem que arrumava. Tudo
nessa base. A coisa era assim (...), dependia de quem era delegado e da relação que ele tinha com a
comunidade. Isso me chamava atenção na época. Porque a polícia [científica] tinha que ser um órgão
independente de qualquer forma”. (Entrevista realizada em março de 2015).
4
Segundo a publicação organizada pelo CREMESP (2008, p. 13), tal decreto-lei, contudo, não fixou “dotação
orçamentária e nem autonomia através de Lei Orgânica” à nova coordenadoria, o que “na prática, [continua a
mantê-la como] um apêndice burocrático da Polícia Civil”.
26

No caso de Campinas, a cidade dispõe de serviços médico-legais desde 1924 e, ao


longo desse período, configurou-se como um ponto de apoio importante para a medicina legal
realizada na região. Além de fornecer atendimento a toda a cidade, o Núcleo de Perícias é
responsável pela coordenação de equipes destinadas a atuar em outras sete cidades da região:
Americana, Bragança Paulista, Jundiaí, Limeira, Mogi-Guaçu, Piracicaba, Rio Claro e São
João da Boa Vista.
No município, dois prédios circunscrevem as dependências do IML e os serviços
prestados à comunidade: o Núcleo de Perícias Médico-Legal, localizado em Botafogo, bairro
contíguo ao centro comercial da cidade, e o prédio instalado junto ao Cemitério Parque Nossa
Senhora da Conceição, no bairro dos Amarais, sob a responsabilidade do Serviço Técnico
Geral (SETEC)5.
O primeiro edifício reúne, em sua estrutura, salas de exames de corpo de delito
destinados aos vivos e dispõe de laboratórios de anatomia patológica e toxicologia 6. A
segunda das instalações, denominada como necrotério, é destinada às perícias de cadáveres,
falecidos em função de “mortes violentas” ou de causas naturais desconhecidas. Este último
serviço, distinto do IML, é definido como Serviço de Verificação de Óbito (SVO)7.
Quanto aos seus quadros de funcionários, todos os médicos-legistas da corporação são
concursados, portanto, servidores públicos do estado de São Paulo8. Graduados em medicina,
a maioria deles realizou um mestrado e/ou um doutorado e todos, além de trabalharem no
IML, atuam em outras funções profissionais. Entre elas: laboratórios particulares, consultórios
médicos, hospitais e/ou docência em universidades da região. O órgão também tem, em suas
dependências, funcionários com função exclusivamente administrativa e de atendimento ao
público.

5
Tal órgão é uma autarquia da prefeitura municipal de Campinas. Sua principal função é administrar fiscalizar o
comércio em solo público. Para mais informações, acesse: http://setec.sp.gov.br/site/
6
Os laudos de corpo de delito devem ser realizados em casos de estupro e ato libidinoso, mas, também, diante de
lesões corporais, acidentes de trânsito ou de trabalho, embriaguez etc. Para o recorte escolhido para esta tese, são
os exames de corpo de delito de conjunção carnal (estupro) e ato libidinoso (atentado violento ao pudor) que
ganharão destaque. Para fins de espacialização, noto ainda que contíguo às dependências do Núcleo de Perícias
está o Instituto de Criminalística de Campinas, responsável pelas perícias de local.
7
Como esclareceu um dos meus interlocutores de pesquisa, “em Campinas é um pouco diferente. Aqui você não
faz tudo. As equipes são separadas, devido ao volume de trabalho. Então, tem uma equipe que fica no
Necrotério. E uma outra equipe que fica na Sede, que faz atendimento ao vivo”. (Entrevista realizada em janeiro
de 2015). Designados como relatório de necropsia ou formulário de SVO, os exames realizados em cadáveres
não serão objeto direto de atenção dessa tese. Tais procedimentos servem a outros propósitos. Ou seja,
funcionam como técnicas pedagógicas à pesquisa que seguiu indeferida pela Comissão Científica.
8
No início da minha pesquisa o número de funcionários ativos já era modesto. Diante de aposentadorias e
realocações, em 2016, a quantidade de servidores foi drasticamente reduzida o que resultou em mudanças
substanciais nos plantões e no atendimento cotidiano. A secretaria de Segurança Pública abriu novos concursos
destinados a legistas e peritos criminais, em 2013, contudo, muitos cargos seguiram ociosos e as nomeações
demoraram mais de quatro anos para serem, parcialmente, concluídas.
27

Das escolhas que fazem a tese: a pesquisa e seus limites

A breve e resumida história pregressa, acima apresentada, bem como as


circunscrições físicas, funcionais e administrativas delineadas em sua sequência inserem
algumas das imagens projetadas ao IML para as quais fui incitada a prestar atenção. Como
intentei retratar por meio das epígrafes e da cena que abrem esta apresentação dos embaraços
vividos por mim durante uma de minhas primeiras entrevistas, essa tese busca dissecar os
dispositivos oficiais que delimitam e produzem atribuições, cargos e serviços como elementos
destacados dos indivíduos que as compõem.
A inspiração para tanto está nas reflexões desenvolvidas por Mitchell (2006). Para o
autor, a circunscrição espacial, a ideia de função/cargo que sustentam as modernas
instituições, os arranjos hierárquicos, as técnicas de fiscalização e vigilância, a marcação de
tempo através de horários e programas, tudo isso contribui para a construção de um mundo,
um aparellho ou estrutura, que parece estar apartado das práticas sociais que o produzem.
Cria-se, assim, um binarismo: de um lado, os indivíduos e suas atividades; e, de outro, uma
estrutura inerte, destacada dos indivíduos, que precede, contém e sustenta a vida desses
mesmos indivíduos. Na verdade, a noção de instituição, como um quadro abstrato separado
das práticas particulares que o emolduram, é o ardil mais poderoso dessas técnicas.
(MITCHELL, 2006).
Devo advertir ao leitor, todavia, que não cheguei às portas do IML somente em janeiro
de 2015. Ao contrário, eu escolhi começar os sinuosos caminhos dessa investigação
reforçando as “praxes de escritas” e de comunicação impostas a documentos e trâmites
institucionais que visam a comunicar, solicitar e/ou informar algo. Para tanto, produzi dois
calhamaços de papéis com cópias de meu atestado de matrícula, meu histórico escolar, uma
apresentação de minha pesquisa e um pedido formal de acesso aos arquivos e expedientes de
trabalho do IML de Campinas. O primeiro desses compêndios documentais foi entregue aos
cuidados do diretor do IML da cidade. Tais documentos viajaram por variados setores
internos à administração do IML até chegarem à Comissão Científica. O segundo deles, eu
protocolei diretamente à Comissão Científica sediada na cidade de São Paulo.
Minha escolha por uma entrada mediada por autorizações oficiais respondia, por sua
vez, àquilo que como cidadã, mas também pesquisadora de outras corporações da polícia, eu
supunha conhecer sobre o IML9. Diante de uma corporação previamente delimitada por meio

9
Tais aprendizados remontam a minha pesquisa de mestrado realizada na Delegacia de Defesa da Mulher
(DDM) de Campinas, entre os anos de 2009 e 2011. Em função de tal pesquisa, eu aprendi - ao me confrontar
28

de um prédio, um endereço e um quadro de funcionários, com hierarquias e regras precisas de


trabalho, eu reiterava os contornos oficiais que produzem as instituições como uma
instituição.
Dando continuidade aos estudos iniciados em meu mestrado, eu buscava acessar
laudos e expedientes de trabalho em casos de estupro e atentado violento ao pudor. O recorte
temporal especificado, crimes ocorridos entre os anos de 2004 e 2005, respeitava os inquéritos
policiais que eu havia investigado junto à Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de
Campinas, entre os anos de 2009 e 2011. O objetivo ou a questão central da pesquisa, por
conseguinte, era entender como os laudos eram forjados, como se inseriam no processo
criminal subsequente e quais eram seus impactos na condenação ou na absolvição de um réu
acusado de estupro.
Contudo, em abril de 2014, inicialmente remetida por e-mail e, depois, em julho de
2014, entregue pelas mãos daquele que se tornaria um interlocutor chave de minha pesquisa, a
resposta a minha solicitação chegou a mim como um indeferimento. A Comissão Científica
do IML, por meio de papéis, carimbos e assinaturas reafirmou por duas vezes que eu não
poderia realizar a pesquisa acima delineada.
Durante os anos em que eu busquei realizar a investigação que sustenta esta tese, no
entanto, não abandonei as minhas primeiras intenções de pesquisa, como parecia mais
prudente e indicado. Resolvi enfrentar o não acesso como uma estratégia deliberada de
acesso. Ou seja, diante da impossibilidade de cruzar as portas institucionais do Núcleo de
Perícias do Instituto Médico Legal de Campinas, passei a dar atenção a outras formas pelas
quais eu poderia entrever o IML. Deixei-me ser remetida, redirecionada e surpreendida por
aquilo que sistematicamente eu buscava agarrar e circunscrever a um endereço, a um prédio, a
um arquivo, a um crime.
Se as circunscrições físicas, institucionais e funcionais precisavam ser desenhadas por
intermédio de técnicas de acesso mais criativas10 (NADER, 1972) do que aquelas ancoradas

com a interação entre essas policiais e outras instâncias estatais tais como o IML, varas criminais, outras
delegacias, conselhos tutelares etc. - que os documentos eram centrais para facilitar e formalizar relações,
endereçados a interlocutores, muitas vezes despersonalizados através de pronomes de tratamentos e funções
institucionais tais como “excelentíssimo juiz” ou “senhor diretor”.
10
Como Nader (1972) sugere, questões de acesso são reflexões importantes para qualquer tipo de pesquisa
antropológica. Contudo, quando tratamos de pesquisas voltadas as elites, burocratas e corporações, poucas são as
pesquisas que têm se debruçado sobre a crença de que essas corporações trabalham secretamente por seus
próprios interesses. Também não temos questionado a premissa da observação participante como um cânone da
pesquisa empírica. Sem observação participante, a maior parte dos alunos, segundo a autora, sentem-se menos
antropólogos. Esse tipo de sensação ancora-se, justamente, no fato de não sermos treinados em outros tipos de
técnicas de pesquisa. Técnicas cujo aprendizado, estariam mais adequadas e seriam mais úteis aos problemas que
nos colocamos quando decidimos etnografar ambientes como bancos, companhias de seguro, agências
29

na observação participante, todavia, tal empreitada só se tornaria factual através das curiosas
relações entre a universidade e esses aparatos estatais. Como aluna da Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP), passei a circular por outros espaços institucionais que não o
Núcleo de Perícias, como, por exemplo, o auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
da UNICAMP, o necrotério da cidade ou o Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IMLAP)
do Rio de Janeiro11.
Cursei a disciplina de medicina legal fornecida pela FCM e, a partir dali, teci algumas
das relações pessoais e profissionais que resultaram em entrevistas com um pequeno grupo de
médicos-legistas. As entrevistas foram mediadas por um dos interlocutores chaves desta
pesquisa, mediante sua fiança moral e profissional. Em sua maioria, tais encontros ocorreram
em consultórios ou laboratórios particulares. Em dois desses encontros, a conversa se deu em
áreas públicas ou separadas das instalações do IML: a cozinha do Núcleo de Perícias ou a sala
de recepção do necrotério. Todos os entrevistados sabiam previamente sobre os meus
interesses de pesquisa e tinham ciência quanto ao indeferimento de minha pesquisa pela
Comissão Científica.
Com o intuito de proteger suas identidades, evitei sempre que pude, nomeá-los através
de nomes próprios, ainda que ficcionais. Abdiquei, também, de traçar trajetórias profissionais
a partir de seus dados pessoais, tais como idade, formação, tempo de serviço, equipes das
quais fizeram parte no IML de Campinas e em outras cidades etc. O cargo funcional de
médico-legista, exatamente porque opaco e genérico, disfarça as nuances que caracterizam
tais sujeitos e os tornam visíveis à própria corporação. Por contraste, mantive o nome
verdadeiro de entrevistados e/ou atores citados em jornais e documentos de amplo
conhecimento público. É o que ocorre, por exemplo, com Fortunato Antônio Badan Palhares e
José Eduardo Bueno Zappa, mas também com figuras políticas, midiáticas e institucionais
como Romeu Tuma, Caco Barcellos, Luiza Erundina etc.
Pouco a pouco, em função de tais interlocuções, reinscrevi o campo empírico que
sustenta esta tese. Para isto, retornei ao pequeno conjunto de laudos de corpo de delito que
havia recolhido junto à DDM. O desafio que me coloquei foi, portanto, o de traçar as
conexões entre esses artefatos documentais, aquilo que meus entrevistados descreviam como

governamentais, indústrias e similares. Entre tais modalidades estariam: o uso de documentos, leis, livros,
jornais, memórias, entrevistas feitas a partir das mais variadas técnicas de encontro, grupos focais etc.
11
Tal evento foi organizado por professores da Universidade Federal Fluminense (UFF). Na oportunidade, por
meio de uma visita guiada pude conhecer diversas dependências do IMLAP, bem como as anedóticas histórias
contadas por seus funcionários, a cada setor visitado. Não faço uso textual das anotações de campo que produzi
durante essa experiência. Entretanto, tais andanças e materiais serviram como material de contraste àqueles
construídos mediante a pesquisa feita em Campinas.
30

“a forma pela qual se realiza um exame de corpo de delito”, e um amontoado de livros,


manuais de medicina legal, fotos e aulas tomadas junto à FCM.
Por artimanhas semelhantes, dei atenção a um legista de renome, mencionado em uma
de minhas entrevistas, cuja fama eu conhecia dos jornais e dos programas de televisão. Como
médico legista concursado e funcionário do IML de Campinas, os casos de perícia assinados
por Badan Palhares e sua controversa autobiografia lançam luz a fantasmas impensáveis
durante os primeiros passos desta investigação. Jornais, laudos e um mundaréu de diferentes
documentos políticos desenham as tramas institucionais (GREGORI, 1999) que enredam
IMLs, universidades, prefeituras, polícias etc.
Desse modo, passei a colecionar fragmentos. Cacos recolhidos de totalidades partidas.
Totalidades que jamais foram inteiras e delas não devemos esperar figuras coerentes a serem
recompostas. Ao abandonar fantasias tais como “plenitude, pureza, centralidade, unidade ou
maestria” (SANTNER apud DAS, 2007), não fixei minha atenção nas possíveis relações
parte-todo forjáveis entre os fragmentos12. Ao contrário, tive por objetivo lançar luz aos
“horizontes” pelos quais eu poderia colocar “em relação” os fatos que, de modo desconexo e
descontínuo, eu recolhia. As fabricações que alinhavam cenas, documentos, aulas, tramas,
vaidades e pessoas não são, portanto, indubitáveis.
Diferentemente daquilo que é canônico na escrita de uma tese de doutorado, em minha
pesquisa não encontrei uma bibliografia consolidada sobre o IML, sua atuação ou seus
procedimentos técnicos. Por conseguinte, o exíguo número de trabalhos destinados a pensar
tal corporação acaba por dar atenção mais ao necrotério do que a qualquer outro setor da
instituição (FERREIRA, 2009; MEDEIROS, 2012; ALDÉ, 2003). A instável coerência entre
os fragmentos que dão forma à tese consiste, por consequência, num artificio forjado pelos
“olhos [por meio dos] quais eles [os fragmentos] foram vistos” (DAS, 2007; STRATHERN,
1995). Seguindo as sábias advertências do Dr. Rubens, as peças etnográficas que dão urdidura
a esse texto, tal qual a inspiradora imagem veiculada por Marcus (2001) de uma “etnografia
multissituada”, conformam fragmentos borrados13.

12
A inspiração aqui é o trabalho da antropóloga Veena Das (2007). Ainda que os meus contextos de pesquisa e
aqueles circunscritos pela autora sejam incomensuráveis, suas reflexões acerca das fragmentações que
conformam sua etnografia entre as famílias urbanas de Punjabi - deslocadas ou impactadas pela Partição da Índia
– figuram nesta tese como orientações analíticas bastante vigorosas. Segundo Das (2007), “fragmentos aludem a
uma forma de habitar um mundo” que foi destruído ou devastado. Em diálogo com Stanley Cavell, a autora
reforça que a noção de fragmentação não deve ser confundida com a imagem de partes diferentes que quando
reunidas denotam uma totalidade. Ao contrário, para Das (2007), os fragmentos marcam, exatamente, a
impossibilidade de tal imaginação de totalidade e coerência.
13
A proposta metodológica formulada por Marcus (2001) de uma “etnografia multissituada” é evocada aqui,
com o intuito de salientar o caráter não totalitário, nem holístico do retrato etnográfico empreendido no decorrer
da tese. Inspirada por seus argumentos, as partes que integram essa tese buscou “plantear preguntas a un objeto
31

Figura 1: Fragmentos e peças disparatadas

Fonte: Marcus, 2001, p.123

Por um lado, os encaixes tramados no decorrer de minhas análises remontam aos meus
próprios circuitos e trajetos, bem como a todos aqueles que me foram negados mediante
balcões, ofícios ou nebulosas relações de autoridade. Ao abandonar meu desejo por produzir
uma paisagem completa e organizada dos fragmentos que recolhi nesse percurso, tracei
limites à pesquisa a ser realizada durante meu doutorado, mas não ao IML, como uma
circunscrição dada e conhecida de antemão. Por outro lado, das escolhas que fazem a tese
surgem às articulações, práticas, funções e os procedimentos que sustentam algumas dentre as
muitas paisagens institucionais que conformam o IML. Ou seja, tal como Maria Gabriela
Lugones (2012), sustento que os fragmentos não “se relacionam mimeticamente com o
observado e/ou registrado em minhas notas de campo”. Também, a “fragmentação das
atuações” não são “obstáculos” impostos ao fazer realizado nessas instâncias, mas sim sua
“condição de possibilidade” (LUGONES, 2012, p. 26-27). Nesse sentido, assim como
argumenta a autora, esta tese não se assenta em cadáveres, vítimas de estupro, aulas de
medicina legal ou casos periciais. Antes, a tese intenta desvelar as “modalidades de gestão”
médico-periciais que atravessam e articulam o IML a outras instâncias administrativo-
judiciais e universitárias.

de estudio emergente, cuyos contornos, sitios y relaciones no son conocidos de antemano”. Além disso, investi
nas “conexões” através de “cadenas, sendas, tramas, conjunciones o yuxtaposiciones de locaciones” das quais fiz
parte presencialmente ou virtualmente por meio de dispositivos midiáticos, virtuais e/ou de bibliografias
acadêmicas (MARCUS, 2001 p. 115-118).
32

Organização dos capítulos: dos fragmentos que forjam o IML e suas relações

Diante dos trajetos, circunscrições e escolhas apresentadas no decorrer desta breve


apresentação, a tese está organizada em cinco capítulos. No capítulo I, intitulado “Entre
oficialidades e relações pessoais: o não acesso como forma de acesso”, reconstituo os
caminhos formais e oficiais pelos quais busquei conseguir autorização para a minha pesquisa
de doutorado. Tal capítulo está organizado em duas seções. Na primeira delas, sigo termos e
insígnias inscritos por mim em papel e, com mais vagar, apresento os modos pelos quais se
documenta a documentação (ver, anexo I). Busco ambientar o leitor em minhas próprias
técnicas de documentar, frisando o efeito dessas escolhas no processo mesmo de feitura dessa
papelada. Intento com isso dar destaque as extensões e prevalência de certas imaginações
estatais que o processo de documentar a documentação acabam por propagar (LUGONES,
2014).
Em seguida, na segunda seção, em face dos indeferimentos à solicitação de pesquisa
que encaminhei a diferentes setores administrativos do IML, disseco os dizeres, grafias,
assinaturas e carimbos impressos no indeferimento remetido, nominalmente a minha
orientadora, mas, também, ao Instituto e Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), à
Universidade Estadual de Campinas e à UNICAMP, escrita com letras maiúsculas. Se, “nem
tudo que não se pode ver está escondido”, todavia, dar autorização é, em parte, arriscar
nomes, autoridades e corporações. Argumento que tais dizeres e indeferimentos dão urdidura
ao que no decorrer deste texto aparece delimitado como Instituto Médico Legal e como suas
funções institucionais. Ainda que tais reflexões guardem certas semelhanças com as clássicas
introduções metodológicas, o intuito desse primeiro capítulo não é o de destacar entradas e
desafios de pesquisa. Antes, busco enfatizar como os processos de documentação e pedidos
de acesso, assim como insígnias, assinaturas, brasões, carimbos e expedientes burocráticos,
sustentam e dão materialidade às instâncias estatais e às pesquisas que nelas realizamos.
No capítulo II, “Entre laudos, necropsias e aulas de medicina legal ou dos
fragmentos pelos quais se visita o IML”, apresento a reunião de alguns fragmentos por meio
dos quais o IML me foi dado a ver. A partir de uma constelação de materiais dou carne à
pesquisa que fui, formalmente, impedida de realizar. A fim de driblar indeferimentos e rituais
de autorização, aulas, vídeos, fotografias, slides, livros, necropsias e entrevistas permitem
acompanhar procedimentos, visualizar técnicas de inspeção e entrever as formas pedagógicas
pelas quais se aprende a ouvir, sentir odores e visualizar os corpos e seus pedaços. Esse
segundo capítulo, exatamente, porque ‘mais etnográfico’, se faz entre papéis que perscrutam
33

corpos vivos e estuprados e cadáveres estendidos em mesas de aço reluzente. Ambas as


atuações produzem (e dissimulam) a rotina e o cotidiano de atuação do IML, assim como sua
visibilidade institucional.
No capítulo III, “Vasculhar pedaços, produzir papéis: sobre vestígios e técnicas de
perícia”, tomo, como objeto de reflexão, as muitas camadas narrativas, gráficas e formais que
dão existência aos laudos de corpo de delito em casos de estupro e atentado violento ao pudor,
produzidos pelo IML de Campinas, entre os anos de 2004 e 2005. Esse circunscrito corpus
documental foi recolhido por mim durante minha pesquisa de mestrado realizada na DDM de
Campinas, como dito, entre os anos de 2009 e 2011 (ver, anexo II). Para tanto, parto do
modelo gráfico que conformam esses papéis - sua forma-formulário - para gradativamente
evidenciar a fórmula narrativa neles contida (ver, anexo I e II). Do retalhamento dos corpos
vivos perscrutados e inspecionados surge aquilo que denomino pedaços de carne. Himens e
fissuras anais competem com os modos de narrar – técnico, científico – que,
preponderantemente, resultam em (in)conclusões médico-legais. A materialidade do crime de
estupro e atentado violento ao pudor se confunde com a materialidade do sexo de meninas,
meninos e mulheres como Madalenas, Márcias, Joanas, Selmas, Lucianas, Lauras, Biancas,
Alices e Felipes.
Nos capítulos IV e V, outros fragmentos ganham realce. Do fazer miúdo e
‘desimportante’ dos laudos de corpo de delito, seguimos às tramas políticas e institucionais
(GREGORI, 1999) que conformam carreiras, perícias e instituições. A trajetória acadêmica e
profissional de Badan Palhares e a repercussão política e midiática de alguns de seus casos
periciais dão novos e intrigantes contornos ao IML de Campinas e a suas relações
institucionais. Em ambos os capítulos, casos e perícias são tramados a partir do uso bastante
herético de jornais impressos, documentos oficiais, autobiografias e outros gêneros narrativos
como livros, filmes, entrevistas, programas de televisão etc. (ver anexo III e IV).
Assim, no capítulo IV, “Por que converso com os mortos”: entre histórias, casos e
acontecimentos, apresento dois dentre os muitos casos periciais assinados por Palhares: o
caso Mengele e o caso de Perus ou o “Projeto Perus”. O primeiro leva o sobrenome do
criminoso nazista Josef Mengele. Sua fuga da Alemanha, ao final da Segunda Guerra
Mundial, traria a identificação da ossada do médico nazista às primeiras páginas dos
periódicos brasileiros. A reconstituição facial do carrasco aos cuidados de Badan Palhares, em
1986, anuncia um processo de projeção. O caso Perus, por sua vez, diz respeito ao processo
de identificação de mais de mil ossadas exumadas, em 1990, de uma vala clandestina e ilegal.
Construída no cemitério Dom Bosco, em Perus, zona norte da cidade de São Paulo, durante o
34

período ditatorial brasileiro, a vala reacendeu as esperanças por justiça e reparação de


familiares de desaparecidos políticos e de entidades e organizações de direitos humanos. O
translado das ossadas a Campinas, sob a responsabilidade de Badan Palhares e do
Departamento de Medicina Legal e Ética (DMLE) da Unicamp, é o clímax da figura de
Palhares como legista de renome, mas também o início de um descrédito que tomaria
contornos impensáveis até o final da década de 90.
Nesse sentido, o caso Perus funciona aos interesses desta tese, como uma espécie de
transição ao capítulo V, intitulado Sobre tramas e contenciosos que fazem a instituição:
entre vaidades, arquivos malditos e folhetins detetivescos. Nesse último capítulo, exponho,
por um lado, a perícia de maior repercussão de Badan Palhares: o caso PC Farias. Paulo
César Cavalcanti Farias e sua namorada Suzana Marcolino da Silva foram encontrados mortos
na manhã do dia 23 de junho de 1996, na casa de praia da PC Farias em Guaxuma, Alagoas.
A polêmica em torno da tese de homicídio seguido de suicídio, divulgada pela perícia feita
pelo IML e pelo IC de Alagoas e atestada por Palhares, ganhou imensa repercussão nas
páginas dos jornais brasileiros. Por outro lado, numa espécie de arremate possível, discorro
sobre a constituição e a extinção do DMLE, vaidades pessoais, conflitos políticos e
repercussões midiáticas. A partir das conexões e ressonâncias entre os três casos
apresentados, busco revelar as tramas e os contenciosos que fazem e desfazem instituições e
carreiras.
Enfim, no que diz respeito às grafias de escrita utilizadas nesta tese, noto que seguirei
às seguintes padronizações. Optei por deixar em itálico os nomes dos personagens criados a
partir dos laudos apresentados, assim como algumas expressões ou noções construídas a partir
de meu campo e que assumem um sentido específico para a tese. Por exemplo: vestígios,
pedaços de carne, forma-formulário etc. Já as cenas ou narrações construídas por mim a partir
de diferentes materiais de pesquisa – observação, diário de campo, conversas informais etc. –
ficarão grafados em fonte diferente daquela utilizada no decorrer de toda a tese. As frases,
expressões e termos retirados dos documentos oficiais, assim como das entrevistas realizadas
durante minhas investigações de campo com os profissionais do IML e dos livros que servem
de material empírico à análise, ficarão grafadas entre aspas e em itálico. Quanto às citações
bibliográficas, estas estarão grafadas apenas entre aspas. Em alguns casos específicos, com
vistas a promover efeitos estilísticos, identificar algumas expressões coloquiais ou que
merecem ênfase, utilizarei aspas simples. O negrito será utilizado somente para dar destaque a
certas passagens que julguei importantes.
35

Os nomes dos envolvidos em exames periciais e dos médicos-legistas entrevistados


no decorrer desta tese são ficcionais. Também, os números e protocolos de laudos e inquéritos
foram omitidos. O estilo narrativo de grifar os nomes de vítimas sempre no plural, iniciado
desde meu mestrado, corresponde ao objetivo de mostrar a não especificidade desses casos,
mas, ao contrário, como eles se comunicam com inúmeros outros casos que acessei nos
arquivos da DDM. As formas de nomeação que se encontram no singular respondem
exatamente à singularidade que comunicam.
No que diz respeito às trajetórias acadêmicas, políticas e/ou institucionais dos
principais personagens delineados no quarto e no quinto capítulo dessa tese, tais informações
estão formuladas apenas em nota de rodapé, quando estes atores aparecem pela primeira vez
no texto14. Quanto a outras figuras tais como prefeitos, governadores, secretários de segurança
pública, reitores e jornalistas, preferi não pontuar sobre suas trajetórias profissionais, uma vez
que eles comparecem como coadjuvantes para as tramas por mim desveladas e, cujo foco está
no IML e no DMLE da Unicamp. Informações pontuais sobre programas de televisão,
centros de investigações, exposições etc. serão feitas também em nota de rodapé. No anexo
IV, por meio de um quadro sinódico, apresento graficamente as tramas e os principais afetos e
desafetos de Badan Palhares. No mesmo suplemento destaco uma biografia resumida sobre a
trajetória pessoal e profissional de Badan Palhares e para os casos que dão corpo aos capítulos
acima mencionados. A saber, quem foi Mengele? Quais foram as motivações para a
construção do cemitério de Dom Bosco, para a vala clandestina de Perus e quais foram as
ossadas identificadas pelo DMLE durante o caso? E, finalmente, uma breve informação sobre
a trajetória pessoal e política de PC Farias e sua namorada Suzana Marcolino da Silva.

14
Tal escolha se justifica pelas informações biográficas esparsas e/ou discrepantes que consegui reunir durante o
doutorado, tanto para os principais personagens dessas tramas políticas, midiáticas e institucionais, quanto para
atores coadjuvantes nessa história. Com o intuito de não construir de modo desigual a biografia desses inúmeros
sujeitos, optei por, apenas, localizá-los, a partir de informações cujo impacto era relevante aos conflitos e
contenciosos que os enredam.
36

Capítulo I. Entre oficialidades e relações pessoais: o não acesso como


forma de acesso

“Previu, sem dúvida, as dificuldades que o aguardavam, tinha de


conseguir que os homens vermelhos o acolhessem como um dos seus.
Empreendeu a longa aventura. (...). Durante os primeiros meses de
aprendizado tomava notas sigilosas, que rasgaria depois, talvez para
não despertar a suspeita dos outros, talvez porque já não as precisasse.
Ao término de um prazo prefixado por certos exercícios de índole
moral e de índole física, o sacerdote ordenou-lhe que fosse
relembrando seus sonhos e que os confiasse a ele ao clarear o dia. (...).
Confiou esses sonhos repetidos a seu mestre; este acabou por revelar-
lhe sua doutrina secreta. Uma manhã, sem despedir-se de ninguém,
Murdock partiu. Na cidade, sentiu saudades daquelas tardes iniciais na
planície em que sentira, fazia tempo, saudades da cidade. Dirigiu-se
ao gabinete do professor e lhe disse que sabia o segredo e que
resolvera não revelá-lo.
– Seu juramento o impede? – perguntou o outro.
– Não é essa minha razão – falou Murdock – Naquelas lonjuras
aprendi algo que não posso dizer.
– Talvez o idioma inglês seja insuficiente? – observaria o outro
– Nada disso, meu senhor. Agora que possuo o segredo, poderia
enunciá-lo de cem modos diferentes e até contraditórios. Não sei
muito bem como lhe dizer que o segredo é precioso e que agora a
ciência, nossa ciência, parece-me simples frivolidade.
Acrescentou ao fim de uma pausa:
– O segredo, ademais, não vale o que valem os caminhos que a ele me
conduziram. Esses caminhos devem ser trilhados”15. (BORGES, 2009,
p. 38-40).

Dia 09 de julho de 2014: Rua Barão de Parnaíba, 300 – Botafogo, Campinas - SP

São 13h30. Vejo à distância a fachada do 1º Distrito Policial de Campinas. Suas paredes replicam as cores da
bandeira do estado de São Paulo. O vermelho, o branco e o preto formam as listras que posso ver ao longe,
antes mesmo de descer no ponto de ônibus da larga e movimentada Avenida Andrade Neves. Aos fundos do
prédio, recentemente pintado, uma fachada envelhecida é o cartão de visitas da Superintendência da Polícia
Técnico-Científica. As grades no entorno do prédio sinalizam as entradas específicas. Os dizeres organizam o
caminho ao pedestre desatento. À esquerda, o Instituto Médico Legal. À direita, o Instituto de Criminalística.
Centralizado, o letreiro Núcleo de Perícias reúne ambas as obrigações técnicas e científicas ali indicadas. Sigo
apressada a caminho da entrada independente situada do lado esquerdo do prédio. Movimento a maçaneta. A

15
Essa epígrafe evoca a apresentação de Maria Gabriela Lugones no Seminário Etnografando Elites,
Redes e Dispositivos de Poder: experiências de pesquisa, reflexões metodológicas e questões ético-
políticas, realizado em novembro de 2012, no Rio de Janeiro. Sua voz narrando o texto de Jorge Luis
Borges ainda permanece viva e ecoando em meus pensamentos. Para ver sobre: Lugones, 2014.
37

porta de vidro que dá acesso à antessala de espera está trancada. A funcionária sentada no estacionamento
confirma: “só às 14h!!”. Um pouco constrangida, informo que combinei um encontro com um funcionário do IML.
Ela, sem titubear, completa: “então, toca a campainha!”. Em instantes, Milton que estava a minha espera, abre a
porta. Bem-humorado, ele me cumprimenta e comenta que precisa me entregar alguns papéis. Minha
solicitação para a pesquisa, protocolada junto ao IML de Campinas aos cuidados do diretor da instituição e
posteriormente remetida à Comissão Científica do IML de São Paulo, chegou às suas mãos. A menção à
documentação vai se dissipando enquanto caminhamos em direção ao interior do prédio. Entre cumprimentos e
apresentações a outros funcionários que esperam o reinício do atendimento, sou guiada por Milton às salas que
compõem o andar térreo do edifício, mas que, no momento, não estão sendo usadas para nenhum atendimento.
As três salas separadas por divisórias de escritório formam um desenho em L. Para acessá-las, ultrapassamos
o balcão de informações que separa o espaço de atendimento da área destinada para espera – ocupada por
cadeiras pretas. A primeira sala acumulava inúmeras caixas-arquivo servindo, visivelmente, como uma espécie
de depósito naquele momento. A sala seguinte continha uma mesa, cadeiras, armários e parecia ser um espaço
restrito aos funcionários para momentos de trabalho interno ou destinada para descanso. A terceira e última
sala, bem pequena, continha uma mesa com computador, impressora e telefone, uma maca para exames
ginecológicos (com perneiras), pia e um armário. Milton salienta que a aparente ‘bagunça’ da instituição é fruto
de algumas obras e da mudança nas disposições espaciais das salas voltadas ao público atendido pelo IML. A
cada funcionário apresentado, meu guia já negocia uma possível entrevista para a minha pesquisa. Antes de
partirmos, ele se recorda de meu apreço pelos documentos oficiais e propõe que caminhemos até o segundo
andar do edifício, onde está alocado o ‘arquivo’ do IML de Campinas. A funcionária reclama: “não repara, está
uma bagunça! Estamos retirando os laudos periciais de antes de 1990!”. Pergunto se eles serão ‘acautelados’
em um novo arquivo. Ela, atenciosamente, explica: “Serão escaneados e depois destruídos!”. Eu, entretanto,
estou extasiada entre as prateleiras de ferro e as caixas-arquivo minuciosamente organizadas e datadas que
compõem a sala. Sinto, com pesar, o fato de estar tão perto e tão longe dos documentos importantes para a
minha pesquisa. Se eles estão ali ao alcance das minhas mãos, parecem mais distantes do que aqueles que em
breve serão destruídos pela máquina de picotar papel. Despeço-me da funcionária. São 14 horas. A porta de
vidro está para ser aberta novamente. Do lado de fora, mais de dez pessoas esperam ansiosas o reinicio do
expediente. (Caderno de Campo).
38

Entre palavras, insígnias e atos de fé: ou como se documenta a documentação?

(...)
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.

E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
(...)
(MELO NETO, 1996, p.60).

O cabeçalho é repetido inúmeras vezes. Sob o decalque da insígnia da


Universidade Estadual de Campinas, os títulos “UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
CAMPINAS / INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS / PROGRAMA
DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS” reforçam os vínculos entre estas
instâncias e os papéis forjados e acumulados por mim durante algumas semanas.
Através da reiterada idoneidade atestada pelos documentos pessoais e institucionais
reunidos em minha pasta azul, começo a tecer, eu mesma, um processo de
documentação16.
Para tanto, um calhamaço de papel foi redigido e ordenado intencionalmente por
mim: primeiro, uma carta de apresentação, seguida de uma solicitação de acesso aos
arquivos institucionais do IML e dos demais anexos comprovando meu desempenho
acadêmico. Entre eles, o atestado de matrícula e o Histórico Escolar, ambos fornecidos
pela Diretoria Acadêmica (DAC)17. (ver, anexo I).

16
Tomo como inspiração para o uso desse termo o artigo de Buckland (1997). Segundo o autor, a
expressão “documentação” tem sido usada, desde o início do século XX, como forma de denotar um
conjunto de técnicas por meio das quais um variado número de documentos pode ser gerenciado e
organizado. Substituto da palavra bibliografia, o termo quase sempre faz referência a suportes materiais
impressos, ainda que não precise ser usado exclusivamente para designar tais materialidades. Preocupado
em descrever aquilo que, em diversas linhas interpretativas, poderíamos definir como um documento,
Buckland (1997) destaca as múltiplas valências da categoria: documentos como objetos (BUCKLAND
apud OTLET, 1997), evidência física (BRIET, 2006) ou como expressão do pensamento humano
(BUCKLAND apud DONKER, 1997). Para os fins importantes a essa tese, argumento que a concepção
de Briet (2006) - entrelaçada às noções weberianas de burocracia e técnicas de documentar – é central.
17
Além dos documentos acima apresentados, um segundo amontoado de papéis foi tecido durante os
meses nos quais busquei iniciar minha pesquisa. Entre esses papéis estão certificados de sigilo quanto aos
dados coletados, declarações de que o IML seria expressamente citado em publicações, apresentações
orais, pôsteres etc.
39

Formas de documentar que discriminavam, mediante o ato de escrita, não apenas


meus interesses de pesquisa e meu currículo escolar, mas instâncias de financiamento de
pesquisa – CNPq e FAPESP – e o nome e o sobrenome de minha orientadora – Dra.
Maria Filomena Gregori. A realização, com êxito e idoneidade, de uma outra pesquisa
conduzida por mim nos arquivos e no cotidiano de trabalho da Delegacia de Defesa da
Mulher (DDM) de Campinas – uma instância policial, tal qual o IML – arrematava as
fianças institucionais e acadêmicas reunidas por mim. Sob os dizeres, “a pesquisa tem
por objetivo dar continuidade aos estudos iniciados em minha pesquisa de mestrado”,
eu introduzia, em carta de apresentação, os interesses e objetivos de meu projeto de
doutorado à autoridade do IML.

“[a pesquisa] busca oferecer elementos para a compreensão de como


são produzidas as provas materiais em casos de estupro no Núcleo
Técnico de Perícias, no Instituto Médico Legal de Campinas – SP.
Com o objetivo de percorrer e analisar, a partir de uma perspectiva
antropológica, os discursos técnicos formulados por meio de laudos
de exame de corpo de delito realizados em corpos vivos. Meu
interesse é esmiuçar as descrições, conclusões e terminologias
médicas que permeiam esses documentos oficiais, bem como suas
possíveis inserções no Inquérito Policial (IP) produzido pela
Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e sua relevância no resultado
final de processos de estupro tramitados no Fórum de Campinas”.
(Carta de apresentação da pesquisa, março de 2014).

Nesse sentido, “dar continuidade aos estudos iniciados em minha pesquisa de


mestrado” vinha, para tanto, justaposto aos métodos qualitativos que haviam orientado
minha investigação da DDM e resultaram em minha dissertação de mestrado, defendida
em 2012.

“Pesquisa realizada na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de


Campinas entre os anos de 2009 e 2011. Além do levantamento de um
corpus documental de, aproximadamente, duzentos Inquéritos
Policiais de Estupro e Atentado Violento ao Pudor, entre os anos de
2004 e 2005, a pesquisa acompanhou o cotidiano de trabalho da
corporação no decorrer de, aproximadamente, dois anos de pesquisa
realizada diretamente nas dependências da DDM”. (Carta de
apresentação da pesquisa, abril de 2014).

Semelhante aos processos tramitados em bancas de seleção acadêmicas e


agências de fomento à pesquisa, o projeto de pesquisa seria, nessa instituição – o IML –,
também avaliado e qualificado. Mas, dessa vez, com vistas a deferir (ou não) uma
solicitação:
40

“a permissão para realizar pesquisa entre os laudos periciais, em


especial laudos de corpo de delito envolvendo casos de estupro e
atentado violento ao pudor, entre os anos de 2003 e 2006. Solicitamos
ainda, autorização para observar o cotidiano de trabalho do Instituto
Médico Legal em Campinas, acompanhando o trabalho de peritos e
médicos legistas em casos envolvendo crimes de estupro e estupro de
vulnerável”. (Carta de solicitação para a pesquisa, abril de 2014).

Nessas interações tramadas por meio dos papéis timbrados com a insígnia da
Universidade Estadual de Campinas, com referências ao CNPq e à FAPESP, aos
documentos de identificação (RG) de aluno e orientador, eu, também recorria ao Código
de Ética definido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA)18. A citação do
mesmo buscava assegurar que

“[eu] me certificar[ia] de proteger a intimidade de todos os


profissionais participantes da pesquisa, bem como de registros que
identifiquem documentos e procedimentos sigilosos da instituição”.
(Carta de solicitação para a pesquisa, abril de 2014).

Dessa forma, a detalhada documentação, ao ser escrita pressupondo os


expedientes éticos que devem ser cumpridos, mais do que atestados e pedidos de acesso
refletia algo indelével e bastante sutil: minha própria trajetória de pesquisa junto à DDM
de Campinas, bem como os empecilhos que encontrei para finalizar a pesquisa de
campo realizada nesta instituição. Isso porque, naquela oportunidade, eu havia me
apresentado a essa corporação policial com uma simples carta de apresentação assinada
simultaneamente por mim e por minha orientadora19. No documento constava uma
descrição genérica sobre a pesquisa que gostaria de realizar na corporação policial,
localizada na região central de Campinas. Sem entraves burocráticos, a delegada titular
autorizou a pesquisa. Tempos depois, outras formas de restrição passaram a atravessar a

18
Ainda que a pesquisa estivesse academicamente atrelada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, à área de Estudos de Gênero, seu referencial etnográfico e antropológico sempre teve destaque,
mesmo na seleção de doutorado. Também, meu mestrado em antropologia tornava tais entrelaçamentos
insolúveis. Por isso, minha opção por citar o Código de Ética definido pela Associação Brasileira de
Antropologia criado através da gestão de 1986/1988 e que foi, mais tarde, alterado durante a gestão de
2011/2012.
19
Gostaria de sublinhar que cheguei à DDM, em junho de 2009, em companhia da antropóloga Fabiana
de Andrade. Tanto eu, quanto ela, desejávamos realizar nossas pesquisas na DDM. Nossos documentos
para tanto eram idênticos. Escritos por meio de um mesmo padrão, tais cartas haviam sido calcadas na
habilidade de Fabiana de Andrade em escrever textos mais formais, com tabulações e espaçamentos
adequados àquilo a que uma solicitação se propõe. Durante o mestrado, todavia, jamais explorei essa
documentação como objeto de reflexão. A pesquisa compartida com Fabiana ganhou centralidade na
dissertação, em detrimento, aos nossos esforços por traduzir, em papéis, as negociações intermitentes
entre nós e as policiais com as quais convivemos entre 2009 e 2011. Agradeço enormemente, a paciência
de Fabiana de Andrade em me ensinar a forjar tais documentos que no decorrer dessa tese ganharam
centralidade.
41

convivência na DDM. Tais situações culminariam em difíceis negociações afetivas já


nos meses finais de pesquisa: esclarecimentos da pesquisa realizada, quais documentos
foram vistos e analisados, como a observação foi conduzida, assim como qual seria o
uso das entrevistas realizadas, por vezes, sem a presença de gravador, com as
funcionárias dessa corporação. (NADAI, 2012).
Tais autorizações seladas mediante a interação com as funcionárias, todavia,
careciam de documentos que atestassem tais diretrizes. No lugar de tais acordos
formais, o desejo por “lealdade” era um pedido de difícil execução. Tal exigência foi
feita a mim, em pleno corredor principal da DDM e soou por todas as salas na delegacia
representando um dos momentos mais constrangedores de minha pesquisa. A fala da
delegada se dava em resposta a minha solicitação de frequentar a sala de uma das
escrivãs da delegacia nos dias em que ela realizasse oitivas com vítimas e autores
envolvidos em casos de estupro e atentado violento ao pudor. Segundo seu conselho, eu
poderia participar, desde que fosse “leal” à confiança por ela depositada em minha
pesquisa. Sua autorização informal e selada apenas por palavras, nos primeiros meses de
pesquisa, permitia que eu estivesse semanalmente na delegacia, sem, contudo, formular
os parâmetros de tal estadia.
Depois de frequentar os corredores e as salas da DDM de Campinas e encerrar,
com certo tumulto, minha pesquisa de mestrado, eu compreendi que a palavra
“lealdade” era especialmente densa e guardava, no contexto policial, tanto ou mais
sentidos do que aqueles expressos em sua definição no dicionário: “cumprimento da
palavra dada, fidelidade, respeito, responsabilidade”. (MICHAELIS, 2015). Inspirada
pela reflexão de Brígida Renoldi (2011), “lealdade” agora parecia, a mim, costurar os
múltiplos sentidos de confiança que atravessam as relações tramadas por meio de e nas
instituições policiais20. Assim, a palavra “lealdade” vinha, nos dizeres da delegada,
completamente imiscuída pelo sentido de fidelidade. Eu seria confiável à medida que
fosse capaz de ser fiel às histórias publicizadas em minha dissertação, aos esforços, aos
silêncios, às dificuldades, mas, principalmente, à intimidade dessa corporação policial.

20
Em sua comunicação, Renoldi (2011) descreve, com detalhes, essas inúmeras figuras que mobilizam a
confiança e a desconfiança no cotidiano de investigações da Polícia Federal. Entre elas, a figura do
informante que transita entre o legal e o ilegal, do X9 como traidor ou dos homens de confiança. Posição
conquistada depois de inúmeros ‘serviços’ prestados à polícia com lealdade. As próprias relações entre
policiais são atravessadas pela ideia de confiança, uma vez que não existe um conhecimento mútuo e
detalhado sobre as operações realizadas por cada um dos grupos, ao contrário, cada equipe acaba fazendo
a custódia do que sabe e, apenas compartindo as informações necessárias à comunicação.
42

Diante dessa experiência, uma ideia difusa de lealdade passou a servir a mim
como uma espécie de ponto de partida para a formulação dos papéis que mais tarde
encaminharia ao IML. Evocando o poeta João Cabral de Melo Neto (1996), na epígrafe
que abre este primeiro tópico do capítulo, as “caixas de papel” preservadas no “arquivo”
eram “túmulos”. E só deveriam ser ‘violados’ se uma conduta ética/moral fosse levada
em consideração. Sem dúvida, eu deveria (e exigia de mim mesma) demonstrar lealdade
antes mesmo de participar do cotidiano de trabalho desses profissionais.
Assim, sob o rótulo de ético, imaginava que o acesso à instituição, a sua rotina
de trabalho, a seus funcionários e à documentação guardada por seus arquivos,
enredava-se em malhas e expedientes burocráticos estatais para os quais os
procedimentos de documentação têm grande importância e centralidade. Esses seriam,
em função de minha experiência junto à DDM, os “padrões culturais” e a “intimidade”
a serem resguardados21.
Portanto, partindo das formulações de Max Weber (1982), eu acreditava que o
Instituto Médico Legal de Campinas como um tipo particular de repartição22, também
destinava grande apreço pelos documentos e pelos expedientes de trabalho realizados
por seus quadros de funcionários. Nesse sentido, tentava replicar, no ato de documentar
a documentação, o esmero destinado aos procedimentos de trabalho empreendidos
nessas instâncias policiais e burocráticas, os quais eu supunha conhecer23.
Em outras palavras, esses funcionários arquivariam, em um aglomerado de
papel, as técnicas e as atividades oficiais (WEBER, 1982) que executavam como
profissionais do Núcleo de Perícia da Secretaria de Segurança Pública do estado de São
Paulo. Para tanto, e instigada pelas reflexões metodológicas empreendidas por Vianna
(2014), eu antecipava em minha documentação, assim como ela, aquilo que imaginava
ser necessário para pesquisar e tomar notas nessas instâncias estatais. No caso da

21
Faço alusão aqui aos dizeres do Código de Ética formulado pela ABA aos “direitos das populações que
são objeto de pesquisa” de antropólogos e antropólogas. Em especial, aos itens um, três e quatro,
determinados em tal ordenamento: “1. Direito de ser informadas sobre a natureza da pesquisa; 3. Direito
de preservação de sua intimidade, de acordo com seus padrões culturais; e 4. Garantia de que a
colaboração prestada à investigação não seja utilizada com o intuito de prejudicar o grupo investigado”.
(Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia – ABA).
22
Por “repartição” chamo atenção àquilo que Weber (1982) descreveu em suas reflexões sobre as
características da burocracia no Estado Moderno. Segundo o autor, constitui uma repartição a reunião de
um “quadro de funcionários que ocupe ativamente um cargo público, juntamente com seus arquivos de
documentos e expedientes” (WEBER, 1982. p.230).
23
Inspirada pelo “princípio de documentação” (Weber, 2000) e, pelos meus dois anos de pesquisa em
uma delegacia de polícia, eu presumia que, ao pedir acesso aos papéis produzidos no IML de Campinas,
eu buscava manusear papéis oficiais. Ou seja, para além de seus conteúdos variados – estupros, vítimas e
suas identificações pessoais -, eu acabaria por acessar também às normas administrativas e os princípios
que regem, por meio de regras fixas e estáveis, o desempenho do cargo de perito/legista.
43

pesquisa da autora, os nomes verdadeiros dos envolvidos nos processos de guarda,


tramitados na Justiça e estudados por ela, precisavam ser protegidos mediante obrigação
formal24. Ao fazê-lo, contudo, Vianna (2014) optou por suprimir, além dos nomes das
partes envolvidas, também os números processuais contidos nesses documentos
judiciais, uma vez que “as identidades burocráticas de todos estavam logo ali, em
algumas sequências numéricas” (VIANNA, 2014, p. 49-50). Ou seja, tratava-se de uma
espécie de canto de sereia, no qual, como salienta Vianna (2014), vemo-nos colocados
na mesma “dimensão teatralizada” que forma os processos judiciais como um todo e
caracterizam aquilo que acreditamos ser “a dimensão propriamente administrativa” da
Justiça da Infância, ou da polícia e do IML no meu caso. Como eu mesma havia
enunciado na introdução de minha dissertação de mestrado, em meados de 2012:

“Depois que levantamos a poeira, afastamos as traças e as baratas e o


bebê vivo do arquivo da DDM chorou, entramos em uma nova relação
de sigilo e cumplicidade. Eu encontrava portas abertas, ainda que tudo
que eu quisesse ver fosse sigiloso ou exigisse certas cautelas de
escrita. Se os Inquéritos estavam mortos, porque arquivados, eles
estavam também vivos, posto que revelavam segredos que, por
cautela, não quiseram remexer/acordar. A publicização de certos
procedimentos leva à exposição de toda uma corporação policial, suas
querelas privadas, seus expedientes de “ilegalismos” e a história de
pessoas vivas, com intimidade e vida para além dos seus muros”.
(NADAI, 2012, p. 56)

Daí meu cuidado em explicitar, já nesses papéis que pedem acesso, uma espécie
de crença e entendimento incorporados do que estava em jogo nesses documentos e
procedimentos periciais, os quais eu tinha interesse em observar/pesquisar. A saber,
formas [nada] públicas (e cifradas) de administrar provas materiais com vistas a
determinar autoria [eu, complementaria, materialidade] criminal (LOWENKRON,
2015; LUGONES, 2012).
Orientada por aquilo que Laura Nader (1972) denominou “studying up”25, eu
conjecturava, por meio dos documentos de apresentação e solicitação encaminhados ao

24
No caso de Vianna (2014), o acesso aos processos de guarda só foi liberado mediante o aceite da
pesquisadora em omitir os nomes verdadeiros dos envolvidos em tais contendas. A determinação exigida
pela própria Justiça da Infância e da Juventude, todavia, não fazia nenhuma requisição quanto a números,
datas, assinaturas e outros expedientes que conformam esses papéis como bens administrativos
(VIANNA, 2014).
25
Segundo Nader (1972), “studying up” estaria relacionado a investigações que direcionam suas
pesquisas de campo aos estratos mais poderosos da sociedade urbana: classes médias, elites econômicas e
burocráticas, empresas e instituições estatais que norteiam, gerem, organizam e impactam a vida cotidiana
de qualquer cidadão comum. Ao se debruçar sobre tais sujeitos e estratos, a antropologia produzida e
ensinada nos EUA ganharia enormemente. Isto porque, como sugere Nader (1972), companhias de
seguro, bancos, instituições de proteção ao consumidor, por exemplo, atuam constantemente em nossas
44

IML, que meus laços de confiança deveriam proteger números, protocolos, técnicas e
procedimentos de investigação realizados por médicos-legistas lotados no IML de
Campinas. Acreditava, portanto, que, ao me comprometer em resguardar a “dimensão
propriamente administrativa” do IML, eu, por consequência, também me
responsabilizava por ocultar o nome, o endereço, a data de nascimento ou qualquer tipo
de informação que pudesse vir a tornar pública a intimidade ou que pudesse revelar as
“identidades” das “vítimas” que ali estariam registradas26.
Como argumenta Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2004), eu buscava, por
meio desses procedimentos burocráticos de documentação, equacionar e represar, já nos
próprios registros documentais de solicitação da pesquisa a ser protocolada junto ao
IML, duas instâncias do trabalho antropológico quase sempre imprevisíveis. Por um
lado, uma definição clara e definitiva do objeto de pesquisa e, de outro lado, um
controle absoluto sobre as questões e interesses que seriam, futuramente, desenvolvidos
num livro e/ou tese publicada, depois da interação entre pesquisador e sujeitos de
pesquisa. Mas era mais do que isso. Arredia ao argumento defendido por Debert (2004),
embora respeitando suas indicações e cautelas, eu buscava, por meios de papéis
burocráticos, construir uma espécie de “identificação empática” com meus futuros
interlocutores de pesquisa27.
Como “sujeitos de Estado”, nos termos de Maria Gabriela Lugones (2014), eu,
indiretamente, reificava e referendava as técnicas de restrição, cujo interesse é o de

vidas, daí a importância e o potencial democrático em compreender seu funcionamento, suas estratégias
de atuação e como suas diretrizes afetam diretamente nossas vidas como cidadãos.
26
Inspirada pelas reflexões sobre o Registro Geral de Identidade (RG) formuladas Mariza Peirano (2006),
eu pressupunha conhecer e entender o caráter identificatório contido em laudos de corpo de delito. Afinal
eles registravam logo em suas primeiras linhas as “qualificações” pessoais da vítima cujo atendimento
pericial resultou em um laudo. Se, como afirma Peirano (2006, p.36), um documento “reúne uma série de
informações, definidas legalmente por um determinado órgão do Estado”, logo também os laudos, objeto
imediato de minha solicitação de pesquisa, continham informações importantes de identificação, pois
indexavam, numa mesma plataforma física, nome, sobrenome, filiação, idade, RG, naturalidade e
endereço.
27
Em seu artigo, Debert (2004) sustenta que, em se tratando de estudos feitos em “contextos up”, nos
termos de Nader (1972), seria necessária uma espécie de revisão dos pressupostos das pesquisas
antropológicas. O abandono da ideia de “identificação empática” seria decisivo para a apreensão das
categorias por meio das quais são operados esses lócus de pesquisas. Isto é, à medida em que
apresentássemos com clareza nossos objetivos e hipóteses de pesquisas em contextos de campo como
instituições governamentais, agências de publicidade, laboratórios de medicamentos e cosméticos,
clínicas e consultório estaríamos invariavelmente comprometendo a própria pesquisa. Isto porque, em tais
contextos não se trata unicamente de desvendar a forma como essas instâncias de poder operam, mas de
politizar e etnografar os efeitos diferenciais que essas formas de classificação e gestão exercem na vida
cotidiana das populações “tradicionalmente” estudadas pelos antropólogos; contextos “down”, nos termos
de Nader (1972). Do que tange a minhas noções políticas e idílicas de pesquisa, ainda que eu não
buscasse denunciar, julgar ou avaliar qualquer forma de atuação dessa corporação policial, eu achava
prudente ocultar certas formas de interpretação presentes em meu projeto de doutorado aprovado pela
Fapesp e encaminhado apenas parcialmente à Comissão. Voltarei a isso no final deste tópico.
45

produzir essas corporações como inacessíveis, desconhecidas ou de acesso restrito,


como destaca Nader (1972). Segundo Lugones (2014), e evocando Judith Butler (1999),
trata-se de levar em conta, no ato mesmo de pesquisar em instâncias estatais, o efeito
onipresente – constante, atemporal, por toda parte e simultâneo – da “interpelação
estatal” que não somente ‘age sobre nós’, mas, ao contrário, mais do que isso, sem a
qual não existiríamos, tanto em termos documentais, como para além deles.
Misto de crença e “aprendizado que adquirimos na própria carne” (LUGONES,
2014, p. 81), tratei de obter uma assinatura, uma insígnia e, por conseguinte, um nome
com autoridade para dar autorização a minha pesquisa. Nesse sentido, documentar a
documentação materializa uma dose generosa de “credulidades compartidas” em torno
daquilo que imaginamos ser os expedientes de certas instâncias estatais, a autoridade
burocrática e a “arraigada crença em sua legitimidade – seja fingida ou fruto de
necessidade”28. (LUGONES, 2014, p. 74).
Assim como Lugones (2014), eu começava minha pesquisa no IML de
Campinas descrente de que eu poderia realizá-la, logrando apenas acordos orais,
fragilmente destituíveis por meio de transferências e afastamentos29. Por isso, crente na
legitimidade das “autoridades burocráticas” e na necessidade de reiterá-las, eu enviava
minhas ‘credenciais acadêmicas’. Meus documentos e as técnicas arduamente
incorporadas sobre como se documenta a documentação, tal como argumenta Mariza
Peirano (2011, p.63), buscavam evidenciar o caráter fundamental dos documentos:
“emitidos por órgãos legalmente autorizados, servem como amuletos modernos que
abrem portas e, na sua ausência, fecham-nas”30. Como sugere a autora, diante da

28
Lugones (2014), em seus descaminhos feitos por intermédio dos papéis oficiais encaminhados ao
Palácio da Justiça de Córdoba, na Argentina, imaginava ser ‘impossível’ ou ‘improvável’ a realização de
uma pesquisa apenas afiançada por frágeis acordos orais. Mesmo depois de realizar inúmeras pesquisas
entre expedientes relativos à gestão estatal de menores na cidade - no Arquivo Geral de Tribunais da
Província de Córdoba ou diretamente nos Juizados Prevencionais de Menores da cidade – Lugones (2014)
destaca sua crença nas autoridades burocráticas. O envio de seu projeto de pós-doutorado, somado à carta
regida pela Secretária de Ciência e Tecnologia da Universidade Nacional de Córdoba (UNC) atestando
sua posição de pesquisadora, selava formalmente seu objetivo de obter autorização para suas pesquisas
junto à Secretaria de Crianças, Adolescência e Família, dependente do Poder Executivo de Córdoba, na
Argentina. Frente a tais esforços, a autora assinala como, ao dar prioridade a tais expedientes oficiais, ela
acabou por negligenciar seus próprios circuitos anteriores de pesquisa, bem como todos os funcionários
que por sua vez eram seus “antigos conhecidos” e poderiam, por outros meios, afiançar sua nova
investigação.
29
Como me alertou Natália Padovani em conversa informal, essa espécie de descrença está calcada nos
próprios procedimentos das instâncias estatais de segurança pública, em especial polícias e prisões. São
instituições que gestam e gerem pessoas, nos termos de Souza e Lima (2002), por meio de fixações que se
produzem exatamente nos fluxos. Para ver mais sobre isso: Padovani, 2015.
30
Em seu artigo, Peirano (2011) lança mão do episódio ocorrido com o professor Henry Louis Gates, em
junho de 2009. A autora parte do caso envolvendo o professor universitário de Cambridge para
dimensionar o lugar privilegiado que os documentos assumem em políticas de identificação. Gates foi
46

interpelação “identifique-se”, os papéis encaminhados – documentos universitários –


carregam consigo “a autoridade do emissor que legitima seu uso e atesta sua validade”:
a UNICAMP, sempre com letras garrafais (PEIRANO, 2011, p. 68).
Além disso, inspirada pelo trabalho de Corrêa (1998), eu levava em
consideração a história de constituição dos Institutos Médico-Legais, nos áureos tempos
de Nina Rodrigues, na Bahia, Afrânio Peixoto, no Rio de Janeiro, e Oscar Freire, em
São Paulo. Ao evocar isso, ao menos em minha imaginação, eu acreditava numa relação
estabelecida historicamente entre a Polícia Técnico-Científica e a Universidade.
Suposição que, como mostrarei no correr desta tese, pode ser replicada por meio de
inúmeras justaposições entre, por exemplo, o exercício da docência junto à Faculdade
de Ciências Médicas da Unicamp e o trabalho como médico-legista aprovado em
concurso público e lotado no Instituto Médico Legal de Campinas31.
Ou seja, depois de uma entrada sem dificuldades na DDM de Campinas, em
meados de 2009, e um término de pesquisa infernal que justapunha a feitura de uma
papelada sem precedentes sobre a pesquisa e seus desdobramentos, pedidos de lealdade
e uma dificuldade ímpar de equacionar o que se “diz lá” e aquilo que se “escreve aqui”,
nos termos de Marques e Villela (2005), eu supostamente me adiantava. Ao documentar
a documentação, com toda transparência (mas, também, ingenuidade) possível e
necessária, eu buscava contornar ou, ao menos, prescindir exclusivamente das relações
pessoais que dão carne à instituição e, mais tarde, poderiam me colocar à mercê de
problemas jurídicos e afetivos dos mais diversos32. Apostava e dava existência, por

preso por um policial depois de arrombar a porta de sua própria casa, localizada na universidade. Sem as
chaves e voltando de uma viagem, o professor universitário optou por forçar a porta de entrada de sua
moradia. O policial que prendeu Gates informou no registro de ocorrência que pediu inúmeras vezes que
Gates se identificasse, contudo, o mesmo aos berros havia se recusado a fazê-lo. Gates, por sua vez,
afirmava ter fornecido sua carteira de motorista e suas credenciais universitárias. A controvérsia, contudo,
ganhou em emoção depois que o presidente Obama, amigo de Gates, afirmou que a prisão havia sido uma
estupidez. A corporação policial, inflamada pelo pronunciamento, afirmou ter apenas seguido o
“protocolo”. Inspirada pela teoria pierceana, Peirano (2011) demonstra como documentos legais
funcionam, na contenda entre Gates e o policial, como objetos mistos: são indexadores, icônicos e
simbólicos, concomitantemente.
31
Essa reflexão será mais bem desenvolvida nos capítulos IV e V desta tese. Neles, busco mapear um
desses entrelaçamentos, bem como as tramas institucionais que articulam o IML Campinas ao DMLE. A
figura controversa de Badan Palhares, médico-legista de ambos os serviços, será central nesse objetivo.
32
Inúmeras pesquisas em ciências sociais têm se deparado com tais problemas legais. Os pesquisadores
são sistematicamente aconselhados (ou mesmo obrigados) a passar por comitês de ética em suas
respectivas universidades. Alguns são proibidos de dar sequência as suas pesquisas antes que um papel
assinado por uma autoridade regularize a pesquisa. Outros, por sua vez, são impedidos de defender suas
teses e dissertações publicamente ou de publicar suas descobertas científicas, em função de não terem um
papel que respalde juridicamente a investigação realizada em instâncias estatais, privadas e/ou públicas.
Para ver mais sobre o tema: Fleischer e Schuch, 2010, Sarti e Duarte, 2013 e Santos e Jeolás, 2015.
47

meio das técnicas de documentar, à dimensão desencarnada (e não existente) das


instâncias estatais (ABRAMS, 1988; MITCHELL, 2006).

Sobre “balcões”, trânsitos e carimbos: por onde caminha a documentação?

Meses depois de apresentar um compêndio de onze folhas, devidamente


assinadas e carimbadas, junto ao Instituto Médico Legal de Campinas, aos cuidados do
“Sr. Diretor [Nome]”; e de também protocolar, diretamente em São Paulo, vinte e três
folhas assinadas, eu recebia, via e-mail e, mais tarde pelas mãos de Milton, um único
documento. O “Ofício nº 017/2014”, assinado e datado de 22 de abril de 2014, em folha
única de papel sulfite, dotado do brasão do estado de São Paulo e de sua pertença
institucional: “Secretaria de Segurança Pública/Superintendência da Polícia Técnico-
Científica/Instituto Médico Legal/ OF. Comissão Científica – IML Nº 017/2014”.
No campo “Interessado”, podia-se ler “Maria Filomena Gregori – Orientadora
– Instituto de Filosofia e Ciências Humanas”. Quanto à lacuna “Assunto”, o “Ofício”
reiterava o pedido de pesquisa endereçado à Comissão: “Solicita avaliação do projeto
de pesquisa da doutoranda Larissa Nadai – Intitulado “Entre documentos de
investigação: uma pesquisa sobre a produção de provas materiais em casos de
estupro”. Em resposta à “prezada Dra. Maria Filomena Gregori”, o documento
esclarecia que, em posse do referido projeto “para análise”:

“Como cabe ao Instituto Medico Legal a função de preservar as


identidades das vítimas atendidas, a Comissão Científica não aprovou
o projeto de pesquisa encaminhado.

Atenciosamente,

_____________________
Dra. [Nome]
Membro da Comissão Científica do IML/SP”.

Ao ler “a Comissão Científica não aprovou o projeto de pesquisa


encaminhado” no ofício remetido, por e-mail, por Isabel, a Auxiliar de Necropsia, com
a qual fiz meus primeiros contatos na Superintendência em São Paulo, eu me
surpreendi. Pesquisas são dificultadas, limitadas, mas nunca tão sumária e sucintamente
negadas.
48

Lembrei-me da secretária que me recebeu no IML de Campinas, quando fiz


minha primeira visita à instituição. Com uma pasta azul repleta de papéis timbrados, eu
buscava informações sobre como deveria proceder para marcar uma reunião com o atual
diretor do IML de Campinas. A funcionária não só me desanimou a marcar tal encontro,
como me persuadiu a não o esperar e nem mesmo a retornar em outro horário. Como ela
solicitamente me alertou, eu nada conseguiria, por intermédio dele, no tocante à
autorização para a pesquisa. Afinal, qualquer pesquisa a ser realizada no IML precisava
ser aprovada pela Comissão Científica do IML, com sede na capital de São Paulo. Com
muita simpatia, contudo, ela recebeu os papéis que carregava a tiracolo. Carimbou na
margem esquerda da carta de apresentação “Comigo Hoje” e, à caneta, escreveu
“encaminhar para CP-IML para consulta”. Abaixo, selou um novo carimbo
“Campinas _/_/_” e preencheu com a data de entrega dos documentos: “07/04/14”.
Finalmente, carimbou os dizeres “Dr. [Nome] Diretor do NPML de Campinas”. Mais
tarde, longe dos meus olhos, o timbre ganhou a assinatura, também à caneta, do “Sr.
Diretor” a quem destinei os documentos que trazia comigo e uma infinidade de
carimbos cuja materialidade enfatizava o percurso desses papéis por inúmeros setores
do IML de Campinas e de São Paulo.
Entretanto, percebendo meu desânimo com a tal ‘burocracia’, ela se dispôs a me
ajudar. Depois de informar que muitas pesquisas vinham sendo negadas, passou-me o
telefone de uma funcionária sediada na capital de São Paulo. Abria-se, supostamente,
um modo mais rápido de contornar “o horrível tempo dos papéis”, nos termos de
Peirano (2002). Se somos impelidos a portar, nos termos da autora, “papéis legais que
infernizam, atormentam ou [e nos casos de nossas pesquisas] facilitam a vida do
indivíduo (...)” (PEIRANO, 2002, p. 34) é porque esse é um procedimento
incontornável nas múltiplas relações que estabelecemos com instâncias estatais.
Todavia, o mero certificado fornecido por números – RG, CPF, Registro Acadêmica
(RA) etc – não são suficientes como identificação33. Ao contrário, atestam, por meio de

33
A autora cita as muitas técnicas de falsificação, por exemplo, do Social Security Number dos Estados
Unidos, ou as múltiplas utopias científicas envolvendo DNA, íris dos olhos, chips corporais como forma
definitiva e irrefutável de reunir e particularizar, simultaneamente, um mesmo indivíduo. Navaro-Yashin
(2007) também se debruça sobre o efeito de ficcionalidade transmitido pelos documentos e suas
transações locais na República do Chipre. Passaportes falsos, ansiedades por receber cartas no governo
britânico em função da imigração empreendida ou os papéis sem validade internacional, transacionados
entre um mesmo e distinto Chipre salientam a noção de “faz de conta” descrita pela a autora para toda e
qualquer documentação produzida. Tal premissa desmonta a ideia de instâncias como domínio da
racionalidade, da impessoalidade e da opressão burocrática, tal qual argumenta Roberto da Matta (2002).
49

inúmeros exemplos, os efeitos referenciais e icônicos dos papéis; o “Estado não controla
essa força social”. (PEIRANO, 2006, p. 38).
Tal como sugere Leirner (1997), projetos não passam de “cartas de intenções” e
números de sequências anônimas e abstratas que precisam ser associados a vestuários,
estéticas corporais e contatos de prestígio bastante específicos que circunscrevem
pesquisas e pesquisadores34. A forma de me produzir como “uma boa pessoa”, nos
termos de Foote-White (2005, p. 301), exigia de mim muito mais do que apenas a
habilidade de saber documentar a documentação, mas a astúcia de mapear aonde e para
quem eu deveria entregá-la corretamente.
Em posse dessas supostas informações, meu sorriso foi imediato e eu saí de lá
bastante animada com o papel que, anotado a lápis, continha um número de telefone de
São Paulo e o nome da tal funcionária. Eu mesma, a partir daquele momento, na
contramão de minha fixação pelos documentos e pelos caminhos formais de acesso, ia
tecendo as relações pessoais que fazem andar a documentação e, sem dúvida, são parte
dos modos pelos quais apreendemos a documentá-la.
Depois de ligações e e-mails trocados com Isabel, a auxiliar de necropsia cujo
telefone obtive em Campinas, no dia 16 de abril de 2014, eu me dirigi até a capital de
São Paulo com uma quantidade ainda maior de papéis timbrados. Durante as trocas de
informações, Isabel pacientemente me explicou que a documentação que já havia
reunido e deixado aos cuidados do diretor do IML de Campinas estava incompleta.
Através do envio de um e-mail e com o intuito de orientar sobre a produção da nova
papelada, numerou todos os papéis que deveriam compor o dossiê destinado, agora, à
Comissão Científica do IML.

“1) Carta de Apresentação do aluno pela Universidade, constando


matrícula e curso; 2) Solicitação da Universidade destinada à
Comissão Científica para avaliação do projeto. Pode ser submetido
pelo orientador; 3) O projeto de pesquisa seguindo as normas
propostas pela Comissão Científica, a saber: Introdução; Objetivo;
Metodologia e Bibliografia; 4) Anexar, se houver, aprovação em
Comissão de Ética em Pesquisa; 5) Informar se há incentivo
financeiro para a realização do projeto (FAPESP, CNPq etc.); 6)

34
Em sua pesquisa junto a exército brasileiro, o autor não só produziu uma carta de intenções sobre sua
pesquisa, com o carimbo da Universidade de São Paulo (USP), como complementou seu cartão de visitas
com paletó, gravata, barba feita, cabelo cortado e as indicações de prestígio de sua orientadora. Utilizei
semelhantes procedimentos quando, em posse de meus documentos de visita, cheguei ao IML de
Campinas e, depois, à Superintendência da Polícia Técnico-Científica na capital. Calça social, camisa sem
transparências, sem decote, sapato de salto e maquiagem compunham, junto a históricos e atestados de
matrícula, uma das imagens possíveis de credibilidade que eu buscava certificar enquanto pesquisadora.
Finalmente, o sobrenome de minha orientadora arrematava tais pretensões.
50

Informar se o responsável pelo projeto é parte integrante do quadro


de funcionários do Instituto Médico Legal; 7) Declarar sigilo sobre
todas as informações coletadas e/ou às quais acessou, sob risco de
sanções legais e, finalmente, 8) Declaração de compromisso do(s)
pesquisador(es) de incluir o nome do Instituto Médico Legal em
futuras publicações, apresentação oral, pôsteres e qualquer outras
divulgações, científicas ou não, oriundas do projeto”. (Comissão
Científica do IML, Polícia Científica de São Paulo).

Em posse da extensa lista de declarações a serem produzidas, o item 3 me


chamou a atenção. Eu deveria enviar um projeto de pesquisa, formalmente editado aos
moldes avaliativos designados pela Comissão. Seguindo as indicações fornecidas pelo
IML sobre as partes necessárias que deveriam constar no projeto de pesquisa,
apresentei, à Comissão Científica, uma enxuta redação sobre os meus interesses, os
objetivos e metodologias de minha pesquisa.
Na busca por evitar uma negativa da solicitação a ser protocolada, optei por
realizar uma limpeza intencional de certos termos, inferências teóricas e analíticas
presentes no meu projeto de pesquisa, aprovado pelo PPGCS e pela FAPESP.
Higienização visível logo no título do projeto entregue nas dependências do IML de São
Paulo. Sem citar os pedaços de carne e as hipóteses indexadas pela imagem de corpos
em e visto aos pedaços35 como expresso no projeto de pesquisa encaminhado à
FAPESP, à Comissão Científica escolhi por descrever os laudos como “provas
materiais em casos de estupro”.
O prédio imponente e frio, localizado na Rua Moncorvo Filho, no Butantã, em
São Paulo, contíguo à Academia de Polícia de São Paulo e próximo à Universidade de
São Paulo (USP), contrastava com a pequena entrada do IML de Campinas. O prédio da
Superintendência da Polícia Técnico-Científica de São Paulo era dividido por andares.
Um andar destinado ao Instituto Médico Legal, outro ao Instituto de Criminalística e,
finalmente, um voltado a órgãos responsáveis pela gestão da própria Superintendência.
A entrada ampla contava com um balcão de informações e um painel discriminando
cada andar e setor. À esquerda, viam-se duas portas com detector de metais e uma
entrada independente ao lado das portas giratórias, com a presença de um guarda
armado. Tal porta, de acesso restrito, permitia, apenas, o acesso de funcionários e

35
Em meu projeto apresentado e aprovado pela FAPESP, o título foi: Entre documentos de
investigação: quando esquadrinhar pedaços de carne é produzir provas materiais?. Já na versão
encaminhada a Comissão optei pela asséptica formulação: Entre documentos de investigação: uma
pesquisa sobre a produção de provas materiais em casos de estupro. A ideia de corpos vistos aos
pedaços e por intermédio de pedaços de carne será objeto de reflexão do terceiro capítulo desta tese.
51

pessoas autorizadas pela moça responsável pelas ‘informações’ estrategicamente


acomodada atrás do “balcão”. A ‘clientela’ era encaminhada ao atendimento num
segundo guichê, à direita da entrada independente. De modo semelhante a um cartório,
bem em frente a essa bancada estavam dispostas algumas cadeiras que eram ocupadas
por pessoas portando documentos ou retirando algum tipo de papel oficial.
Depois de pedir informações no “balcão” (LUGONES, 2012) de entrada, eu me
encaminhei em direção à porta de vidro com entrada independente. O guarda fardado e
portando arma de fogo me cumprimentou amistosamente: “Bom dia, doutora”. Um
pouco surpresa, sorri e o cumprimentei de volta antes de seguir em direção aos
elevadores36. Já no andar destinado aos setores do Instituto Médico Legal, espantei-me
com o ambiente asséptico e claro. Nada ali era similar às instituições policiais que eu já
havia visitado. O piso, a pouca decoração nos corredores, bem como a iluminação com
lâmpadas brancas e frias pareciam ter me transportado a um hospital ou a um
laboratório. Essa sensação era replicada pelas placas de metais37 que informavam o que
havia atrás de cada porta e sala de acesso restrito que compunha o largo e longo
corredor meticulosamente limpo e silencioso: laboratórios anatomopatológicos, de
análises químicas, de genética etc.
No final do corredor, três salas me chamaram a atenção: o setor de arquivos, a
sala destinada à Comissão Científica e, finalmente, a sala destinada aos recursos
humanos, para onde eu me dirigi depois de não obter atendimento na sala da Comissão
Científica. Fui, então, informada que Isabel não se encontrava e só voltaria ao prédio no
dia seguinte.
Percebendo minha decepção, a funcionária dos recursos humanos se propôs a
receber os papéis que eu deveria protocolar. Havia, contudo, uma condição: de que por
telefone eu informasse a Isabel sobre a entrega dessa documentação. Assim como havia
ocorrido em Campinas, também a funcionária em São Paulo, contou, com as pontas dos
dedos, todos os documentos que eu lhe entreguei. Mas, dessa vez, fotocopiou a

36
Depois de minha pesquisa de mestrado, passei a prestar bastante atenção a esses pequenos casos quase
anedóticos. Gostaria, apenas, de ressaltar como inúmeros eixos de diferenciação comparecem na relação
que estabelecemos com os sujeitos de nossas pesquisas (BRAH, 2011). Ser mulher, branca, jovem, vestir
roupas formais, atuar mediante uma certa postura corporal e com uma particular aparência de classe
tornavam plausível a possibilidade de que eu fosse uma funcionária da polícia ou do Judiciário. Isso ficou
explícito inclusive pelo termo “doutora” comumente utilizado por outros policiais ao se referirem a
delegadas da Polícia Civil, advogadas, promotoras ou juízas.
37
Além de nomear o tipo de procedimento realizado em cada uma das salas, as placas de metais
informavam, também, o nome dos funcionários alocados no espaço de trabalho. Foi por meio desses
procedimentos que não só reconheci a sala que procurava, como identifiquei o nome da funcionária com
quem havia conversado por telefone.
52

declaração assinada pelo secretário do Programa de Pós-Graduação que constava como


a primeira página do calhamaço de papel. Em seguida, carimbou a cópia e o original
com os seguintes dizeres “DTD-IML/16.ABR.2014”. À caneta, finalmente, escreveu em
letra cursiva “[Nome] Recebi este e +23fls” e me entregou a cópia.
Em posse da confirmação de recebimento fornecida pela funcionária do setor de
recursos humanos, retornei a Campinas. Tratava-se, agora, de “esperar”. Um tipo de
espera característico e bastante comum nas relações travadas com instâncias estatais.
Não basta ‘sentar’ e ficar na espera eminente de que o ir e vir de papéis fosse concluído
de forma satisfatória. Se, como salientam Vianna e Farias (2011, p.88), “protocolar um
documento” significa entregá-lo pessoalmente na instituição correta; depois, certificar-
se de que ele chegou às mãos de destino, para, só então, finalmente, arquivá-lo como
prova dos procedimentos realizados com a assinatura do funcionário competente por
recebê-lo; todas essas cautelas podem não ser suficientes.
Na pesquisa das autoras, a “guerra” travada por mães cariocas contra o Estado,
que “está lá sentado” enquanto segue sem justiça o assassinato de seus filhos, implica
preencher o trânsito dos papéis com uma insistente “peregrinação institucional”.
Embora a vida permaneça congelada desde a morte brutal de um ente querido – filho,
sobrinho, irmão, marido –, os documentos, mesmo os protocolados com esmero, não
‘andam com suas próprias pernas’. A “espera por justiça” preenche o tempo com a
“luta” (passeatas, marchas, a ida a julgamentos de outros casos semelhantes etc.), com
idas ao Judiciário, contatos com promotores, novas perícias no corpo da vítima (muitas
vezes já enterrada), ida aos locais da execução do referido parente etc. (VIANNA;
FARIAS, 2011).
Sem dúvida, os contextos de acesso à pesquisa e de “luta por justiça” não podem
ser comparados aqui. São, por motivos afetivos e políticos, incomensuráveis. Contudo,
os procedimentos e as formas de se relacionar com instâncias estatais – a polícia, o
judiciário ou as repartições estatais das mais diversas – podem ser replicadas. Por
mecanismos semelhantes, no caso de pedidos de acesso para pesquisas, para além de
documentar a documentação é importante “fazer andar os expedientes”, nos termos de
Lugones (2014), através de outras pernas. Esperar o trânsito dos documentos é,
concomitantemente, um incessante ir e vir. Dessa vez, de relações pessoais, como eu
intuitivamente já começara a fazer.
Assim, mesmo antes da resposta formal a minha pesquisa, mediante o
mencionado “Ofício nº 017/2014”, eu já havia contatado um professor da Faculdade de
53

Ciências Médicas (FCM) da UNICAMP, também, médico-legista do IML de Campinas.


Ainda que a documentar a documentação me parecesse central, eram minhas conexões
universitárias aquilo que me dava confiança de que o tempo de “espera” imposto a esses
expedientes burocráticos era contornável. Além disso, a fiança moral de um funcionário,
junto ao diretor da instituição, e depois do diretor à Comissão, poderia dar pessoalidade
à frieza das insígnias contidas nos “amuletos” de papel (PEIRANO, 2011).
Entretanto, a espera pela avaliação da documentação encaminhada à Comissão
foi pífia. Em menos de um mês, minha solicitação foi respondida. A Comissão,
contudo, não se dirigia a mim, mas à minha orientadora. Negava meu acesso aos
arquivos e às dependências do IML, ainda que eu afirmasse, em “declaração”, que
estava de acordo e não deixaria de cumprir com os protocolos de “sigilo sobre todas as
informações coletadas e/ou as quais acessei durante pesquisa realizada no Instituto
Médico Legal, sob riscos de sanções legais”.
Como relatado por mim nas primeiras linhas deste capítulo, entretanto, o e-mail
que recebi de Isabel, foi apenas umas das negativas seladas à documentação. Em
meados de julho de 2014, quando encontrei com Milton no IML de Campinas, recebi de
suas mãos um amontoado de folhas: as mesmas que protocolei aos cuidados do “Sr. Dr.
[nome], diretor do IML de Campinas”, em março de 2014. O diretor da instituição, em
posse de minha documentação, remeteu tais papéis também à apreciação da mesma
Comissão Científica do IML. Como descrevi no decorrer deste capítulo, meu desejo por
diminuir o tempo de espera, protocolando diretamente um novo calhamaço de papel à
Comissão Científica, não impediu, todavia, que a papelada que eu havia deixado em
Campinas seguisse seu percurso institucional. Demorou dois meses para que essas
primeiras folhas chegassem até São Paulo e retornassem a Campinas.
Por meio de “Despachos” os mais diversos, a documentação recebeu novas
assinaturas e inúmeros carimbos. O indeferimento, porém, foi novamente reiterado. Se
no “Ofício 017/2014” enviado a mim por Isabel, o “projeto da doutoranda Larissa
Nadai” estava em “análise” e a resposta dirigia-se à “prezada Dra. Maria Filomena
Gregori”, aqui, nos despachos empreendidos em função dessa mesma (e outra)
documentação, figurava que “a solicitação do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas da UNICAMP já havia sido avaliada e não aprovada pela Comissão
Científica no Despacho nº 017/2014”.
A minha solicitação era transmutada em um pedido empreendido pelo próprio
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) ao IML. Endereçado a minha
54

orientadora, ao IFCH, à UNICAMP, o indeferimento reincidente insinuava,


definitivamente, camadas de autoridade bastante importantes. A orientação recobre a
pesquisa da doutoranda, o que, por sua vez, remete à função de docente da orientadora
junto ao IFCH, o qual finalmente está subordinado às insígnias da UNICAMP enquanto
instituição acadêmica. Como buscarei argumentar, o indeferimento da pesquisa da
orientanda guarda “afinidades eletivas”38 (WEBER, 2004) com a recusa à universidade -
a UNICAMP (com letras maiúsculas) - e ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
enquanto área do conhecimento: as ciências humanas em geral.

***

Comecei esse tópico com um poema de João Cabral de Melo Neto. Como
epígrafe dessa reflexão, seus versos destinados a Carlos Drummond de Andrade falam
sobre a difícil tarefa de “ser funcionário”. Em suas palavras, os arquivos aparecem
como túmulos feitos em dimensões exatas a todos os tamanhos do corpo do poeta.
Caixas que guardam papéis, impressos por máquinas que não escrevem cartas –
imaginadas pelo poeta como o domínio do pessoal e do particular. Em outro contexto,
Navaro-Yashin (2007) nos conta sobre o caso de Fuat, um turco-cipriota e seu
sentimento de medo/pânico ao receber, pelo correio, uma carta endereçada a ele pelo
corpo administrativo britânico. Fuat sai em posse da carta, totalmente selada, e se dirige
a um centro comunitário de tradutores turcos para que esses lhe digam sobre o conteúdo
impresso no papel. Como salienta a antropóloga, ao manter suas correspondências
transacionadas com o Estado Britânico arquivadas em um cofre nesse centro
comunitário, Fuat busca, de alguma forma, apaziguar o efeito fantasmagórico desses
documentos em sua vida como um imigrante residente na Inglaterra. O arquivo aparece,
portanto, como uma caixa cinza e achatada que, pela aparência de racionalidade e
contenção que engendra, contrasta com os “explosivos afetos” experienciados por Fuat
ao entrar em contato com as cartas enviadas a ele pelo governo britânico. Seja no caso
do poema de João Cabral de Melo Neto, seja na etnografia de Navaro-Yashin (2007), os
documentos aparecem como objetos que carregam múltiplos afetos e sentidos. Sem

38
O conceito desenvolvido por Max Weber (2004) tem por intuito preceder a uma análise casuística entre
a pesquisa e a universidade ou entre a pesquisa e as ciências humanas. A pesquisa não foi negada porque
era da Unicamp ou, ainda, por ser voltada à área de ciências humanas, todavia, essas filiações guardam
uma convergência e uma atração importantes. Tais correlações orientam os capítulos a seguir e serão mais
bem delineadas nas notas finais desta tese. Para uma análise dos muitos sentidos que Weber denota ao
termo “afinidade eletiva”, ver Löwy (2011).
55

dúvida, documentar a documentação, encaminhá-la aos lugares corretos e, depois,


recebê-la com uma decisão, positiva ou negativa, despertam ansiedades e incertezas as
mais diversas.
A impressão de confusão, incerteza e angústia que tantos papéis encerram não é,
portanto, um efeito indevido ou irrefletido da descrição produzida até aqui. Tentei
intencionalmente despertar tais sensações no leitor através da enumeração sistemática
dos dizeres e das imaginações impostas aos papéis que forjei. Documentar a
documentação começa como um procedimento intuitivo para, somente com o tempo,
configurar-se como uma prática realizada mediante diretrizes formalmente estipuladas
e, exatamente por isso, profundamente legitimadas. Se, como sugere João Cabral de
Melo Neto, é “difícil ser funcionário”, todavia, as diferenças entre burocratas e nós
cientistas sociais acabam, simultaneamente, borradas e bastante correlatas, pelos
capciosos e pedagógicos procedimentos de se documentar a documentação39 (RILES,
2006; HULL, 2012; FERREIRA, 2014).
As implicações analíticas de tais similitudes cristalizam, portanto, duas
importantes imagens por meio das quais, como sugere Navaro-Yashin (2007), a
documentação pode ser pensada. De um lado, todos os papéis são ficções. Ou seja,
carregam, perpetuam e suportam elementos de fabricação: tanto para aqueles envolvidos
em sua feitura, quanto para aqueles que os utilizam. De outro lado, documentos
suportam sentimentos e afetos manejados pelas pessoas que os produzem e
transacionam. Visto por intermédio de tais itinerários, documentar a documentação
encerra importantes efeitos.
Primeiramente, tal procedimento destaca os modos pelos quais nos
comunicamos com as instâncias estatais. Papéis oficiais são formas preestabelecidas de
interação, cujos formatos, materialidades e fórmulas textuais devem ser dominadas e
replicadas por qualquer cidadão que pretende estabelecer um diálogo com setores e/ou
instâncias estatais. Visto por esse ângulo, o ato de forjar documentos era uma artimanha
obrigatória e incontornável para esta investigação. Como sugere Anelise Riles (2006),

39
Ao aproximar tais figuras, por um lado, destaco a centralidade que os documentos adquirem tanto para
pesquisadores quanto para burocratas. Relatórios, ofícios, declarações, editais, formulários, prestação de
contas são registros negligenciados, exatamente, pela trivialidade e pela ordinariedade que assumem na
vida de pesquisadores e seus interlocutores – agentes estatais, elites empresariais, burocratas etc. (RILES,
2006; HULL, 2012). De outro lado, inspirada pela reflexão de Ferreira (2014), busco sublinhar como os
documentos permaneceram apartados da “autorrepresentação” da própria antropologia. Em seus termos,
“no quadro imaginário composto pelo etnógrafo solitário, pela aldeia nativa e pela longínqua praia
tropical não há espaço para autorizações formais a serem assinadas e carimbadas por delegados de polícia
(...)” (FERREIRA, 2014, p. 142).
56

documentos têm importância porque são artefatos paradigmáticos para as práticas de


conhecimento moderno. Eles funcionam como uma espécie de modelo epistemológico e
um paradigma de interpretação que prevalece em diversos campos de saber – das
ciências humanas às burocracias estatais. Produzi-los, portá-los, manuseá-los e arquivá-
los, se relacionam diretamente com a experiência daqueles que seriam meus
interlocutores de pesquisa.
Um segundo efeito do termo documentar a documentação intenta evidenciar
etnograficamente o mecanismo intencional de replicar, nessa papelada, os próprios
expedientes de trabalho empreendidos por essas repartições policiais. Produzir papéis,
protocolar nos “balcões” indicados e arquivá-los são técnicas de gestão articuladas
rotineiramente em setores, agências ou instâncias estatais. Se declarações, ofícios,
memorandos e requisições são modelos e soluções administrativas, simultaneamente,
documentar a documentação mimetiza tais preceitos e seus propósitos reais e
imaginados.
Finalmente, há, ainda, um terceiro efeito que busquei apresentar no decorrer
deste capítulo, mas que será desdobrado no tópico a seguir. Inspirada pelas reflexões
empreendidas por Lugones (2014, p. 81), já discutidas anteriormente, tal percepção
dialoga diretamente com o que a autora nomeia como “condição comum de sujeitos de
Estado”. Seja porque, como pesquisadores ou docentes universitários, dependemos de e
respondemos a instituições estatais, a FAPESP, o CNPq ou a UNICAMP, seja porque
ao documentar a documentação como imaginamos ser o modo correto e eficiente de
fazê-lo, nós propagamos e/ou estendemos a “presença do Estado em nossas sociedades”.
(LUGONES, 2014, p. 79). A crença de que documentos escritos são os meios
exclusivos de abrir as portas cerradas do IML está suportada pelo “hábito consciente ou
cálculo (afetivo e nem sempre racional)” de que tais autoridades existem, são legítimas
e podem autorizar de modo impessoal e definitivo esses fluxos de acesso (idem).
Entremeada por autoridades e relações pessoais que buscam afiançar a
documentação, a resposta encaminhada pela Comissão Científica passou a figurar como
personagem principal desta tese. Não por acaso, optei por tomá-la como um tipo
particular de técnica que incita a ver determinadas informações, termos, relações e
funções da instituição. Nesse sentido, a negação não é um empecilho ou um
contratempo a ser superado. Ao contrário, os papéis por mim protocolados e os dizeres
impressos em forma de “Ofício” desvelam os riscos perenes que o ato de autorizar
engendra e perpetua para o cotidiano de gestão imposto às instâncias estatais.
57

Entreatos: Os enredos e artimanhas dos labirintos kafkanianos

Dia 19 de janeiro de 2015: Auditório da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.

Os slides seguem em ritmo acelerado. Sem perceber, os ponteiros do relógio já passam das 17h45. A sala
esvaziada pelo entre e sai dos discentes me chama atenção. Aplausos encerram a palestra e a aula. Os alunos e
alunas saem com rapidez, enquanto eu tento seguir em direção oposta. Cumprimento Milton. Ele, por sua vez,
apresenta-me a Carvalho. “Carvalho, essa é a Larissa, comentei com você sobre ela. Ela é antropóloga, tem
feito o doutorado sobre os casos de estupros periciados no IML” . Sorri e completei: “na verdade, estou
tentando, né, Milton?! Mas o pessoal não quer deixar!”. Carvalho olhou intrigado e retrucou: “como assim não
querem deixar?”. Em linhas gerais, contei a ele sobre a negativa da pesquisa na Comissão Científica do IML. Sem
me deixar enveredar para mais detalhes, Carvalho me pergunta: “Mas quem negou?”. Explico que foi uma
médica, que é membro e chefe da Comissão. Ele continua: “qual o nome?”. Intimidada, olho em direção a Milton.
Sem saber o quão ético seria responder ou não ao questionamento de Carvalho, digo o nome da médica que
assinou o indigesto Ofício. Carvalho fica surpreso: “mas é minha amiga. Não sei porque ela negou. Ela é
pesquisadora, não é contra pesquisa. Mas qual o motivo que ela negou?” . Repito os dizeres do Ofício
encaminhado para o meu e-mail: “Segundo eles, é função do IML preservar a identidade das vítimas atendidas”.
Ele replicou: “Estranho!!! Mas você deixou claro que não tem interesse pelo nome e as informações que podem
expor as vítimas?”. Explico que sim e que, inclusive, havia deixado isso explícito no pedido de solicitação da
pesquisa. Sua feição de dúvida veio seguida de uma promessa: “Pode deixar, vou descobrir qual é o problema.
Vou conversar direto com ela. Ela é minha amiga, tenho certeza que é por falta de alguém que certifique a
idoneidade da pesquisa. Ela é super aberta a pesquisas. Não faz sentido”. Foi a minha vez de ficar surpresa!
Contudo, o relógio já passava das 18h30. Ele, apressado, despediu-se. Mas, antes de seguir em direção ao
estacionamento, reafirmou o compromisso assumido em relação a minha pesquisa e, falando diretamente com
Milton, prometeu ligar assim que tivesse novas indicações. De carona com Milton, comentei sobre a gentileza de
Carvalho e meu interesse em entrevistá-lo. Milton concordou que poderia ser bastante importante para a
investigação. Apenas dois dias depois de nossa aula no anfiteatro da FCM, Milton me ligava com boas notícias.
Carvalho havia retornado à ligação. Ele havia procurado pessoalmente a médica que assinou a negação de
minha pesquisa. Disse que deveríamos encaminhar novamente os papéis referentes à solicitação da pesquisa,
colocando Milton como meu co-orientador e deixando explícito que não tínhamos interesse em ter o nome e as
informações pessoais das vítimas envolvidas. Pediu, também, que sugeríssemos à Comissão que o próprio
Milton acessaria os laudos e fotocopiaria, única e exclusivamente, as conclusões médicas expressas neles.
Carvalho segredou a Milton conhecer os motivos pelos quais minha pesquisa havia sido negada, mas que só
58

contaria a ele quando o encontrasse pessoalmente. Começava ali uma nova movimentação de telefonemas a
minha orientadora e a Milton, envio de e-mails ao próprio Carvalho, novos papéis e, sobretudo, outras esperas.
Nunca soube quais os motivos que levaram ao indeferimento de minha solicitação de pesquisa. Carvalho, dali
por diante, não respondeu mais aos meus e-mails. Nunca oficializamos qualquer co-orientação, nem reenviamos
os papéis à Comissão. Escolhas feitas, seguindo os conselhos de minha orientadora e também de Milton,
semanas depois dele ter ido à cidade de São Paulo para algumas reuniões junto ao IML da cidade. (Caderno de
Campo).

Nem tudo que não se pode ver está escondido: sobre dar autorização, arriscar
autoridade.

“Ao devassar aqueles papéis tinha cometido uma infracção à


disciplina e à ética, talvez mesmo à legalidade. Não porque as
informações que deles constavam fossem reservadas ou secretas,
como não o eram de facto, porquanto qualquer pessoa teria podido
apresentar-se na Conservatória a solicitar cópias ou certidões dos
documentos do bispo sem precisar de explicar os motivos do pedido e
os fins a que as destinava, mas porque havia desrespeitado a cadeia
hierárquica procedendo sem a necessária ordem e autorização de
um superior. Ainda pensou em voltar atrás, emendar a irregularidade
do acto rasgando e fazendo desaparecer as impertinentes cópias,
entregar a chave ao conservador (...) e, feito isso, esquecer os minutos
por assim dizer sublimes que tinha acabado de viver. Porém, pôde
nele mais a satisfação e o orgulho de ter ficado a conhecer tudo,
foi esta a palavra que disse, Tudo, da vida do bispo”.
(SARAMAGO, 2003, p. 27).

Quando dei início aos meus processos de documentação, não conhecia os


caminhos pelos quais meus papéis iriam caminhar. Fiz um percurso, inclusive, bastante
simplório, como busquei apontar na apresentação desta tese, por meio de figurações
como um endereço, um prédio e um nome. Ou seja, semelhante aos percursos traçados
em minha pesquisa de mestrado, imaginei chegar ao prédio, obter informações mais
precisas sobre como deveria conduzir minha solicitação, para, enfim, conseguir uma
reunião com o diretor do IML. Contudo, jamais me reuni com o diretor do IML de
Campinas. A funcionária que me atendeu, secretária do diretor, foi minha única
interlocução na corporação. Suas indicações me levariam a conhecer sobre a existência
59

de uma Comissão Científica constituída especificamente para avaliar projetos de


pesquisas: de caráter, portanto, “científico” e não “ético”40.
Semelhante aos procedimentos impostos a inúmeras pesquisas em instâncias
estatais, eu apenas buscava “solicitar formalmente autorização para fazer a pesquisa”
(FERREIRA, 2015, p. 37). A autorização era o objetivo final. Isto é, tomava esse
processo burocrático como necessário para a realização da pesquisa, mas não como
parte ‘marcante’ de minha pesquisa. Eu precisava passar por ele para, só então, estar
autorizada a adentrar o IML, esse sim, lócus de minha pesquisa. O diretor e, em seguida,
a Comissão eram, portanto, os “pasillos” e “barandillas” para meu projeto de doutorado.
Como sugere Lugones (2012) em relação às gestões empreendidas dos Tribunais
de Menores em Córdoba, a espera é um processo imposto e necessário a qualquer um
dos “administrados” que buscam atendimento nos “pasillo” do Tribunal. Nessa espécie
de corredor, as pessoas aguardam fisicamente, quase sempre de pé, devido ao número
diminuto de assentos, e sem acesso imediato a bebedores ou banheiros. Entre o corredor
e a sala do juizado, as “barandillas” limitam o acesso. Essa espécie de “balcão” móvel,
particularmente comum em tribunais e repartições públicas, cumpre uma dupla função.
Primeiro, dão acesso aos juizados. Segundo, restringem o acesso e servem de “balcão”,
cuja, função é, simultaneamente, dar informações e, uma vez, mais reafirmar aos
administrados: “que me esperen”. (LUGONES, 2012, p. 82).
Nesse processo, em busca de obter autorização, eu estava constrangida a me
identificar. Eu era uma “aluna de doutorado” em posse de “uma pesquisa” cuja
passagem ao interior do IML só seria permitida depois de uma avaliação. A Comissão
era, portanto, um tipo particular de “checkpoint”. Como argumenta Jeganathan (2004),
“checkpoints”41 têm por função impedir o tráfego de veículos e pedestres. Tal parada
obrigatória impõe àquele que está em fluxo que responda as perguntas colocadas por
aqueles que controlam fronteiras e territórios. Segundo o autor, tais perguntas giram em

40
A princípio, e mesmo depois de passar por seu crivo, não conhecia quais funcionários do IML
compunham tal comitê, nem sabia quais eram suas obrigações ou quais foram as motivações para a sua
criação. A única informação que tive foi que tal Comissão realizava suas reuniões todas as segundas
terças-feiras de cada mês.
41
Jenegathan (2004) desvela as múltiplas camadas que constituem “checkpoints” como um interessante
objeto antropológico. Preocupado em como antropologicamente descrever aquilo que nomeamos como
violento, o antropólogo argumenta que, durante sua pesquisa no Sri Lanka, a presença de postos de
controle era intensa. Toda a região é cravejada de tais aparatos, fossem eles grandes ou pequenos, oficiais
ou não oficiais. Segundo o autor, portanto, os postos de controle funcionam, concomitantemente, como
aparatos físicos que organizam o fluxo de pessoas e objetos e como pontos de fixação (alvos) potenciais
que antecipam uma violência latente. Postos de controle mapeiam alvos e ataques de bombas, ao mesmo
tempo em que determinam e cartografam tais territórios como sujeitos a essas violências pelo ato de
verificação ali empreendido.
60

torno de questões de identidade e todas são sustentadas por meio de um cartão de


papel42, quase sempre velho e amarelado, cujo porte é obrigatório a todos os cidadãos
no Sri Lanka.
Ainda que as distâncias sejam evidentes entre postos de controle em zonas de
conflito armado como no Sri Lanka e a função de uma Comissão Científica, sugiro que
as semelhanças entre essas técnicas de fixar e dar passagem são bastante reveladoras.
Ambas retiram poder de seu caráter de controle e deflagravam, por intermédio de suas
técnicas de identificar, correlações de forças diferenciais entre aqueles que têm
autoridade de autorizar e aqueles que estão autorizados a acessar o outro lado do
“balcão” (LUGONES, 2012).
Assim, depois de receber o “Ofício 017/2014”, passei a dar atenção,
analiticamente, aos processos e procedimentos burocráticos narrados por mim no tópico
anterior e realizados em meados de 2014 como parte residual daquilo que, aos meus
olhos, viria a ser a minha pesquisa. Formalidades que a rigor enredam qualquer
pesquisa. Passei a lançar luz ao fato de que fazer pesquisa implica, sempre e
irremediavelmente, em pedir algum tipo de acesso. Podemos fazê-lo a lideranças locais,
coletivos e/ou grupos ou, no meu caso, a órgãos estatais. O resultado final da
solicitação, quando positivo, é revertido em um caso anedótico que elucida os
bastidores e as conexões (sempre formais e pessoais) que culminaram na pesquisa. Mas
qual é o gênero narrativo adequado quando a resposta de uma solicitação de pesquisa é
um indeferimento?43
Comumente, o pesquisador comunica, sucintamente, a negativa ou a “restrição”
recebida para, em seguida, apresentar ao leitor as rotas alternativas por ele escolhidas
para transpor o indeferimento44. Ou seja, na impossibilidade de dar prosseguimento

42
Como descreve Jenegathan (2004) por meio de seu próprio cartão emitido em 1982, pouco antes de ele
entrar na universidade, na carteira há, num dos lados, a fotografia, data de emissão, número de
identificação e assinatura do burocrata responsável pela emissão do cartão. Do outro lado, uma série de
linhas pontilhadas detalha nome, sexo, data de nascimento, local de nascimento, ocupação e endereço do
titular do documento.
43
Uso o termo dando atenção aos meus próprios percursos narrativos. Os sentimentos de frustração,
indignação e ansiedade gestados em função do “Ofício 017/2014”, assim como descreve Navaro-Yashin
(2007), incidiram diretamente na forma de narrar antropologicamente os mecanismos de negação.
44
Os exemplos de tais procedimentos são inúmeros. Algumas das pesquisas citadas nessa tese optaram
por esse caminho. A etnografia de Leiner (1997), em especial, pode iluminar tais procedimentos. O autor
preocupado em desvelar a identidade militar, estruturou seu projeto de pesquisa em torno de um elemento
político – a questão Amazônica e o Projeto Calha Norte. Em seu horizonte, Leiner (1997) pretendia
entender como tal identidade de grupo operava em uma ação concreta, na qual seu papel e sua função
enquanto corporação são exigidos. O fato de nunca ter sido autorizado a pisar de fato na Amazônia,
redimensionou profundamente o projeto de pesquisa desenvolvido pelo autor. Os caminhos entre
conferências, eventos e palestras foram redirecionando o campo empírico, sem, contudo, fazê-lo perder de
61

àquilo que se solicitou e idealizou, perguntas são redimensionadas, interesses são


abandonados ou novos pedidos de acesso são formulados, só que agora destinados a um
novo interlocutor. Contudo, raras são as pesquisas que tomam a negação como forma de
narrar o acesso e seu “porta-voz” – a Comissão, o diretor, o funcionário, o juiz - como
uma “autoridade” cuja “legitimidade [é extraída] do mesmo grupo sobre o qual exerce
sua autoridade e para cuja produção enquanto grupo contribui oferecendo-lhe uma
expressão unitária de suas experiências” (BOURDIEU, 2008, p. 119).
O que é uma Comissão Científica? Quem a preside e responde por ela? Quais
são as responsabilidades e os riscos colocados por aquele que autoriza, cedendo parte de
sua autoridade a um pesquisador? Como se justapõe autoridade à proteção de vítimas e
expedientes de trabalho?
Sustento que documentar a documentação e ter minha pesquisa indeferida pela
Comissão Cientifica do IML são elementos fundamentais para compreender o caráter
corporativo do IML, a gestão de seus expedientes administrativos dentro de uma cadeia
de responsabilidades investigativas, bem como o risco de “se responsabilizar” por
alguém, dado o “circuito de subordinação” (LEINER, 1997) exigido à minha pesquisa.

***

“Por que isso daí, ou seja, esses laudos para você conseguir acesso,
você particularmente [ênfase], pra você conseguir acesso a eles é um
negócio, assim ... difícil. Por quê? São Paulo faz um [reticência].
Como se diz? Você precisa da aprovação quase do governador. Eu
diria dessa forma. Entendeu? Tem que ser resguardado. O que você
faz? Ah, então não pode. Mas eu preciso pra um trabalho assim,
assim, assado. Precisa pedir autorização pro Diretor do IML, que vai
pedir pro Superintendente, que o Superintendente vai pedir pro
Secretário de Segurança, que o Secretário de Segurança vai pedir
pro...isso aí vai tomar uns três anos”. (Entrevista realizada em
janeiro de 2015).

O trecho acima retrata a opinião de um de meus interlocutores sobre a “cadeia de


atos, autoridade e autorizações” (FERREIRA, 2015, p. 36) imposta à minha pesquisa.
Em suas fabulações, chegar ao governador do estado de São Paulo seria um fato quase
incontornável, ainda que levasse um tempo considerável e inviável para uma pesquisa

vista as questões identitárias que orientavam seus interesses etnográficos. Para ver outros exemplos:
Muzzopappa e Villalta, 2011; Bevilaqua, 2003 e Azevedo, 2016.
62

de doutorado. Sua opinião, ainda que suprimisse a presença de uma Comissão


Científica, era uma imagem bastante apropriada diante de meu objeto de pesquisa.
As hierarquias ali colocadas eram bastante evidentes para o mencionado
profissional devido aos seus mais de vinte e cinco anos como funcionário da Polícia
Técnico-Científica. Para o médico-legista, mais próximo a ele estaria o diretor o IML de
Campinas, cuja autoridade está direcionada ao corpo de funcionários da cidade e aos
atos de trabalho ali executados. Acima, estaria o superintendente da Polícia Técnico-
Científica que, a rigor, teria por responsabilidade administrar conjuntamente o IML e o
IC. Acima dele, o secretário de Segurança Pública, responsável pelas inúmeras
instituições de segurança no estado – polícias, presídios e fundações CASA – e
escolhido pelo governador do estado. E, por último, eleito por voto popular e
“representante” dos cidadãos, estaria o governador.
Visto por esse ângulo, meu pedido formal remetido ao diretor do IML e, depois,
diretamente à Comissão Científica era correto, ainda que aparentemente ineficaz. Os
carimbos reunidos a cada seção pela qual meus papéis caminharam dentro das instâncias
administrativas do IML reforçavam esses múltiplos “checkpoints” obrigatórios. A
Comissão, contudo, encurtava esse longo “circuito de subordinação” enunciado por meu
entrevistado. Responsável por avaliar especificamente interesses de pesquisas a serem
realizadas na corporação, a assinatura da médica “membro da Comissão Científica do
IML/SP” carregava, em sua designação, a autoridade daqueles que instituíram seu lugar
de autoridade: o governador, o secretário de segurança, o superintendente e, por fim, o
próprio corpo de funcionários.
Sob os dizeres, “cabe ao Instituto Médico Legal a função de preservar a
identidade das vítimas atendidas”, minha solicitação era negada. Concomitantemente,
uma face/função pública do IML era desenhada. Por sobre todos os procedimentos e
documentos oficiais que eu demandava acesso, eu encontrava revelada a “função [do
IML] de preservar a identidade das vítimas atendidas”. A Comissão, por conseguinte,
era a instância responsável por garantir que tal atribuição não fosse colocada em risco.
Todavia, como era possível que minha pesquisa colocasse em risco a “identidade das
vítimas atendidas” se eu, formalmente, em inúmeros documentos assinados e com
timbre da UNICAMP, comprometia-me a “proteger a intimidade de todos os
profissionais participantes da pesquisa, bem como de registros que identifiquem
documentos e procedimentos sigilosos da instituição”? (Carta de apresentação, março
de 2014).
63

A resposta para esse questionamento pode ser formulada através de replicações


perpétuas entre o pedido e suas praxes de escrita e o modo pelo qual se enuncia o
indeferimento. A ideia de replicações perpétuas é importante porque tais mecanismos
imaginativos – sobre como e onde pedir acesso - não desembocam em um único
resultado: o não acesso. Há, com certeza, inúmeras formas de pedir autorização e, por
conseguinte, outras variadas justificativas para negar ou aceitar pesquisas nessas
instâncias. Ao usar certas formas narrativas, recebi certos dizeres administrativos. Ainda
que, a posteriori, pareçam ingênuas ou equivocadas certas escolhas, tal análise é fruto,
exatamente, desse aprendizado incorporado sobre como interagir ou codificar, sempre
provisoriamente, o Estado, com letras maiúsculas.
Nesse sentido, a documentação produzida por mim projeta uma feição para o
IML. Ou seja, enfeitiçada pelas insígnias da Secretaria de Segurança Pública e da
Polícia Técnico-Científica, eu imaginava que pesava sobre meu campo de pesquisa
aquilo que autoras como Renoldi (2011) e Lowenkron (2015) formulavam por meio da
ideia de “sigilo policial”. Como descreve Lowenkron (2015), os Inquéritos Policiais –
eu acrescentaria, também, as peças periciais – estão voltados à apuração de “indícios de
materialidade e autoria” que, precisamente porque em “estágios imaturos de
desenvolvimento” (idem), tornam-se objetos dignos de serem protegidos e contidos por
uma forma social apropriada: “sociedades secretas” (SIMMEL, 2009).
Em consonância a essa definição e tomada pelos dilemas éticos e morais que eu
havia enfrentado em meu próprio mestrado na Delegacia de Defesa da Mulher de
Campinas, em meus papéis de doutorado, assinados e carimbados por servidores da
UNICAMP, eu protegia as malhas administrativas e burocráticas da polícia técnica e
científica, comprometendo-me a proteger a identidade de protocolos, números de
laudos, nomes de médicos etc. Em resposta, a Comissão Científica do IML me alertava
que a proteção à identidade das vítimas não se resumia aos dados protocolares
veiculados nesses laudos. Ou seja, é parte da imagem projetada em relação aos
procedimentos estatais que a impessoalidade advinda de números indexe, como no caso
do RG, um nome, uma filiação, um rosto e uma cidade de pertencimento, para,
finalmente, tudo isso ser revertido em “identidade” (PEIRANO, 2006).
No caso dos laudos periciais, eu crente nesse efeito administrativo (VIANNA,
2014), acreditava que a numeração do laudo e o protocolo que o anexaria aos Inquéritos
Policiais, também realizavam esse tipo particular de indexação. Ou seja, uma Alice
qualquer só teria sua identidade revelada se ganhasse publicização o protocolo que
64

indexava seu nome, seu RG, sua filiação, sua data de nascimento, sua profissão, seu
endereço e, finalmente, seu corpo. Entretanto, o que a Comissão Científica me
informava contrariava isso. O nome, a filiação, o endereço e o corpo que ali se convertia
em evidência material não podiam ser conhecidos por mim. Portanto, escondê-los, por
meio da ocultação numérica dos próprios laudos, não garantia a preservação de suas
identidades45.
À luz dessas reflexões, o argumento desenvolvido por Ferreira (2009) é central e
serve, a contrapelo, para entender os dizeres da Comissão. Em sua pesquisa, a
antropóloga preocupada em etnografar os processos burocráticos e documentais por
meio dos quais corpos não identificados passam a ser identificados no Instituto Médico
Legal do Rio de Janeiro, chama atenção para “um processo criador, de construção e
atribuição de identidade” no qual esses cadáveres desconhecidos estão imersos quando
adentram o necrotério. Em seu material empírico, inspirada pela ideia de identificação
formulada por Souza e Lima (1998), a autora aponta como

“paralelamente a técnicas e práticas voltadas para lugares, bens e


mercadorias, sistemas de identificação de indivíduos os tornariam não
só legíveis, como também controláveis para determinados órgãos e
agentes oficiais de administração pública, justificando sua existência e
permitindo sua atuação”. (FERREIRA, 2009, p. 43).

Nesse sentido, os processos pelos quais essas vítimas de estupro aparecem


identificadas e identificáveis nesses laudos periciais excedem, e muito, os documentos e
qualificações atribuídos a essas mulheres. Dados tais como endereço, filiação, idade,
naturalidade e registro geral de identidade (RG) são apenas alguns dos elementos a
serem preservados. Como argumenta Peirano (2006), os documentos são, ao mesmo
tempo, aquilo que torna um individuo único e particular – ou seja, atribui a ele uma
identidade – e um tipo específico de técnica de controle e legibilidade por meio da qual
o Estado pode, enfim, contar, somar e agregar indivíduos numa dada população.
Ou seja, se o indeferimento esclarece a mim uma função da instituição – “cabe
ao IML preservar a identidade das vítimas atendidas”, ao fazê-lo, coloca em relevo um
duplo sentido semântico que a palavra “identificação” carrega. Considerando o
argumento de Souza Lima (1998) e a polissemia do termo, identificar seria uma ação de

45
Como, afirma Fassin (2012), a ideia de identidade entranha um sentido moral de longo prazo que é, ele
mesmo, indissociável de um conjunto de afetos e valores que regulam condutas e emoções em relação aos
outros e, que definem um sentimento de respeito à vida e à dignidade humana bastante historicizado e
preciso. Parte de seus desafios ao pensar a ideia de “razão humanitária” foi deslindar alguns dos sentidos
contingentes impostos a essa categoria.
65

“diferenciar pela inserção numa série, numa classificação (...)”46. (SOUZA LIMA,
1998, p. 214). Ato “a ser perpetrado por um especialista”, a identificação, nos termos do
autor, deve ser compreendida como uma “prática de controle que se estabelece sobre
bens móveis e imóveis e sobre indivíduos” (SOUZA LIMA, 1998, p. 213).
A correlação formulada por Souza Lima (1998) remonta às conexões bastante
explícitas entre o termo e a medicina legal brasileira. Enquanto técnica e prática
policial, a identificação floresce em meados no século XIX. Como sugere Carrara
(1984), tal nascimento, destinado ao exame de locais de crime e voltado a identificar,
com eficiência, criminosos reincidentes, buscava perscrutar os corpos, com o intuito de
encontrar um sinal diacrítico definitivo que determinasse a identidade individual de todo
sujeito. As técnicas de identificação desenvolvidas por Vucetich, por meio dos desenhos
papilares, localizados nas pontas dos dedos de todos os indivíduos, foi o passo
definitivo a tais empreendimentos47. Carrara (1984) ainda sugere que a constituição de
um sistema de classificações ancorado em marcas concomitantemente variáveis,
imutáveis e inalteráveis, permitia a médicos e advogados almejar transformar a
“sociedade inteira em um grande panopticum, cuja torre de controle fosse o Estado, ou
melhor talvez, a Polícia”. (CARRARA, 1984, p.7). Se, nos termos do antropólogo,
Afrânio Peixoto acreditava que “o meio mais seguro de demonstrarmos nossa
identidade é aquele fornecido pelo Estado”, nesse novo cenário (e até hoje) tal
prerrogativa passou a figurar como um direito do cidadão. (CARRARA, 1984, p.10)
A ambiguidade do termo, contudo, permaneceu viva entre esses reformadores.
Em alguns momentos designada como personalidade individual e muitas vezes tomada
por meio de sua acepção jurídica48, a identidade, passível de ser extraída das impressões
digitais e depois convertida em uma sequência numérica, pressupunha a exposição dos
indivíduos frente aos órgãos de controle da polícia, para, por conseguinte,

46
Como demonstra Souza Lima (1998, p.113), identificação é uma palavra proveniente do latim, tendo
como sentido “ato ou efeito de identificar” e “reconhecimento duma coisa ou dum indivíduo próprio”.
47
Como afirma Carrara (1984), Vucetich classificava as impressões digitais a partir de classes gerais. As
digitais, por conseguinte, dentro dessas classes iam recebendo subclassificações por meio de suas
particularidades até, finalmente, se chegar a uma única marca datilográfica. Nos arquivos dos sistemas de
identificação tais “cifras antropométricas” recebiam uma série de números e letras que permitiam o
acesso e a transmissão rápida de tais informações. Idealizada por Reyna Alamandos, tais práticas eram
bastante eficientes: “cada impressão digital estaria aliado a um número bastante especial, o número
pessoal, que constaria também em uma cédula que o indivíduo receberia ao ser identificado civilmente”.
(CARRARA, 1984, p.21).
48
Segundo o autor, “conjunto de direitos e deveres concernentes a um indivíduo em determinado
momento de sua existência frente à coletividade e a um certo domínio de bens”. (CARRARA, 1984,
p.12).
66

“manter a sociedade enquanto todo e enquanto unidade, ao mesmo


tempo que guarda a ‘memória’ de seus componentes. Somente ele [o
Estado] deteria a série numérica completa que constituiria então a
figura do próprio social” (Carrara, 1984, p.24).

O projeto, ambicioso por princípio, resultaria numa espécie de Livro Nacional de


Personalidade cuja existência explicitava os interesses científicos colocados a tais
práticas de identificação. Como uma espécie de “inventário científico da sociedade”, tal
registro passou a arquivar não apenas datilogramas individuais, mas, sobretudo, as
técnicas pelas quais “nossos identificadores passam também a ser identificantes,
imprimindo seu próprio selo em cada um dos cidadãos, infinitamente ordenados
numericamente” (CARRARA, 1984, p.22).
Eis a encruzilhada na qual gostaria de assentar os dizeres da Comissão
Cientifica. Diante da história pregressa que incide sobre os Institutos Médico-Legais,
parece bastante significativo serem as “identidades”, daqueles pelo IML identificados,
o objeto a ser “preservado”/“protegido”. Nesse sentido, esses laudos periciais, para
além de identificações legais das vítimas atendidas, desvelam uma “variedade de atos”
(FERREIRA, 2009) que diferenciam e inserem esses corpos estuprados e seus pedaços
numa série de outros corpos que devem ser identificados, discriminados, periciados e
inscritos pela e na corporação. Como argumenta Carrara (1984, p.25), “a polícia
enumera a todos, identificando-os; os médicos qualificarão a todos, classificando-os”.
Logo, o não acesso e o indeferimento, redimensionado pelos sentidos atribuíveis ao
termo “identidade”, devem ser alinhavados, portanto, aos procedimentos de trabalho
impostos ao IML. Ou seja, uma instituição policial, com fins técnico-científicos e
médicos, composta por funcionários que são graduados em medicina e portadores de um
registro profissional concedido e certificado pelo Conselho Regional de Medicina, o
CRM. Se, como sugere com sarcasmo Carrara (1984) foi “feliz” o encontro da polícia
com a medicina49, tomar tal saber como objeto de reflexão exige lançar luz a essa dupla
composição do IML: médica e policial.
Buscando indicar o quão fortuita é essa dupla constituição, entendo que tal
contexto incide tanto nos documentos, quanto nos expedientes de trabalho que eu
buscava observar. No caso dos primeiros, como argumenta Jardim (2013), os laudos
periciais são simultaneamente documentos médicos e documentos públicos. Como

49
Carrara (1984) encerra seu artigo afirmando que o encontro entre a polícia e a medicina, talvez “seja
mais feliz” do que aquele ocorrido entre o direito e a medicina. Isto porque, nos termos do autor, tal
ligação parece operar “uma junção fundamental para a gênese das sociedades autoritárias, para a lenta
maturação daquilo que já foi chamado de o ovo da serpente”. (CARRARA, 1984, p.26).
67

documentos médicos, idealmente, são de propriedade física da instituição na qual a


vítima foi atendida. A instituição – hospitais e unidades de saúde – tem a
responsabilidade e o dever de guardar (arquivar) por, dez anos no mínimo, tais
documentos, denominados como prontuários nesses casos50. No entanto, as informações
contidas nesses prontuários são de propriedade do paciente e estão sob as regras do
sigilo médico, só podendo ser divulgados mediante o consentimento do envolvido, por
causa justa ou por dever legal51. Este último, o dever legal incide diretamente sobre
peritos, médicos-legistas e auditores. Como argumenta Henrique Carlos Gonçalves
(2006), conselheiro e primeiro secretário do Conselho Regional de Medicina de São
Paulo (CREMESP),

“Nestas circunstâncias, a relação médico-paciente está sujeita a


normas legais ou contratuais que, previamente, obrigam o médico a
informar a terceiros ou a autoridades seus achados e suas conclusões.
(...)A situação do perito, do legista e do auditor é semelhante, sendo
que se subentende que o paciente, ao se submeter ao exame pericial,
tem conhecimento de que haverá a revelação dos fatos encontrados e,
conscientemente, está autorizando tal procedimento”. (Gonçalves,
2006).

Se a relação perito/periciando52 não se submete às mesmas prerrogativas


impostas à relação médico-paciente53, como sugere Gonçalves (2006), todavia, a perícia
médica enquanto ato médico “deve ser realizada, observando-se os princípios éticos
contidos no Código de Ética Médica”. (Resolução CFM nº 1.635, 9 de maio de 2002).
Nesse sentido, recaem de certo modo sobre laudos periciais e expedientes de trabalho do

50
Prontuário médico é “o conjunto de documentos padronizados, ordenados e concisos, destinados aos
registros de todas as informações referentes aos cuidados médicos e paramédicos prestados ao
paciente”. (http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=PublicacoesConteudoSumario&id=57, acessado em 25
de maio de 2017).
51
Essa informação me foi reiterada, também, por vários funcionários do IML de Campinas. Segundo eles,
mesmo em casos nos quais o IML precisa requisitar o prontuário das vítimas no hospital, isso só pode ser
feito diretamente pela vítima.
52
Tal formulação encontra-se discriminada no artigo quarto, da Resolução do CREMESP nº 126 de 31 de
outubro de 2005. Segundo informa esse dispositivo, contudo, pesa sobre peritos e médicos-legistas o
“sigilo pericial”, sobre cuja formulação, diz o paragrafo primeiro, é “vedado ao médico, na função de
perito, divulgar suas observações, conclusões ou recomendações, fora do procedimento administrativo e
processo judicial, devendo manter sigilo pericial, restringindo as suas observações e conclusões ao
laudo pericial, exceto por solicitação da autoridade competente”. (Resolução do CREMESP nº 126, 31
de outubro de 2005).
53
Nos termos do Código de Ética, o sigilo médico informa as relações de confiança estabelecidas entre
médico e paciente. Tal sigilo não pode ser confundido ou meramente justaposto ao sigiloso destinado aos
prontuários médicos, em especial seu uso e sua formulação para fins periciais (JARDIM, 2013). Isso
porque, tal ordenamento institui diferenças entre a interação face a face estabelecida por médico e
paciente e a produção documental fruto desse encontro, respectivamente. Na comunicação face a face, o
profissional terá acesso a inúmeras informações, nem todas serão transcritas em prontuário. Apenas os
dados importantes ao diagnóstico serão formulados de maneira direta e objetiva. Por exemplo: o registro
da doença não vem associado aos pormenores que levaram à contaminação da mesma.
68

IML, as mesmas exigências impostas a prontuários, fichas clínicas e rotinas


hospitalares. Excetuadas autoridades designadas – juízes, advogados, promotores e
delegados – o médico no exercício de sua função deve vedar, como aponta o artigo 85
do Código de Ética Médica, “o manuseio e o conhecimento dos prontuários por
pessoas não obrigadas ao sigilo profissional quando sob sua responsabilidade”
(Código de Ética Médica, 2009, p. 45).
Já como documentos públicos, os laudos também respondem às normatizações
seladas pela lei 12.527 de 18 de novembro de 201154. Tal ordenamento regula o direito
constitucional previsto no inciso XXXIII, do quinto artigo, primeiro capítulo do
segundo título da Constituição Federal55. O Decreto-lei 12.527 prevê em seu artigo
terceiro, portanto, não só o “direito fundamental de acesso à informação” em
“conformidade com os princípios básicos da administração pública”, como determina,
em sua diretriz primeira, “a observância da publicidade como preceito geral e do sigilo
como exceção”. (Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011).
O sigilo como exceção implica, por conseguinte, justificativa e prazo de
restrição de acesso através de categorias como ultrassecreto, secreto ou reservado56.
Assim sendo, em vista de resguardar documentos e informações “imprescindíveis à
segurança da sociedade ou do Estado” e que possam violar “a intimidade, vida
privada, honra e imagem das pessoas, bem como as liberdades e garantias
individuais”, o ordenamento impõe barreiras bastante subjetivas ao acesso dos órgãos
públicos da federação. Subjetivos exatamente pelo caráter genérico que termos como
“segurança da sociedade e do Estado” e “violação da intimidade, vida privada, honra
e imagem das pessoas” carregam.
Ao me debruçar sobre essas intrincadas disposições legais, administrativas,
profissionais e éticas, meu objetivo é deslindar os fios que parecem formar o novelo que

54
O decreto-lei promulgado pela presidente Dilma Roussef é organizado em capítulos, seções e
parágrafos. Há seis capítulos preocupados com temas tais como: o acesso à informação e sua divulgação,
os procedimentos para acesso a informações e documentos, as justificativas para restrição de acesso e
sobre as responsabilidades do agente público e militar. Além das temáticas específicas, o decreto-lei
apresenta um capítulo inicial, com disposições gerais sobre a matéria legal e um capítulo final destinado a
regular formas de controle e incentivo à transparência da administração pública.
55
Segundo a letra da lei: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado” (Constituição Federal, 1988).
56
Tais classificações estão dispostas no capítulo IV, “Das restrições de acesso à informação” e reúnem
onze parágrafos, divididos em seis diferentes seções sobre os temas tais como: classificação das
informações sigilosas e prazos de restrição de acesso, proteção e controle de informações sigilosas,
procedimentos de classificação e reclassificação, regras de controle sobre informações pessoais, assim
como disposições gerais e finais sobre a matéria.
69

enreda a negativa formulada pela Comissão Científica do IML. Se, pelos dizeres do
“Ofício 017/2014”, minha pesquisa, aparentemente, não coloca em risco a “segurança
da sociedade e do Estado”57, é, sobretudo, por meio da costura de dois fios distintos
que tal novelo pode ser vagarosamente desfiado. De um lado, a “intimidade, vida
privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”
e, de outro lado, o risco de se “responsabilizar” por uma “doutoranda” das “ciências
humanas” que não está “obrigada ao sigilo profissional” médico.
O respeito a “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como
as liberdades e garantias individuais”, coloca-nos no cerne do que, nas páginas
anteriores, eu busquei correlacionar por meio das ideias imbrincadas de identidade e
identificação. Como documentos públicos, contudo, laudos de corpo de delito
arquivados no IML “poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros
diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem”.
O consentimento, condição expressa no inciso II, do parágrafo primeiro da Lei
12.527/2011, poderá ser tangenciado em, pelo menos, cinco condições expressas pelo
mesmo dispositivo legal:

I - à prevenção e diagnóstico médico, quando a pessoa estiver física


ou legalmente incapaz, e para utilização única e exclusivamente para
o tratamento médico;
II - à realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente
interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a
identificação da pessoa a que as informações se referirem;
III - ao cumprimento de ordem judicial;
IV - à defesa de direitos humanos; ou
V - à proteção do interesse público e geral preponderante”. (Artigo
1º, parágrafo 3º, da Lei 12.527 de 18 de novembro de 2011).

Se “pesquisas científicas” podem prescindir do consentimento daqueles cujas


“informações pessoais” estão expressas em documentos públicos, como o são os papéis
forjados pela polícia, logo, a segunda dessas linhas precisa ser deslindada e o caráter
médico do IML ganha destaque.
Vistos como práticas médicas, laudos periciais produzidos pelo IML e os
atendimentos prestados estão factualmente atravessados pelos interesses daqueles que
discriminam quem pode e quem não pode ter acesso à instituição. Ou sobre quem pode
e quem não pode pesquisar nessas repartições; e quais pesquisas são de “evidente

57
Faço alusão aqui às formulações desenvolvidas por Michel Foucault (2008) em seu curso “Segurança,
território e população”. Em suas argumentações, o Estado aparece como um princípio de inteligibilidade,
mas também, um objeto estratégico. Voltarei a tais formulações nas notas finais desta tese.
70

interesse público ou geral” e quais não respeitam os protocolos e sigilos necessários.


Sem dúvida, a Comissão Científica, na figura de seus membros, encarna mais um dentre
os múltiplos “balcões” que impulsionam e interrompem o fluxo de acesso. Se o acesso
aos documentos públicos é a regra e a restrição é a exceção, no caso da ética médica
determinada pelo Código de Ética, formulado pelo Conselho Federal de Medicina
(CFM) e promulgado por meio da Resolução do CFM nº 1.931 de 17 de novembro de
2009, outros enredos são postos em ação. Investigações científicas cujos pesquisadores
não estão “sob sigilo profissional [médico ou pericial]” incidem sobre aqueles que tem
“responsabilidade” pelo manuseio e pela guarda desses papéis. Ou seja, as
“identidades das vitimas atendidas” perfazem, por assim dizer, pedaços de carnes que
identificam autoridades, saberes e técnicas de ver/escutar/apalpar estupros58.
Além disso, ao olhar a negação por meio desses ordenamentos legais até aqui
descritos, é necessário salientar o imbróglio gestado por mim quando, numa mesma
documentação, eu pedia acesso aos documentos periciais e ao cotidiano de atendimento
do IML. Meu interesse por observar, nos dizeres de minha documentação, “o cotidiano
de trabalho do Instituto Médico Legal em Campinas, acompanhando o trabalho de
peritos e médicos-legistas em casos envolvendo crimes de estupro e estupro de
vulnerável”, colocava também a interação perito/periciando como o cerne de meus
interesses de pesquisas.
As técnicas de “preservar a identidade das vítimas”, tal como manifesto nos
próprios dizeres do “Ofício”, carregam consigo um complemento, para cuja
qualificação eu demorei a prestar a devida atenção. O termo “atendidas” impõe tal
ambiguidade: indica aquelas vítimas cujo atendimento foi realizado e documentado, ao
mesmo tempo que discrimina aquelas em atendimento, nos dias atuais. Visto por este
ângulo, o indeferimento explicita o atendimento como um lugar mais delicado e pouco
afeito à prática da observação participante. Como descreveu astutamente o inspetor
Fernando à Letícia Ferreira (2015, p.45), “essa palavra observar vai te causar
problemas. Ninguém gosta de ser observado em seu trabalho”.
Colocado dessa forma, as estratégias sugeridas por Carvalho, expostas nos
entreatos deste capítulo da tese, pareciam eficazes e definitivas. Como eu não era
médica, o procedimento a ser realizado era aparentemente simples. Um médico, ciente

58
Nos segundo e terceiro capítulos desta tese, olharei com mais atenção para as técnicas empreendidas na
feitura dos laudos de corpo de delito, assim como às práticas pedagógicas que articulam documentos
médicos e docência/produção científica na área de medicina legal.
71

da idoneidade da pesquisadora e da pesquisa e oficialmente obrigado ao “sigilo


profissional”, selecionaria as informações cuja publicização não acarretaria problemas
éticos aos funcionários do IML. O mecanismo de seleção e de guarda, dessa vez da
própria pesquisadora, expõe uma forma de distinção e revela, a contrapelo, o
atendimento como ponto sensível e pouco negociável no que tange à pesquisa que eu
poderia desenvolver. A justificativa para tal conduta parecia estar no debate que
Carvalho e Milton haviam travado minutos depois de sua promessa de que ele
descobriria os motivos ‘menos protocolares’ tramados por meio do indeferimento.
Para elucidar os riscos implicados em autorizar ou empreender pesquisas
científicas com o material oriundo do IML, Carvalho relembrou o caso de uma colega
de trabalho que resolveu estudar um caso de estupro e mudou o nome da adolescente
atendida por ela, mas manteve a data e o local de nascimento da jovem como estavam
impressos no documento. Ao expor o caso de investigação em um evento, alguém da
plateia reconheceu a vítima envolvida no laudo descrito pela médica. Pela história
contada por Carvalho, havia no recinto algum parente da adolescente. Milton não
acreditava na “falta de sorte” da legista. Carvalho, então, arrematou com a ‘moral da
história’:

“por isso que eu falo para colegas, tem que tomar cuidado com foto,
com informação, porque isso pode ser arrolado como prova contra o
profissional. Eu falo por mim, tenho laudo de todos esses crimes
famosos. Mas vamos supor, vou dar aula e apresento o caso, mesmo
mudando o nome, todo mundo conhece. Aí tem alguém na sala, tira
umas fotos impróprias. Aí te pergunto: quem responde por isso? Sou
eu, né, que usei os dados na aula. Por isso que eu te falo, Milton, tem
que tomar cuidado!! Tem que se proteger!!”. (Aula de medicina legal,
Unicamp, 19 de janeiro de 2015).

Ao que indicava Carvalho, mesmo médicos cuidadosos podem vir a ter


problemas no que concerne à divulgação científica daqueles sobre o quais os laudos e os
atendimentos incidem. A Comissão Cientifica visava a, de algum modo, administrar tais
conflitos. Sua constituição, porém, guarda semelhanças com o próprio indeferimento
por ela formulado. Não encontrei nenhuma informação sobre a Comissão no site
institucional da Polícia Científica de São Paulo. Ainda que bastante extenso, o
organograma disponibilizado na plataforma do IML não especifica em qual setor a
Comissão estaria alocada, nem como se dá seu funcionamento. A eleição de seus
membros não é informada e sua atuação segue inexistente para qualquer leigo que
pretenda realizar suas pesquisas no IML. A busca por qualquer uma dessas informações,
72

igualmente, exige bons contatos e paciência frente à recorrente e incômoda resposta


“não sei te informar”. Aqueles que ousam falar preferem que suas opiniões sejam
designadas por meio do jargão “informações verbais cedidas anonimamente por
funcionários relacionados à instituição”.
Foi somente por meio da garantia de anonimato que algumas informações sobre
o tema me foram reveladas. Segundo tais fontes, a Comissão havia sido imaginada
como um modo de conhecer todas as pesquisas e convênios autorizados localmente por
diferentes IMLs do estado de São Paulo. Outros legistas, indiretamente, já haviam
salientado tais diretrizes no tocante a convênios realizados informalmente por diretores
do IML. Idealmente, era uma forma de regulamentar as pesquisas feitas pelos próprios
funcionários do IML, bem como facilitar que as investigações protocoladas na
corporação fossem avaliadas em função de seu “caráter científico”.
Constituída na gestão de Roberto Camargo, empossado em 2010, com o intuito
de organizar, padronizar e, portanto, regular pesquisas científicas, a Comissão, durante
essa administração buscava, por um lado, atuar frente a pesquisas que eram realizadas
com dados do IML e que acabavam por não citar devidamente a instituição. De outro
lado, procurava examinar pesquisas das áreas de ciências humanas que acabavam por
violar o “sigilo médico” expondo indevidamente imagens e informações produzidas na
instituição. Simultaneamente, a Comissão objetivava intervir sobre a natureza pessoal
que até então imperava no que tange aos direitos de acesso e sobre esse ‘outro’ genérico
denominado “pesquisas nas áreas de ciências humanas”.
A direção sob a responsabilidade de Ivan Dieb Miziara, em 2014, na opinião
anônima de tais funcionários acabou por recrudescer fortemente as políticas de acesso
gestadas pelo IML. Nesse novo cenário, a Comissão passou a figurar, definitivamente,
como barreira real às investigações antes realizadas sem autorização. As denúncias em
torno da atuação do IML59, informações que ganham repercussão nas redes de internet,
como o vídeo com a necropsia do cantor Cristiano Araújo60, em Goiás ou a história

59
No caso de São Paulo, uma rápida pesquisa nas internet indica uma quantidade variada de denúncias
sobre o atendimento e as condições precárias de trabalho na corporação. Essa face da instituição será
objeto de reflexão nas notas finais desta tese.
60
Cristiano Araújo ganhou fama devido a sua carreira como cantor sertanejo. Sua morte ocorreu no dia
24 de junho de 2015, quando retornava de um show em Itumbiara, no sul do estado de Goiás. O acidente
deu-se na BR-153, em direção a Goiânia. No veículo estava também o empresário e a namorada de
Cristiano que também faleceu em função do acidente. A necropsia do cantor ganhou as mídias eletrônicas
e até hoje pode ser vista no youtube. O IML da cidade foi acusado de ter promovido o vazamento
indevido de imagens e do vídeo da necropsia.
73

compartilhada por Carvalho, nos termos de meus interlocutores, são alguns dos motivos
pelos quais o IML tornou-se “arisco” a pesquisas e pesquisadores.
Nunca soube efetivamente se os funcionários do IML protocolavam declarações,
projetos e cartas de intenções à Comissão Científica. Como pude notar no decorrer da
pesquisa, inúmeros legistas da instituição realizavam investigações tomando como
objeto de reflexão os atendimentos, as perícias ou mesmo as fotografias produzidas em
função do cargo exercido no IML. No correr das entrevistas realizadas, outros legistas
fariam menção a especializações, dissertações e teses de doutoramento realizadas em
concomitância à prática como legistas. As aulas de medicina legal eram exemplos, ainda
mais evidentes, da relação entre IML e técnicas/formas de pesquisa. Inúmeros
palestrantes convidados por Milton e funcionários da Polícia Técnico-Científica de São
Paulo ancoravam suas palestras e aulas em casos empíricos cujas perícias haviam ficado
ao seu encargo em inúmeras unidades do IML.
Aqui, as sucintas e objetivas linhas do “Ofício” já salientam as complexas
“tramas institucionais” (GREGORI, 1999) veiculadas pelo indeferimento. Dentre a
documentação entregue por mim à Comissão, em meio aos papéis certificados pelo meu
RG, meu pelo CPF e meu registro acadêmico (RA), estava o atestado de que, como “o
responsável interno pelo projeto” eu não “era parte integrante do quadro de
funcionários do Instituto Médico Legal”. Na época de feitura desses papéis, estampados
com a insígnia da UNICAMP, eu imaginava que não ser parte dos quadros de
funcionários do próprio IML contaria a meu favor. Afinal, experiências como as de
Guaracy Mingardi (1992), de ser concomitantemente pesquisador e funcionário da
Polícia Civil do estado de São Paulo, impunham à sua pesquisa inúmeros problemas de
ordem ética. Entretanto, eu estava completamente equivocada sobre os efeitos práticos
entre ser de dentro e de fora da corporação no tocante à Polícia Técnico-Científica.
Como argumenta Bourdieu (2008), a Comissão funcionava como uma espécie de
“ritual de instituição” no tocante a minha pesquisa. Pelo termo, o autor lança luz aos
mecanismos por meio dos quais se “institui” em alguém “uma essência, uma
competência, ou imp[õem] um direito de ser” (BOURDIEU, 2008, p.100). Como
argumenta o sociólogo, tal ritual forja uma descontinuidade num contínuo, “faz[endo]
ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, lhe fazer ver que tem que se comportar em
função de tal identidade” (idem).
Se o fato de não ser formada em medicina, nem exercer qualquer profissão da
área jurídica, a princípio parecia justificação suficiente para o indeferimento, pouco a
74

pouco, outras negativas de acesso foram elucidando o caráter corporativo do IML. Os


argumentos de Carrara (1984) ressoavam profundamente nessas técnicas: identificar e
seu correlato – ter o controle de tais identificações – são um lugar de saber. Nos termos
de Foucault (2008), o aparelho administrativo (médico, policial, judiciário) não é apenas
uma dimensão “essencial ao exercício do poder”, mas é, sobretudo, um “aparelho de
saber”. Tais justaposições são visíveis, inclusive, no tipo de atuação policial esperado
pelo IML: técnica e científica.
Depois de uma quantidade considerável de encontros e entrevistas descobri que
minha solicitação de pesquisa não foi a única a ser negada pela Comissão Científica do
IML. Uma aluna da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp também teve seu
pedido de pesquisa indeferido. Estudante da área de neurociência, sua pesquisa sobre o
funcionamento cerebral a ser realizada em cérebros de pessoas mortas e necropsiadas no
IML de Campinas foi, igualmente, “negada”. Meses depois, coordenando um grupo de
trabalho sobre práticas estatais, documentos e burocracias, no Encontro de Antropologia
do Direito (Enardir), conheci dois pesquisadores cujas investigações foram barradas
pela instituição. Na oportunidade, preocupados em compreender como cadáveres
desconhecidos são administrados no necrotério do IML de São Paulo, os antropólogos,
vinculados à Promotoria Federal, optaram por empreender a pesquisa na cidade de
Brasília, no Distrito Federal. A própria secretária do IML de Campinas havia me
alertado para tais conjunturas. Naquele momento, em função de minha pueril ânsia por
dar início às minhas investigações, não dei a devida atenção aos avisos da funcionária.
Também não ponderei o que significava me comprometer, mediante documentos
pessoais e sob responsabilidade de sanções penais previstas em lei, a “incluir o nome do
Instituto Médico Legal em futuras publicações, apresentação oral, pôsteres e qualquer
outras (sic) divulgações, científicas ou não, oriundas do projeto” (Declaração sobre
publicações, abril de 2014).
O IML, como instituição científica, produz ciência. Seus quadros de
funcionários refletem exatamente a relação orgânica entre tais aparatos técnicos e a
universidade como núcleo de produção acadêmica. As fronteiras entre tais esferas são
móveis. Vista como “órgão público”, a universidade (ela mesma genérica) transita por
inúmeras nomenclaturas a depender daqueles que a enquadram. Esses enquadramentos
serão agenciados nos processos de atuação política. Como sugere Aguião (2014),
75

“(...) a “Universidade/Academia” é parte dos processos que compõem


a nossa imaginação de Estado. Não apenas porque, nesse caso, faz
parte de uma instituição pública, mas porque os seus modos de
funcionamento, a legitimidade atribuída a sua “produção acadêmica”,
passa também por construir os modelos ideais a partir dos quais
produzimos essa imaginação”. (AGUIÃO, 2014, p.123).

Se a polícia, na figura do IML, e a universidade são “instituídas” como distintas,


o “ato solene de categorização” é responsável por produzir aquilo que ele designa
(BOURDIEU, 2008, p.101). Tais técnicas serão mais bem desenvolvidas nos dois
últimos capítulos desta tese, por meio da atuação intersticial de Badan Palhares junto ao
IML de Campinas e à Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Sua história
institucional ilumina, por diferentes ângulos, o lugar policial, científico e de justiça
imaginado e imposto ao IML. Sugiro ao leitor que todos os capítulos subsequentes da
tese redimensionam, de modo desigual e particular, o não acesso como forma de
acesso. Se empreender uma pesquisa nas “ciências humanas” era uma característica
vital de minha investigação, inclusive pelos alcances avaliativos que “esmiuçar” os
laudos periciais poderiam gerar, certamente não ser de “dentro do IML” era um fato
incontornável.
Com isso, quero assinalar como o não acesso se apresenta na qualidade de
técnica policial, estatal e corporativa, com vistas a produzir algum tipo de proteção,
segredo. Como Lowenkron (2015, p. 259) formula através de um diálogo com Simmel
(2009), “o propósito de manter o segredo é, antes de tudo, proteção (...)”. Portanto,
tratava-se de etnografar o “ato de ocultar”, através de como e por meio de quais
mecanismos se ostenta as estratégias de sigilo, como técnica de restrição e,
simultaneamente, proteção. Tais estratagemas corporativos remetem, portanto, à ideia
de ser confiável.
Como sugere Simmel (2009), a confiança funciona como uma espécie de
condição intermediária entre conhecer e não conhecer. Afinal, “a posse de todo o
conhecimento poria fim à necessidade de confiar, enquanto a completa ausência de
conhecimento tornaria a confiança evidentemente impossível” (SIMMEL, 2009, p.
226). Além disso, a confiança é um valor moral que sustenta toda a rede de informações
existente na polícia e serve de medidor a todos os novos vínculos que chegam até às
portas dessas instituições policiais (RINOLDI, 2011). Eis onde se encontra o risco
nominal de autorizar que se entrelaça às técnicas de sigilo impostas ao IML.
76

A inspiração para esse argumento está no trabalho de Laura Lowenkron (2015).


Sua pesquisa, autorizada por um juiz federal, foi realizada junto à Polícia Federal do Rio
de Janeiro. Preocupada em realizar uma etnografia de como as investigações de casos de
pedofilia denunciados a essa corporação eram realizadas, os documentos e expedientes
policiais de seu interesse encontravam-se resguardos por uma “SALA RESTRITA”.
Envoltos em diferentes mecanismos de sigilo, tais acessos impuseram, à pesquisadora,
uma negociação perene sobre o que poderia ser visto, perguntado, relatado e até quando
ela poderia permanecer em tal espaço institucional. Como argumenta a autora, no caso
da Polícia Federal, o compartilhamento de certos segredos cria vínculos de confiança
que levam consigo “o gérmen, a virtualidade e o risco de traição” (LOWENKRON,
2015, p. 262). As práticas de pesquisa, de longo tempo, desvelaram, porém, que a
exibição contínua daquilo que poderia ser visto, mas era “ostensivamente exibido como
sigiloso” era calcada num “tipo de performance” a ser sistematicamente reiterada. O
mais importante e vital era reiterar, a “ocultação de informações [como coisas] que
precisam ser [realmente] protegidas”61. (LOWENKRON, 2015, p. 282).
Sustento que também o indeferimento de minha pesquisa performatiza as
mesmas técnicas de controle. Não o controle de papéis e expedientes de trabalho, ainda
que tais constrangimentos também pesem sobre corporações como a Polícia Científica.
Mas, ao contrário, tais regulações expõem duas características pouco exploradas no que
tange às noções de “delegação” e autoridade até aqui desenvolvidas. De um lado, o
caráter nominal que as insígnias institucionais recobrem. E, de outro lado, as relações de
força imposta aos IML no decurso de uma investigação criminal, na qual sua atuação é,
apenas, uma das partes dessas engrenagens policiais.
No caso da primeira característica, gostaria de dar atenção ao nome daquele (a)
que, sob a função de “membro da Comissão Científica IML/SP”, assina, indeferindo
meu pedido de acesso ao IML de Campinas. A médica legista, funcionária e membro da
Comissão Científica do IML, além dessas insígnias institucionais, também é formada
em direito, professora universitária em uma faculdade particular do interior de São
Paulo, obteve seu mestrado e seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP) e
recebia, assim como eu, financiamento pela FAPESP para projetos de pesquisa na área
de oncologia. Sua carreira entre as instâncias estatais, a docência e a pesquisa científica
destacam as múltiplas justaposições colocadas à atuação do IML e justificam a surpresa

61
Como, por exemplo, a data e o local de uma determinada diligência ou uma técnica de investigação
secreta.
77

de Carvalho diante da negação de minha pesquisa. Sua exigência em saber quem


nominalmente indeferiu meu acesso ao IML resultou em espanto: “mas é minha amiga.
Não sei porque ela negou. Ela é pesquisadora, não é contra pesquisa. Se, como
demonstra Bourdieu (2004),

“o funcionário ou o expert investidos de uma autoridade estatal são


igualmente personificações de uma ficção social a que eles dão
existência, na e por sua própria existência, e da qual recebem de volta
seu próprio poder”. (BOURDIEU, 2004, p. 168).

Sem dúvida, o “grupo feito homem”, nos termos do autor, exige que olhemos
com mais atenção para aquilo que conforma como o seu reverso. A “delegação” que
elege tal figura como o “porta-voz” do grupo esconde, em suas próprias técnicas de
constituição, o risco de ser chamado a responder nominalmente àquilo que se cede
autoridade autorizando. Seguramente, diante de qualquer problema jurídico causado
por minha pesquisa no futuro, está a carreira pessoal, com nome e sobrenome próprios,
daquela que assinou o deferimento. Aqui está recolocado o conselho de Carvalho em
torno da publicização de pesquisas realizadas nessas instâncias técnico-policiais: “tem
que se proteger”. As “cadeias de subordinação” (LEINER, 1997) protegem, portanto,
vítimas, peritos, mas também os nomes que figuram como processáveis ou passíveis de
punição institucional.
Os exemplos de tais ansiedades se proliferam em estudos realizados com elites,
burocratas ou corporações. (CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014). Seja
quando se faz necessária a autorização de um juiz de direito (LOWENKRON, 2015), ou
da chefia da Polícia Civil (FERREIRA, 2015), ou da funcionária de confiança que
afiança a idoneidade da pesquisa (LUGONES, 2014). Sustento que a correlação entre
“nome próprio” e insígnia institucional se perpetua numa espécie de estabilidade
instável. A despersonalização por meio do cargo ocupado, nos termos de Weber (1982),
convive com o caráter nominal das assinaturas62. Por isso, Carvalho era enfático em me
questionar: “qual o nome?”.
A Comissão se desfaz enquanto ente destacado e unitário e surgem, em seu
lugar, os nomes que a compõem por indicação. Por mecanismos semelhantes Milton
poderia, nominal e institucionalmente, responsabilizar-se pelo meu acesso ao IML.
62
Durante minha pesquisa de mestrado presenciei essa instabilidade instável entre nome próprio e função
policial através das ansiedades de inúmeras escrivãs quando chamadas a responder por um inquérito ou
um atendimento prestado na corregedoria da Polícia Civil. A denúncia de má conduta, ainda que
destinada a escrivã, enquanto cargo institucional, recaía sobre uma pessoa física: a escrivã com um nome
e um sobrenome.
78

“Vou conversar direto com ela. Ela é minha amiga, tenho certeza que é por falta de
alguém que certifique a idoneidade da pesquisa”. No limite, para Carvalho, Milton era
a marca pessoal necessária à versão formal, oficial e impessoal gestada em minha
documentação protocolada.
Semelhantes ao descrito por Lowenkron (2015), pesquisas estão quase sempre
imiscuídas por indicações e relações pessoais. No seu caso, tais conexões podem ser
vistas desde os encaminhamentos à Polícia Federal por delegados indicados pelas redes
pessoais de uma assessora parlamentar que facilitou seu acesso ao Grupo de trabalho na
CPI da Pedofilia em Brasília, até o delegado que recebeu a autora em seu gabinete, por
indicação de outro delegado e ex-chefe do Departamento de Direitos Humanos. Sem
esquecer, ainda, das mediações empreendidas pelo presidente da SaferNet, uma ONG de
grande prestígio entre os policiais, devido a sua atuação na já mencionada CPI da
Pedofilia.
Pelos mesmos mecanismos pessoais, supus que as insígnias acadêmicas e
profissionais, estampadas nos primeiros slides projetados por Carvalho durante sua
palestra, realizada no auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp,
seriam a solução ‘não oficial’ ao entrave formal colocado a minha pesquisa. Mas
durante os anos de meu doutorado, eu compreendi, pelos mais diferentes caminhos que
dar fiança a alguém, é se responsabilizar por essa pessoa, cedendo parte da sua
confiabilidade e sua credibilidade a ela. Essa conversa não redundou em novos pedidos
de acesso, ao contrário, acabou por reafirmar o indeferimento formal imposto à
pesquisa: e-mails não respondidos, informações fragmentadas, inconsistentes ou
contraditórias e, finalmente, a circularidade infinita às mesmas “cadeias de
subordinação” destacadas por inúmeros legistas em suas entrevistas.
E aqui, a segunda característica em torno das noções de “delegação” e
autoridade salta aos olhos. Qual o lugar institucional do IML no que tange à produção
das investigações da polícia? Como salientei na apresentação desta tese, o Instituto
Médico Legal em conjunto com o Instituto de Criminalística, forma a Polícia Técnico-
Científica do estado de São Paulo. Submetidas à Secretária de Segurança Pública, essas
corporações policiais têm uma Superintendência própria e autonomia frente às Polícias
Civil e Militar do estado. Como expresso em ordenamento já citado na apresentação, o
decreto nº 42.847, em seu capítulo II, art. 2º, define que a Superintendência da Polícia
Técnico-Científica é “um órgão técnico científico auxiliar da atividade de polícia
judiciária [Polícia Civil] e do sistema judicial”.
79

O caráter auxiliar é bastante relevante quando contraposto ao indeferimento


imposto pelo “Ofício 017/2014”. Dentre os inúmeros sentidos etimológicos conferidos
ao termo auxiliar, gostaria de destacar o caráter de “funções secundárias na realização
de um trabalho ou atividade” que o termo explicita. Como busco sublinhar no decorrer
das próximas páginas desta tese, o risco de dar autorização está completamente
imiscuído a uma condição institucional bastante particular na qual o IML está enredado.
Seu caráter de auxílio à Polícia Civil e do sistema de justiça destaca o ínfimo controle
que essas instituições têm em relação às investigações criminais empreendidas durante
um dado crime. As provas materiais e de autoria gestadas no IML e no IC,
respectivamente, como partes auxiliares nos procedimentos conduzidos pela Polícia
Civil e depois apreciadas pelo Judiciário, configuram-se como conteúdos a serem
reunidos num documento maior: o inquérito policial. Sustento que a pouca contenção do
IML – no tocante as interpretações, usos e apreciações dos documentos produzidos em
suas dependências – reverte-se em uma direção centralizadora, burocrática e,
profundamente, hierarquizada.
Como sugerem muitos dos meus interlocutores, essa forma de gestão destinada
aos agentes externos, alastra-se inclusive internamente. As “cadeias de subordinação”
proliferam “checkpoints” de controle administrativo os mais diversos. O telhado que
não é consertado porque os papéis devem galgar degraus inimagináveis até a
Superintendência. Ou a aposentadoria emperrada pelos documentos institucionais que
viajam por labirintos kafkanianos e nunca chegam ao destino desejado. Ou, ainda, o
convênio que, protocolado no “balcão” correto, vai e volta, meses ou anos, até que
aquele que registrou o pedido desista de tal empreendimento. Ao que tudo indica, o
parco controle sobre os usos daquilo que é forjado nessas corporações alimenta, por sua
vez, uma forma de administrar profundamente discricionária. Não acesso é uma forma
de proteção e de exibição ostensiva de autoridade sobre aquilo que se detém: a
produção dos documentos, as técnicas, as pesquisas e os expedientes empreendidos por
essa corporação.
Redimensionado por essas inúmeras conexões que um curto e sucinto
documento de indeferimento desvela, entendo que o sigilo não é uma meta última, nem
a revelação de sua ‘confissão’ o objetivo a ser perseguido. Ao nos fixarmos em tal
quimera, sustentamos a ideia do segredo como algo negativo; como aquilo que
80

intencionalmente é ocultado porque fantasiado como incorreto, indevido ou imoral63


(RENOLDI, 2011). Nos termos de Simmel (2009): “do mistério e do segredo que
rodeiam tudo que é profundo e importante, surge a falácia de que tudo que é secreto
deva ser também profundo e importante”. (SIMMEL, 2009, p.238). Dessa maneira, a
pergunta sobre o porquê de essas instituições estarem blindadas com “os mais
impenetráveis bastiões de gabinete” (ORTNER, 2010, p.221) parece ingênua. Esse
questionamento, quando feito, repõe a ilusão de que o conteúdo do sigilo (aquilo que ele
protege) precisa ser desvelado. Pelos mesmos procedimentos, as técnicas mesmas de
proteção de coisas, expedientes, documentos e pessoas não são tomadas como práticas a
serem minuciosamente etnografadas. Daí minha escolha por dissecar o indeferimento
através dos seus dizeres, de seus carimbos e insígnias institucionais. A negativa até aqui
constrói um IML de Campinas que não está encerrado em seu endereço e em suas
dependências físicas.
Nas páginas a seguir, buscarei mostrar ao leitor que minha opção por uma
etnografia multissituada do IML, nos termos de Marcus (2001), não foi uma escolha.
Antes, tratou-se de uma imposição incitada pelo não acesso. Ao dizer isso, contudo,
gostaria de destacar o caráter produtivo da negativa no tocante a minha investigação.
Não poder pesquisar o IML, a partir daquilo que denominamos a priori como
institucional, determinou a esta tese um tríplice deslocamento, cuja compreensão
resultou de minhas leituras de Foucault (2008). Tratei, primeiramente, de me descentrar
da instituição IML de Campinas para, em seguida, recolocá-lo dentro de um ponto de
vista global das tecnologias do poder. O que, nesse sentido, obrigou-me a investigar as
relações entre IML e UNICAMP, IML e outras instituições policiais, e, enfim, o IML e
o próprio IML, a partir de seus setores internos. Em segundo lugar, intentei substituir o
ponto de vista interno da funcionalidade do IML – produzir provas técnicas e materiais
em crimes que deixam vestígios – para pensar essa função a partir das estratégias e
táticas que recompõem uma economia geral do poder em torno da ideia de provas,
vestígios, corpos, crimes, laudos etc. Por fim, eu optei por não adotar um objeto de
investigação delimitado e dado de antemão – a perícia feita em corpos vivos – para
apreender o movimento pelo qual um campo de verdade, com certos objetos de saber,
constitui-se através dessas mesmas tecnologias movediças de poder. E isso, então,
forçou-me a abandonar o Núcleo de Perícias em vivos, enquanto circunscrição espacial,

Simmel (2009. p. 236) traduz essa ideia a partir da máxima: “(...) se o que é secreto não está ligado ao
63

mal, o mal se associa ao que é secreto”.


81

destacando os (des)caminhos que me levaram ao necrotério e a seus cadáveres, às


ossadas, aos mortos políticos, a pessoas não identificadas e ao Estado (com letra
maiúscula).
A epígrafe de Saramago (2003) no início deste tópico é, portanto, um mote e um
itinerário mais poético aos próximos capítulos desta tese. No romance do literato
português, Sr. José, funcionário exemplar e eficiente, da Conservatória Geral do
Registro Civil, entra sorrateiramente, durante a noite, no austero cartório em que é
servidor, com o intuito de completar, com uma simples data de nascimento, sua
inusitada coleção pessoal, devidamente organizada e arquivada, de recortes de jornais e
revistas de famosos: bispos, artistas, esportistas, políticos, bandidos etc. A entrada
furtiva do até então, irrepreensível funcionário, era fruto da posse de uma chave que
dava acesso ao cartório64. A chave, um evidente deslize às práticas de retenção de
acesso, era aos olhos de Sr. José, um exemplo da “inabalável convicção que o chefe da
Conservatória Geral alimentava sobre o peso absoluto de sua autoridade”. Ou seja,
ninguém desobedeceria a suas ordens e entraria, sem a sua devida permissão, às
escondidas na Conservatória, como estava a fazer o Sr. José. O prelúdio do livro, a
entrada ardilosa, todavia, acaba por enredar o Sr. José em uma trama investigativa. Ao
derrubar, por acidente e desatenção, uma das caixas de papéis da Conservatória, ele
abandona sua fixação pela data de nascimento do conhecido bispo, e se vê
completamente enfeitiçado por um, dentre todos os nomes, ali contidos. O nome de uma
estranha, anônima, cuja vida e paradeiro o Sr. José busca, dali em diante, descobrir.
As ressonâncias entre tal enredo e minha tese são muitas. Sem a chave que abre
a Conservatória Geral do Registro Civil e permite ao Sr. José fuçar os documentos
cartoriais em busca de reunir a sua coleção de “todos os nomes” possíveis
(SARAMAGO, 2003), busquei seguir junto daqueles que fazem de sua vida, e ganham
vida, através do entrar e do sair constantes impostos a essas instâncias de registro.
Dando ênfase ao caráter produtivo da negação, fui obrigada, a despeito do peso
incontornável engendrado pelas famigeradas autoridades, a forjar minhas próprias
chaves: vidas, vínculos, aulas e documentos remetidos à Polícia Civil que me foram
dados a conhecer.

64
A chave abria a porta de comunicação que ligava a casa do Sr. José à Conservatória. Tratava-se dos
resquícios de tempos passados, quando os funcionários moravam praticamente dentro das instalações do
austero cartório. Por azar ou destino, Sr. José habitava uma das últimas dessas moradias que como
memória permaneceram intactas.
82

Capítulo II. Entre laudos, necropsias e aulas de medicina legal ou dos


fragmentos pelos quais se visita o IML.

Sobre sons, cheiros e dissecações de rotina: notas sobre a arte de assistir a


necropsias

“A mais conhecida das funções do IML é a necropsia,


vulgarmente chamada de autópsia, que é o exame do indivíduo
após sua morte. Porém, este tipo de exame constitui apenas 30% do
movimento do Instituto. A maior parte do atendimento (70%) é dada a
indivíduos vivos, pessoas que foram vítimas de acidentes de trânsito,
agressões, acidentes de trabalho etc.” (Portal institucional do Instituto
Médico Legal em São Paulo).

Em abril de 2014, quando protocolei os papéis referentes à minha solicitação de


pesquisa, apresentadas no primeiro capítulo desta tese, não poderia imaginar que minhas
peregrinações institucionais me levariam às portas do necrotério de Campinas. Por mais
reticente e arredia que eu fosse em me defrontar com os odores da morte, minha
imaginação calcada em séries policiais americanas me arrastava àquilo que seria, nos
termos na própria Policia Científica, “a mais conhecida das funções do IML”: as
necropsias realizadas em cadáveres mortos em situação de violência. A entrevista
marcada com Dr. Neves, naquela manhã ensolarada, obrigou-me a lidar com minhas
reticências e imaginações. O plantão de Neves ocorria todas as semanas, no necrotério
da cidade, no Setor de Verificação de Óbitos (SVO).
À distância, eu já conseguia visualizar o portão de entrada do Cemitério Parque
Nossa Senhora da Conceição. Transpassados os muros e o portão gradeado, meus olhos
se perderam pelos gramados, árvores e flores coloridas pelos raios de sol. As campas
cavadas e cobertas pela grama rala e bem aparada evocavam, pelo menos a mim, os
melancólicos cemitérios dos filmes. A minha esquerda, um grupo de pessoas se reunia
em frente à primeira entrada do prédio, onde estava localizado o velório. Olhei, com
discrição. Pedi informações na guarita posicionada a minha direita. O guarda, muito
solícito, telefonou diretamente às dependências do IML e me indicou o caminho. O
longo corredor, ocupado por salas de velório, estava quase sem movimentação e um
funcionário já me aguardava na porta.
O cômodo por trás da porta era semelhante a uma local de espera. Mesas,
cadeiras, telefones, fax, computadores, estantes de ferro, caixas-arquivo de papelão e de
aço compunham o mobiliário. O sofá de couro cor caramelo dava um ar de acolhimento
83

ao cenário, semelhante a uma repartição pública. Nem cheguei a me sentar. Sem


cerimônias, o funcionário informou que eu devia seguir à outra sala, na qual Neves me
aguardava. A passagem pela porta dava acesso a um corredor. Eu poderia seguir tanto à
esquerda quanto à direita. Sem tempo para ter dúvidas, Neves já caminhava ao meu
encontro para me recepcionar. À direita, a divisória de escritório de cor bege dava um
pouco de privacidade à mesa com computador fixada no corredor. Sentado em frente à
mobília, o auxiliar de necropsia preenchia, com parcimônia, um livro de capa preta com
informações sobre as necropsias realizadas no último plantão. Ao lado de sua mesa,
bem à frente da entrada para a sala de necropsias, ainda no corredor, ficava posicionada
uma poltrona solitária – “a poltrona do Dr. Neves”, como meu entrevistado descreveu
com humor.
Assim, para além de todos os impedimentos impostos a minha pesquisa, ali, logo
a minha esquerda, estava a sala de necropsia. De relance, mas sem querer de fato fixar
meus olhos na mesa de aço, vi um corpo muito magro e contorcido, com as pernas e os
braços bastante retraídos e os ossos das costas e do quadril bastante protuberantes. O
cadáver do senhor de 96 anos de idade, em posição fetal, era um chamado ao olhar. Eu
podia ver, mas hesitava olhar65. Neves, aparentemente, sem se atentar para o meu
insólito incômodo, seguia muito animado, e, diante de minha resposta negativa a sua
pergunta sobre meu conhecimento em relação às dependências do Necrotério, fez
questão de me mostrar a sala de necropsia. Dali por diante, não me cabia mais a
possibilidade de não encarar os corpos ali expostos.
Na mesa seguinte, ao lado daquela na qual permanecia o idoso em “estado de
caquexia”66 à espera dos “procedimentos de rotina”, um senhor branco, já periciado,
permanecia esticado e desnudo. Os pelos de seu corpo ainda estavam molhados e um
resto de sangue mal lavado permanecia incrustrado, escorrendo por sua testa. Sua
cabeça apoiada num suporte de madeira permanecia imóvel e virada para a porta, visível

65
Faço alusão à frase de Susan Sontag (2003, p. 38), “você é capaz de olhar para isso?”. Em seu livro, a
autora incita o leitor a pensar sobre os engajamentos morais e afetivos que representações fotográficas de
guerra, com suas dores, sofrimentos e crueldades, podem mobilizar naqueles que se dispõe a olhar.
Segundo Sontag (2003), existiria prazer tanto no ato de olhar sem hesitar quanto em titubear e, por fim,
desviar o olhar de tais imagens de mutilação, despedaçamento ou morte de um ser humano.
66
Etimologicamente, caquexia é uma palavra derivada de dois termos gregos: kakos (mau) e hekis
(estado). Portanto, o termo poderia ser definido como “mau estado”. A definição médica caracteriza a
caquexia como uma síndrome complexa e multifatorial que leva a perda de peso, atrofia muscular, fadiga,
fraqueza e perda de apetite. No caso da necropsia, o idoso foi descrito “em estado de caquexia” devido a
sua magreza esquelética, fruto da perda de massa corpórea e tecido adiposo, e pela atrofia, perceptível a
olho nu, de seus membros superiores e inferiores.
84

a qualquer passante que tivesse o interesse de por ali ingressar. Era impossível não fitá-
lo.
As duas outras mesas que compunham a imensa sala seguiam vazias, limpas e à
espera. O dia, nos termos de Neves, estava tranquilo, para o “meu azar”. Não havia,
naquela sexta-feira, nenhuma “morte violenta” a ser necropsiada, pelo menos não nas
primeiras horas da manhã. Minutos depois de iniciar a entrevista com Neves, ele me
questionou sobre o tempo que levaria nossa conversa. Diante de minha resposta incerta,
perguntou se eu me importaria de adiar o início da entrevista por alguns minutos para
que ele liberasse um corpo à família, que aguardava para o velório e o sepultamento.
Sem titubear, disse que ele ficasse à vontade, que poderia esperar, sem nenhum
problema. Tamanha foi minha surpresa quando, segundos depois, ele retornou à
antessala pela qual eu havia entrado quando cheguei ao necrotério, a mesma que
escolhemos para realizar a entrevista, e me questionou: “você gostaria de assistir uma
necropsia?”.
Seguimos para uma pequena sala com armários, onde legistas e auxiliares de
necropsia guardam seus pertences de valor. Guardei minha bolsa, o roteiro com a
entrevista e meu gravador. Em seguida, um funcionário me entregou um avental e uma
touca cirúrgica. Antes de voltarmos à ampla sala de necropsia, o funcionário perguntou
se queria luvas e máscara. Com humor, achei mais prudente aceitar a máscara de
proteção. Recusei as luvas cirúrgicas, não pretendia tocar em nada. Neves sorriu e me
avisou: “se você se sentir mal, não fique preocupada, pode sair da sala”. Sua
solidariedade, fruto de sua longa experiência profissional com necropsias, acalmou
minha pueril vivência com os odores dos mortos.
Dessa vez, atravessei toda a sala de necropsia, de ponta a ponta. A luz natural,
advinda das amplas janelas localizadas a minha esquerda, contrastava com o piso
envelhecido de coloração ocre. Neves permanecia com a mesma vestimenta com a qual
me recebera: calça e camisa social, um sapato de couro e, por cima de tudo, um jaleco
‘de médico’ branco, bordado com seu nome. Vitor, o auxiliar de necropsia e o mesmo
funcionário que minutos antes preenchia o ‘livro preto’, estava praticamente
irreconhecível. Munido de óculos plásticos de proteção, máscara cirúrgica descartável,
luvas de borracha de cor amarela e um impermeável avental azul escuro plastificado,
estava a postos e com os instrumentos necessários à necropsia: bisturis, facas de lâmina
longa e curta, bandeja, balança de medida e uma serra elétrica. O corpo do idoso, morto
horas depois de dar entrada no hospital com problemas respiratórios, permanecia em
85

posição parcialmente fetal. Neves, com uma prancheta de madeira, um formulário


específico para casos de SVO67 e caneta, determinou que Vitor desse início aos
“procedimentos de rotina”.
O corpo rígido, com sinais cadavéricos evidentes, foi inspecionado. Debaixo do
cadáver magro e retraído, a água fluía em abundância. O auxiliar de necropsia
posicionou a cabeça no suporte de madeira, de modo que o instrumento ficasse
encaixado entre o pescoço e a nuca do idoso. Com destreza, cortou o topo da cabeça da
têmpora esquerda à têmpora direita. Rebateu a pele por sobre o rosto do cadáver.
Posicionei-me, do lado direito da mesa de aço, próxima à porta que dava acesso ao
corredor. O rosto do idoso permanecia inclinado para o lado esquerdo da sala, em
direção às amplas janelas. Eu, que evitava olhá-lo fixamente, só podia ver seu rosto,
agora, a partir da gordura e dos pontos de sangue da pele vista pelo seu avesso. Vitor
empunhou a serra elétrica.
O silêncio da sala foi irrompido pelo brandir do material cortante. Neves me
aconselhou a ficar afastada. A poeira e o odor de osso queimado se espalharam pelo
local. O aparelho cumpriu sua função quando todo o tampo da caixa craniana foi
removido. O cérebro foi pesado na balança digital e colocado, em seguida, na tábua
branca posicionada no final da mesa, junto aos pés do cadáver. Neves anotou o valor na
folha fixada na prancheta. Sem folga, a faca de lâmina curta cindiu a pele do tórax e do
abdômen. O corpo retraído mal se deixava ver. Sem o osso do esterno, que, junto aos
ossos das costelas, protege o tórax, os órgãos foram retirados paulatinamente e pesados
em sequência: pulmões, fígado, coração, rins, baço e um pedaço considerável do
intestino. Esse foi um dos únicos momentos em que o odor de sangue ganhou evidência.
A retirada de todos os órgãos da caixa torácica e do abdômen inundou a mesa de aço
reluzente de sangue. Tudo foi detalhado e discriminado por Neves no prontuário
destinado ao SVO.

67
O formulário destinado a casos de SVO tem aproximadamente três ou quatro páginas. São compostos
de seções e caixas de texto específicas, as quais o médico deve completar à caneta no decorrer da perícia.
Esse procedimento é tecnicamente muito semelhante aos métodos usados em necropsias de mortes
violentas (homicídios, suicídios, quedas, incêndios, acidentes de trânsito etc). O corpo todo do cadáver é
inspecionado, com atenção a três partes em particular: a cabeça, o tórax e o abdômen. A diferença,
contudo, é a de que o exame realizado pelo Serviço de Verificação de Óbito não visa à resposta dos
quesitos oficiais (se houve morte, qual a causa, qual instrumento utilizado, e se houve outros elementos de
crueldade e tortura) como no caso de “mortes violentas”. O preenchimento do formulário busca a
comprovação da causa natural da morte do cadáver encaminhado ao Serviço. Tal direcionamento é feito
em casos de falecimento sem motivo aparente da vítima, quando a mesma foi encontrada morta em sua
residência ou morreu mediante atendimento em uma unidade de saúde. Esse formulário anotado no
decorrer das “práticas de rotina” será depois utilizado no preenchimento da Declaração de Óbito, onde
consta a causa da morte, a ser entregue aos familiares do cadáver periciado.
86

Neves parecia empolgado com minha presença. Para ele tratava-se de uma aula.
Sua dedicação parecia ter nos colocado em um anfiteatro, tal como acontecia nas antigas
aulas de medicina legal, referências para sua formação e que, mais tarde, seriam
relembradas por ele em sua entrevista.
Com rigor, ele me explicou sobre as lesões presentes no debilitado pulmão do
paciente, sobre seu coração bastante conservado para sua idade avançada, sobre os
decalques presentes no cérebro, indicando um vaso sanguíneo rompido e um
derramamento de sangue na cavidade craniana. Os órgãos, de tamanhos e colorações as
mais diversas, dispostos da tábua, eram retalhados e perfurados pelos dedos de Vitor –
ordens dadas por Neves para que eu pudesse entender o aspecto e a consistência de cada
um dos órgãos.
Diante das marcas encontradas na massa encefálica, Neves pediu que Vitor
retornasse a região da cabeça do cadáver. Segundos depois, o auxiliar de necropsia
apresentava uma fina membrana removida do osso craniano com as marcas do suposto
derrame, que eu imaginava ter levado o idoso ao óbito. O cérebro, os pulmões e os rins
debilitados indicavam o óbvio, como Neves mesmo havia me segredado antes mesmo
do início da necropsia: um idoso de 96 anos, hospitalizado, com caquexia avançada,
morreu por “falência múltipla dos órgãos”. E Neves completou: “a pergunta é: por que
o médico do hospital não achou razoável assinar a declaração de óbito?! Você acha
que é necessário mandar pra SVO?!”. Impactada e um pouco nauseada, mas sem a
máscara cirúrgica descartável, apenas concordei.
Para Neves, estava encerrada a necropsia. Caberia a Vitor recolocar todos os
órgãos retalhados e investigados pelos “procedimentos de rotina” de volta ao corpo do
idoso, suturar, lavar o cadáver e entregá-lo aos cuidados da funerária, na sala ao lado.
Ali, visível a qualquer pessoa presente na sala de necropsia, num espaço com entrada
independente, estava localizada uma outra saleta, com os caixões e os instrumentos
necessários para a arrumação dos mortos periciados pelo IML68. Dali, o corpo sairia
para as salas de velório. Já disposto e à espera de mais um morto “cartoralizado69”, nos
termos de Medeiros (2012), o caixão de madeira estava aberto e alocado no suporte com
rodinhas, para facilitar sua locomoção. Quanto a mim, retornei à sala preparatória e

68
Não sei precisar exatamente o que havia nessa sala contigua a sala de necropsia. Contudo, chamou
minha atenção os caixões dos mais variados modelos e tamanhos e as coroas de flores disposta quase na
saída independente do cômodo.
69
Aqui faço menção ao efeito cartorial imposto ao trabalho do IML. Ou seja, os cadáveres periciados são
convertidos em papéis, cuja função é, concomitantemente, organizar, classificar e arquivar tais mortes.
87

retirei o avental, a máscara e a touca de material cirúrgico descartável. Tudo foi


armazenado em um grande cesto de lixo controlado. Peguei meus pertences e voltei à
antessala onde, dali por diante, realizaria a entrevista com Neves. No decorrer da
entrevista, Vitor nos interromperia para que Neves assinasse as requisições de liberação
dos corpos já necropsiados naquela manhã. Eu ouviria, também, no avançar e retroceder
do time da gravação dessa entrevista, semanas depois, o soar de bandeja, instrumentos
médicos e outros aparatos usados rotineiramente no Necrotério.
Finalmente, naquele dia, passando das onze horas na manhã, eu me despedi de
Neves com níveis variados de desconcerto e perturbação. A sensação era fruto de minha
primeira experiência com os sons, os odores e as cores da morte transfigurada em
perícia e dos mortos convertidos em periciados. As lágrimas nos olhos daqueles que
velavam seus entes nas salas de velório, localizadas entre o IML e o portão de saída do
Cemitério Parque Nossa Senhora da Conceição, arrematavam os muitos desconfortos
que eu levava comigo daquela experiência. As inspeções de rotina realizadas, anotadas,
documentadas e vistas por mim, dali por diante, sem mais “a espessura tranquilizadora
da palavra reificada” (CARRARA, 1998, p. 26), reuniam corpos vivos, pessoas e
cadáveres em contínuos e descontínuos bastante vigorosos.

Fios soltos de tramas complexas: a necropsia como pedagogia

Os muitos desconfortos que senti enquanto caminhava em direção ao portão


gradeado que dava acesso ao estacionamento do Cemitério Parque Nossa Senhora da
Conceição nada tinham a ver com a perda de um ente querido. Ainda que eu estivesse
atravessada, visceralmente, por uma infinidade de memórias afetivas, não era a morte
que me perturbava. Como bem me alertou Adriana Vianna70, as sensações que me
tomavam naquele momento – e, tempos depois, quando, em posse de meu caderno de
campo, eu retomei a cena acima narrada – nada (ou quase nada) correspondiam ao meu
enfrentamento com a morte ou com os mortos. Estes últimos moviam minha
curiosidade, porém, não se relacionavam imediatamente às miradas de minha pesquisa.
Serviam a outros fins menos analíticos e mais pedagógicos.

70
Comentário feito por Adriana Vianna, em minha banca de qualificação.
88

Eram o cheiro, o som e as texturas de um cadáver em situação de perícia médica


que me interpelavam profundamente71. O corpo frágil, cadavérico e contorcido do idoso
picotado, retalhado e inspecionado por Dr. Neves, obrigava-me a pensar sobre as
técnicas de iniciação72 a que uma aprendiz/aluna (como eu) foi submetida ao estar frente
a frente com cadáveres “frescos”.
Tal termo utilizado por um médico-legista, responsável pela organização das
visitas de alunos da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp), depois de uma aula de medicina legal, incitava diversos
estranhamentos. Na disciplina de medicina legal, os alunos do quinto ano de medicina
argumentavam com os professores do curso sobre a obrigatoriedade de frequentarem o
necrotério. Eu, que já havia acompanhado a necropsia acima referida, espantei-me com
a recusa e o impacto que alunos de medicina relatavam aos professores e também
legistas do IML da cidade. Parecia-me extremamente revelador o sentimento de
angústia relatado pelos discentes em relação às aulas práticas, mesmo depois de
cursarem, na grade de disciplina de medicina, inúmeras matérias de anatomia e
patologia. Leandro, legista responsável por organizar as visitas dos alunos, então,
explicou-me que o problema com o necrotério não residia na repulsa ou em qualquer
impacto em função do contato com a morte ou os mortos, mas na perturbação que esses
alunos (jovens e em formação) experimentavam quando postos em contato com corpos
inteiros e cadáveres frescos, com cheiros peculiares e aparências de pessoas vivas.
Tal qual eu mesma havia experienciado, o necrotério e seus cadáveres
combinavam uma gama de odores: a exalação ferrosa do sangue que inundava a mesa
de aço e escorria em contato com a água – que jorrava da mangueira, posta
estrategicamente debaixo do cadáver; o cheiro característico de produtos de limpeza
camuflado pelo miasma do osso queimado pela serra elétrica que cindia o crânio; o odor
adstringente de álcool, desinfetante e outras substâncias químicas que se desmanchavam
no ar denso e insólito – ao menos para mim - da sala.

71
Como demonstra Medeiros (2014), muitos foram os meandros pelos quais sua visão e seu olfato
passaram a se acostumar até conseguir identificar aquilo que, para os leigos, é sempre sinônimo de nojo,
repulsa, ansiedade ou medo. Os cadáveres expostos ou guardados em câmeras frigoríficas do IML; seus
inúmeros estados de conservação e dimensão obrigaram a antropóloga a questionar como tais percepções
sensoriais são centrais ao trabalho de perícia e de antropologia quando esta se debruça sobre tais sujeitos.
72
Ao usar termos como iniciação, ensinamentos ou aprendiz, eu busco delinear alguns dos deslizamentos
que os termos de dentro e de fora, descritos no primeiro capítulo desta tese, podem carregar. Menos do
que uma liminaridade, tal como tematizado por Turner (1974), dou atenção às ideias formuladas por
Bourdieu (2008) sobre noções como “linguagem autorizada” e “rituais de instituição”. Como argumenta o
autor, toda a ritualística em torno da separação entre iniciados e não iniciados mascara um dos efeitos
fundamentais dessa divisão: o próprio procedimento de separar e classificar os sujeitos envolvidos.
89

Corpos mortos que seriam, ali, abertos, perscrutados e esquadrinhados pelas


técnicas de perícia indicadas e executadas pelo IML e pelo Serviço de Verificação de
Óbito do município de Campinas. Como sugere Foucault (1979, p. 53), “para que os
vivos estejam ao abrigo da influência nefasta dos mortos, é preciso que os mortos sejam
tão bem classificados quanto os vivos, ou melhor, se possível”. Nesse sentido, é preciso
geri-los: esquadrinhando, analisando e diminuindo o perigo perpétuo que os mortos
carregam consigo; fazê-lo começa nas mesas de necropsia reluzentes e limpas e termina
no cemitério, para onde esses corpos seguirão “tão bem enfileirados quanto uma tropa
que passa por revista”. (idem).
Ao ouvir os argumentos de Leandro, rememorei minhas próprias hesitações
quando, muito jovem, acompanhei minha mãe, docente em biologia para alunos
secundaristas, ao laboratório de anatomia localizado na Universidade Estadual de São
Paulo (UNESP), em Rio Claro, São Paulo. A visita guiada era parte do currículo
destinado a alunos do sétimo ano do ensino fundamental II e almejava dar ‘carne’ às
aulas sobre as partes e o funcionamento do corpo humano empreendidas por meio de
livros didáticos, peças de plástico e desenhos ilustrativos.
Ali, o cheiro dos cadáveres picotados, em função dos distintos sistemas do corpo
humano, era tímido e completamente solapado pelo processo de conservação feito a
base de formol. Também, os corpos aos pedaços não eram frescos, ao contrário, fibras e
músculos eram entumecidos; a pele enrijecida e amarelada descolava das partes moles e
a coloração de órgãos e vísceras era escurecida e opaca. As bancadas destinadas a
deixar as amostras em exposição eram acompanhadas, uma a uma, por um universitário
em formação em biologia responsável por apresentar funções, nomenclaturas e “peças”.
A expressão “peça” desmembrava qualquer integralidade possível para pernas, braços,
cabeças e órgãos ali expostos. O apresentador, por sua vez, manuseava, sem corte ou
vestígio de sangue, a “peça”. Não era raro que um mais espirituoso entremeasse os
dedos de sua mão aos músculos de uma das pernas em exposição para que os dedos dos
pés mexessem e causassem aflição aos jovens visitantes. Adolescentes lacrimejantes,
devido ao forte odor de formol, algumas vezes saíam em disparada pela porta com
náuseas ou para vomitar. O fim da visita reservava um teste para os menos
impressionáveis e mais resistentes. Dois refrigeradores horizontais trancados a cadeado
guardavam uma surpresa. Aberta a tampa, dois cadáveres inteiros e vestidos jaziam ali
em formol. A substância química volátil instantaneamente irritava os olhos e exigia que
nossas camisas se transformassem em máscaras improvisadas. Um dos corpos, ali
90

armazenados, sorria sem alguns dos dentes, com as roupas em farrapos. As “peças”
sem cheiro de cadáver “fresco” eram, naquele instante, todavia, ainda que por um breve
tempo, pessoas.
Por contraste, a sala asséptica, as luzes brancas, as rotinas de manuseio e os
cortes no cadáver inerte do idoso na mesa de aço reluzente em nada rememoravam
minhas visitas ao laboratório de anatomia. Minhas dificuldades de olhar, de respirar
profundamente, mas, sobretudo, de permanecer ali, defronte à mesa e impassível, eram
resultado da frescura e da vivacidade do cadáver. Meus olhares de soslaio ao rosto do
senhor franzino (o periciado), tal qual Aldé (2003) durante suas entrevistas realizadas
no IMLAP, no Rio de Janeiro73, eram orquestrados aos movimentos peristálticos do
meu estômago. Meu olfato, pouco afeito à gama de odores que exalava pela sala,
relutava em se acostumar. Os (des)caminhos pelos quais esse processo de distinção
entre aulas de anatomia e necropsias se dava tinha rosto, cheiro, consistência, volume e
coloração.
O corpo inerte e sem vida, aberto e desentranhado era, portanto, um convite a
olhar, ao mesmo tempo em que carregava com ele sua exata negação: a dificuldade de
olhar (SONTAG, 2003). Eu, por curiosidade e como desafio, dali por diante abandonei
meus olhares de soslaio e passei a dar atenção às estéticas pelas quais corpos periciados,
vivos ou mortos, são manuseados, fragmentados e convertidos em documentação.
Neves, como um excelente professor, havia me enredado em um (in)digesto
desafio. Aos moldes de um chiste, aquilo era um teste do qual eu, uma aprendiz não
iniciada nas técnicas de “conversar com os mortos”74, poderia desistir a qualquer
momento. Afinal, como Neves me alertou antes mesmo de seguirmos à mesa de
necropsia: “se você se sentir mal, não fique preocupada, pode sair da sala”. Esse seu
primeiro sobreaviso deu início ao processo pedagógico levado a cabo por ele e que

73
Nos termos do autor, além do odor pútrido sentido antes mesmo de entrar nas antigas dependências do
IMLAP, na época sediado na Lapa, outras estratégias de ver (sem olhar) ajudaram na condução de sua
pesquisa. Em suas palavras, “logo em frente, na sala de necropsia, um auxiliar de cartório batia à
máquina, enquanto dois peritos acompanhavam, descontraídos, o trabalho dos técnicos de necropsia,
empenhados naquele momento em abrir dois corpos. Adotando uma espécie de tapa-olhos interior,
tentando não focalizar o que acontecia nas duas mesas de necropsia bem ao meu lado, caminhei reto até o
auxiliar de cartório, apresentando a pesquisa e anunciando a distribuição dos questionários” (ALDÉ,
2003, p. 42).
74
Faço alusão ao termo consagrado por Badan Palhares (2007), em sua autobiografia intitulada “Porque
converso com os mortos. As memórias do médico legista dos casos mais polêmicos do país: PC Farias,
Josef Mengele, Chico Mendes e outros”. Por sua vez, o título da autobiografia rememora uma entrevista
concedida por Badan Palhares à revista Veja, em janeiro de 1991, denominada “Os mortos falam”,
durante o processo de identificação das ossadas encontras na vala comum do cemitério de Perus, em São
Paulo, levado a cabo por ele e uma equipe multidisciplinar da Unicamp, junto ao extinto Departamento de
Medicina Legal da FCM. Tais enredos e casos serão delineados com vagar nos capítulo IV e V desta tese.
91

passaria a orientar meu modo de olhar para corpos e laudos de corpo de delito dali em
diante.
Neves, durante toda a necropsia, permaneceu ao meu lado enquanto o auxiliar de
necropsia realizava integralmente o manuseio do cadáver, com destreza: os cortes, a
serra elétrica, a retirada dos órgãos, sua pesagem e seu picotamento quando solicitado
por Neves. Com delicadeza, Neves antecipou a mim os momentos nos quais o cheiro de
sangue ficaria mais forte, alertou-me sobre o barulho ensurdecedor da serra elétrica e
me afastou da mesa para que fragmentos do osso craniano do periciado não me
atingissem. Aos poucos, eu estava entretida, tanto quanto ele, com os aspectos, as
consistências, os formatos e as colorações dos órgãos que, um a um, eram retalhados e
perfurados vigorosamente pelos dedos de Vitor. Os olhos, tão incomodados em olhar,
foram se ambientando. Paulatinamente, deixei de respirar pela boca e ousei inspirar
pelas narinas. Não coloquei a máscara de proteção um só segundo. Não vomitei, nem
deixei a sala de necropsia. Também não toquei, nem me debrucei, com entusiasmo, por
sobre a mesa de aço reluzente. Fiquei a meio caminho: uma participação mais
observante, por assim dizer.
Neves, também, mais observou do que participou. Em seu jaleco branco não
havia nenhum fragmento de osso ou gotícula de sangue. Suas luvas permaneciam
brancas e intactas. Por contraste, Vitor estava com os óculos sujos pelos fragmentos de
osso craniano e o avental azul e as luvas amarelas estavam tingidos de sangue. Mas, ali,
estava performada uma diferença: ao final da perícia, o formulário levado a tiracolo por
Neves estava preenchido. Ele, como autoridade médica e burocrática, conferiria
validade ao documento. A partir do papel corretamente completado por Neves com
caneta azul, Vitor fundamentaria a Declaração de Óbito por ele digitada, e que seria
posteriormente assinada por Neves e entregue para a família junto ao corpo do idoso,
agora, suturado, lavado, vestido e exemplarmente colocado no caixão de madeira pela
funerária. Mais uma morte por causas naturais - “falência múltipla dos órgãos” –
estava documentada e certificada por uma autoridade médica, com registro no Conselho
Regional de Medicina (CRM) e funcionário público de um serviço prestado por uma
entidade municipal – o SVO.
Naquela manhã de sexta-feira, em janeiro de 2015, contudo, os “procedimentos
de rotina”, mais tarde convertidos em documento oficial do Serviço de Verificação de
Óbito, contavam com uma espectadora inusitada: uma antropóloga curiosa por conhecer
92

a “vida secreta dos cadáveres”75 (ROACH, 2015). Neves, um legista experiente e astuto,
realizara comigo aquilo que ele mesmo, nos tempos pueris de formação médica, havia
vivido.

“Eu fiz Faculdade de Medicina em Vassouras, lá no estado do Rio, o


meu professor de Medicina Legal, Dr. Nilton Sales (ele era um legista
muito bem conceituado, tem livros publicados) toda segunda feira as
minhas aulas de Medicina Legal eram dadas no Rio de Janeiro, na
Rua Mem de Sá. Ali é que funcionava o Instituto Médico Legal. Então,
pegava-se, você já pensou, os fim de semanas no Rio de Janeiro o que
seria de morte violenta? Eu me lembro que ele ficava lá com os
assistentes dele, era um anfiteatro grande e os alunos ficavam
naquelas cadeiras sentados. [Larissa pergunta: a disciplina
continha a parte prática e a parte teórica]. Na minha Faculdade
tinha! Toda a segunda feira eu tinha aula no Instituto Médico Legal”.
(Entrevista realizada em janeiro de 2015).

Como sugere Foucault (1980), esse ‘que olha’ (e, eu complementaria,


documenta e certifica) deve ter sido iniciado num saber que será, simultaneamente,
ciência e modo de ensino da medicina. Era nisso que, talvez, eu estivesse sendo iniciada
e, concomitantemente, testada. Nos termos do autor, eu estava sendo colocada defronte
às “massas obscuras, com os volumes impenetráveis, com a pedra negra do corpo”
(FOUCAULT, 1980, p.134). Mas, para, além disso, eu estava sendo submetida a uma
espécie de deslocamento. Durante todo o curso de Medicina Legal, na FCM, durante o
ano de 2014, eu havia sido treinada a olhar cadáveres e perícias. As imagens projetadas
nos slides continham cadáveres queimados, despedaçados, em decomposição. Também
os poucos relatórios de necropsia que li figuravam descrições de partes, entranhas,
vísceras. (NADAI; VEIGA, 2014).
Contudo, no anfiteatro da FCM da Unicamp, “a branca visibilidade dos
mortos”76 era asséptica e silenciosa. As mediações gestadas por fotografias, slides,

75
Deparei-me com o livro de Mary Roach (2015) enquanto perambulava pelas estantes da Livraria
Cultura em Campinas. O título era um convite: “Curiosidade Mórbida: a Ciência e a Vida Secreta dos
Cadáveres”. Sem pensar muito, trouxe-o para casa. Desde então, ele se tornou meu livro de cabeceira,
uma mistura inusitada entre literatura e pesquisa científica. A autora, psicóloga de formação pela
Universidade de Weslayan (Houston), nos Estados Unidos, é especializada em ciência popular e humor. É
disso que ela trata em seu livro: os usos (muitas vezes impensáveis) pelos quais os cadáveres foram (são)
submetidos nos mais diversos contextos históricos. Sua leitura foi inspiradora no que tange as muitas
formas de narrar necropsias, cadáveres e técnicas de retalhamento de cabeças, tórax, membros e vaginas,
tal como adiante evidenciarei no terceiro capítulo desta tese.
76
A dissecação dos cadáveres, realizada por diversos médicos já no século XVII, demoraria cerca de 40
anos para irromper do interior da própria clínica. Constituía-se mediante uma litigiosa estruturação, que
resultaria em novas linhas geográficas sobre o corpo, outros modos de ler a carne. Ou seja, o acesso do
olhar médico ao interior do corpo não se tratava de uma continuação num movimento que cada vez mais
leva a medicina ao interior desses corpos doentes. Ao contrário, trata-se de uma reformulação ao nível do
próprio saber (FOUCAULT, 1980).
93

vídeos e histórias tornavam corpos e perícias palatáveis. Nas mesas reluzentes, por
comparação, tudo ganhava efeitos bastante realísticos. A crueza rotineira e
desconcertante recompunha corpos, integralidades, vivacidades. Obviamente, também,
reorganizava imagens, vídeos e slides. Um pescoço estrangulado, antes desconectado,
vasculhado e visto mediante a “espessura tranquilizadora da palavra reificada”
(CARRARA, 1998), agora, se conectava a essas finas e indeléveis sensorialidades.
Gostaria de enfatizar, no entanto, que tais sensorialidades, emoções ou sentimentos
mobilizados na e pela antropóloga não resultam de uma interioridade, natural, profunda
que emerge ao exterior por meio de lágrimas, náuseas ou aflição. Ao contrário, destaco
o caráter moral e histórico que tais terminologias incitam e carregam. Além disso,
enfatizo a pluralidade de elementos – nojo, tristeza, angústia ou repulsa – agenciados
nessas interações e a importância de pensá-los como tramas complexas, sempre
contingentes e relacionais77.
O necrotério era, sem dúvida, um bom teste à antropóloga que, curiosa pelos
mortos, olhava com detalhamento para laudos de corpo de delito realizados em pessoas
vivas e estupradas. A integralidade disposta nas mesas do necrotério zombava das
fragmentações impostas a minha pesquisa. Havia ali, portanto, inúmeros e vigorosos
deslizamentos a serem tensionados.
Ao ser iniciada na arte de assistir a necropsias, sem dúvida, poderia ter
escolhido redimensionar meus interesses de pesquisa. Como aluna de medicina legal,
teria plenas condições de abandonar os ‘vivos’ – e as proteções e autorizações a eles
necessárias – para me dedicar aos cadáveres. Dispostos na mesa reluzente e disponíveis
a serem vistos por estudantes, eles se ofereciam a esta pesquisa como um caminho
viável e, aparentemente, menos burocrático. Contudo, optei por não me ‘acostumar’
com as perícias de corpos “frescos”. Mesmo tendo consciência de que, com a prática e
o treinamento adequado eu, nos termos de Medeiros (2014), passaria a olhar um cadáver
– em perícia – com a naturalidade que Neves e Vitor o faziam por ofício, busquei dar
atenção aos efeitos pedagógicos, sensoriais e de inspeção ali colocados em evidência. A
contrapelo da vivacidade retirada do necrotério, destinei um olhar mais atento a pedaços
de carne falantes que examinados em corpos vivos, lembravam vitrines nas quais
fragmentos imóveis e autônomos se colocavam a falar.

77
Para uma análise mais detida do tema, ver Rezende e Coelho (2010), Coelho (2010) e Miller (1997).
94

A primazia do ver era tensionada por outras técnicas que, nos termos de Miller
(1997), me permitiam esmiuçar aquilo por ele designado como “anatomia do asco”. Nas
mesas do necrotério, os odores são especialmente contaminantes e muito mais
perigosos. Ao emanarem de “fontes difusas e deslocalizáveis”, os odores extraídos dos
cadáveres “frescos”, bem como suas consistências tateáveis, incitavam-me a pensar78.
Nos termos do autor,

“visão e escuta dizem respeito ao alto. São as entradas adequadas aos


prazeres intelectuais e contemplativos; cheiro (e gosto) e certamente o
toque mediante a sensação de dor são os sentidos do Inferno, talvez
porque se aproximem do nosso coração e sejam os sentidos da nossa
vulnerabilidade corporal”. (MILLER, 1997, p.75).

O impacto sensorial das técnicas de periciar – inspecionar, retalhar, esquadrinhar


e, portanto, gerir corpos – obrigava-me a por sob rasura a insistência de expressões
ancoradas exclusivamente no olhar, bem como os escrutínios carnais e eróticos
(GREGORI, 2016) mobilizados pelos olhos, mas executados com as mãos e os aparatos
técnicos que os prolongavam para as entranhas e recônditos da carne. Caso eu mesma
viesse a me esquecer das articulações indissociáveis entre olhar, ouvir, cheirar e tatear, a
necropsia estava ali para me fazer lembrar79.
Exatamente por tais imbricamentos, passei a olhar com mais atenção para os
dizeres que, retirados do site institucional do IML, servem de epígrafe para a primeira
seção deste capítulo. A necropsia, ou sua vulgata autópsia, como faceta mais conhecida
do IML, demonstra como os cadáveres são elementos nodais para a passagem entre
ciência e técnica80. São também eles que dão urdidura real e imaginária às explicações,

78
Minha inspiração para essa análise advém do trabalho de Lowenkron (2015). Sua análise, ao mobilizar
o trabalho de Miller (1997), ressalta como os sentidos se configuram como espaço moral e social, com
vistas a construir e desconstruir indícios de materialidade de crimes e criminosos. Retomarei o argumento
da autora no terceiro capítulo desta tese.
79
Segundo Miller (1997), “memória produz asco”. Porém, relembrar uma visão ou um som, não é o
mesmo que tentar acessar novamente um cheiro, um gosto ou um toque. O autor faz suas apostas ao
afirmar que não se pode, diferente da visão ou da audição, “revigorar o cheiro de forma imaginativa”. É
necessário que ele seja “desencadeado [por] uma experiência real do mesmo cheiro ou sabor” (MILLER,
1997, p.76). Durante um certo tempo, é verdade que o odor de certos produtos de limpeza me remetia ao
cheiro de osso tostado e sangue. Com o passar do tempo, os odores desapareceram, restaram apenas
estetizados em palavras e descrições etnográficas, cirurgicamente, construídas. Estas, por suas vezes,
parecem não comunicar perfumes e venenos, mas resultam muitas vezes em caretas, interjeições de nojo
ou expressões de desconsolo.
80
Como sugere Foucault (1980), há uma falsa reconstituição histórica na qual a dissecação desses corpos
mortos é vista como prática transgressora, escondida com prudência sob as penumbras das interdições
morais, religiosas e de obtusos preconceitos que impediam a abertura de cadáveres. Contudo, como
salienta o autor, o que estava em jogo eram duas figuras do saber em disputa. Por um lado, o olhar clínico
e, por outro lado, a anatomia patológica. Dessas disputas surgiria uma reordenação nada pacífica nas
práticas clínicas.
95

aos procedimentos institucionais, periciais e, claro, aos conflitos. Os cadáveres e suas


perícias, ao longo desta pesquisa, tornaram-se exemplares e pedagógicos porque, por
um lado, eram anedóticos em entrevistas, aulas, conversas informais e, de outro lado,
distinguiam iniciados e não iniciados.
Como argumenta Foucault (1980), é somente com a abertura de cadáveres que a
morte tomou seu lugar numa tríade técnica e conceitual que liga a um só tempo, vida,
doença e morte. Não se trata mais da “velha continuidade das obsessões milenares que
colocava, na vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença aproximada da morte”
(FOUCAULT, 1980, p. 165). Ao contrário, o que autor mostra é uma nova articulação
entre esses termos, agora mediante a imagem de um triângulo. Um triângulo que tem
em seu vértice superior a morte que ilumina e pode desvelar “tanto o espaço do
organismo quanto o tempo da doença” (idem). Assim, ao ocupar o ápice desse
triângulo, a morte materializada pelo cadáver inerte, aberto e disposto à dissecação
desnuda não só o conhecimento das doenças e de suas lesões, mas, sobretudo, a
“verdade” sobre a vida física do corpo humano (FERREIRA, 2009).
Um modo de ver e fazer aparecer que “envolve, acaricia, detalha e anatomiza
a carne mais individual e aponta suas feridas mais secretas” (FOUCAULT, 1980,
p.196). Esse “olhar fixo, atento [e] um pouco dilatado” que, adjetivado pelo autor
como o olho de Bichat81, constitui uma “anatomia patológica projetiva”, permite
esboçar um pontilhado. É exatamente com esse intuito que tal descrição etnográfica
abre este segundo capítulo. Os (des)caminhos de minha pesquisa desvelam as ligações
necessárias e indevidas entre esse corpo sem vida e todos os outros que, vivos, esperam
o momento de suas futuras autópsias.

Sobre trânsitos e fixações: onde aulas de medicina legal e laudos de perícia


encontram seu lugar

“O hímen é uma membrana mucosa mais ou menos permeável,


excepcionalmente imperfurada, que se apresenta no orifício inferior da

81
Bichat foi um fisiologista e anatomista francês, cuja fama se construiu por intermédio do título de pai
da moderna histologia e da patologia dos tecidos. No que tange a essa pesquisa, importa seguir os rastros
deixados por Foucault (1980) sobre sua importância vital nas transformações do olhar clínico. Como
sugere o autor, “Bichat fez mais do que libertar a medicina do medo da morte, ele integrou a morte em
um conjunto técnico e conceitual em que ela adquiriu suas características específicas e seu valor
fundamental de experiência. De tal modo que o grande corte na historia da medicina ocidental data
precisamente do momento em que a experiência clínica converteu-se num olhar anatomoclinico”
(FOUCAULT, 1980, p.167-168).
96

vagina. Não é apanágio da espécie humana, pois a fêmea de muitos


animais o apresenta. (...) A sua situação é profunda ou superficial:
profunda nas crianças; superficial nas mulheres púberes.
Morfologicamente devem ser estudados no hímen: a membrana e o
óstio. A membrana apresenta 2 faces: vaginal e vestibular – e duas
bordas: uma de inserção vaginal e outra livre, limitando o óstio”
(FÁVERO, 1954, p. 210).

Dia 25 de abril de 2015: Auditório da Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP.

São 15h50. O projetor e a tela branca, localizada atrás da mesa e das cadeiras giratórias, esperam os slides da
aula/apresentação da semana. O professor segue seus procedimentos de rotina: cada novo módulo, a primeira
aula é por ele ministrada com a apresentação dos conceitos básicos de medicina legal à matéria. Desde janeiro,
espero ansiosa pelo módulo em questão: “sexologia forense”. O uso sistemático de slides, disponível aos alunos
em uma pasta online, faz a mediação necessária entre o teórico e o prático. A aula de hoje, voltada à sexologia
forense, destaca, todavia, procedimentos cujo domínio de técnicas é parcialmente conhecido para um estudante
de medicina em formação. As imagens projetadas na tela branca impactam: hematomas na região dos olhos,
cicatrizes nos seios, braços e abdomens, pontos de sangue que escorrem pela face da vítima ou permanecem
retidos nas áreas do glóbulo ocular. Da materialidade dos corpos, a seleção de fotografias passa às feridas
psíquicas impostas pelo ato de violação sexual. Facas, revolveres e formas de coação – o silêncio, o medo ou
relações de autoridade – retratam aquilo que, na lei, é denominado como “grave ameaça”. A sequência de
projeções, com a apresentação de normativas, legislações e diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS),
não parecia animar à plateia. Os números alarmantes registrados em pesquisas e sequencialmente
apresentados em slide visavam dar dimensões mundiais ao problema: 12 milhões de pessoas sofrem algum tipo
de violência sexual todo o ano. A preocupação do professor em localizar a violência sexual a partir de
indicadores e a atuação médica num contínuo às obrigações ratificadas pelo estado brasileiro em convenções e
conferências sobre o tema, ao menos para mim, chamava atenção. O deslizamento para termos tais como
“conjunção carnal” e “ato libidinoso”, todavia, expostos nos primeiros slides da seção “Perícia”, produzia um
corte abrupto. A citação da obra de Flamínio Fávero construía o mote para um conjunto de técnicas e
ensinamentos. O hímen era o elemento diacrítico cujo formato precisava ser reconhecido e submetido à análise
forense. Um vídeo, iniciado em ato contínuo, demonstrava minuciosamente como o médico-legista deveria
proceder. A mulher estendida na maca e em posição ginecológica era periciada pelo legista e por nós que, dali
por diante, também assistíamos à técnica. A câmera focalizada entre as pernas da paciente era uma extensão
dos nossos olhos aos recônditos do corpo periciado. A filmagem escura e amadora tinha por intuito ensinar.
Afastadas, com as pontas dos dedos, as vilosidades dos grandes e pequenos lábios, a abertura vaginal deixava o
hímen em exposição. Era preciso, para tanto, decifrá-lo. A técnica era criteriosamente explicada. O vídeo era
97

picotado por meio de pausas intencionais. Os alunos precisavam treinar o olhar e reconhecer formatos e
roturas. Com a filmagem encerrada, uma coleção de imagens arrematava aquilo que se pretendia ensinar.
Himens carnosos, anulares, membranosos, íntegros ou roturados eram retratados entre pelos e peles de
tonalidades variadas. Com destaque, uma fotografia sublinhava elementos importantes para constatar a rotura.
Dividida em quadrantes, a membrana himenal rompida deixava em evidência uma gotícula de sangue junto ao
quadrante inferior direito. A lesão ainda sanguinolenta foi contraposta à imagem de um hímen roturado e já
cicatrizado. As bordas da membrana esbranquiçadas e sem rebarbas ficavam em proeminência devido à
presença de um palito de madeira que sustentava a borda inferior da membrana em exposição. (Caderno de
Campo).

Uma ficção para muitas histórias: uma entre muitas Alices82

São 11h30. Uma, entre tantas Alices, espera o ônibus. O ponto de ônibus vazio
desperta sua ansiedade. Acompanhada por sua mãe Carmem, mais uma Alice observa os
transeuntes que, com rapidez, caminhavam pelo centro da cidade de Campinas. É
reconfortante o fato de ser curto o trajeto entre a DDM e o IML. Os medicamentos,
recebidos depois do atendimento junto ao CAISM, ainda provocam um pouco de enjoo.
O veículo, além de balançar, para em quase todos os pontos. Carmem confere a cópia do
boletim de ocorrência e a “Requisição IML-Pessoa”, entregue pela escrivã, em nome de
Alice. Incomodada, uma Alice pega os papéis das mãos de Carmem. E, sem conseguir
evitar, passa os olhos numa das passagens do “Histórico” do B.O.:

“como de costume, transitava a pé na avenida [nome], foi abordada


por um rapaz, desconhecido seu, o qual mediante ameaça de arma de
fogo, foi caminhando com a vítima até a linha de trem e manteve sexo
oral, anal e vaginal”.

82
A construção do caso de uma Alice não é fruto de observações realizadas diretamente nas salas de
atendimento do IML de Campinas ou de qualquer corporação técnico-científica espalhada pelo Brasil. Tal
relato é uma ficção etnográfica e tem por base a composição de uma variedade de materiais etnográficos.
Entre eles: laudos de corpo de delito recolhidos durante minha pesquisa de mestrado realizada na DDM
de Campinas, entrevistas com médicos-legistas, conversas informais com peritos e legistas em aulas de
medicina legal, bem como fruto das muitas interlocuções entre a minha pesquisa e aquela realizada pelo
antropólogo Julian Simões. Seu material de pesquisa, recolhido junto ao Ambulatório de Violência Sexual
de Campinas, retrata alguns dos dilemas físicos e emocionais vividos por vítimas de estupro atendidas
nesse serviço (SIMÕES, 2016). Também durante minha pesquisa de mestrado escrivãs e delegadas
discutiam as falhas das redes de atendimento a tais crimes e sua parca integração. É desse contexto que
retiro as ilações entre documentos e cotidiano de atendimento. Também é em função da reunião desses
diferentes materiais etnográficos que as formas de grafar os nomes das periciadas, como mencionado na
apresentação desta tese, ganha sentido. O termo ficção, finalmente, faz alusão aos debates empreendidos
por Marilyn Strathern (2014) e será mais bem delineado, no final deste capítulo.
98

Ninguém poderia entender, mas as náuseas chegavam agora ao extremo. A brisa


quase insensível e a respirada profunda diminuíam a sensação. Era hora de descer. Os
dizeres, em destaque, estampados no prédio, não deixavam dúvidas: Núcleo de Perícias
de Campinas. A sala de atendimento abarrotada, quase não dispunha de assentos para a
espera. Enquanto uma Alice se acomodava, Carmem seguiu até o balcão de
atendimento. Uma mulher, que saía de uma das salas, visivelmente chorosa, mal foi
notada diante do falatório do ambiente. Alguns homens algemados permaneciam
separados do restante das pessoas, esperando por seus exames de corpo de delito
obrigatórios. A funcionária da recepção pede a uma Carmem a requisição fornecida pela
DDM e encaminhada aos cuidados do “Ilmo.(a) diretor(a) do Instituto Médico Legal”.
O documento digitado “solicit[a] a V. Sa. Providências no sentido de determinar a
perícia abaixo solicitada: Objetivo da Perícia: constatar lesões”. O papel discrimina
com detalhes, na seção “Características da Ocorrência”, os motivos de
encaminhamento de outra entre tantas Alices:

“Delegacia: [número] – Del. Def. Mul. Campinas


Boletim nº: [número] Flagrante: Não
Natureza: Título VI – Costumes (arts. 213 a 234) / Estupro
(art. 213) (consumado). Título VI – Costumes (arts. 213 a 234)
/ Atentado Violento ao Pudor (art. 214) (consumado).
Local: [endereço], cujo local é uma Via pública.
Circunscrição: 1º DP.
Elaborado em: 03/06/2004 às 13:28 horas.
Data Ocorrência: 02/06/2004 às 18 horas.
Data Comunicação: 03/junho/2004 Hora: 13h21”.

A atendente confirma os dados pessoais de uma Alice, contidos na seção “Dados


da Pessoa”, e verifica as informações de remessa impressas no papel: “Remeter para
DDM Campinas”. Finalmente, atesta as assinaturas da escrivã, da delegada, de Alice e
de sua mãe Carmem contidas no documento. Nos dizeres do documento timbrado com o
brasão do estado de São Paulo, além da requisição preenchida pela escrivã, também em
texto corrente, Alice e sua responsável legal davam consentimento ao “médico que
atendeu, ou diretor (do P.S. ou Hospital)”, a fornecer “cópia de [seu] prontuário
médico, ficha clínica ou similar”. A autorização, por conseguinte, permitia ao CAISM,
hospital pelo qual Alice passou para atendimento, a “revela[r] ou divulga[r] à
autoridade policial competente [tal documento], que a utilizará, tão somente, se for o
caso, para fins de elaboração de exame de corpo de delito”. A requisição, obrigatória
para a realização do exame, permitia igualmente, portanto, que o IML entrasse em
99

contato com o hospital e solicitasse, em nome de Alice, o prontuário hospitalar por eles
redigido.
Os ponteiros do relógio se arrastavam enquanto uma Alice esperava por
atendimento. Depois do que pareceu uma longa espera, por trás do balcão para
informações, um homem de meia-idade trajando branco, ostentando um jaleco com o
nome bordado, anunciou: “Alice, por favor?”. Uma sala pequena, com as paredes meio
amareladas e alguns poucos móveis, era o cenário. Carmem, num ímpeto, acompanhou
Alice que, de imediato, acomodou-se na cadeira de frente para o médico. No
computador, um laudo modelo esperava, no sistema, pelo preenchimento. Os dizeres
protocolares “Secretária de Segurança Pública de São Paulo/Superintendência da
Polícia Técnica-Científica/Núcleo de Perícias Médico-Legais de Campinas” e o brasão
do estado de São Paulo certificavam a oficialidade do encontro. Com a requisição e o
boletim de ocorrências em mãos, o legista informa à Alice que logo dará início ao
atendimento e, de modo mecânico, passa a completar as lacunas de cada formulário:
“B.O.: [número]”; “Laudo: [número]”; “REMETER PARA: [delegacia]”. Diante da
requisição, dois diferentes laudos devem ser redigidos. Os títulos centralizados, contidos
nos documentos, orientam os dois exames a serem realizados: “Laudo de Exame de
Corpo de Delito” – “Exame de Conjunção Carnal”; “Laudo de Exame de Corpo de
Delito” – “Exame de Ato Libidinoso”.
Com a fonte em negrito, o formulário de ambos os exames, de “conjunção
carnal” e “ato libidinoso”, foram completados de modo idêntico:

“Aos três de junho de dois mil e quatro, nesta de cidade de


Campinas, a fim de atender a requisição do(a) doutor(a) [nome da
delegada], Delegado(a) de Polícia do(a) DDM de Campinas, os infra
assinados, doutores médicos-legistas do Instituto Médico Legal,
procederam ao exame de corpo de delito em UMA ALICE, 15 anos
de idade, solteira, natural de Campinas-SP, filha de Carmem”.

A conversa entre o legista e Alice parecia não evoluir. As respostas evasivas e


sucintas davam o tom na interação. A frase sintética no “Histórico” era ilustrativa:
“Informa que teria sido vítima de tentativa de abuso sexual sob ameaça de arma de
fogo em 02/06/2004”83. Antes de dar início ao exame de “conjunção carnal” e “ato
libidinoso”, o legista, diante das respostas fornecidas por Alice, fez anotações sobre sua
“Menarca: 13 anos” e sua “Última menstruação: 25/05/2004”. Nada assinalou no

83
No laudo destinado à averiguação de “ato libidinoso” a descrição foi ainda mais sucinta: “Informa que
teria sido vítima de tentativa de violência sexual”.
100

círculo trigonométrico seccionado em quadrantes, disposto no canto inferior esquerdo,


contíguo às informações menstruais de Alice.
Orientado pelas queixas de uma Alice, o legista, depois de examinar com
atenção as costas da paciente, anotou na lacuna “Descrição”, de ambos os laudos:
“lesões corporais: escoriações recentes em região espinhal dorsal e lombar”. Em
seguida, solicitou que uma Alice se encaminhasse para a mesa do exame. A maca,
semelhante àquelas usadas em clínicas de ginecologia, deixava à amostra os suportes
para que Alice posicionasse suas pernas, permitindo que o legista, finalmente,
começasse o exame. Com Alice “em posição ginecológica” e um pouco desconfortável,
o médico dá prosseguimento à inspeção com o auxílio de uma assistente do sexo
feminino. Apalpa as mamas e, com a ajuda da assistente, separa os grandes lábios da
vagina e olha, com minúcia, a região interna, dando especial atenção à membrana
himenal. Em função da requisição, o legista determina que uma Alice se levante e mude
de posição. Estando agora a periciada com as pernas flexionadas junto ao peito, ou seja,
em “posição genupeitoral”, ele poderia, com precisão, discriminar qualquer lesão
visível e que estivesse presente na região anal.
Finalizados os procedimentos solicitados pela delegada, informou a mais uma
Alice que o exame havia sido concluído e o laudo seria encaminhado à DDM. Antes de
dar início a uma nova perícia, completou as lacunas que nortearam sua inspeção às
regiões ginecológicas e anais. Tratava-se de acondicionar as informações, vistas e
anotadas atrás da requisição, nas seções destinadas a cada uma delas. No exame de
“conjunção carnal” descreveu, “Colocada em posição ginecológica observamos”:

“1- Monte de Vênus: recoberto com pelos negros / 2- Genitais


externos de conformação: normal para a idade / 3- Hímen: infantil
íntegro carnoso, de orla alta, óstio de pequena amplitude, não
apresentando roturas / 4- Altura Uterina: não palpável pelo abdômen
/ 5- Mamas: nada digno de nota/ 6- Ânus: sem lesões de interesse
médico-legal”.

Em complementação às “lesões corporais” encontradas nas costas de Alice e


dispostas na seção “Descrição” do laudo, o legista esclareceu que a “exulceração
(ruptura) longitudinal em toda a extensão do assoalho do vestíbulo vaginal [seria]
descrit[a] no laudo de ato libidinoso, diverso de conjunção carnal”. A relação explícita
entre os exames foi convertida em informação no laudo de “ato libidinoso” por meio da
101

inclusão do termo “Genitais”, na seção “Colocado(a) em posição genupeitoral


observamos”, também padronizada pelo documento:

“Ânus: não apresenta nenhuma lesão XXXXXXXXXXXXXXXXX


Genitais: Exulceração (ruptura) longitudinal em toda a extensão do
assoalho do vestíbulo vaginal. XXXXXXXXXXXXXXXXXXXXXX” .

Quanto à lacuna “exame laboratorial”, ainda que o legista tenha respondido


com o termo “não”, os dizeres “o resultado segue anexo” foram discriminados em
complemento à referida seção. Olhando fixamente para a tela do computador, o legista
arrematou o laudo dando exposição às suas conclusões. Se para “conjunção carnal”, na
lacuna “Conclusão”, afirmou “Do observado e exposto concluímos que a examinada
não manteve conjunção carnal”, para o “ato libidinoso”, mediante o visto e
apresentado, ratificou: “concluímos que a examinada foi submetida a ato libidinoso
coito vestibular”84.
Da objetiva e sumária “Conclusão”, o legista passou ao econômico
preenchimento dos quesitos oficiais, obrigatórios por lei, para os exames de “conjunção
carnal” e “ato libidinoso”. Indicados logo abaixo das informações protocolares que
abrem o laudo, tais quesitos padronizados e enumerados não foram sequer relidos pelo
legista. A longa experiência no ofício era suficiente para que ele respondesse, com rigor,
aos itens elencados de 1 a 8, em casos de “conjunção carnal”, e de 1 a 7 para “ato
libidinoso”, na seção “Respostas aos quesitos” dos laudos.
“Do visto e observado”, sem titubear, respondeu “Não” à pergunta
“PRIMEIRO Houve conjunção carnal?”. Em negrito, sistematicamente anotou para os
números de 2 a 8, a máxima: “prejudicado”. Ou seja, em respostas a todas as perguntas
anteriormente elencadas, quais sejam:

“SEGUNDO Qual a data provável dessa conjunção?; TERCEIRO


Era virgem a paciente?; QUARTO Houve violência para essa
prática?; QUINTO Qual o meio dessa violência?; SEXTO Da
violência resultou para a vítima incapacidade para ocupações por
mais de trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade permanente de
membro, sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade

84
“Coito vestibular” é uma definição médico-legal. Tal tipo de penetração, tecnicamente, não se
configura como conjunção carnal – penetração vaginal através do pênis. O vestíbulo vaginal – ou
“assoalho do vestíbulo vaginal” – é a nomenclatura usada para descrever a região externa da vulva, na
qual estão localizados o orifício urinário e a abertura do canal vaginal. O hímen localiza-se no limite entre
a vulva e o canal vaginal. Diante da presença de “hímen infantil integro” e “exulceração (ruptura)
longitudinal em toda extensão do assoalho do vestíbulo vaginal”, ficou caracterizado o “coito
vestibular” e, por consequência, ato libidinoso diverso de conjunção carnal. As distinções entre estupro e
ato libidinoso serão exploradas, detalhadamente, no próximo capítulo.
102

permanente para o trabalho ou enfermidade incurável, ou perda ou


inutilização de membro, sentido ou função, ou deformidade, ou
aborto?; SÉTIMO É vítima alienada ou débil mental?; OITAVO
Houve qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de
resistir?”.

O legista automaticamente respondeu não haver elementos úteis ou profícuos a


serem ali ressaltados. Restou retornar ao laudo de “ato libidinoso” e, com a mesma
destreza e precisão, adicionar as respostas demandadas e enumeradas de 1 a 7 ao final
do laudo, agora com elementos a serem destacados:

“PRIMEIRO Houve prática de ato libidinoso? Sim.


SEGUNDO Em que consistiu? Provavelmente coito vestibular
TERCEIRO Houve violência? Sim
QUARTO Qual o meio empregado? Instrumento contundente
QUINTO Da violência resultou para a vítima incapacidade para
ocupações por mais de trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade
permanente de membro, sentido ou função, ou aceleração de parto,
ou incapacidade permanente para o trabalho ou enfermidade
incurável, ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função, ou
deformidade, ou aborto? Não
SEXTO É vítima alienada ou débil mental? Não
SÉTIMO Houve qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a
vítima de resistir? Prejudicado”.

Sem mais a realizar, o legista imprimiu o laudo e assinou acima do seu nome.
Em duas vias, o papel foi acondicionado numa pilha junto a outros laudos, à espera de
uma segunda assinatura, na seção de protocolos. Entre a requisição do laudo e sua
chegada à delegacia, a escrivã responsável pelo caso oficiou inúmeras vezes o IML:

“Pelo presente solicito a Vossa Senhoria [Ilmo. Sr. Diretor do IML]


as providências necessárias, no sentido de encaminhar a esta
Unidade Policial Especializada, com máxima urgência, o laudo de
corpo de delito [Estupro ou Ato Libidinoso] de [nome da vítima], com
requisição datada de XXX para que o mesmo seja anexado ao
Inquérito Policial nº XXX. Na oportunidade apresento meu protesto
de elevada estima e consideração”.

Assinados pela escrivã, os inúmeros ofícios viajaram rumo ao IML. Vez em


nunca, um deles voltou com o carimbo do IML de coloração azul, com a data anotada
em letra cursiva e à caneta “Recebido em __/__/__”. A comunicação resultou, tempos
depois, no encaminhamento, via malote, dos laudos nº XXXX/04. Corretamente
rubricados pelos dois médicos legistas responsáveis, os exames passaram a compor o
Inquérito Policial XXX/04. Este, finalmente, foi relatado à justiça pela delegada, em 20
de maio de 2005, depois de quase um ano de investigações. Nele, a autoridade policial
103

informava, no segundo parágrafo do texto que, dentre tantas declarações e oficialidades:


“requisitou-se exame de corpo de delito (fls. 05), o laudo nº XXX/04, às fls. 10 à 13,
concluiu que a vítima apresentava lesões corporais nas costas e na região vaginal,
tendo sido submetida a coito vestibular e não manteve conjunção carnal”.

***

Ao reunir nesta seção, uma cena, um exame de corpo de delito ficcional e um


excerto de um livro de referência para o ensino de medicina legal, intento fazer emergir
alguns dos pontos nodais de minhas reflexões daqui em diante. Tais experiências e
descrições construídas por mim resultam de distintas temporalidades e materiais de
pesquisa. A aula de medicina legal que vivenciei em meados de 2015, a história
ficcional do atendimento e os laudos envolvendo o exame de corpo de delito de uma
Alice e o excerto retirado do livro de Flamínio Fávero85, publicado pela primeira vez no
ano de 1938, portanto, entrelaçam-se e desvelam as muitas camadas narrativas
confrontadas em minha pesquisa.
Orientada pelos interesses de investigação explicitados por mim nos processos
de documentar a documentação, bem como pelo não acesso que me impossibilitou de
cruzar, oficialmente, as portas do Núcleo de Perícias do IML de Campinas, passei a dar
atenção a certas ressonâncias colocadas a esses três distintos materiais empíricos. Além
disso, as entrevistas realizadas com legistas sediados no IML da cidade também
corroboravam com as conexões entre ensinamentos e técnicas de perícia.
Inspirada pela ideia de “etnografia de interface”, tal como formulado por Sherry
Ortner (2010), as aulas de medicina legal junto à Faculdade de Ciências Médicas da
Universidade Estadual de Campinas e as entrevistas de legistas fornecem, por meio de
opiniões, casos, técnicas, vídeos e fotografias, um tipo particular de interface. Ortner
(2010), ao ter dificuldades de adentrar ao interior das produções cinematográficas de

85
Flamínio Fávero nasceu em 1895, em São Paulo. Médico de renome, deu início aos seus estudos em
1919, na recém-criada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, que a posteriori passou a integrar
aquilo que viria a ser a Universidade de São Paulo (USP). Discípulo e assistente de Oscar Freire de
Carvalho, Fávero assumiu a cadeira de medicina legal, em 1923, em função da morte precoce de Freire.
Seu livro, Medicina Legal, dividido em três volumes, foi publicado pela primeira vez em 1938. De lá pra
cá, foi reimpresso inúmeras vezes e ganhou sua última edição em 1991. Respeitado por sua escrita
bastante clara e objetiva, sua obra segue, até hoje, citada em aulas de medicina legal. A epígrafe acima
transcrita encontra-se publicada na quinta edição do segundo volume de seu tratado de medicina legal.
Dentre os capítulos reunidos nesse volume, os ensinamentos sobre sexologia forense reúnem acepções
sobre a legislação penal para esses crimes, definições, conceitos e elementos do crime no que tange à
medicina legal e, finalmente, explicações sobre às técnicas periciais a serem realizadas nesses casos.
104

Hollywood, optou por frequentar eventos públicos organizados pela indústria de cinema
– festivais, exposições e eventos produzidos junto à Universidade da Califórnia, em Los
Angeles (UCLA). Segundo a autora, tais materiais ofereciam a ela, como pesquisadora
um ponto essencial entre o mundo interior de Hollywood (inacessível a ela) e o mundo
exterior (público) voltado às produções, a seus diretores, elencos etc. Por similaridade,
ser ensinada a perscrutar himens e ânus por meio de slides, vídeos, aulas e bibliografias
médico-legais canônicas de sexologia forense foi fundamental à compreensão das
lacunas a serem preenchidas e seu de efetivo cumprimento por médicos-legistas. De
modo bastante vigoroso, tais elementos permitem, a contrapelo, confrontar os
documentos e técnicas periciais às práticas de ensino gestadas nessas instâncias.
Nesse sentido, a ficção de uma entre muitas Alices, construída por mim a partir
de laudos de corpo de delito investigados e recolhidos durante minhas pesquisas junto a
DDM durante os anos de 2009, 2010 e 2011, é paradigmática. Sua narrativa tem por
inspiração os registros oficiais de um caso ocorrido e denunciado no ano de 2004, cuja
investigação e encerramento foram realizados pela DDM, em maio de 2005. A cena
construída, exatamente por explorar papéis e sua feitura, intenta repor as conexões que a
escrita técnica de um laudo de corpo de delito invisibilizou. Para fazê-lo, utilizei dois
importantes recursos metodológicos. O primeiro ata o laudo de uma Alice à aula de
medicina legal descrita nessa seção. Daí a importância de realizar uma “etnografia de
interface”, tal qual descrito por Ortner (2010). O segundo recurso tem por material
empírico as entrevistas que realizei junto a médicos-legistas do IML de Campinas. As
entrevistas formuladas mediante roteiros abertos contavam com a seguinte pergunta:
“descreva como um atendimento e um laudo de estupro ou ato libidinoso são
produzidos”.
As respostas formuladas por meus entrevistados organizam temporalmente a
feitura de um laudo, bem como salientam as amarrações entre esse documento, outros
papéis – requisições, ofícios e ordens de serviço – e a atuação dos variados setores
internos ao próprio IML. Ou seja, buscando implodir a mística em torno da observação
participante, tenho nos termos de Forsey (2010), intuitivamente defendido que se faz
necessário advogar por uma democracia dos sentidos. Ou seja, não se trata de separar ou
privilegiar a escuta em detrimento ao ver ou de relegar às bordas da pesquisa a
importância do tato ou do olfato. A proposta do autor é, ao contrário, entender os
sentidos, buscando conceitualizar e apreender o impacto que cada um deles tem “sobre
os artifícios retóricos empregados para explicar e justificar [um]a investigação social”
105

(FORSEY, 2010, p.563). A “escuta engajada” e a “etnografia dos imaginários”86, nos


termos do autor, são centrais a minha pesquisa. Metodologicamente, elas informam as
formas pelas quais as entrevistas lançam luz a trajetórias pessoais, mas simultaneamente
desvelam práticas institucionais, procedimentos técnicos e o cotidiano de trabalho junto
ao Núcleo de Perícias do IML de Campinas.
Vistas por esse ângulo, as reverberações entre esses papéis e técnicas
pedagógicas começam nas dependências do necrotério de Campinas, apresentadas nas
seções anteriores, e se espraiam pelos circuitos através dos quais passei a circunscrever
minhas miradas a técnicas, corpos, vestígios e materialidades periciais. Os encaixes,
artificiosos por constituição, por sua vez, colocam luz às “ficções persuasivas”
construídas pelo pesquisador. Segundo Strathern (2014, p. 174), “preparar uma
descrição requer estratégias literárias específicas” porque, no limite, nenhum texto
“pode escolher escapar completamente à ficção”. É mirando os efeitos que atingem o
leitor no momento em que ele se vê enredado em novas composições de ideias –
organização interna da análise, sequência dos fatos, apresentação de conceitos e
categoria etc. – que o “arranjo do texto” se faz inevitável87. Ou seja, levando a sério o
argumento de Strathern (2014, p.175), acredito que em “uma ficção para muitas
histórias” busquei mais do que dar “vida a certas cenas”, antes arrisquei “trazer vida a
ideias” que permaneciam até então apartadas: uma epígrafe, uma aula e um documento.
Sem dúvida, a partir daqui, outros fios soltos de tramas complexas passarão a ser
alinhavados.

86
Para Forsey (2010), ambas as técnicas suportam as formas pelas quais ele e seu colega de pesquisa
conduziram as entrevistas junto a alunos, pais e professores de uma gama variada de escolas americanas.
A “escuta engajada” permitiu aos autores não apenas localizar o lugar da escola na vida de pais, de
estudantes e de professores, como permitiu aos pesquisadores conhecer o meio social e cultural de cada
um dos entrevistados. Isto para, por fim, poder fazer ligações/conexões entre a escolha educacional atual
e as anteriores de cada um de seus entrevistados. Como resume Forsey (2010, p. 568), “a observação
participante não nos teria permitido chegar a este tipo de informações etnográficas”. No caso de minha
pesquisa, impedida de realizar uma observação in loco, escutar sobre procedimentos e técnicas de
atendimento traçava as conexões fundamentais às aulas e manuais de medicina legal.
87
Como demonstra Strathern (2014), a figura de Malinowski como o autor que revolucionou a disciplina
da antropologia mediante a invenção de ideias como “holismo, sincronismo, trabalho de campo intensivo
e todo o resto” é um bom exemplo de tal inevitabilidade. Se, como sugere a autora, os trabalhos de
Malinowski podem ser colocados num contínuo de outras pesquisas que o precederam ou são
contemporâneas a ele, então, qual seria “a invenção” tão propalada em relação aos seus trabalhos?
Strathern (2014, p.180) argumenta que a “invenção residiu em como ele escreveu e especificamente na
organização do texto”. Ou seja, Malinowski, a partir do trabalho de campo, segundo a antropóloga,
“possibilitou um novo tipo de ficção persuasiva” na qual “as culturas e sociedades deviam ser descritas”.
(STRATHERN, 2014, p.180-181). Tal definição passou a inspirar e se transformou num cânone para os
estudos etnográficos que o sucederam.
106

Capitulo III. Vasculhar pedaços, produzir papéis: sobre vestígios e


técnicas de perícia88

Por entre formas e formulários: quais pedaços para quais lacunas?

Como um documento de responsabilidade da Polícia Técnico-Científica, um


laudo de corpo de delito, formulado pelo Instituto Médico Legal, antes de qualquer
coisa, é um tipo particular de papel. Papel que guarda em sua textura, as duradouras
marcas de sua impressão; riscos de tinta que se confundem com as palavras/termos
digitados e/ou datilografados com precisão em texto corrido separado em diferentes
setores e linhas a serem completadas segundo o crivo e a análise de cada médico-legista.
A introdução digitada no papel, marcada com o brasão do estado de São Paulo,
não deixa dúvidas. Logo na página de abertura, centralizado, no cabeçalho, pode-se ler
“Secretária de Segurança Pública de São Paulo, Núcleo de Perícias Médico-Legais de
Campinas" ou "Instituto Médico Legal de Campinas”. Abaixo, o número do boletim de
ocorrência (BO) e o número do laudo são seguidos, em letra maiúscula, pelo termo
“Remeter para: [Distrito Policial] - Campinas/SP”. Trata-se, aqui, de uma Polícia
específica, Técnica e Científica, que, em resposta a requisições, comparece às
investigações realizadas pela Polícia Civil89 por meio de suas conclusões médico-legais
emitidas e atestadas.
Dito desse modo, os laudos de corpo de delito realizados em mulheres e meninas
como Alices encontram-se embasados pelo Código de Processo Penal (1941), no Livro
I, sob o título designado “Da Prova”, no Capítulo II – “Do Exame de Corpo de Delito e

88
As discussões empreendidas nesse capítulo retomam algumas das análises iniciadas em minha
dissertação de mestrado (NADAI, 2012). Naquela oportunidade analisei alguns laudos de corpo de delito
dando destaque à recorrente ausência desses documentos no inquérito policial. Por contraste, nos
documentos policiais nos quais laudos eram anexados ganhavam realce os retalhamentos impostos aos
corpos ali periciados. A ideia de pedaços de carne, portanto, é caudatária desse primeiro olhar para o
material empírico que retomo aqui e hoje figura como elemento central aos argumentos construídos neste
terceiro capítulo.
89
Durante minha pesquisa de mestrado, pude acompanhar, de maneira, mais detida, o desenrolar das
investigações realizadas na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas e que tomam parte da
constituição de um inquérito policial (IP). Entre tais procedimentos, destacaria: os depoimentos de vítima,
autor (quando conhecido) e de possíveis testemunhas, bem como diligências e papéis protocolares
endereçados a setores internos da DDM ou externos a ela (IML, Setor de Criminalística ou Fórum). A
esses inquéritos são agregados ainda os laudos periciais da vítima, os antecedentes criminais do autor, os
laudos de peças, local e armas (quando existem), remetidos pelo Instituto de Criminalística, e os pedidos
de prisão preventiva executados durante a investigação policial. Em seguida, mediante Relatório Final da
delegada, essa peça policial é remetida ao Fórum (NADAI, 2012).
107

das Perícias em Geral”. Em tal texto legal, o exame de corpo de delito, direto ou
indireto, é indispensável quando a infração deixa vestígios, mesmos nos casos em que o
acusado tenha confessado o crime. O procedimento, por conseguinte, obrigatório, deve
ser realizado por um perito oficial e portador de diploma de curso superior, mediante a
requisição de “autoridade policial” ou representante do Judiciário. De modo
pragmático, como argumentou em entrevista um legista,

“Todos os exames são feitos mediantes uma requisição! Tem que


ter! Eu, legista, não posso fazer exame se não houver uma solicitação
formal do Judiciário. Que, no caso, a maioria é representado pelo
delegado. Delegado faz a requisição e a pessoa se apresenta”.
(Entrevista realizada em janeiro de 2015).

Nesse sentido, a requisição, destinada aos cuidados do “Ilmo(a). Dr(a).


Diretor(a) do Instituto Médico Legal” sob o título “Requisição IML-Pessoa”, solicita
as “providências” que deverão ser processadas pelo IML no que tange à perícia
solicitada e encaminhada em nome das vítimas pela DDM. A delegada, por meio desses
papéis protocolares, conecta a queixa lavrada no boletim de ocorrência e o laudo que
futuramente será realizado e remetido pelo IML à delegacia. A requisição também
entrelaça essas diferentes corporações: por um lado, a Polícia Civil, cuja função é a de
demandar procedimentos e respostas, e, de outro lado, o IML, cuja responsabilidade é a
de proceder ao exame e encaminhá-lo para a Polícia Civil. Esta por sua vez, une as
peças que, juntas, dão corpo à parte investigativa dos casos que chegam à delegacia. A
requisição em nome de uma Alice e o boletim de ocorrência lavrado na DDM são
elementos-chave para que o exame seja realizado.
A lacuna “Objetivo da Perícia” e a seção “Características da Ocorrência”
ilustram as replicações. No primeiro domínio, de modo objetivo e sucinto, a autoridade
policial “solicita” aquilo que deverá ser investigado: “conjunção carnal”, “ato
libidinoso”, “lesões corporais” etc. Já no segundo campo, são os tipos penais – a
“natureza” e os dados sobre os fatos – “data” e “local da ocorrência” – que orientam
a perícia: “Título VI – Costumes (arts. 213 e 214) / Estupro (art. 213) (Tentado)”; “em
___/___/___”; “Rua [endereço] – Campinas, cujo local é uma via pública”.
As informações retiradas, simultaneamente, do registro de ocorrência são, em
seguida, alinhavadas aos procedimentos médicos realizados depois do ocorrido. O
preenchimento do campo “Passou pelo PS” está imbricado ao texto que encerra a
requisição:
108

“Solicito ao médico que atendeu, ou diretor (do P.S. ou Hospital),


cópia de meu prontuário médico, ficha clínica ou similar, bem como
autorizo expressamente sua revelação ou divulgação à autoridade
policial competente, que a utilizará, tão somente, se for o caso, para
fins de elaboração de exame de corpo de delito”.

Num mesmo documento, consequentemente, a autoridade policial requisita o


exame ao IML e autoriza ao médico comum, funcionário do hospital que prestou
atendimento clínico à vítima, a enviar suas anotações protegidas por sigilo médico ao
“perito oficial” responsável pela feitura do laudo de corpo de delito. O envio, contudo,
segue o caminho inverso daquele indicado por diversos legistas. Se o legista precisa de
uma requisição forjada pela “autoridade policial” para dar início ao exame, o
prontuário produzido pelo hospital só pode ser solicitado e retirado pela própria vítima.
Esta deve se dirigir ao estabelecimento hospitalar, solicitar sua ficha clínica, para que a
mesma seja enviada ao IML pelas mãos da própria vítima. Isso resulta que, entre o
pedido e a chegada de um prontuário ao IML, o tempo de espera é de quatro a seis
meses. Nesses casos, quando o exame é realizado, mediante informações retiradas de
fichas ou prontuários clínicos, o laudo de corpo de delito recebe uma adjetivação:
“laudo indireto”90.
Completam o documento de requisição padrão, encaminhado ao IML, os
“Dados da Pessoa” a quem o exame é destinado e o local para o qual se deve
“Remeter” o laudo de corpo de delito, depois que o mesmo for finalizado. Na
requisição, destaca-se, também, o preenchimento recorrente do campo “Observações”
que encerra o documento que, assinado pela vítima, pela escrivã de polícia e pela
delegada responsável pela condução do inquérito, chega ao IML. Em uma única linha,
em continuação ao texto de solicitação destinado ao hospital, a autoridade policial frisa
aquilo que deve ser observado por meio da especificação da tipificação penal. A
terminologia técnica – “estupro e atentado violento ao pudor” – é acrescida de termos
coloquiais, colocados entre parênteses, que burocraticamente explicitam aquilo que
deve ser “observado”, tais como “sexo anal, oral e/ou vaginal”.
Como sugeri no primeiro capítulo desta tese, tais formas protocolares
materializam o lugar do IML nessa engrenagem que ata tais instâncias técnico-

90
Nesses casos, o exame procedido sem a presença da vítima é fundamentado nas observações feitas por
um outro médico que nem é perito, nem foi designado oficialmente a produzir provas e vestígios. Tal
contexto determina formas distintas de preenchimento de prontuários e laudos. Voltarei a isso no decorrer
das reflexões empreendidas nas seções seguintes.
109

científicas à Polícia Civil: um legista não escolhe realizar um exame de corpo de delito
ou tem autonomia para fazê-lo sem “uma solicitação formal”. Esse condicionante
imposto aos exames realizados em corpos vivos, mas também em cadáveres, engendra,
todavia, uma dupla valência. Daí minha escolha por deslindar aquilo que precede um
laudo. A requisição é, por seu caráter necessário, simultaneamente, uma forma de
controle e uma técnica de direcionamento. Como sugeriu um dos legistas, integrante da
equipe lotada91 no necrotério de Campinas:

“Antigamente não, mas hoje a gente só faz necropsia com a


requisição na mão. Pra saber exatamente o que o delegado quer e,
no meu caso, pra saber a história também. (...) Fazer uma necropsia
sem orientação [semblante de dúvida]. As pessoas acham que a
necropsia é que nem aquelas de filme americano né?! Que o corpo
entra nu, sem nada, e você consegue tudo que é resposta. Mas não é
desse jeito, né?! Tem que direcionar um pouco para poder procurar
umas coisas específicas”. (Entrevista realizada em março de 2015).

O direcionamento, necessário para alguns legistas e obrigatório para outros,


constitui um ponto de partida. Como ludicamente me explicou um deles: “em medicina,
a gente costuma dizer o seguinte: você só encontra aquilo que você sabe procurar. Se
eu não sei o valor de ouro, é capaz de eu pisar em cima e ir embora”. (Entrevista
realizada em janeiro de 2015).
Durante minha pesquisa junto à Polícia Civil, entre 2009 e 2011, argumentei que
há um diagrama classificatório que precede a feitura dos documentos investigativos e
protocolares que formam os inquéritos. Naquela oportunidade, indiquei como as
tipificações penais – aquilo que, na delegacia, é chamado de “natureza do crime” –
estavam suportadas em diferentes artigos penais dispostos no Código Penal de 1940.
Diante das prescrições legais que distinguiam estupros de atos libidinosos92, escrivãs e

91
A separação entre as perícias empreendidas em vivos e aquelas executadas em cadáveres, no caso de
Campinas, por um lado responde ao volume de laudos a serem produzidos, bem como, as instalações
necessárias para o manuseio e acondicionamento dos cadáveres. Como apresentei no capítulo anterior, o
necrotério, emprestado pelo município, dispõem de entradas independentes, salas com luz natural,
acomodação para legistas em noites de plantão, assim como, câmeras frigoríficas para conservação dos
corpos. Por outro lado, se a pragmática organiza as esquipes, também, aptidões e interesses pessoais
exercem seu papel e consolidam a alocação individual de cada legista ou no núcleo de perícias ou no
necrotério. Essas injunções, contudo, não impedem trânsitos entre esses dois lugares e entre as cidades
que abrangem a região sob responsabilidade de Campinas.
92
Entre os anos de 2004 e 2005, estupro estava definido pelo artigo 213 e atentado violento ao pudor
(AVP) pelo artigo 214, ambos disposto no Código Penal de 1940. Pelas definições legais, "estupro é
constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, enquanto, AVP seria
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique
ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (CÓDIGO PENAL de 1940, 1998). Tais tipificações só
vieram a ser alteradas em agosto de 2009, momento no qual essa distinção jurídica foi revogada.
110

delegadas narravam de diferentes formas, aquilo que genericamente poderia ser


rotulado, por leigos, como violência sexual. Tais procedimentos começavam nos
boletins de ocorrência, mas se espalhavam pelos mais variados artefatos documentais
produzidos pela Polícia Civil – termos de declaração, auto de qualificação, relatórios
etc.
Naquela argumentação, expressões tais como “conjunção carnal”, “ato
libidinoso”, “mediante violência ou grave ameaça”, “constranger mulher” e
“constranger alguém” eram elementos jurídicos que amparavam e restringiam a
atuação dessa corporação. Essas “restrições categoriais impostas pela legislação”,
contudo, eram manejadas nesses papéis, ora reafirmando o termo jurídico, ora
convencionando outras formas narrativas. Termos como: “dedo na vagina”, “pipi” no
meu bumbum, “relações sexuais”, “com arma de fogo” constituíam formas narrativas
distintas, ainda que todos eles resultassem juridicamente em apenas duas tipificações
penais: “estupro”, no então, artigo 213 do Código Penal, e “atentado violento ao pudor”,
no então, artigo 214 do mesmo Código. (NADAI, 2016).
Na contramão dessas características, os laudos de corpo de delito são
profundamente arregimentados pelos elementos jurídicos retirados da lei e convertidos
em noções médico-legais. “Conjunção carnal” e “ato libidinoso” são os vestígios que
darão, através do IML, materialidade a delitos de estupro e atentado violento ao pudor.
No primeiro caso, “conjunção carnal” remete a um conceito restrito, penetração
vaginal por pênis, excluindo assim outras formas de sexo – anal, oral, intermamas,
interfemural, uso de dedo, mão, outro objeto com formato peniano – dildos, próteses ou
vibradores – ou outro tipo qualquer de objeto. Já o segundo caso, o “ato libidinoso”
congrega uma gama variada de intercursos – vestibular, oral, anal, masturbação – e
carícias – beijos, chupões, toques etc.
Argumento, portanto, que as distinções jurídicas entre estupro e ato libidinoso
replicam-se em conceitualizações da medicina legal para a matéria. Os manuais e
tratados canônicos à disciplina, como o formulado por Flamínio Fávero, explicitam essa
correlação. Primeiramente, Fávero (1954) disserta sobre os conceitos jurídicos e suas
premissas formuladas por intermédio do Código Penal. Em seguida, apresenta o
conceito médico-legal construído em resposta à noção jurídica, bem como os
procedimentos que norteiam a perícia para o crime elencado.
Se parece difícil precisar ou reconstruir as relações de causalidade entre o
conceito jurídico e sua acepção em matéria médico-legal, no entanto, é fundamental
111

demonstrar como tais conceitos estetizados no subtítulo do documento, centralizado e


em caixa alta, “Exame de Conjunção Carnal” e/ou “Exame de Ato Libidinoso”,
sublinham uma qualidade formal que precede a autonomia daquele que produz o
laudo93. Estamos envoltos em qualidades estéticas muito particulares. A forma-
formulário, como um modelo padrão ou uma matriz, resulta, nos termos de Riles
(2001), em técnicas de escrita autocontidas que limitam, constrangem e estimulam
certas formas de preenchimento.
Ou seja, enquanto a requisição delimita o que deve ser investigado nos corpos;
por correlato, “conjunção carnal” e “ato libidinoso” circunscrevem posições de exame
que, por sua vez, são formalizadas por meio de sínteses textuais: “Colocado(a) em
posição ____________”. O preenchimento da lacuna com as expressões
“ginecológicas” e “genupeitural” marca tudo aquilo que deve ser visto, concluído e,
finalmente, respondido mediante os quesitos legais elencados obrigatoriamente em
todos os exames periciais realizados. São, dessa maneira, cadeias de determinação que
atam exames às investigações policiais e, no futuro, a resoluções judiciais em processos
penais tramitados no Fórum de Campinas.
No primeiro caso, por “ginecológico” o legista deve perscrutar toda a genitália
da vítima, mas deve dar atenção, também, às mamas e ao ânus. Esses últimos são
coadjuvantes nesse tipo de exame. Isso porque, nos termos de Fávero (1954, p. 232), o
legista, nesse tipo de exame, deve “diagnosticar a cópula”. Essa sim é decisiva na
possível definição da figura jurídica: “estupro”. Para tanto, o legista deve avaliar a
rotura himenal, a presença de esperma na vagina e a existência de gravidez. Fazê-lo,
portanto, implica em colocar em operação uma forma de narrar o estupro por meio do
“hímen”, dos “genitais em conformação”, das “lesões de interesse médico-legal” na
“altura uterina” e em outras partes corpóreas externas – membros, dorsos, cabeças etc.
Exige, também, anexar exames laboratoriais, proceder à coleta de secreção vaginal ou

93
A dificuldade em precisar tais relações de causalidade ou origem fica ainda mais evidente diante do
comentário de Nucci (2014) à parte do Código de Processo Penal destinada à especificação “Da Prova”.
Segundo o autor, em exames de corpo de delito destinados a crimes sexuais, “apesar da introdução de
novos tipos penais e da modificação de redação de outros [devido à lei 12.015/2009], nenhuma alteração
houve no tocante ao exame de corpo de delito (...)”. Uma genealogia sobre as conexões entre saberes
jurídicos e saberes médicos para os casos de crime sexual seria fundamental, contudo, fugiria
sobremaneira às intenções desta tese. Tal empreendimento foi de algum modo delineado pelos
investimentos de pesquisas realizados por Antunes (1995). Para conhecer mais acerca das relações entre
direito e medicina e da constituição da medicina legal ver: Carrara (1998), Corrêa (1998) e Schwarcz
(1993).
112

requisitar, em casos de suspeita de gravidez, um ultrassom junto ao hospital que deu


atendimento clínico à vítima.
O termo ginecológico, portanto, tal como estetizado, incita o leitor a pensar nas
conexões entre essas duas especialidades: a sexologia forense e a
ginecologia/obstetrícia. As ressonâncias são inúmeras e algumas delas irão nos levar,
nas próximas seções deste capítulo, ao protagonismo dos himens. Como demonstra
Rohden (2002), a especialidade de ginecologia surge com mais força durante o século
XIX, em estreita relação com os avanços da própria medicina clínica e cirúrgica; a
assepsia, a antissepsia e a anestesia revolucionaram a medicina em geral e foram
“condições técnicas básicas” para que essa nova especialidade emergisse. Imiscuída às
técnicas de obstetrícia, a ginecologia como um ramo autônomo é tributária das práticas
de cirurgia que pouco a pouco instalavam-se na medicina em geral. Definida como
“ciência da mulher”, a ginecologia passou a figurar como parte de um projeto
classificatório mais amplo, no qual a “história natural da raça humana” exigia que as
singularidades do sexo e do corpo feminino fossem desvendadas (ROHDEN, 2001). Ou
seja, os aspectos ginecológicos decifrados pelos procedimentos forenses, sem dúvida,
entrelaçam-se aos saberes da ginecologia, intervindo no corpo feminino para além de
medidas de “simples cuidados dos órgãos reprodutivos” e de suas “patologias”.
Entrelaçados àquilo que apresentei no primeiro capítulo desta tese, os órgãos sexuais
femininos perscrutados por espéculos, mãos, hastes flexíveis e olhares forenses podem
ser alinhavados a outras técnicas de identificação e classificação, tais como a
craniometria ou a pelvimetria. (ROHDEN, 2001, p. 55-56).
No segundo caso, são os “toques e manobras libidinosas” – o coito anal, oral
e/ou em outras “sedes” (intermamas, interfemural etc.) e as carícias – nos termos de
Fávero (1954), que devem ser investigados. Por mais excêntricos que pareçam os
conceitos utilizados pelo autor, tecnicamente, os mesmos procedimentos periciais eram
realizados sobre o rótulo de “ato libidinoso”, nos laudos com que me deparei em minha
pesquisa de mestrado, produzidos entre os anos de 2004 e 2005. Formalmente, o legista
deve destacar a existência, caso haja, da presença de mordidas, arranhões, toques,
esfoliações, marcas e/ou manchas encontradas no corpo da vítima. Em seguida, é a
“posição genupeitoral” que define o tipo de exame que o legista deve executar; a
vítima com os joelhos encostados no peito, deixará em evidência o ânus, cuja inspeção é
obrigatória e deve ser feita com minúcia.
113

Vistas desse ângulo, as fórmulas textuais evidenciadas nos laudos de corpo de


delito têm como ponto de partida um diagrama legal que é convertido em uma acepção
médico-legal. Essa última resulta numa representação formal: a forma-formulário. A
imbricação de todos esses elementos formais resulta na economia textual que determina
a aparência (a forma) de um laudo. Ou seja, distante dos imaginários retratados em
filmes e séries norte-americanas, em que se procura por tudo e qualquer coisa, a perícia,
por contraste, tem uma direção e um formato. A forma-formulário que precede e
delimita o exame, explicita tal orientação. As seções do documento incitam o legista a
orientar seu olhar para as regiões “ginecológicas” e “genupeitoral”, resguardando a
integralidade do corpo ao preenchimento do campo “lesões corporais”, exposto junto à
seção “Descrição” do formulário. Em oposição à liberdade descritiva encorajada nesse
tópico, – toda e qualquer “lesão corporal” pode e deve ser enumerada – “colocada [a
vítima] em posição ginecológica e/ou genupeitoral”, o legista está obrigado a somente
complementar o roteiro exortado pelas características estéticas do documento. O estilo
protocolar instituído por intermédio de tópicos autocontidos e enumerados de 1 a 6, no
caso dos exames de conjunção carnal e por meio de um campo específico – “ânus” –
para os exames de ato libidinoso, concomitantemente, fragmenta e esmiúça as partes
genitais do corpo, dando centralidade a elas.
No primeiro caso, a enumeração de 1 a 6 perscruta a região genital, do externo
ao interno, resguardando as últimas numerações às adjacências daquilo que perfaz os
aspectos ginecológicos. Do “Monte de Vênus” à “Altura uterina”, é preciso descrever
os “Genitais Externos de Conformação” e o “Hímen”. Em ato contínuo, as “Mamas”
e o “Ânus” arrematam a inspeção criteriosa. Chama atenção, nesse sentido, que mesmo
diante do “conceito restrito” imposto à prática de “conjunção carnal”, no exame, o
“ânus” figure como um pedaço importante, ao ponto de receber uma numeração em
separado.
Por procedimentos semelhantes, no segundo caso – no campo específico “ânus”
– independentemente, da queixa ou do “Histórico” transcrito em laudo, tal orifício,
colocado em evidência pela “posição genupeitoral”, deve ser inspecionado e as lesões,
encontradas nele, elencadas livremente. Ao contrário dos exames de conjunção carnal,
porém, nos exames de ato libidinoso, os genitais não aparecem como elementos
obrigatórios a serem descritos. Fica, portanto, a critério do legista, a inclusão do campo
“Genitais” que é, por iniciativa, digitado em laudo, como o que ocorre no caso
114

envolvendo uma Alice. Fazê-lo, reforça aquilo que nas próximas seções descrevo como
materialidade/vestígios.
Em contraste à fórmula dissertativa que sustenta e preenche os “termos de
declaração”, “auto de qualificação” ou relatórios policiais produzidos pela DDM, o
formulário enquanto recurso estético setoriza, demandando um estilo narrativo objetivo
e direcionado. Ou seja, se, na DDM, chavões tais como “sabendo ler e escrever,
informou que na data dos fatos (...)”; “comparece nesta unidade (...)”; “instaurou-se o
presente feito (..)” encorajam escrivãs e delegadas a contar histórias (NADAI, 2016), a
forma-formulário impele legistas e peritos a soluções textuais breves e comedidas.
Como sugere Strathern (2006), ao se debruçar sobre declarações de missão
universitária divulgadas por instituições acadêmicas em resposta a órgãos
governamentais e ao público em geral, o formato de “bullets” é uma técnica
comunicacional específica. Como uma coleção de pontos fechados em si mesmo, cada
elemento é graficamente delimitado por intermédio de marcadores autônomos: pontos,
asteriscos, pequenos retângulos ou losangos. Sem uma trama narrativa ou
argumentativa, os pontos não permitem ao leitor recompor as políticas de compilação
ali constituídas, bem como é irrelevante a ordem pelas quais os itens são elencados,
podendo inclusive ser misturados sem que, com isso, ocorra qualquer perda de sentido
da informação veiculada por essas declarações.
A autora argumenta, todavia, que o formato não é um “dispare inofensivo”. Ao
contrário, as declarações de missão quando comunicadas, por meio de listagens, minam,
exatamente, meios textuais pelos quais, academicamente, investimos esforços para
executar os objetivos pregados nesses documentos: produção de conhecimento, ilações
argumentativas ou técnicas de construção de problemas. Sustento que os mesmos
questionamentos críticos poderiam ser empreendidos na análise formal dos laudos de
corpo de delito. Tanto na listagem seguida, enumerada e sempre completada quando a
vítima é “Colocada em posição ginecológica”, quanto em função dos domínios
estanques que apartam a queixa empreendida pela vítima, do exame realizado e das
conclusões que correlacionam tais seções do documento.
Inspirada pelas reflexões de Strathern (2006), gostaria de enfatizar o caráter
pouco narrativo imposto aos laudos e sua refração a leituras lineares, causais e/ou
relacionais; com começo, meio e fim. Graficamente, eles estimulam que diferentes
pontos, autônomos e contidos em si mesmos, sejam enumerados, mas sem explicitar,
contudo, as correlações entre os pontos da listagem ali construída. Tal padrão
115

documental está incorporado por aquele que realiza seu trabalho, feito em papel, como
no caso de uma Alice, ou em versão informatizada, como ocorre atualmente, mediante o
uso do sistema “Gestor de Documentação e Laudo (GDL)”94. Os legistas, por sua vez,
ao preencherem a lista, não refutam seu formato imposto, ao contrário, cotidianamente
reafirmam seu preenchimento protocolar e necessário.
Nesse sentido, a padronização, por meio da forma-formulário, já estava em uso,
mesmo antes de uma plataforma intranet da polícia se tornar realidade por intermédio de
computadores e versões digitalizadas. Como destacaram os legistas, cada estado da
federação tem um modelo de laudo que deve ser seguido. Dos modelos pré-formatados
em papel às lacunas fornecidas pelo “GDL”, o formato impõe um caminho a ser
percorrido. Como todos os legistas didaticamente me explicavam: “todo laudo tem o
Histórico, o Exame, a Discussão e a Conclusão e nessa Conclusão, os quesitos oficiais
que você responde”. Tratam-se, aqui, de camadas que vão, sistematicamente, sendo
sobrepostas e atadas de modo a ser improvável que o legista disserte livremente sobre o
“visto e observado”.
O próprio manual técnico-operacional para médicos legistas do estado de São
Paulo, publicado em 2008 pelo Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo,
o CREMESP, reforça essa premissa. O compêndio, construído em parceria com os
Institutos Médico-Legais do estado e com a Associação dos Médicos-Legistas de São
Paulo (AMLESP), é dividido em mais de vinte e cinco capítulos e recobre uma vasta
gama de perícias realizadas pelos IMLs no estado de São Paulo: necropsias variadas,
exame de lesão corporal, odontologia legal, psiquiatria forense, sexologia forense,
embriaguez, exames complementares, indiretos ou pareceres médico-legais etc.

94
Como meus entrevistados me explicaram, era comum o legista realizar o exame, fazendo suas
anotações junto à requisição encaminhada pela Polícia Civil. A digitadora, por sua vez, ordenava as
informações nos modelos pré-formatados do laudo. Nesse sentido, a informatização foi processual e um
árduo desafio. Afinal ainda, em meados de 2004, os legistas, sem habilidades com as exigências hoje
corriqueiras de trabalho, contavam com a ajuda de uma digitadora, responsável por informatizar os laudos
ali realizados. Os expedientes de trabalho, sem banco de dados, eram dependentes de papel, caneta e
livros onomásticos. A busca por um laudo poderia ser uma verdadeira saga e exigia a data de feitura e o
número do laudo para que o mesmo fosse encontrado em uma dezena de livros onomásticos de busca.
Ainda que mais prático, o atual sistema, conhecido como “GDL”, segue, ainda hoje, não integrado a
outras polícias do estado de São Paulo. A crítica de todos os legistas a plataforma é a mesma. Em função
da não integração, é necessário que, durante o exame, digite-se inúmeras vezes as mesmas informações,
que se acessíveis a todos, poderiam ser facilmente retiradas de documento a outro, como a requisição
policial ou o boletim de ocorrência, com eficácia e rapidez. Por contraponto, a possibilidade de emitir o
laudo com assinatura digital é vista pelos legistas como um avanço, ainda que caiba ao legista a
impressão do mesmo e seu encaminhamento ao setor de protocolos cuja função é redistribuir, mediante
malote, o mesmo às delegacias especificadas na lacuna “remeter para” dispostas no laudo.
116

Dos trinta e quatro autores convidados a participar do projeto, apenas três não
eram professores da Universidade de São Paulo (USP) ou funcionários do IML da
capital. Especialistas em algumas das áreas elencadas pelo manual, os autores buscaram,
de modo simples e objetivo, orientar a perícia a ser realizada e determinar fórmulas
textuais com o intuito de padronizar o preenchimento de laudos e pareceres médico-
legais. Chama atenção, todavia, que elencados os autores nas primeiras páginas do
manual, a autoria de cada capítulo segue, porém, completamente invisibilizada.
Quanto ao conteúdo do manual, agrupadas no capítulo destinado à “Sexologia
Forense”, as perícias em casos de “ato libidinoso” e “conjunção carnal”,
fundamentais a esta tese, dividem espaço com temáticas como “aborto”, “contágio
venéreo” e “confronto genético”. Para cada um dos temas apresentado um padrão
narrativo é colocado em operação. É feita uma “introdução” sobre os procedimentos de
exame, seguida por um “roteiro teórico” e pelo “enquadramento legal” (tipificação
penal) da perícia a ser realizada. Apresentados os respectivos “modelos” formais de
laudo, as seções seguintes dissertam sobre como se deve proceder e reverter em texto o
conteúdo da “perícia”, dos “exames laboratoriais” a serem requeridos e da “conclusão
e dos quesitos” a serem respondidos. Encerram a explicação, dados sobre o “destino”
do laudo e os “comentários” laterais importantes à matéria. Ao descrever genericamente
a estrutura textual empreendida na publicação, gostaria de lançar luz ao efeito
ambivalente gestado pelo manual. Se ele é concebido como fundamental à
“padronização” dos exames e perícias realizadas, é curioso como os laudos produzidos,
mesmo antes de tais diretrizes, já estavam em completo acordo ao recomendado pelo
manual95.
Ao aludir à referida publicação, estou sugerindo que, a forma graficamente ali
designada, por intermédio de modelos e fórmulas textuais, instrui e antecede a prática
forense. As lacunas diagramadas em laudo, as listagens enumeradas do que deve ser
perscrutado e as textualidades como “sem lesões de interesse médico-legal” ou
“apresenta hímen (...)” já estavam, desde sempre, sendo executadas. Como fica claro
na aula de medicina legal vivenciada por mim, o exame e sua produção formal são

95
Chamo atenção à semelhança desse manual com aquele escrito por Flamínio Fávero e citado
anteriormente, para retirar dessa confrontação, suas diferenças. Entre elas, o caráter menos científico e
mais pragmático e técnico imposto ao manual do CREMESP e seu esmero em não apenas definir como o
exame deve ser executado, como sugere o tratado de medicina legal de Fávero (1954), mas,
fundamentalmente roteirizar e restringir fórmulas textuais e de preenchimentos possíveis aos modelos
formais dos respectivos laudos ali anexados.
117

técnicas ensinadas cujas ressonâncias remontam aos cânones da medicina legal, mas
também aos manuais, ao ofício diário junto ao IML e a diretrizes corporativas.
Em diálogo estreito com a pesquisa desenvolvida por Riles (2001)96, posso dizer
que a forma-formulário resulta num modelo gráfico insistentemente replicado no IML
ao longo do tempo. Sua manutenção, a depender de mudanças jurídicas em torno da
tipificação para crimes sexuais ou de publicações que visam a padronizar a atuação,
reforça um tipo de prática documental intencional e irrefletida simultaneamente. No
caso empírico desenvolvido por Riles (2001), a “forma matriz”, muito utilizada por
organizações não-governamentais (ONGs) e agências internacionais, impõe um tipo
característico de design e preenchimento. Tais tabelas são estruturadas pela disposição
de linhas e colunas, numericamente infinitas, que determinam entidades autônomas.
Essas, em formato retangular, empilhadas umas sobre as outras, delimitam espaços
vazios a serem completados por aquele que interage com o documento: entidades,
ativistas, delegados de conferências públicas etc. Sempre orientado à ação, os pontos
enumerados na coluna da esquerda, os “problemas” a serem debatidos por esses
sujeitos, norteiam o preenchimento (quase) compulsório dos espaços vazios distribuídos
das colunas seguintes da tabela.
O formato restrito e em tópicos é, por conseguinte, direcionado também para
cada caixa de texto que, da esquerda (“dos problemas”) para a direita (ações),
arregimenta as diferentes “soluções institucionais” a serem debatidas e anotadas no
documento. Os participantes dessas conferências, ao se relacionarem com a necessidade
de responder ao modelo imposto pelo formato do documento, não buscam questioná-lo
ou reformulá-lo. Ao contrário, como salienta Riles (2001), delegados, ativistas e
entidades são levados a preencher as lacunas respeitando a divisão formal pré-definida
pela própria estrutura de linhas e colunas da “forma matriz”. Direcionados por tais
experiências gráficas, numa espécie de mimese, eles replicam, para cada espaço vazio
contido na tabela, um mesmo gênero textual. Preencher o vazio, mesmo que seja com
desenhos sem sentido descritivo imediato, é um imperativo executado e formalizado
insistentemente.

96
Preocupada em etnografar a relação entre agências de ajuda internacional, gabinetes governamentais e
ONGs, a autora se dedicou não só a compreender as redes de atuação imbricadas por esses diferentes
atores, como diferentes artefatos materiais forjados em conferências, instituições e eventos internacionais.
Além disso, ao se debruçar sobre um “conjunto [variado] de práticas informativas”, Riles (2001) interpela
temas consagrados das ciências sociais, tais como: ação coletiva, atuação política, formação de redes
institucionais, financiamento etc.
118

Semelhante a esses artefatos (tabelas e matrizes), o manual técnico-operacional


(2008) parece ilustrar e incentivar esse ímpeto por circunscrever não apenas modelos
formais, mas fórmulas textuais prontas e facilmente replicadas de um documento a
outro sem qualquer perda de sentido. Suas páginas estipulam formulários padronizados
e forjam um vocabulário médico-legal que é utilizado por legistas muito antes de sua
publicação. Como sugere o trabalho de Riles (2006, p.20), “a forma é uma entidade
auto-contextualizável” cujos “espaços (...) a serem preenchidos contêm todos os termos
de análise necessários para entendê-la ou completa-la”.
Ou seja, se o formato dos laudos estetiza um gênero documental – a forma-
formulário –, os efeitos propagados pelo preenchimento reiterado desses papéis
eletrizam pedaços, como sugere Foucault (1988). Se retornássemos àquilo que
Vigarello (1998) descreveu como a centralidade da fisionomia do criminoso, nas
primeiras décadas do século XIX, ficaríamos surpresos com as semelhanças nos
procedimentos. No caso dos criminosos, os médicos procuravam por medidas
antropométricas que circulavam, preponderantemente, por circunferências cranianas e
ângulos faciais; no caso dos exames de “conjunção carnal” e “ato libidinoso”, medidas
e ângulos também saltam aos olhos. Himens, fissuras e exulcerações são devidamente
esquadrinhados. Como Alices, outras tantas meninas, meninos e mulheres têm seus
corpos vasculhados e, quase sempre, seus genitais ganham protagonismo, mesmo
quando descrevê-los resulta, aparentemente, em soluções nulas à produção de vestígios
e materialidades.
Nesse sentido, a ‘mágica’ desses documentos está em produzir descrições
técnicas objetivas sobre esse tipo de sofrimento que marca a carne, conseguindo, no
entanto, fazer com que os discursos que falam de materialidades corpóreas, feridas,
marcas, sangue, rasgos, rupturas e sofrimento, manifestem-se por intermédio de
terminologias médico-legais que transformam o horror dos cenários e dos atos
perpetrados em conclusões assépticas e, até certo ponto, cifradas à leitura de não
especialistas. Se o glossário fornecido pelo manual não é novo nem inovador, seu uso é
estratégico e produz efeitos.
Sua replicação em laudos de conjunção carnal/ato libidinoso, portanto,
desfiguram a carne naquilo que Deleuze (2007) descreveu como vianda. Segundo
Deleuze (2007), falando sobre a obra do pintor Francis Bacon, a vianda não pode ser
compreendida como uma carne (corpo) morta. Ao contrário, ela conserva todas as cores
e todos os sofrimentos de uma carne viva. Nas pinturas de Bacon, vianda é um estado
119

do corpo no qual carne e osso se confrontam, mas não se adequam estruturalmente: a


carne se origina dos ossos, ao mesmo tempo em que os ossos dela se elevam. Vianda
seria uma espécie de zona de indiscernibilidade, de indecisão entre o homem e o animal,
um estado no qual o pintor “se identifica com os objetos de seu horror e de sua
compaixão” (DELEUZE, 2007, p. 31). Citando um romance de Moritz, Deleuze (2007)
descreve essa carne, que é vianda, por meio da imagem de uma personagem que
experimenta a sensação de horror, de insignificância, ao ver a execução de quatro
homens que, exterminados e esquartejados, têm seus pedaços jogados na rua. Gregori
(2016), falando sobre os usos de sex toys, aponta também como a ideia de carne pode
ser compreendida mediante um outro sentido: a carnalidade. Por esse termo, a autora
mostra como carne também pode evocar o corpo como objeto erotizado e sexualizado.
É sobre essa potente correlação que a próxima seção deste capítulo se debruçará.
Mas fazê-lo implica num contraste. Essa carne “acrobática” que guarda em suas
entranhas a vivacidade do sofrimento, não pode mais ser alcançada depois que nos
enredamos em aparatos técnicos e formulários preenchidos pelo médico-legista. Ao
contrário, o que se avista é uma carne pálida apresentada mediante fórmulas textuais
simples e fragmentadas. Da carne pálida preocupada em sublinhar vestígios aparecem
pedaços falantes que se autonomizam de um corpo-organismo sistêmico e integral. A
forma-formulário e seus conteúdos fazem arrefecer (aos desatentos) a vivacidade, o
brilho do corpo.

“Do visto e observado”: o hímen e suas roturas

“Em sua apresentação aos membros do museu de história natural,


Cuvier moveu-se de uma descrição do exterior, viva e nunca
completamente controlável de Bartmann (pois precisava de sua
permissão para examinar suas partes íntimas) para o cadáver inerte
diante dele, agora incapaz de resistir às sondagens mais profundas.
Tanto na vida como na morte, Sarah Bartmann era um reservatório de
contradições. (...). Quando ela morreu, em 29 de dezembro de
1815, o chefe da polícia deu a Cuvier permissão para levar o corpo
ao museu, onde sua primeira tarefa passou a ser encontrar e descrever
seus apêndices vaginais escondidos. Por uma página e meia, o leitor
aprende sobre a aparência, dobrada e desdobrada, dos lábios
vaginais, do ângulo de junção, das medidas, de seu comprimento
(...) e de sua espessura e a maneira como eles cobrem a abertura
da vulva”. (FAUSTO-STERLING, 1995, p. 37).
120

Com essa descrição, Fausto-Sterling (1995) ilustra alguns dos modos pelos quais
o corpo de Sarah Bartmann, a Vênus de Hotentote, foi perscrutado e esquadrinhado por
diferentes cientistas durante o século XIX. Como argumenta a autora, tal interesse
resultou em distintas narrativas sobre Bartmann – sua origem e sua constituição
anatômica – e no acondicionamento, até os anos 80, de seu cérebro preservado, de seu
esqueleto e do molde em cera de seus genitais exibidos no Museu do Homem, em Paris.
O caso aparentemente esdrúxulo resultou em calhamaços de relatórios escritos e
foi apresentado a plateias científicas as mais diversas pelo próprio Georges Cuvier,
considerado o pai da biologia moderna. Em seu artigo, Fausto-Sterling (1995),
preocupada em entender como as descrições anatômicas do corpo feminino se
entrelaçam com as teorias raciais gestadas no século XIX por incontáveis pesquisas
científicas, descreve como os Hotentotes são construídos por esses homens da ciência
na Paris do início do século XIX. Alocados no antigo Museu de História Natural de
Paris, Cuvier e Bainville buscavam expandir suas pesquisas para além do vasto acervo
de peças animais por eles recolhidos e organizados. Tratava-se de estabelecer sistemas
coerentes de classificação e de anatomia comparada, não excluindo, desses estudos,
esqueletos humanos, até aquele momento tão insatisfatoriamente analisados. Como
sugere Fausto-Sterling (1995):

Enquanto eles [cientistas] diferenciavam os homens brancos dos


primatas superiores, usando características como a linguagem, a razão
e alta cultura, estudiosos usavam várias formas de anatomia sexual –
peitos, a presença de um hímen, a estrutura do canal vaginal e a
localização da abertura da uretra para distinguir as fêmeas dos
animais. (...) As descrições de Cuvier sobre Sarah Bartmann repetiam
tais observações. A Hotentote trabalhava como um duplo tropo. Como
uma mulher de cor, ela serviu de primitiva mais primitiva: ela era uma
ligação feminina e racial à natureza – duas pelo preço de uma”
(FAUSTO-STERLING, 1995, p. 27-28).

Conhecida por intermédio desses textos científicos, processos judiciais e jornais


da época, até sua morte em 1815, a Vênus de Hotentote foi exibida em “freak shows”,
retratada em desenhos e retratos de nus e, finalmente, investigada e dissecada minuciosa
e cientificamente. A epígrafe, acima transcrita, enfatiza essa exata passagem: do corpo
vivo nunca totalmente controlado à sua constituição inerte e destinada a ciência. A
investigação de Blainville e a necropsia realizada por Cuvier, nos termos de Fausto-
Sterling (1995), inseriram Bartmann nos investimentos científicos de raça e gênero,
simultaneamente. Todavia, ainda, que nos relatórios dos cientistas franceses, Sarah
121

Bartmann tenha descrita sua estatura, seu crânio, seus aspectos faciais – olhos, lábios,
nariz, testa – seus membros e articulações, foram sua nádegas descomunais e seus lábios
genitais de conformação avantajada que ganharam celebridade. O molde em cera de
seus lábios vaginais, junto a seu crânio e esqueleto, por décadas, figurou como elemento
museológico a ser exibido e retido em acervo.
Se, ao espectador do Museu do Homem, em Paris, o “caso 33”, estudado por
Fausto-Sterling (1995), resulta numa exposição curiosa, por semelhanças incontáveis,
também, a mim, a ceroplastia, produzida por Augusto Esteves (1891-966) e arquivada
no Museu Técnico-Científico do Instituto Oscar Freire (IOF) da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (FMUSP), resultou em estranheza e interesse.
Augusto Esteves, artista praticamente autodidata, iniciou sua carreira junto a
Vital Brazil, no Instituto Butantã. Contratado em 1937 por Flamínio Fávero, Esteves
produziu cerca de 40 peças em ceroplastia para o recém-inaugurado departamento de
medicina legal da FMUSP. Entre as peças, podem-se ver representados esgorjamentos,
lesões por arma branca e de fogo, cicatrizes, acidentes de trabalho e,
surpreendentemente, himens. As modelagens, acondicionadas em caixas de madeira
vedadas por um vidro, aparecem acomodadas em uma almofada ou um pano branco
com pregas que ressaltam a peça nele contida. Entre um rosto de perfil, mãos solitárias
com dedos faltantes, dorsos baleados por projeteis de arma de fogo, fetos parcialmente
modelados, himens avulsos impactam o espectador. Sem os lábios vaginais e
destacados da genitália, as sucessivas imagens das caixas de madeira colocadas lado a
lado e apresentadas por Carreta (2016) simulam colorações e orifícios himenais dos
mais variados97.
Produzidas há mais de quatro mil anos, a modelagem em cera (ceroplastia)
configurou-se como um modo de representar, com precisão e durabilidade órgãos e
partes internas do corpo, suplantando, assim, a deterioração e a falta de cadáveres
utilizados para estudos anatômicos. Iniciada com mais vigor, na França, por volta de
1860, a moulage foi utilizada para melhor caracterizar lesões dermatológicas para
alunos em formação junto ao Hospital Sant Louise. Imaginada, também, como recurso
didático e técnica de pesquisa, a ceroplastia era, para Fávero, uma forma bastante eficaz
“de fortalecimento técnico da atividade pericial e de delimitação dos objetos e métodos

97
Meu acesso ao artigo de Carreta (2016) já no final da escrita da tese, me levou a entrar em contato com
o museu IOF para saber quais eram as normas de visitação. A informação, contudo, não foi animadora. O
museu segue fechado a visitações e para conseguir acesso seria necessário iniciar a comunicação com
docentes do Instituto Oscar Freire, na USP, uma vez que a gestão do local é feito por tais professores.
122

de intervenção da medicina legal paulista” (CARRETA, 2016, p. 764). Como


argumenta Snalcke (1992), a modelagem superava a visão bidimensional das ilustrações
planas, impactando profundamente aqueles submetidos a sua observação98.
A visualização de himens, parte relevante da instrução em medicina legal,
aparece no acervo de Museu IOF, bem como, em fotografias e vídeos, como um tipo
bastante indiscreto de interface para aqueles que, assim como eu, ocupam as cadeiras
dos auditórios das faculdades de medicina brasileiras. Os suportes materiais –
modelagens, ilustrações, desenhos, fotografias ou filmagens – destacam, sem dúvida, a
importância ímpar do hímen para a disciplina. Os laudos, por conseguinte, também dão
centralidade a essa “insignificante” membrana que, destituída de valor pela fisiologia,
encontrou seu lugar na medicina legal (ANTUNES, 1995). Se, como afirmam Fausto-
Sterling (1995) e Rago (2008), no caso de Sarah Bartmaan a genitália suprimida de seu
corpo e conservada em formol ganharia lugar no Museu de História Natural de Paris, no
caso de uma Alice, mas não somente no dela, a genitália ficará ‘conservada’ por meio da
escrita. Mais do que isso. O hímen, elemento diacrítico para a “conjunção carnal” a ser
‘decifrada’ pelo médico legista, será meticulosamente descrito: uma Alice possui
“hímen infantil íntegro carnoso, de orla alta, óstio de pequena amplitude, não
apresentando roturas”.

***

A membrana himenal, fisiologicamente irrelevante, foi merecedora de inúmeros


trabalhos, com o intuito de descrevê-la, classificá-la, determinar sua irrefutável ruptura,
assim como suas correlações com temas como honestidade moral, conformação racial
e/ou elemento civilizatório. Como sublinha Renato da Silva (2011), a partir das
publicações divulgadas pelos Arquivos de Medicina Legal e Identificação do Rio de
Janeiro (AMLIRJ), temas relacionados a mulher e sua honra sexual tinham
expressividade. Reunidos sob o tema “Honra sexual da mulher ou da família”, inúmeros
artigos publicados no começo do século XX se debruçavam sobre crimes de
defloramento e/ou estupro, lesões himenais ou técnicas periciais relacionadas à

98
Carreta (2016) argumenta que a prática de moldagem em cera perdurou até a década de 1950, quando
novas tecnologias de documentação e representação das doenças começaram a surgir. Modelos em
plástico, mais resistentes, duradouros, flexíveis e com cores mais fidedignas levaram à decadência dessa
técnica de representação, bem como, ao processo de descarte das peças produzidas ao longo dos séculos
XIX e XX. Para correlações instigantes entre cadáveres e exposições, ver Kim, 2012.
123

sexologia forense. Intrincada à comprovação dos crimes de defloramento, a membrana


himenal ganhou protagonismo, portanto, nos estudos de renomados médicos-legistas e
juristas. Fosse para demonstrar sua ineficiência na constatação do intercurso sexual,
fosse para tomá-la como elemento fundamental da desonra de mulheres e famílias, a
membrana foi classificada, minuciosamente investigada e/ou incorporada como prova
da ignorância popular (CAULFIELD, 2000).
Artigos como o publicado por Oscar Freire em 1918, intitulado “Localização
das lesões himenais”, ou seu parecer técnico sob o título “Defloramento antigo ou
recente”, de 1923, e outros textos escritos por Afrânio Peixoto, como “Himenolatria”,
de 1934, e por Álvaro Borges dos Reis, como “Formas Himenais mais frequentes na
Bahia”, de 191799, destacam a importância de conhecer, com detalhes, a referida
membrana. Sem precisarem a origem embrionária ou a função fisiológica da fina e
flexível membrana, os trabalhos dão atenção especial aos aspectos morfológicos do
hímen e às características de sua ruptura.
Álvaro Borges dos Reis (1917), por exemplo, preocupado em classificar e
entender a incidência de diferentes formatos himenais em distintos grupos raciais, exibe
em seu artigo, publicado na Gazeta Médica, tabelas e porcentagens variadas destacando
os himens mais comuns no estado da Bahia. A pesquisa, realizada a partir da observação
de inúmeros médicos lotados no Serviço Médico-Legal do estado, reuniu uma coleção
de mais de 1085 himens de mulheres atendidas pelo serviço entre os anos de 1895 até
1914. A divulgação controversa, exatamente, por correlacionar o desenho formado pela

99
Álvaro Borges dos Reis (880-1932) se formou pela Faculdade de Medicina da Bahia e atuou de 1904
até sua aposentadoria, em 1930, junto ao Instituto Nina Rodrigues. Além da medicina, foi poeta, editor e
escritor com várias obras literárias publicadas. Durante sua carreira, Reis viajou por toda a região
realizando autópsias e jamais deixou de atender gratuitamente a pessoas humildes do bairro. Júlio
Afrânio Peixoto (1876-1947) também foi formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, sob influência
de Ninas Rodrigues. Contudo, sabendo da fama extraordinária de Rodrigues, logo no começo do século
XX, em 1902, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde assumiu, em 1904, o posto de inspetor de Saúde
Pública e diretor do Hospital Nacional de Alienados. Foi professor na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro e na Faculdade Nacional de Direito, ambas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.
Atualmente, seu nome aparece no Instituto Médico Legal da cidade, o IMLAP (Instituto Médico Legal
Afrânio Peixoto), sediado na região da Leopoldina, no Rio de Janeiro (FERREIRA, 2009). Quanto a
Oscar Freire de Carvalho (1882-1923), ele se formou na Faculdade de Medicina da Bahia e foi um dos
mais conhecidos discípulos de Nina Rodrigues, de quem herdou seus interesses por medicina legal. Oscar
Freire vem a São Paulo, em 1913, a convite do professor Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, para assumir a
disciplina de Medicina Legal, na Faculdade de Medicina Paulista. Anos mais tarde, em 1934, tal
Faculdade é transformada em Universidade de Medicina concomitantemente à criação da Universidade de
São Paulo. É também nesse momento que a disciplina de medicina legal é reunida às cadeiras de Ética
Médica e Medicina Social e do Trabalho sob o signo do Instituto Oscar Freire, em homenagem póstuma
ao mencionado legista (LIPP, 2008).
124

membrana às categorias de “raça preta”, “branca” e “mestiça”, em nada perdia para


as classificações subsequentes canonizadas por Afrânio Peixoto e Oscar Freire.
Como explica Fávero (1954), o hímen apresenta, morfologicamente, o que pode
ser chamado de membrana e o que é denominado como óstio (que seria limitado pela
borda livre da membrana). A membrana possui duas faces, uma vaginal e outra
vestibular, e duas bordas (uma inserção vaginal e outra livre). A classificação de
Afrânio Peixoto teria se dedicado a classificar o hímen pelo aspecto da membrana. Daí
Peixoto ter traçado linhas de junção que dariam origem a ângulos ou fendas na inserção
da membrana no óstio vaginal. Foi por meio dessas aberturas que Peixoto classificou os
hímens a partir de três grupos: os acomissurados (imperfurados), os comissurados (com
números variados de pontos de junção) e os atípicos. Já a classificação empreendida por
Oscar Freire estava ligada ao óstio, uma vez que a borda livre da membrana apresenta
dimensões e aspectos, também, variáveis. Sua classificação dividia o hímen em três
classes: sem orifício, com orifício e os atípicos.
Dessa extensa explicação resulta um compêndio de tipos himenais desenhados,
com vistas a ensinar aos iniciantes na profissão sobre as formas e os formatos que a
membrana pode adquirir. A ilustração exposta no livro de Fávero (1954) dialoga
profundamente com a aula presenciada por mim, junto à FCM. Naquela oportunidade, a
gravura em preto e branco, feita a lápis e exposta do livro do renomado legista, convivia
com uma coleção de fotografias coloridas, muito mais realísticas. A função pedagógica
dava materialidade visual àquilo que um legista, durante um “exame de corpo de delito
de conjunção carnal”, deve prestar atenção.
Em preto e branco, o quadro com desenhos himenais divulgados por Flamínio
Fávero (1954), com foco na membrana e em seus formatos, parece impactar pouco o
leitor desatento. Por contraste, as fotografias coloridas, projetadas na tela branca, em
tamanho muito maior do que aquele acessível no livro, parecem permitir que, assim
como Cuvier, alunos em fase de formação perscrutem, tal como legistas em exame, o
hímen e todas as suas adjacências. Os pelos de coloração variada, a mucosa rosada e
brilhante e a pele enrugada ou lisa dão realidade à membrana que, mesmo em atlas de
anatomia ou livros de biologia, passa despercebida e sem detalhamento. Também o
recurso de enfileiramento numerado no caso de Fávero (1954), e distribuído
aleatoriamente no slide para as fotografias, incita o espectador a um imaginário
classificatório, semelhante às taxonomias comparadas produzidas por biólogos como
Cuvier e Blainville.
125

Figura 2: Classificação dos orifícios himenais por Oscar Freire 100

Fonte: Fávero, 1954: 213-214

100
Seguem os nomes de cada um dos orifícios acima apresentados: “Tipos de hímen: 1. Hímen
imperfurado; 2. Hímen perfurado; 3. Hímen anular; 4. Hímen anular variante; 5. Hímen semilunar; 6.
Hímen em carena; 7. Hímen cordiforme; 8. Hímen helicoidal; 9. Hímen bilabiado; 10. Hímen trilabiado;
11. Hímen quadrilabiado; 12. Hímen multilabiado; 13. Hímen septado longitudinal; 14. Hímen septado
transversal; 15. Hímen cribriforme; 16. Hímen em carola; 17. Hímen roto; 18. Carúnculas mirtiformes
(FÁVERO, 1954, p. 213-214).
127

As nomenclaturas, por conseguinte, multiplicam-se. Himens anulares,


semilunares, em ferradura, bilabiais, helicoidais, ovalados, septados ou imperfurados
dão existência diversa a uma mesma e variada membrana. Inspirada pelos argumentos
de Laqueur (2001) sobre a anatomia humana, posso argumentar, também aqui, que a
linguagem marca a carne fazendo existir o hímen como elemento decisivo para
anatomia sexual das mulheres. Preocupado em demonstrar como ilustrações, desenhos e
modos de nomeação produzem o objeto a que se destina no ato mesmo de descrever, dar
nome ou representar, o autor salienta como

“as ilustrações anatômicas são, em suma, representações de


conhecimentos historicamente específicos do corpo humano e de seu
lugar na criação, e não só um estado particular do conhecimento sobre
suas estruturas” (LAQUEUR, 2001, p.203).

Seu livro, fundamental aos debates sobre sexualidade, corporalidade e políticas


de gênero, elucida como a anatomia dos órgãos sexuais e reprodutivos – enquanto
matéria fisiológica, anatômica, histológica ou embrionária – vai sendo desenhada a
partir de conexões diversas que inscrevem um “sexo” na carne. Como Laqueur (2001)
indica, acreditou-se, por séculos, que o corpo feminino era uma expressão invertida do
corpo masculino, com menos calor vital e, portanto, hierarquicamente inferior dentro de
uma ordem maior e metafísica. A produção de um “modelo de dois sexos”, de mesmo
modo, calcados em diferenças anatômicas incomensuráveis e estáveis, longe de
responder a novos conhecimentos científicos específicos, denota os inúmeros
confrontos políticos e epistemológicos que atuam e produzem a carne. Entre eles: a
origem embriológica dos órgãos sexuais, as funções dos órgãos reprodutivos, as
relações entre orgasmo e concepção, a estética das diferenças anatômicas etc. As
ilustrações anatômicas e uma nova “linguagem” davam suporte às representações de
“duas carnes” – “dois sexos”. Aquilo que antes não precisava ser nomeado passou a
figurar com nome próprio: vagina, vulva, clitóris, ovário, trompas de falópios etc.
(LAQUEUR, 2001).
Sem importância para anatomistas, patologistas, médicos ou biólogos citados
pelo autor, a membrana himenal passa despercebida frente à exaustiva preocupação
desses com a vagina, o clitóris ou os órgãos reprodutivos femininos. Curiosa e
relevante, tal invisibilidade reafirma o argumento do autor ao cotejar, com atenção, uma
gama variada de fontes históricas, científicas e estéticas responsáveis por forjar
128

discursivamente as formas e características do corpo feminino. Se, como sugere o autor,


as estratégias de representação e nomeação sempre assumem um “ponto de vista”,

“(...) incluem algumas estruturas e excluem outras, e esvaziam o


espaço cheio de matéria que enche o corpo: gordura, tecido conjuntivo
e insignificantes variações que não merecem nomes ou entidades
individuais. Situam o corpo com relação à morte, ou a este mundo, ou
a face identificável – ou, como na maioria dos textos modernos – não
situam” (LAQUEUR, 2001, p.203).

Logo, chama atenção uma espécie de metonímia que os trabalhos destinados à


matéria de sexologia forense acabaram por edificar. A fixação pelo hímen, seja para
desqualificá-lo, seja para tomá-lo como elemento diacrítico para a averiguação da
concretização da conjunção carnal, transformou os especialistas brasileiros em medicina
legal, como argumenta Caulfield (2000), em autoridades mundiais sobre a morfologia
da membrana:

“Enquanto Afrânio Peixoto chegou a examinar pessoalmente 2.701


himens, no período entre 1907 e 1915, os mestres europeus como
Brouardel, Hofmann ou Maschka, num ‘fim de vida, [com] 30 anos
[como] médicos-peritos, não contariam 300’” (CAUFIELD, 2000,
p.52).

Atrelada à noção de virgindade, a questão do formato do hímen, por


conseguinte, redundava em acalorados debates sobre como determinar, com certeza, o
momento exato de sua rotura completa, bem como os vestígios cicatrizados ou
sanguinolentos do fato. Defensor ferrenho da desqualificação do hímen como critério
decisivo para a averiguação de crimes de defloramento, Afrânio Peixoto afirmava que a
“verificação fisiológica da honestidade era um absurdo” (CAULFIELD, 2000, p.183).
Sua preocupação, portanto, longe de descartar tal atestado, estava em demonstrar o
número expressivo de himens cuja ruptura não ocorria no momento de penetração do
pênis, devido à amplitude do óstio vaginal ou himenal ou pela estrutura ou conformação
especial da membrana – himens complacentes. Como aponta Caulfield (2000), Peixoto

“ridicularizava a ignorância generalizada sobre a morfologia do


hímen, como também a fixação nacional no hímen e na ideia de que o
respeito à virgindade era um indicador de progresso e ordem social”
(idem).

Para o legista, a “cultura do hímen” era equivocada exatamente pelo pouco


conhecimento da anatomia feminina e pela tradição popular de correlacionar o hímen a
um selo que cobria a entrada vaginal e cuja ruptura culminaria em dor e intenso
129

sangramento. Contra a “himenolatria”, todavia, Peixoto edificava-se como um dos


maiores especialistas no tema e um desbravador incansável da escorregadia e traiçoeira
membrana.
De modo surpreendente, ainda que juridicamente distinto101, “defloramentos” e
“estupros” acabavam por se entrelaçar durante a leitura dos laudos de corpo de delito
importantes a esta pesquisa e as aulas de medicina legal que acompanhei, dando
conteúdo à forma-formulário. Mesmo desvirginadas, em “data não recente”, as
mulheres e meninas atendidas no IML de Campinas, entre os anos de 2004 e 2005,
tinham seu hímen criteriosamente descrito e investigado. Em um primeiro momento,
portanto, o hímen aparece como interesse médico-legal devido a suas relações estreitas
com as noções de honra sexual e virgindade (CAULFIELD, 2000), mas sua inspeção
rotineira, descrita nos laudos de corpo de delito de conjunção carnal e feita ainda hoje,
denota que os mais de 2700 himens examinados por Afrânio Peixoto continuam
presentes no imaginário da disciplina. As mudanças legais em torno dos crimes de
defloramento e/ou sedução previstos no Código Penal, assim, não implicam em
mudanças nas práticas de produção técnica de conhecimento e produção de provas sobre
o crime. Os ensinamentos destinados aos médicos em formação durante a aula de
medicina legal sobre a temática também enfatizavam a centralidade da fina e
performática membrana. Por ser de difícil reconhecimento e visualização, o hímen
precisava ser observado com atenção e, diante de todas as lesões a serem anotadas,
convertia-se num desafio àqueles que, como eu, precisavam ser iniciados na disciplina.
As justaposições de quase um século entre as explicações exibidas em slide no
auditório da FCM e os textos, nos quais Oscar Freire (1918) e Afrânio Peixoto (1934)
discorrem sobre a importância de realizar, com atenção e rigor, a aferição do hímen e de
101
No Código Penal de 1890, defloramento era tipificado no artigo 267 sob o seguinte texto: “deflorar
mulher menor de idade, empregando sedução, engano ou fraude”. Com a promulgação do Código Penal
de 1940, o termo deflorar foi revisto e o crime passou a ser tipificado por meio do artigo 217, sob o título
“sedução”: “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de quatorze, e ter com ela conjunção
carnal, aproveitando se de sua inexperiência ou justificável confiança”. Esse último texto, foi revogado
por meio da lei 11.106 de março de 2005. Contudo, se, juridicamente, nos códigos penais de 1890 e 1940,
o defloramento estava atento à honestidade da vitima, ao salvaguardar a honra apenas de meninas e
mulheres virgens ingênuas e verdadeiramente crédulas, o estupro, ao contrário, inferia a noção de honra
por meio de outros expedientes. A honestidade da vítima confrontada ao emprego da violência
preocupava juristas e médicos-legistas sobre o tema. Afrânio Peixoto (1934), em sua aclamada publicação
sobre sexologia forense, insistia na “fórmula muito genérica” dos cânones europeus, de que as mulheres
em função de suas coxas e dos movimentos de bacia poderiam impedir uma violação. Em contraposição a
referida afirmação, retirada dos cânones europeus sobre a questão, o autor enumerava as muitas variáveis
que ocorrem no ato de violação. Entre elas: a força desproporcional entre os envolvidos, o medo
vivenciado pela vítima, possíveis asfixias e ou a privação de faculdades psíquicas (embriaguez, usos de
remédios, hipnose etc). Para uma discussão aprofundada sobre o tema ver: Caulfield, 2000, Esteves, 1989
e Antunes, 1995.
130

suas roturas, são impactantes. Passamos, desse modo, de forma gradual, da morfologia
da membrana para sua ruptura. Como sugere Peixoto (1934), é inútil que o legista
conheça a morfologia e os formatos possíveis para o hímen íntegro se não for capaz de
diferenciar “entalhes naturais” de “roturas incompletas”. Ou, ainda, se não for
ensinado que o “hímen não se destrói nem desaparece. Rompe-se, lacera-se, faz se em
retalhos, transforma-se em tubérculos, cristas mucosas, carúnculas, mas subsiste,
nestes estados” (PEIXOTO, 1934b, p.120).
Por sua vez, num artigo publicado em 1918, na Revista Brazil-Médico do Rio de
Janeiro, Oscar Freire produz um diálogo com as afirmações de Afrânio Peixoto.
Interessado não apenas em determinar, com exatidão de detalhes, as lesões encontradas
na membrana himenal depois de sua rotura, mas em localizar “rupturas cicatrizadas e
entalhes grandes ou pequenos que recortam a borda himenal” (FREIRE, 1918, p.58), o
autor oferece uma nova técnica, a qual estabelece as bases científicas para a realização
do exame102. Sua proposta é a utilização de uma circunferência graduada dividida em
quadrantes, nos quais linhas com os mais variados ângulos permitiriam, ao legista, obter
grande precisão quanto às lesões encontradas no hímen.

Figura 4: Esquema para lesões himenais, segundo Oscar Freire

Fonte: Fávero, 1954, p. 223.

102
Com ironia, o médico legista afirma que procedimentos feitos a olho, por meio de divisões em
metades, não são eficientes. Também o uso de técnicas como aquelas formuladas pelo médico francês
Lacassagne, informadas pelos ponteiros do relógio (através de horas e minutos), resultariam, em terras
brasileiras, em má-fé ou escárnio.
131

Como o próprio autor afirma, contudo, tal procedimento, ainda que eficaz,
impõe desafios para a centralização da figura graduada, em função da pequena e
recôndita área a ser inspecionada. Para resolver tal inconveniente, Freire (1918) sugere

“o uso de um pequeno apparelho de occasião, construído facilmente


com palhetas transparentes e delgadas de mica ou de celuloide, ou
com lâminas finas e claras de vidro medindo 4 a cinco centímetros e
tendo, riscadas em negro, as linhas que delimitam os quadrantes e as
que assignalam os ângulos, sobre os quaes estão inscriptos números
correspondendo aos ângulos de 10º e 80º” (FREIRE, 1918, p.59).

A circunferência graduada que aparece desenhada no artigo de Freire (1918),


pode ser encontrada, numa versão mais modesta e menos detalhada, em laudos como
aqueles fornecidos a uma Alice. A figura, estilizada por um círculo cortado por duas
linhas em forma de cruz, alude à técnica publicada por Freire (1918). Todavia,
graficamente, o desenho quase sempre não é preenchido ou rabiscado com os ângulos
que determinam, com precisão, as rupturas ou lesões himenais.
Da inspeção resulta apenas palavras em papel. Diante das pernas posicionadas e
da área vaginal em exposição, o legista deve, com “a extremidade do polegar para
dentro e a borda radial do indicador para fora” separar os pequenos e os grandes
lábios vaginais movimentando-os para cima (FÁVERO, 1954, p.221).

Figura 5: Técnica para o exame dos órgãos genitais externos femininos

Fonte: Fávero, 1954, p.221.


132

Uma Selma tem um hímen “anular, carnoso, de orla alta, óstio de média
amplitude, apresentando rotura completa, cicatrizada, localizada em junção de
quadrantes anterior e posterior direito”. Se a membrana himenal de uma Márcia, por
sua vez, está “reduzida a carúnculas mirtiformes”, o hímen “anular, carnoso, de orla
baixa, óstio de média amplitude” de uma Madalena é descrito, apenas, como
“apresentando rotura”. Por expedientes semelhantes, mais uma entre tantas Lucianas
tem o hímen “integro, carnoso, orla alta, óstio de média amplitude, não apresentando
rotura”. Assim como Lucianas, uma Laura também apresenta a membrana himenal
“não apresentando roturas”. Seu hímen “anular, membranoso, de orla baixa e óstio de
pequena amplitude”, exatamente porque íntegro, figura meticulosamente apresentado.
Como na história de uma Alice, todas essas mulheres e meninas chegaram ao
IML de Campinas, entre os anos de 2004 e 2005, com uma requisição de corpo de
delito. A queixa tipificada pelo artigo 213 – ou ainda pelo artigo 214 – reverteu-se em
exames de conjunção carnal com “Histórico[s]” breves e sintéticos. A frase “informa a
examinada” ou “informa a acompanhante” é completada por diferentes enredos:
“vítima de ato libidinoso (sexo oral e tentativa de anal) sob ameaça de arma de fogo
em [data]”, “vítima de estupro em [data]”, “vítima teria sido tentada ou abusada pelo
próprio pai” ou “vítima de conjunção carnal, mediante ameaça com revólver em
[data]”.
Se é exatamente por uma fixação de longa data, que himens seguem, até hoje,
tão bem esquadrinhados pelos legistas e aparecem quase autônomos da totalidade dos
corpos “colocados em posição ginecológica”, por oposição, os “genitais externos de
conformação” são vasculhados sem muito interesse. Pequenos e grandes lábios
vaginais, vulva e clitóris não figuram descritos ou investigados individualmente com
minúcia. A todos esses pequenos pedaços resta à afirmação de que estão “norm[ais]
para a idade”103. Mesmo no caso de uma Alice, as lesões encontradas no “assoalho do
vestíbulo vaginal” não foram anotadas em nenhum dos tópicos numerados de 1 a 6. Por
comparação, o tópico destinado ao “Monte de Vênus” sempre é completado, seja pela
descrição de presença de pelos, seja com a coloração dos mesmos. Dedicados ao hímen,
nos exames de conjunção carnal, os legistas são modestos na exposição de outras partes

103
A resposta contrasta explicitamente com as designações fornecidas por Fávero (1954) ao exame dos
órgãos genitais externos femininos. Como adverte o autor, “(...) depois de examinar-se cuidadosamente o
monte de Vênus e o estado do conjunto da vulva (dimensões, manchas etc.) observa-se o aspecto e a
disposição dos grandes lábios, se fecham ou não inteiramente a vulva, se encobrem ou não inteiramente
os pequenos [lábios], [qual] o aspecto, as dimensões, as prevalências de um sobre o outro, etc.”
(FÁVERO, 1954, p.220).
133

do corpo de Madalenas, Márcias, Selmas, Lucianas, Lauras ou Alices. Quase sempre


ânus, mamas, a altura uterina e as áreas periféricas de seus corpos são definidos por
frases tais como: “sem interesse médico-legal”, “ausentes”, “não palpável pelo
abdômen” ou “nada digno de nota”.
Isso ocorre porque, na lacuna em que se coloca a “Descrição”, o médico não
deve produzir ilações sobre a relação desses pedaços. Ao contrário, deve apenas expô-
los com objetividade, dando atenção àquilo que por ele foi “visto e observado”. Deve,
desse modo, descrever, mediante termos técnicos, se há marcas nas partes genitais, qual
a coloração, quais os aspectos e formatos das mucosas e membranas, da pele, da carne.
Da forma-formulário aparece um modo de preenchimento específico e, insistentemente,
repetido.
Seguindo o argumento de Foucault (1980), como na anatomoclinica, é possível
perceber que, nesses exames, o legista faz aparecer não só o visível e o legível, mas
tudo aquilo que os ouvidos e o tato104 podem detalhar. Se as descrições em tópicos –
“lesões corporais”, “monte de vênus”, “genitais externos de conformação”, “hímen”,
“altura uterina”, “mamas”, “ânus” – são os elementos que constituem o “volume”
desses corpos, a correlação desses elementos é destinada a uma outra lacuna. O que
ocorreu, as marcas, as lesões, os entalhes, os formatos, o histórico contado pela
“examinada”, tudo isso será fundamental à construção da lacuna “Conclusão”, na qual
o legista deve explicitar suas considerações ‘com certeza’.

“O poder que, assim, toma a seu cargo a sexualidade, assume como


um dever roçar os corpos; acaricia-os com os olhos; intensifica
regiões; eletriza superfícies; dramatiza momentos conturbados”
(FOUCAULT, 1988, p. 44).

A prática médica/clínica/forense, dando primazia aos olhos (MILLER, 1997)


através de seus métodos inquisitoriais e cartoriais, interroga, faz falar membranas,
órgãos, lesões de interesse médico-legal e documenta vestígios encontrados na carne;
em certos pedaços de carne. Graças a Bichat, a superficialidade descrita pelos clínicos
incorpora as superfícies das membranas em profundidade sem, contudo, abrir mão da
experiência de observação dos vivos feita por esses outros anatomistas. Esse olhar
anatomoclinico deverá atingir as duas dimensões – a dos sintomas e a dos tecidos –,

104
Tato que se prolonga por meio de aparatos como cotonetes, seringas e tudo aquilo que culmina em
lâminas e amostras importantes aos exames laboratoriais.
134

constituindo uma rede entre esses dois termos. Nesta, o olhar médico deverá ir da
superfície sintomática à superfície tissular, em profundidade (FOUCAULT, 1980).
Como um capítulo da anatomia política105, essas técnicas se apresentam como
via de comunicação e ponto de apoio para as relações de poder e de saber em que os
corpos são tomados como objetos de intervenção e de gestão (FOULCAULT, 1987).
Descrever o corpo implica em conhecê-lo e, dessa maneira, em intervir sobre ele,
fazendo ouvir, no caso do interesse legal pelo hímen, o próprio sexo. Como se interroga
Foucault (1988, p. 77), “que injunção é essa? Por que essa grande caça à verdade do
sexo, à verdade no sexo?”. Apesar da ambiguidade contida no termo, minha escolha por
manter aqui o termo sexo, ao invés de sexualidade, diz respeito ao gênero narrativo
gestado em aulas de medicina legal e laudos de corpo de delito. Inspirada pelos
trabalhos de Foucault (1988), meu uso do termo não remete, aqui, apenas à ideia de
sexo biológico, antes reforça uma

“unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas,


condutas, sensações e prazeres, [que] permitiu fazer funcionar esta
unidade causal, sentido onipresente, segredo a descobrir em toda
parte; o sexo pôde, portanto, funcionar como significante único e
como significado universal”. (FOUCAULT, 1988, p. 144).

Ao optar por enfatizar o termo “sexo”, busco evidenciá-lo como um discurso de


natureza que opera como marcador e diferenciador dos corpos por ele produzidos.
Como sugere Butler (2001), a matéria corpórea não é algo vazio à espera de aplicação
de sentido exterior. Ou seja, o corpo é um sistema que simultaneamente produz e é
produzido por significados sociais. Desse modo, o organismo biológico sempre resulta
de ações combinadas e simultâneas de natureza e da criação. O sexo, mesmo na sua
acepção mais aparentemente estável – a anatomia –, não é algo que alguém tem, antes é
uma das normas mediante as quais ‘alguém’ se torna viável e inteligível no mundo. Se,
como sugere Afrânio Peixoto (1934b, p. 117) o “hímen não se destrói nem desaparece
(...) mas subsiste” em retalhos e lacerações, ao tomá-lo como elemento decisivo,
legistas e laudos inscrevem tal estrutura na carne e como lastro da carnalidade imposta

105
A “invenção” daquilo que Foucault (1987) denominou anatomia política não deve ser confundida com
uma descoberta súbita, mas corresponde a uma multiplicidade de processos minúsculos de múltiplas
origens, com localizações esparsas que se repetem e se imitam, apoiando-se uns sobre os outros e que, aos
poucos, esboçam uma fachada, uma espécie de método geral. Uma mecânica do poder que age sobre os
corpos e neles se objetiva, intervindo sobre os corpos para que eles se tornem submissos, exercitados e
dóceis.
135

dessa carne. Por tais atos de “apenas preencher papel” (FERREIRA, 2013)106, o “sexo”
figura como um termo crucial, um lugar de contestação e um campo de batalhas
intelectuais e técnicas. Como sugere Grosz (2000, p.79) em seu balanço teórico sobre as
noções de corpo, “os modos naturalistas e científicos” explicitam apenas uma forma de
forjar o corpo, dentre uma série de discursos disparatados que o inscrevem como
materialidade.
Ainda que Madalenas, Selmas, Márcias, Lucianas, Lauras e Alices tenham um
hímen ou os retalhos que restam dele, é somente diante das correlações de força
tramadas em laudos e aulas de medicina legal que a desprezada membrana tornou-se
protagonista e pode, finalmente, ser alçada a um tipo incontestável de vestígio. A
pergunta a ser feita, todavia, é: depois de inspecionar, sobretudo, o hímen, o que
concluem os legistas? A resposta nos exige retornar à solução narrativa veiculada nos
próprios laudos:
Uma Selma: “Do observado e exposto concluímos que a
examinada apresenta roturas antigas e se ato libidinoso houve
marcas não ficaram...”.
Uma Márcia: “Do observado e exposto concluímos que a
examinada apresenta carúnculas mirtiformes, portanto, não temos
condições de afirmarmos ou negarmos a queixa da pericianda...”.
Uma Madalena: Do observado e acima exposto concluímos que
a examinada apresenta hímen com rotura antiga.
Uma Laura: “Do exposto e observado concluímos que a
examinada apresenta hímen integro”.
Uma Luciana: Do observado e acima exposto concluímos que
a examinada não manteve conjunção carnal, portanto é virgem.
Uma Alice: “Do observado e exposto concluímos que a
examinada não manteve conjunção carnal”.

Dado que muitas são as entradas médicas forjadas por esses especialistas, é
notável que do visto, escutado e tateado apareça sem mediações, mais uma vez e
somente, o hímen. Afinal, o que trouxe mulheres e meninas como Madalenas, Márcias,
Selmas, Lucianas, Lauras e Alices à sala de exames do IML? As conclusões da perícia
se tornam curiosas, uma vez que dos corpos estuprados dessas mulheres, as técnicas

106
Pelo termo, Ferreira (2013) enfatiza ao menos três dimensões da administração executada para casos
de desaparecimento civis executados pelo Setor de Descoberta de Paradeiros, da Delegacia de Homicídios
do Rio de Janeiro. Considerados por esses agentes da polícia como “só procedimentos administrativos”
sem efetividade investigativa, tais documentos indicam a falta de pertinência do trabalho ali colocado; a
evidência de que toda a integralidade do trabalho realizado na repartição passa inevitavelmente pela
produção de muitos papéis, quase sempre ineficazes e, por fim, salientam o caráter inevitável e inexorável
de afazeres de menor importância, cuja vida institucional passa pela materialidade dos papéis.
136

médicas legais existentes no Brasil quase nada tenham a dizer sobre o estupro107. Assim,
focados nos himens e nas roturas dessas mulheres, os legistas terminam em suas
conclusões produzindo um deslizamento entre a requisição do exame de corpo de delito
e a conclusão médica anotada e certificada.
Como apresentei na seção anterior, a requisição de corpo de delito, ao tipificar o
ato como “um 213” demanda do IML que um exame de “conjunção carnal” seja
realizado. As considerações do legista, para tanto, têm por urdidura dois elementos: de
um lado, a “conjunção carnal” e, de outro lado, “o hímen”. Ambos são alinhavados de
modo rotineiro – ou mimetizados – por aquele que deve concluir o laudo. Frases como
aquelas destinadas ao exame de uma Luciana ressaltam, com clareza, essa inesperada
injunção: “que a examinada não manteve conjunção carnal, portanto, é virgem”. Ou,
como no caso de uma Márcia: “que a examinada apresenta carúnculas mirtiformes,
portanto, não temos condições de afirmarmos ou negarmos a queixa da
pericianda...”108.
Ao longo desta pesquisa, excertos como esses passaram a me inquietar
sobremaneira. Assim, impossibilitada de acessar outros laudos de conjunção carnal e
atenta à importância destinada ao hímen nas aulas de sexologia forense cursadas na
Unicamp, eu passei, em minhas entrevistas com médicos legistas de Campinas, a
questioná-los sobre as conclusões possíveis para casos de violência sexual. Meu
questionamento era bastante direto: “nos casos de mulheres que tenham o hímen
roturado em data não recente ...”. Antes mesmo que eu pudesse terminar a frase, eles
respondiam: “só isso que faria o diagnóstico, né?!”. Eu insistia: “não é possível achar
outros indícios de violência”? Eles, dessa vez, eram ainda mais diretos em suas
explicações:

107
Em entrevistas realizadas no primeiro semestre de 2011, com profissionais da Delegacia da Mulher,
todas as escrivãs responsáveis por um cartório foram unânimes em dizer que, ao longo de 10 anos (ou
mais) de carreira, raras foram as vezes em que fizeram a requisição de material de DNA colhido pelo
CAISM. Em compensação, quando exigido por Juízes, a lâmina foi enviada à DDM por meio de carta
endereçada à polícia via correio, para então ser reenviada ao IML. Além do tempo decorrido entre o início
dos trâmites até o laudo emitido pelo IML, a lâmina enviada era o único exemplar. Ou seja, qualquer tipo
de extravio comprometeria irreversivelmente a feitura do laudo. Também as análises que exigem
laboratório ou outras técnicas de detecção, como DNA ou fluidos corpóreos, só são feitas em São Paulo.
Isso significa que o Núcleo de Perícia do IML de São Paulo recebe material para análise do estado todo.
Além disso, em entrevistas realizadas recentemente com médicos-legistas na cidade de Campinas, todos
foram unânimes em alegar a demora e a lentidão no envio dos resultados da maioria dos laudos periciais
concluídos pelo Núcleo de Perícia do IML de Campinas e que exigem resultados fornecidos em pelo IML
de São Paulo. Muitos salientaram que evitam requerer exames toxicológicos, patológicos e de DNA
porque acabam atados aos laudos que permanecem, sem finalização, em suas mesas.
108
No “Histórico”, a queixa da pericianda era “informa a examinada que teria sido vítima de conjunção
carnal e sexo oral mediante ameaça de revólver em [data]”.
137

“então, porque é assim, como você vai provar que ela foi penetrada,
né? O agressor pode dizer que bateu nela, mas não penetrou. Se não
encontrar espermatozoide, se ela já tem uma rotura himenal antiga,
como você vai provar que ela foi penetrada?! A não ser que você
encontre vestígios na roupa. Você pode encaminhar a roupa pro IC,
mas quem tem que fazer isso é o delegado de polícia”. (Entrevista
realizada em janeiro de 2015).

A justificativa formulada por esses legistas inter-relaciona dois diferentes


elementos que incidem na atuação do IML durante a feitura de um laudo de corpo de
delito ou de um relatório de necropsia. De um lado, aquilo que durante minha pesquisa
de campo meus interlocutores denominavam “materialidade”. De outro lado, a
autonomia e a desconexão entre as diversas instâncias por meio das quais os vestígios
são produzidos e apreciados pela Polícia Civil e pelo Judiciário.
No primeiro caso, para a “materialidade”, são as distinções entre a causa
médica e a causa jurídica de um crime que saltam aos olhos. Mais uma vez, é por
intermédio dos cadáveres que uma nova lição é ensinada para a antropóloga em
formação:

“Para algumas situações, você tem uma causa evidente no momento


da necropsia, mas existem algumas situações que não. Você não sabe
se foi um homicídio, um suicídio, então, para isso você precisa lançar
mão da perícia [do local, das requisições encaminhadas etc.]. [É] por
isso que no laudo você não vai ver [formulada] a causa jurídica [do
crime]. Na maior[ia] dos casos você vai ver [só] a ação [daquilo que
foi empreendido no corpo da vítima]: hemorragia aguda interna
traumática por instrumento perfuro-contundente. Você não vai ver
homicídio por arma de fogo”. (Entrevista realizada em janeiro de
2015).

Vistas à luz das necropsias, as conclusões emitidas pelo legista estão


circunscritas aos elementos médicos que orientam o exame de corpo de delito em casos
de estupro: “conjunções carnais”. Tais atos são (ou não) inferidos, todavia, por meio de
rupturas himenais que quase sempre não foram ocasionadas em função do estupro – a
causa jurídica que levou Alices, Márcias, Selmas, Madalenas, Lauras ou Lucianas ao
IML.
No segundo caso – a desconexão entre as instâncias periciais e policiais – trata-
se daquilo que, em conversas informais, os legistas denominavam como um “duplo
cego” que deve orientar a perícia; ou as críticas sobre (in)desejada integração entre
IML, IC e investigação policial. Por um lado, parece desejável que essas instituições
138

tenham autonomia e realizem suas investigações descrevendo aquilo que é “visto e


observado”, sem se influenciarem mutuamente. Por outro lado, é por meio desses
mesmos expedientes que, na maioria das vezes, os laudos seguem sempre (in)conclusos.
Diante de minha curiosidade sobre como se recolhe informações mais precisas sobre o
contexto ou o cenário envolvendo os corpos vivos ou mortos inspecionados pelo IML,
meus interlocutores eram cirúrgicos: “normalmente você [como legista] tem que buscar
informações com a perícia”. São peças disparatadas cuja união não se dá nem no IML,
nem no IC. Do mesmo modo, é a vítima, como sugerem meus interlocutores em
entrevista, que deve dizer ao delegado que tem uma peça de roupa que pode conter
sêmen ou substância a ser investigada em laboratório. Ao final, como um deles fez
questão de destacar, o legista deve “orientar e explicar” para a vítima como ela pode
auxiliar em seu próprio processo.
Sem dúvida, aqui são atualizadas algumas das injunções que busquei apresentar
na primeira seção desta tese. Como parte de uma engrenagem, o IML controla muito
parcamente a incorporação, o uso e/ou as interpretações feitas por meio das “provas
materiais”. Carvalho, experiente legista, incita os amantes de séries policiais a
reorientarem suas expectativas em relação à atuação da Polícia Técnico-Científica. O
laudo deve “descrever”: “se, tem materialidade concluí, se não tem; o resto é
hipótese”109.
Expostos assim, os ensinamentos de Carvalho evidenciam, com precisão, uma
espécie de nó górdio que busquei, por meios dos dizeres desses papéis, delinear até
aqui: a engenhosa imagem de um emaranhado insuperável ou sem solução que dá
urdidura e atravessa laudos, aulas e técnicas de sexologia forense. A própria ideia de
materialidade se configura como um imbróglio. Como argumenta Lowenkron (2015b, p.
6), “a materialidade do crime e a materialidade dos corpos são constituídas
mutuamente” por meio desses aparatos técnicos, científicos e policiais respectivamente.
Mas, como sugere a autora, esse é apenas um dos movimentos ali contidos. Seu material
etnográfico reforça que, em muitos casos, a materialidade do crime é desconstituída
exatamente em função da materialidade dos corpos perscrutados e investigados.

109
Voltarei a esse ponto no quarto e no quinto capítulo desta tese, a partir dos casos periciais assinados
por Badan Palhares. Sugiro que suas investigações não só almejavam integrar IML e IC, como ele mesmo
passou a investir esforços em ir até a cena do crime, constituir equipes multidisciplinares e produzir
laudos bastante interpretativos. O caso envolvendo a morte de PC Farias e Suzana Marcolino indica, com
clareza, os riscos colocados a esses laudos que, a meu ver, como sugeriu Adriana Vianna, em leitura ao
meu trabalho, “vazam para todos os lados”.
139

O caso do chinês exposto a serviços análogos à escravidão e maus tratos físicos


os mais variados, descrito pela autora, é, especialmente, exemplar para a minha
argumentação. Como afirma Lowenkron (2015b), a materialidade vista e observada por
intermédio de seu corpo – feridas e lesões cicatrizadas – não determinam a
materialidade do crime: tráfico internacional de pessoas. Exatamente, por não poder ser
enquadrado juridicamente como vítima de tal modalidade criminal, o chinês transita por
inúmeras categorias: vítima, criminoso, imigrante ilegal etc. Aqui, de modo inusitado, a
materialidade do hímen de Alices, Márcias, Selmas, Madalenas, Lauras ou Lucianas
eclipsa, ou melhor, desconstitui a materialidade do crime: o estupro. Consequentemente,
é também mediante a execução de exames e laudos de corpo de delito que “um processo
contínuo, cotidiano e inacabado de policiamento e delimitação [é] materializado em
estratégias diversificadas de deciframento, ordenação e inscrição dos corpos
perigosamente situados em zonas de indefinição” (LOWENKRON, 2015, p.23).
A vagina como um receptáculo, escancarado, por vezes retratado por figuras
dentadas que deglutem e são assustadoramente insaciáveis, deflagra para Miller (1997),
asco e horror por aquilo que recebe: o sêmen. A virgindade, portanto, semelhante a um
controle, limitaria o acesso àquilo que seria, nos termos do autor, um portal para a alma.
Orifício úmido, escuro, quente, mal cheiroso; sede de patologias, doenças nervosas,
sensualidades excessivas, irracionalidade e desonra. Dito de outro modo, enfeitiçado
pelos avantajados lábios vaginais e pelas nádegas protuberantes de Sarah Bartmann,
Cuvier só conseguiu se deleitar plenamente quando pode penetrar, com seus próprios
olhos, uma última vez, os recônditos do corpo morto da Vênus de Hotentote. As duas
mil e setecentas inspeções himenais realizadas por Afrânio Peixoto e outros cânones da
matéria reiteram essa atração desenfreada pelos segredos do sexo (FOUCAULT, 1988).
Nesse caso, segredos do sexo de mulheres defloradas, roturadas e sexualizadas.
Por rotina e costume, nos laudos anexados a inquéritos conduzidos entre os anos
de 2004 e 2005, assim como durante as aulas ministradas em medicina legal, esses
pedaços de carne seguiam atraindo e fazendo desviar o olhar da antropóloga e dos
estudantes de medicina em formação. O hímen foi, portanto, um dentre os muitos fios
que constituem uma complexa trama de classificações e deciframentos sobre o “sexo”
feminino promovido (e reencenado, até hoje) pelas práticas de medicina legal. A
inscrição desse receptáculo, perigosamente situado em “zonas de indefinição” e de
excessivas camadas de sentidos e significações desliza, a outro orifício cuja penetração
ilumina, a contrapelo, o hímen e sua fixação.
140

Sobre ânus e fissuras: deslocamentos etnográficos

Com as introduções de praxe, “Secretaria de Segurança Pública de São


Paulo/Superintendência da Polícia Técnico-Científica/Núcleo de Perícias Médico-
Legais de Campinas”, outros buracos seriam inspecionados pelo Núcleo de Perícia de
Campinas, em documento oficial denominado “Exame de Ato Libidinoso”. A feitura do
exame de corpo de delito seguia assim os procedimentos oficiais e burocráticos do IML
da cidade. Com a finalidade de responder à requisição redigida pela Delegada [Nome],
o laudo de “ato libidinoso”, de número XXX/04, produzido pelo Instituto Médico
Legal de Campinas, no dia 13 de dezembro de 2004, foi assinado por dois médicos
legistas. Um entre poucos Felipes foi qualificado, agora, nos papéis do IML. Um Felipe
tinha doze anos de idade, era solteiro, estudante e filho de Dona Miriam e Seu Rogério.
Após seguir as praxes de escrita – a discriminação dos sete quesitos legais obrigatórios
– os legistas passaram ao preenchimento da lacuna “Histórico”. Um Felipe nada
declarou. Das anotações ficou digitado, somente: “Informa a acompanhante (mãe) que
notou a presença de uma marca ‘chupão’ no pescoço de seu filho na data de hoje”.
Ainda que os médicos legistas tenham informado na lacuna “Descrição”,
“lesões corporais: observa-se 2 equimoses avermelhadas com cerca de 1,5 X 1,2 cm
lateral-direita o pescoço, ovalada”, um Felipe, ao menos nos dizeres anotados em
papel, foi colocado em “posição genupeitoral”. No ânus, como esperado diante dos
motivos pelos quais um Felipe chegou ao IML, não havia “nada de interesse médico
legal”. Sem exames laboratoriais a serem requisitados, ambos os legistas concluíram:
“Do observado exposto concluímos que fora a vítima de sucção oral”. Sem mais,
responderam, com precisão a seis dos sete quesitos obrigatórios por lei:

“1) Houve prática de ato libidinoso? Sim.


2) Em que consistiu? Sucção oral
3) Houve violência? Sim
4) Qual o meio empregado? Violência presumida (menor de 14 anos).
5) Da violência resultou para a vítima incapacidade para ocupações por
mais de trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade permanente de membro,
sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade permanente
para o trabalho ou enfermidade incurável, ou perda ou inutilização de
membro, sentido ou função, ou deformidade, ou aborto? Não
6) É vítima alienada ou débil mental? Não

Sem saberem confirmar se “houve qualquer outra causa que tivesse


impossibilitado a vítima de resistir?”, optaram por anotar “Prejudicado” em resposta
ao sétimo quesito. Remetido à DDM de Campinas, o laudo recebeu um carimbo
141

azulado: “N.P.M.L. Campinas. Confere com o original. É verdade e dou fé. O escrivão
de Polícia. 16 FEV. 2006” e passou a integrar, mais de um ano depois, o inquérito
XXXX/04.

***

Sem hímen a ser inspecionado, o corpo de meninos como Felipes abre caminho
a outras fórmulas narrativas. Se, como afirmei na primeira seção deste terceiro capítulo,
exames de corpo de delito de “ato libidinoso” se debruçam sobre outros orifícios
penetráveis, o laudo destinado a um Felipe evidencia, também, a centralidade do ânus
nesses papéis. Perscrutado por hábito, ou descrito mediante praxes de escrita de rotina, o
ânus ganha protagonismo e uma lacuna em destaque no documento oficial forjado no
IML. O recurso estilístico de destinar, a ele, uma seção em separado busca ilustrar uma
descontinuidade, um corte. Enquanto, himens respondem por conjunções carnais;
“fissuras” aparecem como elementos materiais importantes a serem investigados na
região anal. Tais laudos também evidenciam os raros momentos nos quais os
“genitais”, independente do hímen, figuram como partes a serem descritas com zelo e
precisão.
Sem descrições extensas sobre as “manobras libidinosas” em tratados de
medicina legal, tanto Fávero (1954) quanto Peixoto (1934b) são enfáticos em qualificar
como de difícil conclusão a ocorrência de toques, intercursos anais e em outras sedes do
corpo. As poucas páginas concedidas à matéria na aclamada obra de Peixoto (1934b),
todavia, debruçam-se com mais atenção às chamadas práticas de pederastia do que a
qualquer outro tipo de ato libidinoso. Deslocando o sentido semântico do termo –
pederastia – o autor afirma que “as práticas de pederastia exercem-se sobre os dois
sexos e em todas as idades”. (PEIXOTO, 1934b, p.138-139). As digressões de
renomado médico legista intentam ajudar aqueles que, porventura, vejam-se obrigados a
periciar o ânus daqueles que passivamente são penetrados ou o pênis daqueles que, por
gosto, penetram ativamente a região anal de suas vítimas. Sem elementos decisivos e
irrefutáveis, Peixoto (1934b) pacientemente demonstra como deformidades penianas,
desenvolvimentos excessivos de nádegas e relaxamentos do esfíncter, rasgos,
carúnculas, fissuras e/ou fistulas anais são elementos de pouca confiabilidade. Como
sugere Fávero (1954):
142

“o elemento objetivo do fato decorre do exame cuidadoso da


indigitada vítima; firmada a diagnose da espécie, é preciso reunirem-
se elementos condicionados ao tempo apontado para se admitir sua
possibilidade” (FÁVERO, 1954, p.206).

A “firmada diagnose”, como argumenta o autor, é, porém, um desafio, visto que


lesões nas mucosas e relaxamentos de esfíncter podem ser oriundos de outras causas
que não apenas o coito sem consentimento. Seja em casos de fissuras e fístulas, seja
para as constatações de cristas, carúnculas ou condilomas110, Peixoto (1934b) é bastante
enfático ao afirmar que “deve haver prudência no observar o sinal porque (...) qualquer
afecção pruriginosa” é muito comum nessa região. Além disso, relaxamentos, erosões
ou lacerações na pele ou na mucosa anal “cessam em breve, logo que os fenômenos
inflamatórios e dolorosos desaparecem” (PEIXOTO, 1934b, p.145-146).
Como sugere William Ian Miller (1997), em seu extenso compêndio sobre os
orifícios e os resíduos asquerosos por eles excretados, o ânus, como um orifício de
saída, é contaminador, tanto pelos excrementos que dele são expelidos – as fezes e os
gases – quanto pela sua característica de base ou fundamento. Nos termos do autor:

“as regiões mais elevadas são assim concebidas como beneficiárias da


menor, não só sustentadas por ela, mas exigem a presença do baixo
para permitir a própria possibilidade de alteza e superioridade. A base
é sobrecarregada com significância. Em virtude desta metáfora
estendida, o ânus é visto como a base da qual depende nossa
dignidade. Deve ser seguro, ou tudo o que está construído sobre ele
desmorona. Por esse motivo, no entanto, o ânus também é uma
tentação. Pode ser visto como a porta de entrada para o mais privado,
para o espaço mais pessoal de todos. Significa a remoção de todas as
barreiras da alteridade” (MILLER, 1997, p.100-101).

Ao dizer isso, Miller (1997) busca enfatizar o caráter generificado do ânus. Em


sua argumentação, a penetração do ânus é uma sobretaxa de significação para o corpo
feminino – acessível via penetração e penetrável devido ao seu design – e um interdito
irrevogável ao masculino. Como sugere o autor, “o ânus feminino nunca será sua
vagina, é, na melhor das hipóteses, uma cópia de segurança, um segundo ângulo, mas o
ânus de um homem é sua única vagina” (MILLER, 1997, p.101). Nesse sentido, o fato
de o ânus figurar como um orifício merecedor de uma numeração e uma lacuna
destinada somente a ele, como apresentei anteriormente, denota, por um lado, como ele

110
Para o autor, tais lesões são constatadas mediante eczemas nas margens do ânus e se configuram como
saliências, inflamações, dobras epidérmicas perineais e anais. Todavia, semelhantes a hemorroidas, tais
atritos não devem ser confundidos com saliências venosas características de varizes anais cujo
aparecimento redunda dos hábitos de evacuação do paciente (PEIXOTO, 1934b).
143

é o “centro, o olho, de onde irradiam possíveis inclinações de gênero” (MILLER, 1997,


p.102); e como, de outro lado, o ânus é o lugar das ambiguidades, em contraposição, à
certeza aferida pelo hímen.
Se, como sugere Miller (1997), o “sexo” de Biancas, Lauras, Selmas e Joanas
“espera”, por sua constituição e figuração, por uma “certa quantidade de penetração
como advindo do território da feminilidade”, a região anal perfaz um excesso. Por
contraste, o ânus de um Felipe subjaz seu revés. A noção do masculino como inviolável
ou impenetrável transforma, como dito, o ânus de um homem ou de um menino em sua
“única vagina” (MILLER, 1997, p.100-101). Daí o esmero em atestar, em laudo, que
ânus de um Felipe não foi lesionado, mesmo tendo sido o “chupão” o vestígio a ser
materializado. Como destaca Roberto Efrem Filho (2016; 2017), o ânus é um espaço
aberto à brutalização dos corpos, seja pela peixeira nele fincada, seja pelas narrativas
que conectam o excesso de facadas, chutes, surras, deformações e fraturas cranianas
empreendidas em função da “homofobia”. Seu argumento, nesse sentido, desvela as
relações estreitas entre esse orifício e sua sexualização/violação. Também Sarti (2009),
por caminhos diversos, evidencia como a vítima de violência sexual é presumida e
marcada por gênero, inviabilizando assim a possibilidade de pensar o corpo de um
homem heterossexual como penetrável. Tal premissa materializa certos orifícios como
penetráveis enquanto, concomitantemente, produz perversos cortes de gênero que
limitam os serviços de saúde e de atendimento destinados a vítimas de estupro –
mulheres e homens.
Assim, ao que tudo indica, o atestado de que Alices e Lauras possuíam “hímen
integro, não apresentando rotura” parece intensificar o rigor descritivo para as
“exulcerações” e “fissuras sangrantes” encontradas nos genitais e no ânus de cada
uma delas respectivamente. Seus corpos, quando postos e observados em “posição
genupeitoral”, merecem descrições e afirmações bastante conclusivas do médico
legista.
Com nove anos de idade, uma Laura teve seu ânus visto, apalpado,
esquadrinhado e documentado com atenção:

“Ânus, apresentando fissura, rasgada sangrante, medindo 2 cm no


quadrante posterior, assim como, apresentando hiperemia em torno
da região anal”111

111
De seu ânus também foi colhido material para análises laboratoriais, com a inexistência de material
seminal.
144

Ainda que, em exame de “conjunção carnal”, essa região tenha sido retratada
pela máxima: “6. Ânus: sem lesões de interesse médico legal”. As mesmas
características estéticas são explicitadas nos laudos realizados para uma Alice. A
“exulceração (ruptura) longitudinal em toda a extensão do assoalho do vestíbulo
vaginal” é anotada, em diferentes lacunas, nos documentos de corpo de delito
confeccionados pelo IML. Enquanto seus “genitais externos de conformação” são
descritos como “normal para idade”, em exame de “conjunção carnal”, a mencionada
“exulceração (ruptura)” é registrada em seção especial – “genitais” – inserida no
laudo de ato libidinoso.
Em ambos os casos, a aparente contradição exposta por esses papéis apenas
reforça o argumento de que os documentos oficiais implicam em delimitações; em
resposta a cada demanda, certos pedaços de carne devem ser eletrizados, em declínio do
protagonismo de outros. Na “Conclusão”, a contundência quanto à relação entre a
lesão e o ato libidinoso contraria as esquivas sistemáticas desses profissionais em
afirmar a causa jurídica do ato investigado para crimes tipificados como estupro:

Uma Alice: “Do observado e exposto concluímos que a


examinada foi submetida a ato libidinoso coito vestibular”.
Uma Laura: “Do observado e exposto, concluímos que a
vítima foi submetida a ato libidinoso com características de tentativa
de penetração em região anal”.

Semelhantes roteiros são seguidos para o caso de jovens como uma Bianca. Aos
dezessete anos, uma Bianca foi examinada, nas dependências do IML, no dia 10 de
julho de 2004. Requisitado pelo delegado do 1º Distrito Policial de Campinas, seu laudo
de corpo de delito afirmou em “Histórico” que uma Bianca foi “forçada a relação oral
e anal nesta data”. Feito pouco tempo depois do ocorrido, o exame determinou, na
lacuna “Descrição”, que a jovem não apresentava “lesões corporais” a serem
atestadas. Mas estando uma Bianca em “posição genupeitoral”, os legistas deixaram
anotados “eritema e edema anal; observamos duas fissuras localizadas em posições
[ilegível] na região externa e interna”. E, “do observado e exposto”, concluíram “que
houve prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal”.
Mais uma vez, “fissuras” eram devidamente anotadas como sinal suficiente para
que o “ato libidinoso” fosse confirmado. Sem catálogos ou imagens fotográficas desse
tipo peculiar de úlcera ou lesão aberta na pele ou na mucosa anal, o laudo indireto
145

formulado para uma Joana e a completa ausência de laudo de ato libidinoso para
mulheres como Selmas eram, no mínimo, curiosos.
Sem acessar o corpo de uma Joana com seus próprios olhos, o legista faz
aparecer, em seu laudo, formas narrativas muito mais próximas do resumo. Seu laudo
revela, sem dúvida, uma tensão entre a função de legista ‘oficial’ e as práticas médicas
realizadas por outras instituições, também médicas, como hospitais que atendem à
vítima momentos depois do estupro ter ocorrido. Logo no início, no “Histórico”, o
legista declara ser o referido exame um “Laudo Indireto” feito “de acordo com a cópia
xerográfica do prontuário – HC XXXX-X/ do HC/Unicamp”. Em seguida, caracteriza os
motivos do referido exame:

“A vítima relatava ter sido abordada por desconhecido no caminho


para o cursinho, sob ameaça de arma, sendo obrigada a manter
relação oral e anal em [data]”.

A “Descrição” subsequente empreendida pelo legista especifica, mais uma vez,


que não foi ele quem ‘viu’ o corpo de uma Joana. Para tanto, a lacuna “Descrição”
ganha um complemento: “Do Exame”. Sem rodeios, o que foi visto e revertido em
descrição clínica é, então, retraduzido em termos de “interesse médico-legal”: “fissura
no ânus; mamas/genitais externos e internos: sem alterações e presença de escoriação
no quadril esquerdo”. Os exames sorológicos colhidos no dia “23.09.04” e “01.05.05”
resultaram negativos, foram anotados, porém nenhum deles foi discriminado com mais
detalhes, nem foi apresentado em anexo.
Sendo um exame “Indireto”, antes de expor suas conclusões, num item
discriminado pelo termo “Discussão”, o legista explica o motivo pelo qual chegou a tal
desfecho. Em resposta a uma disputa profissional entre a oficialidade do médico legista
lotado no IML e as dúvidas de que a “cadeia de custódia”112 obrigatória aos vestígios
foi seguida rigorosamente pelo CAISM, o legista explica:

“embora a presença de fissura anal possa ser compatível com o


histórico, outras causas de etiologia não traumática, mas patológica,
podem apresentar esse mesmo achado do exame”.

112
“Cadeia de custódia” é um termo técnico bastante usado pelos legistas para explicar os procedimentos
técnicos de recolhimento, manuseio e guarda de elementos colhidos durante o atendimento clínico
realizado em hospitais para casos variados de violência. Em linhas gerais, as “cadeias de custódia”
documentam a história da evidência, com o registro de posse de todos aqueles que a produziram. Nos
casos de estupro, o questionamento busca enfatizar a centralidade do saber médico-legal em detrimento
do atendimento clínico executado nessas instâncias hospitalares.
146

Sendo assim, proferem sua “Conclusão”: “De acordo com os dados médicos
fornecidos não temos elementos de certeza que permitam afirmar ou infirmar ter
ocorrido ato libidinoso”.
Ainda que exames indiretos redundem em outros expedientes bastante
corporativos, quando contrastados com os exames empreendidos em meninas e jovens
como Lauras e Biancas, eles incitam perguntas. Se “fissuras anais” podem ter origem
em “outras causas de etiologia não traumática”; por que é dado por certo que algumas
“fissuras, eritemas e/ou edemas” são, para certos diagnósticos, elementos de
materialidade e, para outros, motivos de dúvida? Ou, ainda, por que mesmo anotando
em “Histórico” que mulheres como uma Selma foram “vítima de ato libidinoso (sexo
oral e tentativa de anal)”, tais inspeções resultaram apenas em “exame de conjunção
carnal” e não “ato libidinoso”? Por corolário, por que o ânus figura como coadjuvante,
“sem lesões de interesse médico-legal”, enquanto o “hímen anular, carnoso, de orla
alta, apresentando rotura completa, cicatrizada, localizada em junção de quadrantes
anterior e posterior direito” de mulheres como Selmas reina soberano? Para essa última
pergunta, não surpreende que, na “Conclusão”, os legistas afirmem “que a examinada
apresenta roturas antigas e se ato libidinoso houve marcas não ficaram...”.
Os três pontos ao final da assertiva parecem graficamente zombar do leitor. Do
mistério e do enigma impostos aos pedaços de carnes que pairam autônomos dos corpos
periciados restam, factualmente, reticências. Digo isso pela própria qualidade do
material etnográfico aqui reunido. Em função de sua exiguidade e fragmentação, os
laudos e suas formas narrativas calcadas em himens e fissuras não redundam em
tipologias ou convenções narrativas robustas ou claramente discerníveis, tal como
construí em minha pesquisa de mestrado113.
Diferentemente daquilo que afirmei por meio dos inquéritos policiais, a leitura
desses laudos termina por correlacionar uma constelação de luminescências de
tonalidades, brilhos e distâncias variadas. Ou seja, diante da qualidade desses papéis,

113
Nessa pesquisa, com autorização da delegada titular, pude permanecer de modo intermitente durante,
aproximadamente, dois anos nas dependências da DDM, bem como reuni um corpus documental de mais
de duzentos inquéritos a serem analisados. Por meio da leitura sistemática desses papéis e da observação
das práticas de documentar ali gestadas, pude perceber que um mesmo ato (violência sexual) poderia ser
descrito de diferentes maneiras a depender dos cenários, da relação entre vítima e agressor ou ainda das
sensibilidades gestadas por escrivãs e delegadas no decorrer de uma investigação. Chamei essas formas
distintas de narrar de convenções narrativas. Elas se constituem, por meio do uso desigual de uma
variedade de termos. Foi a partir da correlação desses conteúdos às suas carreiras como bens
administrativos, nos termos de Vianna (2002) e da noção de “fábula”, tal qual descrita por Corrêa (1983),
que distingui três diferentes formas de narrar da polícia: Narrações Detetivescas, Casos de Família e
Narrações Empáticas. Para uma análise mais detida sobre isso, ver Nadai (2016; 2012).
147

interpretações e análises que intersectam eixos de diferenciação como gênero,


sexualidade, idade dos envolvidos ou os cenários do crime – na rua, perpetrados por
desconhecidos, em casa, em relações de parentesco ou ascendência etc. – escapam pelos
vãos dos dedos.
A “fissura, rasgada sangrante, medindo 2 cm no quadrante posterior, assim
como, apresentando hiperemia em torno da região anal”, revertida em materialidade
para o corpo de uma Laura, certamente, pode estar relacionada aos seus nove anos de
idade, ou ao fato de que seu pai fora acusado e preso em “flagrante delito” pela Polícia
Militar na residência onde supostamente uma Laura foi “molestada sexualmente”. A
coexistência desses dois elementos, alinhavada à empatia moral para casos envolvendo
menores e abusos domésticos de longa data, pode terminar por entrelaçar “fissura” à
materialidade. De todo modo, seu laudo é um, entre vários, cujo acesso me foi
negado. Para adolescentes como uma Luciana, supostamente abusada pelo pai, sem
“fissuras” como suporte e aferida sua virgindade, resulta impossível se gerar
engajamento moral e conclusão.
Por analíticas afins, os “eritema e edema anal [e as] duas fissuras localizadas
em posições [ilegível] na região externa e interna”, descritos em função da inspeção
criteriosa do ânus de uma Bianca poderiam ser compreendidos à luz da imediata
condução de uma Bianca ao IML. Ou ainda, pelo fato de uma Bianca ter sido uma entre
tantas vítimas violentadas por Ricardo Dias114. Tal interpretação seria reforçada pelo
laudo destinado a uma Alice. Vítima do “maníaco que aterrorizou Campinas”, uma
Alice era mais uma jovem adolescente cujo ato libidinoso foi atestado por intermédio da
“exulceração (ruptura) longitudinal em toda a extensão do assoalho do vestíbulo
vaginal”. Tal afirmativa ainda dialogava com entrevistas e comentários pessoais de
legistas por mim entrevistados. Sem dúvida, crimes em série mobilizavam as instâncias
policiais, exatamente por seus autores zombarem dessas instituições reincidindo, por
meio de um mesmo modus operandi. Tais criminosos circulam pelos mesmos lugares,
abordam vítimas semelhantes e insistem em repetir, sem prudência, o mesmo ato.
Contudo, construído por tais convencionalidades, laudos de mulheres como Joanas,
Madalenas e Selmas desmontam tais certezas. Em seus exames, “fissuras anais”,

114
Ricardo Dias foi acusado e condenado pelo estupro e atentado violento ao pudor de dezessete
mulheres na cidade de Campinas e de Sumaré, ambas cidades localizadas no interior do estado de São
Paulo. Ricardo Dias tem, em sua “vida pregressa”, uma condenação anterior – com pena de 10 anos –
por crimes de estupro cometidos na capital de São Paulo, na década de 90. Ricardo Dias também ficou
conhecido na cidade de Campinas em matérias de jornais como o “maníaco que aterrorizou Campinas”
(NADAI, 2012).
148

“lesões no quadril”, “hímen com rotura antiga” não corroboravam com conclusões
sobre o estupro e o ato libidinosos por elas vivenciados, ainda que todas elas tivessem
reconhecido “sem sombras de dúvidas” Ricardo Dias, como o homem que perpetrou
seus respectivos estupros. O leitor sagaz, porém, dirá: mas há outras marcações a serem
consideradas nesses casos. A idade das vítimas ou o fato de o exame de uma Joana ser
estetizado por meio de um “laudo indireto”.
Diante de minha indulgência com tais afirmativas e exatamente pelo caráter
escorregadio imposto ao corpus documental recolhido por mim, eu evitei afirmar
categoricamente que da forma-formulário padronizada resultam fórmulas e enredos que
acabam por modular diferentes convenções narrativas a esses papéis periciais. Ao
contrário, obstinei-me a evidenciar aquilo que desses modelos e papéis é possível retirar
como uma espécie de precipitado, de recorrência. O que os pedaços de carne
materializam? Ou, de modo mais imperativo, como tais pedaços materializam
corporalidades, orifícios e/ou pequenas fendas, “fissuras”? A resposta é ela mesma
traiçoeira. Da forma-formulário se segue um único gênero narrativo: os pedaços de
carne. Himens e fissuras são metonímias de vaginas, ânus e corpos integrais. Mas
“fissuras sangrantes”, diferentes de “roturas cicatrizadas e antigas”, incitam a pensar
os sentidos semânticos para ambos os termos. “Roturas” denotam rompimentos, cortes,
divisões que cicatrizadas estão, portanto, cerradas. “Fissuras” remontam dois diferentes
significados: a ideia de rachadura, pequena fenda ou cissura. E, por extensão, a noção de
paixão, apego excessivo, fixação ou loucura por algo ou alguma coisa. O “sangrante”
adjetiva a expressão com a pungência e a vivacidade.
Em contextos empíricos muito distintos, Maria Filomena Gregori (2016) e Maria
Elvira Benítez (2014; 2015) realizaram pesquisas que servem aqui de inspiração e mote
analítico para a distinção acima enunciada. Tomando a pornografia, o sadomasoquismo
e o uso de objetos eróticos, no caso de Gregori (2016), e a indústria pornô, práticas de
humilhação e dor e o mercado do sexo, no caso de Benítez (2015), ambas as reflexões
estão preocupadas em destacar os momentos nos quais, nos termos de Gregori (2016,
p.182), uma “zona fronteiriça entre prazer e perigo” é estabelecida mediante “tensões,
ressignificações e fissuras das normatividades de gênero e sexualidade”. Como
argumenta Benítez (2015):

“A fissura é a evidência de que a prática extrapolou a expectativa da


dor, é uma fenda onde o ato (ou representação do ato) se torna
149

violência, embora logo a fissura possa [sempre] se refazer (...)”


(BENÍTEZ, 2015, p.78-79).

Não há dúvida de que desde a sua fundação, no que tange a sexualidade, a


medicina legal exercida do Brasil esteve e ainda está fissurada por buracos cujas
constituições, distensões e aberturas ganham materialidade por intermédio de
membranas himenais e “fissuras”: pedaços de carnes falantes. Ao se fixarem em
fendas, pregas e membranas que servem de selo a aberturas, cujos fluxos devem ser
regulados (e/ou consentidos), como é o caso do canal vaginal e do ânus, suspeito que as
diferenças do ato de olhar empreendidos pelos especialistas em medicina legal e
consumidores de pornografia se esfumaçam. O deleite “pela dor em si, pelo sofrimento
na carne” para aqueles que consomem cenas de humilhação, como argumenta Benitez
(2015, p.85), é transmutado em ciência para aqueles cujo trabalho é observar,
esquadrinhar, vasculhar, documentar. Por caminhos tortuosos, ambos os espectadores
retiram, do domínio e da posse, um quantum de fruição.
Os consumidores de práticas de humilhação – esganamentos, escatologias,
sujeira, podolatria, sufocamentos – retiram prazer de situações de desigualdade e
hierarquia. Como enfatiza Benítez (idem), “nas estéticas da humilhação projeta-se a
ideia de que não existe o consentimento do escravo para os atos que com ele se realizam
e [para o qual] ele é uma vítima”. Todavia, se parece “uma tortura real”, aqueles que
consomem tais encenações “hiper-reais” sabem que as mesmas são ficções, cujo
propósito – provocar dor e medo – rabisca e produz fissuras. Ao interrogar o “sexo”
(orifícios, desejos e prazeres) de meninas e mulheres mediante técnicas médico-legais,
aqueles que se veem colocados na função e no cargo de legista/cientista/policial também
acabam por retirar um tipo peculiar de fruição das técnicas de inquisição/confissão para
as quais, por formação, rotina ou concurso, estão instigados a exercer115.
Um prazer que, ligado à produção da verdade, atuou sobre o “sexo” e, sem folga,
não cansou de fazê-lo falar, de eletrizá-lo, decifrá-lo, extorquir dele imagens,
modulações, desejos, morbidades e patologias. Nos termos de Foucault (1988):

“Os livros científicos, escritos e lidos, as consultas e os exames, a


angústia de responder as questões e as delícias de se sentir
interpretado, tantas narrativas feitas a si mesmo e aos outros, tanta
curiosidade, confidências tão numerosas (...) todo um cintilar visível

115
Como argumenta Foucault (1988), a confissão se desenrola numa relação de poder na qual aquele que
escuta não é um simples interlocutor. Ao contrário, é uma instância que “requer a confissão, impõem-na,
avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar” (FOUCAULT, 1988, p.61).
150

do sexual refletido na multiplicidade dos discursos, na obstinação dos


poderes e na conjugação do saber com o prazer” (FOUCAULT, 1988,
p. 70 -71).

Visto desse modo, é impossível não recordar os muitos comentários críticos


investidos aos esboços preliminares, produzidos por mim, para aquilo que até aqui
nomeei como pedaços de carne. Segundo tais leituras, os artefatos periciais, mas
também os modos narrativos pelos quais escolhi contar seus enredos e termos,
acabavam por levar o leitor a esquecer que os exames empreendidos em Alices,
Márcias, Madalenas, Joanas, Lauras, Lucianas e Biancas eram executados em pessoas
vivas. Os pedaços de carne ludibriavam o leitor e terminavam por forjar um corpo
fragmentado, mas, de modo absolutamente surpreendente, também inerte, pálido, cujos
buracos cheios de vivacidade – espetacularizados e exóticos (RAGO, 2008) – seduziam
todos aqueles que, à distância, pareciam dispostos a olhar116.
Como sugere Sontag (2003), falando sobre fotografias tiradas em contextos
variados de guerra, e eu transponho para pensar laudos e perícias, a compreensão dessas
atrocidades (dos corpos a serem periciados) passa, inevitavelmente, pelo impacto que
essas imagens (e descrições), como produtos técnicos (e burocráticos), adquirem quando
ganham estatuto de notícia (ou de prova material) e são veiculadas em manchetes de
jornal/revistas (e laudos). Nas palavras da autora, ao se fotografar algo – corpos
mutilados, pessoas torturadas, atrocidades as mais diversas – este conteúdo passa a
existir agora com status de real, fruto de uma realidade transparente, nua e crua. Como
sugere Boltanski (2004), há na possibilidade de observar e contemplar o mal – e eu
complementaria a dor, as lesões, o corpo desentranhado – um processo de fruição
estética. Para o autor, o estético como ciência do prazer, é então definido por um duplo
movimento em direção ao sublime e ao pitoresco. No primeiro momento, o horror
repercute no espectador, mostrando a ele o perigo para o qual todos estão expostos. No
segundo momento, o espectador experimenta o espanto com o feio, o prazer saboreado
em relação àquilo que se rejeita e repulsa.
Aqui parece se situar o interesse da medicina legal por esses pedaços de carnes
falantes. Incitada pelos argumentos de Foucault (2001), noto que as técnicas de
perscrutar himens e “fissuras” desvelam técnicas e saberes, fazendo emergir, “diante da
anatomia política do corpo”, uma “fisiologia moral da carne”: “corpo encarnado” e

116
Aqui busco enfatizar os muitos sentidos tramados por intermédio do verbo seduzir. Desde os
significados de atrair, encantar, fascinar, até aquele relacionado às astúcias e expertises (LUGONES,
2012) que induzem ao erro ou à desonra e ao defloramento de donzelas ingênuas e inexperientes.
151

“carne incorporada”. Tal fisiologia, conduzida “no nível do desejo e da decência”,


aprisiona a carne no corpo para nela instalar o ponto focal do “exame de consciência”
(FOUCAULT, 2001, p.238). A carne enquanto “corpo de prazer e desejo”, que deve ser
interrogado em suas diferentes partes, em suas sensações, em todos os seus efeitos de
prazer, passa paulatinamente das mãos do poder eclesiástico à medicina. Como sugere o
autor:

“foi na medida em que herdou esse domínio da carne, recortado e


organizado pelo poder eclesiástico, foi na medida em que se tornou a
pedido da própria Igreja, herdeira ou herdeira parcial, que a medicina
pode começar a se tornar um controle higiênico e com pretensões
científicas da sexualidade” (FOUCAULT, 2001, p.281-282).

Essa nova analítica do poder suportada pelos procedimentos de exame é uma


“vigilância permanente, classificatória, que permite distribuir os indivíduos, julgá-los,
medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo” (FOUCAULT, 1979,
p.62).

Entre “prejudicados” e “não recentes”: sobre arremates narrativos e (in)conclusões


médico-legais

“Esses casos vêm quase sempre precedidos da palavra “suposto” em


sua apresentação: “Suposto caso de defloramento...”, “suposta
tentativa de homicídio...”, “suposta cerebrorragia traumática
criminosa...” etc. E concluem inevitavelmente com uma apreciação da
perícia anterior, onde se leem frases do tipo: “O exame de corpo de
delito constante no documento que analisamos foi incompleto,
insuficiente e feito com preterição das regras fundamentais admitidas
em Medicina Legal (...)”” (CORRÊA, 1998, p.123-124).

“Aí é que vem a falha na coleta do material! O curso que eu fiz em


Coimbra, por exemplo, eu tiro toda a sua roupa em cima de um lençol
branco, de papel, já tem lá tudo pronto, nós não temos isso aqui... Aí,
até um pelo, aquilo que você vê em filme tal, que tenha ficado do
indivíduo em você, eu vou achar (...). [Além disso] eu não tenho uma
enfermeira acostumada a fazer exame. É sempre uma pessoa do sexo
feminino improvisada pra aquilo. Algumas pelo fato de já ter ido
ajudar duas, três, quatro vezes um certa [ÊNFASE], uma melhor
experiência... Até agora, nós não temos um foco de luz específica
colorida para evidenciar melhor a lesão, olha aí recurso material
[que falta]”. (Entrevista realizada em janeiro de 2015).

A primeira epígrafe com a qual inicio estes arremates foi retirada do livro de
Mariza Corrêa (1998). A autora, através da citação das frases em questão, assinala o
152

afinco e a dedicação de Nina Rodrigues em “autonomizar o campo da medicina legal do


da clínica e de marcar fortemente a sua presença no cenário médico e social como um
perito diferenciado de seus colegas clínicos gerais ou médicos funcionários da polícia”.
(CORRÊA, 1998, p. 124). Os tais “supostos”, comuns aos pareceres publicados pelo
médico-legista e exemplares em seus livros e artigos, eram, como sugere Corrêa (1998),
motrizes para sua “missão saneadora”. Não por outro motivo, ao longo de sua célebre
carreira, Nina Rodrigues colecionou inúmeros pareceres técnicos cujas funções eram
avaliar e atestar se as conclusões periciais inferidas por um referido laudo estavam
corretas. Também numa olhadela rápida em revistas de medicina da época – Gazeta
Médica da Bahia, Brazil-Médico, Revista de Medicina, para citar apenas algumas
utilizadas nesta tese – encontrei números expressivos de pareceres publicados por
diferentes médicos-legistas, com o intuito de divulgar procedimentos técnicos e
científicos importantes ao florescimento da disciplina.
Com distâncias temporais consideráveis e por contraponto, a segunda epígrafe
foi retirada de uma das entrevistas realizadas por mim junto a médicos-legistas lotados
no IML de Campinas. Perguntado por mim como eram realizados os exames de corpo
de delito em casos de estupro e ato libidinoso, um dos legistas buscou enfatizar tudo
aquilo que acaba por servir de obstáculo aos seus expedientes de trabalho na
corporação. Sem desabonar o serviço oferecido, mas salientando as muitas
precariedades que dão corpo à corporação117, o legista recordou-se da especialização
cursada por ele em Coimbra, Portugal. Nos casos dos crimes de estupro e ato libidinoso,
a falta de equipamentos adequados, enfermeiras especializadas para o atendimento
ginecológico e técnicas mais atuais, como aquelas que “a gente só vê no cinema”,
prejudica fundamentalmente a execução de melhores perícias. Como ele ironizou:

“por isso que no início da minha entrevista eu falei que 25 anos se


passaram e a gente viu uma evolução mínima, muito lenta! Aliás, eu
comparei isso com um elefante, mas elefante tem a pata grande e
cada vez que ele se movimenta dá um metro, não é elefante não, é
passo de tartaruga mesmo [risos]”. (Entrevista realizada em janeiro
de 2015).

117
Como evidencio em minha dissertação de mestrado, delegadas e escrivãs da DDM de Campinas
enfatizavam, com recorrência, a falta de mobiliário adequado, de infraestrutura básica ao prédio, assim
como, de recursos, pessoas e salários justos ao “duro” trabalho exercido. (NADAI, 2012). Outras
pesquisas também realizadas em setores de atendimento público e estatais reforçam esse mantra. Para ver
mais: Ferreira, 2016; Vianna, 2002; Lugones, 2012; Medeiros, 2012 etc.
153

De uma parte, as insatisfações quanto aos recursos humanos, tecnológicos e


materiais destinados ao IML seriam motivos suficientes para justificar as parcas
descrições e conclusões médico-legais veiculadas nos laudos de corpo de delito, corpus
documental de minha pesquisa. De outra parte, essa explicação me parece falha e
ingênua. Isso porque ela pressupõe uma espécie de justaposição equivocada. Ou seja,
reduz os efeitos (in)conclusivos impressos nesses papéis às insuficiências materiais,
humanas e técnicas dessas corporações. De modo semelhante, ao voltarmos nossa
atenção aos anseios de Nina Rodrigues, poderíamos julgar como fracassada sua
empreitada pessoal e disciplinar voltada a medicina legal. Contudo, ao que tudo indica,
ciência e tecnicidade permanecem até hoje emaranhadas pelos corredores do IML e da
universidade.
Nesse sentido, parece ser da imbricação desses dois excertos que as dimensões
conclusivas dos laudos de corpo de delito, apresentados neste terceiro capítulo, ganham
sentido. Se é verdade que os suportes materiais e humanos para a melhoria do serviço
oferecido pelo IML são escassos, também não é possível apagar as ressonâncias, por
vezes assustadoras, que permanecem vivas entre os laudos formulados nos anos de 2004
e 2005 e uma “história pregressa” da medicina legal no Brasil.
Ao afirmar tal injunção, lanço luz àquilo denominado por Foucault (2001) como
caráter “ubuesco”118 propagado nesses textos e expedientes periciais. Pelo termo, o
autor busca enfatizar o efeito “explicitamente, voluntariamente desqualificado pelo
odioso, pelo infame ou pelo ridículo” que se encontra nas engrenagens das mecânicas
do poder. Inerentes aos procedimentos da burocracia aplicada, como Foucault (2001)
enfatiza, o terror ubuesco não desqualifica o poder, ao contrário, deixa à mostra sua
incontornabilidade e sua inevitabilidade.
A noção formulada por Foucault (2001) a partir das conclusões risíveis e fatais
engendradas por laudos psiquiátricos redigidos em 1976, o mesmo ano do curso
ministrado por ele no College de France e intitulado “Os anormais” em nada destoa dos
laudos de corpo de delito de conjunção carnal forjados entre 2004 e 2005. No caso dos
primeiros, Foucault (2001) destaca a proliferação de termos como imaturidade
psicológica, personalidade pouco estruturada, sérios distúrbios emocionais,

118
Como fica assinalado em nota de rodapé na versão transcrita de seu curso “Os anormais”, o termo
ubuesco se refere à peça de Alfred Jarry, intitulada Ubu Rei. Em tal obra teatral, o autor destaca o caráter
grotesco, absurdo ou caricato do personagem Ubu. Este último, instigado por sua esposa, mata o rei e
assume o trono. Ao fazê-lo, Ubu Rei instala um governo de pura tirania.
154

donjuanismo, manifestação de orgulho perverso etc.119. Diante de tais categorias, o


autor busca sublinhar uma “espécie de desvinculação, ou ainda, de involução no nível
da normatividade científica e racional” que se pode apontar entre um campo médico e o
gênero narrativo empreendido em laudos destinados a enclausurar ou absolver alguém
(FOUCAULT, 2001, p.30).
No segundo caso, os laudos de corpo de delito reunidos, aliados às aulas de
medicina legal, às entrevistas, às bibliografias, pareciam remontar a meados do século
XX. Frases como “comprova-se que ela [a vítima] não é mais virgem, porém sobre o
crime não se pode fazer nada“ eram dignas de riso e incredulidade. Havia, todavia, uma
distância temporal que precisava ser colocada em perspectiva. Enquanto, nos primeiros
anos de 1900, os laudos fornecidos por Afrânio Peixoto eram condizentes ao campo de
saber médico-legal que florescia no Brasil, em 2004 e 2005, um abismo de mais de um
século de investimento científico em áreas como a ginecologia, a sexologia e a saúde
reprodutiva se interpunha à feitura dos laudos de Alices, Madalenas, Joanas, Selmas,
Lauras, Lucianas e Biancas (ROHDEN, 2001). Além disso, as preocupações penais e
médico-legais para temas como a honra sexual e a sexualidade feminina, em meados do
século XX, entrelaçavam-se com a realidade social em questão: promulgação de direitos
às mulheres, o lugar da moral religiosa na sociedade e a autoridade da família como
gérmen do progresso (CAULFIELD, 2000). Em contraposição, nos debates atuais, tanto
para o campo jurídico quanto para tecido social, a sexualidade feminina tem sido pauta
política de emancipação reivindicada pelos mais diversos feminismos existentes no
Brasil (FACCHINI; FERREIRA, 2016) e a virgindade não aparece como central ou
relevante. Como Caulfield (2000) nos incita a perguntar a laudos e saberes/práticas
médico-legais: “que virgindade é esta” sempre obrigatoriamente vista, observada e
documentada?
Ao esmiuçar os dizeres dos papéis e, mais tarde, ao questionar aqueles que
“supostamente sabem” e devem ensinar, por meio da prática, a outros, nos termos de
Foucault (2001), fiquei surpresa ao perceber que modelos, padrões e técnicas são
replicados porque desde sempre foram feitos assim. Nesse sentido, as perguntas
obrigatórias que encerram o laudo e, nos termos de Nina Rodrigues, exigem respostas
contundentes, sem supostos ou dúvidas, realçam apenas, e sobretudo, (in)conclusões.

119
Ao tratar dos exames psiquiátricos em matéria penal, o autor visa sublinhar, contudo, que tais
terminologias, como qualificações morais, permitem um deslizamento do crime à conduta, do criminoso
ao delinquente, e constitui um médico que será médico-juiz a um só tempo. Para ver tais imbricações no
Brasil: Carrara, 1998 e Fry, 1982; 1985.
155

O próprio roteiro, enumerado de 1 a 7 para laudos de conjunção carnal e de 1 a 8


para exames de ato libidinoso, impulsiona a respostas como “prejudicados” e “não
recentes”. Para tanto, o legista deve perguntar, com destreza, a certos pedaços de carne
se eles foram penetrados ou se com eles foi praticado ato libidinoso, quando ocorreram
e em que consistiram os atos, se eram ainda virgens em tal data, se houve violência na
prática do ato, seja ele a penetração ou não. Deve-se perguntar ao corpo que dirá,
através da sua carne, algo sobre a ‘violência’: qual o “meio” utilizado para feri-la, se
ficaram na carne marcas dessa ação, que debilidades lhe foram impostas, se disso
resultou restrições parciais ou permanentes de movimentos, forças, aptidões, funções.
Houve aborto? Parto prematuro? Finalmente, deve-se saber, com certeza, se tal corpo
era “alienado”, “débil mental” ou se, por “qualquer outra causa”, não pode resistir.
Ao dar atenção às perguntas, intento sublinhar como esses laudos incitam o
legista a dar importância aos termos médicos em detrimento da tipificação e da queixa
que dão urdidura à feitura do exame. Os quesitos insistem em noções como “conjunção
carnal”, “ato libidinoso”, “virgindade”. A violência, por sua vez, segue distinta da
violação e estetizada por infortúnios outros como debilidades físicas, restrição de
movimentos e funções fisiológicas, aborto, parto prematuro.
Não causa surpresa que na grande maioria dos laudos, em função de
responderem não haver “lesões corporais de interesse médico legal”, essas perguntas
recebam como resposta o termo “prejudicado”. Se para a violência nada se pode
atestar, a resposta “Sim” ou “Não” é sempre anotada quando se trata da pergunta:
“houve conjunção carnal?”. Em seguida, para aquelas mulheres e meninas em que
“sim, houve conjunção carnal”, para o quesito “qual a data provável dessa
conjunção?” enfatiza-se que a mesma se deu em “Data não recente”.
A afirmação da “conjunção carnal” alinhavada à asseveração de que ela ocorreu
em “data não recente” alude a todas as injunções do começo do século XX que seguem
vivas, não questionadas e presentes nos exames destinados a vítimas de estupro. Eis
aqui as artimanhas engendradas na relação entre “conclusões” e “quesitos
obrigatórios”. Quando o legista atesta que “ocorreu conjunção carnal”, mas ela foi em
“data não recente”, sua afirmação tem por urdidura o hímen. Nesse caso, as roturas
himenais antigas, cicatrizadas ou reduzidas a carúnculas mirtiformes determinam que o
“defloramento” é antigo. Afinal, se fossem “recentes” apresentariam “ferida contusa
de bordas irregulares e sanguinolentas: a inflamação e a supuração que sobrevêm,
156

retardam a cicatrização”120 (FREIRE, 1923). A relação sexual, sem consentimento,


mediante violência ou grave ameaça, portanto, é eclipsada pela determinação (nula)
sobre a primeira relação sexual experimentada por essas mulheres e meninas que
chegam ao IML. Ou seja, “defloramentos” ocorridos há muito tempo, supostamente sem
violência, ganham a cena relegando aos bastidores o estupro enquanto causa jurídica.
Como um legista destacou:

“Os exames de conjunção carnal daquelas pessoas que já tiveram


conjunção carnal, já têm o hímen roto de muito tempo atrás, também
não exigem muito. O que realmente exige são os estupros, as
primeiras relações quando você vê o hímen roto de data recente, com
fibrinas; muitas vezes você pode ter dificuldade de definir se é uma
rotura ou se é um entalhe. Existem algumas diferenças aí que são
conceituais”. (Entrevista realizada em janeiro de 2015).

Entretanto, a contradição tramada por esses laudos assume contornos ímpares


quando para o quesito “Era virgem a paciente?”, a expressão “prejudicado” é
escolhida pelos legistas. Mesmo nos exames orientados a desvelar virgens já defloradas,
os legistas, quando são indagados sobre isso, titubeiam. Ainda que pareça redundante e
prolixo, em todos os casos aqui apresentados, Madalenas, Márcias, Selmas, Alices,
Lucianas e Lauras, a rotura ou a integralidade do hímen, sua forma e constituição são
esquadrinhadas com minúcia e seriedade. Salta aos olhos, também, as conclusões dos
legistas sempre restritas a esses cenários: “hímen com roturas antigas”, “com
carúnculas mirtiformes”, “cicatrizados” ou, seu contrário, “hímen integro não
apresentando roturas”, “não manteve conjunção carnal, portanto é virgem”. Como,
então, ao mirarem olhos, dedos e luzes em himens os mais variados, chegam esses
profissionais à intrigante sintaxe: os elementos recolhidos não são suficientes para
responder “sim” ou “não” sobre a virgindade ali perscrutada com tanto zelo e
dedicação?
Minha insistência em sublinhar essas incongruências tem como horizonte os
exames nos quais a expressão “prejudicado” foi usada pelo legista com um pouco mais

120
Ainda que o artigo de Oscar Freire (1923) remeta, explicitamente, a defloramentos chama atenção
como suas recomendações são espelhadas às respostas dadas para os quesitos obrigatórios em casos de
estupro. Digo isso, em função da afirmação já mencionada nesta seção: “Comprova-se que ela não é mais
virgem, porém sobre o crime não se pode fazer nada”. Em seu artigo, Freire (1923) afirma ser confusa tal
expressão e que melhor seria dizer, somente, que o hímen se encontra ou cicatrizado ou sangrento. Isto é,
se os retalhos himenais se apresentam arredondados e com as pontas esbranquiçadas; ou se ainda são
franjados, irregulares, avermelhados e com presença de sangue. O tempo de cicatrização para a membrana
roturada em data recente é de oito dias, mas excepcionalmente pode demorar até doze dias para ela estar
completamente cicatrizada.
157

de cautela. Se o “hímen íntegro” de uma Laura não permitiu respostas conclusivas


quanto a sua virgindade, a “fissura sangrante” em seu ânus se reverteu em quesitos
com respostas objetivas e diretas. “Sim”, houve prática de ato libidinoso, consistente
com “possível manipulação genital”. E mais, houve “sim” violência e ela é
“presumida”. Isso porque o legista é enfático em afirmar a causa que impossibilitou
uma Laura de resistir: sua “tenra idade”. Os mesmos expedientes aparecem
formalizados para o laudo de uma Alice: “sim”, houve ato libidinoso, “provavelmente
coito vestibular”; “sim”, houve violência e ela foi praticada por “instrumento
contundente”. O vocábulo “prejudicado” aparece anotado, apenas, uma única vez. Se
os legistas não podem ter certeza quanto a outras causas que poderiam ter feito uma
Alice resistir, ela, todavia, “não” era “alienada ou débil mental” e, do ato não teve
perda de movimentos, debilidades físicas, aborto ou parto prematuro.
A “tenra idade” de uma Laura, elemento jurídico (e não médico) de sua
resistência ao ato libidinoso, revertia-se em novos “prejudicados” em casos de
mulheres jovens e adultas. Os legistas nada podiam confirmar ou afirmar sobre ‘algo’
que pudesse ter impedido Madalenas, Selmas, Lucianas ou Márcias de resistir. Suas
respostas enfatizam que armas de fogo – como a que foi citada no “Histórico” de
mulheres como uma Márcia – mesmo produzindo “grave ameaça”, na letra da lei, não
deixou vestígios que dessem “elementos” para “afirmar” essa como a “causa” que
teria “impossibilitado a vítima de resistir”.
Com o tempo e a leitura sistemática desses laudos, percebi que até mesmo o
quesito sobre alienação ou debilidades mentais das vítimas recebia o vocábulo
“prejudicado”. A resposta, contudo, não parecia significar que os legistas guardassem
qualquer tipo de dúvida sobre a condição mental das meninas e mulheres por eles
atendidas. O uso indiscriminado da expressão destacava que seu sentido de incerteza
deslizava e se confundia com um tipo de resposta padrão, automática e vazia de
significação médico-legal. O fato de certos estupros “não exigirem muito” da perícia
era formalizado no próprio laudo. A “série de termos ou elementos manifestamente
caducos, ridículos e pueris”, nos termos de Foucault (2001, p.41), estetizados nos laudos
como provas materiais, todavia, contrastava com o imaginário de responsabilidade e
responsabilização imposto ao IML.

“quando é violência sexual é um problema! Quando eu respondo


positivo ou negativo, eu vou, vamos dizer, eu vou implicar na prisão
de alguém, então é uma responsabilidade muito grande (...) Por isso
158

que a gente tem fé pública, eu não posso escrever qualquer bobagem!


[ênfase]”.
(...)
“nós temos meia hora para fazer o exame, temos que produzir as
provas, aquelas provas possíveis e, depois de vinte anos, tempo que
pode correr um inquérito, um processo, onde vai ser questionado
tudo!! O senhor viu isso? O senhor pesquisou aquilo? O senhor
procurou isso? Com calma e tranquilidade, ele [o advogado] tem
vinte anos para isso e nós temos meia hora para produzir prova;
prova sem recurso, né?!”. (Entrevista realizada em janeiro de 2015).

As provas produzidas em curtos espaços de tempo para os legistas tinham


implicações sérias: podem prender ou deixar livre um dado indivíduo. Como argumenta
Foucault (2001), diante de exames médico-legais destinados à psiquiatria forense, é
exatamente pela injunção do caráter risível e de seu estatuto solene de dar vida ou tirar a
morte que tais artefatos documentais merecem muita atenção. Isto é, tais papéis são
discursos de verdade.

“discursos de verdade porque discursos com estatuto científico, ou


como discursos formulados, e formulados exclusivamente por pessoas
qualificadas, no interior de uma instituição científica” (FOUCAULT,
2001, p.8).

Como garantem os legistas, não se pode “escrever qualquer bobagem!”. Aqui


incide a contradição. Exatamente porque científica a aferição correta e criteriosa do
hímen ou das causas etiológicas de uma “fissura” termina, ironicamente, por nada
provar. Tal orientação, entretanto, não responde apenas ao saber técnico e médico-legal,
mas, sobretudo, a instâncias nas quais a prova será contestada, interpretada e avaliada.
Como será objeto do quarto e no quinto capítulos desta tese, os vestígios são elementos
disputados nas instâncias judiciais, midiáticas e dentro dos próprios setores técnico-
científicos.
A implicação da “fé pública” se reverte, portanto, num compromisso com um
nome próprio e uma corporação. Aqui parece se localizar, com nitidez, o imbróglio
imposto ao laudo de uma Joana. Seu exame “indireto” impõe um véu. A carne,
disposta em palavras, perde seu vigor. As disputas em torno da produção das provas
materiais são extremamente atuais e incidem sobremaneira no cotidiano de atendimento
para casos de violência sexual. Aquilo que legistas nomeiam como as “cadeias de
custódia”, obrigatórias à coleta de vestígios materiais, oculta mecanismos de distinção
internos entre médicos e médicos-legistas. Lacres para evitar contaminação, técnicas de
extração de elementos de “interesse médico-legal”, o privilégio no exercício de uma
159

carreira pública e as fronteiras daquilo definido como ético desfraldam algumas das
querelas sobre a inaptidão e a impossibilidade das provas serem colhidas em hospitais e
por médicos, que não são, por ofício e concurso público, legistas.
Exatamente por isso, “fissuras” podem ser resultados de “outras causas
etiológicas” que não a penetração, com violência, retratada por uma Joana e motivo
pelo qual seu prontuário chegou aos escaninhos do IML de Campinas. Também as
“escoriações” encontradas em seu “quadril esquerdo” são insuficientes para dar
legibilidade e materialidade à violência narrada à Polícia Civil. Nesse caso, a expressão
“prejudicado” é, por escolha e proteção, um termo unívoco. Contudo, como apresentei
até aqui, a resposta mediante o uso do termo “prejudicado” é apenas um dos recursos
discursivos manejados por legistas na feitura de laudos periciais. Se tal artifício parece
mais explícito, outros estilizados por expressões como “provável”, “possivelmente”,
“suposto” ou “não temos elementos” reatualizam as (in)conclusões como arremate e
solução médico-legal. (NADAI; VEIGA, 2014).
Nesse sentido, não se trata de avaliar o IML como ineficiente ou seus papéis
como nulos ou inúteis, ao contrário, importa sublinhar o efeito de autoridade e o risco
de sua perda contidos nesses papéis. Os muitos anos nos quais as provas produzidas em
“meia hora” podem ser questionadas impõem, àquele que assina um laudo, uma dose
generosa de prudência. Também, questões geracionais e de experiência no ofício se
interpõem quanto à forma e o rigor por meio do qual um profissional profere e/ou se
compromete com certas conclusões médico-legais. Como enfatizou Carvalho “tem que
se proteger”. Proteção que como espinha dorsal do IML, espalha-se por todo o tecido
que constitui a corporação. Aqui, a expressão arriscar autoridade, cunhada por mim no
primeiro capítulo desta tese, ganha novos contornos.
Inspirada pelo trabalho de Juliana Farias (2014), gostaria de enfatizar o caráter
discricionário e rotineiro por meio do qual se deixa de dizer certas conclusões ou
responder certos quesitos. Em sua pesquisa sobre execuções sumárias empreendidas por
agentes estatais contra moradores de favelas do Rio de Janeiro, a autora se debruça, com
bastante atenção, sobre os laudos cadavéricos como “plataformas de registro pericial”
(FARIAS, 2014, p.154). Para tanto, a figura de um legista aposentado é estratégica.
Como destaca a autora, em reuniões com familiares, promotores e em seu próprio
parecer técnico-científico, Dr. Saul foi enfático ao condenar o exame fornecido pelo
IMLAP à morte de Emanuel. Farias (2014) apresenta a cena etnográfica:
160

“Dr. Saul solicitou que João Luiz se posicionasse de joelhos no chão,


com as duas mãos na cabeça, como se estivesse rendido – posição na
qual provavelmente encontrava-se Emanuel, no momento em que
foi atingido, como argumentava o perito. A explicação técnica teve
sequência a partir da simulação da posição na qual se encontrava o
fuzil de onde se efetuou o disparo que atingiu Emanuel naquele
episódio do Morro do Russo: Dr. Saul demonstrou como a
extremidade final do cano deveria estar próxima à parte de trás da
cabeça, lembrando que os fuzis utilizados pelos policiais militares
possuem eventos laterais, através dos quais, no momento do disparo,
são expelidos grânulos da pólvora que, em contato com a superfície da
pele, produzem a marca caracterizada como zona de tatuagem. Daí a
dedução de que Emanuel deveria estar com as mãos na cabeça
(provavelmente algemado, seguindo a interpretação do perito),
pois esta é a posição sugerida pela presença da zona de tatuagem
no braço esquerdo da vítima” (FARIAS, 2014, p.151-152).

Farias (2014), interessada nas disputas, nos usos e nos efeitos que carregam
esses artefatos periciais para a judicialização de execuções sumárias ocorridas em
favelas do Rio de Janeiro, questiona as (in)conclusões forjadas por esses papéis. O
laudo cadavérico, no entanto, não aparece como objeto explícito de sua reflexão. Ou
seja, os papéis são vistos por meio das autoridades que – responsáveis por preencher,
carimbar e assinar papéis – concluem e respondem quesitos obrigatórios por lei em
casos de morte violenta121.
Na opinião especializada de Dr. Saul, os legistas do IMLAP tinham condição de
responder com certeza se tivessem se informado sobre as “dinâmicas dos fatos”
investigadas pelo Instituto de Criminalística Carlos Éboli. Contudo, como destaquei em
negrito, termos como “dedução”, “provavelmente” ou “deveria estar” salientam uma
disputa sobre como e para que fins se deve conduzir um exame pericial. Deduções e
hipóteses parecem contrastar, frontalmente, com aquilo que meus interlocutores
definem como materialidade. Entre inspecionar a carne, anotar na silhuete o T,
referência à zona de tatuagem, e relacioná-lo a outras lesões e dinâmicas dos fatos, há
uma impossibilidade para uns, um dever para outros. Não são escolhas no sentido
robusto do termo. Nem parece frutífero transferir a questão para o reino das

121
Sustenta a tese de Farias (2013), nesse sentido, que o T – a zona de tatuagem, carimbo da polícia
militar marcado na pele do braço esquerdo de Emanuel – anotado e esquecido na silhueta do laudo
cadavérico não é convertido em elemento conclusivo: nem sobre se houve morte, nem sobre qual a sua
causa, menos ainda sobre qual o instrumento ou meio a produziu. Numa espécie de excesso descritivo,
alguns termos ou grafias circunscrevem a morte: explicita-se por meio das palavras, o ferimento
transfixiante de crânio com lesão de encéfalo por ação perfuro-contundente, mas nada é dito sobre a
distância a que ele foi executado, nem sobre suas correlações com a zona de tatuagem anotada em laudo.
161

responsabilidades individuais, circunscrevendo bons e maus legistas que atuam em


Campinas, no Rio de Janeiro ou no Brasil.
Se não se trata de um erro, uma má atuação, um suposto “sexismo/racismo”
cumprido por um determinado profissional individualmente mal-intencionado, todavia,
não parece mera coincidência que seja sobre certos crimes e corpos que incidam os
dilemas de se materializar vestígios e criminalizar atos. Aquilo que meus interlocutores
executam como rotineiro, estratégico ou “a melhor solução administrativa” desvela
como as instâncias estatais forjam a si mesmas e os corpos/pedaços de carne que
buscam governar, como elementos atravessados e constituídos por gênero, sexualidade,
geração, classe, raça, origem social etc. (VIANNA; FARIAS, 2011; VIANNA, 2014,
VIANNA; LOWENKRON, 2017). Isto é, tais instâncias produzem uma infinidade de
descrições, corpos, crimes e todo um tecido moral que constitui mutuamente o crime, o
criminoso e aquele que pode ser enquadrado enquanto vítima.
Daqui em diante, portanto, intento direcionar a reflexão para as implicações
administrativas, políticas e científicas inscritas nos expedientes da Polícia Técnica e
Científica. Para tanto, tomo como reflexão as tramas políticas que enredam outros
legistas, exames/tomos médico-legais e instituições e setores da Polícia Técnico-
Científica. Os laudos e as perícias, tal como processos de guarda de menores, desnudam
“o paradoxo de um Estado que não pode fugir daquilo que também não consegue
realizar” (VIANNA, 2002, p.237). A trajetória controversa de Badan Palhares incita a
pensar sobre o risco de interpretar, deduzir e/ou querer unir numa só plataforma
documental, os corpos e as “dinâmicas dos fatos” relativos a mortes políticas, ocultação
de cadáveres e criminosos de guerra.
162

Capítulo IV. “Por que converso com os mortos”: entre histórias, casos e
acontecimentos.

“(...) o mundo tal qual nós o conhecemos não é essa figura simples onde
todos os acontecimentos se apagaram para que se mostrem, pouco a pouco,
as características essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último; é ao
contrário uma miríade de acontecimentos entrelaçados; [se] ele nos parece
hoje "maravilhosamente colorido e confuso, profundo, repleto de sentido"; é
que uma "multidão de erros e fantasmas" lhe deu movimentos e ainda o
povoa em segredo. Cremos que nosso presente se apoia em intenções
profundas, necessidades estáveis; exigimos dos historiadores que nos
convençam disto. Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós
vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias, em miríades
de acontecimentos perdidos”. (FOUCAULT, 1979, p. 28)

Há um caráter enigmático e escorregadio nas histórias, casos e trajetórias profissionais


apresentadas daqui em diante. Foucault (1979), preocupado em discutir as correlações entre
genealogia e a escrita histórica, é sagaz ao dizer que vivemos em “miríades de acontecimentos
perdidos”. Sua proposta para as tentativas vãs de desvelarmos os segredos e aquelas intenções
profundas, que supomos sustentar o presente é um manifesto metodológico. Ele se recusa a
procurar a origem das coisas: “seu segredo essencial e sem data”. Ao contrário, lança-se
àquilo que é disparatado, embaralhado e riscado. A genealogia, para tanto, é a ferramenta a
ser utilizada. Segundo o autor, uma “história efetiva” deve ser escrita mediante o uso de um
recurso “cinza”, “meticuloso” e “pacientemente documentário” (FOUCAULT, 1979, p. 15).
Diante de meu não acesso às dependências e à rotina de trabalho do IML de
Campinas, eu me vi obrigada a dar atenção a certos “pergaminhos riscados” cuja existência
deixam “à meia-luz”122 uma “multidão de erros e fantasmas [que] deu movimentos e ainda
povoa em segredo” essa instituição. Para seguir o manifesto de Foucault (1979), todavia,
nesses próximos capítulos desta tese, fui instigada a deixar em segundo plano a materialidade
física – grafias, conteúdos, formas e formatos – imposta à feitura de laudos de corpo de delito
e relatórios necroscópicos. Em seu lugar, direcionei minha atenção aos usos, efeitos e disputas
que esses papéis carregam e ensejam (FERREIRA, 2013; NAVARO-YASHIN, 2007). A fim

122
Faço aqui referência ao termo utilizado pelo antropólogo Camilo Albuquerque de Braz (2010) em sua tese “À
meia luz...Uma etnografia imprópria em clubes de sexo masculino”. Pelo termo, o autor busca circunscrever um
espaço específico dos clubes de sexo, cujo objetivo é privilegiar o sexo e a caça. Esse local, no qual a penumbra
e um tipo particular de silêncio imperam, é utilizado pelo antropólogo como recurso analítico. O intuito é
demonstrar as ambivalências que constituem esses clubes, seus frequentadores e as práticas sexuais ali
realizadas. Como sugere Braz (2010), “(...) é possível ― acender a luz e enxergar, nas salas de sexo dos clubes
masculinos, a reiteração de normas hierarquizantes de gênero. Mas também é possível permanecer na penumbra,
iluminando algumas de suas partes e questionando se, afinal de contas, essas práticas à meia-luz não podem vir a
ser potencialmente desconcertantes de suas próprias convenções” (BRAZ, 2010, p. 240).
163

de conseguir realizar essa arriscada empreitada, buscarei alinhavar diferentes gêneros textuais:
autobiografia, notícias de jornal, livros e documentos legais. Materiais com caráter polifônico
advindos de diferentes emissores que muitas vezes se sobrepõem e, sobretudo, competem.
Destinados a uma gama variada de espectadores, jornais, autobiografias e perícias guardam,
em suas materialidades, distintos interesses e engajamentos. As costuras empreendidas no
texto, portanto, respeitam alguns procedimentos de alinhavo.
O primeiro deles diz respeito ao uso que faço da autobiografia e do website de Badan
Palhares123. Eles interessam, a esta tese, por serem capazes de iluminar as tramas pelas quais o
IML de Campinas ganhou certo relevo na medicina legal brasileira. Importância visível não
enquanto instituição pericial, mas por intermédio da correlação entre os nomes que
compunham seus quadros de funcionários e a construção de um Departamento de Medicina
Legal e Ética (DMLE) na Unicamp. Seguindo as orientações de Joan Scott (2012), entendo
que a forma pela qual Badan Palhares registra e cristaliza sua carreira e seus casos, de
relevância profissional e política, desnuda um modo de “explorar como a diferença é
estabelecida, como ela opera e como e de que maneira constituem sujeitos que veem e atuam
no mundo” (SCOTT, 2012, p. 302)124.
O segundo procedimento informa sobre o uso que, neste e no próximo capítulo, farei
de noticias de jornal, documentos públicos, relatórios parlamentares e livros acadêmicos.
Preocupada com a construção dos casos envolvendo Badan Palhares, o IML e diferentes
universidades do estado de São Paulo, optei por empreender um uso herético desses artefatos
documentais. Ou seja, sendo eles gêneros textuais específicos cujas produção, circulação e
recepção respondem a múltiplos interesses, busquei fixar minha leitura no conteúdo veiculado
por esses papéis, ao invés de me dedicar a analisar as condições formais que os constrangem e
organizam.

123
Publicada pela editora Landscape, em 2007, sua autobiografia é dividida em três partes e quarenta e três
capítulos e se apresenta como uma espécie de história ‘quase’ linear de sua carreira e de sua vida pessoal.
Escolhidos a dedo pelo próprio Badan Palhares, os fatos pessoais julgados por ele importantes são mencionados
com vistas a construir motivações, bem como indicar, por exemplo, as razões que o instigaram a se tornar
médico-legista. Diretamente conectado a isso, uma multidão de desafetos, contendas e tramas políticas aparecem
como o cerne de seu livro e de sua carreira. Numa espécie de replicação e justaposição, seu web site oficial
orienta e complementa, com mais detalhes visuais, sua carreira acadêmica e profissional. Como uma espécie de
biografia digital de alcance incalculável, o click com o mouse no link “Entrar” do site abre um mundo de abas,
fotos, documentos históricos e bravatas acadêmicas. Para ver o website:
http://www.badanpalhares.med.br/home.htm.
124
Ao dizer isso, saliento que os enquadramentos escolhidos por mim acabam por deixar em baixo relevo uma
multiplicidade de miradas possíveis a essa narrativa, em especial a própria ideia de autobiografia como gênero
literário que conjuga simultaneamente noções como memória, escrita de si ou diário/relato confessional.
Contudo, minha escolha por utilizar expressões cunhadas pelo próprio Badan Palhares, para os tópicos que
seguem, busca enfatizar os empreendimentos biográficos destacados pelo legista. Para uma recomposição da
biografia de Palhares, ver anexo IV.
164

Em relação aos jornais impressos, elegi o jornal Folha de São Paulo como principal
periódico de consulta. A escolha tem por fundamento o uso que o próprio Palhares faz das
reportagens publicadas nesse periódico, mas também as características de produção, tiragem
nacional e acesso do mesmo. No que tange ao conteúdo das manchetes e reportagens
selecionadas, a maioria delas se encontram publicadas no “Primeiro Caderno” do periódico
dedicado à “vida política, institucional e aos movimentos sociais”. Para os casos da “Vala de
Perus” e de “PC Farias”, grande parte das reportagens foram publicadas na seção “Brasil”.
Para o caso “Mengele”, as publicações se encontram predominantemente dispostas na seção
“Internacional”. Todos os casos contam com períodos de publicações diárias – da construção
do caso até seu clímax – e com momentos de arrefecimento de notícias e manchetes. Tais
formas de noticiar revelam distintas estilísticas: imagens meramente ilustrativas ou fotografias
de impacto, reportagens mais ou menos extensas, manchetes de capa ou dossiês que tomam
páginas inteiras do periódico125.
Como afirma Lomnitz (2014), em torno do caso Arroyo126, a mídia impressa, por meio
de rumores e relatórios incompletos ou reticentes, alimenta a voracidade do público em torno
de um determinado crime ou escândalo. Inspirada por Sontag (2003), destaco que tais
notícias, assim como as imagens e fotografias, são o registro de um real, do real visto por um
certo alguém que esteve lá para capturar tais imagens e “furos de reportagens”. Como
salienta a autora, se repórteres se tornam famosos pela coragem de terem estado na guerra,
testemunharem e obterem imagens perturbadoras, aqui, tal destemor leva a reportagens
“exclusivas”, investigações e reviravoltas políticas. O estilo narrativo inspirado pelas novelas
de mistério dá “forma, direção e efeitos políticos” (LOMNITZ, 2014, p. 92) para todos os
casos que serão narrados nas próximas páginas. Ou seja, a mídia impressa, na figura da
“Folha de São Paulo”, como um personagem ou um ponto de vista aparentemente neutro e

125
Nas próximas páginas, não farei menção a tais estilísticas. Apenas para fins informativos destaco a
localização da notícia (página) e sua data de publicação. Quanto a outros jornais, eles serão utilizados apenas
estrategicamente quando suas informações lançarem luz ao argumento empreendido nos próximos capítulos.
Finalmente, ainda que fosse possível uma análise pormenorizada de como os periódicos constroem publicamente
tais casos, os jornais, enquanto gênero narrativo, não são meu objeto de análise nesta tese, eles apenas
comparecem como parte do universo empírico no qual sustento as várias versões dos casos. Para um itinerário
resumido da pesquisa realizada em jornais, ver Anexo III.
126
O caso Arroyo foi um dos primeiros escândalos públicos ocorridos no México. Em 1897, uma tentativa
frustrada de ataque ao ditador Porfirio Diaz desencadeou uma onda de distúrbios amplamente veiculados pela
mídia impressa. O suposto agressor, Arroyo, foi preso e assassinado em sua cela por populares que teriam
invadido a delegacia e executado seu linchamento. O falso distúrbio, todavia, era um plano arquitetado pela
própria polícia mexicana. Entre acusações e rumores sobre a origem das ordens que culminaram na morte de
Arroyo, o delegado da delegacia que confessou o plano se suicida em sua cela, com seu próprio cinto. Em seu
artigo, Lomnitz (2014) explora as controvérsias que forjam o caso Arroyo e seus respingos na figura salvadora
de Porfirio Diaz, na truculência da polícia mexicana, na conivência e corrupção das elites políticas e na
passividade/violência da sociedade mexicana.
165

imparcial, ao contrário, atua e tem efeitos fundamentais na construção de casos e perícias127.


Assim, ainda que não seja objetivo desta tese analisar os enredos e formas por meio dos quais
os jornais constroem suas notícias e ‘furos de reportagem’, é fundamental não esquecer as
estéticas e estilísticas que os enredam. Sem dúvida, a disposição em cadernos e seções, bem
como sua extensão em colunas ou páginas inteiras impactam na propagação e na repercussão
que casos e perícias podem vir a ganhar.
Quanto ao uso de livros, documentários, legislações, relatórios parlamentares e
laudos/dossiês de perícia, gostaria de salientar a riqueza desses materiais empíricos. Ainda
que eu utilize cada um deles a fim de construir diferentes miradas sobre um mesmo evento,
busquei contextualizar, sem me afastar dos objetivos aqui elencados, as grafias, os formatos e
as relações de produção que dão urdidura a esses diferentes papéis. Ou seja, para além de
fornecerem elementos sobre os casos, relatórios, leis e publicações, são objetos técnicos e
burocráticos cuja vida institucional – sua fabricação, sua circulação e, finalmente, seu
arquivamento – tem importância substancial à compreensão de como funcionam comissões da
verdade, ações contra violação de direitos humanos, gestão de cemitérios e órgãos policiais,
divulgação de técnicas e teorias sobre identificação etc.128.
Esclarecidos tais procedimentos, saliento que todos esses meticulosos alinhavos e
costuras são orientados com vistas a forjar casos. Para tanto, de um lado, sigo os argumentos
de Lacerda (2012) de que o processo de constituição de um caso exige um forte
entrelaçamento entre particularidades e generalidades que dão forma e repercussão a um dado
evento. Em seus termos, “um caso é alguma coisa singular, ele contém, demonstra, explica e
caracteriza o que não é cotidiano e por isso foi destacado, usado como exemplo ou ilustração”
(LACERDA, 2012, p. 51). Contudo, ao servir como exemplar, um caso guarda uma
multiplicidade de situações similares, que reunidas, podem ser alocadas dentro de um mesmo

127
Por trás dessa discussão, há todo um debate sobre as questões de subjetividade que atravessariam o registro
dessas imagens, mas a mesma polêmica poderia ser atribuída aos folhetins detetivescos forjados pelo periódico
em que me debruço aqui. Incidem sobre essas fotos e formas de noticiar, não somente a escolha do foco, como,
também, a luz utilizada, o ângulo escolhido, os estilos artísticos e estilísticos adotados, enfim, toda uma
infinidade de coisas que as colocam sob suspeita. As imagens e/ou reportagens podem ser enganosas. Portanto,
fotos amadoras, tiradas em contextos espontâneos, ou que captam, pelas frações do flash, as lágrimas que
transbordam, as mais ínfimas expressões de desespero – o contrair da face, o cair do olhar, a flacidez dos
músculos – assemelham-se a furos de reportagem. Ao dizer isso, destaco, portanto, como as notícias conformam
uma espécie de gênero narrativo cuja função é prender o leitor que passa a consumir o noticiário como novela
esperando diariamente pelos novos capítulos das tramas ali colocadas (Almeida, 2007).
128
Para todos esses documentos, abre-se uma gama de debates que excedem os objetivos desta tese: regimes
ditatoriais, corrupção na política, constituição de um campo internacional de identificação de pessoas mortas em
contextos de violação de direitos humanos etc. Para algumas miradas sobre ditadura no Brasil ver: Azevedo
(2016) e Sanjurjo (2013); sobre corrupção e política nacional, Teixeira (2000; 2004) e Bezerra (1999); para
contextos de violação de direitos humanos e burocracia, ver Oliveira (2005; 2011) e Muzzopappa (2018).
166

sistema classificatório. Como afirma a autora é da sobreposição entre exemplaridade e


multiplicidade que o “caso dos meninos emasculados de Altamira” se constitui e ganha
repercussão129. Os casos que apresento no decorrer deste e do próximo capítulo, assim como
sublinha Lacerda (2012, p. 44), desvelam, portanto, “[um]a pluralidade de versões que o[s]
compõem, que algumas vezes resultam em disputas e dissensão, outras vezes são produtos da
elaboração em conjunto”. Em todos os casos aqui tratados diferentes atores – a polícia, o
judiciário, a perícia, a mídia e instituições de direitos humanos – aparecem como personagens
cujas versões emitidas carregam inúmeras reviravoltas políticas e técnicas.
Por outro lado, inspirada pelo trabalho de Luc Boltanski (2004), em meu uso da ideia
de caso, também, procuro explorar o caráter de denúncia e sedução que tais técnicas e práticas
profissionais explicitam. A repercussão dos casos aqui reunidos se alimenta da denúncia
como uma forma retórica e narrativa. Nesse sentido, diante dos acontecimentos, tanto o
espectador à distância, quanto aqueles envolvidos na busca pela justiça – legistas, professores,
delegados – devem dominar e reprimir sua emoção, a fim de reunir provas que fundamentem
a acusação pretendida. As coisas, as pessoas e as instituições se justapõem e passam a ser
orientadas para um único compromisso, um único sentimento: identificar um culpado (autor
da ação), uma vítima (a parte lesada), proferir uma acusação, demandar uma reparação, mas,
tudo isso, em prol de uma ‘justa’ punição.
Além disso, nos casos aqui traçados, as “cadeias de distanciamento” que separam
vítima e algoz do espectador que está à distãncia são de longa distensão. São o nazismo, a
ditadura militar ou a corrupção levada a cabo por importantes nomes da política brasileira.
Como no exemplo dado por Bolstanki (2004), aquele que morre de fome numa favela exige
que a indignação do espectador seja direcionada a agressores que, talvez, nem sequer
conheçam a vítima morta por inanição; tais algozes estão, por exemplo, alocados num
escritório em Paris ou Nova York, na sede de uma empresa que atua de modo agressivo em
mercados financeiros. Portanto, jornais, autobiografia, laudos e investigações policiais servem
como canais de “distanciamento formais” que incitam o engajamento daqueles que à distância
são convidados a “partilhar do sentimento e dos dramas alheios sem se envolver diretamente
com eles, mesmo que chamado[s] a intervir ou se emocionar” (VIANNA, 2002, p.217).

129
O trabalho de Paula Lacerda (2012) se debruça sobre a produção criminal e política do “caso dos meninos
emasculados de Altamira”. Por meio de uma miríade de materiais etnográficos, a autora demonstra como a
produção criminal e os encaminhamentos burocráticos em torno dos assassinatos, emasculamentos e
desaparecimentos de meninos e adolescentes em Altamira, Pará, encontram-se profundamente entranhados ao
deslizamento do caso em causa política preenchida por atos, vigílias e manifestações populares.
167

“A face do Anjo da Morte”: um crânio, um departamento e dois IMLs.

“Para os olhos pouco treinados, todos os ossos são parecidos, e os crânios


parecem despojados das expressões e gestos do rosto humano. Mas como a
película fotográfica quando é exposta a luz, os ossos estão expostos a todas
as vicissitudes da vida: o trabalho, a localização geográfica, a alimentação,
os hábitos, as enfermidades e a violência. Como em uma fotografia, essas
inscrições que tomam forma sobre os ossos são inequívocas. (...). Os restos
humanos são a dobradiça sobre a qual giram nossas sensibilidades forenses
porque conservam os indeléveis rastros da vida de uma vida de um
indivíduo, que perdura sobre a terra como um fantasma”. ("Forensic
Architecture", Instituto Proa, Buenos Aires, entre setembro e dezembro de
2015130).

No dia 6 de junho de 1985, um “grande evento midiático” se formou em torno da


sepultura 312, na quadra 3, do cemitério de Embu das Artes, em São Paulo. A polícia
brasileira, sob a condução de José Antonio de Mello, empreendeu a exumação da ossada.
Enquanto “a caveira e os ossos eram exibidos para a câmera”, Romeu Tuma131, chefe da
Polícia Federal, declarou aos presentes: Mengele “está bem e verdadeiramente morto”.
Contudo, a frase foi rapidamente colocada em dúvida. Oficiais israelenses, em particular o
líder da Mossad, Isser Harel, que havia supervisionado o sequestro de Eichmann, não tinham
tanta certeza quanto Romeu Tuma. Desconfiavam que Mengele poderia ter sido, mais uma

130
Formada por uma equipe de investigação internacional e multidisciplinar - arquitetos, artistas, cineastas,
intelectuais, advogados e cientistas –, a Forensis Architecture está localizada na Universidade de Goldsmiths, em
Londres e se define como: “una agencia contra-forense que se propone revertir la dirección de la mirada forense
para así enfrentar los abusos de poder de los Estados y las corporaciones en situaciones que cargadas de
tensiones políticas, conflictos violentos y una atmósfera de cambio”. Para ver acesse:
http://proa.org/esp/exhibition-forensis.php. A exposição vista por mim, em Buenos Aires, estava sob a curadoria
de Eyal Weizman, Anselm Franke e Rosario Güiraldeno.
131
Nascido em outubro de 1931, Romeu Tuma se tornou investigador de polícia por meio de concurso público
na Polícia Civil do estado de São Paulo, no ano de 1951. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de São Paulo, tornou-se delegado de polícia, a partir de 1967. Romeu Tuma atuou como assessor
do delegado Sérgio Paranhos Fleury na Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) e a partir de 1975, tornou-
se diretor do órgão, atuando na repressão de movimentos políticos de esquerda, em especial, nas greves sindicais
do ABC paulista, dos anos 70. Com a reabertura política democrática, Tuma foi transferido para a
Superintendência Regional da Polícia Federal de São Paulo. Então à frente da direção da Polícia Federal em São
Paulo, entre 1982 e 1985, com a condução de José Sarney à presidência da república, Tuma foi convidado a
ocupar o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Ao longo do governo de Fernando Collor de Mello (1990 -
1992), Tuma assumiu a direção da Receita Federal. Com o impeachment de Collor, Tuma retornou à direção da
Polícia Federal, acumulando simultaneamente o cargo de secretário nacional da Polícia Federal e de vice-
presidente da Interpol. Depois de sua saída por motivos políticos da Polícia Federal (cargo de indicação), durante
a gestão de Itamar Franco, Tuma reassumiu seu cargo nos quadros da Polícia Civil de São Paulo e, em seguida,
foi designado assessor especial do governador paulista Luís Antônio Fleury Filho, no ano de 1993. Já em 1994,
candidatou-se a senador pelo estado de São Paulo. Eleito, Romeu Tuma ocupou o cargo no legislativo por dois
mandados consecutivos. Durante as disputas para reeleição de seu mandato no Senado, Tuma adoeceu e
permaneceu internado até o término do pleito, quando faleceu. Durante sua carreira policial e política, Romeu
Tuma foi acusado de empreender sessões de tortura durante sua direção junto ao DOPS, sendo, também,
responsabilizado por ocultação de cadáveres de militantes políticos mortos durante o regime militar. Para ver
mais: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/tuma-romeu.
168

vez, avisado e realizado uma nova fuga depois de saber das investigações coordenadas pelo
governo americano, pela Alemanha Ocidental e por Israel para levá-lo à juízo (KEENAN;
WEIZMAN, 2015).
Durante uma semana, de 06 a 15 de junho de 1986, a ossada exumada permaneceu sob
a responsabilidade exclusiva da equipe do IML de São Paulo designada para a
identificação132. Tanto o jornal a Folha de São Paulo quanto o Estado de São Paulo e o Jornal
do Brasil noticiaram, com dedicação, os processos envolvidos desde a exumação até às
primeiras informações em torno dos ossos examinados. Tratou-se, sem dúvida, de uma
pequena “novela” cujos capítulos traziam, a cada dia, um novo acontecimento133.
Ao mesmo em tempo que o IML de São Paulo iniciava os estudos antropométricos
junto à ossada, Romeu Tuma dava seguimento às investigações, ‘interrogando’ algumas das
pessoas que supostamente haviam conhecido ou ajudado a esconder a identidade de Mengele
no Brasil134. Dias depois da exumação, contudo, “devido à dificuldade e às altas expectativas
para [a] identificação”, inúmeros especialistas forenses se reuniram nos laboratórios do
Instituto Médico Legal de São Paulo (KEENAN; WEIZMAN, 2015, p. 21). Entre eles: uma
equipe oficial norte-americana e outra da Alemanha Ocidental135, o veterano investigador
israelense de crimes de guerra Menachem Russek, o “legendário antropólogo forense” Clyde
Snow e outros dois colegas de Snow, Leslie Lukash e John Fitzpatrick, enviados pelo Simon
Wiesenthal Center136.

132
A equipe de peritos brasileiros, coordenados por José Antonio de Mello, chefe de Perícias Tanatologicas do
IML de São Paulo e por Daniel Romero Muñoz, antropólogo forense, também, do IML da capital, contou com
mais cinco especialistas. Entre eles: os doutores Luiz Donato Botelho de Melo, Eduardo Pires de Carvalho,
Silvio Guatura Romão – responsáveis pelos exames radiológicos realizados junto a ossada exumada – e José
Donato Próspero e Elio Consentino, incumbidos dos exames anatomopatológicos. Finalmente, antes da
conclusão da identificação, foi incorporado à comissão o Dr. Marcos de Almeida, especialista em estruturas
capilares.
133
Um uso exemplar do termo pode ser visto junto à reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo em 10
de junho de 1985. Além da chamada de capa “Polícia alemã diz que o corpo é de Mengele”, o periódico
destinou uma página inteira para a apresentação de todas as reviravoltas em torno do caso. Além disso, sob o
título “Uma história de mistérios com muitos personagens”, um quadro sintetizava, aos leitores, um perfil dos
“personagens” envolvidos com a estadia de Mengele no Brasil ou que o teriam conhecido antes de sua suposta
morte em Bertioga.
134
A dentista Maria Helena Bueno Vieira de Castro que afirmava ter tratado de “um alemão que reconheceu ser,
pelas fotos de jornais, Wolfgang Gerhard. Mas seu cliente foi tratado entre fevereiro de 1979 (data do suposto
afogamento de Mengele) e abril do mesmo ano”. Ou a húngara, naturalizada brasileira, Gitta Stammer, que
afirmava ter contratado Mengele, sob outro nome falso – Peter Hochbichlet – como administrador das
propriedades rurais da família Stammer nas cidades de Araraquara e Serra Negra. Ou ainda as afirmações de
Rolf Mengele – filho de Josef Mengele – de que o homem enterrado sob a identidade de Wolfgang Gerhard “é
seu pai”. (Folha de São Paulo, 08 e 12 junho de 1985).
135
Lowell Levine, Ellis R. Kerley e Ali Hameli e os professores Richard Helmer, Rolf Endris e A. Schult,
respectivamente.
136
O Centro Simon Wiesenthal foi fundado em 1977, em Los Angeles, nos Estados Unidos e seu nome é uma
homenagem a um sobrevivente dos campos de concentração nazistas, cuja vida, com o fim da guerra, foi
169

A chegada dos especialistas estrangeiros, entretanto, foi aparentemente mais


controversa do que Keenan e Weizman (2015) deixam entrever em seu livro. Na publicação
de 08 de junho de 1985, o jornal Folha de São Paulo, entre notícias sobre o caso, evidenciava,
por meio de uma de suas sucintas colunas, as disputas e os incômodos em relação à presença
dos mencionados técnicos forenses: “Estrangeiros não interferem, diz Lyra” (Folha de São
Paulo, 08 de junho de 1985, p. 16).
A divulgação da suposta frase “Estrangeiros não interferem”, de Fernando Lyra,
Ministro da Justiça na época, vinha lado a lado com a reportagem na qual Airton Martini,
diretor do Departamento de Polícia Científica, teria afirmado que o IML possuía “recursos
suficientes para a realização dos exames” (Folha de São Paulo, 08 de junho de 1985, p. 16).
Esse era o prenúncio das críticas que mais tarde seriam divulgadas pelos jornais brasileiros e
internacionais sobre como ocorreu a exumação do cadáver em Embu e sobre os
procedimentos da perícia empreendidos pelo IML de São Paulo.
Em 17 de junho de 1985, a manchete de capa do jornal Folha de São Paulo afirmava:
“Sob pressão, peritos reabrem o túmulo do suposto Mengele”. Em destaque, a “Reportagem
Local” sublinhava o aparente “absurdo” da primeira exumação. O termo, cunhado por um
especialista norte-americano que não quis que sua identidade fosse divulgada pelo jornal.
Durante a nova abertura da sepultura, “mais de vinte sacos plásticos contendo toda a terra da
sepultura e pedaços do caixão foram retirados do cemitério de Embu” (Folha de São Paulo,
17 de junho de 1985, p. 8). Também o Jornal do Brasil frisava: “Primeira exumação foi feita
à enxada”. No texto abaixo da manchete, cuja a fonte oculta era um dos mais experientes
legistas brasileiros, responsável por mais de 10 mil autópsias e quase 100 exumações”, o
periódico afirmava que nenhum dos procedimentos padrões de exumação137 foram cumpridos
no “caso Mengele”:

“Os ossos foram retirados da cova por um coveiro que os entregava na mão
do médico José Antônio de Melo que, em seguida, os colocava no recipiente
utilizado para o transporte de cadáveres. Os restos da urna foram deixados

dedicada a “caçar nazistas” que haviam fugido da Europa com identidades falsas. A instituição atua em prol dos
direitos humanos, contra antissemitismo, racismo, terrorismo e genocídios. Para ver, acesse:
http://www.wiesenthal.com/site/pp.asp?c=lsKWLbPJLnF&b=6212365.
137
Segundo indicam os protocolos, primeiramente, é preciso retirar, com a enxada, o excesso de terra, até que se
possa vislumbrar o caixão, dentro da cova. Em seguida, com cuidado e uma pá de pedreiro, o restante de terra
deve ser removido, delicadamente, sem que a madeira da urna seja danificada. Caso o ataúde ainda esteja em
bom estado, a melhor técnica a ser empregada é a do içamento do caixão. Em casos de avançado estado de
deterioração da madeira e com riscos de os restos mortais serem violados, o médico legista deve entrar na
sepultura, abrir o tampo do caixão, fotografar a disposição dos ossos e, só então, retirá-los com cuidado,
preservando fragmentos ósseos ou partículas presas na mortalha do cadáver. Feito esse procedimento, os ossos
devem ser removidos e enviados aos IML.
170

na sepultura e a terra não foi examinada” (Folha de São Paulo, 17 de junho


de 1985, p.7).

Exposta, na mesa do IML de São Paulo, a ossada exumada no Cemitério de nossa


Senhora do Rosário, em Embu, na fotografia tirada em junho de 1985 por Erin Stover,
escondia tais desleixos e mostrava um corpo138. Os ossos, rigorosamente organizados,
simulavam a silhueta do morto a ser identificado. Crânio, costelas e membros se colocavam às
vistas da comissão de “especialistas”. Contudo, como salientaram Keenan e Weizman (2015,
p.23), a pergunta feita àqueles ossos não era o clássico questionamento “como morreste?”,
mas, antes, “quem era você?”.
O processo de identificação exigiu parcimônia e detalhamento. Cada osso foi,
paulatinamente, registrado e examinado pelas equipes de “especialistas”; a “composição de
seu tecido, a forma e sua textura” iam construindo, nos termos de Clyde Snow, a “biografia”
da ossada em questão. O compêndio de informações foi se acumulando:

“gênero (masculino), mão dominante (direita), altura (174 cm), constituição


(média), raça (caucasiano), implantes e espaços entre os dentes, fraturas e
acidentes como os referidos em seu registro do período de guerra e agora
visíveis em raio X (em seu quadril, em seu polegar, na escápula e na
clavícula) e idade de morte (64-74 anos)” (KEENAN; WEIZMAN, 2015,
p.27).

Somava-se aos esforços de análises, um conjunto de documentos, fotografias,


prontuários médicos e registros de guerra139. Das fotos cedidas pelo casal Bossert140, os
peritos extraíram vinte e quatro pontos de coincidência entre a fotografia de Mengele jovem e
a fisionomia de Wolfgang Gerhard registrada em sua carteira de registro civil, em seu RG e
em outras fotografias de família.

138
Somente com a chegada dos peritos estrangeiros é que os 208 ossos da ossada exumada foram remontados.
Segundo “informações obtidas no IML dão conta de que todos os 208 ossos normais de um esqueleto humano,
recuperados na exumação, estão dispostos sobre uma mesa de uma sala no terceiro andar do prédio, sem
compor um esqueleto. (...). Os especialistas brasileiros também preferiram aguardar a chegada dos estrangeiros
para decidir se o esqueleto do suposto Josef Mengele será ou não montado” (Folha de São Paulo, 16 de junho
de 1985, p.11).
139
O Simon Wiesenthal Center dispunha de um importante material investigativo sobre a vida de Josef Mengele.
Registros oficiais dos arquivos da SS e prontuários médicos de Mengele foram paulatinamente recolhidos pela
entidade e foram centrais no processo de identificação. Por meio deles, fotografias, mas também dados de
possíveis fraturas contidas nos ossos de Mengele, em função de um acidente sofrido por ele, em Auschwitz,
puderam ser comparados à ossada exumada em Embu. Uma ficha dentária de 1937 de Mengele foi cedida pela
polícia alemã e radiografias dentárias cedidas por dentistas brasileiros que teriam consultado Gerhard no Brasil
também foram utilizadas durante a feitura dos exames.
140
O casal austríaco Wolfram e Liselotte Bossert vivia em São Paulo e foi responsável por ajudar Mengele a
assumir, no Brasil, a identidade de um amigo austríaco da família de nome Wolfgang Gerhard, que havia morado
no Brasil e voltado para a Áustria, deixando para trás seus documentos pessoais.
171

Finalmente, dos estudos antropométricos, anatomopatológicos e da análise de


radiografias dos múltiplos ossos verificados, um documento oficial – um laudo de
identificação – foi redigido e assinado pela equipe de médicos-legistas, odontologistas e
antropólogos forenses. Datilografado em máquina de escrever, o laudo oficial afirmava:

“A somatória de coincidências verificadas neste exame antropológico indica


que é altamente provável que o esqueleto exumado seja o de Josef
Mengele. Por outro lado, é altamente improvável que outra pessoa tivesse
todas essas características coincidentes e, simultaneamente, não
apresentasse pontos conflitantes nos elementos identificatórios analisados
em todos os tempos e procedimentos efetuados pela perícia” (PALHARES,
2007, p.109).

A cópia parcial do laudo, datilografada e rubricada em toda a sua margem direita,


aparece impressa na autobiografia de Badan Palhares (2007), com intenções bastante claras.
Sua reprodução, para além da “altamente provável” identificação do esqueleto de Mengele,
dá realce às conclusões que os “peritos oficiais” chegaram em relação à lesão localizada no
maxilar esquerdo do crânio analisado. Descrita na seção “Discussão” do laudo oficial, o
“orifício circular encontrado no maxilar esquerdo” foi, como sugere Palhares (2007),
definitiva para que que o crânio de Mengele chegasse às portas do IML de Campinas.

“No orifício circular encontrado no maxilar esquerdo (item 2.2) não se


evidenciam sinais traumáticos e as suas características indicam tratar-se
provavelmente de uma ocorrência pós-morte, devido a gotejamento de
material ferruginoso (infiltração de água) no interior do caixão através de
perfuração em sua tampa, produzida por prego, o que é confirmado pelos
depósitos ferruginosos constatados também nas vestes - vide fotos e
diagramas das vestes” (PALHARES, 2007, p.109-110).

Foi graças a essa lesão e “por iniciativa exclusiva do referido diretor, Rubens Brasil
Maluf”, que Badan Palhares, em função de sua formação acadêmica, foi designado o
anatomopatologista oficial e competente a responder ao “ofício 0178/85/GSR/SP”,
protocolado no IML e datado de 22 de agosto de 1985. Como destacou Rubens Brasil
Maluf141, em declaração assinada e com firma reconhecida junto ao 2º Serviço Notorial de
Campinas, em 03 de dezembro de 2000:

141
As informações biográficas sobre o médico-legista Rubens Brasil Maluf são bastante esparsas. Aquilo que
foi possível reunir sobre sua carreira está baseado em dados retirados de entrevistas com outros legistas do IML,
reportagens jornalísticas e informações cedidas por Caco Barcellos ao livro de Janaína Telles (2001). Segundo
tais materiais, Rubens Brasil Maluf foi funcionário do IML de Campinas, provavelmente entre 1975 e 1983,
momento no qual foi designado diretor do IML de SP. Como diretor da corporação, ele foi o primeiro chefe da
instituição a permitir que pesquisas fossem realizadas junto aos arquivos da instituição, depois de longos
períodos de ditadura militar. (BARCELLOS apud TELLES, 2001). Como diretor do IML do estado de São
Paulo, Rubens Brasil Maluf substituiu Harry Shibata e ficou sob o comando do Instituto até maio de 1988,
172

“Como o Prof. Dr. FORTUNADO ANTONIO BADAN PALHARES, era


médico legista efetivo no IML e tinha por formação profissional a
ANATOMIA PATOLÓGICA, era a pessoa indicada para tal estudo”.
(PALHARES, 2007, p. 116).

A designação visava responder à requisição formulada pelo Superintendente da Polícia


Federal da época, Dr. Romeu Tuma. No papel o “SENHOR DIRETOR”, Superintendente
Regional, em “complementação do exame pericial realizado na ossada exumada da sepultura
321 do Cemitério do EMBU, São Paulo”, sob “protestos de elevada estima e distinta
consideração”, questionava: “a lesão encontrada na face região molar, a) Seria resultante de
uma fístula? b) Foi produzida pós mortem? e c) Em caso positivo para a pergunta b, qual
poderia ter sido o instrumento?”142.
Para além da especialidade de Palhares em anatomopatologia, intervieram na escolha
as relações profissionais e de amizade entre ele e Brasil Maluf. Como afirmou Neves em sua
entrevista, Rubens Brasil Maluf não era um diretor desconhecido aos funcionários do IML de
Campinas. Ao contrário, já havia atuado como funcionário no da corporação em Campinas e
havia sido apoiado por seus colegas quando indicado à direção do IML em São Paulo:

“o Dr. Rubens Brasil Maluf foi colega com a gente aqui, trabalhou com a
gente. Inclusive quando ele foi escolhido pra ser chefe, nós fomos até São
Paulo. Foi uma comissão de legistas. Falamos com o Secretário da
Segurança [para indicá-lo] como chefe do IML do estado [trecho
inaudível] e o cara nos ouviu. (Entrevista realizada em abril de 2015).

Vista por esse ângulo, a designação de Badan Palhares para a perícia do crânio do
cadáver identificado como sendo Josef Mengele, por “iniciativa exclusiva” de Rubens Brasil

quando pediu exoneração do cargo. Antes de comunicar sua saída ao secretário de Segurança Pública Luiz
Antônio Fleury Filho, Brasil Maluf já havia sido afastado em função das críticas contundentes ao mencionado
secretário devido à falta de funcionários e equipamentos para o IML. Em 1989, mesmo já estando aposentado foi
investigado pelo governo do estado, depois que o deputado estadual do PT, Roberto Gouveia, em maio de 1988,
acusou-o de extrair hipófises de cadáveres e contrabandeá-las para os EUA. Rubens Brasil Maluf foi inocentado
das acusações pelo governo do estado de São Paulo por faltas de provas conclusivas. Não obtive dados pessoais
confiáveis de Brasil Maluf, tais como data de nascimento, formação acadêmica e especialidade médica ou data
de falecimento. Neves, em entrevista em 2015, afirmou que o médico-legista já havia falecido e destacou sua
exemplar conduta como legista. Seguindo as indicações dos jornais, no momento em que foi diretor da
corporação, Brasil Maluf tinha entre 57 e 61 anos (Folha de São Paulo, 10 de maio de 1988, p. 11; 06 de agosto
de 1991, p.4).
142
Sem nomear com exatidão, nem em sua autobiografia, nem em seu site oficial, a identidade do “especialista
norte-americano” que havia questionado parte das conclusões apresentadas pela primeira perícia – realizada
junto ao IML de São Paulo –, Badan Palhares cita em sua autobiografia, apenas, uma entrevista concedida por
Romeu Tuma ao jornal campineiro Diário do Povo, em 6 de setembro de 1985: “O senado americano vem
solicitando, através do Setor de Investigações de Justiça dos Estados Unidos, que seja apresentado um relatório
até o final do mês sobre as conclusões do Caso Mengele. O congresso americano quer deixar os americanos e
principalmente os judeus que moram lá bem informados sobre o caso”. (...). “O prazo será o doutor Palhares
que fará” (PALHARES, 2007, p.110).
173

Maluf, ganhava contornos bastante específicos. A designação oficial reunia, num mesmo
ofício, competência, formação profissional e relações pessoais.
Em posse do crânio retirado da sepultura 321, quadra 3, Badan Palhares, em “função
de [ser] professor e chefe do Departamento de Medicina Legal” na Faculdade de Ciências
Médicas da Unicamp, achou pertinente fazer um convite para que especialistas de diversas
áreas – químicos, odontologistas e engenheiros – assistissem ao estudo designado a ele por ser
“médico efetivo do IML”. Como salienta Palhares (2007), para levar o crânio para as
dependências da Unicamp, ele pessoalmente se reuniu com o reitor da Unicamp, Carlos Vogt.
Nessa reunião, enfatizou ao reitor “a grandeza daquele trabalho” e pediu seu apoio para que
a universidade “por meio do departamento”, dirigido pelo próprio Badan Palhares,
participasse das investigações junto à ossada. Em resposta, segundo Palhares, “Vogt
reconheceu ali a oportunidade de demonstrar a expertise do DMLE e autorizou o ingresso
da Unicamp no caso” (PALHARES, 2007, p.110-111). Com a aprovação da reitoria, Badan
Palhares reuniu uma comissão acadêmica143 com o intuito de construir uma “metodologia de
trabalho” e realizar o estudo a ele designado.
Em contraste à grande repercussão midiática durante os processos de identificação de
Mengele ocorridos em São Paulo, nos meses nos quais o crânio de Mengele esteve em
Campinas, as notícias de divulgação sobre mencionados procedimentos foram raras. A
manchete “IML de Campinas faz novo exame em ossos de Mengele”, divulgada pela Folha de
São Paulo, em setembro de 1985, insinuava uma polêmica. Oriunda da “Reportagem Local”,
a matéria apresentava um curto cabeçalho contando sobre a chegada do crânio ao IML de
Campinas, aos cuidados de Badan Palhares. Além disso, a redação era enigmática sobre as
primeiras descobertas da equipe campineira em torno da ossada;

“Palhares afirmou não ter dúvidas de que a ossada pertence mesmo a


Mengele, mas disse que os exames que ele realizará poderão levantar sérias
dúvidas a respeito. Segundo o médico, o exame foi solicitado pelo governo
dos Estados Unidos após a comprovação de que Mengele sofria de um
processo inflamatório no rosto, que era intumescente em determinadas
ocasiões, podendo ter originado uma fistula que teria provocado o
surgimento do orifício no crânio exumado. Entretanto se os resultados do
exame concluírem que o orifício foi produzido após o sepultamento – e isso
é possível, uma vez que a região de Embu é úmida – o caso Mengele poderá
tomar novo rumo” (Folha de São Paulo, 5 de setembro de 1985, p. 26).

143
Entre esses convidados estavam seu colega de departamento Dr. Nelson Massini, o professor Dr. Celso F. de
Arruda, da Faculdade de Engenharia da Unicamp, o professor Dr. Marcelo Costa Souza, do Centro de
Comunicação da Unicamp, além de técnicos de diversas instituições – Centro de Comunicações, do DMLE, do
Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Telecomunicações Brasileira S.A. (Telebras) e do Laboratório de
Química da Unicamp.
174

Na reportagem, Badan Palhares afirmava que os exames estariam concluídos entre


quinze e vinte dias. Em posse do resultado, mas antes de emitir o documento final em resposta
aos quesitos formulados por Romeu Tuma, Badan Palhares solicitou, a Rubens Maluf, uma
reunião em conjunto à equipe do IML de São Paulo que procedeu ao laudo de identificação da
ossada exumada junto ao Cemitério de Nossa Senhora do Rosário, em Embu das Artes.
Diferente da afirmação dos primeiros legistas de que a lesão localizada no maxilar de
Mengele teria sido produzida post-mortem, a ferida, para o legista da Unicamp, teria ocorrido
em vida e evoluído por mais de dez anos, como sequela de uma “fistula144 dentária, curada
espontaneamente”.
Ao corroborar com a tese de que a lesão era fruto de uma infecção dentária, ocorrida
em vida e de longa data, Badan Palhares reforçava a interpretação de que não se tratava de
uma lesão traumática, oriunda de qualquer instrumento perfurocontundente. Essa afirmação
fortalecia as conclusões contidas no laudo necroscópico realizado pelo IML de Santos,
fornecido ao cadáver de Mengele: um derrame cerebral, seguido de afogamento, em 1979, na
cidade de Bertioga, litoral sul de São Paulo.
Alguns meses depois, a apresentação dos resultados obtidos, em “cerimônia nas
dependências da Delegacia de Polícia de Campinas”, diante de Romeu Tuma, Rubens Brasil
Maluf, outras autoridades policiais da cidade e representantes da imprensa, parecia encerrar a
curta estadia do crânio de Mengele na cidade.
Em outubro de 1985, uma reportagem bastante econômica publicava o feito. Sob o
título de “Dropes”, a Folha de São Paulo divulgava:

“O delegado Romeu Tuma, 53, Superintendente da Polícia Federal recebeu


do IML de Campinas (SP) as conclusões do estudo histológico do crânio do
carrasco nazista Josef Mengele comprovando que o orifício encontrado no
osso maxilar esquerdo superior foi produzido em vida” (Folha de São Paulo,
02 de outubro de 1985, p. 16).

Sem pompas, nem destaque, os “exames complementares” realizados por Badan


Palhares e sob responsabilidade do IML de Campinas aparentemente encerravam o caso
Mengele. Contudo, uma reviravolta faria com que Badan Palhares voltasse às manchetes da
Folha de São Paulo e do Jornal do Brasil, entre os meses de fevereiro e março de 1986. A
proposta de Badan Palhares a Romeu Tuma era ambiciosa. Inspirado pelos trabalhos da
144
O termo fístula é usado para designar um orifício ou um canal anormal que liga um órgão a outro, ou um
órgão ao exterior para saída de matéria orgânica (fezes, urina), secreções ou pus. A lesão pode ser fruto de
problema congênito, patológico ou acidental.
175

médica-legista norte-americana Betty Pat Gatlif145, publicados na revista Manchete, no dia 22


de junho de 1985, Palhares (2007) pedia autorização para realizar a reconstrução facial de
Josef Mengele. Como efusivamente escreveu Palhares (2007):

“Não foram necessárias muitas explicações técnicas para que Tuma, que
era o delegado responsável pelo caso e, portanto, o único que poderia
autorizar qualquer procedimento com aquele crânio – embora a peça
estivesse sob a guarda do IML de São Paulo – entendesse a importância da
proposta. A iniciativa foi recebida com entusiasmo e aprovada, e fui
autorizado a permanecer com a ossada para a nova empreitada”
(PALHARES, 2007, p. 112).

Para a nova etapa de realização da pesquisa, Badan Palhares convidou Nelson


Massini146 também professor do DMLE da Unicamp, a “incorporar-se definitivamente ao
trabalho”. A incorporação oficial de Massini à equipe determinou também a entrada de seu
orientador, professor Dr. Eduardo Daruge147, especialista em odontologia forense e

145
Em sua autobiografia Badan Palhares (2007) também cita seu conhecimento de outros trabalhos da literatura
especializada sobre o tema de reconstituição facial. Para tanto, ele ilustra para o leitor quem seria Betty Pat
Gatlif, com sua foto junto à reconstrução facial do faraó egípcio Tutankamon e das pesquisas realizadas pela
autora que resultou na reconstrução facial de um menino, assassinado na Flórida, nos Estados Unidos. Seus
estudos levaram, segundo Palhares (2007), à prisão do autor do assassinato. Além disso, o trabalho de
reconstituição do busto do faraó Tutankamon foi fruto de um trabalho coletivo, realizado em parceria com Clyde
Snow, um dos especialistas presentes na identificação de Mengele, em São Paulo. Também uma foto de Badan
Palhares com Gatlif, em Boca Rauton, EUA, foi divulgada pelo autor em sua autobiografia.
146
Nelson Massini graduou-se em odontologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em
ciências jurídicas pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e em medicina pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Fez seu mestrado e doutorado em odontologia-farmacologia
pela Universidade Estadual de Campinas e defendeu sua livre-docência pela Universidade de São Paulo, em
1986. Durante sua carreira acadêmica, atuou como professor associado da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como professor colaborador, entre 1976 e 2003, na UNICAMP e em diversas
universidades e faculdades privadas do interior de São Paulo. Desde 1999, Massini efetivou-se como professor
titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Sua vasta experiência na área de medicina legal, com
ênfase em criminologia foi consolidada por inúmeros casos de repercussão por ele investigados. Entre eles:
Mengele, crime da Rua Cuba, os assassinatos de Stuart Angel Jones e de Zuzu Angel, Chico Mendes e, mais
recentemente, o caso envolvendo a menina Isabela Nardoni, morta na casa de seu pai, em 2008, depois de ser
parcialmente esganada e arremessada pela janela do apartamento. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá
(madrasta da menina) foram acusados e condenados pelo assassinato. Para ver mais: TOGNOLLI (2012) e
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4761501P7.
147
Eduardo Daruge nasceu em 1933, na cidade de Ribeirão Preto, e faleceu em 2015. Durante sua carreira foi
professor titular da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), campus pertencente à Universidade Estadual
de Campinas, na qual foi responsável pela cadeira de odontologia legal e deontologia, de 1962 a 2010. Formado
pela Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, pertencente à Universidade de São Paulo, e em Direito pela
Faculdade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Daruge foi referência na área forense, em função das mais de
cinco mil perícias realizadas durante sua carreira profissional. Além disso, especialista em deontologia, ele atuou
como perito judicial nas áreas de biologia e de odontologia, no Fórum de Piracicaba. Ao longo de sua vida,
Daruge recebeu inúmeros títulos honorários de entidades importantes à medicina e à odontologia forenses, como
aqueles concedidos pela Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, pela Sociedade Paulista de
História da Medicina e pela Associação Brasileira de Odontologia. Em 2013, a Câmara de Piracicaba lhe
concedeu um título de cidadania devido a sua enorme dedicação à cidade e à FOP. Para ver mais: VIERA, 06 de
março de 2015 e http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2015/08/17/unicamp-perde-o-professor-eduardo-
daruge-da-fop.
176

identificação de ossadas e professor da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), e do


artista plástico Marco Antonio Cavallari148. Segundo Palhares (2007), Massini cuidaria dos
contatos com profissionais de peruqueria e prótese. Enquanto Badan Palhares, com apoio de
outros profissionais, trabalharia nos “estudos necessários ao embasamento técnico-científico
da reconstrução” (PALHARES, 2007, p. 112).
Chama atenção que os estudos e os procedimentos que resultaram na reconstituição do
crânio de Mengele não tenham sido descritos exaustivamente por Badan Palhares em sua
autobiografia. Em tal material biográfico, o legista se preocupa em respaldar e contar, com
minúcias, sobre o encaminhamento do crânio a Campinas e, sob os dizeres “estudos
necessários”, explica vagamente sobre os resultados e os procedimentos empreendidos.
Contudo, em seu site, na aba “caso Mengele”, as imagens do crânio de Mengele permitem
que o leitor entre em contato com os “embasamentos técnico-científico da reconstrução”.
Do crânio retirado da sepultura 321, uma réplica em gesso foi produzida. Em seguida,
uma seleção de imagens indica os procedimentos de modelagem tanto frontais quanto laterais
da face de Mengele. Em argila, uma primeira escultura facial de Mengele é construída
artesanalmente pelo artista plástico Marco Antônio Cavallari. Disso se segue a produção em
cera da pele do rosto, com aplique de cabelos e bigode. As últimas imagens destacam o rosto
reconstruído de Mengele, lado a lado com o crânio original exumado do Cemitério de Embu
das Artes, em São Paulo. Na imagem final em cera, com aspecto bastante convincente de pele
humana, Mengele aparece com as expressões que teria em vida, antes de seu afogamento em
Bertioga. Os óculos grandes e quadrados que aparentemente eram usados por Wolfang
Gerhard, identidade falsa assumida por Mengele, durante sua estadia no Brasil, dão os
contornos finais de sua aparência.

148
O artista plástico Marco Antônio Cavallari, ele nasceu em Piracicaba, no interior de São Paulo. Entre 1965 e
1968, foi aluno da Escola Panamericana de Arte de São Paulo e do Instituto Elly Krayer Krauss, também sediado
na capital. A especialidade em desenhos artísticos e esculturas rendeu ao artista plástico prêmios, menções
honrosas e muitas publicações em livros, revistas, catálogos e jornais. Para ver mais informações:
http://www.mcavallari.com.br/studio.htm.
177

Figura 6: Reconstituição facial de Josef Mengele


178

Fonte: http://www.badanpalhares.med.br/artigos_publicacoes/caso_menguele/menguele_fotos.htm.

O rosto de Josef Mengele, reconstruído “técnico e cientificamente” por Palhares e


pela equipe por ele formada, e “artesanalmente” produzido pelo artista plástico Cavallari,
seria apresentado, em primeira mão, no dia 15 de fevereiro de 1986, em entrevista coletiva
destinada a diversos periódicos, no Departamento de Medicina Legal, sediado na Santa Casa
de Misericórdia de Campinas (PALHARES, 2007). A face reconstruída em argila e cera sairia
de Piracicaba, cidade na qual se localizava o ateliê de Cavallari e chegaria a Campinas. O
responsável por trazê-la era Nelson Massini, uma vez que o mesmo residia na cidade de
Piracicaba. Contudo, a entrevista coletiva acabaria num constrangedor fiasco, diante do “furo
de reportagem” publicado no dia 15 de fevereiro de 1986, no Jornal do Brasil.
Na foto de capa do periódico de grande circulação nacional, Massini aparece de perfil,
segurando a cabeça, em processo de modelagem, do carrasco Josef Mengele. Junto à imagem
é possível identificar o porta-malas de um carro, onde a cabeça parecia estar sendo
transportada, e um matagal de fundo. No subtítulo da fotografia lê-se: “o legista Massini
segura a cópia, ainda sem cabelo e bigode, do rosto de Josef Mengele, que Romeu Tuma
exibirá em março” (Jornal do Brasil, 15 de fevereiro de 1986, capa). A reportagem, sem
grande destaque, afirmava:

“Esta cópia a ser exibida pelo diretor da Polícia Federal, delegado Romeu
Tuma, no início de março, segundo previu ontem o principal responsável
pela reconstituição do rosto, o médico-legista Nelson Massini.
- Não é verdade que tenhamos reconstruído o rosto de Mengele por
encomenda dos Estados Unidos ou de Israel. Este foi um trabalho
acadêmico, o primeiro feito no Brasil, para mostrar que é possível chegar
à identificação de um cadáver pela reconstituição das partes moles de um
rosto sobre um crânio em razoável estado de conservação. Eu pessoalmente
gastei Cr$ 12 milhões de meu próprio bolso e toda a equipe trabalhou de
179

graça, dedicadamente, uma média de quatro horas por dia – disse Massini,
em Piracicaba” (Jornal do Brasil, 15 de fevereiro de 1986, p. 9).

Descrito como o “principal responsável pela reconstituição do rosto”, a reportagem


afirmava o protagonismo de Massini em contraposição ao lugar coadjuvante destinado a
“Fortunato Palhares, colega [de Massini] na Unicamp e também funcionário do Instituto
Médico Legal de Campinas”. Tinha início, assim, uma rusga que atravessaria boa parte dos
casos de repercussão nos quais o DMLE e Badan Palhares acabariam por se envolver.
Três dias depois, a Folha de São Paulo noticiava uma reportagem com imagens da
reconstituição da face de Mengele. O título afirmava: “Unicamp reconstitui cabeça de Josef
Mengele”. Entre as fotografias divulgadas, estavam duas fotos de Mengele – uma dele ainda
jovem e outra do médico nazista já envelhecido. A cópia de cera sem cabelo, idêntica à
cabeça divulgada pelo Jornal do Brasil, ganhava a cena nacional. O texto jornalístico, advindo
da “Sucursal de Campinas”, afirmava:

“Ontem, Campinas, o diretor do Instituto Médico Legal da cidade e


professor do Departamento de Medicina Legal da Unicamp, Fortunato
Badan Palhares, reuniu a imprensa e falou sobre o estágio atual da
reconstituição e a técnica empregada. Depois de prontas as duas cabeças
de Mengele serão enviadas provavelmente ao Museu Oscar Freire, do
Instituto Médico Legal de São Paulo” (Folha de São Paulo, 17 de fevereiro
de 1986, p.11).

A matéria também descrevia com detalhes os procedimentos empregados pela equipe


de reconstituição coordenada por “Fortunato Badan Palhares e pelo legista Nelson Massini”:

“O trabalho começou com o estudo de tecidos adiposos em 19 pontos


diferentes da face, auxiliado pela mixagem e sobreposição de imagens de
televisão. A aplicação das partes moles sobre o crânio foi feita com o
auxílio da Tabela de Grandwohl, desenvolvida nos anos 50, que indica a
quantidade de músculos e tecidos normalmente encontrada em diversas
partes da cabeça. Chegou-se à imagem final de Mengele recuperando seu
cabelo (castanho claro), tom de pele (branca e um pouco queimada), olhos
(castanhos esverdeados), lábios e orelhas – enfim, cada detalhe para uma
reconstrução perfeita do criminoso de guerra” (Folha de São Paulo, 17 de
fevereiro de 1986, p.11).

Decorridos aproximadamente quarenta e cinco dias, o crânio de Josef Mengele e mais


inúmeras réplicas da cabeça do carrasco nazista foram apresentados ao público na
Universidade Estadual de Campinas. A Folha de São Paulo publicou, com destaque, as
imagens das técnicas de reconstituição. Ao lado desta seleção de fotos, uma fotografia de
Romeu Tuma apontando para umas das várias cabeças do carrasco nazista, feitas em cera,
180

ilustrava a manchete, escrita em letras garrafais: “A RECONSTITUIÇÃO DO ROSTO DE


MENGELE PASSO A PASSO”. (Folha de São Paulo, 30 de março de 1986, p.8). Já o jornal O
Estado de São Paulo, sem tanto destaque, na mesma data publicou: “Mengele: rosto
reconstituído”. A reportagem curta destacava, em outro ângulo, a mesma fotografia de
Romeu Tuma e outras autoridades ao fundo com as cabeças de Mengele, enfileiradas à frente.

Figura 7: Romeu Tuma apresenta a reconstituição da cabeça de Josef Mengele

Fonte: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1986/03/30/2/

A reconstituição foi, nos termos de Palhares (2007), um trabalho pioneiro na América


Latina e de considerável “reconhecimento científico internacional”. As querelas em torno de
sua autoria e seu pioneirismo permanecem, porém, controversas. As disputas entre Palhares e
Massini sobre a apropriação indevida da reconstituição facial de Mengele foram
nominalmente denunciadas por Badan Palhares em sua autobiografia. O mesmo o fez Massini
em entrevistas e reportagens jornalísticas. A foto acima, contudo, na qual Romeu Tuma
aparece em primeiro plano, destaca a presença de um terceiro legista que não é nem Badan
Palhares, nem Massini. É, ao contrário, Daniel Romero Muñoz149, antropólogo forense do
IML de São Paulo.

149
Daniel Romero Muñoz nasceu em 1946, em São Paulo. Fez graduação na Faculdade de Medicina de Santos
em meados dos anos 70. Realizou sua residência em clínica médica e hematologia no Instituto Nacional do
Ministério da Previdência Social e sua especialização em medicina do trabalho pela Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp). Concluiu seu mestrado e seu doutorado em patologia pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP). Profissionalmente, atuou em diversas funções do Instituto Medico Legal de
São Paulo: médico-legista, chefe do setor de biologia forense, legista no necrotério e no setor de antropologia
forense. E também consolidou sua carreira na FMUSP, como auxiliar de ensino, professor assistente, professor
livre docente e professor titular, em 2006. Como docente, ministrou cursos de medicina legal na Faculdade de
181

Quanto ao pioneirismo, eu mesma experimentei uma surpresa quando, em novembro


de 2015, estive na cidade de Buenos Aires, cidade na qual Josef Mengele residiu antes de
fugir para o Paraguai e, finalmente, chegar ao Brasil. Durante a minha estadia, tive a
oportunidade de visitar uma exposição intitulada "Forensic Architecture", realizada no
Instituto Proa, no bairro La Caminito, em La Boca, Buenos Aires, entre setembro e dezembro
de 2015.
A exposição, cuja epígrafe abre esse caso, apresentava uma inusitada versão para a
“osteobiografia” de Josef Mengele150. Diferentemente da autobiografia de Badan Palhares e
de seu site oficial que dava certo destaque à identificação e à reconstituição empreendidas por
médicos-legistas brasileiros, lotados no IML de São Paulo e em Campinas, respectivamente.
Para Keenan e Weizman (2015) os especialistas internacionais, com a ajuda de legistas do
IML de São Paulo, protagonizaram uma técnica revolucionária.
“A caveira de Mengele” aparecia, já em junho de 1985, sobreposta a fotografias
tiradas em vida do carrasco nazista. Depois da “probabilidade razoável” de que a ossada
encontra em Embu fosse de Mengele, era, aos olhos do mundo, “necessária uma imagem”
(KEENAN; WEIZMAN, 2015, p.42). Foi Richard Helmer, um dos peritos alemães que
integravam a equipe, o responsável pelo rosto estampado em dois dos slides empunhados por
Romeu Tuma, no dia 22 de junho de 1985, nas fotografias publicadas em diversos jornais
brasileiros, com manchetes como “Peritos anunciam formalmente que a ossada é de
Mengele” (Jornal do Brasil, 22 de junho de 1985, p.8). Ou, “Fim da novela. Josef Mengele
está identificado”, manchete de capa, contígua à foto de peritos e Romeu Tuma segurando as
imagens produzidas por Helmer e publicadas pelo jornal O Estado de São Paulo em 22 de
junho de 1985.
A sobreposição de imagem forjada por Helmer exigiu que o crânio de Mengele fosse
rigorosamente medido. O crânio, preparado com as marcações, foi colocado em um aparato
especial e, em outra plataforma, Helmer selecionou as fotografias de várias fases da vida de

Medicina de Santo Amaro, do ABC, e foi professor adjunto de medicina legal e bioética na Faculdade de
Ciências da Santa Casa de São Paulo. Além de uma consolidada produção científica – artigos, capítulo de livros
e muitas orientações – Muñoz ganhou notoriedade por casos de relevância e repercussão como Mengele, Ulisses
Guimarães, identificação das vítimas do acidente aéreo ocorrido em São Paulo com o avião da TAM e PC Farias.
Durante sua carreira, também exerceu cargos em associações e sociedades destinadas às ciências forenses e à
ética. Para ver mais: http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/biografias/248/BIOGRAFIA-DANIEL-
ROMERO-MUNOZ.pdf.
150
A identificação de seus ossos, bem como, as técnicas de sobreposição de imagens, realizadas antes mesmo do
crânio de Mengele chegar a Campinas, ganhavam destaque na curadoria e no ensaio, “La calavera de Mengele:
el advenimiento de uma estética forense”, escrito por Thomas Keenan e Eya Weizman. O material do livro era
fruto de conversas informais dos autores com Erin Stover sobre as investigações realizadas junto ao IML de São
Paulo e da análise dos arquivos pessoais de Richard Helmer sobre o caso.
182

Mengele. Em seguida, por meio de vídeo-câmeras de alta resolução, ele colocou em


sobreposição as duas imagens dali extraídas: a do crânio e a das fotografias. Ou seja, “nas
dimensões da tela da televisão, e só ali, a sobreposição do rosto e da caveira teve lugar. De
duas fontes de imagens se produziu uma imagem” (KEENAN; WEIZMAN, 2015, p.47). As
fotografias obtidas davam um rosto ao crânio morto. Rosto que, em cera e com feição
tridimensional, só ganharia existência em função da reconstituição realizada pelos “peritos da
Unicamp”. A sobreposição de imagem, realizada por Helmer, todavia, foi completamente
invisibilizada pelas narrativas de Palhares. A reconstrução aparecia, nesse sentido, como algo
revolucionário e não caudatário das técnicas um ano antes empreendidas por Helmer.
Por mecanismos de apagamento semelhantes, no registro etnográfico construído por
Keenan e Weizman (2015), as controvérsias sobre a origem da lesão da região malar do
crânio de Mengele, fato responsável por trazer a ossada de Mengele a Campinas, não foram
descritas ou mencionadas. Porém, para minha surpresa, o “orifício circular” localizado no
maxilar esquerdo da caveira ganhava destaque, mediante a fotografia de Daniel Romero
Muñoz segurando o crânio de Mengele e apontando para a suposta lesão. A legenda, colocada
abaixo da imagem, confunde o leitor: “El experto forense brasileño Daniel Romero Muñoz
muestra la reconstruída calavera de Josef Mengele em uma conferencia de prensa, São
Paulo, 21 de junio de 1985”. A mesma imagem foi publicada na capa do Jornal do Brasil, no
dia 22 de junho de 1985. A legenda da fotografia, todavia, foi outra. Entre aspas, a frase
veiculada pelo periódico, tal como teria sido dita pelo próprio antropólogo forense brasileiro,
frisava: “'É, e a fissura comprova [!]’, garante [Daniel Muñoz] sobre Mengele”. Nenhuma
informação é adicionada sobre a suposta “fissura” – origem, características ou formato -, no
restante da reportagem.
Diferente do que sugerem Keenan e Weizman (2015), Daniel Muñoz não mostrava,
na imagem divulgada, a reconstrução da caveira de Mengele. Ele apontava, claramente, para a
lesão que, junto com a identificação “provável” de Mengele, veio a compor o laudo oficial do
caso assinado por ele e outros médicos-legistas do IML de São Paulo. Mesmo documento que,
mais tarde, justificaria o ofício 0178/85 redigido por Romeu Tuma, encaminhado ao IML de
Campinas, e que colocou Badan Palhares no “caso Mengele”.
Transcorridos mais de 30 anos, no dia 20 de março de 2016, o programa de televisão
Fantástico exibiria o “último capítulo de uma história de horror que começou na Alemanha
nazista”. Mais uma vez, a ossada de Mengele estava sob os holofotes midiáticos. A
identificação foi lembrada e Daniel Muñoz afirmava: “foi a perícia mais importante que
183

existiu no Brasil”. Nem o IML de Campinas, nem a Unicamp foram mencionados durante a
matéria jornalística. Contudo, o mesmo “orifício circular” foi, novamente, descrito por
Muñoz durante as gravações. Dessa vez, a lesão foi apresentada como oriunda de uma
provável drenagem realizada em função de uma infecção ou sinusite sofrida por Mengele.
Sinusite ou infecção que só poderia, portanto, ter ocorrido em vida. Sua explicação, porém,
não parecia ter base no laudo formulado por ele e seus colegas do IML de São Paulo. Sua
afirmação parecia ter uma fonte não declarada: o laudo assinado por Badan Palhares e a curta
estadia do crânio de Mengele em terras campineiras. A suposta lesão decifrada por Palhares,
durante os anos 90, seria uma das inúmeras artimanhas responsáveis pela conceder uma
inusitada, incômoda e meteórica visibilidade e fama a Palhares. Ou seja, a contragosto de
muitos e, mediante artifício políticos, o legista seria nomeado por jornais e revistas como
responsável não pela “reconstituição facial”, mas pela “identificação” de Mengele.
Para o telespectador leigo, contudo, a ossada sempre residiu, exclusivamente, desde a
sua exumação até a sua identificação, no segundo andar do prédio do IML de São Paulo. Para
mim, era bastante elucidativo que a “caveira de Mengele” encontrasse, por fim, sua última
“morada”: ficaria exposta, integralmente, junto à Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (USP) e à disposição de estudantes que são formados em medicina legal pelo
Instituto Oscar Freire. Talvez, também, as cabeças esculpidas em cera estejam lá guardadas,
empoeiradas e esquecidas.
O caso Mengele, nesse sentido, era uns dos primeiros capítulos de uma outra novela
política, institucional e acadêmica. Um universo habitado por disputas, contenciosos e
apagamentos que se desdobram em novos casos, vivenciados por velhos conhecidos. Ou seja,
a identificação de Mengele funciona, aos meus interesses de pesquisa, como espécie de ponto
nodal e de início para deslindar outros fios que constituem as tramas (GREGORI, 1999)
envolvendo Badan Palhares, DMLE, UNICAMP, Instituto Oscar Freire e USP.

“As ossadas da discórdia”: o ato de exumar e identificar como reparação

“(...)Nada mudou.
Só chegou mais gente,
e às velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentâneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, é e será o grito da inocência
segundo escalas e registros sempiternos. (....) ”
(SZYMBORSKA, 2011, p.79-80).
184

No dia 4 de setembro de 1990, a vala de Perus foi, mais uma vez, aberta. Sob os
flashes e os olhares de familiares de desaparecidos, entidades de proteção dos direitos
humanos, servidores do cemitério, da Polícia Militar e da Defesa Civil, a vala “irregular,
ilegal e clandestina” exibia os sacos pretos, sem identificação externa e em avançado estado
de deterioração. A vala foi a solução encontrada para acondicionar as sistemáticas exumações
ocorridas a partir de 1974 e autorizadas por diferentes administradores do cemitério Dom
Bosco151. Tratava-se, apenas, de um melhor aproveitamento dos terrenos disponíveis à venda.
Os “indigentes” ali enterrados, por consequência, precisavam ser retirados e realocados (CPI
Perus – Desaparecidos Políticos, 1990).
A exumação em massa da Gleba 1, quadras 1 e 2, havia resultado num amontoado de
sacos plásticos, acondicionados precariamente junto às salas de velório da necrópole. Depois
de meses guardadas de forma “precária”, o Serviço Funerário determinou que as ossadas
fossem novamente reinumadas. Com o auxílio de uma retroescavadeira, uma vala de trinta
metros de comprimento, cinquenta metros de largura e quase dois metros de profundidade, foi
aberta no cemitério Dom Bosco. (Programa Lugares da Memória. Cemitério Dom Bosco -
Vala de Perus. Memorial da Resistência de São Paulo, 2014).
Por muitos anos, a vala, construída sem alvenaria e sem os requisitos básicos
indicados, permaneceu oculta. (INSTITUTO MACUCO, 2012, p.168). Denunciada a Caco
Barcellos pelo administrador do cemitério Dom Bosco, Antônio Pires Eustáquio, a vala viria a
se somar às extensas e impactantes investigações empreendidas pelo jornalista sobre vítimas
fatais, assassinadas pela Polícia Militar (PM) de São Paulo, entre os anos de 1970 e 1992 152.
Enquanto um projeto político municipal e estadual, todos os relatórios apresentados pela
151
Como afirmou em entrevista o Dr. Eduardo Zappa, médico-legista aposentado do Instituto Médico Legal de
Campinas, nessas necrópoles é comum que corpos enterrados por um período de mais de três anos sejam
removidos de suas sepulturas e reorganizados em ossários. Estes últimos, previstos e construídos verticalmente
no próprio cemitério, são divididos em gavetas e urnas. Em geral, as exumações ocorrem quando o cemitério
está com lotação máxima e precisa que as sepulturas sejam reutilizadas. O procedimento é simples: o corpo é
retirado da sepultura e alocado em um saco plástico. Este, por sua vez, recebe uma etiqueta com as identificações
numéricas do cadáver enterrado. Num livro que deve permanecer na administração do cemitério, as exumações
devem ser devidamente anotadas: “o nome do cadáver e/ou o número recebido por ele no IML, seu
sepultamento (quadra) e o local no qual os ossos foram depositados”. (Entrevista realizada em setembro de
2016).
152
O estudo reuniu reportagens do jornal “Notícias Populares”, documentos arquivados junto ao IML de São
Paulo, depoimentos de familiares de vítimas executadas pela PM, processos arquivados junto à Auditoria Militar
de São Paulo e papéis oficiais forjados pela Polícia Civil e pela Justiça Civil. O resultado foi um Banco de Dados
que, até abril de 1992, possuía a identificação, com um rápido perfil, de 4.179 mortos em supostos confrontos ou
tiroteios com a PM (TELLES, 2001). O investimento de mais de sete anos de trabalho foi, mais tarde, em 1992,
publicado através do livro-reportagem “Rota 66: a polícia que mata”. Como destaca Aderaldo (2008, p. 89), foi
“a escrita do rota 66 que colocou o repórter [Barcellos] em evidência, permitindo a ele maior articulação entre o
modelo de jornalismo praticado na imprensa escrita, com maior liberdade de tempo e grande utilização de fontes
primárias, e o telejornalismo”.
185

Comissão da Verdade do estado de São Paulo “Rubens Paiva” (2015) e pela CPI Perus –
Desaparecidos Políticos (1990) destacam a estreita relação entre a construção do Cemitério
Dom Bosco, em Perus, e a ocultação sistemática de cadáveres na cidade de São Paulo,
especialmente entre os anos de 1971 a 1976153.
Com a enorme exposição em torno da reabertura da vala, a prefeitura de São Paulo,
sob o comando Luiza Erundina, assumiu a responsabilidade sob a vala, uma vez que o
cemitério Dom Bosco era um cemitério público de incumbência municipal. No dia 05 de
setembro de 1990, por 28 votos a 0, a Câmara de Vereadores de São Paulo criava a Comissão
Parlamentar de Inquéritos dos Desaparecidos, com vistas a “apurar a origem e as
responsabilidades sobre as ossadas encontradas no cemitério Dom Bosco, em Perus e
investigar a situação dos demais cemitérios de São Paulo” (CPI Perus – Desaparecidos
Políticos, 1990, p.1)154.
Mais uma vez, ossos e restos humanos dariam visibilidade nacional à perícia médico-
legal realizada no interior paulista, sob os cuidados de Badan Palhares. Se no caso Mengele,
sua convocação respondia à confrontação técnica do laudo expedido pelo IML da capital em
relação à fístula no crânio identificado, agora, respondia à pressão de familiares e parentes de
mortos e desaparecidos políticos que exigiam o afastamento de instituições diretamente
ligadas à implementação e manutenção do regime ditatorial no Brasil. A descoberta da vala e
as suspeitas de que ao menos seis desaparecidos políticos estariam ali inumados colocavam
empecilhos morais e éticos ao destino burocrático resguardado a essas ossadas: o IML de São
Paulo.
O envolvimento do diretor do IML, Harry Shibata155 e, de outros legistas do IML de
São Paulo, com a produção de laudos falsos e o translado de corpos ao cemitério de Perus, foi

153
Assim, enterrados quase sempre sem pompas, os cadáveres acondicionados em glebas e quadras do Cemitério
Dom Bosco majoritariamente careciam de identificação, trajes mortuários e/ou registros funerários precisos. Para
ver mais sobre a construção do cemitério de Perus, ir ao anexo IV.
154
A CPI requerida pelo vereador Júlio César Caligiuri Filho e composta por mais seis membros - Teresa Lajolo,
Ítalo Cardoso, Aldo Rabelo, Antonio Carlos Caruso, Marcos Mendonça e Oswaldo Gianotti - foi nomeada pelo
presidente da Câmara de Vereadores Eduardo Matarazzo Suplicy. Durante aproximadamente seis meses,
sepultadores, administradores, superintendentes, legistas e políticos responsáveis pelas obras de construção do
cemitério Dom Bosco foram intimados e seus depoimentos gravados e transcritos em relatórios. Para ver mais,
Azevedo (2016).
155
Harry Shibata foi médico-legista lotado no Instituto Médico Legal de São Paulo, entre os anos de 1956 e
1983, e, entre os anos de 1976 e 1983, assumiu a diretoria da instituição. Ele foi acusado de produzir inúmeros
laudos falsos de necropsia, cujas conclusões ocultavam técnicas de tortura empreendidas contra os cadáveres por
ele necropsiados, a real causa da morte, bem como a identidade civil dos mesmos (ver anexo IV). Em entrevista
que realizei com Neves, ele não só mencionou o nome de Shibata como se certificou de comentar sobre a perda
de seu registro junto ao CRM de São Paulo, devido às sistemáticas denúncias contra ele. Em 1985, antes das
denúncias, Shibata foi chamado por Romeu Tuma para atuar como médico-legista da polícia federal. Em sua
autobiografia, Badan Palhares (2007) apresenta Shibata como “um dos profissionais mais cultos das ciências
186

o argumento central para que as ossadas não fossem identificadas na instituição. Em artigo
publicado em 2001, no Jornal da Unicamp, na “Edição Especial: Projeto de Perus passado a
limpo”, Ivan Seixas afirma:

“O IML de São Paulo tinha em sua direção médicos legistas comprometidos


com laudos falsos, que acobertavam as torturas e, assim, incentivavam sua
continuação. Seu diretor, Antônio Melo, assinou o laudo cadavérico do
operário Manuel Fiel Filho, morto sob torturas no DOI-Codi/São Paulo.
Outros iguais a ele andavam pelos corredores impunemente.
Os presos políticos, mortos pela segunda vez nos laudos falsos daqueles
médicos farsantes, não poderiam voltar às suas mãos outra vez. A Comissão
de Familiares travou várias lutas contra aquele grupo do IML. Numa das
vezes, invadimos a sala do Diretor e flagramos, com a presença e ajuda da
imprensa e de advogados, uma reunião que tramava a destruição dos
arquivos de documentos. Desarticulada a trama, lacramos a sala com os
documentos e garantimos a sua análise por uma comissão de familiares e
advogados. Definitivamente, as ossadas de Perus não poderiam ir para lá”
(Jornal da Unicamp, 2001, p. 19).

Os impasses em torno de quem seriam os responsáveis pelas ossadas e sua


identificação ganharam repercussão nos jornais. A reportagem publicada na Folha de São
Paulo, no dia 06 de setembro de 1990, sob o título “Cemitério da Repressão: Prefeitura cria
comissão e assume as investigações”, destaca as disputas postas em curso. O texto exíguo
destacava:

“As relações entre a Prefeitura e o Estado ficaram ontem novamente tensas.


Antes das 14h, chegou ao cemitério uma equipe do IML chefiada pelo
diretor José Antônio de Mello. Ele recebera instruções para embarcar as 88
ossadas. A remoção não foi autorizada por funcionários municipais.
Erundina telefonou ao Secretário de Segurança Pública e disse que os
trabalhos seriam efetuados pela Prefeitura” (Folha de São Paulo, 06 de
setembro de 1990, p.9).

Dois dias depois do ocorrido, contudo, uma reportagem no mesmo jornal afirmava que
o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antônio Carlos Mariz de Oliveira, havia
designado o delegado Jair Cezaria da Silva para presidir o inquérito policial sobre as ossadas
encontradas. Na mesma matéria jornalística, a “Reportagem Local” informava que o
governador do estado de São Paulo, Orestes Quércia, entendia as “razões” de familiares de
desaparecidos políticos e entidades de direitos humanos, entretanto, “o IML tem que

forenses” que ele conheceu. Além disso, não poupa elogios a sua personalidade atenciosa e sempre disponível;
“recebeu-me inúmeras vezes em seu gabinete para discutir minhas dúvidas nos casos que atendia. Sem entrar
nos méritos das denúncias (...) afirmo que a medicina legal brasileira perdeu, sem dúvida, um grande estudioso
da área com seu afastamento da vida pública” (PALHARES, 2007, p. 80).
187

participar [dos exames de identificação] e vai participar porque é um instituto oficial” (Folha
de São Paulo, 08 de setembro de 1990, p.9).
A frase publicada entre aspas, indicando que a mesma foi proferida tal como o
governador disse à “Reportagem Local”, era parte do texto jornalístico cuja manchete
afirmava “Entidades vão fiscalizar o IML, diz o governador”. Junto à reportagem, a foto de
Badan Palhares, segurando o crânio de uma das ossadas exumadas na vala de Perus, ilustrava
a informação divulgada pelo periódico, na mesma data, em ato contínuo:

“Mariz [Antonio Claudio Mariz de Oliveira, secretário de Segurança Pública


de São Paulo na época] diz que o IML será o responsável pelo exame. Ele
informa ainda ter aceito o pedido da prefeita Luiza Erundina para que os
exames sejam acompanhados por legistas da Unicamp”. (Folha de São
Paulo, 08 de setembro de 1990, p. 9).

Apresentados, nesse primeiro momento, como consultores, os “legistas da Unicamp”


iriam, apenas, “inspecionar” o trabalho realizado pelo IML de São Paulo. Contudo, apenas
três dias depois, as afirmações veiculadas pelo periódico foram refutadas. A manchete
“Quércia afasta diretor do IML da investigação sobre tortura”, publicada no dia 11 de
setembro de 1990, anunciava o afastamento de José Antonio de Mello, diretor do IML de São
Paulo, e de “todos os funcionários do IML que possam ter relações como o assunto”. (Folha
de São Paulo, 11 de setembro de 1990, p. 4). Porta-voz da notícia, o secretário da Segurança
Pública, segundo o periódico, “afirmou que os arquivos do Instituto ficaram lacrados e só
serão reabertos após Palhares assumir as investigações” (Folha de São Paulo, 11 de
setembro de 1990, p. 4).
Diante das controvérsias, e buscando juridicamente respaldar o translado das ossadas
para o Departamento de Medicina Legal da Unicamp, Antonio Claudio Mariz de Oliveira
redigia um ofício ao “Ilmo. Sr. Dr. Fortunato Badan Palhares”. Entregue “em mãos” e
portando o brasão do estado de São Paulo, o documento, datilografado à máquina de escrever,
informava: “Secretaria de Segurança Pública”, “Gabinete do Secretário”:

“Conforme nossos entendimentos verbais, V.Sa. Está por mim designado


para chefiar a equipe de médicos e de funcionários pelo exame das ossadas
encontradas no Cemitério de Perus.
Todas as providencias já adotadas até o presente momento por V.Sa., são
por mim ratificados pelo presente.
Sem mais, apresento a V.Sa. os protestos de elevada estima e consideração”
(PALHARES, 2007, p. 120).

A designação evitava, portanto, que os restos inumados fossem estudados nas


dependências do IML de São Paulo, sem, contudo, ferir a oficialidade e a legitimidade desse
188

órgão. Segundo Badan Palhares (2007), era exatamente seu duplo vínculo – médico-legista do
IML de Campinas e professor e chefe do DMLE – que lhe dava condições de assumir a
identificação das ossadas de Perus. Como descreve, com minúcia, José Eduardo Bueno
Zappa156, integrante da equipe designada por Badan Palhares, “legalmente, a tarefa caberia
ao Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, pois Perus está dentro da área de cobertura
do órgão”. O passado de cumplicidade do órgão e de alguns de seus funcionários, ainda na
ativa, com a ditadura militar inviabilizavam os encaminhamentos convencionais e
obrigatórios. A pressão exercida por familiares e organismos ligados à defesa dos direitos
humanos exigia, portanto, uma solução viável. Diante do “prestígio tanto em nível nacional
quanto internacional” de que gozava o Departamento de Medicina Legal e Ética (DMLE), o
encaminhamento das ossadas para a UNICAMP aparentemente resolvia a querela. Mas, como
alertava Zappa,

“para que o procedimento fosse concretizado, seria necessário superar um


outro impedimento legal. A Unicamp não poderia receber as ossadas, pois
não era uma instituição oficial para realizar esse tipo de exame. A saída
encontrada na oportunidade foi transferir todo o acervo para o IML de
Campinas, sob a responsabilidade do médico Fortunato Badan Palhares,
que além de legista do órgão também era professor da Universidade. Assim
foi possível trazer as ossadas diretamente para a Unicamp, lembra Zappa”.
(Jornal da Unicamp, 2001, p. 2-3).

O aceite, contudo, estava consignado à autorização de Carlos Vogt, reitor da Unicamp,


e à assinatura de um convênio que garantisse o apoio necessário à empreitada científica
incumbida ao departamento. Em sua autobiografia, Palhares aponta que Nelson Massini teria
sido responsável pelos trâmites do convênio, ainda que, para ele, Massini não tivesse o
vínculo burocrático necessário para a realização de tal empreitada. Isto é, ele não era médico-
legista oficial de nenhum IML do país. Em uma suposta entrevista à emissora Radio
Eldorado, Massini teria afirmado que a prefeita Luiza Erundina teria o procurado
pessoalmente para que o mesmo assumisse a investigação das ossadas (PALHARES, 2007).
Como sugeri no caso Mengele, também no tocante as ossadas de Perus, Eduardo Daruge e o

156
José Eduardo Bueno Zappa fez sua graduação e seu doutorado em medicina pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Sua tese, na área de medicina legal e deontologia, foi defendida em 1994, sob
orientação de Badan Palhares. Profissionalmente, Zappa atuou como professor doutor da UNICAMP e como
professor colaborador ou celetista em diversas universidades: Centro Universitário Salesiano de São Paulo,
Universidade São Francisco, Faculdade Bandeirantes de Medicina e Centro Médico de Campinas. Além da
docência, Zappa ocupou o cargo de médico legista no IML de Campinas. Atualmente é sócio diretor, ao lado de
Badan Palhares, do Instituto de Patologia de Campinas (IPC) e sócio do International Academy of Pathology –
divisão brasileira. Seu currículo destaca, ainda, inúmeros prêmios e menções honrosas na área. Para ver mais:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4584322T8.
189

departamento de odontologia forense por ele assistido figuravam como um profissional e um


local adequados à identificação.
Todavia, o entendimento entre a prefeitura de São Paulo, na figura de Erundina, e do
governo do estado, sob o comando de Quércia, já havia dado o encaminhamento necessário às
ossadas, mediante um convênio que foi assinado em 22 de novembro de 1990157. Como
assinalam algumas das notícias citadas no decorrer desse caso, Massini e Badan Palhares já
apareciam, desde a abertura da vala, como peritos que, a pedidos de Erundina, deveriam
“acompanhar os exames” (Folha de São Paulo, 08 de setembro de 1990, p. 9).
Nem em seu site pessoal, nem em sua autobiografia, Badan Palhares se dedica a
apresentar os procedimentos forenses utilizados na identificação das mais de mil ossadas
exumadas da vala de Perus. Sua narração enfatiza, em pormenores, os entraves burocráticos e
os conflitos pessoais entre as instâncias do convênio, familiares, médicos e políticos em torno
da pesquisa e da divulgação das descobertas empreendidas158. As informações desses
procedimentos permanecem acessíveis apenas por meio da lista de corpos identificados no
decorrer na investigação empreendida pelo DMLE de Campinas. Como enfatiza Palhares
(2007):

“Sem a menor esperança de obter qualquer ajuda adicional de quem quer


que fosse, eu e a abnegada equipe que abraçava com seriedade a causa das
ossadas arregaçamos as mangas, superamos os entraves e o tratamento de
‘passa-moleque’ que recebíamos e conseguimos identificar seis ossadas,
entre as 1.049 encontradas no cemitério de Perus. Os desaparecidos
identificados foram: Sônia Maria de Moraes Angel Jones, Antonio Carlos

157
O governo do estado assumia a “guarda das ossadas humanas”, bem como aceitava fornecer apoio pessoal e
técnico às pesquisas a serem realizadas. Em função dos contenciosos, também, se incumbia da “proteção
contínua ao prédio onde os trabalhos se realizarão, bem como a todos os que estiverem trabalhando no local”.
Já o município, na figura da prefeitura, ficava responsável por: “fornecer todos os recursos necessários de que a
equipe de peritos possa necessitar para aprimoramento nas perícias em todos os níveis nacionais e
internacionais” (PALHARES, 2007, p.122).
158
Em sua autobiografia Palhares (2007) destina um capítulo inteiro para descrever, em detalhes, seu empenho
em redigir e encaminhar ao Ministério da Justiça, em 1996, um aditivo ao convênio entre a Unicamp, o estado e
a prefeitura de São Paulo, assinado em 22 de novembro do ano de 1990. O aditivo foi digitalizado integralmente
pelo próprio Palhares e está disponível em seu site pessoal. Os papéis encaminhados, bem como as negociações
em torno de uma verba de 150 mil reais, formam um compêndio de praticamente cinquenta digitalizações.
Chama atenção nessa papelada, o esforço de Palhares por conseguir recursos que seriam revertidos para o custeio
de recursos humanos, complementação salarial, aquisição de material de consumo e despesas em viagens e
gastos adicionais que se fizessem necessários. O aditivo cumpriu seu trâmite administrativo nas instâncias da
Unicamp: na Congregação e no Conselho de Extensão Universitária. Em ambas as instâncias, o novo convênio
foi deferido. Contudo, em 02 de setembro de 1996, os trâmites foram interrompidos em função do ofício
redigido pelo deputado estadual Renato Simões, cujo conteúdo nos termos de Palhares (2007, p.136), consistia
em “acusações descabidas”. Palhares não descreve tais acusações. Apenas insinua que a mesma foi arquitetada
como uma perseguição direcionada exclusivamente a sua coordenação ao Projeto Perus. Isso porque, segundo
Palhares (2007), após seu afastamento, a mesma proposta foi reencaminhada à Comissão de Extensão da
Universidade. Todavia, “devido à demora na tramitação, causada pelas interferências, os recursos não foram
liberados pelo Ministério da Justiça” (PALHARES, 2007, p.137).
190

Bicalho Lana, Dênis Casemiro, Hélber José Gomes Goulart, Frederico


Eduardo Mayr e Emmanuel Bezerra dos Santos” (PALHARES, 2007, p.
128).

As seis identificações nomeadas por Badan Palhares, entretanto, não correspondiam


diretamente às ossadas exumadas da vala clandestina. Com exceção de Frederico Eduardo
Mayr e Dênis Casemiro, todos os outros quatros corpos foram retirados de sepulturas
individuais do próprio cemitério Dom Bosco ou em outros cemitérios de São Paulo. Como
salientou Zappa em entrevista, ao longo do processo de catalogação das ossadas, sepulturas
individuais com os restos mortais de possíveis presos políticos foram exumadas, tanto em
Perus, quanto no cemitério de Vila Formosa e Campo Grande em São Paulo e no cemitério de
Xambioá, em Tocantins159.
Apenas um documento anexado, na aba “Documentos Ossadas”, no site pessoal de
Badan Palhares, parece reunir os trâmites forenses realizados junto às ossadas. Datado de abril
de 1997, o relatório denominado “Projeto Perus” apresenta uma modesta folha de capa com
os subtítulos em letra maiúscula: “Departamento de Medicina Legal”, “Faculdade de
Ciências Médicas”, “Universidade Estadual de Campinas”. O relatório de trinta páginas foi
redigido e assinado por José Eduardo Bueno Zappa. O papel, com a insígnia da Unicamp no
canto superior esquerdo, recebeu também um carimbo, agora no canto superior direito, com as
siglas: “Fls. Nº_____; P/E______; Rub_____”. Logo abaixo do carimbo, lê-se “Quando
todos pensam a mesma coisa, ninguém está pensando. Walter Lippman”. Subdividido em
dezesseis seções, o relatório recuperava o “Histórico/Vala Comum”, bem como informava ao
leitor sobre a designação e a equipe160 que procedeu à identificação das ossadas. De modo
bastante genérico, o relatório delineava os procedimentos de “catalogação” e “divisão das
ossadas”, assim como o “trabalho técnico” e “específico” empreendido no decorrer dos sete
anos de manuseio dos ossos exumados.
A primeira etapa do trabalho foi realizada no próprio cemitério de Perus. Os sacos
plásticos retirados da vala foram inspecionados e os restos mortais neles contidos foram
enumerados por meio de placas metálicas. Dados relevantes encontrados nos ossos ou no
crânio de cada ossada em particular eram fotografados e filmados para serem utilizados na

159
Para mais detalhes sobre a biografia dos militantes políticos identificados pelo DMLE, ver anexo IV.
160
Não foi possível recuperar os nomes de todos os envolvidos no trabalho de catalogação e identificação dos
restos mortais encontrados na vala clandestina. Em seu relatório, Zappa destaca que a equipe era composta por
cinquenta profissionais entre “professores, médicos, dentistas, alunos e funcionários tanto da UNICAMP quanto
de outras instituições”. Enquanto que ao final dos trabalhos, em 1997, ele contava com uma equipe de quatro
membros: “(...) foram também, convidados professores e membros de outras Universidades e Faculdades que
tinham Departamentos de Medicina Legal, porém, não obtivemos respostas” (ZAPPA, 1997, p.6).
191

próxima etapa da identificação. O processo de catalogação, além de listar individualmente


cada uma das ossadas exumadas161, determinou o conteúdo de cada um dos sacos recolhidos
da vala clandestina. Uma primeira triagem separou os sacos plásticos contendo aparentemente
apenas uma única ossada daqueles “com ossos duplicados, vários crânios ou ausência dos
mesmos” (ZAPPA, 1997, p.7). Através de filmagens e fotografias, os restos mortais foram
divididos em quatro grupos.

“No chamado grupo I foram separadas as ossadas que tinham crânios


íntegros, o que aumentava muito a chance de identificação. No grupo II,
ficaram as ossadas com crânios quase íntegros, isto é, que apresentavam
fraturas pré ou pós-mortais que dificultariam, mas não impediriam, uma
identificação. No grupo III foram separadas ossadas com crânios
apresentando várias fraturas que, seguramente, dificultariam em muito sua
utilização em processo identificatório. E no grupo IV foram colocadas as
ossadas em que o crânio mostrava fratura múltiplas, perda de fragmentos
ósseos, vários crânios no mesmo saco e ossadas sem crânios” (ZAPPA,
1997, p. 8).

A catalogação das mais de mil ossadas realizada no próprio cemitério Dom Bosco foi
noticiada pela Folha de São Paulo, no dia 22 de novembro de 1990, com a manchete “ONU
pede relatório sobre as ossadas”. Segundo as informações contidas no corpo do texto, a
catalogação era uma “exigência da Prefeitura para que a transferência [das ossadas para a
Unicamp fosse] feita” (Folha de São Paulo, 22 de novembro de 1990, p. 7). Na mesma
reportagem, a assessoria da prefeitura teria divulgado as previsões de Nelson Massini de que a
catalogação estaria finalizada até o dia 23 de novembro de 1990.
As ossadas, contudo, só foram transferidas definitivamente para os laboratórios do
DMLE da Unicamp no dia 01 de dezembro de 1990162. Já na Unicamp, as ossadas foram
submetidas a novas investigações. Dessa vez, pesquisas relacionadas às características
antropométricas clássicas – sexo, altura, raça, idade – foram executadas em cada uma das
ossadas exumadas163.
Para tanto, como salienta Zappa (1997) em seu relatório, um levantamento
bibliográfico foi realizado e “um treinamento específico para a equipe” foi realizado

161
O número de ossadas catalogadas é impreciso. Os veículos de mídia impressa e os próprios peritos envolvidos
quantificam diferentemente as ossadas catalogadas e aquelas analisadas junto aos laboratórios da Unicamp. Os
números oscilam entre 1.000 e 1.400 ossadas. Os valores de maior recorrência são os de 1.049 e 1.062 ossadas.
162
O translado das ossadas foi acompanhado pela prefeita Luiza Erundina e outros políticos de renome, como o
deputado federal e presidente do Partido dos Trabalhadores à época, Luiz Inácio Lula da Silva. Uma fotografia
publicada no “1º Caderno”, do Jornal do Brasil, destacava Lula e a prefeita ao lado de Badan Palhares (Jornal
do Brasil, 02 de dezembro de 1990, p. 34).
163
Como informou Zappa (1997, p. 11) “a equipe foi subdividida em grupos, sempre com um perito experiente
como responsável, e o trabalho de abrir cada saco, examinar detalhadamente cada osso e extrair todos os
dados necessários foi iniciado”.
192

(ZAPPA, 1997, p. 10). O intuito era elaborar um “protocolo”, em que dados clássicos
antropométricos pudessem ser extraídos de cada ossada, assim como outros elementos
fundamentais a uma possível identificação. Entre eles, tipos e localização das fraturas pré e
post-mortem visíveis nos restos humanos, defeitos congênitos, aspectos dentários, fraturas
consolidadas ou lesões que pudessem sugerir morte por projeteis de arma de fogo etc. Assim,
diante da escassa produção nacional, para cada um dos parâmetros – sexo, altura, raça, idade –
ângulos, tabelas e dados qualitativos foram construídos através de diferentes materiais
internacionais sobre o tema. Elaborado o protocolo, a equipe também formulou um
“questionário” encaminhado aos familiares de presos desaparecidos, com o objetivo de
recolher dados pessoais, fotografias, exames ortodentários ou radiográficos que auxiliassem
nas comparações a serem conduzidas164.
Em sua entrevista, Zappa afirmou que, naquele momento, a tecnologia era muito
insipiente. Muitas informações eram escritas em cartolina e colocadas à vista para que os
dados não se perdessem. Mais tarde, com um computador cedido ao DMLE, as informações
foram, paulatinamente, incorporadas a um banco de dados, num programa computacional
desenvolvido para aquela funcionalidade, por um analista de sistema cedido pelo centro de
comunicações da reitoria (PALHARES, 2007). Zappa me alertou, ainda, que o pioneirismo
daquele projeto foi responsável pela pouca produção material em relação aos estudos:
relatórios, projetos de pesquisa, artigos etc. As lembranças compartilhadas pelo legista,
contudo, só se tornaram visíveis para mim através do programa “Vem Comigo”, apresentado
por Goulart de Andrade e reexibido pela TV Gazeta, em 2013165. Em tal programa, as

164
Não há informações precisas sobre o treinamento fornecido à equipe, nem obtive cópia dos arquivos
denominados “protocolo” e do “questionário” desenvolvidos e indicados por Zappa (1997) como “anexo I” e
“anexo II”. Entre os papéis reunidos por Badan Palhares, na aba “Documentos Ossadas”, em seu site pessoal,
tais formulários não foram digitalizados. Ainda que não seja possível saber com certeza se os protocolos e
questionários não foram digitalizados ou se eles não foram disponibilizados ao público em geral, como me
alertou Julian Simões, em conversas pessoais, tais papéis são, fatalmente, conflitivos. Todos eles poderiam, por
exemplo, permitir que os questionamentos e descontentamentos já em curso contra a atuação do DMLE na
identificação das ossadas fossem redimensionados. Nesse sentido, não disponibilizar os procedimentos
propriamente técnicos ou os recursos científicos utilizados na identificação das ossadas são estratégias bastante
similares aquelas desenvolvidas por instâncias estatais. Ou seja, tais estratagemas podem ser vistos como uma
forma de controlar as informações que se pretender divulgar sobre esses estudos e seus percalços. Voltarei a tais
argumentos nas notas finais desta tese.
165
Goulart de Andrade ficou conhecido por suas reportagens polêmicas, inusitadas e irreverentes. O bordão
característico “Vem comigo” apostava na figura do jornalista investigativo que não hesita a percorrer os mais
inusitados lugares: de obras realizadas no esgoto da cidade a casas de massagem. A gravação original foi
produzida por Goulart de Andrade, no ano de 1993, sob o título “Medicina Forense”. A reportagem, de
aproximadamente cinquenta e cinco minutos, assume um tom quase biográfico, uma vez que Goulart de Andrade
se utiliza da carreira e dos casos periciais assinados por Badan Palhares para apresentar ao espectador o ofício de
legista. Entre os anos de 2012 e 2016, o “Vem comigo” foi reeditado, também pela TV Gazeta, com intuito de
servir de uma espécie de laboratório para jornalistas em formação pela Faculdade Cásper Líbero. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Lm6jetvhJjg. Acessado em: 14 de março de 2017.
193

instalações e equipamentos disponibilizados pelo DMLE às ossadas ganharam centralidade e,


de forma impensável, ilustravam os procedimentos sucintamente sintetizados no relatório
assinado por Zappa, em 1997.
Na tomada feita pela câmera, a sala aparentemente bastante estreita estava abarrotada
de sacos de tecido brancos. Estantes de madeira, ocupando as paredes laterais da saleta,
exibiam pilhas de ossadas catalogadas e cujas “osteobiografias” não seriam reconstruídas
(KEENAN; WEIZMAN, 2015). Depois de estudadas e suas informações codificadas em
tabelas, tais ossadas jaziam ali a espera de um novo translado. A prateleira ao fundo do
cômodo, por contraste, exibia outros inúmeros crânios enfileirados e empilhados. As caveiras
ali acondicionadas deixavam à amostra a fita branca adesiva envolvendo do topo craniano à
mandíbula. Além disso, em sua maioria, os crânios apresentavam, nos espaços interdentários,
uma espécie de massa de modelar de cor vermelha cuja função foi explicada por Badan
Palhares a Goulart de Andrade – diminuir os desgastes e as ações do tempo comuns àquela
região do crânio. O jornalista, sem luvas descartáveis, lançou-se em direção à prateleira e
pegou, autorizado por Palhares, um dos crânios em suas mãos. A música de fundo
potencializou o tom de suspense da frase proferida por Goulart de Andrade, enquanto a
câmera de filmagem dava foco ao crânio preso entre seus dedos: “Esse pode ter sido um
amigo meu, desaparecido naquela época” (Vem Comigo [1993], TV GAZETA, reexibido em
19 de novembro de 2013).
Da mandíbula da caveira, um barbante preso em um dos dentes sustentava uma
etiqueta retangular com as identificações da ossada em questão. Como explicou Badan
Palhares, a prateleira metálica organizava ossadas que estariam sob algum tipo de estudo por
conterem elementos antropométricos coincidentes a aspectos levantados por algum familiar
de desaparecido político166. A luz artificial e a mesa tomada por sacos de ossos e papéis
completavam o sufocamento que, aparentemente, a sala parecia provocar a nós
espectadores167. Com um corte na cena, uma nova sala ganhou centralidade na filmagem. Um
técnico munido de um antigo computador de mesa, com monitor de tubo e um gabinete de
166
Em seu relatório, Zappa (1997) afirma que os “questionários” preenchidos por familiares apresentavam
algumas imprecisões. Contudo, foi categórico em afirmar que toda a investigação só foi possível devido ao
empenho desses familiares e entidades que “desenvolveram um verdadeiro trabalho de garimpo no IML de São
Paulo e em arquivos de outros órgãos, procurando dados, informações, etc...” (ZAPPA, 1997, p.13). Entre
esses outros órgãos, o escrutínio minucioso aos precários livros de registros do cemitério Dom Bosco foi central
para o levantamento de, pelo menos, seis nomes: Frederico Eduardo Mayr, Flávio de Carvalho Molina, Dimas
Antônio Casemiro, Denis Casemiro, Grenaldo Jesus da Silva e Francisco José de Oliveiras.
167
De acordo com Goulart de Andrade a sala não apresentava nenhum odor. Palhares, na contramão das
denúncias que mais tarde seriam feitas sobre o armazenamento das ossadas, destacava o rigoroso cuidado
destinado aos ossos e ao acondicionamento a eles fornecidos (Vem Comigo [1993], TV GAZETA, reexibido em
19 de novembro de 2013).
194

torre, foi apresentado ao telespectador enquanto Palhares explicava a Goulart o programa


utilizado pelo DMLE naquela estação de trabalho.
A reportagem televisiva confirmava a eficiência do programa computacional,
enquanto Goulart descrevia hipoteticamente possíveis características de um desaparecido
político. Tais características foram usadas para triagem fictícia que poderia ser feita junto ao
banco de dados. O cruzamento exigia, por um lado, as informações levantadas por intermédio
de características forenses impressas nos restos humanos investigados pelo DMLE e, de outro
lado, os aspectos importantes descritos em “questionário” por familiares de alguns dos
desaparecidos políticos enterrados clandestinamente no cemitério Dom Bosco. A
comprovação da identificação, no entanto, exigia um último procedimento: a sobreposição das
imagens do crânio e de uma fotografia fornecida pelo familiar.
Foi desse modo que a mãe de Frederico Eduardo Mayr, Gertrud Mayr, viu surgir, da
tela de TV disposta no DMLE, o sorriso de seu filho168. A imagem projetada à sua mãe
registra a perfeita sobreposição entre o crânio analisado pelo DMLE, mediante características
antropométricas, e as fotografias de Frederico, em branco e preto, retiradas dos arquivos do
cemitério Dom Bosco e fornecidas por Gerturd ao DMLE.

Figura 8: Identificação por sobreposição de imagens de Eduardo Mayr

Fonte: Instituto Macuco, 2012, p. 155.

168
Por falta de outros elementos, não posso reconstruir todas as supostas técnicas de identificação utilizadas pelo
DMLE de Campinas. O caso de Frederico Eduardo Mayr configura-se com um bom exemplo, uma vez que os
procedimentos utilizados para a reconstituição da ossada de Denis Casemiro, também, inumado na vala comum,
são praticamente inexistentes no material que pude recolher sobre o caso.
195

O laudo, “entregue previamente” com os procedimentos utilizados, não foi anexado


ao relatório assinado por Zappa, em 1997. É mediante as explicações de Badan Palhares a
Goulart de Andrade que as técnicas de sobreposição de imagem e a sua metodologia podem
ser reconstruídas nesta tese.
A fotografia escolhida, segundo Palhares, é central para a realização do procedimento.
Quanto menor forem as distorções das proporções faciais, mais precisa será a sobreposição
entre a imagem da pessoa viva e a imagem do crânio fotografado. Quadriculada a fotografia, o
computador faz seu trabalho. Para a conclusão positiva, é necessário que pelo menos seis
pontos sejam coincidentes entre elas em sobreposição169. Como a imagem de Frederico
Eduardo Mayr demonstra, linhas de proporção são projetadas sobre a face, harmonizando as
transições entre Frederico vivo e sua imagem cadavérica.
O depoimento, entre lágrimas, de Gertrud Mayr, registrado pelo documentário de João
Godoy (1994), seria exemplar quanto aos sentimentos de esperança tecidos em torno da
identificação das ossadas de Perus. Porém, os métodos “visuais, métricos, sobreposição de
imagens e comparações, radiografias” (ZAPPA, 1997, p.13) foram responsáveis pela
identificação definitiva de, apenas, duas ossadas depositadas na vala comum de Perus.
Nesse sentido, as técnicas e a forma por meio da qual o “Projeto Perus” foi
conduzido, em especial durante a chefia de Badan Palhares, também produziu enormes
descontentamentos. Tanto para familiares cujos entes queridos permaneceram não
identificados durante muitos anos, como é o caso de Flávio Molina, quanto para aqueles que
colocavam em xeque a idoneidade e a transparência dos trabalhos realizados junto às ossadas.
A identificação de Maria Lucia Petit da Silva concluída, apenas em 1996, parece ilustrar tais
desconfianças. Exumada em 1991, no cemitério de Xambioá, no Tocantins, a ossada de Maria
Lúcia Petit da Silva foi um resultado de “sorte”, segundo Palhares (2007). A exumação da
“guerrilheira de Xambioá” foi realizada em um terreno sem limitações claras e sem registros
de sepultamento ou ícones, como cruzes ou marcas de divisão entre os jazigos. Depois de
horas de escavações, os “restos mortais esqueléticos, [estavam] fragmentados e em boa parte
descalcificados e esfarelados, envoltos em um gomo de paraquedas. (...). A quase totalidade
da ossada estava desintegrando, dificultando o manuseio” (PALHARES, 2007, p. 148).

169
Alguns pontos são centrais: a posição do ponto nasal, localizado bem no topo do nariz entre os olhos; a
localização da espinha nasal, a base do nariz entre as maçãs do rosto; a disposição da rima labial, uma linha que
poderia ser traçada sobre a boca e as proporções dos pontos orbitários (olhos) e do conduto auditivo (orelha).
196

Segundo Laura Petit, irmã de Maria Lúcia Petit, Badan Palhares teria afirmado, em
Xambioá, que a ossada encontrada “seria de alguém que estava na guerrilha” (Jornal da
Unicamp, 2001, p. 16). Em Campinas, contudo, a identificação não avançou. Segundo Laura
Petit, Badan Palhares se recusou a aceitar que a dentista de Maria Lúcia fosse ao DMLE sem
radiografias ou ficha dentária (idem). Somente, em decorrência da publicação no jornal o
Globo de uma fotografia de Maria Lucia Petit, vestida com as mesmas roupas, o cinto de
couro com a fivela e com fragmentos do nylon do paraquedas encontrado em Xambioá, os
procedimentos de identificação voltaram a caminhar. Em coro, a família Petit e muitos
familiares de desaparecidos e militantes afirmavam que os obstáculos acerca dos processos de
identificação das ossadas sempre estiveram relacionados aos interesses pessoais170 de Badan
Palhares, visto, dali em diante, como um entrave a qualquer processo de identificação que,
ainda, pudesse acontecer mediante a análise das ossadas (Comissão da Verdade do Estado de
São Paulo “Rubens Paiva”, Audiência pública, 20 de maio de 2013).
Assim, entre tantas contendas, as “ossadas da discórdia”, como Badan Palhares
nomeou um dos capítulos de sua autobiografia, foram, simultaneamente, o “ápice” do
DMLE, mas, também, o início de seu “deblaclê” (PALHARES, 2007). Depois de Massini e
outros profissionais, como Eduardo Daruge, terem se afastado, em 1991, da equipe de
identificação, também Palhares, diante de conflitos burocráticos, éticos e técnicos, em outubro
de 1996, afastou-se da coordenação das investigações do “Projeto Perus”.
O afastamento de Massini e Daruge deflagrava mais uma rusga entre eles e Badan
Palhares. Oficialmente, este último afirmava que o afastamento era mais uma crise de ego de
Massini e resultado de um desentendimento de Massini com o reitor da Unicamp, Carlos
Vogt. Isso porque Vogt havia determinado que apenas um coordenador se responsabilizasse e
divulgasse qualquer informação sobre os encaminhamentos e as identificações realizadas pela
equipe. O nome de Badan Palhares como responsável acabou por desagradar, mais uma vez,
Massini (PALHARES, 2007). Na versão de Massini, alardeada em jornais, seu afastamento
era uma resposta ética aos descasos e imperícias que vinha ocorrendo no processo de
identificação das ossadas.
A coordenação do “Projeto de Perus” passou às mãos de José Eduardo Bueno Zappa,
que, em abril de 1997, encaminhava um ofício ao reitor José Martins Filho, esclarecendo os

170
Não ficam claros quais seriam os interesses pessoais ou motivações escusas de Palhares que poderiam ter
interferido nos estudos empreendidos nas ossadas de Perus. Enriquecimento indevido, posições ideológicas e
venda de laudos pairam sobre a idoneidade do legista. Contudo, nenhuma investigação foi conclusiva. No
capítulo a seguir, tais denúncias chegam ao seu clímax no caso PC Farias.
197

procedimentos empreendidos junto às ossadas e que o departamento havia esgotado todas as


pesquisas possíveis em torno dos corpos exumados171.
O relatório fornecido por Zappa, bem como o parecer fornecido por Carlos Delmonte,
médico-legista chefe do Instituto Médico Legal de São Paulo172, foram utilizados pelo reitor
José Martins Filho para dar por encerrados os processos de identificação e colocar todas as
ossadas à “disposição da Justiça, para que lhe seja dada a destinação que melhor aprouver”
(PALHARES, 2007).
As disputas e os conflitos, contudo, multiplicavam-se. Em contraste às certezas
atestadas por Delmonte e pelo reitor Martins Filho, Ricardo Molina173, último chefe do
Departamento de Medicina Legal, antes de sua extinção, destacava a precariedade do relatório
produzido por Zappa. Em um artigo publicado por Evanize Sydow e Marilda Ferri, Molina
afirmava que o documento não havia sido aprovado pelo Conselho Departamental do DMLE
da Unicamp e destacava com detalhes, segundo as jornalistas, as inconsistências do mesmo:

“não são expostos com clareza os procedimentos técnicos empregados nos


processos de identificação, impossibilitando uma avaliação objetiva do
trabalho realizado; não são detalhadas as compras de equipamento e

171
Em seu relatório final, Zappa destacava o empenho do DMLE em analisar sistematicamente também os
grupos III e IV, cujas ossadas eram formadas por ossos fragmentados, crânios não íntegros ou ausentes.
Ressaltava o empenho por identificar Flávio Molina de Carvalho e Dimas Antonio Casemiro, sem, contudo,
terem alcançado avanços significativos. Em ambos os casos, fragmentos ósseos foram retirados e encaminhados
para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ossadas exumadas de sepulturas individuais, como foi o
caso de Hiroaki Torigoi, enterradas no cemitério Dom Bosco, em Perus, também foram encaminhadas a UFMG
para pesquisa de DNA. (ZAPPA, 1997).
172
Carlos Delmonte foi designado pelo diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo para fornecer um parecer
sobre os trabalhos realizados junto às ossadas de Perus pelo DMLE de Campinas. O documento, registrado com
o brasão do estado de São Paulo, destacava que os “trabalhos foram completos, esgotando as possibilidades de
estudos, considerando os dados de confronto apresentados”. Além disso, o perito afirmava que nenhuma outra
instituição poderia ter realizado uma investigação de tal monta. Por fim, indicava a reinumação dos restos
mortais sem possibilidade de identificação e a permanência no DMLE apenas das ossadas com trabalhos em
andamento ou com possibilidades de identificação (PALHARES, 2007).
173
Ricardo Molina se formou em música e fez mestrado e doutorado em linguística pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Em 1992, Molina foi chamado por Badan Palhares para integrar o DMLE. Na época,
ainda mestrando, o foneticista foi convidado a periciar uma gravação com a voz de Antônio Magri, Ministro do
Trabalho. Na fita, Magri afirmava ter recebido 30 mil como propina. Em 1993, incorporado oficialmente ao
DMLE, Molina ofereceu um curso pago sobre fonética forense, que, para Palhares, era uma prática pioneira no
Brasil naquele momento. Sua fama cresceu depois do caso PC Farias. Sua perícia fornecida à gravação da
ligação entre Suzana Marcolino e o dentista Coleoni provocou os primeiros dissensos entre Molina e Palhares.
Daquele ano em diante, uma série de desavenças culminou, inclusive, na extinção do DMLE em 1999. Em lados
opostos, Molina e Palhares atuaram também na perícia do caso de Eldorado dos Carajás. Em 1997, Molina
substitui Palhares na chefia do DMLE e, com a extinção do departamento, em 1999, foi dispensado do cargo de
coordenador de Fonética Forense da Unicamp sob alegação de irregularidades administrativas. Alguns meses
depois, Molina foi readmitido à folha de pagamentos da Unicamp. Desde 2001, o fonetista inaugurou um
instituto particular destinado a trabalhos periciais chamado Instituto de Pesquisa de Som, Imagem e Texto
(IPESIT). Além de palpitar sobre perícias recentes como o caso Nardoni ou sobre a morte de Elisa Samudio a
mando do goleiro Bruno, Molina, em 2017, foi contratado pela defesa do presidente Michel Temer para elaborar
um parecer sobre o áudio fornecido por Joesley Batista, da JBS, que o envolvia em pagamentos de propina e
corrupção ativa. Para ver mais: MAIA, 02 abril de 2015.
198

recursos financeiros eventualmente empregados em função da existência do


convênio; o relator não explica outras questões importantes citadas no
relatório, tais como a drástica redução da equipe envolvida no projeto
Perus, que inicia com 50 integrantes e termina com apenas quatro;
estranhamente, não há referência a qualquer relatório anterior, que, a
princípio, deveria ter sido encaminhado pelo ex-coordenador do projeto
(Prof. Dr. Fortunato Antonio Badan Palhares)” (Relatório Direitos
Humanos no Brasil, 2001).

Em maio de 2001, depois de inúmeras pressões, as ossadas foram, finalmente,


transferidas para o Cemitério do Araçá, localizado entre os bairros Pacaembu e Consolação,
em São Paulo. Dentre as muitas alegações estava uma medida cautelar incidental, com pedido
de concessão liminar, na qual Gilberto Molina pedia, embasado por uma entrevista concedida
por Nelson Massini à revista Caros Amigos, de março de 2001, o translado imediato das
ossadas que possivelmente fossem de Flávio Molina. Na mencionada reportagem, Massini
teria destacado que parecia haver, por parte dos peritos, um “interesse em que as ossadas
degener[assem] e se torn[assem] definitivamente impossível continuar [a identificação]”
(Relatório dos Direitos Humanos no Brasil, 2001).
De lá pra cá, as ossadas exumadas da vala de Perus passaram por outras tantas
intempéries. Sob a guarda da USP e aos cuidados do antropólogo forense Daniel Romero
Muñoz, do Instituto Oscar Freire (USP) e médico-legista do IML de São Paulo, os restos
humanos de exumados de Perus permaneceram mal acondicionados no cemitério do Araçá174.
Somente em 2013, um novo acordo foi firmado entre o governo federal, a prefeitura de São
Paulo, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e a
Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). O Centro de Antropologia e Arqueologia
Forense (CAAF), criado em função do convênio firmado, instituiu o Grupo de Trabalho Perus
(GTP), cuja atuação buscou recuperar a experiência internacional de grupos estrangeiros
como as Equipes Argentina e Peruana de Antropologia Forense (EAAF e EPAF). Descrita
pelas antropólogas da CAAF como uma “metodologia equivocada e ultrapassada”, o
trabalho realizado pelas equipes da Unicamp e da USP passou a ser questionado
minuciosamente. Segundo as especialistas, as identificações até então realizadas

174
Como denunciou o jornalista Marcello Pellegrini em reportagem publicada na Carta Capital de 09 de
fevereiro de 2015 e intitulada “O crime perfeito da ditadura”. A matéria jornalística alertava para a falta de uma
alvenaria de qualidade para o ossário, o que estava acarretando a deterioração dos ossos que, mofados,
permaneciam à espera de identificação. Além disso, ressaltava que a presença dos fungos e a morosidade dos
trabalhos eram, também, responsáveis pela perda cotidiana dos “resquícios genéticos no colágeno dos ossos”,
tornando a coleta de DNA um trabalho impossível. Para dar prosseguimento aos trabalhos, contudo, Daniel
Muñoz exigia que um novo convênio fosse realizado, agora, com o IOF, da USP. As negociações, contudo, não
caminharam a contento.
199

“estavam focadas nas medidas do crânio em detrimento de outros ossos que


poderiam oferecer informações relevantes para a identificação, tornando-se
pouco conclusivas. Nem mesmo a definição da altura, lateralidade, traços
étnico-raciais e sexo dos restos mortais foi feita. Desta forma, a equipe
concluiu que para encontrar as ossadas dos militantes entre as 1049
resgatadas da Vala de Perus, o trabalho deveria ser recomeçado desde o
protocolo básico cujo objetivo é fazer uma triagem dos ossos a partir das
características físicas (idade, altura ou sexo) das pessoas procuradas”
(Relatório Comissão da Verdade do Estado de São Paulo “Rubens Paiva”,
Tomo I, 2016, p. 346).

As denúncias persistentes de familiares de desaparecidos políticos, entidades de


direitos humanos e figuras públicas salientavam, desde a abertura da vala, o interesse em
“garantir a participação da Equipe de Antropologia Forense da Argentina e do especialista
dr. Clyde Collins Snow no processo de cadastramento, registro e identificação das ossadas”
(INSTITUTO MACUCO, 2012). Segundo informações publicadas no jornal da Unicamp, um
relatório intitulado “Em busca dos desconhecidos – a vala comum de Cemitério Dom
Bosco”175 foi redigido por Stover e publicado pelo Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da
USP, em 1991. Sua estadia, logo após a abertura da vala clandestina de Perus, teria sido
financiada pelo Fórum das entidades de Direitos Humanos e Familiares de Desaparecidos e
pelo próprio NEV. Em tal relatório, Stover destacava a importância de um sistema médico-
legal completamente independente da polícia (Jornal da Unicamp, 2001, p. 16).
Palhares (2007), em sua versão para a história, sustenta um discurso de abandono e
descaso. Sobre a visita de Clyde Snow, Eric Stover, Alejandro Inchaurregui e Luis
Fondebrider (ambos da EAAF) e do chefe do Instituto Médico Legal Oklahoma (EUA), Fred
Jordan, ao DMLE, durante os trabalhos, Badan Palhares afirmava:

“perguntaram, opinaram, constataram que o trabalho seria exaustivo, difícil


e promissor (...) nunca mais se comunicaram comigo [Badan Palhares] ou
com algum outro integrante do DMLE para saber o andamento dos exames
depois que as luzes dos refletores das câmeras de televisão se apagaram.”
(PALHARES, 2007, p.126-127).

As críticas técnicas se imiscuíam a querelas políticas e vaidades pessoais. As ossadas


seguem sendo estudadas, agora sob a tutela da UNIFESP. A destinação de verbas e novas
tensões políticas176 continuam a atravessar, sem folga, as pesquisas realizadas. As histórias

175
Infelizmente, não consegui acessar o relatório mencionado para mais informações.
176
Outras disputas entre o EAAF, peritos brasileiros, oriundos da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão
Preto e o GAAF acabaram por tomar a cena pública. Nesse caso, as divergências eram em torno da lavagem dos
ossos e da prioridade da identificação das ossadas em detrimento da análise detalhada das lesões e marcas ósseas
200

que envolvem tais ossadas seguem, desde o princípio, condicionadas a um emaranhado de


tramas policiais, políticas e periciais. Algo, todavia, subleva-se do caso Perus. Havia claros
indícios de que dentro do estado de São Paulo não havia espaço para a existência de dois
IMLs de renome e de dois departamentos de medicina legal de referência. Das disputas e
tramas intricadas até aqui desveladas, o caso PC Farias é, concomitantemente, o clímax e a
derrocada da visibilidade de Badan Palhares, do DMLE e das técnicas de periciar
desenvolvidas em Campinas. É, também, por meio das contendas e contenciosos disparados
por esse caso, que a mídia figura como um ator central. O caso PC Farias estabelece um
movimento semelhante às histórias de suspense enunciadas por Lomnitz (2014) e que têm por
inspiração as “técnicas narrativas” inventadas por mestres da literatura de mistério, como
Edgar Allan Poe. Através de tais recursos, os jornais impressos “plantavam pistas e
chamarizes” e, especialmente, controlavam “o ritmo e a direção dos eventos” diariamente
publicados em colunas e matérias de capa (LOMNITZ, 2014, p. 93)177. Portanto, se os casos
Mengele e Perus estabelecem o terreno que anunciam as tramas políticas e institucionais em
jogo, o caso PC Farias deflagra, com nitidez, aquilo que permanecia em latência até aqui:
vaidades pessoais, disputas políticas e acadêmicas, visibilidade institucional. É sobre tais
questões eu me debruçarei no próximo capítulo.

que revelariam a causa da morte desses indigentes e desaparecidos políticos (G1 Notícias/EPTV, 09 de abril de
2014).
177
Lomnitz (2014), ao se debruçar sobre o caso Arroyo, destaca como o jornal El Imparcial, no México, teve
papel fundamental na construção das histórias e controvérsias que envolveram os efeitos políticos do caso. Isso
porque reunia, num mesmo caso, três diferentes assassinatos: “reais, imputados ou pretendidos”. A autoria dos
crimes, assim como suas conexões, estava em disputa e foi tramada por diferentes atores sociais. A ligação
sensacionalista dos eventos, por fim, sublinhava os conflitos e rivalidades em curso entre os diferentes periódicos
mexicanos, assim como as escusas relações entre esses jornais e o ditador Porfirio Díaz (LOMNITZ, 2014, p.
92). Os leitores exigidos durante o caso Arroyo, por sua vez, eram sagazes; procuravam por pistas e
questionavam, sempre que possível, as intenções ocultas de editores e periódicos.
201

Capítulo V. Sobre tramas e contenciosos que fazem a instituição: entre


vaidades, arquivos malditos e folhetins detetivescos

“Uma manhã macabra em Guaxuma”: entre laudos e contra laudos do caso PC


Farias

N
o dia 23 de junho de 1996, foi o primeiro da família a chegar cômodos anotadas, para que o
Paulo César Farias foi à casa de praia. A polícia foi trajeto empreendido pelo projétil
encontrado morto em sua contatada e Anita Buarque Gusmão pudesse ser reconstituído.
casa de praia, em foi a primeira perita a entrar na Resíduos de pólvora foram
Guaxuma, Maceió. PC Farias, como cena do crime. Em seguida, testados, ainda no local, nas mãos
o tesoureiro da campanha Nivaldo Cantuária, também perito de Suzana e PC Farias. Os corpos
presidencial de Fernando Collor de do Instituto de Criminalística foram remetidos IML para
Mello ficou conhecido, estava chegou ao local para que a perícia necropsia. Depois, das
deitado em sua cama, ao lado de fosse realizada. Foram feitas investigações preliminares, a tese
sua namorada Suzana Marcolino fotografias dos cadáveres e do de legistas, peritos e do delegado
da Silva. Ambos foram alvejados quarto de diversos ângulos; os Cicero Torres era de que tratava-
pela mesma arma de fogo, pertences pessoais de PC Farias e se de um crime passional. Suzana
encontrada sobre a cama. Os Suzana foram recolhidos do local, havia atirado em PC Farias e
cadáveres foram avistados pelos bem como a arma de fogo e o depois teria cometido suicídio.
funcionários da casa, depois que a projétil encontrado no chão da (Compilação de trecho de
janela do cômodo foi arrombada sala de jantar, enquanto a caseira reportagens veiculadas pelo jornal
pelo lado de fora por uns dos Marize arrumava o café da manhã. Folha de São Paulo, no mês de
seguranças de PC Farias. Seu A parede atingida pelo projetil foi junho de 1996).
irmão, o deputado Augusto Farias registrada e as dimensões dos

Os principais jornais do país traziam, em primeira página, no dia 24 de junho de


1996, a morte de Paulo César, vulgo PC Farias. Em uma manchete escrita em fontes
garrafais, o jornal a Folha de São Paulo anunciava: “PC Farias é assassinado em
Maceió”. A reportagem trazia, logo abaixo do título, uma foto de impacto: pela fresta
da porta do Instituto Médico Legal de Maceió, o corpo de PC Farias desnudo,
permanecia esticado na mesa metálica à espera da necropsia. Em destaque, na cabeceira
da mesa, um funcionário do IML manejava, sem luvas, o cadáver. Os subtítulos da
matéria jornalística teciam as conexões políticas em torno da morte de PC Farias.

“Empresário foi achado junto ao corpo da namorada em casa de


praia.
Polícia fala em crime passional, mas não descarta ‘queima de
arquivo’.
Tesoureiro de campanha de Collor deporia na sexta-feira no
Supremo” (Folha de São Paulo, 24 de junho de 1996, capa).
202

Escrita pelo jornalista Ari Cipola, contratado da Agência Folha, em Maceió, a


extensa reportagem sobre a morte de PC já enredava o leitor em rumores e especulações
diversas: as discussões corriqueiras entre PC Farias e Suzana Marcolino, a suposta
gravidez da namorada de PC Farias, os silêncios da família Farias sobre os negócios e
as atividades políticas de Paulo César ou o depoimento que PC Farias prestaria ao
Supremo Tribunal Federal, o que justificaria sua morte como uma queima de arquivos.
Para ilustrar ao leitor a tese da polícia alagoana sobre o crime, a Folha de São Paulo
publicou uma reconstrução gráfica da cena do crime:

Figura 9: Simulação sobre as mortes de PC Farias e Suzana Marcolino

Fonte: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1996/06/24/2/

A cena, estetizada em quadrinhos, reproduzia, tal qual uma história policial, o


que supostamente teria ocorrido no quarto do casal, em Guaxuma. A última imagem
simulava a posição na qual os corpos teriam sido encontrados pela perícia. O desenho
gráfico, contudo, aparecia invertido em relação às fotografias registradas pela equipe de
perícia de Maceió e, mais tarde, anexadas por Badan Palhares em seu site pessoal.
A cama em desalinho exibia PC Farias parcialmente coberto, deitado com a
barriga para cima e os braços abertos. A mão esquerda pendia para o lado de fora da
cama, deixando à mostra o relógio de pulso. PC Farias tinha os olhos semiabertos e a
boca entreaberta. Suzana, em contrapartida, encontrava-se parcialmente deitada na
cama, com a perna direita pendendo para fora da cama. Sua perna esquerda, com o
joelho flexionado em direção ao corpo de Paulo, deixa à vista nuances de sua roupa
íntima. A camisola branca e estampada, de um material semelhante à seda, encontrava-
se manchada de sangue na região entre os seios. O corpo de Suzana disposto
tangencialmente ao corpo de Paulo não estava coberto e o braço esquerdo de Suzana
203

permaneceu encostado ao braço direito de PC. As manchas de sangue no braço direito e


na perna esquerda de Suzana eram contíguas aos respingos no lençol acinzentado que
cobria o colchão do casal. Na parede azul, onde estava disposta a cabeceira da cama,
nenhum respingo de sangue era visível a olho nu. A arma, um Taurus, calibre 38,
aparecia sobre o lençol branco que cobria PC Farias, próxima à perna esquerda desnuda
de Suzana. A depender do ângulo da fotografia, entretanto, o revólver desaparecia da
imagem.
Diferente da tirinha publicada na Folha de São Paulo, na fotografia tirada pela
perícia, Suzana não estava com as pernas flexionadas e juntas, nem seu tronco estava
em direção ao corpo de PC Farias. Fatos aparentemente irrelevantes como esses
passaram a contaminar as investigações e a exercer pressões as mais diversas sobre a
Polícia Técnico-Científica sediada em Maceió. O caso passou a ser divulgado
diariamente, ou semanalmente, por periódicos como a Folha, o Estado de São Paulo, o
Globo ou o Jornal do Brasil. Não foi surpresa, portanto, que, apenas dois dias depois do
crime, no dia 25 de junho de 1996, o periódico trouxesse, na primeira página, a
manchete estampada: “Polícia insiste em crime passional”.
Por meio de um quadro sinódico resumido, a Folha explicava, ao leitor, a
controvérsia implícita que o verbo “insistir” buscava revelar. No centro da tira, uma
imagem ilegível, com os dizeres “Caso PC Farias” e gravada com um “X” explicitava
uma disputa. Simulando os embates entre a polícia de Alagoas e as opiniões
verbalizadas por outros especialistas, o periódico discriminava diferentes teses sobre o
crime. De um lado, um trecho supostamente dito pelo delegado Cicero Torres,
responsável pelas investigações: “Minha convicção de que Suzana matou Paulo César e
depois se suicidou está baseada no que a perícia e a autópsia já apuraram”. Três
pontos apresentavam indícios de que o crime seria passional: os “indícios de pólvora na
mão de Suzana”, a briga entre o casal na madrugada do crime, declarada pelos
seguranças da casa de praia, e a afirmação dada por Augusto Farias, irmão de Paulo
César, de que ele tinha intenções de “romper o relacionamento” com Suzana.
De outro lado, o trecho selecionado era de autoria de um velho conhecido.
Nelson Massini, agora “professor de medicina legal da UFRJ”, supostamente afirmava:
“(O ferimento no rosto) é um indicativo forte de lesão pré-mortal. Isso pode ter sido
provocado por uma luta corporal”. Outros três pontos eram elencados pelo periódico:
um suposto ferimento no rosto de Suzana, não descrito pelos legistas do IML de
Maceió, declarações de que Suzana, no dia 23 de junho, teria ido a um salão de beleza e
204

não demonstrava sinais de depressão e as informações da família de Suzana de que ela


pretendia ampliar seus negócios, inaugurando uma “nova loja em Maceió (...) em
sociedade com uma prima”.
Logo abaixo ao quadro com o suposto embate, um título, em fonte de menor
visibilidade do que aquela publicada na capa, afirmava “IML nega marcas de violência,
mas corpo da namorada de PC Farias tinha ‘calombo’ roxo na testa e marcas no
lábio” (Folha de São Paulo, 25 de junho de 1996, capa). A assertiva tinha ligação com
o ponto 1, exposto pelo jornal, ao lado da declaração entre aspas de Nelson Massini.

“O corpo de Suzana, visto pela Folha, tinha hematomas na testa e


marca no lábio aparentando corte. Legista havia dito não ter
encontrado sinais de violência nos corpos” (Folha de São Paulo, 25
de junho de 1996, capa).

Com tais dizeres, o periódico personificava a si mesmo como a “Folha”. Um


personagem cuja habilidade era não apenas a de ter “visto” o corpo de Suzana enquanto
era necropsiado pelos técnicos do IML, como a de conseguir correlacionar o que foi
visto a lesões de relevância – “hematomas na testa e marca no lábio aparentando
corte”. Segundo a reportagem escrita por Lucas Figueiredo, o “calombo de 4cm de
diâmetro na testa e uma marca de 2cm na parte interna do lábio superior” foram
constatados “ontem de madrugada pela Folha, com autorização do irmão de Suzana,
Jerônimo Marcolino, 29” (Folha de São Paulo, 25 de junho de 1996, p. 9).
A existência de tais ferimentos buscava evidenciar outros desdobramentos do
caso também denunciados pela “Folha”. Para o argumento do jornal, a suposta briga
entre Paulo César e Suzana não consistia em um elemento determinante para a tese de
“crime passional” apresentada com “convicção” por Cícero Torres, o delegado
responsável pelo caso. Portanto, o ponto não estava em como interpretar o “calombo
roxo na testa e marcas no lábio”, mas, ao contrário, em questionar os motivos que
teriam levado o IML de Maceió, mesmo diante de tais lesões, a ter escolhido declarar
“não ter encontrado sinais de violência” em Suzana.
Além da controvérsia estampada já na capa do jornal Folha de São Paulo, no
mesmo dia, o caso envolvendo a morte de PC Farias ocuparia outras nove páginas,
incluindo os comentários tecidos entre as páginas dois e cinco, ambas destinadas aos
leitores e colunistas do jornal. Ou seja, entre informações e debates em torno do caso, a
Folha trazia tirinhas satíricas ou colunas, como a de Janio de Freitas, intitulada
“Sherlock a postos”. Nesta última, o colunista suscitava inúmeros elementos curiosos
205

que estariam ligados (ou não) à morte ‘inesperada’ de PC Farias. Entre eles: as inúmeras
denúncias feitas pelo próprio PC Farias de que era “vítima potencial e consciente de um
atentado”, ou o fato de que o “assassinato se deu a seis dias do depoimento de PC
Farias que, tudo indicava, seria o inaugural de uma série longa e importante da
Justiça”, ou as mortes inexplicáveis de figuras que, antes de PC, ameaçavam denunciar
esquemas de corrupção em torno da campanha de Fernando Collor de Mello178.
Destaca-se, também, a rapidez com que a perícia e as investigações
encaminhadas pela Polícia Civil foram divulgadas pelos jornais. Apenas três dias depois
da morte de PC Farias e Suzana Marcolino, a Folha de São Paulo estimulava, ainda
mais, a polêmica já em andamento: “Namorada não se matou, diz perito”. A manchete
publicada na página de capa do periódico era contígua à fotografia de George
Sanguinetti179, à época chefe do Departamento de Medicina Legal da Universidade
Federal do Alagoas (UFAL). Seu destaque no periódico trazia à tona o acesso
privilegiado de Sanguinetti à perícia: “O médico e coronel da PM George Sanguinetti
apresenta fotografia do corpo de PC Farias”. O sucinto texto, formulado logo abaixo
dos subtítulos da reportagem, sublinhava:

“depois de examinar as fotos de PC e de Suzana Marcolino da Silva


durante a autópsia, Sanguinetti afirmou que ela não cometeu suicídio
e que há 90% de chance de o empresário ter morrido de pé. (...)
Sanguinetti afirmou ainda que Vitor Odilon, legista responsável pela
autópsia e seu assistente na universidade, está sendo pressionado por
Eduardo Amaral, procurador do Secretário de Segurança. (...)”
(Folha de São Paulo, 26 de junho de 1996, capa).

Na mesma data, também a matéria enviada pela “Agência Folha” destacava, por
meio de quadros como “Perguntas sem resposta” ou “Veja o procedimento certo”180,

178
As paradas cardíacas de Elma Farias (ex-esposa de PC) e Luiz Calheiros (importante empresário
alagoano) e o câncer fulminante e raro que vitimara mortalmente Pedro Collor, irmão de Fernando Collor
de Mello.
179
George Samuel Sanguinetti Fellows nasceu em Recife, em 1945. Formou-se em medicina pela
Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco (UFPE) e atuou na área de psiquiatria e medicina legal.
Coronel reformado da Polícia Militar do estado de Alagoas, Sanguinetti foi diretor do Instituto Médico
Legal de Maceió e professor da disciplina de medicina legal na Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Aposentado desde 2001, Sanguinetti filiou-se ao Partido Verde (PV) para se
candidatar a vereador pela cidade de Maceió, onde ocupou a posição de suplente. Seu controverso livro
“A morte de PC e Suzana: o dossiê Sanguinetti”, publicado em 1997, foi vencedor do 40º Prêmio Jabuti,
na categoria reportagem. Depois do caso PC Farias, Sanguinetti voltou a atrair as páginas dos jornais
com pareceres encomendados pela defesa do caso Nardoni e do caso envolvendo o goleiro Bruno e Eliza
Samudio (TOGNOLLI, 14 de junho de 2012).
180
Ambos os quadros buscavam elencar falhas e perguntas não respondidas pela investigação da Polícia
Civil de Maceió. O primeiro quadro, “Perguntas sem respostas”, discriminava dezesseis
questionamentos que poderiam contradizer os encaminhamentos divulgados pela polícia durante as
investigações. Entre eles: se os seguranças teriam (ou não) como escutar os tiros desferidos no quarto de
206

a “sequência de falhas” da polícia de Maceió durante as investigações do caso. Entre


elas: “a não realização de testes de pólvora nas mãos e roupas de todas as pessoas que
passaram pela casa”, o fato de a arma do crime não estar devidamente acondicionada
em saco plástico identificado e permanecer “em uma gaveta da escrivaninha do perito
Nivaldo Cantuária” ou os peritos do Instituto de Criminalística não terem feitos croquis
ainda com a cena do crime intacta. Como destaca o jornal,

“A polícia só fez a reconstituição depois de ter liberado o quarto de


PC para que fosse arrumado pelas empregadas da casa. A
reconstituição só se deu depois que o quarto já havia sido, inclusive,
lavado. A família de PC teria autorizado os empregados a queimarem
o colchão. A polícia só entrou no quarto de PC no dia de sua morte,
domingo passado, depois que mais de 20 pessoas já estavam na casa,
segundo o próprio delegado” (Folha de São Paulo, 26 de junho de
1996, p. 6).

Ante as imperícias que passaram a desgastar, publicamente, a credibilidade do


serviço e das instituições envolvidas no caso, na mesma edição, uma manchete
enfatizava o quão insustentáveis se encontravam as apurações: “Jobim e PF querem
assumir as investigações”. Em fonte menor, o periódico destacava: “Desconfiança:
Ministro da Justiça e autoridades federais avaliam que trabalho da polícia alagoana
está cheio de falhas”. Na reportagem, escrita por Kennedy Alencar, o ministro da
Justiça, Nelson Jobim, e o diretor da Polícia Federal, Vicente Chelotti, buscavam
soluções para a federalização do caso, sem ferir a autonomia da Polícia Civil de
Alagoas. A saída encontrada, e publicizada no dia seguinte, 27 de junho de 1996,
contava com o apoio do governador de Alagoas, Divaldo Suruagy181.
A entrada da Polícia Federal nas investigações foi concomitante à contratação de
Badan Palhares para “refazer” os laudos periciais realizados pelo IML e pelo IC de
Maceió, Alagoas. Um ofício expedido pelo Mistério da Justiça, assinado pelo ministro
Nelson Jobim, chegou, simultaneamente, às portas do reitor da Unicamp, José Martins

PC; as lesões na epiderme do cadáver de Suzana, a trajetória dos tiros, o horário da morte e o tempo
exíguo para realização da perícia (duas horas) e para a necropsia dos corpos (quatro horas). Já o segundo
esquema, “Veja o procedimento certo”, formulado pelo jornalista Marcelo Godoy, destacava como
hipoteticamente deveria ter sido realizada a perícia. Na lista, oito pontos sublinhavam a importância de:
isolar o local do crime; identificar as pessoas presentes na casa; realizar exame de restos de pólvora em
todos os presentes na cena; não tocar nos cadáveres; certificar-se de arrombamentos; recolher todo o
material relacionado ao crime; verificar se a cena do crime foi violada ou fraudada; e, em caso de
dúvidas, manter o local interditado para novas perícias.
181
O apoio do governador de Alagoas, contudo, era um ponto de conflito. O periódico, em reportagem
assinada por William França, da “Sucursal de Brasília”, afirmava: “A Folha apurou que, em telefonema
de cinco minutos de Jobim a Suruagy, ontem às 8h50, o ministro induziu o governador a pedir ajuda
federal. Logo que o governador disse que a polícia de Alagoas não podia dispensar ajuda, Jobim
anunciou suas ações” (Folha de São Paulo, 27 de junho de 1996, p. 6).
207

Filho, e ao gabinete do Secretário de Segurança Pública de São Paulo, José Afonso da


Silva. Sob o número “AVISO Nº1196/GM”, com a data de 26 de junho de 1996, o
DMLE/FCM/Unicamp era solicitado com a finalidade de “reforçar tecnicamente a
equipe responsável pelo laudo [em torno da morte de PC Farias e Suzana Marcolino]”
(Dossiê caso PC Farias182, p. 6).
A indicação de Palhares e do DMLE ao ministro Jobim havia sido feita mais
uma vez por Romeu Tuma (PALHARES, 2007). Assim como no caso Mengele, Tuma
via Palhares como um legista de confiança, cuja competência era alardeada, inclusive,
pelos meios de comunicação. Como afirmou Zappa em entrevista a mim concedida,
Badan Palhares sabia capitanear muito bem as repercussões midiáticas em torno de seu
nome e de sua carreira e, consequentemente, do próprio DMLE. Um convênio
estabelecido entre o departamento e a Polícia Federal, sob os cuidados de Tuma, por sua
vez, oficializava a designação de Palhares não só em casos de repercussão como o
envolvendo PC Farias, mas em inúmeros outros que preencheram o cotidiano de
trabalho e o lugar de referência adquirido pelo DMLE (Entrevista com Badan Palhares,
21 de outubro de 2016).
O anúncio do nome de Badan Palhares por Jobim, todavia, deflagrou uma
“rebelião” no estado de Alagoas (Folha de São Paulo, 27 de junho de 1996, p.10). O
termo “rebelião”, veiculado na manchete da reportagem assinada por Xico Sá, no dia
27 de junho de 1996, na Folha de São Paulo, sublinhava as tensões provocadas pela
intervenção federal nas investigações do caso. A revolta dizia respeito à sensação de
“desmoralização” que a entrada da PF e do legista gerou nas equipes até então
incumbidas de apurar o caso.
Na mesma página, em destaque, uma fotografia de Badan Palhares era contígua
à chamada “Jobim chama médico de SP”. No corpo do texto, a “Folha Sudeste”, em
reportagem assinada por Marcelo Tokarski, contribuía, ainda mais, com o mal-estar já
instalado. Além de mencionar as credenciais e competências de Palhares para o caso, ao
afirmar que o legista havia comandado a equipe que “identificou a ossada do criminoso
de guerra nazista Josef Mengele”, o jornal divulgava, entre aspas, a percepção que,
supostamente, Palhares, “legista da Unicamp”, teria expressado, frente ao caso:

182
O material utilizado sob a rubrica dossiê do caso PC Farias está acessível do site pessoal de Fortunato
Badan Palhares em duas abas: “Caso PC Farias”, localizada na aba “Casos”, e “Homicídio seguido de
suicídio X Duplo Homicídio: uma análise do caso ‘PC’ depois do laudo contestante”, reunido junto à aba
“Home”. A paginação citada é fruto do arquivo, por mim construído, que une ambos os dados. Para ver
sobre: http://www.badanpalhares.med.br/home.htm.
208

“‘A perícia de Alagoas cometeu vários desleixos, o que é


inconcebível em um crime dessa importância’, disse.
‘A não-preservação do local do crime e o fato de o exame de resíduos
de pólvora em todas as pessoas que estavam na casa na hora do
crime não ter sido feito já prejudicaram bastante as investigações’,
afirmou.
‘Mesmo com tudo isso ainda é possível esclarecer o crime’, disse.
Palhares disse que é preciso saber que metodologia foi usada até
agora na investigação. Ele e sua equipe devem seguir amanhã para
Maceió” (Folha de São Paulo, 27 de junho de 1996, p. 10).

Nos dias que antecederam a chegada da equipe chefiada por Badan Palhares a
Maceió, o jornal Folha de São Paulo não cessou de enfatizar o caráter corretivo que a
sua convocação pelo ministro Jobim engendrava. Manchetes como as publicadas na
Folha Sudeste, em 30 de junho e 01 de julho de 1996, foram recorrentes: “Badan viaja
hoje para investigar a morte de PC”; “Médico legista aponta contradições no caso”;
“Peritos da Unicamp iniciam investigação”. Palhares (2007), todavia, enfatizava seu
zelo em “evitar confrontos com peritos e jornalistas”. Segundo o legista, a mídia
inflamava o caso com “informações desencontradas” e “boatarias”. Na contramão,
Palhares (2007) afirmava: “Não me interessava assumir qualquer liderança nas
investigações. Minha intenção era atuar em equipe e, na medida do possível, preservar
o trabalho realizado inicialmente” (PALHARES, 2007, p. 240)183.
Assim que chegou a Maceió, no dia 30 de junho de 1996, Badan Palhares optou
por marcar uma reunião com os “peritos, legistas e demais autoridades envolvidas na
apuração das mortes”184 (PALHARES, 2007, p. 240). A reunião foi filmada e os
“especialistas alagoanos” tiveram a oportunidade de mostrar as fotografias registradas
durante a perícia e o trabalho executado junto à cena do crime: disparos, trajetória das

183
Integraram a equipe, um cinegrafista e um fotógrafo do DMLE de Campinas, os peritos criminais
Carlos Alberto Zerbetto e José Carlos Serafim, ambos funcionários do Instituto de Criminalística de São
Paulo, e o médico-legista e diretor do Instituto Médico Legal de Campinas, Antonio Francisco Bastos. A
chefia ficou, exclusivamente, a cargo de Badan Palhares. O perito Wanderley Leal Chagas, presidente da
Associação Brasileira de Criminalística, segundo Palhares (2007) pediu insistentemente para integrar a
equipe. Depois de uma conversa com o ministro Jobim, Chagas foi incorporado à comitiva. Contudo, seu
nome não aparece no laudo produzido, uma vez que, Chagas abandonou as investigações, alegando
pressões do secretário de Segurança Pública de Alagoas e do delegado Cicero Torres, responsável pela
condução do caso (Folha de São Paulo, 2 de julho de 1996, p. 5). Badan Palhares, contudo, tem outra
versão para a saída de Chagas. Em sua autobiografia, ele descreve uma cena de embriaguez de Chagas e
uma reunião arquitetada com o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Legal, Anelino José de
Resende, com o intuito de boicotar a integração e a colaboração entre ambas as equipes de perícia, aquela
chefiada por ele, Badan Palhares, e a outra, composta por peritos e legistas de Maceió.
184
Entre as autoridades, estavam o delegado da Polícia Civil, Cicero Torres, o coronel e secretário da
Secretaria de Segurança Pública do estado de Alagoas, José de Azevedo Amaral, inúmeros policiais civis
e federais, além de desembargadores e de Anelino José de Resende, presidente da Sociedade Brasileira de
Medicina Legal.
209

balas, impacto nos corpos, posição dos cadáveres etc. (PALHARES, 2007). Além disso,
nessa mesma noite, toda a comitiva de peritos, legistas e autoridades seguiu até a casa
de praia de Guaxuma, onde os corpos de PC Farias e Suzana Marcolino foram
encontrados, com o intuito de “conhecer o lugar em condições próximas daquelas em
[que] o fato tinha ocorrido” (PALHARES, 2007, p.241).
Em face de tudo que foi apresentado na reunião e dessa primeira visita ao local
do crime, a equipe de Badan Palhares traçou um “protocolo de ação, com metodologia
específica” para “complementar” a perícia realizada pelos funcionários de Alagoas.
Enfatizo o termo “complementar” com vistas a lançar luz ao argumento tecido por
Badan Palhares sobre a “segunda perícia” realizada, tanto na casa de Guaxuma quanto
nos cadáveres de PC Farias e Suzana Marcolino, ambos exumados em 03 de julho de
1996, a pedido de Palhares185.
Assim, para a feitura desse segundo laudo, a equipe conduzida por Badan
Palhares revisou as fotografias dos cômodos da casa, dos jardins e dos alojamentos de
empregados e seguranças da família Farias, todas registradas por peritos e legistas
alagoanos. Diante da “não preservação” da cena do crime, quinze fotografias, em
particular, foram revistas e estudadas à exaustão pela segunda perícia. Entre elas: as
imagens retratando as marcas de sangue no corpo e nas roupas de Suzana, bem como
nos lençóis da cama. Também a posição da arma e a dobra produzida na colcha branca
que cobria os lençóis da cama foram discutidas.
Em seguida, encaminharam-se para a casa de praia de Guaxuma e realizaram
uma nova perícia no local dos fatos. Travesseiros, roupas de cama e o colchão não
foram analisados, afinal, tais elementos foram queimados pelos funcionários da família
Farias, com autorização dos peritos alagoanos (PALHARES, 2007). Como sugere
Palhares, “em razão da impossibilidade de obtermos respostas satisfatórias através
desses exames já realizados”, feitos em cooperação com o Instituto de Criminalística e
de Medicina Legal da Bahia186, novos exames foram executados pela segunda perícia.

185
A exumação foi realizada com o intuito de responder alguns questionamentos em aberto sobre o caso.
Entre eles, especulações sobre uma possível gravidez, sobre uma fratura no pescoço e hematomas no
rosto de Suzana Marcolino, sobre a causa exata da morte de ambos os cadáveres e seu horário
aproximado (PALHARES, 2007).
186
Dentre esses exames, destaca-se a coleta de material das mãos de Suzana e PC Farias com o intuito de
submetê-los a estudo de residuográficos. O material colhido por meio de algodão e solução Perrier (única
disponível no local) foi guardado em tubo de ensaio e minuciosamente etiquetado. Também, foram
levados, para análise, os líquidos de ambos os copos encontrados nos criados-mudos do quarto de
Guaxuma, os pertences de Suzana e PC Farias presentes no local e o projétil encontrado na sala, ao lado
do quarto.
210

Parte da parede, transfixada pelo projetil encontrado na sala ao lado do quarto,


foi removida e encaminhada para análise laboratorial na Unicamp. Em função dos
seguranças de PC Farias terem afirmado não ser possível escutar, com nitidez, os
disparos efetuados no quarto, a segunda perícia buscou efetuar novos disparos com o
intuito de verificar se os mesmos eram claramente audíveis do lado de fora da casa187.
Também as trajetórias das balas foram “reavaliadas” e todas as medições do quarto
foram refeitas, com vistas a produzir um parecer definitivo sobre os pontos de entrada e
saída, a direção e a distância dos disparos nos cadáveres de PC Farias e Suzana
Marcolino188. Igualmente, as janelas, por meio das quais os seguranças entraram e
encontraram mortos PC Farias e Suzana Marcolino, foram minuciosamente periciadas a
fim de esclarecer um possível arrombamento. Finalmente, a perícia se certificou de que
no quarto não havia saídas secretas ou camufladas, uma vez que o cômodo, segundo
depoimentos e a primeira perícia, encontrava-se trancado e com as chaves na fechadura
(PALHARES, 2007).
O laudo oficial, finalizado em 26 de julho de 1996, depois de inúmeras reuniões
realizadas em Maceió e em Campinas, foi assinado por Badan Palhares, sua equipe e
outros cinco integrantes: Vitor Odilon Pereira, José Lopes Filho e Antonio C. L. Xistos,
do IML de Alagoas, e por Nivaldo Cantuária e Anita B. Gusmão, ambos do IC de
Alagoas. A segunda perícia, portanto, desde os levantamentos empreendidos em
Maceió, transformou-se numa equipe mista cuja função de Badan Palhares era a de
chefiar os procedimentos. Os três volumes, de aproximadamente 560 páginas189,
assinados “consensualmente” por todos os integrantes da equipe, reafirmavam as
conclusões preliminares da primeira perícia tão amplamente questionada e contestada.
Ou seja, a segunda equipe de perícia afirmava que Suzana Marcolino teria matado PC
Farias e, em seguida, teria se suicidado (PALHARES, 2007).

187
A segunda perícia, depois de inúmeros testes de tiro, afirmou que inúmeras condições poderiam ter
abafado os ruídos produzidos durante o disparo da arma do crime, o que justificaria a alegação feita pelos
seguranças da casa de que não ouviram qualquer disparo. Entre eles: os fortes ventos, a turbulência do
mar e os fogos de artificio devido à festa de São João. Tal argumentação, contudo, apenas tinha por
função alegar que os tiros poderiam ser audíveis, mas serem audíveis não significava necessariamente que
os mesmos foram ouvidos (PALHARES, 2007).
188
Todo o procedimento foi realizado com o auxílio de uma caneta de raio laser e uma câmera de
filmagem que registou todos os procedimentos empreendidos pela equipe.
189
Além de documentar todos os exames empreendidos, no laudo oficial foram incorporadas as fotos e
fitas de vídeo resultantes das exumações, necropsias, perícias, testes e simulações empreendidas pela
equipe de perícia. Também foi anexado ao laudo um perfil psicológico de Suzana Marcolino feito por
profissionais da área de psiquiatria da Unicamp.
211

Na reconstituição de aproximadamente três minutos, Badan Palhares apresentou,


por meio de computação gráfica, uma simulação de como as mortes de PC Farias e
Suzana Marcolino teriam ocorrido. As afirmações, proferidas pela equipe, buscaram
esclarecer como e a que distância Suzana alvejou PC Farias e, em seguida, suicidou-se
(Folha de São Paulo, agosto de 1996).
Segundo o legista, no dia do crime, PC Farias estava deitado na posição decúbito
ventro lateral direita, provavelmente com o braço direito sobre o corpo e o braço
esquerdo sobre a cabeça. Ao ser atingido pelo disparo que o levou à morte, PC girou à
esquerda, permanecendo na posição decúbito dorsal com os braços abertos, como
revelaram as fotografias feitas pela primeira perícia. A atiradora, Suzana Marcolino,
posicionada ao lado direito da cama, deflagrou o tiro a uma distância de
aproximadamente um metro e vinte centímetros de comprimento190. O projétil atingiu a
região mamária de PC Farias, na linha axilar anterior esquerda. A bala percorreu o
corpo de PC seccionando oitenta por cento dos vasos sanguíneos de maior calibre – em
particular, a artéria aorta – e permaneceu alojada na região escapular direita. O disparo
foi mortal e PC entrou em óbito em menos de um minuto depois de ser alvejado. A
pouca presença de sangue em seu pijama e nos lençóis da cama foi fruto de um
tamponamento ocorrido na lesão perfurocontundente, devido à posição de seu corpo
post-mortem e dos tecidos musculares e adiposos presentes na região. O horário da
morte foi determinado entre as 5 e 7 horas da manhã de domingo, 23 de junho de 1996.
Já Suzana Marcolino morreu em função de um disparo efetuado a cerca de três
centímetros de seu tórax191. O ferimento de entrada do projétil estava posicionado entre
o terceiro e o quarto arco costal, próximo ao seu seio esquerdo. Para a tese defendida
pela segunda perícia, Suzana empunhava a arma contra o peito numa posição anômala,
provavelmente segurando o revólver com as duas mãos e ambos os polegares no
gatilho. A bala perfurou a epiderme, atravessou seu pulmão esquerdo e saiu pelas costas
– abaixo da omoplata esquerda – depois de fraturar o nono arco costal. Nessa segunda

190
A segunda perícia analisou as marcas encontradas no pijama de PC Farias visando determinar a que
distância PC Farias foi alvejado. Em função da distribuição dos metais encontrados nas vestes de PC e da
falta de chamuscamento na perfuração, a segunda perícia concluiu que seria impossível que o atirador
estivesse do lado esquerdo da cama. Isso porque ele estaria obrigado, devido ao mobiliário do cômodo, a
se posicionar numa distância menor do que 85 metros. Caso tal disparo realmente tivesse ocorrido, ele
deixaria uma concentração muito maior de resíduos no pijama de PC Farias.
191
Segundo a perícia, tal distância estaria comprovada devido a um fenômeno denominado “boca de
mina”. Isto é, na lesão de entrada do projétil, a presença de chamuscamento e esfumaçamento ao redor do
orifício. Tais elementos, produzidos pela expansão parcial de gases e chamas no momento do disparo,
devido a curta distância, acabaram impregnados e claramente visíveis na lesão que vitimou Suzana.
212

perícia, ficou determinado que, antes do disparo, Suzana se encontrava na cama, em


posição de lótus, com o tronco levemente inclinado para frente e para a esquerda – visão
de quem olha dos pés da cama. A posição de Suzana na cama e a empunhadura da arma
respondiam à dinâmica das manchas de sangue encontradas nos lençóis, no joelho
esquerdo, nos braços e na região peitoral de Suzana192. Depois de transfixar a região
torácica de Suzana, o projétil perfurou lateralmente a parede que separava o quarto do
casal da sala de jantar da propriedade em Guaxuma. Em seguida, devido a sua energia
residual, o projétil continuou seu movimento, resvalando na cadeira presente na sala de
jantar, permanecendo em repouso no chão do cômodo.
A trajetória do projétil que alvejou Suzana foi geometricamente demonstrada,
com o auxílio de um programa de computador, com simulações tridimensionais da
cena193. A tese de homicídio seguido de suicídio, portanto, estava sustentada exatamente
pelas medidas e proporções estabelecidas entre a perfuração feita pelo projétil no corpo
de Suzana e o orifício produzido em ato contínuo junto à parede. Daí a importância de
determinar, por meio de DNA, a presença de pequenos fragmentos microscópicos do
corpo de Suzana alojados na perfuração retirada da parede e enviada aos laboratórios de
química da Unicamp. O resultado positivo sustentava a tese apresentada por Badan
Palhares. Com isso, ficava também minimamente respaldada a convicção pericial e da
polícia de que os crimes haviam ocorrido no local dos fatos194.
A apresentação realizada em Maceió, no dia 09 de agosto de 1996, foi divulgada
pelo jornal Folha de São Paulo no dia 10 de agosto de 1996. A reportagem selecionou
algumas das conclusões da perícia chefiada por Badan Palhares. Entre elas: os motivos
pelos quais PC Farias não teve grandes sangramentos depois que seu peito foi atingido
pelo projétil; de que local Suzana supostamente teria feito as ligações ao dentista
Fernando Coleoni durante a madrugada, bem como sobre o impacto e a distância dos
disparos que alvejaram os corpos de PC e Suzana.

192
Para a segunda perícia, a posição de lótus seria compatível ao percurso feito pelos respingos de sangue
no joelho de Suzana. Ou seja, o pingo de sangue escorreu em fluxo descendente: do joelho para a virilha.
As golfadas e respingos de sangue, contudo, foram efeito rebote da entrada parcial de gases junto com o
projétil durante o disparo.
193
Infelizmente, não tive acesso ao laudo oficial produzido por Badan Palhares e sua equipe. Todas as
informações acima apresentadas foram retiradas de um dossiê produzido por ele e todos os outros
integrantes da equipe com o intuito de responder à CPI do Narcotráfico, em audiência ocorrida em
Maceió, em 1999.
194
Inúmeras teses foram propaladas em torno da morte de PC Farias e Suzana Marcolino. Entre elas: a
suposição de que eles teriam sido mortos em outro local e apenas colocados no quarto com vistas a
ludibriar a polícia, ocultando, assim, o verdadeiro assassino do casal. Voltarei à tese de duplo homicídio,
no final desta seção.
213

Além disso, através da manchete “PM obriga Sanguinetti a assistir exposição”,


o periódico destacava a presença ‘a contragosto’ do coronel e diretor do Departamento
de Medicina Legal da Universidade Federal de Alagoas ao evento. E sublinhava a não
participação de Sanguineti em qualquer uma das etapas da perícia: “seus argumentos
baseiam-se num relatório preliminar feito pelos peritos alagoanos, ao qual ele teve
acesso” (Folha de São Paulo, 10 de agosto de 1996, p. 9).
Em letras garrafais, finalmente, no topo da página do jornal, ganhava realce o
título “Justiça deve arquivar inquérito da morte”. A publicação, ainda que enfatizasse a
aparente resolução do caso, todavia, ocultava as flagrantes contestações já em curso.
Alguns dias depois, em Campinas, George Sanguinetti interpelaria Badan Palhares
sobre alguns dos pontos que, no seu entendimento, não estariam suficientemente
resolvidos e conclusivos no segundo laudo. Sob o título “EXCLUSIVO”, o jornal O
Estado de São Paulo veiculava, no dia 15 de agosto de 1996, o embate “SANGUINETTI
X BADAN”195. No corpo do texto, as perguntas de Sanguinetti buscavam colocar em
dúvida o local e o horário em que PC Farias teria sido morto, o suicídio em posição
completamente incomum de Suzana e, principalmente, a afirmação contundente feita
pela segunda perícia de que seria improvável que uma terceira pessoa tivesse procedido
aos disparos. Também as fotografias estampadas no periódico, e de crédito de Sérgio
Castro, induziam o leitor ao ambiente de contestação instaurado durante o encontro. Em
algumas imagens, Badan Palhares aparecia empunhando a arma, tal qual teria feito
Suzana Marcolino, enquanto Sanguinetti assistia à demonstração. Em outras, ambos
Palhares e Sanguinetti reproduziam, em perspectivas de confronto, as posições e
distâncias nas quais, em tese, PC teria sido assassinado e Suzana teria se suicidado.
A exemplaridade da matéria jornalística desfia parte das tramas entre laudos e
contra laudos que se seguiriam dali por diante em torno do caso PC Farias. Depois de
sete meses sem grandes repercussões midiáticas196, a Folha de São Paulo estampou a
seguinte manchete: “Justiça reabre investigação da morte de PC”. A reportagem de
Ari Cipola informava que Alberto Jorge Correia, juiz na 8º Vara Criminal de Maceió,
havia designado George Sanguinetti “para elaborar um novo laudo sobre a morte do
ex-tesoureiro de Fernando Collor de Mello” (Folha de São Paulo, 18 de março de 1997,

195
A reportagem ocupando duas páginas completas do periódico estetizava – e editava consideravelmente
– o encontro de mais de três horas entre Badan Palhares, George Sanguinetti e o “Estado”, forma pela
qual o jornal fazia menção ao jornalista ou equipe de funcionários do periódico que mediou o encontro.
196
As notícias que se seguiram no periódico eram espaçadas e, em sua maioria, faziam referência a
investigações laterais sobre o caso de corrupção envolvendo Paulo César Farias e o governo de Fernando
Collor de Melo. Por exemplo, as supostas ligações nebulosas de PC Farias com a máfia italiana.
214

p. 8). Além disso, o periódico ressaltava que o legista alagoano teria “carta branca”
para elaborar a peça pericial que seria mais tarde “confrontada ao que foi elaborado
pelo legista da Unicamp”. O laudo de Sanguinetti, contudo, não ganharia tantas
repercussões quanto à designação de uma nova equipe pericial para o caso. A nomeação
feita, novamente, pelo juiz Alberto Jorge Correa indicava dois médicos-legistas e dois
peritos criminais para a função: os legistas Daniel Romero Muñoz, do IML de São
Paulo e professor da USP, e Genival Veloso de França197, professor de medicina legal
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E os peritos criminais Domingos
Tocchetto198, do Instituto de Criminalística e professor da Escola Superior de
Magistratura do Rio Grande do Sul, e Nicolas Soares Passos, do Instituto de
Criminalística de Alagoas.
Infelizmente, não tive acesso a nenhum dos contra laudos acima mencionados.
No que tange ao laudo produzido por Sanguinetti, não encontrei acessível nenhum dos
seus apontamentos, nem posso afirmar quais outros especialistas foram convidados a
participar de tal parecer. Também a repercussão que a perícia por ele realizada teve na
mídia impressa é uma incógnita, pois nenhuma reportagem da Folha de São Paulo se
debruça sobre seu parecer. Na verdade, absolutamente nada foi divulgado sobre isso nos
meses que se seguem à reportagem de 18 de março de 1997.
Contudo, Badan Palhares, em sua autobiografia, constrói sua versão para o
apagamento e o descrédito de Sanguinetti e de seu laudo. Segundo ele, em posse das
investigações oficiais sobre o caso, o médico alagoano se apressou em publicar um livro
sobre o assassinato de PC Farias, antes mesmo de protocolar seu laudo pericial.
Publicado em janeiro de 1997, o livro de título “A morte de PC e Suzana: o dossiê
Sanguinetti” se utilizava das informações obtidas por meio do processo para sustentar
197
Genival Veloso de França é formado em medicina e direito. Especializado em medicina legal pela
Associação Médica Brasileira, em 1979, os livros de França são referência constante para a disciplina.
Durante sua carreira acadêmica foi professor titular dos cursos destinados à matéria pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) e professor convidado de inúmeras universidades. Entre elas: a Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Genival Veloso de França é membro da Academia Nacional de Medicina Legal
(ANML), foi ex-secretário do Conselho Federal de Medicina (CFM) e presidente do Conselho Regional
de Medicina da Paraíba. Para ver mais: http://genjuridico.com.br/genivalfranca/ e
https://www.youtube.com/watch?v=gjLxWngygHs.
198
Domingos Tocchetto graduou-se em história natural e direito pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Durante sua carreira profissional, Tocchetto foi professor de criminalística junto à
Escola Superior da Magistratura, da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), entre 1981 e
1998, e perito do Instituto de Criminalística de Porto Alegre, de 1972 a 1991. Desde 1975, é perito
judicial da Academia da Polícia Civil do Rio Grande do Sul nas áreas de documentoscopia, grafoscopia e
balística. Seu livro Tratado de Perícias Criminalísticas foi reimpresso inúmeras vezes e aparece como um
dos manuais de referência ao tema. Para ver mais: Instituto Geral de Perícias (IGP), 08 de julho de 2015 e
https://www.escavador.com/sobre/888085/domingos-tocchetto.
215

sua tese sobre o crime. Para Sanguinetti, na madrugada de 23 de junho de 1996, na casa
de praia de Guaxuma, havia ocorrido um duplo homicídio e não um homicídio seguido
de suicídio.
Quanto aos trabalhos de perícia da terceira equipe, eles tiveram início no dia 09
maio de 1997, como noticiou o jornal Folha de São Paulo, numa discreta reportagem
com o título “Caso PC: Equipe quer exumar o corpo de Suzana” (Folha de São Paulo,
11 de maio de 1997, p.4). A exumação do corpo de Suzana Marcolino, mais tarde
realizada pela equipe, já era alardeada e seria, mais adiante, objeto de inúmeras das
disputas em torno das conclusões proferidas por Muñoz, Veloso de França, Tocchetto e
Passos.
Em sua autobiografia, Palhares dedica dois capítulos a expor suas opiniões sobre
a mencionada terceira equipe de perícias e os testes por eles realizados. Para além de
buscar satirizar os experimentos supostamente realizados – o uso de um suíno
anestesiado para avaliar o “reflexo motor de um corpo em relação ao impacto do
projétil” (PALHARES, 2007, p. 262) – Palhares sustentava a tese de que a terceira
equipe designada ao caso era formada por três dos seus inúmeros desafetos. No caso do
legista Genival Veloso de França e do perito criminal Domingos Tocchetto, a querela e
a disputa se deram acerca das perícias e dos pareceres sobre a morte do vice-governador
da Paraíba Raimundo Asfora, em 1987199. Já no caso de Daniel Romero Muñoz, a
rivalidade teria surgido depois que a USP havia sido preterida para conduzir o parecer
sobre o massacre do Carandiru, presídio de São Paulo, ocorrido em 1992. O convite
teria sido feito diretamente ao DMLE, aos cuidados de Palhares.

199
O caso envolvendo o vice-governador da Paraíba, Raimundo Y. Asfora, ocorreu em 1987. Asfora foi
encontrado morto na sala de sua chácara em Campina Grande na Paraíba. Seu cadáver estava sentado em
uma das cadeiras, junto a mesa disposta na sala de jantar, com o tronco inclinado para frente e a cabeça e
os braços inertes sobre a mesa. Junto ao corpo, encontrava-se um revólver. A porta da casa estava
trancada, sem sinal de arrombamentos. A perícia paraibana concluiu pelo suicídio. A traição da esposa de
Asfora foi indicada como um dos principais motivos para o fato. A família do vice-governador, todavia,
não concordava. Domingos Tocchetto, em posse das fotografias e cópias dos laudos, afirmava que o caso
não era conclusivo quanto ao suicídio. Frente às contradições, o governador Tarcísio Burity solicitou que
a Polícia Federal ingressasse no caso. Em função do convênio entre a PF e o DMLE, o caso chegou às
mãos de Palhares. Segundo Badan Palhares, em João Pessoa, ele procedeu à exumação do cadáver de
Asfora e visitou a chácara onde o corpo havia sido encontrado. Ao final, concluiu pelo suicídio. Já
Tocchetto, em entrevista, nem sequer citou o nome de Palhares na condução das perícias e afirmou: “aqui
no Rio Grande do Sul fizemos uma terceira perícia, praticamente de desempate, porque existia a perícia
feita pelo Instituto de Criminalística do Recife que dava um resultado, uma segunda perícia feita pelo
Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília, que dava um resultado divergente, e nós acabamos
fazendo a terceira perícia que não coincidiu com nenhum dos dois, e que foi a perícia definitiva e
conclusiva que foi usada dentro do processo, dentro do inquérito policial” (Instituto Geral de Perícias
(IGP), 08 de julho de 2015).
216

A depender dos enredos e rusgas, durante a terceira perícia os especialistas


buscaram esclarecer algumas das questões que a eles permaneciam sem respostas sobre
o crime. Para tanto, foram revistos e reinterpretados os exames residuográficos
realizados nas mãos de Suzana e testes foram feitos com auxílio de bexigas e peças de
toucinho limpas, com o intuito de questionar a falta de digitais e de respingos de sangue
junto à arma do crime. Finalmente, a posição que supostamente Suzana recebeu o
disparo foi reconsiderada e, por consequência, todas as medidas que definiam a
trajetória percorrida pelo projétil depois de sua saída do corpo de Suzana foram refeitas
(TUNES; OLIVEIRA, 1998). Tais correções enfatizavam uma controvérsia em torno da
altura de Suzana Marcolino. Uma reportagem curta, veiculada pela Folha de São Paulo,
em setembro de 1997, afirmava que Muñoz e sua equipe determinaram a altura de
1,57m para o cadáver de Suzana. Além disso, sublinhava que a irmã de Suzana
Marcolino, Ana Luísa Marcolino, teria dito “que sua irmã media 1,57m e não 1,67m,
como atesta o laudo oficial elaborado pela equipe do legista Badan Palhares, da
Unicamp” (Folha de São Paulo, 30 de setembro de 1997, p. 8).
Naquele momento, com baixo impacto e repercussão, as controvérsias em torno
da altura de Suzana levaram o jornalista Janio de Freitas, em sua coluna no jornal Folha
de São Paulo, em agosto de 1997, a questionar a idoneidade da perícia chefiada por
Palhares. Sob o título “O crime das falsificações”, o colunista ironizava:

“Não se acreditando que um perito da Unicamp nem saiba usar fita


métrica, é razoável supor que deformações, omissões e falsificações
do seu relatório, como os 10 cm acrescentados à altura da moça,
devam-se a contingências imperativas. Tanto mais que, sem os 10 cm
fictícios, não seria possível a explicação dada para o suicídio pelo
relatório Badan. E isso mesmo para as demais deturpações e
omissões” (Folha de São Paulo, 31 de agosto de 1997, p.5).

Badan Palhares, em resposta ao artigo de Freitas, em setembro de 1997,


encaminhou um artigo à Folha de São Paulo, com o título “Qual era mesmo a altura de
Suzana?”. O texto publicado na seção “Opinião” do periódico respondia com
veemência as insinuações de Janio de Freitas e outros colunistas. Também atacava
centralmente as medidas de Suzana realizadas pela “equipe da USP”, ao se referir aos
peritos, somente em função das credenciais acadêmicas de Daniel Romero Muñoz,
responsável pela chefia da terceira perícia. Ali, Palhares questionava a medição indireta
de Suzana, “obtida pela medição da tíbia e do fêmur e calculada por uma tabela
217

internacional fixa200”. A conclusão de duplo homicídio, para Palhares, era no mínimo


“apressada” (Folha de São Paulo, 21 de setembro de 1997, p. 3).
Tais contestações só colocariam realmente em dúvida a idoneidade da segunda
perícia chefiada por Palhares, quando, dois anos depois, em março de 1999, um suposto
erro de perícia foi divulgado pelo jornal Folha de São Paulo. Na capa da edição, uma
foto de Suzana Marcolino e Paulo Cesar Farias vinha acompanhada de uma luneta. A
manchete em destaque, “Fotos derrubam laudo da morte de PC”, vinha precedida do
termo “EXCLUSIVO” (Folha de São Paulo, 24 de março de 1999, capa). O repórter
Mário Magalhães, “enviado especial a Maceió”, destacava que, em seu laudo, Badan
Palhares teria afirmado que Suzana seria quatro centímetros mais alta que PC Farias. Ou
seja, sua altura foi estimada por ele em 1,67 centímetros.
Sem dúvida, a altura de Suzana Marcolino era fundamental. Todas as projeções
sobre o disparo e a trajetória do tiro que causaram sua morte estavam sustentadas pelas
medidas antropométricas de seu cadáver. Contudo, ainda que em 1997 tais
questionamentos tenham ganhado alguma notoriedade, somente em 1999 o suposto erro
quanto à altura de Suzana ganhou força de prova. A reportagem, assinada por Mario
Magalhães, sob o título “Morte de PC voltará a ser investigada”, destacava a opinião
do ‘novo’ promotor do caso, Luiz José Gomes Vasconcelos: “a Folha trouxe o
elemento que faltava. (...) uma prova real de que a altura não era a descrita no laudo
inicial. Nós passamos a vislumbrar uma nova versão para o crime”201 (Folha de São
Paulo, 25 de março de 1999, p. 6).
O desenrolar do caso, simultaneamente pericial, policial e midiático, é
entremeado pelo envio de fotografias e vídeos da necropsia realizados pela equipe
chefiada por Palhares a serem anexados nos autos. Segundo Palhares, existiam provas
fotográficas sobre a medição do cadáver de Suzana (Folha de São Paulo, 31 de março de
1999, p. 6). Também, novos depoimentos foram colhidos e uma acareação entre ambas

200
Segundo Palhares, a tabela utilizada é genérica e a depender das “discrepâncias de compleição física
entre povos e raças (a margem de erro pode chegar a 5%, embora nesse caso estranhamente atinja
9,4%), especialmente quanto ao compósito altamente heterogêneo da população brasileira” (Folha de
São Paulo, 21 de setembro de 1997, p. 3).
201
As controvérsias em torno do caso de PC Farias são inúmeras. Também o Judiciário não escapou de
tais conflitos. Promotores e juízes foram alterados ao longo do processo e foram inúmeras as
confabulações sobre pedidos de afastamento e destituições. Quanto às investigações exigidas, novas
reconstituições do crime foram realizadas, agora, com a presença de todos os seguranças da família
Farias. Também foi encaminhada a Badan Palhares uma intimação, com o intuito de ouvi-lo sobre os
impactos que tais revelações sobre a altura de Suzana teriam na simulação gráfica, apresentada por ele e
sua equipe, em agosto de 1996, da trajetória do tiro que matou a namorada de PC Farias.
218

as equipes de perícia chefiadas por Palhares e Muñoz foi realizada, na cidade de


Maceió, em junho de 1999202.
Em dossiê assinado pelos onze integrantes da equipe chefiada por Badan
Palhares, os peritos buscavam elucidar e responder os supostos questionamentos feitos
pela equipe chefiada por Muñoz. Sob o título “Homicídio seguido de suicídio versus
Duplo Homicídio: uma análise do caso PC Farias após o laudo contestante”, os
peritos, em mais de duzentas páginas, respondiam ponto a ponto as conclusões médico-
legais e periciais teoricamente formuladas no laudo contestante assinado por Munõz,
Veloso de França, Tocchetto e Passos.
A linguagem eminentemente técnica do dossiê, cifrada até aos olhos mais
atentos como os meus, poderia ser, ela mesma, objeto de reflexão. Contudo, chamam
atenção na análise, divulgada no site pessoal de Badan Palhares e acessível a qualquer
leitor, as fotografias do corpo de Suzana Marcolino na mesa metálica do IML de
Maceió e as cópias, reproduzidas no corpo do documento, dos seus dados
antropométricos, tal como foram, supostamente, respondidos em laudo pela equipe
coordenada por Daniel Muñoz. A fotografia de Suzana junto à mesa de necropsia
‘parece’ comprovar que ela media 1,67. A linha vermelha localizada próxima à altura
dos calcanhares de Suzana, aproximadamente na marca 164,7 cm da fita métrica afixada
na mesa, e a visão de sua cabeça aparentemente junto à cabeceira desta última, dão, ao
leitor, a impressão de que Suzana verdadeiramente media 1,67m. Contudo, tais
confirmações são circunstanciais. Ou seja, fotografias são tiradas de certos ângulos que
fatalmente podem iludir aqueles que as tomam como um “real” incontestável
(SONTAG, 2003).
Também a cópia do laudo de Muñoz, Veloso de França, Tocchetto e Passos
destaca que, aparentemente, a distância vertix-calcânea (topo da cabeça até os
calcanhares) de Suzana, feita por intermédio de seus dados antropométricos, era de
1,67m. Todavia, no item “c) Estatura de Suzana”, da mesma página, depois de
retiradas as medidas dos ossos longos (tíbia e fêmur), concluem:

202
Sob o título “Confronto em Maceió”, em sua autobiografia Badan Palhares descreve o encontro
realizado em Maceió explicitando os inúmeros questionamentos colocados a ele e sua equipe. A altura de
Suzana, sua posição na cama, a falta de digitais e respingos de sangue na arma do crime, a trajetória do
projétil etc. Segundo Palhares (2007), contudo, a parcialidade da banca escolhida arrefeceu ainda mais as
disputas ali colocadas: eles eram conterrâneos ou colegas de trabalho da equipe que contestava o laudo de
Palhares.
219

“A estatura de Suzana Marcolino da Silva foi determinada pelo


comprimento dos ossos longos (fêmur e tíbia) com base na tabela de
Trotter e Gleiser, 157 cm, com erro padrão de 2,9cm para mais ou
para menos” (PALHARES et al, 1999, p. 186).

Sem dúvida, tudo aquilo que foi escrito, gravado ou fotografo durante o caso
estava em disputa. Exatamente por isso, eu escolhi utilizar repetidas vezes, o termo
‘supostamente’ ou ‘aparentemente’, para recontar o caso PC Farias. Eu mesma poderia
lembrar, ao leitor desta tese, que não há provas factuais de que as páginas registradas,
fotocopiadas e anexadas ao dossiê de Palhares sejam, oficialmente, parte do laudo
assinado por Muñoz e sua equipe. Ainda que digitas em padrões semelhantes àqueles
que acessei junto ao IML, carimbado com os dizeres “Folha / Nº1796” e rubricado por
pelo menos quatro diferentes assinaturas, tal registro foi reunido e divulgado por Badan
Palhares, interessado direto no caso, sendo essa a sua “versão dos fatos”.
Muitas foram as intrigas, contradições, controvérsias durante as investigações e
as perícias tramadas por meio do caso. É sobre elas que assenta meu interesse pelo
evento. A “manhã macabra de Guaxuma”, fazendo menção ao título dado ao primeiro
capítulo, da terceira parte, da autobiografia de Palhares, para descrever a morte de PC
Farias e Suzana Marcolino, já enseja tais intrigas. Palhares afirma categoricamente que
PC Farias morreu entre 5h e 7h da manhã. Tais constatações, por exemplo, apoiadas em
convicção e experiência de ofício, seguiram contestadas e inconclusivas. Os elementos
de controvérsia se multiplicam: a altura de Suzana, a falta de impressões digitais na
arma, a dinâmica das manchas de sangue, a posição de Suzana e da arma do crime, as
ligações de despedida eterna supostamente feitas por ela ao dentista Coleone (apontado
como seu amante), o fato de a cena do crime ter sido visivelmente alterada e elementos
importantes destruídos etc.
O crime segue inconcluso, ainda que julgado. Os seguranças de PC Farias
indiciados como coautores do crime203 foram absolvidos por quatro votos a favor e três
votos contra pelo Tribunal do Júri de Alagoas. Também Badan Palhares, depois de
confrontado em Maceió, foi convocado a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito
sobre o Narcotráfico. Em todas as acareações e processos, o legista foi judicialmente
absolvido por falta de provas sobre qualquer imperícia, falsificação ou venda de laudos

203
Sem dúvida, uma reflexão mais rigorosa e atenta poderia ser feita sobre os desdobramentos criminais e
judiciais que levaram aos bancos dos réus três dos quatro seguranças que estavam na casa de praia de
Guaxuma no dia do crime que vitimou PC e Suzana. O único dos seguranças cujo indiciamento foi
arquivado, foi o segurança Rinaldo da Silva Lima, assassinado em condições bastante controversas, em
1999. A morte de Rinaldo acirrou definitivamente a repercussão do caso na mídia impressa da época.
220

realizada durante sua carreira. Como ele mesmo afirmou em entrevista a mim
concedida: “eu só aceito uma única avaliação judicial desse caso! É a do Supremo
Tribunal Federal! [Lá] está descrito que todas as provas realizadas pela nossa equipe
são fidedignas de credibilidade” (Entrevista realizada em 21 de outubro de 2016).
Ainda que a convicção de Badan Palhares sobre a idoneidade e a competência de
seu trabalho seja inabalável, é irrefutável que o caso PC Farias deflagrou o
desaparecimento no cenário nacional das técnicas médico-legais desenvolvidas por ele
em Campinas, em especial pelo DMLE. A extinção do departamento é o ápice de um
processo que já estava em curso desde as críticas e denúncias gestadas à identificação
das ossadas de Perus. A ascensão meteórica forjada mediante o caso Mengele e a crise
de credibilidade decretada pelo caso PC Farias alinhavavam vaidades, relações
pessoais, rusgas, tramas institucionais e visibilidade pública. São riscos que, por sua
vez, desvelam laudos e perícias como plataformas que excedem em muito seu aparente
caráter técnico. No tópico a seguir, busco traçar alguns dos fios possíveis que costuram
casos, instituições e pessoas.

“Vamos acabar com esse herói nacional”: entre tramas institucionais e vaidades
pessoais

Com a suposta frase “vamos acabar com esse herói nacional”, a equipe
chefiada por Daniel Romero Muñoz, responsável pela terceira perícia realizada no caso
PC Farias, desembarcou em Maceió. Segundo Palhares (2007), tal expressão foi
proferida por Genival Veloso de França, publicamente na presença de Vitor Odilon
Pereira e Nivaldo Cantuária, ambos membros da equipe conjunta que assinou a segunda
perícia realizada em 1996, sob a chefia de Badan Palhares. Tal como intento fazer daqui
em diante, também Palhares utilizou-se do suposto bordão para assinalar os motivos e
tramas que, em seus termos, retratariam a “ânsia” de seus inimigos por destruí-lo e por
“brilhar sob os holofotes” lançados ao caso PC Farias pela mídia brasileira
(PALHARES, 2007, p. 258).
Ao dizer isso, contudo, não pretendo resolver ou me posicionar diante desse
espinhoso imbróglio. Ao contrário, busco dar realce às tramas políticas e institucionais
que, por intermédio dos três casos – “Mengele”, “Perus” e “PC Farias” – desenrolam-
se e alinhavam o IML de Campinas ao DMLE. A inspiração teórica para tais
221

desdobramentos é o trabalho de Maria Filomena Gregori (1999). Em contextos de


pesquisa bastante distintos dos meus, a autora buscou desvelar as tramas institucionais
por meios das quais uma gama diversa de instituições passou atender a meninos e
meninas em situação de rua, na cidade de São Paulo, entre os anos de 1991 e 1995.
Como afirma Gregori (1999, p. 159-164), diante de um “segmento de infância e de
adolescência de difícil circunscrição”, as entidades envolvidas na assistência e no
cuidado de crianças e adolescentes instituíram uma “situação de disputa pela
legitimidade de quem fala em nome desse sujeito [menino de rua] e de quem goza do
direito de obter recursos para atendê-los”. Com o intuito de descrever essas relações de
conflito e competição por visibilidade e auxílio financeiro, a antropóloga cunha a noção
de “trama institucional”. Ou seja,

“uma rede formada por uma gama de instituições e atores, mas cuja
trama, por sua vez, também revela a existência de conflitos que, na
prática diária, acabam por impedir o desenvolvimento de padrões ou
procedimentos que se consolidem como soluções204” (GREGORI,
1999, p.164-165).

Ao assentar minhas reflexões na noção de “tramas institucionais”, intento


salientar, por um lado, o caráter conflitivo de disputas e intrigas que enlaçam uma
multiplicidade de instituições e atores para os quais fui incitada a olhar no decorrer
desta pesquisa. Entre eles: as relações internas ao próprio DMLE; as disputas desse
departamento com o Instituto Oscar Freire, na USP; ou para os conflitos entre Badan
Palhares e seus desafetos: Massini, Muñoz, Veloso de França, Sanguinetti, Tochetto. De
outro lado, dou atenção a um conjunto de linhas e fios que dão urdidura para aquilo que
se conforma, entre os anos de 1980 e 2000, como um tecido (por vezes intricado) de
atuação para a medicina legal exercida em São Paulo (e no Brasil). Em ambas as
frentes de análise, a história e o projeto de constituição, consolidação e extinção do
DMLE é fundamental. Sustento que o departamento é projetado nacionalmente
mediante a estreita relação com órgãos estatais, cuja principal função é produzir laudos,
perícias e investigações criminais.

204
Por “soluções”, Gregori (1999) chama atenção aos efeitos perversos de circularidade a que os meninos
e meninas em situação de rua acabam imersos, a partir do momento que eram acolhidos por essas malhas
de atendimento de proteção à infância e à adolescência. Como sugere a autora, “circulando ente vários
organismos, se virando, ele [o menino de rua] sobrevive e se protege. Mas está longe de conseguir
projetar um caminho de saída da menoridade. Seu caminho permanece preso na circularidade das ações.
Parece condenado a ser, para sempre, um menino de rua” (GREGORI, 1999, p. 22).
222

O processo de transformação da disciplina de medicina legal e ética em


departamento foi iniciado, na FCM da Unicamp, em 1978. A documentação, forjada e
assinada por Arnaldo Siqueira, foi convertida em “Processo 2802”, cujos trâmites
correram em várias instâncias universitárias, a saber, a Congregação da Faculdade de
Ciências Médicas, em seguida, a Câmara Curricular e a Procuradoria Geral. Sob os
cuidados do presidente da Câmara Curricular, José Merzel, o pedido não foi avaliado
em função de dois critérios que não foram preenchidos a contento: o texto estatutário
invocado205 e a falta de uma documentação que demonstrasse “a existência de
atividades de pesquisa em nível adequado”.
Decorridos oito anos desse primeiro processo, em fevereiro de 1986, Fortunato
Badan Palhares, chefe da disciplina de medicina legal da FCM, encaminhava à “Douta
Câmara Curricular” um novo projeto de “departamentalização” para a disciplina por
ele ministrada (“Ofício nº 68/86”), respondendo às exigências da Câmara Curricular.
Essa nova papelada buscava “demonstrar melhor a existência de pesquisa a nível
adequado” e justificar a necessidade de departamentalização da disciplina que
permanecia, até aquele momento, sob a chefia do departamento de anatomia patológica
e medicina legal.
Para dar prosseguimento as suas pretensões, Palhares encaminhou um dossiê206 à
chefia do departamento de anatomia patológica e medicina legal. No pedido, ele
enfatizava “a importância da medicina legal no mundo moderno” e “seu vasto campo
de atuação como verdadeira ciência interdisciplinar e plurricurricular”. Daí decorria a
importância de exercê-la, na Unicamp, “a nível de departamento, com pelo menos três
disciplinas: medicina legal judiciária, medicina legal profissional e medicina legal
social”.
Badan Palhares, de modo intencional, estabelece nesses papéis o Instituto Oscar
Freire, localizado junto à Universidade de São Paulo (USP), como uma sólida referência
a ser seguida e cuja filiação parecia incontornável àqueles que desejavam ser vistos e
escutados na área de medicina legal em São Paulo. “O esquema do Instituto Oscar

205
Siqueira citava, em documento, o artigo 91 do regimento geral – responsável pela “criação, fusão,
desdobramento ou supressão de disciplinas”. Merzel, em resposta, sublinhava que tal processo deveria
ser norteado pelo artigo 153 do regimento em vigência na época. Isto é, artigo esse responsável pela
fusão, pela manutenção ou pela divisão de departamentos.
206
Em tal documento, o legista buscava assinala, junto à Câmara Curricular, os “objetivos”, a “situação
atual”, o “pessoal”, os “planos futuros” e as “necessidades” colocadas pelo projeto de
departamentalização da disciplina de medicina legal.
223

Freire” era ilustrado por um desenho desbotado, cujos detalhes são ilegíveis 207. A
figura buscava enfatizar “toda a abrangência da medicina legal”, numa tríade há muito
tempo constituída entre ensino, pesquisa e perícia208.
A expansão desejável da disciplina, enquanto departamento, por sua vez,
aparecia como fundamental à consolidação dos serviços prestados à comunidade, aos
interesses pela especialidade, ao ensino e a pesquisas de relevância na área. O intuito,
audacioso por princípio, visava a, nesse sentido, “consolidar o Núcleo de Perícias
Médicas da Unicamp em convênio com a Secretaria de Justiça” e implantar um
“Serviço de Verificação de Óbitos de Campinas, já criado por Decreto do Governador
e ainda não implantado [na cidade]”209. A cooperação, já em curso e regularmente
mantida entre a disciplina de medicina legal e o IML, foi devidamente informada à
Câmara Curricular:

“a disciplina de Medicina Legal atende a um grande número de


pericias no campo civil e criminal (30 mensais), oriundas da comarca
de Campinas e região. Tais perícias exigem grande empenho em sua
realização, pois além do exame dos periciandos, há a redação e
datilografia dos laudos. É manifesto desejo da Reitoria que a
disciplina continue tais serviços à comunidade, tanto que já nos
encontra em estudos, a implementação de um núcleo de perícias
judiciais, vinculado à disciplina de Medicina Legal. (...) [também]
colaboramos com o Instituto Médico Legal de Campinas, nos
atendimentos que se encontram no Hospital Universitário da
Unicamp” (Dossiê Câmara Curricular, 1986).

Ainda que, no projeto de departamentalização, Badan Palhares destacasse o


exíguo quadro de pessoal científico e técnico administrativo formado por seis docentes
– quatro contratados e dois em processo de contratação – e dois técnicos, a
infraestrutura disponível à disciplina era evidente.
207
As caixas de texto sublinhavam uma linha de consequência: pessoal docente – ensino (teórico e
prático) – pesquisa – perícia – serviços auxiliares. Ao lado do pessoal docente, era necessário o pessoal
técnico e auxiliar. Orbitando em torno das caixas de textos alinhadas estavam as muitas áreas de atuação
em medicina legal e a necessidade de uma biblioteca e um museu.
208
A designação como “Instituto de Medicina Legal” seria tributária não apenas da conformação da
disciplina em departamento, mas da “independência administrativa” com a ocupação de “um espaço
físico isolado” e central ao florescimento da medicina legal.
209
Atualmente, um novo projeto em tramitação, ainda que aparentemente engavetado, teve por objetivo
um novo convênio entre o IML de Campinas e a Unicamp. O projeto buscava trazer o prédio do IML para
dentro da Unicamp, com vistas a atrelar, nos moldes imaginados por Badan Palhares, a perícia à prática
de ensino e de pesquisa, visando ao melhor atendimento ao “cidadão”. Contudo, tal plano, na atualidade,
não propõe atrelá-lo ao departamento de medicina legal como outrora. O legista à frente do projeto mira a
solução de outras precarizações: “O prédio onde a gente trabalha, onde a gente atende vivo, é do Estado.
O necrotério é da prefeitura (...). [A ideia seria a] de levar o IML pra Unicamp. O Estado ganharia com
isso. A Unicamp ganharia, a gente ia fazer um convênio que ia destravar toda a questão da pesquisa,
medicina, tudo. E o cidadão também ia ganhar com isso. (...). Teoricamente, devia estar caminhando,
mas esbarra na burocracia!” (Entrevista realizada em janeiro de 2015).
224

“a faculdade tinha muito mais condições técnicas e em equipamentos


do que o Instituto Médico Legal de Campinas e os casos mais
complicados nós levamos pra lá [Unicamp], discutíamos com os
nossos docentes e, aí sim, nós passamos a ter uma atividade mais
científica” (Entrevista realizada em 21 de outubro de 2016).

Se a relação entre a FCM e a perícia técnica aparecia em meados de 1986 com


ares de um projeto pioneiro, contudo, as correlações entre universidades e corporações
policiais de perícia não eram de modo algum inovadoras. Ao contrário, rememoravam
uma prática longínqua, iniciada pelo próprio Nina Rodrigues, que endossava a
“reabsorção do serviço médico-legal da polícia pela Faculdade” (CORRÊA, 1998, p.
178). Argumentando sobre o momento de organização da Medicina Legal na Bahia,
Corrêa (1998) afirma que Nina Rodrigues já estabelecia relações informais com a
polícia judiciária, mesmo antes de estabelecer um acordo explícito entre a Secretária de
Segurança Pública e a Faculdade de Medicina da Bahia. Tal acordo passava, dali em
diante, a reconhecer o Pavilhão de Medicina Legal da Faculdade mais tarde, Instituto
Nina Rodrigues, bem como seu professor como diretor e perito oficial da instituição.
Com o acordo, necropsias e outros exames periciais feitos nos anexos da delegacia da
polícia judiciária baiana passaram a ser de responsabilidade dos laboratórios da
universidade. Assim, Nina Rodrigues alinhavava, a uma só tempo, a prática empírica,
fundamental à produção acadêmica, ao contato direto com o contexto social, matéria
viva das formulações que fariam crescer teoricamente a disciplina de medicina legal
ensinada pelo célebre médico maranhense.
Os mesmos desafios enfrentados por Nina Rodrigues foram travados, por
exemplo, por seus discípulos: Afrânio Peixoto, no Rio de Janeiro, e Oscar Freire, em
São Paulo. Como aponta Ferreira (2009), o ensino prático da medicina e da medicina
legal, no Rio de Janeiro, já se fazia presente nas intervenções de Agostinho J. de Souza
Lima junto ao Depósito de Mortos da Gamboa210, como consultor da Polícia da Corte e
catedrático de renome da medicina legal. Sua atuação, porém, só se consolidaria pelas
mãos de Afrânio Peixoto quando, em 1915, o ensino prático de medicina legal,
realizado numa parceria entre IML e faculdade, seria retomado e, finalmente, investido
de validade legal. Nos termos de Ferreira (2009), Peixoto intentava produzir
padronizações e fixar condutas técnicas com maior validade “científica” com base

210
O Depósito de Mortos da Gamboa foi construído em 1854 e se tornou o primeiro necrotério da cidade
do Rio de Janeiro. Segundo Ferreira (2009), chegavam, a suas dependências, cadáveres de presos,
escravos, indigentes e indivíduos não identificados e encontrados mortos em via pública.
225

naquilo que ele havia observado na Alemanha e durante sua formação na Bahia como
pupilo de Nina Rodrigues.
Já em São Paulo, as relações entre Serviço Médico-Legal e a disciplina de
medicina legal datam de 1918 quando, segundo Lipp (2008), Oscar Freire assumiu a
mencionada disciplina, na Faculdade de Medicina Paulista, a convite do professor Dr.
Arnaldo Vieira de Carvalho211. Contudo, foi somente em 1934, com a criação da
Universidade de São Paulo (USP), que a disciplina de medicina legal une às cadeiras de
Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho sob o signo do Instituto Oscar Freire212.
A morte prematura de Freire deixaria a Flamínio Fávero, seu aluno e discípulo213, a
incumbência de consolidar as relações entre o departamento e o IML de São Paulo, cujo
codinome também homenageia Oscar Freire (CORRÊA, 1982).
Como argumentam Salla e Marinho (2008), Fávero fez parte da primeira turma
diplomada em medicina no estado de São Paulo, em 1918, e sua trajetória profissional e
acadêmica é repleta de cargos e posições de proeminência que atam o ensino
universitário a instâncias estatais e corporativas. Entre elas: a vice e a direção da
Faculdade de Medicina de São Paulo; a presidência da Sociedade de Medicina e
Cirurgia de São Paulo; a presidência da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de
São Paulo; a direção da penitenciária do estado; e, por último, a presença como membro
do Conselho Penitenciário.
Em ambos os exemplos, a “escola Nina Rodrigues” aparece, portanto, como uma
espécie de mito de origem da medicina legal brasileira, tamanha a quantidade de

211
Como salientam Salla e Marinho (2008), Arnaldo Viera de Carvalho gozava de grande legitimidade e
distinção entre os seus pares e contemporâneos. Filho do vice-presidente da Província, José Joaquim
Vieira de Carvalho, advogado e antigo diretor da Faculdade de Direito, Arnaldo Viera de Carvalho havia
se formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e muito precocemente ocupou posições de
proeminência: Vacinogênico, Hospedaria, Policlínica.
212
O Instituto, responsável por abrigar o Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina
Social e do Trabalho, foi idealizado pelo Escritório de Ramos e Azevedo e concretizado em 1931. O
prédio, com uma arquitetura imponente, localizado na Rua Teodoro Sampaio, dispõe de anfiteatro, salas
para docentes e auxiliares, laboratórios de pesquisa, museu, biblioteca, arquivo e administração.
Atualmente, abriga o Departamento acima mencionado e um Centro de Estudos e Atendimento Relativo
ao Abuso Sexual (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico,
1991).
213
Flamínio Fávero escreve um prefácio emocionado para a publicação póstuma da obra de Freire,
“Lições e Conferências do Prof. Oscar Freire”, de 1968. Em tal discurso afetivo e de devoção, como
aluno e discípulo, o médico-legista sublinha a grandeza de Freire e sua posição completamente
apaixonada pela medicina legal. Fávero ainda destaca o fato de ter sido responsável por embalsamar
Oscar Freire, antes de ser enviado à sua terra natal, onde foi enterrado. Em seus termos, “seguindo a
própria técnica que Oscar Freire me ensinara, com um trocáter perfurei a lâmina crivada do etmoide,
através das fossas nasais e, trêmulo, emocionado, com lágrimas nos olhos, depositei naquele nobilíssimo
tecido nervoso [cérebro] de onde tanta energia criadora se destilara, o líquido conservador que iria
prolongar-lhe a duração da forma arquitetônica” (FÁVERO, 1968, p. 44). Para outras informações sobre a
trajetória acadêmica de Fávero, ver nota 85.
226

médicos e cientistas sociais que, no início do século XX, filiavam-se ou se


denominavam influenciados pelas teorias do renomado médico maranhense (CORRÊA,
1998). Nesse sentido, inspirada por e à luz do trabalho da antropóloga Mariza Corrêa
(1998), argumento que a trajetória profissional de Badan Palhares, no contexto
campineiro, ainda que em proporções e expressividades de outra ordem, alude a tais
imaginários. No caso dos fundadores da disciplina de medicina legal nas capitais da
Bahia, do Rio de Janeiro e de São Paulo, o intuito era, nas palavras de Corrêa (1998),
fazer florescer uma nova área de saber situada exatamente na intersecção dos modelos
jurídicos e médicos, os quais deixariam de ser heterogêneos entre si e passariam a
absorver um ao outro214. Já no contexto campineiro, a conquista de um espaço
institucional e de referência à matéria buscava, nos termos do dossiê formulado por
Palhares, permitir que a disciplina de Medicina Legal atingisse “perfeitamente a sua
função social – quer na formação médica, quer na prestação de serviços à
comunidade”. A aprovação da documentação de Badan Palhares no Conselho Diretor,
domínio ligado ao gabinete do reitor em junho de 1986, selava a constituição do
Departamento de Medicina Legal e Ética (DMLE).
Se, como sugerem os encaminhamentos assinados pela Câmara Curricular, “a
comparação da situação atual com a que existia em 1978, (...) não evidenci[ava] (...)
uma mudança que permit[iria] concluir” pela criação de um departamento de medicina
legal, tal entidade, contudo, acreditava que seu papel não era “inibir as iniciativas de
desenvolvimento por parte das unidades”. Sua concordância com a criação, ratificada
pela Pró-Reitoria, abria caminho a um projeto aparentemente já em curso. Os casos de
repercussão que, desde muito cedo, passaram a chegar ao jovem DMLE, por sua vez,
acabaram por validar a sua consolidação e também, por um paradoxal contraste,
explicam, em parte, o seu declínio e extinção. Além disso, importa assinalar que tais
tramas foram concretizadas através de conexões exteriores aos encaminhamentos
acadêmicos. De um lado, as relações de amizade e cordialidade entre Badan Palhares e

214
Ou seja, tratava-se de um processo de adequação dos modelos teóricos europeus às especificidades
nacionais, mas também de constituir locais apropriados a pesquisas empíricas que, no futuro, permitiram
a demarcação, cada vez mais precisa, de especialidades dentro da própria medicina Como argumenta
Corrêa (1998), Nina Rodrigues, inclusive, era enfático quanto a isso: “ao mesmo tempo que professava
sua crença na medicina enquanto saber institucionalizado, tentava demonstrar que a competência
conferida por este saber, porque muito geral, era insuficiente para cobrir todos os campos de atuação
social em que a presença do médico seria desejável” (CORRÊA, 1998, p.113).
227

Rubens Brasil Maluf, diretor do IML. E, de outro lado, a proximidade estratégica entre
Palhares e o diretor da Polícia Federal, Romeu Tuma215.
O convênio assinado entre o DMLE e a Polícia Federal, para tanto, dava
sustentação burocrática e legal ao encaminhamento de casos de maior visibilidade
política investigados pela Polícia Federal no Brasil aos cuidados de Badan Palhares. Em
suas palavras, diante da falta de legistas nos quadros de funcionários da instituição,
“todos os casos importantes da Polícia Federal eram realizados pelo DMLE”.
(Entrevista realizada em 21 de outubro de 2016). Acredito que é por meio desses laços
burocráticos e pessoais que a fama de Badan Palhares foi, paulatinamente,
estabelecendo-se. Campinas e a medicina legal ali constituída, por meio de tais
conexões, passaram a figurar como uma referência para o ofício de médico-legista ou
perito criminal. Os casos apresentados nos capítulos IV e V tiveram por intuito sugerir
como esse processo de visibilidade ganhou corpo. A aparente coincidência entre a
departamentalização e a reconstituição facial de Mengele, em meados de 1986, permite
inúmeras confabulações.
As matérias jornalísticas são exemplares quanto à projeção de Palhares como o
“especialista”. Diante das ossadas de Perus, Badan aparece como o responsável que,
junto com Nelson Massini, identificou Mengele.

“Palhares e Massini ganharam notoriedade em 1986. Investigaram


uma ossada, encontrada em 1985 em um cemitério de Embu (...).
Concluíram que ela pertencia ao criminoso de guerra Joseph
Mengele” (Folha de São Paulo, 06 de setembro de 1990, p.8).

Já no caso PC Farias, após a “federalização” das investigações sobre as mortes,


a manchete da Folha São Paulo, em junho de 1996, é enfática: “Badan Palhares
participou de casos de repercussão nacional”. A reportagem passa, então, a enumerar
os casos de “repercussão”:

“1987 – identificação e reconstituição facial do carrasco nazista


alemão Josef Mengele, encontrado morto no Brasil; 1989 – caso da

215
Romeu Tuma, todavia, foi enfático em afirmar não haver qualquer “vinculação de ordem pessoal”
entre ele e Badan Palhares. Em reportagem publicada pela Folha de São Paulo, em 26 de novembro de
1999, tal declaração do senador e ex-delegado da PF foi reproduzida no periódico abaixo da manchete
“Jobim me indicou no caso PC, diz Badan” (Folha de São Paulo, 26 de novembro de 1999, p.5). As
dúvidas quanto às indicações de Palhares para outros casos de repercussão foram supostamente
respondidas por Tuma ao jornal com afirmações tais como: “Ele (Badan) integrou a equipe do caso
Mengele (carrasco nazista) e ficou com o nome em evidência. Quem queria um legista logo pensava no
Badan” ou “o governo da Paraíba pediu um legista [para o caso de Asfora] para o Ministério da Justiça
e a Policia Federal acionou a Unicamp, que havia montado uma ‘estrutura boa’ no Departamento de
Medicinal Legal” (idem).
228

Rua Cuba, em São Paulo, em que Jorge Bouchabki teria matado os


pais; 1990 – identificação dos assassinos do ecologista Chico
Mendes, morto a tiros no Acre; 1990 – Análise das ossadas
encontradas em uma vala comum do cemitério de Perus, São Paulo,
seis identificadas como de desaparecidos políticos; 1992 –
Identificação da voz do ex-ministro do Trabalho Antônio Rogério
Magri, envolvido em denúncias de corrupção durante o governo do
Collor” (Folha Sudeste, 27 de junho de 1996, capa).

Sem dúvida, entre os anos de 1985 e 1999, a fama de Badan Palhares, como o
“resolvedor de casos”, foi gradualmente se disseminando: o DMLE da Unicamp foi
chamado a realizar perícias, fornecer pareceres e contestar laudos nos quatro cantos do
Brasil. Para além dos casos que intencionalmente escolhi apresentar neste e no capítulo
anterior, e aqueles citados na reportagem acima, outros de grande impacto político
preencheram páginas e páginas do currículo vitae de Badan Palhares divulgado em seu
site pessoal. Entre eles: o caso de Césio 137, ocorrido na cidade de Goiânia, em 1987; a
identificação das possíveis ossadas do menino José Antônio Penha Brito Junior de 13
anos de idade, desaparecido em 1988, na praia de Ipem/Calhau, Maranhão; o exame
necroscópico do sequestrador do avião da VASP, em 1988, oficializado pelo Delegado
da Polícia Federal de Goiânia; o parecer técnico, requisitado pelo chefe do IML do Pará,
sobre o massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás, Pará, em 1996, cometidos por
policiais militares contra trabalhadores rurais sem terra etc. (PALHARES, 2007).
Também os nomes a ele associados, como é o caso de Massini, foram
desaparecendo e Palhares reinou soberano como um nome de referência e fama
incontestável. Por contraste, Massini, Daruge, Molina, Muñoz, Tochetto, Veloso de
França etc. passaram, paulatinamente, a figurar como desafetos e adversários. Por
justaposição, as entidades e instituições a eles relacionadas surgiram como antagônicas,
como é o caso do Instituto Oscar Freire, na USP, a Sociedade Brasileira de Medicina
Legal ou outros IMLs, Institutos de Criminalística ou universidades. Para Palhares, a
proeminência do DMLE:

“trouxe uma enorme insatisfação dentro no Instituto Médico Legal de


São Paulo, porque os casos mais complicados passaram a ser vistos
por nós, ou revistos até. Isto causou um certo ciúmes, sem que nós
tivéssemos nenhuma intenção disso” (Entrevista realizada em outubro
de 2016).

Eu complementaria que os desafetos excediam, e muito, as circunscrições do


IML de São Paulo, ou mesmo as rusgas dentro do estado de São Paulo, encenadas por
meio de instituições universitárias como a USP e a Unicamp. Trataram-se de vaidades
229

pessoais que flertavam com quimeras – bem reais – como especialidades, centros de
referência, destino de verbas, constituição de “escolas” e “linhagens acadêmicas” etc.
(SIGAUD, 2007). Como argumenta Sigaud (2007, p.151), “a via clássica e menos
arriscada para atingir tal objetivo [construir um nome] é aliar-se ao mainstream, seguir
os grandes nomes”. Isso para, em seguida, distinguir-se, construindo um nome, uma
posição e/ou uma teoria no sistema acadêmico216.
Em diálogo explícito com inúmeros conceitos desenvolvidos pelo sociólogo
Pierre Bourdieu – campo, capital científico e noções como delegação e palavra
autorizada217 – Sigaud (2007, p. 152) ilumina as muitas estratégias que autores e
profissionais universitários utilizam para “ser[em] escutado[s] e reconhecido[s] como
um membro pleno” do “mundo acadêmico”. Tal como sugere a autora, ao tomar como
exemplo Levi-Strauss218, Palhares, como professor recém-contratado pela FCM, depois
de completar sua graduação e de se doutorar em 1985, pela Unicamp, almejava projetar
o DMLE e – a si próprio – ao mesmo lugar dedicado a outros departamentos, institutos
e personalidades de renome no campo da medicina legal.
A princípio, era fundamental render homenagens à forma pela qual o
departamento de medicina na USP estava estruturado e figurava como exemplar.
Todavia, a implementação do departamento de medicina legal na FCM da Unicamp se
tornou, ao longo de sua consolidação, um projeto de dissidência219. A cadeira de

216
Para a antropóloga, tais processos instauram uma “doxa”. Ou seja, “uma crença sem comprovação”
veiculada por “grandes nomes” cuja opinião e intepretação retiram suas garantias das posições de
prestígio ocupadas por tais eminentes professores dentro do mundo acadêmico.
217
No primeiro capítulo desta tese faço um uso estratégico das ideias de delegação e autoridade, tal como
desenvolvidas por Bourdieu (2008) e utilizadas por Sigaud (2007). Contudo, nesse capítulo será
impossível recompor com densidade o “campo acadêmico” da medicina legal, bem como, suas dinâmicas
e estratégias particulares no caso de São Paulo. Alguns desses desdobramentos estão em meus futuros
empreendimentos de pesquisa.
218
Faço menção às interpretações feitas ao artigo de Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva, por Lévi-
Strauss. Segundo Sigaud (2007), tal uso de Lévi-Strauss teve por efeito consagrar uma certa leitura da
obra de Mauss, para que por intermédio dela, Lévi-Strauss pudesse se inserir no mundo acadêmico
francês, cuja mecânica pressupõem enunciar a si mesmo como um seguidor de um mestre (Mauss) para
em seguida distinguir-se dele, apontando um “erro que lhe permitia fazer avançar sua própria teoria e
superar Mauss” (SIGAUD, 2007, p. 139). A “a crença da justeza de suas interpretações” aliada à
“ascensão de nossos dois personagens na hierarquia de prestígio dentro e fora do mundo dos
antropólogos” permitiu que os difusores que os seguiram, seus alunos em especial, jamais retornassem
aos exemplares de Mauss “para verificar a pertinência das interpretações” veiculadas por Lévi-Strauss
(Idem, p.151).
219
Aqui gostaria de salientar que a formação do DMLE é praticamente concomitante à consolidação da
Faculdade de Ciências Médicas e da Universidade Estadual de Campinas, ambas fundadas, em meados
dos anos 60, como centros de excelência. No site destinado a história institucional da faculdade de
Ciências Médicas da Unicamp, há inúmeras informações sobre tal processo de criação e consolidação.
Chama atenção que, em tal memorial, a faculdade de medicina seja comparada a uma espécie de
“embrião” da própria Universidade Estadual de Campinas. Isto porque, a universidade foi oficialmente
fundada em 1966, ao passo que a faculdade de medicina já se encontrava em funcionamento desde 1959,
230

medicina legal e ética, para a qual Badan Palhares foi aprovado em função da
aposentadoria compulsória de seu orientador Arnaldo Siqueira, era um primeiro passo
de um curto caminho que o levou, em outubro de 1986, a ser empossado, pelo diretor da
FCM, como chefe do departamento. Segundo Palhares, como aluno, orientando e
assistente de necropsia de Arnaldo Siqueira, o professor teve papel fundamental em
torná-lo conhecido junto à Sociedade Brasileira de Medicina Legal e no campo da
medicina legal. Arnaldo Siqueira, por sua vez, comandou o IML de São Paulo durante
os “anos de chumbo” e foi acusado de omissão em muitos laudos fraudulentos
produzidos pela instituição220. Sem dúvida, a proximidade e a distância de Palhares com
a ditadura se apresentam como um entre tantos aspectos que tornam ainda mais
intricadas as tramas políticas, institucionais e acadêmicas nas quais ele se inseriu. As
homenagens prestadas a Harry Shibata, publicadas em sua autobiografia, e sua relação
estreita com Romeu Tuma requalificam rumores, boatos e intrigas.
Por intermédio desses efeitos de luz e sombra, toda essa trama que se desenrola
pelos corredores da Unicamp, também deixa à mostra o IML de Campinas. Mesmo em
baixo relevo, o IML da cidade, por conexões semelhantes àquelas forjadas entre o
Instituto Oscar Freire e o IML da capital, figurava no cenário nacional. Como afirmou
Zappa, durante a entrevista a mim concedida, as instituições naqueles tempos – mas, eu
diria desde sempre – eram personificadas por meio de nomes cujas carreiras
conjugavam, simultaneamente, o cargo de médico-legista à atuação de professor
universitário em medicina legal. São posições que se retroalimentam. Nesse sentido,
Badan Palhares era um nome de repercussão cuja existência vinculava legistas e o
próprio IML de Campinas aos casos investigados no DML. O nome de Antônio
Francisco Bastos é um bom exemplo dos procedimentos que busco salientar. Bastos
integrou a equipe de legistas que seguiu a Maceió para a realização da segunda perícia
do caso PC Farias. Contudo, ele não era professor do DMLE. Ao contrário, era amigo
pessoal de Palhares e, na época, atuava como médico-legista e diretor do IML de
Campinas221.

devido ao projeto de lei escrito pelo deputado estadual Ruy de Almeida Barbosa. Para ver mais:
https://www.fcm.unicamp.br/fcm/historico/1946-1962.
220
Segundo reportagem publicada pela revista Fórum, em 2012, Nelson Massini teria questionado
Siqueira sobre seu envolvimento com a ditadura, quando foi chefe do DMLE, entre os anos de 1989-
1991. Siqueira, entre lágrimas, teria afirmado a Massini que “tinha filho para criar” (Revista Fórum, 27
de junho de 2016).
221
Bastos, mais tarde, foi acusado de facilitar o roubo de 300 kg de cocaína apreendida pela Polícia Civil
e armazenada nas dependências do IML (Folha de São Paulo, 03 de fevereiro de 1999, capa). Palhares
231

Assim, a universidade era apenas um dos flancos de batalha. Durante o tempo


em que foi secretário da Sociedade Brasileira de Medicina Legal e Criminologia222, num
período em que Rubens Brasil Maluf era o presidente, Badan Palhares tentou
implementar protocolos e consolidar equipes multifuncionais de legistas e peritos que
atuariam nas cenas de crimes. Seu desejo era fruto de sua própria trajetória:

“quando eu entrei no IML, eu tive algumas dificuldades para


entender determinadas mortes. O aspecto médico-legal não me dava
confiança de poder afirmar determinados diagnósticos. (...) Foi então
que eu acabei me aproximando de peritos [mais velhos] e pedindo
para acompanhá-los quando eles fossem fazer um caso fora. E isso
me deu uma visão muito diferente do campo, da perícia de local e da
perícia médico-legal. (...) Eu passei a ter um conhecimento para
poder entender certas reações que ocorrem no corpo depois e antes
da morte. (...) É isso que talvez me diferencie ou me diferenciou de
outros colegas médicos-legistas” (Entrevista realizada em outubro de
2016).

Como busquei indicar até aqui, o IML de Campinas e as conexões políticas e


periciais através dele gestadas servem de suporte legal, ou “checkpoint”
(JEGANATHAN, 2004) estratégico às pretensões periciais do departamento. Ou seja,
casos vinham à Unicamp porque o Palhares era legista do IML. Do mesmo modo, a
construção do DMLE reorientava as relações estabelecidas entre o IML de São Paulo e
o IML de Campinas. Este último construído no interior do estado de São Paulo e
institucionalmente em dependência técnica e administrativa de um “centro exemplar”
(GEERTZ, 1999) de perícia localizado na capital do estado. Como sede do Instituto
Médico Legal, o prédio imponente de São Paulo tem um efeito de centralidade e
exemplaridade administrativa e tecnológica frente a outros núcleos periciais espalhados
pelo interior do estado. Acredito que, tal como assinala Geertz (1999), também no caso
de subordinação dos IMLs à sede da instituição, localizada em São Paulo, há uma
representação cênica e teatral do poder223. Como argumenta Vianna (2002), tais

(2007), em contraposição, salienta a injustiça dessas acusações e relaciona indiretamente tais eventos às
intrigas em curso durante o caso PC Farias.
222
Entidade que mais tarde ele escolheria por não fazer parte, evitando, inclusive, os eventos de medicina
legal organizados por seus membros.
223
Como demonstra o autor, as manifestações rituais levavam à cena, no contexto de Bali, os principais
temas do pensamento político balinês: “o centro é exemplar, o status é o terreno do poder, a arte de
governar é uma arte teatral” (GEERTZ, 1999, p.152). Tal formulação tinha o mito de organização dos
reinos de Bali como horizonte: a fundação de uma corte javanesa era, aos olhos dos balineses, não apenas
um centro de poder, mas um padrão de civilização. A crescente diversidade oriunda da dissolução de uma
unidade devido ao processo de dispersão que culminou numa “pirâmide acrobática de reinos” era,
todavia, assentada nos processos cerimoniais e de prestígio (relações de suseranias e vassalagens
232

“encenações [são] parte das técnicas do próprio poder em exercício” e do IML como
peça que compõe as instâncias estatais no âmbito da segurança pública.
Mas, o que significa coexistirem no estado de São Paulo dois departamentos de
medicina legal de renome e fama? Quais os efeitos de um legista de uma cidade do
interior ter projeção como o “herói nacional” para o ofício? Como um departamento
inquestionavelmente tão jovem, se comparado ao Instituto Oscar Freire, poderia
sustentar sua meteórica notoriedade? Como Palhares, concursado em um IML
localizado no interior do estado de São Paulo, capitaneou tantos holofotes? Qual o papel
dos veículos midiáticos na projeção e ruína profissional de Badan Palhares?
No caso Mengele, Palhares é chamado a determinar a origem anatomopatológica
da fístula encontrada na região malar do carrasco. Ao fazê-lo, acaba por borrar a autoria
da identificação que já havia sido realizada pelo IML de São Paulo. O busto de cera
com as feições de Mengele, jovem e envelhecido, arremata a “confirmação” definitiva,
mas, ainda assim, somente “altamente provável” do esqueleto encontrado em Embu das
Artes. Tal resultado consequentemente dá projeções nacionais ao DMLE, a Campinas e
a Badan Palhares. Já no caso de Perus, outros expedientes são empreendidos. A imensa
expectativa de identificação acerca de uma quantidade descomunal de ossadas lança
dúvida às habilidades de Palhares. A certeza atestada quanto à identificação de
Frederico Mayr, Denis Casemiro e outras quatro ossadas individualmente enterradas em
Perus contrasta com as reticências em reconhecer, com rapidez e eficiência, as ossadas
exumadas em Xambioá, como sendo de Maria Lucia Petit da Silva. O longo tempo e as
ineficiências em torno do Projeto Perus anunciam um descontentamento que acabaria
por envolver o DMLE numa espiral de descrédito. O caso PC Farias, por sua vez,
inflama um período de acusações, já em curso e irreversível, contra Badan Palhares, o
departamento e a medicina legal campineira que engloba inevitavelmente o IML como
aparato técnico e pericial
As polêmicas sobre a altura de Suzana Marcolino deflagram, de modo veemente,
tais conflitos. Por meio dos mesmos expedientes de repercussão e memória, a Folha de
São Paulo contribuiu, preponderantemente, para essa mudança de rota: “Estudo de
Badan derruba seu próprio laudo”/ “4 ossadas de Perus confirmam método de legista”
(Folha de São Paulo, 5 de maio de 1999, p. 13). As medidas feitas de modo indireto e
usadas por Palhares para produzir os dados antropométricos das ossadas enterradas em

simultâneas). Esses últimos, por consequência, desvelavam as frágeis relações de subordinação, tal como
a imagem de um castelo de cartas.
233

Perus passam, naquele momento, a ser utilizadas contra ele. As conexões entre os casos
que levaram à visibilidade e à consolidação do DMLE e de Palhares serviam também
para justificar seu descrédito.
Como salientaram os jornalistas Cesar Guerrero e Gustavo Maia, em reportagem
a Isto é Gente, intitulada “O calvário de Badan Palhares”:

“As hostilidades tornaram-se rotineiras na vida de Badan Palhares.


Foram muitas desde a primeira acusação de que teria fraudado o
laudo da morte de Paulo César Farias, o tesoureiro da campanha do
ex-presidente Fernando Collor. Na esteira desse caso, seu nome
também foi citado na CPI do Narcotráfico e alguns deputados que
investigam o crime organizado em Alagoas pretendem, neste mês,
pedir o indiciamento de Badan” (GUERRERO; MAIA, s/d).

Assim, como sugeriu Neves pouco antes de se despedir de mim, em 2015,


depois do caso PC Farias, Badan Palhares teria ficado “desgostoso”. Seu afastamento,
por escolha ou por indicação da própria reitoria, viria no bojo de inúmeras acusações e
suspeitas contra o legista: enriquecimento ilegal, uso indevido de equipamentos da
universidade, apropriação ilegal de descobertas científicas, entre outras coisas.
Diante de tanta “repercussão”, também as denúncias se espalharam como
rastilho de pólvora224. Tudo passou a ser posto em dúvida: do microscópio doado à
Unicamp, mas mantido durante dez anos no laboratório particular de Badan Palhares
(Folha de São Paulo, 12 de março de 1999, p. 8), à ação movida por Nelson Massini por
danos morais e apropriação indevida do trabalho de reconstituição de Josef Mengele
(Folha de São Paulo, 18 de novembro de 1999, p.16) ou mesmo a indicação mal-
intencionada de Palhares por Tuma a Suruagy, governador de Alagoas. Nelson Massini
era, mais uma vez, o algoz de Badan Palhares:

“De acordo com Massini, Tuma teria (...) ligado para Divaldo
Suruagy sugerindo que Palhares entrasse no caso, Suruagy teria
enviado um ofício para a Unicamp, onde Badan Palhares trabalha,
pedindo que ele fosse cedido para as investigações. ‘Ele não foi
convidado pelo Ministério da Justiça, mas pelo governador de
Alagoas’, disse [Massini]” (Folha de São Paulo, 26 de novembro de
1999, p.5).

224
Ao usar o termo repercussão, portanto, gostaria de chamar atenção aos “efeitos que [determinado caso
pericial] pode vir a provocar em diferentes âmbitos de intervenção, para além de seu alcance social ou
midiático” (EILBAUM; MEDEIROS, 2015, p. 415). Nesse sentido, busco lançar luz àquilo que esses
casos incitam, tanto pela espetacularização política e midiática que expõem quanto pelo tipo de
engajamento institucional e pessoal que agenciam.
234

As denúncias de falsificação, venda de laudos e imperícias são tecidas contra a


figura de Badan Palhares, mas contaminam de maneira irreversível o próprio DMLE.
Nesse sentido, a extinção do departamento, em 1999, aparece como a solução possível e
necessária frente à onda de rivalidades e animosidades instalada junto ao próprio
DMLE. Zappa, durante sua entrevista, afirmou que logo depois de entregar o relatório
final sobre as ossadas de Perus ao reitor da Unicamp, em 1997, decidiu pedir demissão:
“o clima de conspiração deixava o trabalho no DMLE impossível”. A autobiografia de
Palhares afirma, claramente, como as disputas internas ao próprio departamento selam
seu destino: uma “pá de cal” em todo o processo idealizado por ele, que culminou na
departamentalização do DMLE, em meados dos anos 80, e em inúmeras perícias e
identificações, legado ao mesmo tempo técnico e científico. Na contramão da exaltação
destinada a tais produções “acadêmicas”, a reportagem veiculada pelo jornal Diário do
ABC, em dezembro de 1999, afirmava:

“A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) anunciou nesta


terça-feira a extinção do seu Departamento de Medicina Legal
(DML). A decisão foi tomada pelo Conselho Universitário, com 40
votos a favor, 13 contra e quatro abstenções. A medida, porém, não
implicará no fim das atividades desenvolvidas pela unidade, que
deverão ser distribuídas para outros departamentos. Ao votar pela
extinção do DML, o Consu acatou a proposta da Congregação da
Faculdade de Ciências Médicas e da Comissão de Ensino e Pesquisa.
Em março, as duas entidades haviam sugerido o fim da unidade,
alegando baixa produtividade científica, ausência de pós-graduação e
falta de residência médica” (Diário do Grande ABC, 21 de dezembro
de 1999).

As alegações de “baixa produtividade científica”, feitas por parte da


Congregação da Faculdade de Ciências Médicas e da Comissão de Ensino e Pesquisa,
desconsideravam, portanto, os inúmeros casos de relevância política e científica
forjados em cooperação com o IML de Campinas ou sob a responsabilidade direta do
DMLE, aos cuidados de Badan Palhares e Nelson Massini, por meio da condição de
chefia alternada entre eles, durante as décadas de 80 e 90. Como argumentou Zappa:

“a questão é que todos os professores eram técnicos e muito voltados


para a realização de perícia. Não se tinha o investimento em
publicação e produção teórica sobre perícias realizadas. Quem fez
um pouco mais foi o próprio Badan” (Entrevista realizada em
setembro de 2016).

A queda meteórica de Palhares foi concomitante ao apagamento de seus


trabalhos, do DMLE e de Campinas em reportagens como as produzidas pelo Fantástico
235

sobre o caso Mengele, em 2016. Ou ainda, sustenta as críticas que Ricardo Molina,
último chefe do departamento, passou a orientar aos relatórios fornecidos para o
“Projeto Perus”, ao próprio departamento e à Unicamp.
As tramas políticas e institucionais que acabaram por extinguir o DMLE,
semelhante àquilo visto por Gregori (1999)225, encerram um projeto de perícia e de
medicina legal. Como afirmou o próprio Badan Palhares:

“Lá na Unicamp, nós tínhamos muita coisa a ser feita. Infelizmente, a


Unicamp perdeu esse campo no país. Hoje, ela não tem nada. Hoje,
não temos mais departamento. Hoje, temos apenas a disciplina de
medicina legal. Era um departamento de mais de 1400 metros
quadrados!!! [ênfase]. Nós tínhamos praticamente tudo para ser,
como fomos, um ponto de apoio para a medicina legal nacional”
(Entrevista realizada em outubro de 2016).

A magnitude física do DMLE e suas pretensões de ser “um ponto de apoio para
medicina legal nacional” eram entremeadas pela visibilidade que Palhares buscava
alcançar. Ao me contar sobre suas aspirações profissionais, Palhares afirmou: “você
nunca mais ouviu falar em repercussão médico-legal em lugar nenhum. Acabou!”
(Entrevista realizada em outubro de 2016).
Sem dúvida, seu perfil de legista era profundamente diferente daqueles com
quem me relacionei ao longo dos meus quatro anos de pesquisa, circulando por
universidades, IMLs, palestras e cursos de formação que tinham a medicina legal ou a
perícia criminal como objeto de reflexão e atuação. As “investigações tipo CSI”,
formuladas por muitos legistas mais jovens como irreais ou idílicas, tinham, nas
ambições de Palhares, um lugar de destaque. Como “herói nacional”, vilão e pessoa
não grata à medicina legal, a trajetória de Palhares revela, como afirmei no capítulo IV,
uma “miríade de acontecimentos entrelaçados” e “uma multidão de erros e fantasmas”
(FOUCAULT, 1979, p.28). Daí minha ênfase em nomear seus casos por meio da
expressão arquivos malditos. Ao usar o termo, lanço luz ao caráter, simultaneamente,

225
Gregori (1999) mostra como a fase áurea da instituição da Secretaria do Menor resultou num
paralelismo cujas consequências políticas acabaram por enfraquecer a implementação de novas políticas
de atuação junto à infância. Dependente da boa vontade de políticos e gestões públicas, a Secretaria
conseguiu melhorar sobremaneira os serviços de atendimento, investindo em salários, equipamento e
recursos humanos. Contudo, não conseguiu criar “coalizões ou alianças nem no interior do campo
institucional do governo, nem em suas relações com as entidades organizadas da sociedade civil”.
(GREGORI, 1999, p. 178). A variedade de tais entidades e de atuações – alimentar, abrigar, documentar
ou reaproximar os menores de suas famílias – levavam a fragmentações e circularidades institucionais
insolúveis. A rebelião na Febem, em 1992, instaurou uma crise já em curso. O desmanche dos antigos
programas foi inevitável. A Secretaria da Criança que surgiu em seguida, apostou numa nova forma de
gestão, calcada em convênios e parcerias que, na prática, desmantelavam toda uma densa trama
institucional sob a égide do estado.
236

invejável, nocivo e prejudicial que os laudos tiveram na carreira e nas instituições pelas
quais Badan Palhares circulou. Ao fazê-lo, contudo, não busco frisar qualquer
propriedade mágica imposta a esses artefatos. No sentido de que eles – os laudos e suas
cópias organizadas em arquivo – foram amaldiçoados em função de uma sequência de
acontecimentos ocasionados por obra do azar ou da praga de outrem. Antes, intento
salientar os enredamentos insolúveis entre papéis, pessoas e instituições. Se
documentos, nos termos de Navaro-Yashin (2007, p. 87), “carregam a imagem da
prova, da estabilidade e da durabilidade”, também guardam, em suas entranhas, todos os
aspectos “kafkianos” de sua feitura: as ansiedades, os absurdos e outras explosivas
fantasmagorias (erros, intenções escusas e obscuras, ligações políticas perigosas etc.).
Desse imaginário de enigmas e mistérios, a ânsia de Palhares em ter controle de
todos os elementos que, fragmentados e apartados, conformam um crime rendeu a ele a
pecha de o “resolvedor de casos”. Todavia, sua figura centralizadora confronta com as
lógicas pelas quais cargos, funções, especialidades, atribuições, vaidades, relações
pessoais e burocracias são distribuídas em malhas administrativas que enredam
universidades, IMLs, distritos policiais, entidades de direitos humanos, secretarias
municipais e estaduais etc.
Badan Palhares é um nome e uma assinatura. Há um contraste imediato entre os
casos por ele periciados e aqueles que, no terceiro capítulo desta tese, aparecem
assinados por legistas cujos nomes são invisibilizados pelo cargo e pela função oficial
de médico-legista que exercem. Segundo Carvalho, tal contraste desvela duas formas de
produzir provas colocadas em disputa. A primeira delas remontaria aos longínquos
ensinamentos do direito romano e resultaria numa formulação bastante simples: um
determinado ato tem (ou não) materialidade. O legista ou o perito, com vistas a
produzir seu laudo, observa o corpo, o local dos fatos, faz suas anotações e encerra o
documento médico ou pericial determinando se há ou não elementos materiais: lesões,
substâncias, digitais etc. A segunda, ancorada em práticas de perícia desenvolvidas em
solo norte-americano, teria como máxima a frase: “tudo nos leva a crer” ou “diante dos
elementos encontrados, a dinâmica dos fatos mais convincente...”. Nesse tipo de prática
forense, uma cena é remontada baseada na ordenação racional ou coerente das
informações e fatos levantados em diferentes áreas investigativas: legistas, peritos de
local, resultados laboratoriais e inquirição policial. O resultado é a formulação de uma
hipótese mediante uma peça coesa aos moldes CSI.
237

Fruto de atuações e horizontes inconciliáveis, os efeitos de tais procedimentos de


perícia são também distintos. No primeiro caso, muitos crimes podem acabar sem
solução e muitos criminosos permanecerão soltos, diante da “falta de materialidade”.
No segundo cenário, crimes serão resolvidos e criminosos presos. Entretanto, alguns
inocentes serão condenados mediante a aceitação de teses ou convicções e não pela
“materialidade do crime”. Carvalho, adepto da primeira linhagem, destaca o caráter
subjetivo e hipotético imposto ao segundo modo de se conduzir um estudo pericial e
cita um compêndio de crimes de grande repercussão política, moral e midiática que,
orientados por tais concepções seriam, portanto, carentes de materialidade.
Nesse sentido, o caso PC Farias parece exemplar. Com fins criminais, os laudos
necroscópicos e de perícia de local amplificam os efeitos impostos ao ato de concluir.
Segundo Badan Palhares e a equipe por ele chefiada, Suzana matou PC Farias e, em
seguida, cometeu suicídio. Ao leitor, pode parecer confuso, mas a “causa médica” da
morte de PC Farias ou de Suzana não foi o homicídio ou o suicídio atestado. Dizeres
como, por exemplo, “traumatismo por projetil de arma de fogo” ou “hemorragia
aguda interna por projetil de arma de fogo” foram, talvez, os termos médicos anotados
no laudo necroscópico destinado ao cadáver de Paulo Cesar Farias e ao de sua
namorada. O “homicídio” de PC, sob autoria de Suzana, ou o “suicídio” de Suzana
Marcolino são “causas jurídicas” que unem, num mesmo artefato pericial, cadáveres e
a “dinâmica dos fatos”: como os fatos ocorreram, qual a dinâmica dos corpos, as
posições, a trajetória do projétil, a consecução das mortes. Todas as “supostas”
conexões entre esses elementos transformam relatórios de necropsia em tomos de
perícia coerentes e integrados. Esses ‘estudos periciais’ são, entretanto, teses ou ilações
construídas por meio de elementos observáveis (mas, substancialmente subjetivos)
tecidos “por convicção” pelo legista/perito.
A incerteza que incomoda a leitura dos laudos de corpo de delito que são objeto
de reflexão do terceiro capítulo desta tese é, portanto, redimensionada à luz dos casos de
repercussão assinados por Palhares. Lá, nos laudos de conjunção carnal e ato libidinoso,
os legistas insistem em concluir a “causa médica”. Ao executarem tal técnica narrativa
e médico-legal, esses profissionais acabam obrigatoriamente por ser (in)conclusivos
quanto à relação entre hímen, sua roturação e o estupro como “causa jurídica”. Em se
tratando da autoria do crime, são ainda mais (in)conclusivos uma vez que são raríssimos
os relatórios fornecidos pelo Instituto de Criminalística em casos de estupro e ato
libidinoso. Já, aqui, nos laudos – ou melhor, nos estudos periciais – forjados por
238

Palhares, os supostos elementos “vistos e observados” foram descritos, mas, ao final,


uma tese sobre o crime ou sobre o caso é afirmada. Uma autoria (ou uma identificação)
é determinada.
Se, como sugeriu um dos legistas de Campinas, “não se pode falar qualquer
bobagem”, sem dúvida, o próprio ato de periciar encerra uma série de contenciosos,
confrontos e desconfianças. As perícias designadas a Palhares e os laudos por ele
assinados apenas realçam tais potencialidades. O risco de perder um nome – ou de
destruir a instituição – é diretamente proporcional aos efeitos impensáveis veiculados
por esses dispositivos que são técnicos e/ou científicos, mas atuam e concorrem no
sistema de justiça e nas arenas políticas como a “verdade material dos fatos”.
Vista por esse ângulo, a ideia de materialidade ou vestígio recorrentemente
acionada pela medicina legal, tanto para casos de rotina quanto para casos de
repercussão, é, portanto, um poderoso ardil; uma quimera. Lesões, equimoses,
respingos de sangue, dados antropométricos, fístulas ou a trajetória de um projétil não
são pontos cintilantes, fruto de um “olhar livre de interpretação”, que emergem de
cadáveres, ossadas ou cenas de crime para serem, finalmente, colhidas pelo especialista
(ORTEGA; ZORZANELLI, 2010, p. 38). Sem dúvida, materializar vestígios é um fazer
técnico e burocrático com significativas repercussões políticas.
Como destaquei, no início do capítulo IV, a partir de Boltanski (2004), a
denúncia como forma retórica e narrativa exige que espectadores e agentes abandonem
a indignação e instaurem uma investigação (inquérito), a fim de desmascarar uma
verdade escondida sob as aparências ilusórias. Tal movimento, como sugere o autor,
exige que o espectador (distante e imparcial) se desapegue do sofrimento vivido pela
vítima e dirija sua atenção ao algoz, buscando detalhes, objetos, lugares e datas que
fundamentem a acusação. Tais efeitos, todavia, são amplificados e tensionados ao
extremo quando um personagem (nada neutro) transforma ‘informações’ e ‘fatos’ em,
simultaneamente, notícia e novela (LOMNITZ, 2014).
Os jornais, na figura da Folha de São Paulo, desempenharam papel
preponderante numa espécie de deslocamento perverso. Em todos os casos, mas, em
especial no caso PC Farias, a imprensa, semelhante ao descrito por Lomnitz (2014,
p.99) no México, ditou “o ritmo do caso”226. Ou seja, denunciou um crime cuja autoria

226
Lomnitz (2014) mostra como, no caso Arroyo, o periódico El Imparcial gozava de uma posição
privilegiada frente a outros jornais mexicanos. Tal lugar respondia, por um lado, aos fortes subsídios que
o jornal recebia do governo de Porfirio Diaz e, por outro lado, condizia à escolha do periódico pelo
239

havia sido construída como um mistério. As teias de corrupção que envolviam PC


Farias eram, por obviedade, o motivo de seu assassinato. Era sobre tal algoz que
recaiam acusações, fatos e teorias conspiratórias. O espectador era convocado a se
indignar contra seus representantes e a ‘velha’ política de conchavos e relações
obscuras. A perícia local, rápida e inesperadamente, arranhava o enredo e as tramas
detetivescas veiculadas. O crime passional exigia um “herói”, distante o bastante, para
não se corromper pelos ardilosos conluios entre a polícia, os peritos e a elite política
alagoana, representada pela família Farias e por seus aliados políticos. Badan Palhares
solucionaria o mistério. Suas conclusões periciais, porém, ratificavam Suzana
Marcolino como a única algoz de PC Farias. Daí em diante, outra denúncia era colocada
em curso. O “herói nacional” passava paulatinamente a figurar como vilão; ele era
enredado em esquemas obscuros e detalhes intrigantes e insolúveis que conformam o
caso e sua grande repercussão pública.
Assim como salienta Lomnitz (2014), sob a aparente neutralidade, objetividade e
imparcialidade, “a Folha”, tal como El Imparcial no contexto mexicano, era uma “voz
que precisava ser ouvida por todos na busca por pistas e motivações ocultas”
(LOMNITZ, 2014, p. 100)227. Ao dar ênfase a tais fatos, todavia, não busco apontar a
Folha de São Paulo como a responsável pelo “debaclé” de Badan Palhares e do DMLE.
Ao contrário, procuro sublinhar que os jornais não estão alheios às tramas institucionais
e políticas aqui apresentadas, antes atuam e tornam ainda mais intricadas as tessituras
que alinhavam contendas, disputas e vaidades.
Nas páginas a seguir, numa espécie de desfecho possível, com vistas a costurar
os muitos fragmentos que formam esta tese, lanço a pergunta: ‘a que (ou a quem) serve

“descarado estilo sensacionalista”. Enquanto outros veículos de comunicação impressa no México


mantiveram uma certa cautela, por desconhecer as possíveis “ramificações políticas” do caso, o El
Imparcial, em função de seu “acesso privilegiado as fontes oficiais e fatos” e das técnicas narrativas,
assumiu a “liderança da narração” e transformou o caso Arroyo num “produto de consumo viciante”,
barato e de fácil compreensão (LOMNITZ, 2014, p. 98).
227
É preciso destacar que, diferente de Lomnitz (2014), não pretendi, nesses dois últimos capítulos,
reconstruir as formas pelas quais os jornais brasileiros, em especial a Folha de São Paulo, passaram a
investir esforços nesse novo estilo de jornalismo cujo solo se assenta sobre “roubo, brigas, assassinatos,
toda a maldade da cidade ou da vila”. Na investigação produzida pelo autor, o caso Arroyo marca a
ascensão de uma nova figura: o repórter. Tal personagem procura histórias pessoais que ajudem o
espectador a conhecer melhor os envolvidos no caso, organiza entrevistas de policiais e de autoridades
políticas, desvela as intrigas e as imagens que conectam os protagonistas ao “drama” (LOMNITZ, 2014,
p. 100). Acredito que, qualquer comparação dessa envergadura exigiria, para o caso brasileiro, uma
pesquisa preocupada em analisar as formas pelas quais os periódicos nacionais se constituíram e atuaram
no país, desde sua criação até as técnicas detetivescas colocadas em ação durante os anos 90. Nesse
sentido, meus investimentos analíticos em torno das amplitudes, dos impactos e das influências da mídia
impressa brasileira são tímidos e se desdobram em questões sobre as quais pretendo me debruçar em
futuras pesquisas.
240

um laudo?’ Ou melhor, ‘quais conclusões e justiça para quais corpos, cadáveres e


contextos?’.
241

Notas finais. Dos muitos fragmentos que fazem o Estado: os (des)caminhos


entre ciência, aparato policial e políticas de justiça e reparação.

“Entendo (...) que existam situações específicas [de acesso] como a pesquisa
e a estatística. As prefeituras, por exemplo, utilizam os dados única e
exclusivamente com finalidade estatística e devem pesquisar os diagnósticos
nos laudos e fazem isso. Não fosse assim, ninguém faria estatística. No caso
da Prefeitura Municipal de Campinas, os laudos são liberados todo mês
para alimentar o banco de dados” (Caderno de Campo).

Ah, é claro que sua pesquisa foi negada. Você é de Campinas, da Unicamp.
Se você fosse da USP ou se você quisesse pesquisar o IML de São Paulo
[reticências], tenho certeza que eles aprovariam (Caderno de Campo).

“De fato, o saber que o Estado tem que constituir de si mesmo e a partir de si
mesmo, esse saber correria o risco de perder certo número dos seus efeitos
e não ter as consequências esperadas se, no fundo, todo mundo soubesse o
que acontece. Em particular, os inimigos do Estado, os rivais do Estado,
não devem saber quais são os recursos reais de que este dispõe em
homens, riquezas etc. Logo, necessidade de segredo. Necessidade, por
conseguinte, de pesquisas que sejam coextensivas ao exercício da
administração, mas também à necessidade de codificação precisa do que
pode ser publicado e do que não deve sê-lo (FOUCAULT, 2008, p. 367).

Em outubro de 2015, o governo estadual de São Paulo ganhou as páginas de inúmeros periódicos e sites de notícia do
país. A manchete publicada no El País Brasil era exemplar quanto à denúncia em curso: “Os segredos que o governo
Alckmin tinha e ninguém sabia” (El País Brasil, 17 de outubro de 2015, online). A reportagem, assinada por Gil Alessi e
Marina Rossi, desvelava os enredos soturnos que teriam levado o governo do estado a decretar o sigilo de cem anos
para documentos públicos produzidos em empresas e autarquias estaduais como a Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos (CPTM), a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), a Companhia de Saneamento Básico
do Estado de São Paulo (SABESP), a Polícia Militar (PM) e a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Sem
divulgar a origem das fontes mencionadas, a denúncia chegou a público depois que “jornalistas (...) pediram
informações via Lei de Acesso e receberam como resposta que essas [informações] eram secretas” (idem). Dentre os
documentos protegidos e inacessíveis, estariam projetos técnicos e operacionais, relatórios de obras, boletins de
ocorrência, regimes de gestão etc. A matéria jornalística reunia, ainda, inúmeros especialistas – advogados,
promotores, professores de gestão pública e especialistas em temas como transparência das instâncias estatais –
para opinar sobre os motivos e interesses por trás de tal impedimento de acesso. Termos como “transparência”,
“interesse público”, “improbidade administrativa” ou “legalidade” organizavam a cena. O governador do estado de São
Paulo, Geraldo Alckimin (PSDB), frente às polêmicas, tomou medidas paliativas. Como sugeriram os repórteres do El
País Brasil, “Alckimin anunciou a criação de uma comissão para avaliar os documentos sob sigilo. Na sexta-feira [16 de
outubro], publicou no Diário Oficial um decreto no qual revoga a classificação secreta dos documentos e limita que
242

essas decisões só poderão ser tomadas por ele mesmo ou seu vice, secretários de Estado e procuradores” (El País
Brasil, ibidem).

Terminei o último capítulo desta tese com a pergunta: ‘a que (ou a quem) serve um
laudo?’ Ou melhor, ‘quais conclusões e justiça para quais corpos, cadáveres e contextos?’.
Contudo, formular uma única resposta a tais indagações conforma uma armadilha. Não
acesso, laudos de corpo de delito, tramas e histórias pregressas de nomes e instituições não
perfazem, como busquei argumentar, uma somatória de partes que reunidas formam um todo
coerente e/ou estável. Por conseguinte, ao reunir, nestas notas finais, duas assertivas de meus
interlocutores, um trecho proferido por Michel Foucault (2008) e uma denúncia empreendida
contra o governo do estado de São Paulo, em 2015, busco enredar o leitor aos importantes fios
que perpassaram esta tese.
A primeira das assertivas, sobre a distinção/semelhança entre pesquisas acadêmicas e a
produção de estatística, versa sobre alguns dos esclarecedores diálogos estabelecidos junto ao
principal interlocutor de minha pesquisa. Com esta reflexão, tal médico-legista defendia que
minha pesquisa poderia ser comparada às estatísticas produzidas pela prefeitura municipal de
Campinas. Em vista disso, seu comentário também visava a estabelecer uma continuidade
entre esta minha investigação e aquela que eu havia realizado junto à DDM de Campinas
durante meu mestrado. Para ele, meu recorte empírico permitiria que eu viesse a compreender
e avaliar toda a “rede de atendimento” forjada na cidade para casos de violência sexual.
Nesse sentido, minha tese de doutorado, em seus termos, poderia ser convertida em uma
ferramenta política destinada a “otimizar” serviços e procedimentos.
A segunda frase me foi dita por um funcionário do IML, alguns minutos depois que eu
havia finalizado formalmente a entrevista que ele gentilmente havia me concedido. Com um
misto de humor e sarcasmo, o médico-legista que a proferiu acreditava que o indeferimento
de minha solicitação de pesquisa pela Comissão Científica do IML, localizada na capital,
guardava relações diretas com a instituição universitária na qual eu estava matriculada. Ser
aluna da UNICAMP, da área de ciências humanas e, ainda, pedir acesso para realizar uma
pesquisa junto ao IML de Campinas eram justaposições que, para esse legista, escondiam
tramas e conflitos que eram para mim, naquele momento, completamente nebulosos.
A epígrafe de Foucault (2008, p. 365), por sua vez, refere-se a um “conjunto de
conhecimentos técnicos” que, para o autor, buscam “caracterizar a realidade do próprio
Estado” naquilo que o filósofo chamou de uma nova razão de Estado. Vista à luz de uma
243

verdadeira intensificação, multiplicação e proliferação geral das técnicas de conduta, de


governo e de direção moduladas pela noção cristã de “pastorado”228, essa nova racionalidade
política moderna fez aparecer, para o autor, uma correlação direta entre a prática política e a
política como um saber específico, concreto, preciso. O projeto genealógico empreendido por
Foucault (2008) durante o mencionado curso, por sua vez, buscava delinear uma “rede de
alianças, de comunicações e de pontos de apoio” pela qual as relações de poder projetam o
Estado como uma “instituição totalizadora”, exterior e uma “coisa que existe por si”
(FOUCAULT, 2010. p. 306). Para o autor, ao se apresentar como um aparelho,
simultaneamente administrativo e de saber, essa nova razão de Estado é, essencialmente, uma
forma de conservação: ela identifica o que é necessário e suficiente para que o Estado exista,
mantenha sua integridade e amplie suas forças. O Estado aparece, portanto, como um
princípio de inteligibilidade, mas, também, é “o que deve ser”, isto é, um objetivo estratégico
(FOUCAULT, 2008, p. 385).
Justaposta aos argumentos de Foucault (2008), a denúncia sobre “os segredos que o
governo Alckmin tinha e ninguém sabia” retrata o esforço das instâncias estatais –
corporações, empresas, autarquias e órgãos públicos – em classificar e controlar aquilo que,
nos termos de Weber (2000), as “repartições” buscam documentar. Como um aparelho de
saber – as estatísticas, mas também pesquisas, relatórios contínuos, boletins etc. – delimitam
não aquilo que deve ser feito pelo Estado, mas, antes de tudo, quantificam os recursos, as
forças e tudo aquilo que existe e que é possível contabilizar e descrever por meio de medidas,
índices e quantidades. Entre eles: a mortalidade dos indivíduos, as riquezas do território, as
produções que circulam e são agremiadas por taxações e impostos, os crimes, prisões,
investigações etc. Por analogia, a transposição da rotina burocrática em números rememora,
também, os expedientes de trabalho – laudos preenchidos, papéis enviados e protocolados,
amostras analisadas etc. – e os arquiva como trabalho feito, executado e, em segurança,
exatamente, porque contabilizado e ‘morto’.

228
Há uma relação profunda entre “pastorado” e essa “nova racionalidade de Estado”. Como síntese de seus
argumentos, gostaria de enfatizar dois pontos fundamentais de tal imbricação. O primeiro deles é a ideia de que
o poder pastoral é um tipo de poder religioso que estabelece uma relação fundamental entre Deus e os homens.
É, nesse sentido, um poder que se exerce sobre o rebanho, um poder benfazejo, um poder do cuidado. O pastor
deve “zelar” por todo o rebanho, deve manter uma contínua vigilância sobre ele; deve cuidar do bem-estar de
todas as ovelhas do rebanho sem se esquecer de nenhuma ovelha individualmente. O segundo ponto sublinha a
maneira pela qual a Igreja cristã buscou coagular todos esses temas do poder pastoral em mecanismos e
instituições precisas e definidas. O poder pastoral, como pastorado, torna-se uma rede institucional densa,
complexa, compacta e que se espalha globalmente. Por conseguinte, configura-se como uma arte de conduzir,
dirigir, levar, gerir, controlar e manipular os homens. Torna-se, por assim dizer, o pano de fundo daquilo que
aparecerá, tempos depois, como governamentalidade.
244

Contudo, tal qual nos incita a pensar o excerto de Foucault (2008), “esse saber [que
caracteriza a realidade do Estado] correria o risco de perder certo número dos seus efeitos e
não ter as consequências esperadas” exatamente se explicitado e divulgado a ponto de “todo
mundo [saber] o que acontece” (FOUCAULT, 2008, p.367). Como um conjunto de
conhecimentos/procedimentos técnicos, os documentos da Sabesp, da PM ou da CPTM
especificam elementos e conteúdos, assim como emolduram as instâncias e setores do Estado
como uma totalidade cujas partes seguem orquestradas e coerentes. Como sugerem Mitchell
(2006) e Abrams (1988), tais mecanismos e práticas forjam e dão materialidade a um certo
“efeito de Estado” que, como uma formulação abstrata-formal, por um lado, serve de
postulado e de “cativeiro ideológico” e, de outro lado, trabalha exatamente a serviço do
mascaramento/apagamento da não coesão das práticas políticas e de governo 229 (ABRAMS,
1988).
Como busquei apresentar no decorrer desta tese, experimentei, ao longo de minha
pesquisa, diferentes modos pelos quais se nega ou se permite acesso àquilo que se demanda
ver, participar ou observar230. Argumentei que o não acesso é uma forma de acesso bastante
vigorosa. Se, como alerta Abrams (1988, p. 62), uma habilidade fundamental do poder estatal
é “reter informações, evitar a observação e ditar os termos de conhecimento”, então, ao me
arriscar nessa empreitada, intentei etnografar “o mundo dos segredos oficiais” não como algo
que está escondido, mas como técnicas que incitam a ver determinadas informações, termos,
relações e funções da instituição. Na contramão da crença de um fundo mais real, que deve
ser encontrado sob a face visível de dizeres, papéis e tramas, empenhei-me em evitar
unificações definitivas que reificassem o Estado como um ente que paira sobre todos nós231
(MITCHELL, 2006). Nesse sentido, as estratégias e os impedimentos de acesso a salas,
arquivos e funcionários ditam os termos de conhecimento pelos quais as mecânicas do poder

229
Abrams (1988) não fala apenas daquilo que, em certa medida, faz do abstrato concreto, mas, principalmente,
aquilo que dá existência ao não existente. (ABRAMS, 1988, p. 79).
230
Durante esta tese, muitos foram os momentos nos quais ter informações se assemelhava a ouvir um segredo.
Por contraste, muitas também foram as interações em relação às quais eu não sabia dimensionar o risco que eu
ou meu interlocutor corríamos, caso eu viesse a publicizar, de modo equivocado, certos relatos ou opiniões
concedidas sem cautela ou prudência.
231
Como salienta Mitchell (2006), é importante descrever as linhas internas que são continuamente traçadas sob
os mecanismos institucionais, os quais produzem uma ordem social e uma ordem política como entidades
discretas e apartadas. Tomando como exemplo as relações do governo americano com a empresa Aramco de
Petróleo, ou melhor, os consórcios que dão direito ao acesso ao petróleo da Arábia Saudita, o autor visa a
assinalar a permeabilidade da fronteira Estado-sociedade, bem como os significados políticos de mantê-la. O
caso Aramco demonstra como não existe um exterior real, assim como coloca em relevo que construir essa
fronteira é um mecanismo que gera recursos de poder, disfarça o papel desta empresa na formulação de uma
política internacional e sua força como parte da grande ordem política.
245

se proliferam e iluminam os muitos “checkpoints” impostos a vítimas, acusados,


pesquisadores e cidadãos.
Por contraste, aquilo que não se acessa está imbrincado ao que, por fim, somos
impelidos a ver. Ao dar atenção a entrecruzamentos e fragmentos disparatados, procurei não
obscurecer as táticas, estratégias, insígnias e relações que me permitiram circular, permanecer
e/ou conhecer perícias e peritos. Se pertencer à UNICAMP fecha algumas portas, estar
matriculada em um dos seus muitos cursos de pós-graduação, também, franqueia passagens
inimagináveis a outros setores ou instâncias ditas estatais232. Por essa razão, laudos de corpo
de delito para casos de estupro e ato libidinoso são emaranhados a necropsias, ossos e peritos
e perícias “tipo CSI”. O fazer técnico e oficial destinado a auxiliar a justiça interpela e
engendra as tramas políticas e institucionais que instituem e extinguem departamentos
universitários voltados à pesquisa e ao ensino de medicina legal. A universidade, portanto,
tece os enlaces pelos quais pude investigar o IML, sem, contudo, oficialmente atravessar suas
portas.
Ao escolher não inscrever o indeferimento a partir de um mero debate metodológico,
procurei não circunscrever o envio de papéis a processos por meio dos quais apenas se inicia a
pesquisa. Ao contrário, esforcei-me em examinar, com atenção, as técnicas pelas quais se
publicizam funções e cargos institucionais e se tramam e refazem, cotidianamente, acordos e
acessos em agências, órgãos ou corporações. Dar autorização, tal qual produzir laudos de
corpo de delito ou tomos periciais de impacto político e internacional, forja e coloca em risco
autoridades, nomes e carreiras. Os papéis que buscavam documentar a documentação tinham
por ambição adentrar ao organizado e (nada) empoeirado arquivo do IML. Entre leituras e
espiadelas, eu ultrapassaria a “falta primordial da etnografia fetichizada no encontro cara a
cara, das horas partilhadas no mesmo espaço e tempo entre pesquisadores e pesquisados”
(VIANNA, 2014, p.46). Tal qual nos manifestos metodológicos de Abrams (1988) e Mitchell
(2006), por meio de uma etnografia in loco e circunscrita a fronteiras institucionais
idealizadas e reforçadas, eu estaria apta a assinalar os dissensos, “ilegalismos” e disputas que
atravessam e dão carne ao cotidiano e aos expedientes do IML. Porém, essa pesquisa nunca
aconteceu.
Enfeitiçada pelas bibliografias e análises que desmitificam o Estado como uma
abstração, fui confrontada com o Estado (com letra maiúscula), aquele que não existe

232
Faço alusão aqui à pesquisa de mestrado que realizei junto à DDM de Campinas. Sem a autorização
concedida pela delegada titular daquela corporação, seria inviável realizar uma pesquisa, tal como empreendi,
sobre atuação da polícia civil e suas técnicas de narrar crimes de estupro e atentado violento ao pudor.
246

enquanto um ente, mas cujas fronteiras, quando traçadas, produzem efeitos, muitas vezes,
“mortíferos”, como argumenta Foucault (2008). Não se pode entrar, não se pode pesquisar,
não se pode ver, não se pode encontrar “todos os nomes”, porque não se está investido pela
chave (autoridade) que abre a Conservatória. No entanto, não acessar o IML foi, ao final, o
melhor que poderia ocorrer a minha pesquisa. O não acesso nada buscava esconder. Ele,
o (não)acesso, era uma topografia a ser minuciosamente dissecada. Ou seja, descrever o IML-
ideia era dar atenção as suas fontes, suas estruturas, suas variações, seus modos de atuação,
seus efeitos e toda uma série de posturas efemeramente unificadas, que se processam, elas
mesmas, em relação a questões sempre transitórias e contingentes233. Sustento que é por meio
de tal imagem projetada, difundida e acreditada que a própria corporação produz a si mesma
como uma “realidade coesa”, delimitada, dada de antemão e cuja função é “proteger a
identidade das vítimas atendidas”.
Do repúdio e da desconsideração antecipada às estratégias restritivas de “certos
nativos”234, que detêm um certo tipo de poder institucional e, por isso, podem colocar
dificuldades a pesquisas e pesquisadores (TEIXEIRA, 2014), pode-se vislumbrar, todavia, o
IML-sistema. As tramas porque miúdas, intricadas e/ou esgarçadas desvelam os regimes
classificatórios e as mecânicas pelas quais se produzem diferencialmente materialidades,
corpos, técnicas, vestígios, especialistas e expertises. Nesse sentido, as fragmentações, as
disjunções e justaposições traçadas na tese não são metáforas ou deficiências da pesquisa
(LUGONES, 2012). Antes, recompõem conexões, apoios estratégicos e táticas de governo
que forjam o IML como um campo de disputas.
Do entrecruzamento entre atuações técnicas, oficialidade, cientificidade e
verdade/justiça, laudos figuram como produção de conhecimento e um modo herético de fazer
ciência. A universidade se converte em “balcão” de “serviços à comunidade” e um caminho
seguro e científico para a (in)justiça, mediante casos e perícias. O necrotério/IML se
transforma em anfiteatro e espaço pedagógico. Cadáveres destrinchados e desentranhados,
himens e “fissuras” educam, pelo ver e apalpar, os futuros médicos e a antropóloga em
formação.

233
Ao utilizar o termo IML-ideia, faço alusão à divisão explicativa forjada por Abrams (1988) entre “Estado-
ideia” e “Estado-sistema”. A primeira lança luz às teorias sobre Estado, que dão carne à noção de Estado como
“uma coisa”, tanto na sociologia política, quanto nas teorias marxistas. Vista em relação ao “Estado-ideia”, o
“Estado-sistema” colocaria foco descritivo e analítico exatamente na desunião real do poder político, ou melhor,
na incapacidade dessas instituições de funcionar como uma união prática e manifesta.
234
Nos termos de Teixeira (2014, p. 38), “qualificando melhor a máxima somos todos nativos, se assim o somos,
tais considerações sugerem que existem nativos e nativos: em relação a alguns, desenvolvemos empatia e
anthropological blues; já com outros, nem sequer nos sentimos obrigados ou desafiados a compreendê-los.
247

Como busquei evidenciar, por efeitos de similitude e contraste, o fazer padronizado,


cotidiano e ordinário se confronta às perícias que repercutem, visibilizam e se convertem em
casos/causas de impacto político, midiático e institucional. Tratam-se, portanto, dos planos
sempre instáveis e desiguais de se “fazer justiça”. Os laudos, como a inscrição em papel de
tais atuações, estão inevitavelmente sujeitos a disputas de sentido e de legitimidade.
Aqui, o título que Badan Palhares dedicou a sua autobiografia: “Por que converso com
os mortos” parece engenhoso. Badan, motivado pelo assassinato de seu irmão, decidiu
abraçar a medicina legal como ciência e como forma de fazer “justiça”. A seu termo,
resolveu “que passaria a vida a estudar e lutar para que fatos semelhantes não mais
ocorressem, para que eu pudesse, com minha atuação profissional, impedir injustiças”
(PALHARES, 2007, p.84). Contudo, tal noção perfaz, bem como forja, constantes e
inesperados efeitos classificatórios.
Da assertiva “que corpos como efeitos de que convenções e que convenções como
correspondendo melhor a determinados corpos”235, Madalenas, Márcias, Joanas, Selmas,
Lucianas, Lauras, Biancas, Alices e Felipes não são Josef Mengele ou PC Farias. Mas
também as ossadas de Perus encerram ambivalências e “discórdias”. Entre corpos e Corpos
ou casos e Casos, um mesmo conjunto de ossos pode dar visibilidade a perversas (e injustas)
distinções. Enquanto se investiram muitos esforços em identificar, com precisão, algumas
ossadas, por contraste, toda uma massa de esqueletos foi simplesmente reinumada sobre a
genérica identificação: “prefeitura identifica 560 corpos de crianças enterrados em Perus”
(Folha de São Paulo, 06 de outubro de 1990, p.5)236. Há, portanto, uma diferença considerável
entre cidadãos pobres executados e dispensados em vala comum pelas polícias do estado de
São Paulo e que desapareceram por motivos políticos, os mortos pelo regime ditatorial
brasileiro. (ARAÚJO, 2016; FERREIRA, 2015). Todavia, ao olharmos com uma certa
distância para as ossadas de Perus, todas elas performam um conjunto de corpos cujo destino
é a vala comum (FERREIRA, 2009). Tais estratégias técnicas, políticas e institucionais
destoam quando colocadas frente a cadáveres/corpos, como os de Suzana Marcolino, PC
Farias, Josef Mengele ou Sarah Bartmann, cuja materialidade é disputada e permanece viva
pelo interesse de todos em perscrutá-la.

235
Agradeço a Adriana Vianna por visualizar já em meu texto de qualificação algumas linhas de força que só
vieram a ganhar corpo nestas notas finais. A frase formulada por ela de modo tão bonito e vigoroso permaneceu
viva em minhas elucubrações e nas conexões a princípio indutivas que estruturam a tese.
236
Segundo a reportagem, as crianças, sem nome e destinadas a permanecerem sem identificação, teriam de
“zero a 8 anos”, representariam “40%” dos corpos encontrados e teriam sido enterradas na vala de Perus, como
uma forma do regime ditatorial ocultar um surto de meningite ocorrido em São Paulo, em meados da década de
70.
248

As ideias de justiça e injustiça, nesse sentido, têm, por inspiração, a ideia de “frame”,
tal qual foi formulada por Butler (2009; 2010). Segundo a filósofa, “frame/marco” ou moldura
carregaria dois sentidos: num primeiro sentido, a ideia de enquadrar, como um quadro no qual
se coloca uma moldura – com o intuito de dar relevo ou ampliar uma dada imagem, ou
também embelezar; e, num segundo, enquadrar como uma artimanha, no sentido usado pela
polícia de “enquadrar um determinado sujeito”237. Nesse sentido, um “frame” pretende, de
certa forma, conter, veicular e determinar aquilo que podemos ver de uma dada imagem. Esse
é o efeito produzido, por exemplo, pelos “frames de guerra”. Ao contar a história de Daniel
Pearl, Butler (2009) explicita os elementos que apresentam Danny como um homem de
família, com um rosto conhecido, uma história familiar e uma educação partilhada por
milhões de americanos. Por contraponto a isso, a história do palestino que deseja colocar o
nome de seus familiares, mortos no conflito entre palestinos e israelenses, no obituário de San
Franscisco Chronicle, é visto pelos redatores do jornal como uma ação passível de ser
entendida como ofensiva. De um lado, portanto, estariam as vidas que valem a pena serem
preservadas, vividas e, consequentemente, merecem ser enlutadas quando “perdidas” e, de
outro lado, todas aquelas vidas que, por habitarem os limites daquilo que se considera vida,
acabam por ser desprezadas e condenadas a uma vida moribunda e espectral238.
Seguindo a argumentação da filósofa, a possibilidade de luto público está
completamente relacionada ao compartilhamento de uma espécie de precariedade que assola a

237
No livro da autora, essa segunda proposição aparece como uma tática mediante a qual uma série de provas
falsas é encadeada conferindo aparência de verdade a uma falsa acusação. Eu incitaria o leitor a pensar que
enquadrar, antes do que articular uma série de provas falsas, para produzir uma verdade, é, por excelência, um
ardil, mesmo quando reuni provas legitimadas como verdadeiras a crimes vistos como legíveis e, portanto,
injustos e dignos de penalização. Nesse sentido, como argumenta a autora, tais modos de enquadramento não são
estáticos. A reprodução de um “frame” ao longo do tempo depende das condições ou contextos nos quais esse
molde se reproduz. Em outras palavras, cada vez que um “frame” se reproduz, ele altera parte daquilo que
sustenta sua definição. Ou seja, o que torna um “frame” eficaz, permitindo que perdure ao longo do tempo,
constitui também sua vulnerabilidade, na medida em que sua existência está aberta à transformação.
238
A primeira estória é a do jornalista do Wall Street Journal, Daniel Pearl. Executado por terroristas durante a
cobertura midiática na guerra do Afeganistão, “Danny”, como Pearl foi carinhosamente chamado nas
homenagens e recordações publicadas por colegas de jornalismo, é um caso central para a compreensão daquilo
que Butler (2009) nomeou como vidas choradas ou vidas que valem a pena. A estória de Danny funciona em
contraponto a estória de um cidadão palestino que vive nos Estados Unidos e que enviou ao San Franscico
Chronicle um obituário de familiares assassinados por tropas israelenses nos conflitos entre palestinos e
israelenses no Oriente Médio. Mediante tal pedido, o jornal alegou que não publicava nos obituários as mortes
porque não tinha confirmação efetiva sobre as mesmas. Todavia, informou que o periódico poderia publicar o
texto no espaço “em memória”. O cidadão palestino, em face da negativa, reescreveu e reenviou seu texto ao
periódico. Desta segunda vez o jornal recusou a publicação, enfatizando que o periódico não tinha interesse de
ofender ninguém. Visto por meio de tais contraposições, vidas precárias seriam, para a autora, essas vidas que
podem ser eliminadas, pois não são consideradas como vidas vivíveis, merecedoras de lembrança e de dor. Tais
vidas são definidas, segunda a autora, por seu caráter espectral e de desrealização. Por desrealização, Butler
(2009) mobiliza dois níveis de compreensão. Por um lado, argumenta que certas vidas não são consideradas
vidas, assim, não podem ser humanizadas, pois não se encaixam dentro do marco “dominante” do humano. E,
por outro lado, demonstra como tal discurso produz a violência pelo ato mesmo de sua omissão.
249

todos nós. Não se trata de um reconhecimento propriamente dito, mas de uma condição que só
pode ser apreendida, captada, pressuposta (e também negada) por certas normas de
reconhecimento. É disso que se trata pensar laudos e perícias como modos diversos e sempre
em disputa de “fazer justiça”239. Se a pergunta ‘a que (ou a quem) serve um laudo?’ exige
cautela, isso se faz necessário em função das tramas políticas, midiáticas e institucionais que
enlaçam atuações ditas apenas (ou, sobretudo) como técnicas e científicas.
Assim, da disseminada oficialidade e tecnicidade de laudos e perícias emergem as
relações, os interesses e vaidades pessoais que enredam casos e condutas. Um irmão se torna
a justificativa mais poderosa quando se trata da atuação técnica em medicina legal; contatos
profissionais justificam indicações e dão fiança moral a legistas e peritos; nebulosas relações
pessoais conformam acordos, convênios e organizam a atuação de universidades, corporações
policiais, órgãos públicos, prefeituras etc. Há nos exames periciais, bem como em suas
transposições em documentação, muitas noções de tempo, seleção, ordenação e legibilidade
que se entrelaçam de diferentes formas em cada caso. Produzem uma rede de discursos que
conectam pessoas, instituições e convencionam materialidades por meio de técnicas periciais
sempre restritivas diante da polissemia de elementos dispostos nos corpos a serem
investigados.
Como sugere Ferreira (2009, p.23), a partir de premissas weberianas, ainda que “a
impessoalidade” atravesse as formas de administrar levadas a cabo pelas instâncias estatais,
disso não se pode “derivar que procedimentos burocráticos sejam puramente formais e
destituídos de pessoalidade”. Todavia, estas mesmas interações e disputas entre quadros de
funcionários, atuações com “fé pública”, arquivos e técnicas, quando adjetivadas como
pessoais, não tornam, nem conformam como “menos burocráticos” os aparatos e expedientes
de administrar (FERREIRA, 2009, p.24). Ao contrário, como salienta a autora, e como
intentei assinalar no decorrer desta tese, por intermédio da noção de trama, os conflitos, as
disputas, os contenciosos e as relações pessoais constituem ciência, técnica e modos de “fazer
justiça”.
Nesse sentido, ao usar o conceito de “trama”, lanço luz à potencialidade que a
conceitualização de Gregori (1999) nos permite acionar. Trama, como um conceito vigoroso,
enlaça não apenas as relações entre instituições conformadas de antemão, mas permite

239
O número de pesquisadores que têm se debruçado sobre o tema é enorme. Contudo, gostaria de destacar as
pesquisas de Gregori (1999), Vianna (2002) e Lugones (2012) no que tange à gestão de minoridades e infâncias;
as pesquisas de Ferreira (2009; 2015), Lowenkron (2015), Lacerda (2012), Efrem Filho (2017), Farias (2015) e
Vianna (2013; 2014) sobre os múltiplos entrecruzamentos entre instâncias estatais, aparatos burocráticos, causas
políticas e violência.
250

delinear como tais fronteiras são traçadas por atores, regulamentações e soluções
administrativas. Ademais, ao falar de trama e suas figurações sublinho o caráter político,
desigual, esgarçado ou intricando que tal noção ajuda a abarcar, através de sua forma verbal –
tramar240. Visto por meio de tal embocadura conceitual, também as “denúncias constantes
sobre o mal proceder [das instâncias estatais] ou os desajustes de suas partes” não desfazem a
“reiteração contínua de unidade e da idealização que cerca e sustenta” (VIANNA, 2013, p.
18) aquilo que Teixeira e Souza Lima (2010, p. 57) denominam por “administração”.
As tramas ou as “possibilidades de nomeação, qualificação, aliança e oposição entre
atores diversos” são os modos pelos quais “o Estado” é traçado e atua; fixa e destitui
“limites, fronteiras e unidades organizacionais, políticas e morais” (VIANNA, 2013, p. 21).
Tais técnicas de gestão, nesse sentido, incluem os jogos partidários, a esfera do direito, ONGs
que exercem “funções de Estado”, agências técnicas internacionais e segmentos do
empresariado sem os quais jamais compreenderíamos a “máquina pública” (TEIXEIRA;
SOUZA LIMA, 2010, p. 57). Ao dizer isso, sugiro que as tramas são sempre atos de tramar;
se fazem visíveis pelo acúmulo de fios e linhas; podem ser simultaneamente urdidura,
artimanha e ardil. Se o IML figura como uma circunscrição, depois de minha pesquisa,
todavia, ele só ganha contornos mediante conluios intrincados (e, por vezes esgarçados)
estabelecidos com outros entes, eles mesmos provisórios, tais como a universidade,
associações profissionais e científicas e aparatos midiáticos.

240
Para ver outros usos interessantes de trama, Telles e Cabanes (2006) e Padovani (2015).
251

Bibliografia

Imagens e figuras

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Figura 3: Himens. Slide aula de medicina legal sobre sexologia forense [FCM-
UNICAMP], 25 de abril de 2015.
Figura 4: Esquema para correta aferição de lesões himenais de Oscar Freire. Fávero,
Flamínio. Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. Editora Martins, 1954.
Figura 5: Técnica para exame dos órgãos genitais externos femininos. Fávero, Flamínio.
Tratado de Medicina Legal. 5ª Edição. Volume 2. Editora Martins, 1954.
Figura 6. Reconstituição facial de Josef Mengele. Palhares, Fortunato Badan. Imagem
retirada do site:
http://www.badanpalhares.med.br/artigos_publicacoes/caso_menguele/menguele_fotos.
htm.
Figura 7: Romeu Tuma apresenta a reconstituição da cabeça de Josef Mengele. Folha
de São Paulo, 30 de março de 1986. http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1986/03/30/2/.
Figura 8: Identificação por sobreposição de imagens de Eduardo Mayr. INSTITUTO
MACUCO. Vala Clandestina de Perus. Desaparecidos políticos, um capítulo não
encerrado da história brasileira. São Paulo: Instituto Macuco/Ministério da Justiça/
Ed. do Autor, 2012.
Figura 9: Simulação sobre as mortes de PC Farias e Suzana Marcolino. Folha de São
Paulo, 24 de junho de 1996. http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1996/06/24/2/.

Reportagens de jornal e televisão e documentários

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de 1986. Primeiro Caderno, Exterior, p. 8.
DROPES. Folha de São Paulo, 02 de outubro de 1985. Primeiro Caderno, Exterior,
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É meu pai, diz Rolf Mengele. Jornal São Paulo, 12 de junho de 1985. Capa.
ESTRANGEIROS não interferem, diz Lyra. Folha de São Paulo, 8 de junho de 1985.
Primeiro Caderno, Exterior, p.16.
252

FIM da novela. Josef Mengele está identificado. O Estado de São Paulo, 22 de junho
de 1986. Capa.
IML de Campinas faz novo exame em ossos de Mengele. Folha de São Paulo, 05 e
setembro de 1985. Primeiro Caderno, Exterior, p. 26.
JOSEF MENGELE- O ANJO DA MORTE NO BRASIL. Fantástico. Rio de Janeiro:
Rede Globo, 20 de março de 2016. Programa de televisão.
MENGELE: rosto reconstruído. O Estado de São Paulo, 30 de março de 1986, p.17.
MULHER diz ter escondido Mengele em SP desde 1961. Folha de São Paulo, 9 de
junho de 1985. Primeiro Caderno, Exterior, p. 20.
ROSTO de Josef Mengele foi reconstruído com base em técnica de 1954. Jornal do
Brasil, 02 de fevereiro de 1986. Capa e 1º Caderno, Nacional, p. 9.
PERITOS anunciam formalmente que ossada é de Mengele. Jornal do Brasil, 22 de
junho de 1985. 1º Caderno, Nacional, p. 8.
PERITOS estrangeiros chegam para examinar a ossada. Folha de São Paulo, 16 de
junho de 1985. Primeiro Caderno, Exterior, p.11.
POLÍCIA alemã diz que corpo é de Mengele. Folha de São Paulo, 10 de junho de
1985. Capa.
PRIMEIRA exumação foi feita a enxada. Jornal do Brasil, 17 de junho de 1985, 1º
Caderno, Nacional, p.7.
SASAKI, Robinson. Dentista diz que atendeu o nazista até abril de 79. Folha de São
Paulo, 8 de junho de 1985. Primeiro Caderno, Exterior, p.16.
SOB PRESSÃO, peritos reabrem túmulo do suposto Mengele, Folha de São Paulo, 17
de junho de 1985. Primeiro Caderno, Exterior, p.8.
UMA história de mistérios, com muitos personagens. Folha de São Paulo, 10 de junho
de 1985. Primeiro Caderno, Exterior, p. 9.
UNICAMP reconstitui a cabeça de Josef Mengele. Folha de São Paulo, 17 de fevereiro
de 1986. Primeiro Caderno, Exterior/Cidades, p. 11.

Caso Perus ou “Projeto Perus”

EDIÇÃO Especial: Projeto Perus passado a limpo. Jornal da Unicamp, março de 2001.
http://www.unicamp.br/unicamp/unicamp_hoje/ju/mar2001/ossopag1.html.
ENTIDADES vão fiscalizar o IML, diz governador. Folha de São Paulo, 08 de
setembro de 1990. Primeiro Caderno, Política, p.9.
MEDICINA FORENSE. [1993]. Vem Comigo. São Paulo: TV Gazeta, reexibido em 19
de novembro de 2013. Programa de Televisão.
NATALI, João Batista. Cemitério da Repressão: Prefeitura cria comissão e assumi as
investigações. Folha de São Paulo, 06 de setembro de 1990. Primeiro Caderno,
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ONU pede relatório sobre as ossadas. Folha de São Paulo, 22 de novembro de 1990.
Primeiro Caderno, Política, p. 7.
253

OSSADAS de Perus são levadas a reconhecimento na Unicamp. Jornal do Brasil, 02


de dezembro de 1990. 1º Caderno, p.34.
QUÉRCIA afasta diretor do IML da investigação sobre tortura. Folha de São Paulo, 11
de setembro de 1990. Primeiro Caderno, Política, p. 4.
TESTA, Fernanda. USP deixa trabalho de identificação das ossadas do cemitério Perus.
G1 Ribeirão e Franca/EPTV, 09 de abril de 2014. http://g1.globo.com/sp/ribeirao-
preto-franca/noticia/2014/04/usp-deixa-trabalho-de-identificacao-das-ossadas-do-
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VALA Comum. Direção de João Godoy. Produção de Riva, Geno, Tokita, Adilson,
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https://www.youtube.com/watch?v=7ghVpfvVhNw.

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CIPOLA, Ari. Equipe quer exumar corpo de Suzana. Folha de São Paulo, 11 de maio
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março de 1997. Primeiro Caderno, Brasil, p.8.
CIPOLA, Ari. PC Farias é morto com tiro em Alagoas. Folha de São Paulo, 24 de
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CIPOLA, Ari. PF ‘federaliza’ as investigações do crime. Folha de São Paulo, 27 de
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COMO é o vídeo da necropsia de Suzana Marcolino. Folha de São Paulo, 31 de março
de 1999. Primeiro Caderno, Brasil, p.6.
DIVULGAÇÃO terá vídeo, telão e computador. Folha de São Paulo, 5 de agosto de
1996. Primeiro Caderno, Brasil, p.5.
EXCLUSIVO: Fotos derrubam laudo da morte de PC. Folha de São Paulo, 24 de
março de 1999. Capa.
EXCLUSIVO: Sanguinetti X Badan. Peritos se enfrentam no caso PC. O Estado de
São Paulo, 15 de agosto de 1996. Capa.
FRANÇA, William. Delegado federal escolhido é chamado de ‘cão farejador’. Folha de
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MAGALHÃES, Mário. Badan não mediu Suzana, mostra vídeo. Folha de São Paulo,
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NERI, Emanuel; SANTIAGO, Vandeck. Suzana matou PC e se suicidou, diz perícia.
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Paulo, 21 de setembro de 1997. Primeiro Caderno, Opinião, p.3.
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POLÍCIA insiste em crime passional. Folha de São Paulo, 25 de junho de 1996. Capa.
POLÍCIA comete sequência de falhas no caso. Folha de São Paulo, 26 de junho de
1996. Primeiro Caderno, Brasil, p.6.
SÁ, Xico. Legistas e PF provocam ‘rebelião’ em AL. Folha de São Paulo, 27 de junho
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SANTIAGO, Vandeck. PM obriga Sanguinetti a assistir exposição. Folha de São
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TOKARSKI, Marcelo. Jobim chama médico de SP. Folha de São Paulo, 27 de junho
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Perus. Folha de São Paulo, 06 de outubro de 1990, p. 5.
DIRETOR do IML critica órgão e pede demissão. Folha de São Paulo, 10 de maio de
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Claret, 2004.
271

Anexos

I. Dos Documentos

 Como se documenta a documentação

1. Carta de apresentação

Campinas, ________de 2014.

Sou estudante de Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas
(IFCH/UNICAMP). Desenvolvo um projeto de pesquisa na área de Estudos De Gênero
sob orientação da Profa. Dra. Maria Filomena Gregori. O projeto de pesquisa intitula-se
“Entre documentos de investigação: uma pesquisa sobre a produção de provas
materiais em casos de estupro”. O projeto foi financiado pela CNPq (Centro Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) de julho de 2012 a fevereiro de 2014.
Agora, a partir de março de 2014, o projeto é financiado pela Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).

A pesquisa tem por objetivo dar continuidade aos estudos iniciados em minha pesquisa
de mestrado241 e busca oferecer elementos para a compreensão de como são produzidas
as provas materiais em casos de estupro no Núcleo Técnico de Perícia, no Instituto
Médico Legal de Campinas – SP. Com o objetivo de percorrer e analisar, a partir de
uma perspectiva antropológica, os discursos técnicos formulados por meio de laudos de
exame de corpo de delito realizados em corpos vivos. Meu interesse é esmiuçar as
descrições, conclusões e terminologias médicas que permeiam esses documentos

241
Pesquisa realizada na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas entre os anos de 2009 e
2011. Além do levantamento de um corpus documental de, aproximadamente, duzentos Inquéritos
Policiais de Estupro e Atentado Violento ao Pudor, entre os anos de 2004 e 2005, a pesquisa acompanhou
o cotidiano de trabalho da corporação no decorrer de, aproximadamente, dois anos de pesquisa realizada
diretamente nas dependências da DDM. A dissertação defendida e aprovada em junho de 2012, pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, tem como título: “Descrever crimes, Decifrar
convenções narrativas: uma etnografia entre documentos oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de
Campinas em casos de estupro e atentado violento ao pudor”.
272

oficiais, bem como suas possíveis inserções no Inquérito Policial (IP) produzido pela
Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e sua relevância no resultado final de processos
de estupro tramitados no Fórum de Campinas. Neste sentido, a pesquisa visa
problematizar os mecanismos de produção desse tipo de escrita técnica-pericial,
buscando compreender os mecanismos de institucionalização desses Institutos Médico-
Legais, sua produção como saber técnico científico, bem como destacar suas
especificidades no caso de sua história na cidade de Campinas. A metodologia que
pretendo adotar é qualitativa e tem como intuito percorrer a linguagem escrita e estética
desses laudos, mas também outras linguagens - assinaturas, numerações, carimbos e
protestos de fé - que tornam esses documentos peças oficiais que comparecem como
provas materiais nos crimes estudados. É de interesse, também, desse projeto
acompanhar o cotidiano de trabalho da instituição, bem como das carreiras dos
profissionais que formam seus quadros profissionais. Saliento que, seguindo o Código
de Ética definido pela Associação Brasileira de Antropologia, me certificarei de
proteger a intimidade de todos os profissionais participantes da pesquisa, bem como de
registros que identifiquem documentos e procedimentos sigilosos da instituição.

__________________________________________
Larissa Nadai
N°Doc (RG): XXXXXXXX
Pós-Graduanda em Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Contato: ______________________

___________________________________________
Maria Filomena Gregori
N° Doc. (RG): XXXXXXXX
Orientadora
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Contato: ______________________

2. Carta de solicitação de pesquisa

Campinas, ___________ de 2014.

Prezado(a) Comissão Científica – IML ou Exmo. Dr. [NOME]


273

Solicito por meio desta a avaliação do projeto de minha aluna de doutorado Larissa
Nadai, matrícula 033862, intitulado “Entre documentos de investigação: uma
pesquisa sobre a produção de provas materiais em casos de estupro”. O projeto foi
financiado pela CNPq (Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
de julho de 2012 a fevereiro de 2014. E, agora, a partir de março de 2014, é financiado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A aprovação
do mesmo pela Comissão Científica do IML é de suma importância para que Larissa
Nadai possa realizar sua pesquisa entre os laudos periciais, em especial laudos de corpo
de delito envolvendo casos de estupro e atentado violento ao pudor, entre os anos de
2003 e 2006. E para a observação do cotidiano de trabalho do Instituto Médico Legal
em Campinas, acompanhando o trabalho de peritos e médicos legistas em casos
envolvendo crimes de estupro e estupro de vulnerável. Esse material será utilizado em
suas futuras análises na tese de doutorado a ser defendida no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.
Por fim, conto com a valiosa colaboração desta Comissão Científica para o bom êxito
deste estudo e me coloco à inteira disposição para eventuais esclarecimentos e entrega
de outros documentos necessários.

Agradeço antecipadamente,

___________________________________________
Maria Filomena Gregori
N° Doc. (RG): XXXXXXXX
Orientadora
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Contato: ____________________

3. Projeto de pesquisa encaminhado à Comissão Científica

Universidade Estadual de Campinas


Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

Entre documentos de investigação: uma pesquisa sobre a produção de provas materiais


em casos de estupro

Larissa Nadai

Financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP

Linha de Pesquisa: Estudos de Gênero


274

ABRIL, 2014.

Resumo

Minha pesquisa de doutorado tem por intuito colocar sob reflexão os documentos
oficiais de perícia produzidos pelo Instituto Médico Legal (IML) de Campinas em casos
de estupro. Ao me centrar nessas provas materiais, dou continuidade aos estudos
iniciados em meu mestrado, no qual me debrucei sobre os documentos oficiais
produzidos pela Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de estupro e
atentado violento pudor, entre os anos de 2004 e 2005. Agora, com o intuito de realçar,
especificamente, essas provas materiais, buscarei percorrer os discursos técnicos
impressos nesses laudos de exame de corpo de delito realizados em corpos vivos, com o
interesse de visibilizar suas descrições, conclusões e terminologias médicas, assim
como suas possíveis inserções no inquérito policial (IP) produzido pela Delegacia de
Defesa da Mulher (DDM) e sua relevância no resultado final de processos de estupro
tramitados no Fórum de Campinas. A metodologia adotada é qualitativa e tem como
intuito percorrer a linguagem escrita e estética desses documentos periciais.

Introdução

“A mais conhecida das funções do IML é a necropsia, vulgarmente


chamada de autópsia, que é o exame do indivíduo após sua morte.
Porém, este tipo de exame constitui apenas 30% do movimento do
Instituto. A maior parte do atendimento (70%) é dada a indivíduos
vivos, pessoas que foram vítimas de acidentes de trânsito, agressões,
acidentes de trabalho etc.” (Dado disponibilizado pelo Instituto
Médico Legal em São Paulo242)

Tipificados no Código Penal de 1940, os crimes de estupro tiveram seu


enquadramento alterado pela lei nº 12.015 de agosto de 2009. Atualmente, eles estão
definidos pelo artigo 213243 do o Título VI : “Crimes contra a dignidade sexual”, no
capítulo – “Crimes contra a liberdade sexual”. São investigados pela Delegacia de
Defesa da Mulher e sua denúncia é de caráter privado (deve ser feita pela vítima).
Durante minha pesquisa de mestrado pude acompanhar de maneira mais detida o
desenrolar das investigações realizadas na DDM e que tomam parte da constituição de
um Inquérito Policial (IP)244. Dentro dessa engenharia burocrática, muitos estudiosos -

242
http://www.polcientifica.sp.gov.br/institucional_IML_historico.asp
243
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
244
Dentre tais procedimentos destaco: os depoimentos de vítima, autor (quando conhecido) e de possíveis
testemunhas, bem como diligências e papéis protocolares endereçados a setores internos da DDM ou
externo a ela (IML, Setor de Criminalística ou ao Fórum). São agregados, ainda, a esses inquéritos os
laudos periciais da vítima, os antecedentes criminais do autor, os laudos de peças, local e armas (quando
existem) remetidos pelo Instituto de Criminalística e os pedidos de prisão preventiva executados durante a
275

entre eles Ardaillon e Debert, 1987; Vargas, 1997; Coulouris, 2004 - afirmam que a
comprovação material do crime é sempre muito difícil. As autoras remetem essa
dificuldade às marcas de violência serem, quase sempre, invisíveis, ou se perderam
devido à demora da vítima em procurar a polícia, ou, ainda, pelo fato dos exames de
corpo de delito serem muito mais ginecológicos do que atentos às marcas de violência
corporal espalhadas pelo corpo. Entretanto, ainda que os trabalhos falem da dificuldade
de comprovação material dos crimes de estupro, todas as autoras são unânimes em dizer
que esses laudos são centrais durante a investigação criminal e para a resolução desses
crimes na esfera jurídica. De maneira geral, a comprovação da violência sofrida também
é expressa por juristas como Sznick (1992) e Molina (2008) através da noção de
resistência honesta245 da vítima.
Embasada pelo Código de Processo Penal (1941), no Livro I, sob o título
designado “Da Prova”, no Capítulo II – “Do Exame de Corpo de Delito e das Perícias
em Geral”, o exame de corpo de delito, direto ou indireto, é indispensável quando a
infração deixa vestígios. Tal exame deve ser realizado por um perito oficial e portador
de diploma de curso superior. Essa exigência procedimental, regulamentada pela atual
legislação de Processo Penal (1941), não foi exclusiva desse ordenamento jurídico.
Segundo Ferreira (2009), já em 1830, o primeiro Código Penal brasileiro tornou
obrigatório que Juízes de Direito ouvissem peritos antes de proferirem suas sentenças.
Como consequência disso, desde 1832 já havia diretrizes de atuação desses
profissionais no Código de Processo Penal. Diante dessas atribuições, como salienta
Ferreira (2009), as técnicas operadas pelos especialistas da Medicina Legal
constituíram, exatamente, no encontro da Medicina e do Direito. Nas palavras de Corrêa
(1998), os modelos jurídicos e médicos deixavam de ser heterogêneos entre si e
absorvendo um ao outro, florescia uma nova área de saber situada exatamente na
intersecção desses modelos.
Sendo assim, dando sequencia às reflexões iniciadas em meu mestrado, gostaria
de entender os laudos periciais como instrumentos - técnicos, burocráticos, conectivos -
que compõem um repertório mais amplo de provas materiais com fins investigativos. Os
termos, assinaturas e figuras impressas em suas páginas, sua inserção como
instrumentos de investigação e seus nexos com um saber médico e jurídico específico –

investigação policial. Em seguida, mediante Relatório Final da delegada, essa peça policial é remetida ao
Fórum.
245
Segundo Sznick (1992), deve ser possível vislumbrar tal resistência honesta e perseverante (até o fim)
através de lesões, manchas, descamações no corpo e sinais de luta no ambiente.
276

a Medicina Legal –, através de sua institucionalização em Institutos Médico-Legais no


Brasil, são também objeto dessa pesquisa. Da mesma forma, busco dar atenção aos
efeitos de mediação e conexão desses papéis, os quais colocam em contato instituições
técnico-científicas e o sistema judiciário e policial.

Objetivos

Exposto isso, esse estudo tem como objetivos: (a) compreender como as provas
periciais são formas pelas quais o Instituto Médico Legal, Instituto de Criminalística,
Delegacia de Defesa da Mulher e Fórum Criminal, estrategicamente, perpetuam suas
relações institucionais; (b) como os documentos representam esses corpos vivos,
trazendo elementos cruciais para elucidarmos as práticas de atendimentos e os trâmites
cotidianos de trabalho realizado pelo IML; (c) problematizar como esse corpo é descrito
e apresentado e dele um saber médico é produzido e legitimado, por intermédio de
contendas criminais; (d) entender qual a centralidade dessas provas na condenação ou
absolvição dos acusados de estupro; (e) demonstrar como uma etnografia de
documentos pode contribuir para entendermos as formas burocráticas pelas quais
vítimas e autores tornam-se legíveis em casos de estupro e o Estado pode ser
problematizado através de suas práticas políticas de regulação e disciplinamento e não,
exclusivamente, como uma forma administrativa de organização política e
racionalizada. Por fim, a pesquisa pretende, ainda, (f) colaborar com os debates
realizados em torno das questões relacionadas ao campo das Ciências Sociais, no que
diz respeito à discussão sobre corpo, sexualidade e violência, fornecendo elementos
para pensar como o corpo físico e a sexualidade passam a ser descritos mediante termos
médicos e legais.

Metodologia

Essa pesquisa terá como campo central o Instituto Médico Legal, bem como,
algumas visitas focadas à Delegacia de Defesa da Mulher e ao Fórum Criminal, todos
eles sediados na cidade de Campinas. Com vistas no trabalho já realizado em meu
mestrado, busco acessar os laudos periciais de inquéritos policiais já mapeados e que,
quase sempre, estiveram invisíveis nas dependências da Delegacia de Defesa da Mulher.
Assim, boa parte da pesquisa terá como metodologia a leitura atenta, mediante
cadernos de campo, desses materiais escritos, suas assinaturas, rasuras a caneta,
carimbos e insígnias. Toda a documentação arquivada no IML, nos anos de 2003 a
2006, de Campinas será central em minha pesquisa. Nesse sentido, buscarei, seguindo
as pistas de Kopytoff (2008), apresentar uma biografia desses documentos, enfatizando
suas trajetórias de vida e seus muitos caminhos dentro do Instituto Médico Legal, da
polícia especializada e do Fórum Criminal de Campinas.
277

Tendo como horizonte os debates promovidos por Foucault (1999), essa


linguagem escrita será re-visitada e entendida como um discurso que se produz
mediante controles externos – interdições, separações e rejeições e a busca pela verdade
- e mecanismo internos – que funcionam por princípios de classificação, ordenação e
distribuição. Em outras palavras, essas escritas técnicas sobre corpos vivos são, sem
dúvida, formas produzir vestígios e dar prova material a casos de violência. Forma essa
que está substancialmente envolvida por controles, seleções e organizações que
respondem a um certo número de procedimentos que dizem respeito à constituição dos
interesses da Medicina Legal, ao longo de sua institucionalização no Brasil, e suas
peculiaridades em São Paulo. Finalmente, respondem, também, aos desdobramentos
sempre incessantes promovidos pelos acontecimentos e acasos, pela relevância daqueles
que os proferem ou, com mais centralidade, pela constituição de uma disciplina que seja
capaz de produzir indefinidamente proposições novas.
Em segundo lugar, está pesquisa terá como horizonte os papéis de requisição e
envio que se encontram presos a esses laudos de conjunção carnal, através de carimbos,
assinaturas e frases de “elevada estima e consideração”. Com isso, gostaria de refletir
sobre um domínio que já aparece em minha pesquisa de mestrado, ainda que apenas
sugerido, o qual diz respeito ao efeito mediador e burocrático que a documentação de
investigação de crimes pode apresentar na conformação de uma rede institucional que
produz o crime e sua autoria. Seguindo os argumentos de Vianna (2002), significa tratar
esses documentos escritos como objetos socialmente construídos que, por meio de
disputas e decisões, vão moldando “como o efetivo objeto de administração, aquilo que
vai circular, ser guardado e arquivado ou ainda ser recuperado quando uma nova etapa
administrativa se colocar para esses mesmos personagens da burocracia” (VIANNA,
2002, p. 87). Como sugerem Das e Poole (2008), como antropólogos devemos
reconhecer que a maior parte do Estado Moderno está construído a partir de práticas
escritas. Nesse sentido, esse projeto busca entender esse domínio burocrático dos
documentos, como os diferentes espaços, formas e práticas através dos quais o “Estado
está sendo constantemente experimentado e desconstruído mediante a ilegibilidade de
suas próprias práticas, documentos e palavras”. (DAS e POOLE, 2008, p.25).
Em terceiro lugar, tomo esses papéis como rastros, que podem nos conduzir ao
cotidiano de trabalho do IML de Campinas. Nesse sentido, essa pesquisa tem como
interesse acessar a prática de médicos-legistas e técnicos do IML-Campinas, mediante a
observação do seu cotidiano de atendimento, buscando entender a ‘mágica’ desses
278

documentos, uma vez que conseguem produzir descrições técnicas, nas quais os
discursos que falam de materialidades corpóreas, feridas, sangue, sofrimento,
manifestem-se por intermédio de terminologias médicas que transformam o horror de
cenários e dos atos perpetrados em conclusões assépticas e, até certo ponto, cifradas à
leitura de não especialistas. Buscarei olhar essas conclusões pericias como formas
convencionalizadas (sempre em transformação) pelas quais vítimas de estupro e
possíveis estupradores ganham legibilidade e passam a existir mediante esses papéis que
procuram ‘dar provas’ do crime e adensar um largo espectro de investigações que é
mobilizada nas DDMs e no Fórum Criminal.
Finalmente, é importante a esse projeto reacessar as entrevistas realizadas em
meu mestrado com escrivãs e delegadas, mas também realizar entrevistas com médicos-
legistas e técnicos do IML- Campinas, assim como realizar entrevistas com juízes. O
intuito será observar a maneira como eles entendem os laudos produzidos por essa
instituição técnico-científica e a centralidade desse material investigativo nas sentenças
que os mesmos proferem em casos de estupro nas Varas Criminais pelas quais
respondem.

Plano de Trabalho
Atividades/Anos 1 2 3 4
Disciplinas obrigatórias e eletivas X
Levantamento e análise da bibliografia pertinente X X
Participação em cursos de Medicina Legal e temas pertinentes X
Levantamento dos laudos periciais importantes a essa pesquisa e outros documentos X X
centrais a sua compreensão: ofícios, remessas, pedidos de conclusão, etc
Observação do cotidiano de atendimento do IML e entrevista com seus funcionários X X
Retomada de parte do material levantado no mestrado na Delegacia de Defesa da X
Mulher
Levantamento das sentenças deferidas no caso dos inquéritos e laudos levantados na X
DDM e IML e entrevistas com Juízes das Varas Criminais de Campinas
Apresentação da qualificação X
Elaboração e defesa da dissertação X

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282

4. Declarações encaminhadas a Comissão Científica do IML

4.1. Sobre matrícula junto ao PPGCS

DECLARAÇÃO

Declaro para os devidos fins, que o(aO Dr(a) LARISSA NADAI, Registro
Acadêmico_________________, CPF: ________________ e RG:______________,
está regularmente matriculada no Curso de Doutorado de Ciências Sociais no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH – da Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP.
Campinas, _________ de 2014.
_______________________
Secretário do PPGCS
Matrícula:_______________

4.2. Sobre financiamento e bolsa de pesquisa

DECLARAÇÃO

Eu, Larissa Nadai, inscrita no RG _____________, CPF _______________ e matrícula


universitária __________, declaro ter financiamento para realização do projeto sob
número _____________ pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
– FAPESP. Sem mais.
Campinas, _________ de 2014.
_______________________
Larissa Nadai

4.3. Sobre sigilos das informações coletadas

DECLARAÇÃO

Eu, Larissa Nadai, inscrita no RG ________, CPF ____________ e matrícula


universitária ________, declaro sigilo sobre todas as informações coletadas e/ou as
284

Dados do Ingresso Nível


66 - Doutorado em Ciências Sociais Doutorado
Reconhecido pela Portaria MEC n° 524 de 29/04/2008
Forma de Ingresso Período de Ingresso
Exame Seleção Pós-Graduação 1S/2012
Escola Anterior Mês/Ano da Conclusão
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP 12/2008
Situação no Curso Ano de Catálogo Ano da Turma
Curso em Andamento 2012 2012
Prazo para integralização Coeficiente de Rendimento (0 a 4)
03/2017 -1
Atestado
Atesto, para os devidos fins, a regularidade da matrícula no referido curso, estando o aluno
matriculado no período letivo atual.
Os horários das disciplinas em que o aluno está matriculado encontram-se em anexo

5.2 Histórico Escolar

Nome Registro Acadêmico


Larissa Nadai [número]
Documento de Identidade CPF Nascimento Sexo
[número] [número] [data] feminino
Naturalidade Nacionalidade
Rio Claro - SP Brasileira
Dados do Ingresso Nível
Curso: 36 - Mestrado em Antropologia Social Mestrado
Reconhecido pela Portaria MEC n° 524 de 29/04/2008
Forma de Ingresso Período de Ingresso
Exame Seleção Pós-Graduação 03/2009
Escola Anterior Mês/Ano da Conclusão
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP 12/2008
Situação no Curso Ano de Catálogo Ano da Turma
Egresso em 03/2012 por Integralização Excedida 2009 2009
Permanência no Curso Coeficiente de Rendimento (0 a 4)
49 meses 4.0
Aptidão em Língua Estrangeira Data Resultado
Inglês 03/03/2009 Aprovado
Exame de Qualificação Data Resultado
Geral 07/12/2010 Aprovado
Orientador(es)
Profa Doutora Maria Filomena Gregori
Dados do Ingresso Nível
66 - Doutorado em Ciências Sociais Doutorado
Reconhecido pela Portaria MEC nº 1077 de 31/08/2012
285

Forma de Ingresso Período de Ingresso


Exame Seleção Pós-Graduação 03/2012
Escola Anterior Mês/Ano da Conclusão
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP 12/2008
Situação no Curso Ano de Catálogo Ano da Turma
Curso em Andamento 2012 2012
CÓDIGO DE AUTENTICIDADE
Verifique a autenticidade deste documento na página ____________________________
Código:_________________________
Nome Registro Acadêmico
Larissa Nadai [número]
Prazo para integralização Coeficiente de Rendimento (0 a 4)
03/2017 4.0
Aptidão em Língua Estrangeira Data Resultado
Inglês 03/03/2012 Aprovado
Francês 01/03/2012 Aprovado
Orientador(es)
Profa Doutora Maria Filomena Gregori
Créditos Aproveitados
Período Tipo Carga Horária Créditos
2º semestre de 2013 Créditos aproveitados por disciplina 90 6
Dados do Ingresso Nível
Curso: 36 - Mestrado em Antropologia Social Mestrado
Reconhecido pela Portaria MEC n° 524 de 29/04/2008
Forma de Ingresso Período de Ingresso
Readmissão para Defesa de Dissertação 04/2012
Escola Anterior Mês/Ano da Conclusão
Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP 12/2008
Situação no Curso Ano de Catálogo Ano da
Turma
Egresso em 036/2012 por Conclusão de Curso 2009 2009
Tempo de Titulação Coeficiente de Rendimento (0 a 4)
52 meses 4.0
Aptidão em Língua Estrangeira Data Resultado
Inglês 10/04/2012 Aprovado
Exame de Qualificação Data Resultado
Geral 07/12/2010 Aprovado
Data da Defesa Conceito Data da Homologação
20 de junho de 2012 Aprovada 21 de agosto de 2012
Título da Dissertação
"Descrever crimes, decifrar convenções narrativas: uma etnografia entre documentos
oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de estupro e atentado
violento ao pudor"
Orientador(es)
Profa Doutora Maria Filomena Gregori
Comissão Examinadora - Dissertação
Profa Doutora Maria Filomena Gregori
Profa Adriana de Resende Barreto Vianna
286

Profa Doutora Guita Grin Debert


Disciplinas Cursadas
Observações
Nas disciplinas com situação ‘Aprovado’, o aluno obteve frequência igual ou superior a
75% da Carga Horária.
Este documento contém todas as disciplinas cursadas pelo aluno.
#-Disciplinas cursadas na condição de Estudante Especial - aproveitadas na integralização
do curso.
*-Carga Horária segundo catálogo seguido pelo aluno. (Informação CCPG Nº 4/2008)
!-Disciplinas cursadas como Estudante Especial / não válidas para o programa.
1º Semestre de 2009 - 01/03/2009 até 30/06/2009
Código Nome da Disciplina Conc. CH Crd Situação
[Todas as disciplinas cursadas estão listadas no documento]
Carga Horária
Total da Carga Horária Completa Total da Carga Horária Supervisionada Total de Créditos
765 765 51
CÓDIGO DE AUTENTICIDADE
Verifique a autenticidade deste documento na página ____________________________
Código:_________________________
287

 Modelos de laudo de corpo de delito

1. Formulário para laudo de conjunção carnal (2004-2005)

Secretária de Segurança Pública de São Paulo


Superintendência da Polícia Técnica-Científica
Núcleo de Perícias Médico-Legais de Campinas

IP: LAUDO Nº:

REMETER PARA: [Distrito Policial]-CAMPINAS/SP”.

LAUDO DE EXAME DE CORPO DE DELITO


EXAME DE CONJUNÇÃO CARNAL

Aos [DATA], nesta cidade de Campinas, a fim de atender a requisição do Dr (a)


[NOME DO DELEGADO], do (a) (e) [DISTRITO POLICIAL], os infra-assinados
doutores médico-legistas do Instituto Médico Legal de Campinas, procederam ao exame
de corpo de delito em [NOME DA VÍTIMA], [QUALIFICAÇÃO], para responder aos
quesitos seguintes:

PRIMEIRO: Houve conjunção carnal?


SEGUNDO: Qual a data provável dessa conjunção?;
TERCEIRO: Era virgem a paciente?
QUARTO: Houve violência para essa prática?
QUINTO: Qual o meio dessa violência?
SEXTO: Da violência resultou para a vítima incapacidade para ocupações por mais de
trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade permanente de membro, sentido ou função,
ou aceleração de parto, ou incapacidade permanente para o trabalho ou enfermidade
incurável, ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função, ou deformidade, ou
aborto?
SÉTIMO: É vítima alienada ou débil mental?
OITAVO: Houve qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir?

REALIZADA A PERÍCIA PASSARAM A OFERECER O SEGUINTE PARECER:

HISTÓRICO:
289

2. Formulário de laudo de ato libidinoso (2004-2005)

Secretária de Segurança Pública de São Paulo


Superintendência da Polícia Técnica-Científica
Núcleo de Perícias Médico-Legais de Campinas

IP: LAUDO Nº:

REMETER PARA: [Distrito Policial]-CAMPINAS/SP”.

LAUDO DE EXAME DE CORPO DE DELITO


EXAME DE CONJUNÇÃO CARNAL

Aos [DATA], nesta cidade de Campinas, a fim de atender a requisição do Dr (a)


[NOME DO DELEGADO], do (a) (e) [DISTRITO POLICIAL], os infra-assinados
doutores médico-legistas do Instituto Médico Legal de Campinas, procederam ao exame
de corpo de delito em [NOME DA VÍTIMA], [QUALIFICAÇÃO], para responder aos
quesitos seguintes:

PRIMEIRO: Houve prática de ato libidinoso?


SEGUNDO: Em que consistiu?;
TERCEIRO: Houve violência?
QUARTO: Qual meio empregado?
QUINTO: Da violência resultou para a vítima incapacidade para ocupações por mais de
trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade permanente de membro, sentido ou função,
ou aceleração de parto, ou incapacidade permanente para o trabalho ou enfermidade
incurável, ou perda ou inutilização de membro, sentido ou função, ou deformidade, ou
aborto?
SEXTO: É vítima alienada ou débil mental?
SÉTIMO: Houve qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir?

REALIZADA A PERÍCIA PASSARAM A OFERECER O SEGUINTE PARECER:

HISTÓRICO:

DESCRIÇÃO: Lesões Corporais


290

Colocado(a) em posição genupeitoral observamos:

Ânus:
Genitais:

Exame (s) Laboratoriais:

CONCLUSÃO:

RESPOSTAS AOS QUESITOS


1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.

_____________________________ __________________________
Assinatura Médico-Legista Assinatura Médico-Legista
291

 Termo de Consentimento

Entrevista

Entrevistado:__________________________________________________
Data: ________________________________________________________

Termo de Consentimento

Eu ___________________________________________, portador (a) do RG:


_____________________, permito a utilização das informações apresentadas por mim
nesta entrevista exclusivamente para fins da pesquisa, sendo que meu nome não será
publicizado em nenhum momento e por nenhuma circunstância. Estou ciente de que
essas informações serão utilizadas na pesquisa de doutorado de Larissa Nadai intitulada
“Entre documentos de investigação: uma pesquisa sobre a produção de provas materiais
em casos de estupro”, sob orientação da Profa. Dra. Maria Filomena Gregori docente do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP).
Estou ciente, ainda, de que este Termo de Consentimento está garantido pelo Código
de Ética do Antropólogo (1986) ratificado pela Associação Brasileira de Antropologia
(ABA) e que garante, em seu artigo 6º, que “Os direitos dos antropólogos devem estar
subordinados aos direitos das populações que são objeto de pesquisa e têm como
contrapartida as responsabilidades inerentes ao exercício da atividade científica”.
Respeitando, por fim, em seu artigo 4º, os direitos dos pesquisados, o qual lhes confere
a “Garantia de que a colaboração prestada à investigação não seja utilizada com o
intuito de prejudicar o grupo investigado”.

Campinas, ___ de ________________ de _______.

____________________________________
Assinatura da (o) Profissional

_____________________________________
Larissa Nadai
292

II. Quadro sobre as ocorrências policiais e laudos de corpo de delito em casos de


estupro e atentado violento ao pudor

 Dados importantes para a compreensão do quadro abaixo:

1. Todas as informações aqui reunidas foram retiradas dos inquéritos policiais


produzidos pela DDM de Campinas, entre os anos de 2004 e 2005. Tais
artefatos documentais foram recolhidos por mim durante minha pesquisa de
mestrado, realizada entre os anos de 2009 e 2011.
2. Dentre os papéis importantes para a construção das narrativas organizadas na
seção Informações sobre a ocorrência policial estão portarias, boletins de
ocorrência (B.O.), auto de prisão em flagrante, termos de declaração, auto de
qualificação e interrogatório e, finalmente, o relatório final da delegada
responsável pelo inquérito policial. Todos esses documentos foram forjados
por escrivãs e delegadas da Polícia Civil, cujas atribuições compreendem
conduzir investigações criminais que serão apreciadas pelo Ministério Público
e, depois, por juízes e advogados de defesa.
3. A tipificação penal corresponde ao Código Penal de 1940. Ou seja, está
referenciado pelos artigos 213 e 214, destinados aos “crimes contra os
costumes”. A saber, estupro e atentado violento ao pudor. Essas distinções são
objeto de reflexão do capítulo 3 desta tese. Em função de terem ocorrido entre
os anos de 2004 e 2005, as histórias aqui reunidas respondiam a tal texto legal.
4. Quanto à forma textual escolhida para a elaboração dessas histórias, sublinho
o uso de termos e encadeamentos narrativos utilizados pela própria Polícia
Civil para a caracterização do crime. Os personagens envolvidos nesses
inquéritos terão os nomes grafados pelas mesmas padronizações descritas no
corpo da tese. As qualificações de vítimas e autores foram retiradas dos
próprios papéis, utilizadas buscando não identificar os sujeitos ali
mencionados e por isso apresentam diferentes formatos. Por fim, as histórias
escolhidas correspondem ao exíguo corpus documental de laudos que reuni
durante o mestrado. Porém, não se relacionam diretamente à ideia de
convenções narrativas tal qual formulei em minha dissertação (NADAI,
2012).
293

Uma Alice
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento

No dia 02 de junho de 2004, uma Alice caminhava por uma conhecida


avenida da cidade de Campinas, quando foi abordada por um
Desconhecido. Munido de arma de fogo, o Desconhecido obrigou
uma Alice a acompanha-lo até a linha férrea da cidade. Nesse local, o
Desconhecido “manteve sexo oral, anal e vaginal” com uma Alice. A
vítima foi encaminhada ao CAISM e prestou queixa junto a DDM, no Portaria de início:
Estupro e dia 03 de junho de 2004. 01 de dezembro de
atentado No dia 24 de novembro de 2004, uma Alice reconheceu por fotografia 2004.
violento ao e “sem sombras de dúvidas” o Desconhecido como sendo Ricardo Relatório de
pudor Dias. Naquela data, Ricardo Dias, casado, cozinheiro e com 35 anos encerramento: 25
de idade, já se encontrava sob custódia, mediante prisão preventiva. de maio de 2005.
Ele também foi acusado de outros dezessetes estupros e atentados
violentos ao pudor ocorridos em Campinas, durante o ano de 2004.
Durante o interrogatório, o acusado permaneceu em silêncio. Ricardo
Dias já havia sido processado e condenado por outros seis estupros
ocorridos na cidade de São Paulo, na década de 90.
Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
1- Monte de
Vênus: recoberto
Lesões com pelos negros;
corporais: 2- Genitais
Escoriações externos de
Exame de
recentes em conformação:
conjunção
região espinhal normal para a
carnal Informa que Do
dorsal e lombar. idade; 3- Hímen: 1. Não
teria sido observado e
Exulceração infantil íntegro 2. Prejudicado
Data: 03 de vítima de exposto
(ruptura) carnoso, de orla 3. Prejudicado
junho de tentativa de concluímos
longitudinal em alta, óstio de 4. Prejudicado
2004. abuso sexual que a
toda a extensão pequena amplitude, 5. Prejudicado
sob ameaça examinada
do assoalho do não apresentando 6. Prejudicado
Qualificação de arma de não manteve
vestíbulo roturas; 4- Altura 7. Prejudicado
da vítima: 14 fogo em conjunção
vaginal descrito Uterina: não 8. Prejudicado
anos, solteira, 02/06/2004 carnal
no laudo de ato palpável pelo
natural de
libidinoso, abdômen; 5-
Campinas-SP.
diverso de Mamas: nada digno
conjunção de nota; 6- Ânus:
carnal. sem lesões de
interesse médico-
legal.
Exame de ato
Do visto e
libidinoso Ânus: não
observado 1. Sim.
apresenta nenhuma
concluímos 2. Provavelmente
Data: 03 de Informa que lesão
Lesões que a coito vestibular
junho de teria sido Genitais:
corporais: examinada 3. Sim
2004. vítima de Exulceração
Escoriações foi 4. Instrumento
tentativa de (ruptura)
recentes em submetida a contundente
Qualificação violência longitudinal em
região espinhal ato 5. Não
da vítima: 14 sexual toda a extensão do
dorsal e lombar libidinoso 6. Não
anos, solteira, assoalho do
coito 7. Prejudicado
natural de vestíbulo vaginal.
vestibular
Campinas-SP.
294

Uma Bianca
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento

No dia 10 de julho de 2004, uma Bianca caminhava por uma


conhecida avenida da cidade de Campinas, quando foi abordada por
um Desconhecido. O Desconhecido agarrou uma Bianca pelos
cabelos, arrombou a porta de um prédio abandonado e a levou até o
banheiro do último andar. No local, o Desconhecido “obrigou a
vítima a praticar sexo oral e posteriormente, ordenou que se
Portaria de
despisse e sodomizou [forçou o coito anal] a vítima”. A vítima, em
início: 01 de
companhia de sua irmã, foi ao 1º Distrito Policial de Campinas e
dezembro de
Atentado prestou queixa, no mesmo dia do ocorrido.
2004.
Violento ao No dia 25 de novembro de 2004, uma Bianca reconheceu por
Relatório de
pudor fotografia e “sem sombras de dúvidas” o Desconhecido como sendo
encerramento:
Ricardo Dias. Naquela data, Ricardo Dias, casado, cozinheiro e com
19 de maio de
35 anos de idade, já se encontrava sob custódia, mediante prisão
2005.
preventiva. Ele também foi acusado de outros dezessetes estupros e
atentados violentos ao pudor ocorridos em Campinas, durante o ano
de 2004. Durante o interrogatório, o acusado permaneceu em
silêncio. Ricardo Dias já havia sido processado e condenado por
outros seis estupros ocorridos na cidade de São Paulo, na década de
90.

Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
Eritema e edema
anal; observamos
Exame de ato duas fissuras
libidinoso localizadas em
Do observado
posições
e exposto 1. Sim.
Data: 10 de Informa ter [ilegível] na
concluímos 2. Coito anal
julho de 2004. sido região externa e
Lesões que houve 3. Prejudicado
forçada a interna
corporais: prática de ato 4. Prejudicado
Qualificação relação
XXXXXXXXX libidinoso 5. Prejudicado
da vítima: 17 oral e anal Exame
diverso de 6. Não
anos, nesta data laboratóra(is):
conjunção 7. Prejudicado
estudante, Sim. O resultado
carnal.
natural de segue em anexo.
Campinas-SP. [não foi
fotocopiado o
mesmo]
295

Um Felipe
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento

No dia 12 de dezembro de 2004, a Polícia Militar foi acionada pelo


COPOM para atender a uma ocorrência de violência sexual. No local
dos fatos, os agentes foram informados que um Felipe havia Auto de Prisão
permitido que Seu Alfredo, dono de um estabelecimento comercial de em Flagrante:
ração para animais, “chupasse seu pescoço com a finalidade de 13 de dezembro
Atentado
saciar sua lascívia”. Em retribuição, Seu Alfredo pagou a quantia de de 2004.
Violento ao
quatro reais a um Felipe. Segundo os policiais, tias fatos já haviam Relatório de
Pudor.
ocorrido outras duas vezes. encerramento:
Seu Alfredo, de 58 anos, casado, comerciante e natural de Campinas- 20 de dezembro
SP, foi preso em flagrante delito. O mesmo era procurado pela de 2004.
Comarca de Moji-Mirim pela prática de ato libidinoso. Perguntado
pela polícia sobre os fatos, Seu Alfredo permaneceu em silêncio.

Colocada em
Posição
Laudo de
Ginecológica Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Conclusão
ou quesitos
Delito
genupeitural
observamos

Exame de ato
libidinoso Lesões
Informa a
corporais: 1. Sim.
acompanhante Do
Data: 13 de observa-se 2 2. Sucção oral
(mãe) que notou observado
dezembro de equimoses Ânus: sem 3. Sim
a presença de exposto
2004. avermelhadas lesões de 4. Violência
uma marca concluímos
com cerca de interesse Presumida
‘chupão’ no que fora a
Qualificação 1,5 X 1,2 cm médico-legal 5. Não
pescoço de seu vítima de
da vítima: 12 lateral-direita o 6. Não
filho na data de sucção oral
anos de idade, pescoço, 7. Prejudicado
hoje
solteiro, e ovalada.
estudante.
296

Uma Joana
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento

No dia 17 de novembro de 2004, uma Joana caminhava por uma


conhecida avenida da cidade de Campinas, quando foi abordada por
um Desconhecido. O Desconhecido dizia precisar de ajuda para
entregar um pacote. Aparentemente armado, o Desconhecido exigiu
que uma Joana o acompanhasse. Em certa altura do caminho,
chegaram a uma casa abandonada, perto do mercado municipal da
cidade. Depois de perguntar se uma Joana era virgem, e diante da Portaria de
resposta positiva, o Desconhecido “obrigou-a a manter com ele início: 23 de
relação sexual por via oral e anal”. Antes de deixar o local, o fevereiro de
Atentado
Desconhecido entregou 10 reais a uma Joana e a ameaçou. 2005.
Violento ao
No dia 21 de novembro de 2004, uma Joana reconheceu por Relatório de
Pudor.
fotografia e “sem sombras de dúvidas” o Desconhecido como sendo encerramento:
Ricardo Dias. Naquela data, Ricardo Dias, casado, cozinheiro e com 02 de março de
35 anos de idade, já se encontrava sob custódia, mediante prisão 2009.
preventiva. Ele também foi acusado de outros dezessetes estupros e
atentados violentos ao pudor ocorridos em Campinas, durante o ano
de 2004. Durante o interrogatório, o acusado permaneceu em
silêncio. Ricardo Dias já havia sido processado e condenado por
outros seis estupros ocorridos na cidade de São Paulo, na década de
90.

Laudo de
Descrição do Respostas aos
Corpo de Histórico Discussão Conclusão
Exame quesitos
Delito
LAUDO Fissura no ânus. Embora a
INDIRETO. De Mamas/genitais presença de
Exame
acordo com a externos e fissura anal De acordo
indireto de
cópia internos: sem possa ser com os
ato libidinoso
xerográfica do alterações. compatível dados
prontuário – Presença de com o médicos
Data: 08 de 1. Prejudicado
HC: A vítima escoriação no histórico, fornecidos
junho de 2. Prejudicado
relatava ter sido quadril esquerdo. outras causas não temos
2005. 3. Prejudicado
abordada por Exames de etiologia elementos
4. Prejudicado
desconhecido sorológicos para não de certeza
Qualificação 5. Prejudicado
no caminho doenças traumática, que
da vítima: 22 6. Prejudicado
para o cursinho, sexualmente mas permitam
anos, branca, 7. Prejudicado
sob ameaça de transmissíveis: patológica, afirmar ou
solteira,
arma, sendo negativos na data podem infirmar ter
estudante,
obrigada a do dia 23.09.04 apresentar ocorrido ato
natural de São
manter relação até o último esse mesmo libidinoso
Paulo-SP.
oral e anal em exame datado de achado do
23.09.04. 01.05.05. exame
297

Uma Laura
Data de início
Tipificação
Informações sobre a ocorrência policial e
Penal
encerramento

No dia 17 de dezembro de 2005, a Polícia Militar foi acionada para


atender a uma ocorrência. No local dos fatos, os policiais foram
informados que tratava-se de uma briga de casal. Sr. Evandro havia Auto de
saído da casa de sua amásia, uma tal de Bárbara, e levado com ele as prisão em
chaves da residência. Diante da situação, os policiais militares flagrante: 17
acompanharam uma Bárbara até a casa do Sr.Evandro para que o de dezembro
Atentado mesmo lhe devolvesse as chaves. No local, ao adentrar a residência, uma de 2005.
Violento ao Bárbara encontrou o Sr.Evandro “deitado sobre uma Laura, na cama,
Pudor sendo que a menina usava apenas camiseta e ele estava com o shorts Relatório de
abaixado”. Uma Laura, a filha de Sr. Evandro, foi retirada da casa por encerramento
sua madrasta, embrulhada apenas num lençol. : 21 de
Mais um entre tantos Evandros, na época com 30 anos, amasiado e dezembro de
natural de Campinas-SP, foi preso em flagrante delito pelos policiais 2005.
militares. Perguntado na delegacia sobre os fatos a ele imputados, o Sr.
Evandro preferiu permanecer em silêncio.

Laudo de Colocada em Posição


Descriçã Respostas aos
Corpo de Histórico Ginecológica/Genupeitor Conclusão
o quesitos
Delito al observamos
Exame de
1- Monte de Vênus: sem
conjunção
pelos; 2- Genitais externos
carnal
de conformação: normal
1. Não
para a idade; 3- Hímen: Do exposto e
Data: 17 e Informa a 2. Prejudicado
anular, membranoso, de observado
19 de acompanhant 3. Prejudicado
orla baixa, óstio de concluímos
dezembro de e que teria Lesões 4. Prejudicado
pequena amplitude, não que a
2005. sido a corporais: 5. Prejudicado
apresentando roturas; 4- examinada
examinada Ausência. 6. Prejudicado
Altura Uterina: não apresenta
Qualificaçã vítima de ato 7. Prejudicado
palpável pelo abdômen; 5- hímen
o da vítima: libidinoso 8. Prejudicado
Mamas: sem lesões de integro.
9 anos,
interesse médico-legal; 6-
solteira e
Ânus: sem lesões de
natural de
interesse médico-legal.
Sumaré-SP.
Do
Exame de
observado e
ato
exposto,
libidinoso Ânus, apresentando 1. Sim
concluímos
fissura, rasgada sangrante, 2.
que a vítima
Data: 17 e Informa a Lesões medindo 2 cm no Provavelment
foi
19 de acompanhant corporais: quadrante posterior, assim e manipulação
submetida a
dezembro de e que teria sem lesão como, apresentando genital
ato
2005. sido a de hiperemia em torno da 3. Sim
libidinoso
examinada interesse região anal. 4. Presumida
com
Qualificaçã vítima de ato médico- 5. Não
característica
o da vítima: libidinoso legal. Exames laboratoriai(s): 6. Prejudicado
s de tentativa
9 anos, sim, pesquisa de 7. Sim, tenra
de
solteira e espermatozóide: negativa. idade.
penetração
natural de
em região
Sumaré-SP.
anal.
298

Uma Luciana

Tipificação Data de início e


Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento

No dia 06 de abril de 2004, uma Luciana e sua mãe compareceram à


DDM de Campinas. No dia anterior, 03 de abril de 2004, a mãe de
uma entre tantas Lucianas tomou ciência que, no dia 15 de
novembro de 1999, o pai de sua filha, Sr. Aluísio “tentou manter
relações sexuais com ela, sem haver penetração e a lambeu inteira”. Portaria de
Uma Luciana não contou nada a ninguém sobre o ocorrido, por início: 13 de
Atentado medo de seu pai. julho de 2004.
Violento ao Sr. Aluísio, de 45 anos, separado, autônomo e natural de Relatório de
Pudor Votuporanga-SP, afirmou em depoimento que “nunca tentou encerramento:
molestar sexualmente sua filha, tirando sua calcinha e lambendo 27 de abril de
todo seu corpo, que o declarante acredita que uma Luciana tenha 2006.
inventado tais fatos a seu respeito, porque repreendeu-a quando
esta lhe contou que estava apaixonada por um primo muito mais
velho do que ela e porque pretendia manter relações sexuais com
ele”.

Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
1- Monte de Vênus:
recoberto com
pelos; 2- Genitais
externos de
Exame de Do
conformação:
conjunção observado e
normal para a idade; 9. Não
carnal acima
Informa a 3- Hímen: integro, 10. Prejudicado
exposto
acompanhante carnoso, orla alta, 11. Prejudicado
Data: 22 de concluímos
que a vítima Lesões óstio de média 12. Prejudicado
abril de 2004. que a
teria sido corporais: amplitude, não 13. Prejudicado
examinada
tentada ou ausentes. apresentando rotura; 14. Prejudicado
Qualificação não manteve
abusada pelo 4- Altura Uterina: 15. Prejudicado
da vítima: 14 conjunção
próprio pai não palpável pelo 16. Prejudicado
anos e natural carnal,
abdômen; 5-
de Campinas- portanto é
Mamas: nada digno
SP. virgem.
de nota; 6- Ânus:
sem lesões de
interesse médico-
legal.
Exame de ato
libidinoso Do
observado e 1. Não
Informa a
Data: 22 de exposto 2. Prejudicado
acompanhante
abril de 2004. Lesões concluímos 3. Prejudicado
que o pai teria Ânus: nenhuma
corporais: que se atos 4. Prejudicado
tentado abusar lesão
Qualificação ausentes. libidinosos 5. Prejudicado
da própria filha
da vítima: 14 houve 6. Prejudicado
em 15/11/99.
anos e natural [rasurado] 7. Prejudicado
de Campinas- vestígios
SP.
299

Uma Madalena
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento

No dia 08 de outubro de 2004, uma Madalena foi abordada por


um Desconhecido, enquanto estava parada em um semáforo de
uma importante avenida da cidade de Campinas. O Desconhecido
anunciou o assalto. Alegando estar armado, entrou no veículo,
mirou a arma em sua direção e determinou que fizesse o caminho
por ele desejado. Durante o percurso, o Desconhecido pegou de
sua bolsa a quantia de 250 reais, exigindo que a mesma ainda
fizesse um saque de 500 reais, em um caixa Itaú da rodovia
Anhanguera. Em seguida, ele assumiu a direção do veículo e eles Portaria de
seguiram a Indaiatuba. Numa rua erma, mediante o uso de arma início: 01 de
de fogo, obrigou uma Madalena a manter com ele “conjunção dezembro de
carnal por via vaginal”. O ato foi feito sem preservativo e o 2004.
Estupro e Roubo homem chegou a ejacular em sua vagina. A vítima prestou queixa
no mesmo dia da ocorrência, junto ao plantão do 4º Distrito Relatório de
Policial da cidade. encerramento:
No dia 29 de novembro de 2004, uma Madalena reconheceu por 07 de outubro
fotografia e “sem sombras de dúvidas” o Desconhecido como de 2008.
sendo Ricardo Dias. Naquela data, Ricardo Dias, casado,
cozinheiro e com 35 anos de idade, já se encontrava sob custódia,
mediante prisão preventiva. Ele também foi acusado de outros
dezessetes estupros e atentados violentos ao pudor ocorridos em
Campinas, durante o ano de 2004. Durante o interrogatório, o
acusado permaneceu em silêncio. Ricardo Dias já havia sido
processado e condenado por outros seis estupros ocorridos na
cidade de São Paulo, na década de 90.

Colocada em
Posição
Laudo de Respostas aos
Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
Corpo de Delito quesitos
genupeitural
observamos
Exame de 1- Monte de Vênus:
conjunção pêlos negros; 2-
carnal Genitais externos de
conformação: Do
Data: 15 de Informa a normal para a idade; observado e 1. Sim
outubro de 2004 examinada 3- Hímen: anular acima 2. Não recente
Sem
e 18 de julho de que teria carnoso, de orla exposto 3. Prejudicado
lesões de
2008. sido vítima baixa, óstio de concluímos 4. Prejudicado
interesse
de estupro média amplitude, que a 5. Prejudicado
médico-
Qualificação da em apresentando rotura; examinada 6. Prejudicado
legal.
vítima: 25 anos, 08/10/04. 4- Altura Uterina: apresenta 7. Não
branca, sem lesões; 5- hímen com 8. Prejudicado
assistente Mamas: sem lesões; rotura antiga.
administrativo, 6- Ânus: sem lesões
solteira e natural de interesse médico-
de Londrina-PR. legal.
300

Uma Márcia
Data de início
Tipificação
Informações sobre a ocorrência policial e
Penal
encerramento

No dia 18 de maio de 2005, a Polícia Militar foi acionada via


COPOM para atender a uma ocorrência. No local dos fatos, uma
Márcia afirmou que havia cruzado com um tal de Carlos, seu
vizinho, no momento em que foi levar seu filho para a escola. Horas
depois, uma Márcia passava roupa, enquanto seu marido
descansava no quarto das crianças, momento no qual o tal Carlos
adentrou a casa e a abordou. A voz de outro dentre tantos Carlos
alertou seu marido, um Luís. Diante da presença dele no quarto do Portaria de
casal, o tal Carlos mandou que uma Márcia amarasse seu marido
início: 15 de
com o fio do ferro de passar roupa; e, também, cobriu a cabeça de
um Luís com o edredon. Arrastou uma Márcia até a sala da casa,
julho de 2005.
momento em que aumentou o som do rádio, e obrigou uma Márcia
Estupro a “chupar seu pênis, em seguida tirou o shorts e a calcinha da
Relatório de
declarante, mantendo com a mesma relação sexual vaginal, que o
mesmo ejaculou em sua vagina e não usou preservativo”. O tal
encerramento:
Carlos furtou o celular de um Luís e, sem conseguir esboçar 26 de outubro
qualquer reação, uma Márcia permaneceu no cômodo, enquanto seu de 2005.
marido saiu com um facão atrás do tal Carlos.
O tal Carlos, de 28 anos, solteiro e natural de Sertaneja-PR, teve
sua prisão preventiva expedida em 03 de outubro de 2005. Em seu
depoimento, colhido na mesma data, negou “em qualquer ocasião
[ter] estuprado ou molestado alguém”. Afirmou ter uma moto e já
ter sido preso pela falta de pagamento da pensão de seu único filho.
Além disso, negou ter uma arma de fogo.

Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
1- Monte de Vênus:
pêlos negros; 2-
Do observado
Genitais externos
Exame de e exposto
Informa a de conformação:
conjunção concluímos
examinada normal para a
carnal que a
que teria idade; 3- Hímen: 1. Sim
examinada
sido vítima Lesões reduzido a 2. Não recente
Data: 30 de apresenta
de corporais: carúnculas 3. Prejudicado
maio de 2005. carúnculas
conjunção sem lesões mirtiformes; 4- 4. Prejudicado
mirtiformes,
carnal e de interesse Altura Uterina: não 5. Prejudicado
Qualificação portanto, não
sexo oral, médico- palpável pelo 6. Prejudicado
da vítima: 27 temos
mediante legal abdômen; 5- 7. Prejudicado
anos, condições de
ameaça com Mamas: sem lesões 8. Prejudicado
convivente e afirmarmos ou
revólver em de interesse
natural de Foz negarmos a
19/05/05. médico-legal; 6-
do Iguaçu-PR. queixa da
Ânus: sem lesões
pericianda...
de interesse
médico-legal.
301

Uma Selma
Data de início
Tipificação
Informações sobre a ocorrência policial e
Penal
encerramento

No dia 16 de outubro de 2004, uma Selma foi abordada por um


Desconhecido assim que abriu a porta de seu trabalho. O tal
Desconhecido já havia passado por lá outras vezes. Nesse dia,
contudo, o Desconhecido anunciou um assalto. Depois de trancar
uma Selma no banheiro e fechar a auto-escola, ele roubou o valor de
150 reais que havia na gaveta do estabelecimento. Em seguida,
mandou que uma Selma entrasse em um quartinho e tirasse toda a
sua roupa. Munido com uma arma de fogo, tentou manter relações
Portaria de
sexuais com uma Selma por via anal, mas não conseguiu. Diante
início: 01 de
disso, obrigou que a vítima “fizesse com ele sexo oral, sem
dezembro de
Roubo e preservativos, chegando a ejacular em sua boca e impedindo que
2004.
Atentado cuspisse”. Antes de deixar o local, o Desconhecido prendeu
violento ao novamente uma Selma no banheiro e, na semana seguinte, a ameaçou
Relatório de
pudor por telefone.
encerramento:
No dia 30 de novembro de 2004, uma Selma reconheceu por
08 de março de
fotografia e “sem sombras de dúvidas” o Desconhecido como sendo
2006.
Ricardo Dias. Naquela data, Ricardo Dias, casado, cozinheiro e com
35 anos de idade, já se encontrava sob custódia, mediante prisão
preventiva. Ele também foi acusado de outros dezessetes estupros e
atentados violentos ao pudor ocorridos em Campinas, durante o ano
de 2004. Durante o interrogatório, o acusado permaneceu em
silêncio. Ricardo Dias já havia sido processado e condenado por
outros seis estupros ocorridos na cidade de São Paulo, na década de
90.

Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
1- Monte de Vênus:
pêlos negros; 2-
Genitais externos de
Laudo de
conformação: normal
conjunção
para a idade; 3-
carnal Informa a
Hímen: Anular,
examinada Do observado
carnoso, de orla alta,
Data: 18 de que teria sido e exposto
óstio de média 1. Sim
outubro de vítima de ato Lesões concluímos
amplitude, 2. Não recente
2004. libidinoso corporais: que a
apresentando rotura 3. Prejudicado
(sexo oral e sem lesões examinada
completa, cicatrizada, 4. Prejudicado
Qualificação tentativa de de apresenta
localizada em junção 5. Prejudicado
da vítima: anal), sob interesse roturas
de quadrantes 6. Prejudicado
solteira, ameaça de médico- antigas e se
anterior e posterior 7. Prejudicado
balconista, 22 arma de fogo legal ato libidinoso
direito; 4- Altura 8. Prejudicado
anos e natural em 16 de houve marcas
Uterina: não palpável
de Alfenas- outubro de não ficaram...
pelo abdômen; 5-
MG. 2004
Mamas: sem lesões
de interesse médico-
legal; 6- Ânus: sem
lesões de interesse
médico-legal.
302

III. Dos jornais e casos – resumo dos itinerários de pesquisa

A pesquisa tomou como principal periódico a ser investigado o jornal a Folha de São
Paulo. A escolha responde à produção diária de tal veículo, por sua expressiva tiragem
nacional e em função das referências feitas por Badan Palhares. No que tange sua
autoimagem, a Folha de São Paulo afirma “oferecer ao leitor informações pluralistas e
apartidárias, para que ele exerça sua cidadania. É, ao mesmo tempo, um instrumento
fundamental para os formadores de opinião, que nele encontram análises sobre os últimos
acontecimentos”.
O periódico encontra-se acessível e integralmente digitalizado para consulta, com
exemplares disponíveis a partir do ano de 1921. O acesso às informações é de domínio
público e seu sistema de busca é bastante prático, sendo possível que se selecione um período
temporal e palavras-chave específicas. Exemplo: “De [data] a [data]” com as seguintes
palavras “[palavras escolhidas]”. Depois de inseridas as informações desejadas,
automaticamente, a plataforma lista todas as reportagens contendo as palavras-chave
elencadas, dentro do recorte temporal escolhido. Em linhas gerais, consta a data da matéria
jornalística, qual caderno do jornal foi publicada e sua página.
Quanto a outros jornais, escolhi utilizar tais periódicos a partir de datas bastante
circunscritas, seguindo indicações de outros materiais etnográficos, como a autobiografia de
Badan Palhares (2007) ou documentos oficiais. Um desses, o Jornal do Brasil, encontra-se
também digitalizado e seu acervo é de domínio público. Contudo, a busca em sua plataforma
exige a inserção de datas específicas para a pesquisa, motivo pelo qual uma análise mais
sistemática de suas tiragens tornou-se bastante prejudicada. Já os jornais O Estado de São
Paulo e O Globo exigem assinatura e disponibilizam ao leitor o acesso a, no máximo, dez
reportagens mensais. Tais obstáculos demandariam a realização de uma pesquisa etnográfica
dedicada somente a jornais. Por esta razão, faço apenas um uso estratégico destes periódicos.
Para o corpus de reportagens reunido, defini certos recortes temporais e palavras-
chave. Toda a pesquisa está ancorada nos procedimentos discriminados a seguir:
 Numa busca junto ao acervo do jornal Folha de São Paulo, com a palavra “Mengele”,
entre 01 de junho de 1985 a 05 de setembro de 1985 – data na qual a ossada foi
encaminhada à Campinas – encontrei 96 reportagens. Já em relação ao período de
reconstituição da face de Mengele, compreendido entre os meses de setembro de 1985
a junho de 1986, obtive um conjunto de 31 notícias contendo alguma citação sobre o
carrasco nazista. Todas elas foram publicadas no “Primeiro Caderno”, na seção
303

“Internacional” do periódico. O conjunto total de matérias cobre desde a descoberta


do crânio de Josef Mengele até sua entrega a Rubens Brasil Maluf por Badan Palhares,
em 13 de junho de 1986.
 No caso envolvendo a descoberta e a identificação das ossadas exumadas junto ao
cemitério Dom Bosco, em Perus, utilizei como palavra-chave o termo “cemitério de
Perus”. Também empreendi buscas combinadas com as expressões “Badan”,
“ossadas” e “Perus”. O recorte temporal de 01 de julho de 1990 a 01 de janeiro de
2017 permitiu que 198 reportagens fossem discriminadas. A maioria delas foi
publicada no “Primeiro Caderno”, na seção “Política”. Além destas, um número
considerável de reportagens foi publicado numa tiragem regional da Folha de São
Paulo, chamada Folha Sudeste, destinada a Campinas e região.
 No caso envolvendo PC Farias, a busca foi realizada mediante as palavras-chave: “PC
Farias” e “Suzana Marcolino”. Também realizei buscas combinadas entre esses dois
termos e o nome de algum dos peritos envolvidos, quando importantes para o
esclarecimento de informações específicas. Para o período de 23 de junho de 1996 a
01 de janeiro de 2017 foram discriminadas 588 reportagens. Em sua grande maioria,
tais notícias encontravam-se publicadas no “Primeiro Caderno”, na seção “Brasil”.
Por fim, no que tange as estéticas das reportagens utilizadas, elas eram de tamanhos
variados. Quando curtas e escritas em exíguas colunas, elas dividiam espaço com notícias
sobre a política nacional e internacional ou com anúncios publicitários dos mais diversos. As
imagens publicadas, na maioria dos casos, eram de difícil visualização. Primeiro em razão da
precária digitalização e, segundo, por encontrarem-se em branco e preto. Exatamente por
estarem localizadas em diferentes seções do periódico – “Brasil”, “Política” e
“Internacional” –, tais reportagens impactaram de distintas maneiras na vida nacional.
Tiveram também diferentes repercussões na mídia internacional. Isso fica mais evidente
quando comparamos o ritmo e o número de reportagens para cada um dos casos pesquisados.
Sem dúvida, há um investimento muito mais detetivescos para o caso Mengele e para o caso
PC Farias, do que aqueles destinado ao caso de Perus.
304

IV. Quadro das tramas e de seus principais personagens

 Dados importantes para a compreensão dos quadros abaixo:

1. Com vistas a apresentar os principais personagens das tramas políticas, midiáticas e


institucionais traçadas nos capítulos IV e V, o anexo a seguir apresenta um diagrama
explicativo das relações entre tais personagens, além de tabelas com os enredos e
histórias dos casos.
2. Badan Palhares é o centro do diagrama. A sua esquerda encontram-se os atores que
discriminei em meu texto como seus aliados. A sua direita, estão localizados aqueles
que, ao longo de sua carreira, e, em minhas reflexões, foram indicados como seus
rivais ou desafetos. Acima do nome de Palhares é apresentado Harry Shibata, uma
vez que o mesmo teve um papel importante naquilo viria a ser o caso de Perus e
citado por Badan Palhares (2007, p. 80) como um dos professores e funcionários do
IML que tiveram influência em sua trajetória. O diagrama também assinala, na sua
parte inferior, os nomes dos principais personagens dos três casos aqui analisados.
3. Além disso, este anexo traz ainda dois quadros explicativos. No primeiro quadro,
encontra-se uma biografia resumida da vida e da carreira de Fortunado Antônio
Badan Palhares e no segundo destaco algumas informações biográficas e políticas
dos casos analisados nesta tese. A saber, (i) elementos sobre a biografia de Josef
Mengele, (ii) dados sobre a construção do cemitério Dom Bosco em Perus, a vala
comum nele construída e a biografia de todos os desaparecidos políticos citados no
texto desta tese e (iii) uma resumida biografia política de PC Farias e as
tendenciosas informações biográficas encontradas sobre Suzana Marcolino da Silva.
306

Biografia

Fortunato Antônio Badan Palhares

Filho primogênito de Hélia Badan Palhares e Geraldo Amaral Palhares, Fortunato Antônio
Badan Palhares, nasceu no dia 27 de junho de 1943, na cidade de São Paulo. Aos doze anos
de idade, Badan Palhares começou atuar na farmácia Santa Estela, construída por seu pai.
Sem grandes riquezas materiais, e depois da doença de um dos seus sete irmãos, a família
Palhares fechou o estabelecimento farmacêutico por eles adquirido e se mudaram para
Campinas, cidade do interior do estado de São Paulo. Entre o serviço militar obrigatório, a
formação escolar e a ajuda na nova farmácia, Badan Palhares conseguiu seu primeiro
emprego como auxiliar técnico de laboratório, na recém-criada Faculdade de Ciências
Médicas (FCM) da Unicamp. Formado na primeira turma do curso técnico de laboratório,
oferecido pela referida faculdade, Palhares tentou por dois anos consecutivos ingressar no
curso de medicina da FCM. Postergado o sonho de se tornar médico, ele estagiou em
inúmeros laboratórios da faculdade de medicina de Ribeirão Preto e em laboratórios
particulares da mesma cidade. O retorno a Campinas e o trabalho no laboratório da Casa de
Saúde de Campinas foi interrompido pela aprovação para cursar medicina em Portugal.
Através de um “convênio cultural” entre Brasil e Portugal, destinado a alunos de escolas
públicas e com bom desempenho escolar, Badan Palhares iniciou seus estudos na faculdade
de medicina de Coimbra, no ano de 1967. No quarto ano de graduação, incentivado por
professores e estudantes mais velhos, ele solicitou sua transferência para a Universidade de
Lisboa para que pudesse complementar sua formação devido à magnitude do hospital
universitário ali alocado e da variedade de instituições hospitalares que a capital dispunha.
Em 1971, pressionado por seu pai e, em função dos problemas cardíacos de sua mãe, Badan
Palhares prestou as provas de seleção para alunos remanescentes oferecidas pela Unicamp. Ao
ser aprovado, ele retornou ao Brasil. O período de graduação em Campinas foi marcado por
inúmeros postos de trabalhos, tais como o emprego na maternidade de Campinas, no banco de
sangue da Unicamp e em plantões prestados em diversos hospitais da cidade. Num misto de
superação e mérito pessoal, Badan Palhares retrata a si mesmo como um menino pobre que,
com dificuldade e força de vontade, cursou medicina, fez sua residência na área de anatomia
patológica, e, finalmente, tornou-se doutor e professor do Departamento de Anatomia
307

Patológica e Medicina Legal, em 1985. Em 1986, em função de seus investimentos pessoais e


acadêmicos, nasceu Departamento de Medicina Legal e Ética (DMLE), para o qual Palhares
esteve incumbido da chefia por vários anos. A medicina legal ganhou centralidade na
trajetória de Badan Palhares em função de uma sequência de acontecimentos, a começar por
seu internato no departamento de Anatomia Patológica e Medicina Legal. Por seu traquejo em
periciar cadáveres ele foi convidado para atuar como assistente nas aulas práticas de medicina
legal, realizadas no IML da cidade, por seu professor Manuel Pereira. Pouco depois, em 1975,
ele prestou o concurso para médico-legista da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo,
na comarca de Campinas, e foi aprovado. O recém-ingresso na Polícia Técnico-Científica foi
marcado por uma tragédia. Seu irmão caçula foi assassinado num restaurante da cidade, após
uma discussão com um dos funcionários do estabelecimento comercial, em função dos valores
a serem pagos. Para Badan Palhares, durante a consecução das investigações e do processo
penal, houve falhas importantes na construção da tese de legítima defesa que inocentou o
sujeito que havia esfaqueado seu irmão. Dali em diante, a função de médico-legista foi vista
por ele como uma forma de “fazer justiça”. Como funcionário do IML, Badan Palhares atuou
também como diretor do posto de Campinas, no final da década de 80. Depois das inúmeras
denúncias tramitadas contra ele, Palhares teve um infarto e, como me disse em entrevista,
escolheu sair dos holofotes. Atualmente, encontra-se aposentado do IML e da UNICAMP
(2011) e segue trabalhando no Instituto de Patologia de Campinas (IPC), localizado ao lado
do prédio da Maternidade, do qual é sócio-diretor. Badan Palhares casou-se com Elizabeth
Aparecida de Paula Leite e teve dois filhos.

Fonte: Palhares, 2007 e entrevista realizada em outubro de 2016.


308

CASO MENGELE

Josef Mengele

Josef Mengele nasceu em 1911, Günzburg, no sul da Alemanha. Filho primogênito de uma
família católica, representante da burguesia local em função de uma fábrica de implementos
agrícolas, Mengele iniciou sua formação acadêmica em medicina e antropologia por volta de
1930. Em 1935, tornou-se Ph.D. em antropologia física, pela Universidade de Munique.
Começou sua carreira como assistente de um renomado médico alemão, Otmar Von
Verschuer, junto ao Instituto de Biologia Hereditária e Higiene Racial da Universidade de
Frankfurt. Em 1937, Mengele se filiou ao partido nazista e, em pouco tempo, passou a
integrar a Schutzstaffel (SS), onde em 1943 foi promovido a capitão e enviado ao campo de
concentração de Auschwitz, para comandar uma parte do complexo de Birkenau, sob o
comando do capitão da SS, Eduard Wirths. Acredita-se que seu apelido “Anjo da Morte” ou
“Anjo de Branco” foi cunhado devido à frieza com a qual, junto à rampa de acesso em
Auschwitz, selecionava aqueles que deveriam ser imediatamente mortos nas câmeras de gás.
Além disso, suas experiências médicas e científicas, muitas vezes agonizantes e letais,
mataram inúmeras crianças gêmeas judias e ciganas. Com o fim da Segunda Guerra Mundial,
Mengele se escondeu na Bavária, Alemanha, de onde seguiu para a Argentina, o Paraguai e,
finalmente, o Brasil, onde ficou domiciliado em inúmeros municípios do estado de São Paulo,
entre eles: Araraquara, Serra Negra, Caieiras e Diadema. Informações sobre o paradeiro de
Josef Mengele vieram à tona pela primeira vez em meio às investigações que permitiram que
Adolf Eichmann fosse encontrado pelos agentes da Mossad, polícia secreta israelense, em
Buenos Aires, Argentina. Contudo, durante a prisão de Eichmann, Mengele conseguiu fugir
em direção ao Paraguai. Dali em diante, uma nova cortina de fumaça permitiu que o carrasco
nazista permanecesse escondido por mais de quinze anos. Em maio de 1985, depois de uma
longa investigação, a polícia da Alemanha Ocidental chegou a uma propriedade da família
Mengele, localizada em sua cidade natal, na Bavária. A invasão a casa desenterrou uma
coleção de documentos que se transformariam em tesouros históricos para compreensão e a
reconstituição do regime nazista. Entre esses documentos, foram encontradas cartas pessoais
trocadas entre a família de Mengele e o casal austríaco Wolfram e Liselotte Bossert. O casal
Bossert vivia em São Paulo e quando contatados pela polícia da Alemanha Ocidental,
confirmaram as informações e a estadia de Josef Mengele no Brasil. Mengele, para tanto, e
309

ajudado pelos Bossert, assumiu a identidade de um amigo austríaco Wolfgang Gerhard, que
havia morado no Brasil e voltado para a Áustria, deixando para trás seus documentos
pessoais. O contato com a família Bossart, contudo, revelou um paradeiro impensável para o
carrasco nazista. Josef Mengele encontrava-se enterrado no Cemitério de Nossa Senhora da
Conceição, em Embu das Artes, São Paulo, depois de ter se afogado, em 1979, durante um
banho de mar, em Bertioga, litoral de São Paulo. O IML de Santos realizou a necropsia no
cadáver de Wolfgang Gerhard, seu nome falso, e determinou como a causa da morte um
derrame cerebral.
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum, Enciclopédia do Holocausto, disponível
em: https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10007060, e Galle, 2011.
310

CASO PERUS

Cemitério Dom Bosco e a vala clandestina

O cemitério Dom Bosco foi inaugurado em 1971, durante o governo municipal de Paulo
Salim Maluf, nomeado para o cargo pelo general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
Com uma extensão de 254 mil metros quadrados, a necrópole foi construída em Perus,
subprefeitura na zona norte da capital de São Paulo, com vistas a atender os bairros
periféricos da cidade e abrigar o sepultamento de indigentes ou indivíduos pobres sem
identificação. Fazia parte do projeto inicial de sua construção, a implementação de um
crematório. Contudo, tal proposta para um cemitério destinado a indigentes causou muitas
suspeitas. Em particular, porque o projeto não previa portas de acesso restrito às salas de
cremação, nem um hall para cerimônia e acolhimento a familiares presentes durante o
processo. Diante dos entraves legais tanto em âmbito nacional quanto internacional, a ideia foi
abandonada. O forno encomendado junto à empresa Dawson & Mason, em 1969, foi mais
tarde, em 1974, instalado no cemitério da Vila Alpina. Segundo os documentos oficiais, a
construção do crematório não era o único projeto de gestão municipal a cemitérios
empreendidos pelo governo de Paulo Maluf. Durante sua atuação como governador, não
foram poucos os seus investimentos em modificar as legislações vigentes para sepultamentos
e exumações e em alterar a organização e o uso de outros cemitérios, como o da Vila
Formosa, que até 1971 recebia a maioria dos corpos designados como “indigentes”. No caso
de exumações, o CEMIT – Departamento de Cemitérios – estava autorizado a desenterrar
qualquer corpo depois de decorridos três anos de seu sepultamento. Foi exatamente
cumprindo essas diretrizes que o administrador do cemitério Dom Bosco, Dr. Dilermando
Lavrador Filho, autorizou, em 1974, a exumação dos corpos sepultados nas quadras 1 e 2, da
Gleba 1, da necrópole. Procedimento padrão, ainda hoje, conduzido por cemitérios públicos,
as ossadas exumadas visavam dar espaço a novos sepultamentos, ainda que o terreno do
cemitério não estivesse à época completamente utilizado. A escolha pela exumação tinha por
objetivo liberar os espaços mais nobres do cemitério e colocá-los a venda. As ossadas
retiradas deveriam ser ensacadas individualmente e armazenadas no ossário da necrópole. As
primeiras ossadas desenterradas, cerca de aproximadamente quatrocentas, permaneceram
amontoadas, por cinco meses, junto às salas de velório do cemitério Dom Bosco. Nos anos
seguintes, Rubens José Vieira, administrador que substituíra Lavrador Filho, deu
311

prosseguimento às exumações da quadra 2, da Gleba 1. A identificação numérica dos sacos


plásticos que acondicionaram as ossadas exumadas era um procedimento padrão, contudo, foi
realizado de modo bastante ineficiente. Um barbante prendia um pedaço de papel com as
identificações de cada uma das ossadas exumadas e o local no qual ela jazia antes da remoção.
Depois de meses guardadas de forma “precária”, o Serviço Funerário determinou que as
ossadas fossem novamente reinumadas. Pela legislação vigente na época, em casos de pessoas
sem identificação ou declaradas indigentes, determinava-se que os ossos fossem
acondicionados na mesma sepultura, numa vala mais profunda. Porém, ambas as quadras 1 e
2 seriam futuramente colocadas sob concessão ou a venda e era necessário uma outra
alternativa. Como solução, em 1976, Rubens Vieira deu início a uma nova escavação. Com o
auxílio de uma retroescavadeira, uma vala de 30 metros de comprimento, 50 metros de
largura e quase 2 metros de profundidade foi aberta no cemitério Dom Bosco. Na planta
original, registrada junto ao Departamento de Cemitérios, no local da vala deveria ser
construída a capela da necrópole. Durante todos os procedimentos, nada foi registrado, a
planta do cemitério não foi atualizada e nenhuma indicação sobre o sepultamento foi
providenciada. Assim, por muitos anos, a vala, construída sem alvenaria e sem os requisitos
básicos indicados, permaneceu “irregular, ilegal e clandestina”. Muitos anos depois, em
julho de 1990, esses procedimentos vieram, novamente, à tona. O administrador do cemitério
Dom Bosco, Antônio Pires Eustáquio contaria a Caco Barcellos, jornalista investigativo da
Rede Globo de televisão, sobre a existência da vala. Caco Barcellos investigava na época uma
denúncia sobre venda ilegal de caixões. Antônio Eustáquio confidenciou a Barcellos que já
havia comunicado inúmeras vezes aos seus superiores sobre a existência da vala e das ossadas
nelas enterradas, mas, nada foi feito. Com autorização de seu chefe de reportagem, Narciso
Kalili, Barcellos, primeiramente, confirmou a irregularidade da vala: numa pesquisa junto ao
CEMIT, conseguiu acesso à planta de arruamento do cemitério e certificou-se da ausência de
seus registros. Além disso, como mais uma indicação de irregularidades, pôde constatar que a
localização apontada para vala não correspondia ao local destinado à construção do ossário
que havia sido planejado para o cemitério. Aberta, sob os flashes e os olhares de familiares de
desaparecidos, entidades de proteção dos direitos humanos, servidores do cemitério, da
Polícia Militar e da Defesa Civil, a vala exibia os sacos pretos, sem identificação externa e em
avançado estado de deterioração. Data de 1990 os primeiros esforços de catalogação e
identificação das ossadas exumadas da vala de Perus. Em 1993, a prefeita Luiza Erundina
inaugurou um muro, idealizado por Ricardo Ohtake, em homenagens aos desaparecidos
312

políticos enterrados no cemitério Dom Bosco. O muro foi, em 2015, revitalizado por
grafiteiros e coletivos do bairro de Perus, tornando-se um memorial da luta de resistência na
cidade de São Paulo e um marco sobre a violação dos direitos civis empreendidas durante o
período ditatorial no Brasil.

Fonte: INSTITUTO MACUCO, 2012; TELLES, 2001, Relatório CPI Perus, 1999 e
Cemitério Dom Bosco e Vala de Perus, Programa Lugares da Memória, Memorial da
Resistência de São Paulo.

Desaparecidos políticos identificados pelo DMLE da UNICAMP

Antônio Carlos Bicalho Lana

Antônio Carlos Bicalho Lana nasceu em 02 de março de 1948, em Ouro Preto, Minas Gerais.
Envolvido com o movimento estudantil desde meados da década de 60, Lana atuou ao lado de
militantes universitários, secundaristas e operários. Filiado ao Corrente Revolucionária de
Minas Gerais, CORRENTE Brasil, o militante viajou para Cuba, entre 1969 e 1970. Retornou
ao Brasil já na clandestinidade, depois de receber seis meses de treinamento de guerrilha. No
início dos anos 70, como dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), Lana passou a
militar em São Paulo. Depois de inúmeras emboscadas, ele foi capturado, em novembro de
1973, em São Vicente, São Paulo. Na data de sua prisão, ele estava acompanhado por Sonia
Maria de Moraes Angel Jones. Lana foi torturado pelo capitão Ênio Pimentel e faleceu no dia
30 de novembro de 1973. Oficialmente, foi divulgado que Antônio Carlos Bicallho Lana
morreu depois de uma troca de tiros ocorrida em Santo Amaro, em São Paulo. Seu laudo de
necropsia foi assinado por Harry Shibata e Antônio Valentini e data de 05 de dezembro de
1974. Nos documentos do cemitério de Perus, consta que Lana foi enterrado no dia 01 de
dezembro de 1973 e exumado no dia 24 de novembro de 1977. Seus restos mortais foram
retirados de uma sepultura individual do cemitério Dom Bosco e identificada pelo DMLE da
Unicamp em 07 de agosto de 1991. O enterro de sua ossada ocorreu em Ouro Preto, em Minas
Gerais, no dia 12 de agosto de 1991.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=186.
313

Dênis Casemiro

Dênis Casemiro nasceu no dia 09 de dezembro de 1942, na cidade de Votuporanga, São


Paulo. Envolvido com o movimento camponês, o trabalhador rural frequentou o Sindicato de
Lavradores de Votuporanga, tornou-se militante político de uma dissidência do PCdoB, a Ala
Vermelha, e, posteriormente, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Depois de 1967,
Dênis Casemiro mudou-se para cidade de São Bernardo do Campo, na região do ABC de São
Paulo e para Imperatriz, no Maranhão. Na clandestinidade, o militante foi localizado e preso
pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS/SP. Transportado para São Paulo, Casemiro
ficou preso e foi torturado por quase um mês. Foi fuzilado pelo delegado Paranhos, no dia 18
de maio de 1971. Na versão oficial, o trabalhador rural foi morto depois de tentar fugir,
durante uma viagem à cidade de Ubatuba para a identificação de um campo de treinamento da
VPR. Seu laudo necroscópico foi assinado por Paulo Augusto Queiroz Rocha e Renato
Capellano e mencionava o ferimento por projetil de fogo, sem, contudo, atestar qualquer uma
das torturas contra ele empreendidas. Dênis Casemiro foi exumado da vala clandestina de
Perus e identificado pelo DMLE, da Unicamp, em 21 de julho de 1991. Seus restos mortais
foram entregues a família e enterrados em Votuporanga, no dia 13 de agosto de 1991.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=271.

Emmanuel Bezerra dos Santos

Emanuel Bezerra dos Santos nasceu no dia 17 de junho de 1943, na cidade de São Bento do
Norte, no Rio Grande do Norte. Ainda no ensino secundarista, em 1961, o militante fundou o
jornal O Realista e O Jornal do Povo, cujas publicações eram distribuídas em diversos
municípios da região. Em 1967, ingressou na Faculdade de Sociologia da Fundação José
Augusto e durante seus anos de graduação atuou em inúmeros quadros dirigentes do Diretório
Central dos Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da União
Nacional de Estudantes (UNE). Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e depois ao
Partido Comunista Revolucionário (PCR), ainda em 1969, Emmanuel Bezerra dos Santos foi
preso e cumpriu pena em quartéis do Exército, no distrito policial e na base naval de Natal.
314

Depois de solto, entrou para a clandestinidade. Como dirigente nacional do PCR, passou a
militar nos estados de Pernambuco e Alagoas. Antes de ser novamente preso, junto com
Manuel Lisboa de Moura, no dia 16 de agosto de 1973, em Recife, Emmauel Bezerra dos
Santos viajou para a Argentina e para o Chile com o intuito de reunir exilados brasileiros à
luta política contra a ditadura. Dias depois de ser torturado no DOPS/PE, ele foi entregue ao
delegado Sérgio Paranhos Fleury, em São Paulo, onde foi mais uma vez torturado. Na versão
oficial divulgada pelos policiais, Emmanuel e Manuel morreram em um tiroteio ocorrido no
Largo de Moema, no dia 4 de setembro de 1973. Seu laudo necroscópico foi assinado por
Harry Shibata e Armando Canger Rodrigues e nele as torturas empreendidas contra
Emmanuel Bezerra dos Santos foram completamente omitidas. Seu cadáver foi enterrado no
cemitério do Campo Grande, São Paulo, como indigente. Sua ossada foi identificada pelo
DMLE, da Unicamp, em meados de 1992. Seus restos mortais foram entregues à família, na
cidade de São Bento do Norte, no dia 14 de julho de 1992.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=188&m=3.

Frederico Eduardo Mayr

Frederico Eduardo Mayr nasceu no dia 29 de outubro de 1948, em Timbó, Santa Catarina.
Aos 18 anos, Frederico Mayr ingressou na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e já em seu segundo ano de graduação engajou-se no movimento
estudantil, passando a militar, tempos depois, pela Ação Libertadora Nacional (ALN). Em
1969, foi processado em auditorias militares do Rio de Janeiro. Depois de condenado, Mayr
abandonou a faculdade e, na clandestinidade, viajou para Cuba, onde recebeu treinamento de
guerrilha. Em 1971, retornou ao Brasil e se filiou ao Movimento de Libertação Popular
(MOLIPO). Frederico Eduardo Mayr foi preso no dia 23 de fevereiro de 1972, depois de ser
baleado na perna. No DOI-CODI de São Paulo, Mayr foi torturado e morreu um dia depois de
sua prisão. Segundo os agentes da polícia, Mayr morreu devido a uma troca de tiros, ocorrida
no Jardim Glória. Seu laudo necroscópico foi assinado por Isaac Abramovitc e Walter Sayeg e
reafirmava o óbito em função dos três tiros deflagrados contra seu corpo. Sob nome falso,
Frederico Eduardo Mayr foi enterrado no Cemitério Dom Bosco. Sua ossada foi retirada da
vala comum de Perus e identificada pelo DMLE, da Unicamp, em 1992. Seus restos mortais
315

foram entregues à família Mayr e enterrados no Rio de Janeiro, no dia 12 de julho de 1992.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009; INSTITUTO MACUCO, 2012 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=159&m=3.

Helber José Gomes Goulart

Helber José Gomes Goulart nasceu no dia 19 de setembro de 1944, em Mariana, Minas
Gerais. Desde os onze anos de idade passou a trabalhar com a venda de jornais, em escritórios
e como datilógrafo. No começo dos anos 60, mudou-se para São Paulo em busca de melhores
condições de trabalho. Influenciado pelo pai, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, Helber
Goulart juntou-se ao Grupo dos Onze, tal qual idealizado por Leonel Brizola, em 1962. Com
o golpe militar, em 1964, mudou-se para o Mato Grosso para trabalhar na construção da
hidrelétrica de Urubupungá. As duras condições de trabalho e de segurança fizeram com que
Helber retornasse a sua cidade natal, no fim dos anos 60. Antes de militar pela Ação
Libertadora Nacional (ALN), Helber participou do Corrente Revolucionária de Minas Gerais,
CORRENTE Brasil. A partir de 1971, em função da atuação junto à ALN, ele mudou-se, na
clandestinidade, para São Paulo. A sua morte data de 16 de julho de 1973. A versão oficial
sustenta que o rapaz foi alvejado durante um tiroteio ocorrido das imediações do Museu do
Ipiranga, em São Paulo. Alguns militantes detidos no DOI-CODI/SP, na época, afirmaram
que Helber José Gomes Goulart foi preso dias antes da data de sua morte. Ele foi torturado e
chegou a ser hospitalizado no Hospital Geral do Exército. Seu laudo necroscópico, requisitado
por Romeu Tuma, chefe do DEOPS-SP, foi assinado por Harry Shibata e Orlando Brandão e
ratificou a versão oficial de troca de tiros. Sua ossada foi retirada de uma sepultura individual
do cemitério Dom Bosco e identificada pelo DMLE da Unicamp, em 1992. Seus restos
mortais foram transladados para Mariana, no dia 12 de julho de 1992.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=194&m=3.

Sonia Maria de Moraes Angel Jones

Sonia Maria de Moraes Angel Jones nasceu no dia 09 de novembro de 1946, na cidade de
Santiago de Boqueirão, no Rio Grande do Sul. Começou a cursar a Faculdade de Economia e
316

Administração da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mas foi desligada, em


1969, depois de participar de atividades estudantis e manifestações, motivo pelo qual foi
presa. Absolvida das acusações, em 1969, Sônia passou a viver na clandestinidade junto com
seu marido, Stuart Edgar Angel Jones, militante do Movimento Revolucionário 8 de Outubro
(MR-8). Em 1970, exilou-se na França, onde passou a lecionar português numa escola de
idiomas e, também, a frequentar a Universidade de Vincennes. Diante da prisão e do
desaparecimento de Stuart Angel Jones, Sonia retornou ao Brasil e voltou a se engajar na luta
armada pela Ação Libertadora Nacional (ALN), mas acabou por se refugiar no Chile, em
função da intensa repressão. Em 1973, passou a residir na cidade de São Vicente, em um
apartamento alugado, junto com Antônio Carlos Bicalho Lana. Na data de sua prisão,
novembro de 1973, em São Vicente, Sônia Maria estava na companhia de Antonio Carlos
Bicalho Lana. Oficialmente, foi afirmado que, assim como Antônio Carlos Bicallho Lana,
Sônia morreu em virtude de uma troca de tiros ocorrida em Santo Amaro. Segundo
declarações prestadas por seu pai, João Luiz de Moraes, tenente-coronel da reserva do
exército brasileiro e professor de matemática, Sonia Maria de Moraes Angel Jones foi
torturada no DOI-CODI do I Exército e do II Exército de São Paulo. Seu corpo foi seviciado,
com um de seus seios arrancados e seus órgãos genitais violados com um cassetete pela
polícia. Sua morte por razão de hemorragia interna, em data incerta, seguiu controversa. Seu
laudo necroscópico foi assinado por Harry Shibata e Antônio Valentini, sem descrever
qualquer uma das torturas a que ela foi submetida. Depois de inúmeras peregrinações ao
exército, seu pai conseguiu informações seguras de que Sonia havia sido enterrada no
cemitério Dom Bosco com o nome falso de Esmeralda Siqueira Aguiar. Seus despojos só
puderam ser exumados em 1981, momento no qual a ossada foi transladada ao jazigo da
família, no Rio de Janeiro. Todavia, os ossos entregues não pertenciam a Sonia Maria de
Moraes Angel Jones, como garantiu, anos depois, o IML do Rio de Janeiro. Com a abertura
da vala comum de Perus, novas buscas foram feitas e uma nova ossada foi identificada pelo
DMLE da Unicamp, como sendo de Sonia Maria de Moraes Angel Jones. Os restos mortais
foram sepultados pela família no dia 12 de agosto de 1991.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=210.

Maria Lúcia Petit da Silva


317

Maria Lúcia Petit da Silva nasceu em 20 de março de 1950, em Agudos, São Paulo.
Envolvida com o movimento político estudantil desde que se tornou secundarista, Maria
Lúcia Petit decidiu desenvolver sua militância no interior do Brasil. Filiada ao Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), atuou como professora, em atividades de plantio e na luta
armada – guerrilha do Araguaia – nas regiões de Goiás e no sul do Pará. No dia 16 de junho
de 1972, foi fuzilada por tropas da 3ª Brigada de Infantaria do Exército. A exumação de Maria
Lúcia Petit da Silva foi realizada por Badan Palhares em um terreno sem limitações claras,
sem registros de sepultamento ou ícones como cruzes ou marcas de divisão entre os jazigos,
no cemitério de Xambioá, no Tocantins, em 1991. Depois de horas de escavações, “um tecido
sintético amarelado destacou-se no fundo de uma das covas abertas. Retirada a terra,
encontramos restos mortais esqueléticos, fragmentados e em boa parte descalcificados e
esfarelados, envoltos em um gomo de paraquedas. No lugar da cabeça havia um saco
plástico transparente rompido, esgarçado nas bordas e com alguns fragmentos de ossos do
crânio, dentes, fios de cabelo em seu interior. A quase totalidade da ossada estava
desintegrando, dificultando o manuseio”. Além dos fragmentos ósseos, as roupas – camisa,
calça, botas, um cinto com uma fivela de ferro e botões de metal – permaneceram em bom
estado de conservação. Também um projetil de calibre 20 intacto e outro de calibre 7,62 deans
foram removidos e enviados aos laboratórios do DMLE. Maria Lucia Petit da Silva só foi
identificada em 1996, depois que duas de suas fotografias foram publicadas no jornal O
Globo, em 28 de abril de 1996. Seus restos mortais foram sepultados pela família em Bauru,
São Paulo. Antes, seus despojos foram recebidos pela Câmara de Vereadores de São Paulo,
onde ocorreu uma vigília e um culto ecumênico. A entrega e sua visibilidade midiática foi
motivo de acaloradas disputas políticas entre o vereador Renato Simões e o próprio Badan
Palhares. Maria Lúcia Petit da Silva foi a única militante da Guerrilha do Araguaia a ser
identificada.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009, PALHARES, 2007, p.147-150 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=364&m=3.

Desaparecidos políticos não-identificados/identificados por outras universidades

Dimas Antônio Casemiro


318

Dimas Antônio Casemiro nasceu no dia 06 de março de 1946, na cidade de Votuporanga, em


São Paulo. Durante sua vida profissional, atuou como corretor de seguros, vendedor e
tipógrafo. Assim como seu irmão mais velho, Dênis Casemiro, Dimas começou sua militância
no movimento estudantil de Votuporanga. Também participou da Ala Vermelha, uma
dissidência do PCdoB, e, posteriormente, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).
Como dirigente do Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), Dimas Casemiro
participou de uma ação conjunta entre MRT e ALN que culminou na morte do presidente da
Ultragás, diretor da FIESP, fundador e financiador da OBAN, Albert Henning Boilesen. Sua
captura e seu assassinato, em 19 de abril de 1971, foram organizados pelo DOI-CODI, como
uma represália ao atentado contra Boilesen. Segundo a versão oficial do DOPS/SP, Dimas
Casemiro foi alvejado em seu esconderijo, no bairro da Saúde, São Paulo, depois de tentar
resistir à voz de prisão. O laudo necroscópico de Dimas Casemiro foi assinado por João
Pagenoto e Abeylard de Queiroz Orsini, e ratificava a morte em decorrência do ferimento por
arma de fogo. Todavia, fotografias anexadas ao laudo de necropsia destacam lesões em seu
rosto compatíveis à tortura. O delegado do DOPS, Alcides Cintra Bueno Filho, afirmou que
Dimas faleceu no dia 17 de abril de 1971, contudo, seu corpo só deu entrada ao IML/SP, dois
dias depois. Pelos documentos reunidos antes da abertura da vala, Dimas havia sido enterrado
como indigente, no cemitério Dom Bosco, e havia grandes possibilidades de estar inumado da
vala comum de Perus. Porém, mesmo depois de transcorridos todo o processo de catalogação
e pesquisa junto às ossadas pelo DMLE, da Unicamp, os restos mortais de Dimas Antônio
Casemiro não foram encontrados ou identificados. Sua ossada foi finalmente identificada,
através de exame de DNA, em fevereiro de 2018. Tal procedimento foi realizado por um
laboratório internacional.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=125&m=3.

Flávio Carvalho Molina

Flávio Carvalho Molina nasceu em 8 de novembro de 1947, na cidade do Rio de Janeiro.


Entre os anos de 1966 e 1967, ainda como secundarista, iniciou sua militância através de
manifestações estudantis. Em 1969, em função da forte repressão, preferiu a clandestinidade e
319

passou a atuar junto à Ação Libertadora Nacional (ALN). Depois de um treinamento de dois
anos em Cuba, retornou em 1971 ao Brasil para atuar como militante do Movimento
Libertador Popular (MOLIPO). A família Molina tomou conhecimento de sua morte em 1979,
através de documentos da Justiça Militar. Flávio Molina foi preso pelo DOI-Codi em data
incerta (entre os dias 04 e 06 de novembro de 1971), foi torturado e morreu no dia 07 de
novembro de 1971. Seu laudo necroscópico foi assinado por Renato Capellano e José
Henrique da Fonseca. Nele, os legistas atestavam que Molina havia falecido em virtude de
ferimentos deflagrados durante um tiroteio ocorrido no bairro Ipiranga, em São Paulo.
Enterrado como indigente, sob o codinome falso de Álvaro Lopes Peralta, no cemitério de
Perus, havia fortes suspeitas de que seu corpo estaria inumado na vala clandestina. Nos anos
80, seu irmão, Gilberto Molina, chegou a procurar por sua ossada, mas, diante da quantidade
de sacos e pela débil identificação dos mesmos, pediu para que a vala fosse fechada. Com a
consolidação do convênio e no projeto de identificação edificado pelo DMLE, a família
Molina teve suas esperanças renovadas. Apesar disso, mesmo depois de transcorrido todo o
processo de catalogação e análise junto às ossadas pelo DMLE, da Unicamp, Flávio Molina
não foi identificado. Amostras de DNA foram colhidas e encaminhadas para análise na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nenhum resultado conclusivo foi obtido.
Somente em 2005, depois de inúmeros processos contra diversas instâncias estatais, a família
Molina teve a ossada de Flávio identificada através de laboratório particular, Genomic. Seus
restos mortais foram entregues a sua família no dia 10 de outubro de 2005, no auditório da
Procuradoria da República, em São Paulo.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009; PALHARES, 2007 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=127&m=3.

Hiroaki Torigoe

Hiroaki Torigoe nasceu no dia 02 de dezembro de 1944, na cidade de Lins, em São Paulo.
Residente na cidade de Piracicaba, São Paulo, Hiroaki Torigoe mudou-se para a capital de
São Paulo para estudar medicina, na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São
Paulo. Ainda no quarto ano do curso, Torigoe ingressou na Ação Libertadora Nacional (ALN)
e passou a atuar na clandestinidade. Depois de abandonar a faculdade para se dedicar ao
Movimento Libertador Popular (MOLIPO), Torigoe chegou a ocupar importantes cargos de
comando. Na versão oficial do DOI-CODI/SP, o militante foi baleado e preso, no dia 05 de
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janeiro de 1972, e faleceu, no hospital, em virtude dos ferimentos decorridos do tiroteio. Seu
laudo necroscópico foi assinado por Abeulard de Queiroz Orsini e Isaac Abramovitch.
Fotografias originais encontradas no IML/SP, todavia, confirmam que Hiroaki Torigoe
apresentava inúmeros ferimentos e escoriações, além de ter sido alvejado por
aproximadamente dez tiros. Sob a identidade falsa de Massashiro Nakamura, Torigoe foi
enterrado como indigente no cemitério Dom Bosco, no dia 07 de janeiro de 1972. Em 1990,
com a abertura da vala comum de Perus, a família Torigoe teve esperanças de que,
finalmente, poderia finalizar os rituais budistas de guarda das cinzas do filho. As informações
guardadas na necrópole indicavam que Torigoe havia sido exumado, em 1976, e novamente
inumado, na mesma sepultura, tempos depois. Na campa indicada como sendo sua, todavia,
foram encontradas três diferentes ossadas. Somente em 2004, depois de serem estudadas pelo
DMLE, da Unicamp, e por Daniel Muñoz, foi confirmado que nenhum dos três despojos
exumados eram de Hiroaki Torigoe. Em 2007, novas informações levaram a exumação de
mais uma ossada. Os exames de DNA, entretanto, foram inconclusivos.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=165&m=3.
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CASO PC FARIAS

PC Farias

Paulo César Farias nasceu em Alagoas, em 1946. PC Farias estudou no Seminário


Metropolitano de Maceió e no Colégio Estadual de Alagoas. Entre os anos de 1966 e 1971,
graduou-se em direito em Maceió e atuou como secretário particular de Antônio Lamenha
Filho, à época, governador de Alagoas. Além de ministrar aulas de latim e francês, PC Farias
trabalhou como locutor na Rádio Palmares, vendedor de linhas telefônicas e de carros usados.
A partir de 1980, além das plantações de coco e do posto de gasolina por ele administrados, o
empresário se consolidou como distribuidor de tratores e implementos agrícolas, o que lhe
rendeu a propriedade das empresas Planal – Planejamento e Assessoria de Alagoas e Terral e
a Terraplanagem de Alagoas. Seis anos depois, 1986, a fusão das empresas formaria a
Empresa de Participações e Construções (EPC), momento no qual PC Farias passou a viajar
por diferentes países do mundo. Foi por intermédio de João Lyra, importante empresário do
setor sucroalcooleiro e político de renome em Alagoas, que PC Farias conheceu Fernando
Collor de Mello. Na época, o jovem político alagoano era candidato ao governo de Alagoas e
já tinha pretensões de se candidatar à presidência da república. Em 1990, Collor candidatou-se
a presidente pelo Partido de Reconstrução Nacional (PRN) e PC Farias se tornou o tesoureiro
de sua campanha eleitoral, tendo papel ativo na captação de doações de empresários
brasileiros à candidatura. Depois de vencer o segundo turno das eleições, Collor foi
empossado em 15 de março de 1990. PC farias não assumiu qualquer cargo no novo governo.
Ao contrário, permaneceu nos bastidores até setembro de 1991, quando, em sociedade com
Fernando Collor, anunciou o lançamento de um jornal em Alagoas, o Tribuna de Alagoas.
Concorrente direto do periódico administrado pela família Collor, a Gazeta de Alagoas, no
qual o irmão de Fernando Collor, Pedro Collor, era diretor, PC Farias foi acusado
publicamente de enriquecimento ilícito e evasão de divisas. Alvo de amplas investigações
policiais, PC Farias foi apontado como sócio e testa-de-ferro de uma densa rede de corrupção
e tráfico de influências empreendidas pelo governo de Fernando Collor de Mello. Com a
abertura de uma CPI para o caso, a quebra de sigilo bancário dos envolvidos, o pedido de
impeachment e a renúncia de Collor, em 29 de dezembro de 1992, a prisão preventiva contra
PC Farias não demorou a ser autorizada. Em junho de 1993, com a expedição do mandado de
prisão, PC Farias fugiu do Brasil, acompanhado por seu ex-sócio, Jorge Bandeira. Depois de
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passar pelo Paraguai, Argentina e Inglaterra, PC Farias foi preso na Tailândia e deportado
para o Brasil. No dia 7 de janeiro de 1994, PC Farias foi condenado a quatro anos de prisão,
devido aos crimes de sonegação fiscal e falsidade ideológica. Ainda em 1994, novos
escândalos ligaram PC Farias à máfia italiana e à lavagem de dinheiro. PC Farias cumpriu um
ano de pena no Corpo de Bombeiros de Alagoas, numa cela reformada especialmente para
recebê-lo. Sua esposa Elma Farias faleceu em julho de 1994, durante sua prisão, em virtude
de um infarto fulminante. Meses depois, apresentados por uma funcionária da Tratoral, PC
Farias recebeu a visita de Suzana Marcolino da Silva. Já em regime aberto, e, mais tarde, em
liberdade condicional, PC Farias retomou suas atividades como empresário e voltou a investir
no jornal Tribuna de Alagoas. Durante esse período, assumiu publicamente seu namoro com
Suzana Marcolino da Silva. Ambos foram encontrados mortos a tiros, no dia 23 de junho de
1996, na casa de praia de PC Farias, em Guaxuma, Maceió, Alagoas. Naquele momento, PC
Farias acertava os últimos detalhes para o lançamento da candidatura de seu irmão, Augusto
Farias, à prefeitura de Maceió e estava convocado a prestar depoimento junto ao Supremo
Tribunal Federal. Sua morte ocorrida no final de semana anterior à convocação inviabilizou
que seu depoimento viesse a público.
Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/farias-paulo-cesar.

Suzana Marcolino da Silva

Suzana Marcolino da Silva nasceu em 1969, na região de Pão de Açúcar, Alagoas. Filha do
prefeito de Palestina, um pequeno município do sertão de Alagoas, Suzana tinha mais nove
irmãos – dois irmãos, filhos da união de seu pai com sua mãe, e, sete deles, filhos de seu pai
em outros casamentos. Sua mãe, vereadora da cidade, bem mais jovem que seu pai, era
conhecida pela postura valente e pela posse da arma de fogo que intimidava qualquer
adversário político. Aos doze anos, Suzana, seus dois irmãos e duas empregadas da família
mudaram-se para Maceió para que os adolescentes tivessem melhores condições de vida.
Depois de uma temporada morando com a mãe no interior da Bahia, retornou a Maceió e com
a ajuda de amigos ingressou num emprego público na cidade. Entre namorados mais velhos,
casados, ciumentos e influentes na política, Suzana conheceu PC Farias. Apresentada a ele
por uma antiga funcionária das empresas Farias, Suzana passou a visitá-lo regularmente na
prisão. Com a liberdade condicional de PC Farias, o romance progrediu e eles passaram a ser
vistos como um casal. Dentre os presentes de PC Farias a Suzana estavam carros, um cartão
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com generosos limites de crédito e uma loja de roupas administrada por ela. No dia 23 de
junho de 1996, Suzana Marcolino da Silva foi encontrada morta, ao lado de PC Farias, no
quarto do casal, na casa de praia de PC Farias, em Guaxuma, Maceió, Alagoas. Já nos
primeiros dias de investigação, a tese de crime passional foi contrariada pela família
Marcolino, que afirmava que Suzana estava feliz na relação com PC Farias e não teria
motivos para matá-lo. Durante os longos anos de investigação, Suzana foi descrita por laudos
psiquiátricos fornecidos pelo DMLE, da Unicamp, como uma mulher instável, ciumenta e
com tendências suicidas. A família Farias insistia nesta tese afirmando que Suzana já havia
tentado se suicidar, que sabia que PC Farias estaria apaixonado por outra mulher e iria
terminar o relacionamento com ela. No dia de sua morte, Suzana foi ao salão de belezas e
almoçou com amigas. Na madrugada de sua morte, ligou para o dentista Coleone, em São
Paulo, se despediu e enfatizou a felicidade de, mesmo naquelas circunstâncias, ter o
conhecido. A fita com a gravação das mensagens de voz deixadas por Suzana Marcolino à
Coleoni foram periciadas pelo foneticista Ricardo Molina, também, do DMLE e foram
motivos de discórdia entre Molina e Palhares.
Fonte: Carvalho, 2004; Folha de São Paulo, 26 de junho de 1996, p. 7 e 10.

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