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Nadai Larissa D
Nadai Larissa D
LARISSA NADAI
CAMPINAS
2018
LARISSA NADAI
CAMPINAS
2018.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
“Life is path dependent, and chance affects what roads are, or are not,
there to be taken” (RUBIN, 2011, p. 3).
Depois de muitos anos, percebo com clareza que um doutorado é antes de tudo uma
jornada. Um caminho cercado por distintas paisagens. Ou seja, muitas vezes doutorar-se é um
caminho linear de paisagens homogêneas e conhecidas de antemão. Outras tantas, é uma
estrada de sinuosas curvas e muitos atalhos. Para mim, em particular, foi um percurso feito
pelo prazer da caminhada e não em função do ponto a que, por fim, acabei por chegar. Tratou-
se de uma trilha de presenças, solidão, intrigantes descobertas e muitos afetos.
Agradeço, em primeiro lugar, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São
Paulo (FAPESP) pela bolsa a mim concedida, entre março de 2014 e junho de 2016, por meio
do processo 2013/22349-5. Esse auxílio foi fundamental para a realização da pesquisa, para a
excelência alcançada pela tese e para a divulgação de meu trabalho em congressos e eventos,
no Brasil e no exterior. Sou grata também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq) pelos primeiros um ano e oito meses de auxílio, entre julho
de 2012 a fevereiro de 2014, que me permitiram traçar as primeiras rotas desta pesquisa, além
de cursar, no Museu Nacional – UFRJ, duas importantes disciplinas de formação,
fundamentais a esta tese.
Agradeço, também, aos interlocutores da pesquisa – médicos-legistas, peritos
criminais e professores da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), da UNICAMP. Diante do
indeferimento formal de meu trabalho de campo, as entrevistas a mim concedidas, as
conversas, os e-mails trocados e as aulas de medicina legal foram primordiais ao resultado
desta tese. Seria impossível expressar em palavras minha gratidão pelas minuciosas e
pacientes explicações às dúvidas mais pueris de uma cientista social que se aventurou a
investigar um tema árido como os saberes de medicina legal. Gostaria de nomeá-los um a um,
contudo, por cautela, preferi mesmos em meus agradecimentos proteger suas identidades
pessoais. Em tempos politicamente tão terríveis como os atuais, minha escolha procura
proteger esses profissionais de “canetadas”, repreensões e quaisquer problemas
administrativos.
Agradeço a Bibia Gregori que, além de orientadora, inspiração e exemplo, foi, durante
esta pesquisa, compreensiva e capaz de entender os momentos em que a escrita era impossível
e as agruras da vida impediam que as palavras tomassem forma. Sua maternagem foi um
afago frente aos tropeços e obstáculos impostos à pesquisa. Com muita generosidade e afeto,
Bibia me ensinou a ser, tal como ela é, uma acadêmica séria, rigorosa, mas enormemente
generosa com os textos, as opiniões e as reflexões de alunos, amigos e colegas de profissão.
Sou imensamente grata pela confiança, pelos mais de dez anos de trocas e incentivos e por ela
ter lapidado ao meu lado, cada pedacinho deste texto final.
Agradeço também ao grupo de orientandos do qual pude fazer parte, exatamente, pelos
efeitos agregadores e formativos que Bibia jamais deixou de incentivar. A tese responde as
reuniões e leituras incríveis que compartilhei ao lado de pessoas como Carol Branco, Carol
Parreiras, Julian Simões, Cil Veiga, Maisa Fidalgo, Ju Valente, Rafa Nascimento, Deborah
Fromm, Everton de Oliveira, Denise Monzani, Gleidson Vieira, Rodolfo Reis, Antony Diniz,
Isa Venturosa, Claudio Leandro, Jaqueline Moraes Teixeira e Ana Laura Lobato.
Agradeço aos professores que fizeram parte dessa jornada e aqueles que foram esteio
durante toda a minha formação. Agradeço a Fernanda Peixoto pelos estimulantes debates feito
a parte desta pesquisa e, principalmente, por ter aceito participar da banca de defesa desta
tese. Os descaminhos que me levaram a tramas e trajetórias intelectuais transformam as
reflexões e as pesquisas realizadas por Fernanda Peixoto em uma bússola às minhas novas
empreitadas em arquivos pessoais e campos de saber. A Heloísa Pontes, sou grata pelo seu
lugar basilar em minha formação em antropologia e por ter acompanhado minhas pesquisas,
desde os seus primeiros passos, quando ainda no mestrado eu começava a tatear os itinerários
metodológicos e teórico-analíticos que deram corpo a minha dissertação e agora a esta tese.
Em especial, agradeço por ter aceito estar em minha banca de doutorado e por ser uma
entusiasta e uma inspiração aos meus novos caminhos por entre trajetórias intelectuais e
arquivos pessoais.
A Regina Facchini, agradeço por seu lugar ímpar em minha formação em gênero e
sexualidade; pela horizontalidade com a qual você exerce a docência, debate os trabalhos e
ideias de colegas e alunos e ensina, com generosidade e rigor, a arte de fazer pesquisa.
Agradeço, em especial, pela sua presença em minha banca de qualificação e pelo seu aceite
em participar desta banca de defesa de tese. Espero que as lamúrias sobre o não acesso ao
IML tenham se convertido em boas reflexões sobre a produção de autoridades e autorizações.
A Adriana Vianna, os agradecimentos ficam marejados de lágrimas e sorrisos. Quando
perdida eu comecei a tatear as pilhas sujas de papéis esquecidos da DDM, não poderia
imaginar aonde eu chegaria. Sua leitura generosa de minha dissertação de mestrado foi um
bálsamo às agruras que eu encontrei até perceber que, desde o princípio, eu sempre realizei
uma “etnografia de e feita por meio de documentos”. Seus ensinamentos, leituras,
comentários e suas aulas extraordinárias foram primordiais a esta tese. Sua presença em
minha banca de qualificação e seu aceite em participar desta banca de defesa são felicidades e
presentes que tornam as palavras miúdas e desbotadas. Espero que a “a saga da menina
Larissa” tenha sido convertida em uma potente etnografia feita por entre documentos, papéis,
insígnias, assinaturas, carimbos e instâncias estatais.
Agradeço a Isadora Lins França por participar ativamente de minha formação em
gênero e sexualidade e pela doçura em aceitar participar como suplente de minha banca de
defesa. Agradeço, também, a Sérgio Carrara por tentar de todo modo alinhar sua agenda às
possíveis datas de minha defesa. Diante da impossibilidade, a suplência é uma singela
homenagem frente à enorme importância que seus trabalhos e reflexões têm para esta tese.
Agradeço a Antônio Carlos de Souza Lima pela sua presença marcante em minha
formação acadêmica, por ter permitido minha presença na disciplina ministrada por ele no
Museu Nacional – UFRJ e pelos maravilhosos comentários em seminários, eventos e
congressos. Em especial, agradeço a Antônio, por me mostrar como instâncias estatais, papéis
e burocracias são objetos antropológicos intrigantes e politicamente essenciais à disciplina. À
Maria Gabriela Lugones qualquer agradecimento seria pouco e infinitamente menor frente à
importância que seus comentários, livros e artigos têm para esta pesquisa. Sua voz inebriante
e suas análises contundentes serviram de farol às reflexões aqui tramadas. Em especial, meu
muito obrigada a seus incentivos que me ajudaram a olhar para aulas de medicina legal,
técnicas de acesso e expedientes burocráticos como modalidades basilares da administração
de crimes e violências.
A Gabriel Feltran, meu agradecimento mais que sincero por ser um leitor, uma
referência e um amigo daqueles que tornam a vida acadêmica boa de ser vivida. Agradeço,
também, pela participação em seus grupos de pesquisa e de orientação. Neles aprendi o quão
importante pode ser construir trocas acadêmicas honestas, horizontais e generosas. Meu
carinho a Ronaldo de Almeida pela presença marcante em toda a minha formação acadêmica,
mas também pelos cafés compartilhados e pelos primeiros ensinamentos de pesquisa, quando
eu ainda muito jovem queria estudar a política e seus escândalos midiáticos. Esta tese enlaça
parte desses pueris projetos que seguem guardados carinhosamente em meus cadernos de
campo e pilhas de papel arquivadas. Agradeço também a Adriana Piscitelli, Susana Durão,
Maria Cláudia Coelho, Jane Russo, Eva Muzzoppapa, Valeria Barbuto, Lucia Eilbaum,
Frederico Policarpo, Bruno Zilli, Guilherme Passamani, Everton de Oliveira, Laura
Lowenkron e Letícia Ferreira pelos debates instigantes feitos ao meu trabalho durante esses
seis anos de doutorado.
Finalmente agradeço, in memoriam, ao professor Dr. John Monteiro. Como escrevi,
horas depois de saber de sua repentina partida em virtude de um absurdo acidente de carro:
“Só tenho a agradecer a John Monteiro. Com ele aprendi que devo defender aquilo em que
acredito com elegância, serenidade e justiça. John Monteiro não era apenas querido por
muitos; ele era uma daquelas raras pessoas que agregam, que compartem o conhecimento
com uma generosidade ímpar e que não abandonam um debate, nem por mesquinharias,
menos ainda por discordâncias ou posições políticas divergentes. Raridade no mundo
acadêmico, sua falta será para sempre irreparável”.
Dos agradecimentos que enredam afetos, linhagens e inspirações intelectuais, eu não
poderia deixar de mostrar minha gratidão aos amigos que dentro e fora da universidade fazem
da vida, uma deliciosa aventura por entre casas, grupos de trabalhos, eventos e cidades.
Ao bonde escândalo do Rio de Janeiro, agradeço a Letícia Ferreira, Laura Lowenkron,
Raquel Sant’ana, Ju Farias, Silvia Aguião, Flávia Medeiros, Lucas Freire, Everton Rangel e
Marina Liberatori – a argentina mais carioca do mundo. É maravilhoso poder debater e ter
cada uma de vocês como leitoras, amigas e inspirações acadêmicas. A Letícia Ferreira, em
particular, agradeço pelas muitas parcerias que renderam seminários, dossiês, grupos de
trabalho e workshops. Sou grata também por seu nome estar entre os suplentes de minha
banca de defesa de doutorado. Letícia é uma daquelas inspirações que mudam o rumo da vida
de uma pessoa. Suas reflexões me acompanharam antes mesmo de eu ter a honra de conhecê-
la pessoalmente e tê-la como uma grande amiga. Seus livros foram meu amuleto da sorte e
minha maior inspiração. Espero que esta tese faça jus a esse nosso maravilhoso encontro na
vida.
Agradeço também aos amigos que deram pouso, aconchego e café às estadias cariocas.
Em especial, agradeço a Raquel Sant’ana pelas conversas astrológicas, marxistas, acadêmicas
e hilárias que suavizaram as saudades dos amigos campineiros e a escrita da tese. A Nivea
Patrocínio e a Fernando Aglio, sou grata pela amizade ímpar que construímos. O tipo de
amizade bem capixaba e mineira: que abre a casa, reparte a cerveja, faz almoços, planeja os
sambas e as andanças e, claro, dá sustento e afago aos tropeços da vida. Sou profundamente
grata a Aldrey Iscaro, amiga de toda uma vida, com quem se faz carnaval e festa, com que se
chora e se reconforta. Sem você, o Rio não teria as tais epifanias que se fazem nas areias de
Copacabana, na sacada em São Cristóvão e nos botecos da Lapa. Também, agradeço a Lygia
Ribeiro que fez da sua casa um pedacinho de família e aconchego num Rio de Janeiro que, em
2012, simplesmente transbordava.
Aos amigos e amigas campineiras e todos aqueles que passaram por Campinas e pelas
muitas casas que me deram aconchego nesses seis anos de doutorado. Seria impossível dizer
nestes agradecimentos o quão maravilhoso foi dividir a vida com vocês. Estão entre eles:
Julian Simões, Mari Petroni, Ernenek Mejía, Cil Veiga, Alcione, Natália Corazza, Douglas
Gonçalves, Ariane Brilhante, Ju Valente, Rafa Nascimento, Aldrey Iscaro, Carla Camargo,
Everton de Oliveira, Roberto Efrem, Guilherme Passamani, Ana Carolina Almeida, Thiago
Conti, Rafael Cremonini, Nersão, Carol Branco, Carol Bonomi, Fabiana de Andrade,
Nathanael Araújo, Gleidson Vieira, Rodolfo Reis, Carol Parreiras, Aline Balestra, Pedro
Galdino, Deborah Fromm, Eduardo Martins, Kiko (Francisco Aranha), Ellen Correa, Bruno
Puccinelli, Wilon, Renan, Lari Segatto, Denis Forigo, Lucas Magnin, Henrique Dutra e Paula
Togni (in memorian). Sou grata a cada um deles por fazerem do transitório, permanente. Cada
um a seu modo, estando perto ou longe, faz parte de um grupo de amigos dos quais nunca se
esquece; para os quais se deseja força e as melhores coisas do mundo, se brinda os
aniversários, se caminha lado a lado, se telefona nos momentos de desespero e com os quais
se divide as maiores alegrias e conquistas. O agradecimento curto e genérico sublinha o
óbvio: não é necessário dizer em papéis e teses aquilo que se partilha todos os dias, nos
meandros da vida, regados por sorrisos, lágrimas e incentivos etílicos.
Agradeço, em especial, a Mari e Ernenek pela amizade sólida e cheia de delicadezas;
pelas teses e vidas que se fazem na mesa de casa, com cerveja, açaí, sorrisos, muita política e
camaradagem. A Ariane Brilhante, sou grata pela casa compartida, pelo café e pelos afetos
partilhados: seus mimos e cuidados fizeram dos retornos para casa, um bálsamo. Meus
agradecimentos a Everton de Oliveira pelas parcerias acadêmicas que, entre workshops e
grupos de trabalhos, nos renderam ótimas viagens antropológicas, incursões gastronômicas e,
claro, memoráveis debates etílicos. A Carla Camargo, agradeço pelos telefonemas, leituras e
socorros que suavizaram a escrita da tese e deram solidez à amizade tecida
independentemente de distâncias e ansiedades. A Roberto Efrem, com todo meu afeto e
carinho, agradeço pela revisão, séria e generosa, do texto final desta tese. Não tenho dúvidas
de que um presente como este só é oferecido aos grandes amigos.
Agradeço a Julian Simões, Natália Corazza, Ju Valente e Cil Veiga pela parceria de
escrita que se faz no dia a dia, lado a lado. Sou grata, principalmente, às correções,
comentários e leituras feitas num piscar de olhos, para diminuir as ansiedades e venenos de
textos e parágrafos. A Julian Simões, agradeço ainda pelas conversas, sorrisos e afagos que
suavizaram as arestas de uma saudade latente e tornaram pequena a enorme distância entre
Brasil e Barcelona. Ao fazerem ressoar os incomunicáveis jeitos aquarianos de ser, nossos
momentos me permitiram enfrentar os medos e incertezas e viver as delicadezas que colorem
a vida. Para Natália Corazza, a moça sem a qual não haveria samba, Chico e outras lindezas,
não há palavras, apenas o silêncio de um minuto, de um suspiro e de um amor que é maior
que o mundo. A Ju Valente, agradeço pela paciência, pelo resumo em inglês, por me escutar
reclamar da tese e suas agruras, pelos cafés e bolos que fizeram de 2017 um ano cuja
amargura se afronta com doçuras. A Cil Veiga, queria ser possível explicar o inexplicável ou
transmutar em poesia a profundidade de um encontro de almas. A quem entende tudo aquilo
que parece torto, troncho ou maluco, uma frase inspirada na amizade de Montaigne e Etienne
de la Boétie: eu a amo “porque era ela, porque era eu”.
Agora sim, agradeço a meus pais por eles estarem presentes em todos os momentos,
mesmo aqueles mais corriqueiros de minha vida. Como afirmei nos agradecimentos que fiz a
minha dissertação de mestrado, eles não só bancaram financeiramente meus sonhos, como
foram esteio e exemplo em todo esse trajeto, que começou lá trás, nos primeiros livros e
cadernos comprados e encapados com carinho. Sou extremamente grata por vocês serem,
apenas e sobretudo, vocês. Ao meu pai, Cláudio Nadai, agradeço pelas muitas viagens feitas
de Rio Claro a Campinas só por minha causa, por respeitar minhas decisões e escolhas e por
dar sustento, cuidado e afeto aos períodos de escrita que se faz sem bolsa e sem perspectivas
concretas de que o texto da tese fique pronto. Sou especialmente grata ao futebol, à cerveja e
aos ensinamentos sobre pequenos consertos domésticos que me fizeram rir das precárias e
inúteis divisões de gênero. A minha mãe, Maria Elisa Andriozzi Nadai, agradeço por ter me
priorizado por tantas vezes, e muitas delas se esquecendo de si mesma. Hoje, com um pouco
mais de maturidade, percebo que mais do que um exemplo e uma incentivadora, ela é a minha
primeira referência de feminismo: uma mulher forte, materna, inteligente e muito a frente de
seu tempo. Agradeço por você ter me impulsionado a ser valente, perspicaz e inventiva. De
todos os livros, desenhos e ensinamentos tomados no aconchego da manta azul, guardo o mais
precioso: a garantia de um porto seguro para onde retornar e um abraço de mãe para me
acalmar. A Priscila Maquea, amiga-irmã, agradeço por você estar sempre presente, pelas
angústias e alegrias partilhadas, pelas mensagens e áudios gigantes e pelo abraço que é só seu
lôra! Agradeço também a Eunice Oliveira e Alex Souza pelo apoio, carinho e respeito. A
Eunice Oliveira, em especial, sou grata pelos amparos e cuidados que se fazem sem pensar
duas vezes e que ajudam a diminuir ansiedades, inseguranças e desterros. A Nicholas Souza
agradeço por me ensinar a ser mais paciente e amorosa, por me fazer perceber que cativar
alguém é uma responsabilidade, mas também uma aventura, feita com muita pipoca, lição de
casa e brincadeiras de criança.
Finalmente, a Pedro Oliveira Souza, a quem dedico esta tese, sou grata por ter feito
comigo uma família e um lar. Seus olhos verdes e lindos, seu abraço apertado e reconfortante,
seus afagos amorosos e únicos fizeram dos dias vividos, uma linda poesia, embalada por
sambas, malemolências, rodopios e aconchegos. Agradeço, em especial, por ter mudado sua
vida e a do Nicholas para estarmos juntos, sem pontes áreas, sem saudades; com uma casa,
com cheiros, sorrisos, rotinas e epifanias.
"O que é a carne? O que é esse Isso
Que recobre o osso
Este novelo liso e convulso
Esta desordem de prazer e atrito
Este caos de dor sobre o pastoso.
A carne. Não sei este Isso.
“A carne é o que se nomeia, a carne é aquilo de que se fala, a carne é o que se diz”.
(FOUCAULT, 2001, p. 257).
Resumo
This doctoral thesis focuses on the techniques, procedures, and political and institutional
threads that make up the Institute of Legal Medicine (Instituto Médico Legal - IML) in
its function as a branch of the police department that conducts forensic science. In the
process of examining such mechanisms, I attempt, on the one hand, to overcome the
difficulties imposed on my research, and, on the other, to expose occasionally intricate
relations that connect this department to a wide range of agencies that, together,
constitute the state: police departments, universities, public agencies etc. Therefore, I try
to understand Campinas’ IML as an empirical circumscription, with borders that were
mobile and built during the process of my research. In this sense, the denial of my
requisition to access the IML, sent to IML’s Scientific Commission in São Paulo,
stablishes the foundation that organizes the thesis. From the "counters" and
"checkpoints" imposed on my research, a medley of fragments emerges: techniques for
documenting the documents, legal-medicine classes, canonical texts in the discipline,
forensics reports, necropsy techniques, in addition to careers, vanities and institutional
conflicts. Through the use of juxtapositions, the material evidences found on the
victim’s bodies of the crimes of rape and sexual assault, accessed during my master's
research, give light to the political, mediatic and institutional threads that entangle
affairs and forensic experts. While the idea of pieces embodies certain women’s “sex”
by means of hymns, fissures, and forensic uncertainties, the above-mentioned threads
requalify the standardized and bureaucratic characteristic of this police department. It is
also in this productive intersection that a very specific type of technical-scientific
authority is forged and, simultaneously, continually put at risk by means of material
evidences, bodies, pieces, and traces.
Organização dos capítulos: dos fragmentos que forjam o IML e suas relações ......... 32
Capítulo I. Entre oficialidades e relações pessoais: o não acesso como forma de acesso
........................................................................................................................................ 36
Entre palavras, insígnias e atos de fé: ou como se documenta a documentação? ...... 38
Nem tudo que não se pode ver está escondido: sobre dar autorização, arriscar
autoridade................................................................................................................... 58
Capítulo II. Entre laudos, necropsias e aulas de medicina legal ou dos fragmentos pelos
quais se visita o IML. ..................................................................................................... 82
Sobre sons, cheiros e dissecações de rotina: notas sobre a arte de assistir a necropsias
.................................................................................................................................... 82
Uma ficção para muitas histórias: uma entre muitas Alices .................................... 97
Capitulo III. Vasculhar pedaços, produzir papéis: sobre vestígios e técnicas de perícia
...................................................................................................................................... 106
Por entre formas e formulários: quais pedaços para quais lacunas? ........................ 106
“Vamos acabar com esse herói nacional”: entre tramas institucionais e vaidades
pessoais ..................................................................................................................... 220
Notas finais. Dos muitos fragmentos que fazem o Estado: os (des)caminhos entre
ciência, aparato policial e políticas de justiça e reparação. .......................................... 241
Bibliografia ................................................................................................................... 251
Imagens e figuras ...................................................................................................... 251
III. Dos jornais e casos – resumo dos itinerários de pesquisa .................................. 302
“[a pesquisa] é mais voltada para violência sexual? (...) Ele [filho do
entrevistado, formado em Ciências Sociais] falou: ela só vai te perguntar
sobre isso. Ele viu seu currículo...” (Entrevista realizada em janeiro de
2015).
São 7h30. O trajeto até o centro de Campinas flui com certa tranquilidade. Pela janela do carro, observo os pedestres
que pouco a pouco vão tomando as calçadas e vielas. Em pouco tempo, eu me vejo frente a frente ao portão gradeado
que dá acesso ao Instituto Médico Legal (IML). A espera, característica marcante de minha pesquisa, mais uma vez se
reafirmava. A porta fechada do Núcleo de Perícias zombava de meus desejos de acesso. Repasso na cabeça o longo
roteiro de entrevistas redigido que carrego comigo. Entre uma olhadela para o relógio e outra para o portão que dá
acesso ao IML, pensamentos de alerta se acendem dentro de minha cabeça: “não esqueça! Não esqueça!”. Sem folga,
volto aos mesmos questionamentos que há meses me importunam: “como realizar uma boa entrevista, se não conheço
o cotidiano de trabalho realizado por um funcionário do IML?” . Resolvo caminhar pelo entorno do prédio. Pontualmente
às 8h, eis que vislumbro, com certa animação, que a porta de vidro, finalmente, está aberta. Caminho até a antessala e
me apresento ao funcionário que ocupa a cadeira atrás do “balcão”. Informo ao funcionário que aguardo por Dr.
Rubens. O atendente cordialmente me comunica que ele ainda não chegou. Um rapaz, de aparentemente trinta anos,
com a perna envolta em uma estrutura metálica repleta de pinos, já está acomodado num dos cantos da sala.
Permaneço sentada por aproximadamente meia hora. Vestido de branco da cabeça aos pés, Dr. Rubens, parecia a mim
inconfundível assim que adentrou o Núcleo de Perícias. Depois de espiar por detrás do balcão, Rubens veio em minha
direção e afirmou: “sabia que você era a Larissa. Não tem cara, nem jeito de vítima”. (Diário de Campo).
24
Uma breve história pregressa: das circunscrições e funções que delimitam o IML1
1
A história pregressa construída desse primeiro tópico da apresentação toma como material empírico o site
oficial da Polícia Técnico-Científica, em especial a seção destinada ao Instituto Médico Legal (IML), bem como
o manual técnico-operacional para médicos-legistas do estado de São Paulo, publicado pelo Conselho Regional
de Medicina do estado de São Paulo (CREMESP), em 2008. Tal manual apresenta um breve histórico sobre o
serviço médico-legal no estado de São Paulo. Busco complementar tais referências com elementos recolhidos
por mim em entrevista, mas apenas em situações onde tais dados aparecem como relevantes. Por sua vez, o uso
do adjetivo pregresso tem por intuito incitar o leitor a correlacionar tais histórias àquelas forjadas pela Polícia
Civil para acusados ou averiguados em crimes dos mais diversos. Esse documento designado “Informações da
vida pregressa” produz uma espécie de anamnese do autor/indiciado, discriminando sua infância, sua vida
conjugal, se tem filhos, seus empregos nos últimos tempos, se faz uso de substâncias psicoativas etc. Tal
documentação oficial é também um dos principais artifícios por meio dos quais se produz um indivíduo como
um possível “criminoso” (NADAI, 2012). Ao incitar tais correlações, busco, portanto, explorar a imagem oficial
construída sobre esse serviço e também evidenciar o efeito linear e coerente que essas histórias conformam. No
decorrer desta tese, intento decompor e apresentar as articulações e relações que sustentam tal ilusão de
coerência. Para acessar o referido site: http://www.policiacientifica.sp.gov.br/iml-instituto-medico-legal/.
2
Os treze Postos Médico-Legais estão distribuídos pelas seguintes cidades: Araraquara, Bauru, Botucatu,
Campinas, Casa Branca, Guaratinguetá, Itapetininga, Penápolis, Presidente Prudente, Ribeirão Preto, Rio Preto,
Santos e Sorocaba.
25
polícia jamais aceitaram essa separação da Policia Científica da Polícia Civil. Nunca
aceitaram isso. (...) essa Polícia Científica, não sei, mudou um pouco a relação”3. (Entrevista
realizada em abril de 2015).
A separação de que fala meu interlocutor foi resultado do Decreto-lei nº 42.847, de 9
de fevereiro de 1998. Assinado pelo governador em exercício, Mario Covas, o ordenamento
desvinculava a “Secretaria da Polícia Técnico-Cientifica da Polícia Civil, elevando-a ao
nível de Coordenadoria subordinada diretamente ao secretário de Segurança Pública”
(CREMESP, 2008)4. A “nova estrutura organizacional”, denominada Superintendência da
Polícia Técnico-Científica, reuniu num mesmo corpo institucional o Gabinete da
Superintendência, o Instituto de Criminalística (IC), o IML e uma divisão administrativa.
Subdivididos em centros, núcleos e equipes, tanto o IC quanto o IML dispõem de inúmeras
sedes espalhadas pela capital e por inúmeras cidades do interior do estado de São Paulo.
Ambos os órgãos técnico-científicos têm seus próprios diretores e revezam a coordenação da
Superintendência.
No decreto-lei foram, também, determinadas as atribuições de ambos os serviços.
Tanto para o IML quanto para o IC, a lista é extensa. Ao que interessa a essa tese gostaria de
destacar o caráter técnico – os exames em vivos, cadáveres, ossadas, bem como, análises
laboratoriais diversas – e os aspectos científicos conferidos à corporação. Para cumprir esse
último objetivo, o IML deve “desenvolver pesquisas no campo da medicina legal”,
“promover o estudo e a divulgação de trabalhos científicos”, “elaborar trabalhos
fotográficos de pessoas, peças e instrumentos relacionados com as perícias” etc. (Decreto-lei
nº 42.847/98). As mesmas funções se aplicam ao IC, com alterações apenas no que caracteriza
a atuação técnica do mesmo. Entre elas está proceder a perícias em acidentes de trânsito,
peças, armas e outros instrumentos apreendidos, bem como à atenta inspeção das cenas que se
configuram como o local do crime.
3
Em complemento a tais conformações, segundo um dos legistas que entrevistei, tais cordialidade eram ainda
mais intricadas nas cidades pequenas e mais ao interior do estado. Em suas palavras: “Lá mais no interior, a
coisa funcionava incrivelmente mais precária do que aqui [Campinas]. Lá funcionava muito na base de
delegado tinha que ter amizade, ter jogo de cintura... Na época, o IML não era independente. Então, o delegado
conseguia as coisas na base da conversa, no local. Então, por exemplo, combustível o Estado não dava. Ele
conseguia com um produtor aqui, um produtor de cana lá. Quebrava o carro, não sei quem que arrumava. Tudo
nessa base. A coisa era assim (...), dependia de quem era delegado e da relação que ele tinha com a
comunidade. Isso me chamava atenção na época. Porque a polícia [científica] tinha que ser um órgão
independente de qualquer forma”. (Entrevista realizada em março de 2015).
4
Segundo a publicação organizada pelo CREMESP (2008, p. 13), tal decreto-lei, contudo, não fixou “dotação
orçamentária e nem autonomia através de Lei Orgânica” à nova coordenadoria, o que “na prática, [continua a
mantê-la como] um apêndice burocrático da Polícia Civil”.
26
5
Tal órgão é uma autarquia da prefeitura municipal de Campinas. Sua principal função é administrar fiscalizar o
comércio em solo público. Para mais informações, acesse: http://setec.sp.gov.br/site/
6
Os laudos de corpo de delito devem ser realizados em casos de estupro e ato libidinoso, mas, também, diante de
lesões corporais, acidentes de trânsito ou de trabalho, embriaguez etc. Para o recorte escolhido para esta tese, são
os exames de corpo de delito de conjunção carnal (estupro) e ato libidinoso (atentado violento ao pudor) que
ganharão destaque. Para fins de espacialização, noto ainda que contíguo às dependências do Núcleo de Perícias
está o Instituto de Criminalística de Campinas, responsável pelas perícias de local.
7
Como esclareceu um dos meus interlocutores de pesquisa, “em Campinas é um pouco diferente. Aqui você não
faz tudo. As equipes são separadas, devido ao volume de trabalho. Então, tem uma equipe que fica no
Necrotério. E uma outra equipe que fica na Sede, que faz atendimento ao vivo”. (Entrevista realizada em janeiro
de 2015). Designados como relatório de necropsia ou formulário de SVO, os exames realizados em cadáveres
não serão objeto direto de atenção dessa tese. Tais procedimentos servem a outros propósitos. Ou seja,
funcionam como técnicas pedagógicas à pesquisa que seguiu indeferida pela Comissão Científica.
8
No início da minha pesquisa o número de funcionários ativos já era modesto. Diante de aposentadorias e
realocações, em 2016, a quantidade de servidores foi drasticamente reduzida o que resultou em mudanças
substanciais nos plantões e no atendimento cotidiano. A secretaria de Segurança Pública abriu novos concursos
destinados a legistas e peritos criminais, em 2013, contudo, muitos cargos seguiram ociosos e as nomeações
demoraram mais de quatro anos para serem, parcialmente, concluídas.
27
9
Tais aprendizados remontam a minha pesquisa de mestrado realizada na Delegacia de Defesa da Mulher
(DDM) de Campinas, entre os anos de 2009 e 2011. Em função de tal pesquisa, eu aprendi - ao me confrontar
28
com a interação entre essas policiais e outras instâncias estatais tais como o IML, varas criminais, outras
delegacias, conselhos tutelares etc. - que os documentos eram centrais para facilitar e formalizar relações,
endereçados a interlocutores, muitas vezes despersonalizados através de pronomes de tratamentos e funções
institucionais tais como “excelentíssimo juiz” ou “senhor diretor”.
10
Como Nader (1972) sugere, questões de acesso são reflexões importantes para qualquer tipo de pesquisa
antropológica. Contudo, quando tratamos de pesquisas voltadas as elites, burocratas e corporações, poucas são as
pesquisas que têm se debruçado sobre a crença de que essas corporações trabalham secretamente por seus
próprios interesses. Também não temos questionado a premissa da observação participante como um cânone da
pesquisa empírica. Sem observação participante, a maior parte dos alunos, segundo a autora, sentem-se menos
antropólogos. Esse tipo de sensação ancora-se, justamente, no fato de não sermos treinados em outros tipos de
técnicas de pesquisa. Técnicas cujo aprendizado, estariam mais adequadas e seriam mais úteis aos problemas que
nos colocamos quando decidimos etnografar ambientes como bancos, companhias de seguro, agências
29
na observação participante, todavia, tal empreitada só se tornaria factual através das curiosas
relações entre a universidade e esses aparatos estatais. Como aluna da Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP), passei a circular por outros espaços institucionais que não o
Núcleo de Perícias, como, por exemplo, o auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM)
da UNICAMP, o necrotério da cidade ou o Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto (IMLAP)
do Rio de Janeiro11.
Cursei a disciplina de medicina legal fornecida pela FCM e, a partir dali, teci algumas
das relações pessoais e profissionais que resultaram em entrevistas com um pequeno grupo de
médicos-legistas. As entrevistas foram mediadas por um dos interlocutores chaves desta
pesquisa, mediante sua fiança moral e profissional. Em sua maioria, tais encontros ocorreram
em consultórios ou laboratórios particulares. Em dois desses encontros, a conversa se deu em
áreas públicas ou separadas das instalações do IML: a cozinha do Núcleo de Perícias ou a sala
de recepção do necrotério. Todos os entrevistados sabiam previamente sobre os meus
interesses de pesquisa e tinham ciência quanto ao indeferimento de minha pesquisa pela
Comissão Científica.
Com o intuito de proteger suas identidades, evitei sempre que pude, nomeá-los através
de nomes próprios, ainda que ficcionais. Abdiquei, também, de traçar trajetórias profissionais
a partir de seus dados pessoais, tais como idade, formação, tempo de serviço, equipes das
quais fizeram parte no IML de Campinas e em outras cidades etc. O cargo funcional de
médico-legista, exatamente porque opaco e genérico, disfarça as nuances que caracterizam
tais sujeitos e os tornam visíveis à própria corporação. Por contraste, mantive o nome
verdadeiro de entrevistados e/ou atores citados em jornais e documentos de amplo
conhecimento público. É o que ocorre, por exemplo, com Fortunato Antônio Badan Palhares e
José Eduardo Bueno Zappa, mas também com figuras políticas, midiáticas e institucionais
como Romeu Tuma, Caco Barcellos, Luiza Erundina etc.
Pouco a pouco, em função de tais interlocuções, reinscrevi o campo empírico que
sustenta esta tese. Para isto, retornei ao pequeno conjunto de laudos de corpo de delito que
havia recolhido junto à DDM. O desafio que me coloquei foi, portanto, o de traçar as
conexões entre esses artefatos documentais, aquilo que meus entrevistados descreviam como
governamentais, indústrias e similares. Entre tais modalidades estariam: o uso de documentos, leis, livros,
jornais, memórias, entrevistas feitas a partir das mais variadas técnicas de encontro, grupos focais etc.
11
Tal evento foi organizado por professores da Universidade Federal Fluminense (UFF). Na oportunidade, por
meio de uma visita guiada pude conhecer diversas dependências do IMLAP, bem como as anedóticas histórias
contadas por seus funcionários, a cada setor visitado. Não faço uso textual das anotações de campo que produzi
durante essa experiência. Entretanto, tais andanças e materiais serviram como material de contraste àqueles
construídos mediante a pesquisa feita em Campinas.
30
12
A inspiração aqui é o trabalho da antropóloga Veena Das (2007). Ainda que os meus contextos de pesquisa e
aqueles circunscritos pela autora sejam incomensuráveis, suas reflexões acerca das fragmentações que
conformam sua etnografia entre as famílias urbanas de Punjabi - deslocadas ou impactadas pela Partição da Índia
– figuram nesta tese como orientações analíticas bastante vigorosas. Segundo Das (2007), “fragmentos aludem a
uma forma de habitar um mundo” que foi destruído ou devastado. Em diálogo com Stanley Cavell, a autora
reforça que a noção de fragmentação não deve ser confundida com a imagem de partes diferentes que quando
reunidas denotam uma totalidade. Ao contrário, para Das (2007), os fragmentos marcam, exatamente, a
impossibilidade de tal imaginação de totalidade e coerência.
13
A proposta metodológica formulada por Marcus (2001) de uma “etnografia multissituada” é evocada aqui,
com o intuito de salientar o caráter não totalitário, nem holístico do retrato etnográfico empreendido no decorrer
da tese. Inspirada por seus argumentos, as partes que integram essa tese buscou “plantear preguntas a un objeto
31
Por um lado, os encaixes tramados no decorrer de minhas análises remontam aos meus
próprios circuitos e trajetos, bem como a todos aqueles que me foram negados mediante
balcões, ofícios ou nebulosas relações de autoridade. Ao abandonar meu desejo por produzir
uma paisagem completa e organizada dos fragmentos que recolhi nesse percurso, tracei
limites à pesquisa a ser realizada durante meu doutorado, mas não ao IML, como uma
circunscrição dada e conhecida de antemão. Por outro lado, das escolhas que fazem a tese
surgem às articulações, práticas, funções e os procedimentos que sustentam algumas dentre as
muitas paisagens institucionais que conformam o IML. Ou seja, tal como Maria Gabriela
Lugones (2012), sustento que os fragmentos não “se relacionam mimeticamente com o
observado e/ou registrado em minhas notas de campo”. Também, a “fragmentação das
atuações” não são “obstáculos” impostos ao fazer realizado nessas instâncias, mas sim sua
“condição de possibilidade” (LUGONES, 2012, p. 26-27). Nesse sentido, assim como
argumenta a autora, esta tese não se assenta em cadáveres, vítimas de estupro, aulas de
medicina legal ou casos periciais. Antes, a tese intenta desvelar as “modalidades de gestão”
médico-periciais que atravessam e articulam o IML a outras instâncias administrativo-
judiciais e universitárias.
de estudio emergente, cuyos contornos, sitios y relaciones no son conocidos de antemano”. Além disso, investi
nas “conexões” através de “cadenas, sendas, tramas, conjunciones o yuxtaposiciones de locaciones” das quais fiz
parte presencialmente ou virtualmente por meio de dispositivos midiáticos, virtuais e/ou de bibliografias
acadêmicas (MARCUS, 2001 p. 115-118).
32
Organização dos capítulos: dos fragmentos que forjam o IML e suas relações
14
Tal escolha se justifica pelas informações biográficas esparsas e/ou discrepantes que consegui reunir durante o
doutorado, tanto para os principais personagens dessas tramas políticas, midiáticas e institucionais, quanto para
atores coadjuvantes nessa história. Com o intuito de não construir de modo desigual a biografia desses inúmeros
sujeitos, optei por, apenas, localizá-los, a partir de informações cujo impacto era relevante aos conflitos e
contenciosos que os enredam.
36
São 13h30. Vejo à distância a fachada do 1º Distrito Policial de Campinas. Suas paredes replicam as cores da
bandeira do estado de São Paulo. O vermelho, o branco e o preto formam as listras que posso ver ao longe,
antes mesmo de descer no ponto de ônibus da larga e movimentada Avenida Andrade Neves. Aos fundos do
prédio, recentemente pintado, uma fachada envelhecida é o cartão de visitas da Superintendência da Polícia
Técnico-Científica. As grades no entorno do prédio sinalizam as entradas específicas. Os dizeres organizam o
caminho ao pedestre desatento. À esquerda, o Instituto Médico Legal. À direita, o Instituto de Criminalística.
Centralizado, o letreiro Núcleo de Perícias reúne ambas as obrigações técnicas e científicas ali indicadas. Sigo
apressada a caminho da entrada independente situada do lado esquerdo do prédio. Movimento a maçaneta. A
15
Essa epígrafe evoca a apresentação de Maria Gabriela Lugones no Seminário Etnografando Elites,
Redes e Dispositivos de Poder: experiências de pesquisa, reflexões metodológicas e questões ético-
políticas, realizado em novembro de 2012, no Rio de Janeiro. Sua voz narrando o texto de Jorge Luis
Borges ainda permanece viva e ecoando em meus pensamentos. Para ver sobre: Lugones, 2014.
37
porta de vidro que dá acesso à antessala de espera está trancada. A funcionária sentada no estacionamento
confirma: “só às 14h!!”. Um pouco constrangida, informo que combinei um encontro com um funcionário do IML.
Ela, sem titubear, completa: “então, toca a campainha!”. Em instantes, Milton que estava a minha espera, abre a
porta. Bem-humorado, ele me cumprimenta e comenta que precisa me entregar alguns papéis. Minha
solicitação para a pesquisa, protocolada junto ao IML de Campinas aos cuidados do diretor da instituição e
posteriormente remetida à Comissão Científica do IML de São Paulo, chegou às suas mãos. A menção à
documentação vai se dissipando enquanto caminhamos em direção ao interior do prédio. Entre cumprimentos e
apresentações a outros funcionários que esperam o reinício do atendimento, sou guiada por Milton às salas que
compõem o andar térreo do edifício, mas que, no momento, não estão sendo usadas para nenhum atendimento.
As três salas separadas por divisórias de escritório formam um desenho em L. Para acessá-las, ultrapassamos
o balcão de informações que separa o espaço de atendimento da área destinada para espera – ocupada por
cadeiras pretas. A primeira sala acumulava inúmeras caixas-arquivo servindo, visivelmente, como uma espécie
de depósito naquele momento. A sala seguinte continha uma mesa, cadeiras, armários e parecia ser um espaço
restrito aos funcionários para momentos de trabalho interno ou destinada para descanso. A terceira e última
sala, bem pequena, continha uma mesa com computador, impressora e telefone, uma maca para exames
ginecológicos (com perneiras), pia e um armário. Milton salienta que a aparente ‘bagunça’ da instituição é fruto
de algumas obras e da mudança nas disposições espaciais das salas voltadas ao público atendido pelo IML. A
cada funcionário apresentado, meu guia já negocia uma possível entrevista para a minha pesquisa. Antes de
partirmos, ele se recorda de meu apreço pelos documentos oficiais e propõe que caminhemos até o segundo
andar do edifício, onde está alocado o ‘arquivo’ do IML de Campinas. A funcionária reclama: “não repara, está
uma bagunça! Estamos retirando os laudos periciais de antes de 1990!”. Pergunto se eles serão ‘acautelados’
em um novo arquivo. Ela, atenciosamente, explica: “Serão escaneados e depois destruídos!”. Eu, entretanto,
estou extasiada entre as prateleiras de ferro e as caixas-arquivo minuciosamente organizadas e datadas que
compõem a sala. Sinto, com pesar, o fato de estar tão perto e tão longe dos documentos importantes para a
minha pesquisa. Se eles estão ali ao alcance das minhas mãos, parecem mais distantes do que aqueles que em
breve serão destruídos pela máquina de picotar papel. Despeço-me da funcionária. São 14 horas. A porta de
vidro está para ser aberta novamente. Do lado de fora, mais de dez pessoas esperam ansiosas o reinicio do
expediente. (Caderno de Campo).
38
(...)
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
(...)
(MELO NETO, 1996, p.60).
16
Tomo como inspiração para o uso desse termo o artigo de Buckland (1997). Segundo o autor, a
expressão “documentação” tem sido usada, desde o início do século XX, como forma de denotar um
conjunto de técnicas por meio das quais um variado número de documentos pode ser gerenciado e
organizado. Substituto da palavra bibliografia, o termo quase sempre faz referência a suportes materiais
impressos, ainda que não precise ser usado exclusivamente para designar tais materialidades. Preocupado
em descrever aquilo que, em diversas linhas interpretativas, poderíamos definir como um documento,
Buckland (1997) destaca as múltiplas valências da categoria: documentos como objetos (BUCKLAND
apud OTLET, 1997), evidência física (BRIET, 2006) ou como expressão do pensamento humano
(BUCKLAND apud DONKER, 1997). Para os fins importantes a essa tese, argumento que a concepção
de Briet (2006) - entrelaçada às noções weberianas de burocracia e técnicas de documentar – é central.
17
Além dos documentos acima apresentados, um segundo amontoado de papéis foi tecido durante os
meses nos quais busquei iniciar minha pesquisa. Entre esses papéis estão certificados de sigilo quanto aos
dados coletados, declarações de que o IML seria expressamente citado em publicações, apresentações
orais, pôsteres etc.
39
Nessas interações tramadas por meio dos papéis timbrados com a insígnia da
Universidade Estadual de Campinas, com referências ao CNPq e à FAPESP, aos
documentos de identificação (RG) de aluno e orientador, eu, também recorria ao Código
de Ética definido pela Associação Brasileira de Antropologia (ABA)18. A citação do
mesmo buscava assegurar que
18
Ainda que a pesquisa estivesse academicamente atrelada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais, à área de Estudos de Gênero, seu referencial etnográfico e antropológico sempre teve destaque,
mesmo na seleção de doutorado. Também, meu mestrado em antropologia tornava tais entrelaçamentos
insolúveis. Por isso, minha opção por citar o Código de Ética definido pela Associação Brasileira de
Antropologia criado através da gestão de 1986/1988 e que foi, mais tarde, alterado durante a gestão de
2011/2012.
19
Gostaria de sublinhar que cheguei à DDM, em junho de 2009, em companhia da antropóloga Fabiana
de Andrade. Tanto eu, quanto ela, desejávamos realizar nossas pesquisas na DDM. Nossos documentos
para tanto eram idênticos. Escritos por meio de um mesmo padrão, tais cartas haviam sido calcadas na
habilidade de Fabiana de Andrade em escrever textos mais formais, com tabulações e espaçamentos
adequados àquilo a que uma solicitação se propõe. Durante o mestrado, todavia, jamais explorei essa
documentação como objeto de reflexão. A pesquisa compartida com Fabiana ganhou centralidade na
dissertação, em detrimento, aos nossos esforços por traduzir, em papéis, as negociações intermitentes
entre nós e as policiais com as quais convivemos entre 2009 e 2011. Agradeço enormemente, a paciência
de Fabiana de Andrade em me ensinar a forjar tais documentos que no decorrer dessa tese ganharam
centralidade.
41
20
Em sua comunicação, Renoldi (2011) descreve, com detalhes, essas inúmeras figuras que mobilizam a
confiança e a desconfiança no cotidiano de investigações da Polícia Federal. Entre elas, a figura do
informante que transita entre o legal e o ilegal, do X9 como traidor ou dos homens de confiança. Posição
conquistada depois de inúmeros ‘serviços’ prestados à polícia com lealdade. As próprias relações entre
policiais são atravessadas pela ideia de confiança, uma vez que não existe um conhecimento mútuo e
detalhado sobre as operações realizadas por cada um dos grupos, ao contrário, cada equipe acaba fazendo
a custódia do que sabe e, apenas compartindo as informações necessárias à comunicação.
42
Diante dessa experiência, uma ideia difusa de lealdade passou a servir a mim
como uma espécie de ponto de partida para a formulação dos papéis que mais tarde
encaminharia ao IML. Evocando o poeta João Cabral de Melo Neto (1996), na epígrafe
que abre este primeiro tópico do capítulo, as “caixas de papel” preservadas no “arquivo”
eram “túmulos”. E só deveriam ser ‘violados’ se uma conduta ética/moral fosse levada
em consideração. Sem dúvida, eu deveria (e exigia de mim mesma) demonstrar lealdade
antes mesmo de participar do cotidiano de trabalho desses profissionais.
Assim, sob o rótulo de ético, imaginava que o acesso à instituição, a sua rotina
de trabalho, a seus funcionários e à documentação guardada por seus arquivos,
enredava-se em malhas e expedientes burocráticos estatais para os quais os
procedimentos de documentação têm grande importância e centralidade. Esses seriam,
em função de minha experiência junto à DDM, os “padrões culturais” e a “intimidade”
a serem resguardados21.
Portanto, partindo das formulações de Max Weber (1982), eu acreditava que o
Instituto Médico Legal de Campinas como um tipo particular de repartição22, também
destinava grande apreço pelos documentos e pelos expedientes de trabalho realizados
por seus quadros de funcionários. Nesse sentido, tentava replicar, no ato de documentar
a documentação, o esmero destinado aos procedimentos de trabalho empreendidos
nessas instâncias policiais e burocráticas, os quais eu supunha conhecer23.
Em outras palavras, esses funcionários arquivariam, em um aglomerado de
papel, as técnicas e as atividades oficiais (WEBER, 1982) que executavam como
profissionais do Núcleo de Perícia da Secretaria de Segurança Pública do estado de São
Paulo. Para tanto, e instigada pelas reflexões metodológicas empreendidas por Vianna
(2014), eu antecipava em minha documentação, assim como ela, aquilo que imaginava
ser necessário para pesquisar e tomar notas nessas instâncias estatais. No caso da
21
Faço alusão aqui aos dizeres do Código de Ética formulado pela ABA aos “direitos das populações que
são objeto de pesquisa” de antropólogos e antropólogas. Em especial, aos itens um, três e quatro,
determinados em tal ordenamento: “1. Direito de ser informadas sobre a natureza da pesquisa; 3. Direito
de preservação de sua intimidade, de acordo com seus padrões culturais; e 4. Garantia de que a
colaboração prestada à investigação não seja utilizada com o intuito de prejudicar o grupo investigado”.
(Código de Ética da Associação Brasileira de Antropologia – ABA).
22
Por “repartição” chamo atenção àquilo que Weber (1982) descreveu em suas reflexões sobre as
características da burocracia no Estado Moderno. Segundo o autor, constitui uma repartição a reunião de
um “quadro de funcionários que ocupe ativamente um cargo público, juntamente com seus arquivos de
documentos e expedientes” (WEBER, 1982. p.230).
23
Inspirada pelo “princípio de documentação” (Weber, 2000) e, pelos meus dois anos de pesquisa em
uma delegacia de polícia, eu presumia que, ao pedir acesso aos papéis produzidos no IML de Campinas,
eu buscava manusear papéis oficiais. Ou seja, para além de seus conteúdos variados – estupros, vítimas e
suas identificações pessoais -, eu acabaria por acessar também às normas administrativas e os princípios
que regem, por meio de regras fixas e estáveis, o desempenho do cargo de perito/legista.
43
Daí meu cuidado em explicitar, já nesses papéis que pedem acesso, uma espécie
de crença e entendimento incorporados do que estava em jogo nesses documentos e
procedimentos periciais, os quais eu tinha interesse em observar/pesquisar. A saber,
formas [nada] públicas (e cifradas) de administrar provas materiais com vistas a
determinar autoria [eu, complementaria, materialidade] criminal (LOWENKRON,
2015; LUGONES, 2012).
Orientada por aquilo que Laura Nader (1972) denominou “studying up”25, eu
conjecturava, por meio dos documentos de apresentação e solicitação encaminhados ao
24
No caso de Vianna (2014), o acesso aos processos de guarda só foi liberado mediante o aceite da
pesquisadora em omitir os nomes verdadeiros dos envolvidos em tais contendas. A determinação exigida
pela própria Justiça da Infância e da Juventude, todavia, não fazia nenhuma requisição quanto a números,
datas, assinaturas e outros expedientes que conformam esses papéis como bens administrativos
(VIANNA, 2014).
25
Segundo Nader (1972), “studying up” estaria relacionado a investigações que direcionam suas
pesquisas de campo aos estratos mais poderosos da sociedade urbana: classes médias, elites econômicas e
burocráticas, empresas e instituições estatais que norteiam, gerem, organizam e impactam a vida cotidiana
de qualquer cidadão comum. Ao se debruçar sobre tais sujeitos e estratos, a antropologia produzida e
ensinada nos EUA ganharia enormemente. Isto porque, como sugere Nader (1972), companhias de
seguro, bancos, instituições de proteção ao consumidor, por exemplo, atuam constantemente em nossas
44
IML, que meus laços de confiança deveriam proteger números, protocolos, técnicas e
procedimentos de investigação realizados por médicos-legistas lotados no IML de
Campinas. Acreditava, portanto, que, ao me comprometer em resguardar a “dimensão
propriamente administrativa” do IML, eu, por consequência, também me
responsabilizava por ocultar o nome, o endereço, a data de nascimento ou qualquer tipo
de informação que pudesse vir a tornar pública a intimidade ou que pudesse revelar as
“identidades” das “vítimas” que ali estariam registradas26.
Como argumenta Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2004), eu buscava, por
meio desses procedimentos burocráticos de documentação, equacionar e represar, já nos
próprios registros documentais de solicitação da pesquisa a ser protocolada junto ao
IML, duas instâncias do trabalho antropológico quase sempre imprevisíveis. Por um
lado, uma definição clara e definitiva do objeto de pesquisa e, de outro lado, um
controle absoluto sobre as questões e interesses que seriam, futuramente, desenvolvidos
num livro e/ou tese publicada, depois da interação entre pesquisador e sujeitos de
pesquisa. Mas era mais do que isso. Arredia ao argumento defendido por Debert (2004),
embora respeitando suas indicações e cautelas, eu buscava, por meios de papéis
burocráticos, construir uma espécie de “identificação empática” com meus futuros
interlocutores de pesquisa27.
Como “sujeitos de Estado”, nos termos de Maria Gabriela Lugones (2014), eu,
indiretamente, reificava e referendava as técnicas de restrição, cujo interesse é o de
vidas, daí a importância e o potencial democrático em compreender seu funcionamento, suas estratégias
de atuação e como suas diretrizes afetam diretamente nossas vidas como cidadãos.
26
Inspirada pelas reflexões sobre o Registro Geral de Identidade (RG) formuladas Mariza Peirano (2006),
eu pressupunha conhecer e entender o caráter identificatório contido em laudos de corpo de delito. Afinal
eles registravam logo em suas primeiras linhas as “qualificações” pessoais da vítima cujo atendimento
pericial resultou em um laudo. Se, como afirma Peirano (2006, p.36), um documento “reúne uma série de
informações, definidas legalmente por um determinado órgão do Estado”, logo também os laudos, objeto
imediato de minha solicitação de pesquisa, continham informações importantes de identificação, pois
indexavam, numa mesma plataforma física, nome, sobrenome, filiação, idade, RG, naturalidade e
endereço.
27
Em seu artigo, Debert (2004) sustenta que, em se tratando de estudos feitos em “contextos up”, nos
termos de Nader (1972), seria necessária uma espécie de revisão dos pressupostos das pesquisas
antropológicas. O abandono da ideia de “identificação empática” seria decisivo para a apreensão das
categorias por meio das quais são operados esses lócus de pesquisas. Isto é, à medida em que
apresentássemos com clareza nossos objetivos e hipóteses de pesquisas em contextos de campo como
instituições governamentais, agências de publicidade, laboratórios de medicamentos e cosméticos,
clínicas e consultório estaríamos invariavelmente comprometendo a própria pesquisa. Isto porque, em tais
contextos não se trata unicamente de desvendar a forma como essas instâncias de poder operam, mas de
politizar e etnografar os efeitos diferenciais que essas formas de classificação e gestão exercem na vida
cotidiana das populações “tradicionalmente” estudadas pelos antropólogos; contextos “down”, nos termos
de Nader (1972). Do que tange a minhas noções políticas e idílicas de pesquisa, ainda que eu não
buscasse denunciar, julgar ou avaliar qualquer forma de atuação dessa corporação policial, eu achava
prudente ocultar certas formas de interpretação presentes em meu projeto de doutorado aprovado pela
Fapesp e encaminhado apenas parcialmente à Comissão. Voltarei a isso no final deste tópico.
45
28
Lugones (2014), em seus descaminhos feitos por intermédio dos papéis oficiais encaminhados ao
Palácio da Justiça de Córdoba, na Argentina, imaginava ser ‘impossível’ ou ‘improvável’ a realização de
uma pesquisa apenas afiançada por frágeis acordos orais. Mesmo depois de realizar inúmeras pesquisas
entre expedientes relativos à gestão estatal de menores na cidade - no Arquivo Geral de Tribunais da
Província de Córdoba ou diretamente nos Juizados Prevencionais de Menores da cidade – Lugones (2014)
destaca sua crença nas autoridades burocráticas. O envio de seu projeto de pós-doutorado, somado à carta
regida pela Secretária de Ciência e Tecnologia da Universidade Nacional de Córdoba (UNC) atestando
sua posição de pesquisadora, selava formalmente seu objetivo de obter autorização para suas pesquisas
junto à Secretaria de Crianças, Adolescência e Família, dependente do Poder Executivo de Córdoba, na
Argentina. Frente a tais esforços, a autora assinala como, ao dar prioridade a tais expedientes oficiais, ela
acabou por negligenciar seus próprios circuitos anteriores de pesquisa, bem como todos os funcionários
que por sua vez eram seus “antigos conhecidos” e poderiam, por outros meios, afiançar sua nova
investigação.
29
Como me alertou Natália Padovani em conversa informal, essa espécie de descrença está calcada nos
próprios procedimentos das instâncias estatais de segurança pública, em especial polícias e prisões. São
instituições que gestam e gerem pessoas, nos termos de Souza e Lima (2002), por meio de fixações que se
produzem exatamente nos fluxos. Para ver mais sobre isso: Padovani, 2015.
30
Em seu artigo, Peirano (2011) lança mão do episódio ocorrido com o professor Henry Louis Gates, em
junho de 2009. A autora parte do caso envolvendo o professor universitário de Cambridge para
dimensionar o lugar privilegiado que os documentos assumem em políticas de identificação. Gates foi
46
preso por um policial depois de arrombar a porta de sua própria casa, localizada na universidade. Sem as
chaves e voltando de uma viagem, o professor universitário optou por forçar a porta de entrada de sua
moradia. O policial que prendeu Gates informou no registro de ocorrência que pediu inúmeras vezes que
Gates se identificasse, contudo, o mesmo aos berros havia se recusado a fazê-lo. Gates, por sua vez,
afirmava ter fornecido sua carteira de motorista e suas credenciais universitárias. A controvérsia, contudo,
ganhou em emoção depois que o presidente Obama, amigo de Gates, afirmou que a prisão havia sido uma
estupidez. A corporação policial, inflamada pelo pronunciamento, afirmou ter apenas seguido o
“protocolo”. Inspirada pela teoria pierceana, Peirano (2011) demonstra como documentos legais
funcionam, na contenda entre Gates e o policial, como objetos mistos: são indexadores, icônicos e
simbólicos, concomitantemente.
31
Essa reflexão será mais bem desenvolvida nos capítulos IV e V desta tese. Neles, busco mapear um
desses entrelaçamentos, bem como as tramas institucionais que articulam o IML Campinas ao DMLE. A
figura controversa de Badan Palhares, médico-legista de ambos os serviços, será central nesse objetivo.
32
Inúmeras pesquisas em ciências sociais têm se deparado com tais problemas legais. Os pesquisadores
são sistematicamente aconselhados (ou mesmo obrigados) a passar por comitês de ética em suas
respectivas universidades. Alguns são proibidos de dar sequência as suas pesquisas antes que um papel
assinado por uma autoridade regularize a pesquisa. Outros, por sua vez, são impedidos de defender suas
teses e dissertações publicamente ou de publicar suas descobertas científicas, em função de não terem um
papel que respalde juridicamente a investigação realizada em instâncias estatais, privadas e/ou públicas.
Para ver mais sobre o tema: Fleischer e Schuch, 2010, Sarti e Duarte, 2013 e Santos e Jeolás, 2015.
47
Atenciosamente,
_____________________
Dra. [Nome]
Membro da Comissão Científica do IML/SP”.
33
A autora cita as muitas técnicas de falsificação, por exemplo, do Social Security Number dos Estados
Unidos, ou as múltiplas utopias científicas envolvendo DNA, íris dos olhos, chips corporais como forma
definitiva e irrefutável de reunir e particularizar, simultaneamente, um mesmo indivíduo. Navaro-Yashin
(2007) também se debruça sobre o efeito de ficcionalidade transmitido pelos documentos e suas
transações locais na República do Chipre. Passaportes falsos, ansiedades por receber cartas no governo
britânico em função da imigração empreendida ou os papéis sem validade internacional, transacionados
entre um mesmo e distinto Chipre salientam a noção de “faz de conta” descrita pela a autora para toda e
qualquer documentação produzida. Tal premissa desmonta a ideia de instâncias como domínio da
racionalidade, da impessoalidade e da opressão burocrática, tal qual argumenta Roberto da Matta (2002).
49
inúmeros exemplos, os efeitos referenciais e icônicos dos papéis; o “Estado não controla
essa força social”. (PEIRANO, 2006, p. 38).
Tal como sugere Leirner (1997), projetos não passam de “cartas de intenções” e
números de sequências anônimas e abstratas que precisam ser associados a vestuários,
estéticas corporais e contatos de prestígio bastante específicos que circunscrevem
pesquisas e pesquisadores34. A forma de me produzir como “uma boa pessoa”, nos
termos de Foote-White (2005, p. 301), exigia de mim muito mais do que apenas a
habilidade de saber documentar a documentação, mas a astúcia de mapear aonde e para
quem eu deveria entregá-la corretamente.
Em posse dessas supostas informações, meu sorriso foi imediato e eu saí de lá
bastante animada com o papel que, anotado a lápis, continha um número de telefone de
São Paulo e o nome da tal funcionária. Eu mesma, a partir daquele momento, na
contramão de minha fixação pelos documentos e pelos caminhos formais de acesso, ia
tecendo as relações pessoais que fazem andar a documentação e, sem dúvida, são parte
dos modos pelos quais apreendemos a documentá-la.
Depois de ligações e e-mails trocados com Isabel, a auxiliar de necropsia cujo
telefone obtive em Campinas, no dia 16 de abril de 2014, eu me dirigi até a capital de
São Paulo com uma quantidade ainda maior de papéis timbrados. Durante as trocas de
informações, Isabel pacientemente me explicou que a documentação que já havia
reunido e deixado aos cuidados do diretor do IML de Campinas estava incompleta.
Através do envio de um e-mail e com o intuito de orientar sobre a produção da nova
papelada, numerou todos os papéis que deveriam compor o dossiê destinado, agora, à
Comissão Científica do IML.
34
Em sua pesquisa junto a exército brasileiro, o autor não só produziu uma carta de intenções sobre sua
pesquisa, com o carimbo da Universidade de São Paulo (USP), como complementou seu cartão de visitas
com paletó, gravata, barba feita, cabelo cortado e as indicações de prestígio de sua orientadora. Utilizei
semelhantes procedimentos quando, em posse de meus documentos de visita, cheguei ao IML de
Campinas e, depois, à Superintendência da Polícia Técnico-Científica na capital. Calça social, camisa sem
transparências, sem decote, sapato de salto e maquiagem compunham, junto a históricos e atestados de
matrícula, uma das imagens possíveis de credibilidade que eu buscava certificar enquanto pesquisadora.
Finalmente, o sobrenome de minha orientadora arrematava tais pretensões.
50
35
Em meu projeto apresentado e aprovado pela FAPESP, o título foi: Entre documentos de
investigação: quando esquadrinhar pedaços de carne é produzir provas materiais?. Já na versão
encaminhada a Comissão optei pela asséptica formulação: Entre documentos de investigação: uma
pesquisa sobre a produção de provas materiais em casos de estupro. A ideia de corpos vistos aos
pedaços e por intermédio de pedaços de carne será objeto de reflexão do terceiro capítulo desta tese.
51
36
Depois de minha pesquisa de mestrado, passei a prestar bastante atenção a esses pequenos casos quase
anedóticos. Gostaria, apenas, de ressaltar como inúmeros eixos de diferenciação comparecem na relação
que estabelecemos com os sujeitos de nossas pesquisas (BRAH, 2011). Ser mulher, branca, jovem, vestir
roupas formais, atuar mediante uma certa postura corporal e com uma particular aparência de classe
tornavam plausível a possibilidade de que eu fosse uma funcionária da polícia ou do Judiciário. Isso ficou
explícito inclusive pelo termo “doutora” comumente utilizado por outros policiais ao se referirem a
delegadas da Polícia Civil, advogadas, promotoras ou juízas.
37
Além de nomear o tipo de procedimento realizado em cada uma das salas, as placas de metais
informavam, também, o nome dos funcionários alocados no espaço de trabalho. Foi por meio desses
procedimentos que não só reconheci a sala que procurava, como identifiquei o nome da funcionária com
quem havia conversado por telefone.
52
***
Comecei esse tópico com um poema de João Cabral de Melo Neto. Como
epígrafe dessa reflexão, seus versos destinados a Carlos Drummond de Andrade falam
sobre a difícil tarefa de “ser funcionário”. Em suas palavras, os arquivos aparecem
como túmulos feitos em dimensões exatas a todos os tamanhos do corpo do poeta.
Caixas que guardam papéis, impressos por máquinas que não escrevem cartas –
imaginadas pelo poeta como o domínio do pessoal e do particular. Em outro contexto,
Navaro-Yashin (2007) nos conta sobre o caso de Fuat, um turco-cipriota e seu
sentimento de medo/pânico ao receber, pelo correio, uma carta endereçada a ele pelo
corpo administrativo britânico. Fuat sai em posse da carta, totalmente selada, e se dirige
a um centro comunitário de tradutores turcos para que esses lhe digam sobre o conteúdo
impresso no papel. Como salienta a antropóloga, ao manter suas correspondências
transacionadas com o Estado Britânico arquivadas em um cofre nesse centro
comunitário, Fuat busca, de alguma forma, apaziguar o efeito fantasmagórico desses
documentos em sua vida como um imigrante residente na Inglaterra. O arquivo aparece,
portanto, como uma caixa cinza e achatada que, pela aparência de racionalidade e
contenção que engendra, contrasta com os “explosivos afetos” experienciados por Fuat
ao entrar em contato com as cartas enviadas a ele pelo governo britânico. Seja no caso
do poema de João Cabral de Melo Neto, seja na etnografia de Navaro-Yashin (2007), os
documentos aparecem como objetos que carregam múltiplos afetos e sentidos. Sem
38
O conceito desenvolvido por Max Weber (2004) tem por intuito preceder a uma análise casuística entre
a pesquisa e a universidade ou entre a pesquisa e as ciências humanas. A pesquisa não foi negada porque
era da Unicamp ou, ainda, por ser voltada à área de ciências humanas, todavia, essas filiações guardam
uma convergência e uma atração importantes. Tais correlações orientam os capítulos a seguir e serão mais
bem delineadas nas notas finais desta tese. Para uma análise dos muitos sentidos que Weber denota ao
termo “afinidade eletiva”, ver Löwy (2011).
55
39
Ao aproximar tais figuras, por um lado, destaco a centralidade que os documentos adquirem tanto para
pesquisadores quanto para burocratas. Relatórios, ofícios, declarações, editais, formulários, prestação de
contas são registros negligenciados, exatamente, pela trivialidade e pela ordinariedade que assumem na
vida de pesquisadores e seus interlocutores – agentes estatais, elites empresariais, burocratas etc. (RILES,
2006; HULL, 2012). De outro lado, inspirada pela reflexão de Ferreira (2014), busco sublinhar como os
documentos permaneceram apartados da “autorrepresentação” da própria antropologia. Em seus termos,
“no quadro imaginário composto pelo etnógrafo solitário, pela aldeia nativa e pela longínqua praia
tropical não há espaço para autorizações formais a serem assinadas e carimbadas por delegados de polícia
(...)” (FERREIRA, 2014, p. 142).
56
Os slides seguem em ritmo acelerado. Sem perceber, os ponteiros do relógio já passam das 17h45. A sala
esvaziada pelo entre e sai dos discentes me chama atenção. Aplausos encerram a palestra e a aula. Os alunos e
alunas saem com rapidez, enquanto eu tento seguir em direção oposta. Cumprimento Milton. Ele, por sua vez,
apresenta-me a Carvalho. “Carvalho, essa é a Larissa, comentei com você sobre ela. Ela é antropóloga, tem
feito o doutorado sobre os casos de estupros periciados no IML” . Sorri e completei: “na verdade, estou
tentando, né, Milton?! Mas o pessoal não quer deixar!”. Carvalho olhou intrigado e retrucou: “como assim não
querem deixar?”. Em linhas gerais, contei a ele sobre a negativa da pesquisa na Comissão Científica do IML. Sem
me deixar enveredar para mais detalhes, Carvalho me pergunta: “Mas quem negou?”. Explico que foi uma
médica, que é membro e chefe da Comissão. Ele continua: “qual o nome?”. Intimidada, olho em direção a Milton.
Sem saber o quão ético seria responder ou não ao questionamento de Carvalho, digo o nome da médica que
assinou o indigesto Ofício. Carvalho fica surpreso: “mas é minha amiga. Não sei porque ela negou. Ela é
pesquisadora, não é contra pesquisa. Mas qual o motivo que ela negou?” . Repito os dizeres do Ofício
encaminhado para o meu e-mail: “Segundo eles, é função do IML preservar a identidade das vítimas atendidas”.
Ele replicou: “Estranho!!! Mas você deixou claro que não tem interesse pelo nome e as informações que podem
expor as vítimas?”. Explico que sim e que, inclusive, havia deixado isso explícito no pedido de solicitação da
pesquisa. Sua feição de dúvida veio seguida de uma promessa: “Pode deixar, vou descobrir qual é o problema.
Vou conversar direto com ela. Ela é minha amiga, tenho certeza que é por falta de alguém que certifique a
idoneidade da pesquisa. Ela é super aberta a pesquisas. Não faz sentido”. Foi a minha vez de ficar surpresa!
Contudo, o relógio já passava das 18h30. Ele, apressado, despediu-se. Mas, antes de seguir em direção ao
estacionamento, reafirmou o compromisso assumido em relação a minha pesquisa e, falando diretamente com
Milton, prometeu ligar assim que tivesse novas indicações. De carona com Milton, comentei sobre a gentileza de
Carvalho e meu interesse em entrevistá-lo. Milton concordou que poderia ser bastante importante para a
investigação. Apenas dois dias depois de nossa aula no anfiteatro da FCM, Milton me ligava com boas notícias.
Carvalho havia retornado à ligação. Ele havia procurado pessoalmente a médica que assinou a negação de
minha pesquisa. Disse que deveríamos encaminhar novamente os papéis referentes à solicitação da pesquisa,
colocando Milton como meu co-orientador e deixando explícito que não tínhamos interesse em ter o nome e as
informações pessoais das vítimas envolvidas. Pediu, também, que sugeríssemos à Comissão que o próprio
Milton acessaria os laudos e fotocopiaria, única e exclusivamente, as conclusões médicas expressas neles.
Carvalho segredou a Milton conhecer os motivos pelos quais minha pesquisa havia sido negada, mas que só
58
contaria a ele quando o encontrasse pessoalmente. Começava ali uma nova movimentação de telefonemas a
minha orientadora e a Milton, envio de e-mails ao próprio Carvalho, novos papéis e, sobretudo, outras esperas.
Nunca soube quais os motivos que levaram ao indeferimento de minha solicitação de pesquisa. Carvalho, dali
por diante, não respondeu mais aos meus e-mails. Nunca oficializamos qualquer co-orientação, nem reenviamos
os papéis à Comissão. Escolhas feitas, seguindo os conselhos de minha orientadora e também de Milton,
semanas depois dele ter ido à cidade de São Paulo para algumas reuniões junto ao IML da cidade. (Caderno de
Campo).
Nem tudo que não se pode ver está escondido: sobre dar autorização, arriscar
autoridade.
40
A princípio, e mesmo depois de passar por seu crivo, não conhecia quais funcionários do IML
compunham tal comitê, nem sabia quais eram suas obrigações ou quais foram as motivações para a sua
criação. A única informação que tive foi que tal Comissão realizava suas reuniões todas as segundas
terças-feiras de cada mês.
41
Jenegathan (2004) desvela as múltiplas camadas que constituem “checkpoints” como um interessante
objeto antropológico. Preocupado em como antropologicamente descrever aquilo que nomeamos como
violento, o antropólogo argumenta que, durante sua pesquisa no Sri Lanka, a presença de postos de
controle era intensa. Toda a região é cravejada de tais aparatos, fossem eles grandes ou pequenos, oficiais
ou não oficiais. Segundo o autor, portanto, os postos de controle funcionam, concomitantemente, como
aparatos físicos que organizam o fluxo de pessoas e objetos e como pontos de fixação (alvos) potenciais
que antecipam uma violência latente. Postos de controle mapeiam alvos e ataques de bombas, ao mesmo
tempo em que determinam e cartografam tais territórios como sujeitos a essas violências pelo ato de
verificação ali empreendido.
60
42
Como descreve Jenegathan (2004) por meio de seu próprio cartão emitido em 1982, pouco antes de ele
entrar na universidade, na carteira há, num dos lados, a fotografia, data de emissão, número de
identificação e assinatura do burocrata responsável pela emissão do cartão. Do outro lado, uma série de
linhas pontilhadas detalha nome, sexo, data de nascimento, local de nascimento, ocupação e endereço do
titular do documento.
43
Uso o termo dando atenção aos meus próprios percursos narrativos. Os sentimentos de frustração,
indignação e ansiedade gestados em função do “Ofício 017/2014”, assim como descreve Navaro-Yashin
(2007), incidiram diretamente na forma de narrar antropologicamente os mecanismos de negação.
44
Os exemplos de tais procedimentos são inúmeros. Algumas das pesquisas citadas nessa tese optaram
por esse caminho. A etnografia de Leiner (1997), em especial, pode iluminar tais procedimentos. O autor
preocupado em desvelar a identidade militar, estruturou seu projeto de pesquisa em torno de um elemento
político – a questão Amazônica e o Projeto Calha Norte. Em seu horizonte, Leiner (1997) pretendia
entender como tal identidade de grupo operava em uma ação concreta, na qual seu papel e sua função
enquanto corporação são exigidos. O fato de nunca ter sido autorizado a pisar de fato na Amazônia,
redimensionou profundamente o projeto de pesquisa desenvolvido pelo autor. Os caminhos entre
conferências, eventos e palestras foram redirecionando o campo empírico, sem, contudo, fazê-lo perder de
61
***
“Por que isso daí, ou seja, esses laudos para você conseguir acesso,
você particularmente [ênfase], pra você conseguir acesso a eles é um
negócio, assim ... difícil. Por quê? São Paulo faz um [reticência].
Como se diz? Você precisa da aprovação quase do governador. Eu
diria dessa forma. Entendeu? Tem que ser resguardado. O que você
faz? Ah, então não pode. Mas eu preciso pra um trabalho assim,
assim, assado. Precisa pedir autorização pro Diretor do IML, que vai
pedir pro Superintendente, que o Superintendente vai pedir pro
Secretário de Segurança, que o Secretário de Segurança vai pedir
pro...isso aí vai tomar uns três anos”. (Entrevista realizada em
janeiro de 2015).
vista as questões identitárias que orientavam seus interesses etnográficos. Para ver outros exemplos:
Muzzopappa e Villalta, 2011; Bevilaqua, 2003 e Azevedo, 2016.
62
indexava seu nome, seu RG, sua filiação, sua data de nascimento, sua profissão, seu
endereço e, finalmente, seu corpo. Entretanto, o que a Comissão Científica me
informava contrariava isso. O nome, a filiação, o endereço e o corpo que ali se convertia
em evidência material não podiam ser conhecidos por mim. Portanto, escondê-los, por
meio da ocultação numérica dos próprios laudos, não garantia a preservação de suas
identidades45.
À luz dessas reflexões, o argumento desenvolvido por Ferreira (2009) é central e
serve, a contrapelo, para entender os dizeres da Comissão. Em sua pesquisa, a
antropóloga preocupada em etnografar os processos burocráticos e documentais por
meio dos quais corpos não identificados passam a ser identificados no Instituto Médico
Legal do Rio de Janeiro, chama atenção para “um processo criador, de construção e
atribuição de identidade” no qual esses cadáveres desconhecidos estão imersos quando
adentram o necrotério. Em seu material empírico, inspirada pela ideia de identificação
formulada por Souza e Lima (1998), a autora aponta como
45
Como, afirma Fassin (2012), a ideia de identidade entranha um sentido moral de longo prazo que é, ele
mesmo, indissociável de um conjunto de afetos e valores que regulam condutas e emoções em relação aos
outros e, que definem um sentimento de respeito à vida e à dignidade humana bastante historicizado e
preciso. Parte de seus desafios ao pensar a ideia de “razão humanitária” foi deslindar alguns dos sentidos
contingentes impostos a essa categoria.
65
“diferenciar pela inserção numa série, numa classificação (...)”46. (SOUZA LIMA,
1998, p. 214). Ato “a ser perpetrado por um especialista”, a identificação, nos termos do
autor, deve ser compreendida como uma “prática de controle que se estabelece sobre
bens móveis e imóveis e sobre indivíduos” (SOUZA LIMA, 1998, p. 213).
A correlação formulada por Souza Lima (1998) remonta às conexões bastante
explícitas entre o termo e a medicina legal brasileira. Enquanto técnica e prática
policial, a identificação floresce em meados no século XIX. Como sugere Carrara
(1984), tal nascimento, destinado ao exame de locais de crime e voltado a identificar,
com eficiência, criminosos reincidentes, buscava perscrutar os corpos, com o intuito de
encontrar um sinal diacrítico definitivo que determinasse a identidade individual de todo
sujeito. As técnicas de identificação desenvolvidas por Vucetich, por meio dos desenhos
papilares, localizados nas pontas dos dedos de todos os indivíduos, foi o passo
definitivo a tais empreendimentos47. Carrara (1984) ainda sugere que a constituição de
um sistema de classificações ancorado em marcas concomitantemente variáveis,
imutáveis e inalteráveis, permitia a médicos e advogados almejar transformar a
“sociedade inteira em um grande panopticum, cuja torre de controle fosse o Estado, ou
melhor talvez, a Polícia”. (CARRARA, 1984, p.7). Se, nos termos do antropólogo,
Afrânio Peixoto acreditava que “o meio mais seguro de demonstrarmos nossa
identidade é aquele fornecido pelo Estado”, nesse novo cenário (e até hoje) tal
prerrogativa passou a figurar como um direito do cidadão. (CARRARA, 1984, p.10)
A ambiguidade do termo, contudo, permaneceu viva entre esses reformadores.
Em alguns momentos designada como personalidade individual e muitas vezes tomada
por meio de sua acepção jurídica48, a identidade, passível de ser extraída das impressões
digitais e depois convertida em uma sequência numérica, pressupunha a exposição dos
indivíduos frente aos órgãos de controle da polícia, para, por conseguinte,
46
Como demonstra Souza Lima (1998, p.113), identificação é uma palavra proveniente do latim, tendo
como sentido “ato ou efeito de identificar” e “reconhecimento duma coisa ou dum indivíduo próprio”.
47
Como afirma Carrara (1984), Vucetich classificava as impressões digitais a partir de classes gerais. As
digitais, por conseguinte, dentro dessas classes iam recebendo subclassificações por meio de suas
particularidades até, finalmente, se chegar a uma única marca datilográfica. Nos arquivos dos sistemas de
identificação tais “cifras antropométricas” recebiam uma série de números e letras que permitiam o
acesso e a transmissão rápida de tais informações. Idealizada por Reyna Alamandos, tais práticas eram
bastante eficientes: “cada impressão digital estaria aliado a um número bastante especial, o número
pessoal, que constaria também em uma cédula que o indivíduo receberia ao ser identificado civilmente”.
(CARRARA, 1984, p.21).
48
Segundo o autor, “conjunto de direitos e deveres concernentes a um indivíduo em determinado
momento de sua existência frente à coletividade e a um certo domínio de bens”. (CARRARA, 1984,
p.12).
66
49
Carrara (1984) encerra seu artigo afirmando que o encontro entre a polícia e a medicina, talvez “seja
mais feliz” do que aquele ocorrido entre o direito e a medicina. Isto porque, nos termos do autor, tal
ligação parece operar “uma junção fundamental para a gênese das sociedades autoritárias, para a lenta
maturação daquilo que já foi chamado de o ovo da serpente”. (CARRARA, 1984, p.26).
67
50
Prontuário médico é “o conjunto de documentos padronizados, ordenados e concisos, destinados aos
registros de todas as informações referentes aos cuidados médicos e paramédicos prestados ao
paciente”. (http://www.cremesp.org.br/?siteAcao=PublicacoesConteudoSumario&id=57, acessado em 25
de maio de 2017).
51
Essa informação me foi reiterada, também, por vários funcionários do IML de Campinas. Segundo eles,
mesmo em casos nos quais o IML precisa requisitar o prontuário das vítimas no hospital, isso só pode ser
feito diretamente pela vítima.
52
Tal formulação encontra-se discriminada no artigo quarto, da Resolução do CREMESP nº 126 de 31 de
outubro de 2005. Segundo informa esse dispositivo, contudo, pesa sobre peritos e médicos-legistas o
“sigilo pericial”, sobre cuja formulação, diz o paragrafo primeiro, é “vedado ao médico, na função de
perito, divulgar suas observações, conclusões ou recomendações, fora do procedimento administrativo e
processo judicial, devendo manter sigilo pericial, restringindo as suas observações e conclusões ao
laudo pericial, exceto por solicitação da autoridade competente”. (Resolução do CREMESP nº 126, 31
de outubro de 2005).
53
Nos termos do Código de Ética, o sigilo médico informa as relações de confiança estabelecidas entre
médico e paciente. Tal sigilo não pode ser confundido ou meramente justaposto ao sigiloso destinado aos
prontuários médicos, em especial seu uso e sua formulação para fins periciais (JARDIM, 2013). Isso
porque, tal ordenamento institui diferenças entre a interação face a face estabelecida por médico e
paciente e a produção documental fruto desse encontro, respectivamente. Na comunicação face a face, o
profissional terá acesso a inúmeras informações, nem todas serão transcritas em prontuário. Apenas os
dados importantes ao diagnóstico serão formulados de maneira direta e objetiva. Por exemplo: o registro
da doença não vem associado aos pormenores que levaram à contaminação da mesma.
68
54
O decreto-lei promulgado pela presidente Dilma Roussef é organizado em capítulos, seções e
parágrafos. Há seis capítulos preocupados com temas tais como: o acesso à informação e sua divulgação,
os procedimentos para acesso a informações e documentos, as justificativas para restrição de acesso e
sobre as responsabilidades do agente público e militar. Além das temáticas específicas, o decreto-lei
apresenta um capítulo inicial, com disposições gerais sobre a matéria legal e um capítulo final destinado a
regular formas de controle e incentivo à transparência da administração pública.
55
Segundo a letra da lei: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse
particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de
responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado” (Constituição Federal, 1988).
56
Tais classificações estão dispostas no capítulo IV, “Das restrições de acesso à informação” e reúnem
onze parágrafos, divididos em seis diferentes seções sobre os temas tais como: classificação das
informações sigilosas e prazos de restrição de acesso, proteção e controle de informações sigilosas,
procedimentos de classificação e reclassificação, regras de controle sobre informações pessoais, assim
como disposições gerais e finais sobre a matéria.
69
enreda a negativa formulada pela Comissão Científica do IML. Se, pelos dizeres do
“Ofício 017/2014”, minha pesquisa, aparentemente, não coloca em risco a “segurança
da sociedade e do Estado”57, é, sobretudo, por meio da costura de dois fios distintos
que tal novelo pode ser vagarosamente desfiado. De um lado, a “intimidade, vida
privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais”
e, de outro lado, o risco de se “responsabilizar” por uma “doutoranda” das “ciências
humanas” que não está “obrigada ao sigilo profissional” médico.
O respeito a “intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como
as liberdades e garantias individuais”, coloca-nos no cerne do que, nas páginas
anteriores, eu busquei correlacionar por meio das ideias imbrincadas de identidade e
identificação. Como documentos públicos, contudo, laudos de corpo de delito
arquivados no IML “poderão ter autorizada sua divulgação ou acesso por terceiros
diante de previsão legal ou consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem”.
O consentimento, condição expressa no inciso II, do parágrafo primeiro da Lei
12.527/2011, poderá ser tangenciado em, pelo menos, cinco condições expressas pelo
mesmo dispositivo legal:
57
Faço alusão aqui às formulações desenvolvidas por Michel Foucault (2008) em seu curso “Segurança,
território e população”. Em suas argumentações, o Estado aparece como um princípio de inteligibilidade,
mas também, um objeto estratégico. Voltarei a tais formulações nas notas finais desta tese.
70
58
Nos segundo e terceiro capítulos desta tese, olharei com mais atenção para as técnicas empreendidas na
feitura dos laudos de corpo de delito, assim como às práticas pedagógicas que articulam documentos
médicos e docência/produção científica na área de medicina legal.
71
“por isso que eu falo para colegas, tem que tomar cuidado com foto,
com informação, porque isso pode ser arrolado como prova contra o
profissional. Eu falo por mim, tenho laudo de todos esses crimes
famosos. Mas vamos supor, vou dar aula e apresento o caso, mesmo
mudando o nome, todo mundo conhece. Aí tem alguém na sala, tira
umas fotos impróprias. Aí te pergunto: quem responde por isso? Sou
eu, né, que usei os dados na aula. Por isso que eu te falo, Milton, tem
que tomar cuidado!! Tem que se proteger!!”. (Aula de medicina legal,
Unicamp, 19 de janeiro de 2015).
59
No caso de São Paulo, uma rápida pesquisa nas internet indica uma quantidade variada de denúncias
sobre o atendimento e as condições precárias de trabalho na corporação. Essa face da instituição será
objeto de reflexão nas notas finais desta tese.
60
Cristiano Araújo ganhou fama devido a sua carreira como cantor sertanejo. Sua morte ocorreu no dia
24 de junho de 2015, quando retornava de um show em Itumbiara, no sul do estado de Goiás. O acidente
deu-se na BR-153, em direção a Goiânia. No veículo estava também o empresário e a namorada de
Cristiano que também faleceu em função do acidente. A necropsia do cantor ganhou as mídias eletrônicas
e até hoje pode ser vista no youtube. O IML da cidade foi acusado de ter promovido o vazamento
indevido de imagens e do vídeo da necropsia.
73
compartilhada por Carvalho, nos termos de meus interlocutores, são alguns dos motivos
pelos quais o IML tornou-se “arisco” a pesquisas e pesquisadores.
Nunca soube efetivamente se os funcionários do IML protocolavam declarações,
projetos e cartas de intenções à Comissão Científica. Como pude notar no decorrer da
pesquisa, inúmeros legistas da instituição realizavam investigações tomando como
objeto de reflexão os atendimentos, as perícias ou mesmo as fotografias produzidas em
função do cargo exercido no IML. No correr das entrevistas realizadas, outros legistas
fariam menção a especializações, dissertações e teses de doutoramento realizadas em
concomitância à prática como legistas. As aulas de medicina legal eram exemplos, ainda
mais evidentes, da relação entre IML e técnicas/formas de pesquisa. Inúmeros
palestrantes convidados por Milton e funcionários da Polícia Técnico-Científica de São
Paulo ancoravam suas palestras e aulas em casos empíricos cujas perícias haviam ficado
ao seu encargo em inúmeras unidades do IML.
Aqui, as sucintas e objetivas linhas do “Ofício” já salientam as complexas
“tramas institucionais” (GREGORI, 1999) veiculadas pelo indeferimento. Dentre a
documentação entregue por mim à Comissão, em meio aos papéis certificados pelo meu
RG, meu pelo CPF e meu registro acadêmico (RA), estava o atestado de que, como “o
responsável interno pelo projeto” eu não “era parte integrante do quadro de
funcionários do Instituto Médico Legal”. Na época de feitura desses papéis, estampados
com a insígnia da UNICAMP, eu imaginava que não ser parte dos quadros de
funcionários do próprio IML contaria a meu favor. Afinal, experiências como as de
Guaracy Mingardi (1992), de ser concomitantemente pesquisador e funcionário da
Polícia Civil do estado de São Paulo, impunham à sua pesquisa inúmeros problemas de
ordem ética. Entretanto, eu estava completamente equivocada sobre os efeitos práticos
entre ser de dentro e de fora da corporação no tocante à Polícia Técnico-Científica.
Como argumenta Bourdieu (2008), a Comissão funcionava como uma espécie de
“ritual de instituição” no tocante a minha pesquisa. Pelo termo, o autor lança luz aos
mecanismos por meio dos quais se “institui” em alguém “uma essência, uma
competência, ou imp[õem] um direito de ser” (BOURDIEU, 2008, p.100). Como
argumenta o sociólogo, tal ritual forja uma descontinuidade num contínuo, “faz[endo]
ver a alguém o que ele é e, ao mesmo tempo, lhe fazer ver que tem que se comportar em
função de tal identidade” (idem).
Se o fato de não ser formada em medicina, nem exercer qualquer profissão da
área jurídica, a princípio parecia justificação suficiente para o indeferimento, pouco a
74
61
Como, por exemplo, a data e o local de uma determinada diligência ou uma técnica de investigação
secreta.
77
Sem dúvida, o “grupo feito homem”, nos termos do autor, exige que olhemos
com mais atenção para aquilo que conforma como o seu reverso. A “delegação” que
elege tal figura como o “porta-voz” do grupo esconde, em suas próprias técnicas de
constituição, o risco de ser chamado a responder nominalmente àquilo que se cede
autoridade autorizando. Seguramente, diante de qualquer problema jurídico causado
por minha pesquisa no futuro, está a carreira pessoal, com nome e sobrenome próprios,
daquela que assinou o deferimento. Aqui está recolocado o conselho de Carvalho em
torno da publicização de pesquisas realizadas nessas instâncias técnico-policiais: “tem
que se proteger”. As “cadeias de subordinação” (LEINER, 1997) protegem, portanto,
vítimas, peritos, mas também os nomes que figuram como processáveis ou passíveis de
punição institucional.
Os exemplos de tais ansiedades se proliferam em estudos realizados com elites,
burocratas ou corporações. (CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014). Seja
quando se faz necessária a autorização de um juiz de direito (LOWENKRON, 2015), ou
da chefia da Polícia Civil (FERREIRA, 2015), ou da funcionária de confiança que
afiança a idoneidade da pesquisa (LUGONES, 2014). Sustento que a correlação entre
“nome próprio” e insígnia institucional se perpetua numa espécie de estabilidade
instável. A despersonalização por meio do cargo ocupado, nos termos de Weber (1982),
convive com o caráter nominal das assinaturas62. Por isso, Carvalho era enfático em me
questionar: “qual o nome?”.
A Comissão se desfaz enquanto ente destacado e unitário e surgem, em seu
lugar, os nomes que a compõem por indicação. Por mecanismos semelhantes Milton
poderia, nominal e institucionalmente, responsabilizar-se pelo meu acesso ao IML.
62
Durante minha pesquisa de mestrado presenciei essa instabilidade instável entre nome próprio e função
policial através das ansiedades de inúmeras escrivãs quando chamadas a responder por um inquérito ou
um atendimento prestado na corregedoria da Polícia Civil. A denúncia de má conduta, ainda que
destinada a escrivã, enquanto cargo institucional, recaía sobre uma pessoa física: a escrivã com um nome
e um sobrenome.
78
“Vou conversar direto com ela. Ela é minha amiga, tenho certeza que é por falta de
alguém que certifique a idoneidade da pesquisa”. No limite, para Carvalho, Milton era
a marca pessoal necessária à versão formal, oficial e impessoal gestada em minha
documentação protocolada.
Semelhantes ao descrito por Lowenkron (2015), pesquisas estão quase sempre
imiscuídas por indicações e relações pessoais. No seu caso, tais conexões podem ser
vistas desde os encaminhamentos à Polícia Federal por delegados indicados pelas redes
pessoais de uma assessora parlamentar que facilitou seu acesso ao Grupo de trabalho na
CPI da Pedofilia em Brasília, até o delegado que recebeu a autora em seu gabinete, por
indicação de outro delegado e ex-chefe do Departamento de Direitos Humanos. Sem
esquecer, ainda, das mediações empreendidas pelo presidente da SaferNet, uma ONG de
grande prestígio entre os policiais, devido a sua atuação na já mencionada CPI da
Pedofilia.
Pelos mesmos mecanismos pessoais, supus que as insígnias acadêmicas e
profissionais, estampadas nos primeiros slides projetados por Carvalho durante sua
palestra, realizada no auditório da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp,
seriam a solução ‘não oficial’ ao entrave formal colocado a minha pesquisa. Mas
durante os anos de meu doutorado, eu compreendi, pelos mais diferentes caminhos que
dar fiança a alguém, é se responsabilizar por essa pessoa, cedendo parte da sua
confiabilidade e sua credibilidade a ela. Essa conversa não redundou em novos pedidos
de acesso, ao contrário, acabou por reafirmar o indeferimento formal imposto à
pesquisa: e-mails não respondidos, informações fragmentadas, inconsistentes ou
contraditórias e, finalmente, a circularidade infinita às mesmas “cadeias de
subordinação” destacadas por inúmeros legistas em suas entrevistas.
E aqui, a segunda característica em torno das noções de “delegação” e
autoridade salta aos olhos. Qual o lugar institucional do IML no que tange à produção
das investigações da polícia? Como salientei na apresentação desta tese, o Instituto
Médico Legal em conjunto com o Instituto de Criminalística, forma a Polícia Técnico-
Científica do estado de São Paulo. Submetidas à Secretária de Segurança Pública, essas
corporações policiais têm uma Superintendência própria e autonomia frente às Polícias
Civil e Militar do estado. Como expresso em ordenamento já citado na apresentação, o
decreto nº 42.847, em seu capítulo II, art. 2º, define que a Superintendência da Polícia
Técnico-Científica é “um órgão técnico científico auxiliar da atividade de polícia
judiciária [Polícia Civil] e do sistema judicial”.
79
Simmel (2009. p. 236) traduz essa ideia a partir da máxima: “(...) se o que é secreto não está ligado ao
63
64
A chave abria a porta de comunicação que ligava a casa do Sr. José à Conservatória. Tratava-se dos
resquícios de tempos passados, quando os funcionários moravam praticamente dentro das instalações do
austero cartório. Por azar ou destino, Sr. José habitava uma das últimas dessas moradias que como
memória permaneceram intactas.
82
65
Faço alusão à frase de Susan Sontag (2003, p. 38), “você é capaz de olhar para isso?”. Em seu livro, a
autora incita o leitor a pensar sobre os engajamentos morais e afetivos que representações fotográficas de
guerra, com suas dores, sofrimentos e crueldades, podem mobilizar naqueles que se dispõe a olhar.
Segundo Sontag (2003), existiria prazer tanto no ato de olhar sem hesitar quanto em titubear e, por fim,
desviar o olhar de tais imagens de mutilação, despedaçamento ou morte de um ser humano.
66
Etimologicamente, caquexia é uma palavra derivada de dois termos gregos: kakos (mau) e hekis
(estado). Portanto, o termo poderia ser definido como “mau estado”. A definição médica caracteriza a
caquexia como uma síndrome complexa e multifatorial que leva a perda de peso, atrofia muscular, fadiga,
fraqueza e perda de apetite. No caso da necropsia, o idoso foi descrito “em estado de caquexia” devido a
sua magreza esquelética, fruto da perda de massa corpórea e tecido adiposo, e pela atrofia, perceptível a
olho nu, de seus membros superiores e inferiores.
84
a qualquer passante que tivesse o interesse de por ali ingressar. Era impossível não fitá-
lo.
As duas outras mesas que compunham a imensa sala seguiam vazias, limpas e à
espera. O dia, nos termos de Neves, estava tranquilo, para o “meu azar”. Não havia,
naquela sexta-feira, nenhuma “morte violenta” a ser necropsiada, pelo menos não nas
primeiras horas da manhã. Minutos depois de iniciar a entrevista com Neves, ele me
questionou sobre o tempo que levaria nossa conversa. Diante de minha resposta incerta,
perguntou se eu me importaria de adiar o início da entrevista por alguns minutos para
que ele liberasse um corpo à família, que aguardava para o velório e o sepultamento.
Sem titubear, disse que ele ficasse à vontade, que poderia esperar, sem nenhum
problema. Tamanha foi minha surpresa quando, segundos depois, ele retornou à
antessala pela qual eu havia entrado quando cheguei ao necrotério, a mesma que
escolhemos para realizar a entrevista, e me questionou: “você gostaria de assistir uma
necropsia?”.
Seguimos para uma pequena sala com armários, onde legistas e auxiliares de
necropsia guardam seus pertences de valor. Guardei minha bolsa, o roteiro com a
entrevista e meu gravador. Em seguida, um funcionário me entregou um avental e uma
touca cirúrgica. Antes de voltarmos à ampla sala de necropsia, o funcionário perguntou
se queria luvas e máscara. Com humor, achei mais prudente aceitar a máscara de
proteção. Recusei as luvas cirúrgicas, não pretendia tocar em nada. Neves sorriu e me
avisou: “se você se sentir mal, não fique preocupada, pode sair da sala”. Sua
solidariedade, fruto de sua longa experiência profissional com necropsias, acalmou
minha pueril vivência com os odores dos mortos.
Dessa vez, atravessei toda a sala de necropsia, de ponta a ponta. A luz natural,
advinda das amplas janelas localizadas a minha esquerda, contrastava com o piso
envelhecido de coloração ocre. Neves permanecia com a mesma vestimenta com a qual
me recebera: calça e camisa social, um sapato de couro e, por cima de tudo, um jaleco
‘de médico’ branco, bordado com seu nome. Vitor, o auxiliar de necropsia e o mesmo
funcionário que minutos antes preenchia o ‘livro preto’, estava praticamente
irreconhecível. Munido de óculos plásticos de proteção, máscara cirúrgica descartável,
luvas de borracha de cor amarela e um impermeável avental azul escuro plastificado,
estava a postos e com os instrumentos necessários à necropsia: bisturis, facas de lâmina
longa e curta, bandeja, balança de medida e uma serra elétrica. O corpo do idoso, morto
horas depois de dar entrada no hospital com problemas respiratórios, permanecia em
85
67
O formulário destinado a casos de SVO tem aproximadamente três ou quatro páginas. São compostos
de seções e caixas de texto específicas, as quais o médico deve completar à caneta no decorrer da perícia.
Esse procedimento é tecnicamente muito semelhante aos métodos usados em necropsias de mortes
violentas (homicídios, suicídios, quedas, incêndios, acidentes de trânsito etc). O corpo todo do cadáver é
inspecionado, com atenção a três partes em particular: a cabeça, o tórax e o abdômen. A diferença,
contudo, é a de que o exame realizado pelo Serviço de Verificação de Óbito não visa à resposta dos
quesitos oficiais (se houve morte, qual a causa, qual instrumento utilizado, e se houve outros elementos de
crueldade e tortura) como no caso de “mortes violentas”. O preenchimento do formulário busca a
comprovação da causa natural da morte do cadáver encaminhado ao Serviço. Tal direcionamento é feito
em casos de falecimento sem motivo aparente da vítima, quando a mesma foi encontrada morta em sua
residência ou morreu mediante atendimento em uma unidade de saúde. Esse formulário anotado no
decorrer das “práticas de rotina” será depois utilizado no preenchimento da Declaração de Óbito, onde
consta a causa da morte, a ser entregue aos familiares do cadáver periciado.
86
Neves parecia empolgado com minha presença. Para ele tratava-se de uma aula.
Sua dedicação parecia ter nos colocado em um anfiteatro, tal como acontecia nas antigas
aulas de medicina legal, referências para sua formação e que, mais tarde, seriam
relembradas por ele em sua entrevista.
Com rigor, ele me explicou sobre as lesões presentes no debilitado pulmão do
paciente, sobre seu coração bastante conservado para sua idade avançada, sobre os
decalques presentes no cérebro, indicando um vaso sanguíneo rompido e um
derramamento de sangue na cavidade craniana. Os órgãos, de tamanhos e colorações as
mais diversas, dispostos da tábua, eram retalhados e perfurados pelos dedos de Vitor –
ordens dadas por Neves para que eu pudesse entender o aspecto e a consistência de cada
um dos órgãos.
Diante das marcas encontradas na massa encefálica, Neves pediu que Vitor
retornasse a região da cabeça do cadáver. Segundos depois, o auxiliar de necropsia
apresentava uma fina membrana removida do osso craniano com as marcas do suposto
derrame, que eu imaginava ter levado o idoso ao óbito. O cérebro, os pulmões e os rins
debilitados indicavam o óbvio, como Neves mesmo havia me segredado antes mesmo
do início da necropsia: um idoso de 96 anos, hospitalizado, com caquexia avançada,
morreu por “falência múltipla dos órgãos”. E Neves completou: “a pergunta é: por que
o médico do hospital não achou razoável assinar a declaração de óbito?! Você acha
que é necessário mandar pra SVO?!”. Impactada e um pouco nauseada, mas sem a
máscara cirúrgica descartável, apenas concordei.
Para Neves, estava encerrada a necropsia. Caberia a Vitor recolocar todos os
órgãos retalhados e investigados pelos “procedimentos de rotina” de volta ao corpo do
idoso, suturar, lavar o cadáver e entregá-lo aos cuidados da funerária, na sala ao lado.
Ali, visível a qualquer pessoa presente na sala de necropsia, num espaço com entrada
independente, estava localizada uma outra saleta, com os caixões e os instrumentos
necessários para a arrumação dos mortos periciados pelo IML68. Dali, o corpo sairia
para as salas de velório. Já disposto e à espera de mais um morto “cartoralizado69”, nos
termos de Medeiros (2012), o caixão de madeira estava aberto e alocado no suporte com
rodinhas, para facilitar sua locomoção. Quanto a mim, retornei à sala preparatória e
68
Não sei precisar exatamente o que havia nessa sala contigua a sala de necropsia. Contudo, chamou
minha atenção os caixões dos mais variados modelos e tamanhos e as coroas de flores disposta quase na
saída independente do cômodo.
69
Aqui faço menção ao efeito cartorial imposto ao trabalho do IML. Ou seja, os cadáveres periciados são
convertidos em papéis, cuja função é, concomitantemente, organizar, classificar e arquivar tais mortes.
87
70
Comentário feito por Adriana Vianna, em minha banca de qualificação.
88
71
Como demonstra Medeiros (2014), muitos foram os meandros pelos quais sua visão e seu olfato
passaram a se acostumar até conseguir identificar aquilo que, para os leigos, é sempre sinônimo de nojo,
repulsa, ansiedade ou medo. Os cadáveres expostos ou guardados em câmeras frigoríficas do IML; seus
inúmeros estados de conservação e dimensão obrigaram a antropóloga a questionar como tais percepções
sensoriais são centrais ao trabalho de perícia e de antropologia quando esta se debruça sobre tais sujeitos.
72
Ao usar termos como iniciação, ensinamentos ou aprendiz, eu busco delinear alguns dos deslizamentos
que os termos de dentro e de fora, descritos no primeiro capítulo desta tese, podem carregar. Menos do
que uma liminaridade, tal como tematizado por Turner (1974), dou atenção às ideias formuladas por
Bourdieu (2008) sobre noções como “linguagem autorizada” e “rituais de instituição”. Como argumenta o
autor, toda a ritualística em torno da separação entre iniciados e não iniciados mascara um dos efeitos
fundamentais dessa divisão: o próprio procedimento de separar e classificar os sujeitos envolvidos.
89
armazenados, sorria sem alguns dos dentes, com as roupas em farrapos. As “peças”
sem cheiro de cadáver “fresco” eram, naquele instante, todavia, ainda que por um breve
tempo, pessoas.
Por contraste, a sala asséptica, as luzes brancas, as rotinas de manuseio e os
cortes no cadáver inerte do idoso na mesa de aço reluzente em nada rememoravam
minhas visitas ao laboratório de anatomia. Minhas dificuldades de olhar, de respirar
profundamente, mas, sobretudo, de permanecer ali, defronte à mesa e impassível, eram
resultado da frescura e da vivacidade do cadáver. Meus olhares de soslaio ao rosto do
senhor franzino (o periciado), tal qual Aldé (2003) durante suas entrevistas realizadas
no IMLAP, no Rio de Janeiro73, eram orquestrados aos movimentos peristálticos do
meu estômago. Meu olfato, pouco afeito à gama de odores que exalava pela sala,
relutava em se acostumar. Os (des)caminhos pelos quais esse processo de distinção
entre aulas de anatomia e necropsias se dava tinha rosto, cheiro, consistência, volume e
coloração.
O corpo inerte e sem vida, aberto e desentranhado era, portanto, um convite a
olhar, ao mesmo tempo em que carregava com ele sua exata negação: a dificuldade de
olhar (SONTAG, 2003). Eu, por curiosidade e como desafio, dali por diante abandonei
meus olhares de soslaio e passei a dar atenção às estéticas pelas quais corpos periciados,
vivos ou mortos, são manuseados, fragmentados e convertidos em documentação.
Neves, como um excelente professor, havia me enredado em um (in)digesto
desafio. Aos moldes de um chiste, aquilo era um teste do qual eu, uma aprendiz não
iniciada nas técnicas de “conversar com os mortos”74, poderia desistir a qualquer
momento. Afinal, como Neves me alertou antes mesmo de seguirmos à mesa de
necropsia: “se você se sentir mal, não fique preocupada, pode sair da sala”. Esse seu
primeiro sobreaviso deu início ao processo pedagógico levado a cabo por ele e que
73
Nos termos do autor, além do odor pútrido sentido antes mesmo de entrar nas antigas dependências do
IMLAP, na época sediado na Lapa, outras estratégias de ver (sem olhar) ajudaram na condução de sua
pesquisa. Em suas palavras, “logo em frente, na sala de necropsia, um auxiliar de cartório batia à
máquina, enquanto dois peritos acompanhavam, descontraídos, o trabalho dos técnicos de necropsia,
empenhados naquele momento em abrir dois corpos. Adotando uma espécie de tapa-olhos interior,
tentando não focalizar o que acontecia nas duas mesas de necropsia bem ao meu lado, caminhei reto até o
auxiliar de cartório, apresentando a pesquisa e anunciando a distribuição dos questionários” (ALDÉ,
2003, p. 42).
74
Faço alusão ao termo consagrado por Badan Palhares (2007), em sua autobiografia intitulada “Porque
converso com os mortos. As memórias do médico legista dos casos mais polêmicos do país: PC Farias,
Josef Mengele, Chico Mendes e outros”. Por sua vez, o título da autobiografia rememora uma entrevista
concedida por Badan Palhares à revista Veja, em janeiro de 1991, denominada “Os mortos falam”,
durante o processo de identificação das ossadas encontras na vala comum do cemitério de Perus, em São
Paulo, levado a cabo por ele e uma equipe multidisciplinar da Unicamp, junto ao extinto Departamento de
Medicina Legal da FCM. Tais enredos e casos serão delineados com vagar nos capítulo IV e V desta tese.
91
passaria a orientar meu modo de olhar para corpos e laudos de corpo de delito dali em
diante.
Neves, durante toda a necropsia, permaneceu ao meu lado enquanto o auxiliar de
necropsia realizava integralmente o manuseio do cadáver, com destreza: os cortes, a
serra elétrica, a retirada dos órgãos, sua pesagem e seu picotamento quando solicitado
por Neves. Com delicadeza, Neves antecipou a mim os momentos nos quais o cheiro de
sangue ficaria mais forte, alertou-me sobre o barulho ensurdecedor da serra elétrica e
me afastou da mesa para que fragmentos do osso craniano do periciado não me
atingissem. Aos poucos, eu estava entretida, tanto quanto ele, com os aspectos, as
consistências, os formatos e as colorações dos órgãos que, um a um, eram retalhados e
perfurados vigorosamente pelos dedos de Vitor. Os olhos, tão incomodados em olhar,
foram se ambientando. Paulatinamente, deixei de respirar pela boca e ousei inspirar
pelas narinas. Não coloquei a máscara de proteção um só segundo. Não vomitei, nem
deixei a sala de necropsia. Também não toquei, nem me debrucei, com entusiasmo, por
sobre a mesa de aço reluzente. Fiquei a meio caminho: uma participação mais
observante, por assim dizer.
Neves, também, mais observou do que participou. Em seu jaleco branco não
havia nenhum fragmento de osso ou gotícula de sangue. Suas luvas permaneciam
brancas e intactas. Por contraste, Vitor estava com os óculos sujos pelos fragmentos de
osso craniano e o avental azul e as luvas amarelas estavam tingidos de sangue. Mas, ali,
estava performada uma diferença: ao final da perícia, o formulário levado a tiracolo por
Neves estava preenchido. Ele, como autoridade médica e burocrática, conferiria
validade ao documento. A partir do papel corretamente completado por Neves com
caneta azul, Vitor fundamentaria a Declaração de Óbito por ele digitada, e que seria
posteriormente assinada por Neves e entregue para a família junto ao corpo do idoso,
agora, suturado, lavado, vestido e exemplarmente colocado no caixão de madeira pela
funerária. Mais uma morte por causas naturais - “falência múltipla dos órgãos” –
estava documentada e certificada por uma autoridade médica, com registro no Conselho
Regional de Medicina (CRM) e funcionário público de um serviço prestado por uma
entidade municipal – o SVO.
Naquela manhã de sexta-feira, em janeiro de 2015, contudo, os “procedimentos
de rotina”, mais tarde convertidos em documento oficial do Serviço de Verificação de
Óbito, contavam com uma espectadora inusitada: uma antropóloga curiosa por conhecer
92
a “vida secreta dos cadáveres”75 (ROACH, 2015). Neves, um legista experiente e astuto,
realizara comigo aquilo que ele mesmo, nos tempos pueris de formação médica, havia
vivido.
75
Deparei-me com o livro de Mary Roach (2015) enquanto perambulava pelas estantes da Livraria
Cultura em Campinas. O título era um convite: “Curiosidade Mórbida: a Ciência e a Vida Secreta dos
Cadáveres”. Sem pensar muito, trouxe-o para casa. Desde então, ele se tornou meu livro de cabeceira,
uma mistura inusitada entre literatura e pesquisa científica. A autora, psicóloga de formação pela
Universidade de Weslayan (Houston), nos Estados Unidos, é especializada em ciência popular e humor. É
disso que ela trata em seu livro: os usos (muitas vezes impensáveis) pelos quais os cadáveres foram (são)
submetidos nos mais diversos contextos históricos. Sua leitura foi inspiradora no que tange as muitas
formas de narrar necropsias, cadáveres e técnicas de retalhamento de cabeças, tórax, membros e vaginas,
tal como adiante evidenciarei no terceiro capítulo desta tese.
76
A dissecação dos cadáveres, realizada por diversos médicos já no século XVII, demoraria cerca de 40
anos para irromper do interior da própria clínica. Constituía-se mediante uma litigiosa estruturação, que
resultaria em novas linhas geográficas sobre o corpo, outros modos de ler a carne. Ou seja, o acesso do
olhar médico ao interior do corpo não se tratava de uma continuação num movimento que cada vez mais
leva a medicina ao interior desses corpos doentes. Ao contrário, trata-se de uma reformulação ao nível do
próprio saber (FOUCAULT, 1980).
93
vídeos e histórias tornavam corpos e perícias palatáveis. Nas mesas reluzentes, por
comparação, tudo ganhava efeitos bastante realísticos. A crueza rotineira e
desconcertante recompunha corpos, integralidades, vivacidades. Obviamente, também,
reorganizava imagens, vídeos e slides. Um pescoço estrangulado, antes desconectado,
vasculhado e visto mediante a “espessura tranquilizadora da palavra reificada”
(CARRARA, 1998), agora, se conectava a essas finas e indeléveis sensorialidades.
Gostaria de enfatizar, no entanto, que tais sensorialidades, emoções ou sentimentos
mobilizados na e pela antropóloga não resultam de uma interioridade, natural, profunda
que emerge ao exterior por meio de lágrimas, náuseas ou aflição. Ao contrário, destaco
o caráter moral e histórico que tais terminologias incitam e carregam. Além disso,
enfatizo a pluralidade de elementos – nojo, tristeza, angústia ou repulsa – agenciados
nessas interações e a importância de pensá-los como tramas complexas, sempre
contingentes e relacionais77.
O necrotério era, sem dúvida, um bom teste à antropóloga que, curiosa pelos
mortos, olhava com detalhamento para laudos de corpo de delito realizados em pessoas
vivas e estupradas. A integralidade disposta nas mesas do necrotério zombava das
fragmentações impostas a minha pesquisa. Havia ali, portanto, inúmeros e vigorosos
deslizamentos a serem tensionados.
Ao ser iniciada na arte de assistir a necropsias, sem dúvida, poderia ter
escolhido redimensionar meus interesses de pesquisa. Como aluna de medicina legal,
teria plenas condições de abandonar os ‘vivos’ – e as proteções e autorizações a eles
necessárias – para me dedicar aos cadáveres. Dispostos na mesa reluzente e disponíveis
a serem vistos por estudantes, eles se ofereciam a esta pesquisa como um caminho
viável e, aparentemente, menos burocrático. Contudo, optei por não me ‘acostumar’
com as perícias de corpos “frescos”. Mesmo tendo consciência de que, com a prática e
o treinamento adequado eu, nos termos de Medeiros (2014), passaria a olhar um cadáver
– em perícia – com a naturalidade que Neves e Vitor o faziam por ofício, busquei dar
atenção aos efeitos pedagógicos, sensoriais e de inspeção ali colocados em evidência. A
contrapelo da vivacidade retirada do necrotério, destinei um olhar mais atento a pedaços
de carne falantes que examinados em corpos vivos, lembravam vitrines nas quais
fragmentos imóveis e autônomos se colocavam a falar.
77
Para uma análise mais detida do tema, ver Rezende e Coelho (2010), Coelho (2010) e Miller (1997).
94
A primazia do ver era tensionada por outras técnicas que, nos termos de Miller
(1997), me permitiam esmiuçar aquilo por ele designado como “anatomia do asco”. Nas
mesas do necrotério, os odores são especialmente contaminantes e muito mais
perigosos. Ao emanarem de “fontes difusas e deslocalizáveis”, os odores extraídos dos
cadáveres “frescos”, bem como suas consistências tateáveis, incitavam-me a pensar78.
Nos termos do autor,
78
Minha inspiração para essa análise advém do trabalho de Lowenkron (2015). Sua análise, ao mobilizar
o trabalho de Miller (1997), ressalta como os sentidos se configuram como espaço moral e social, com
vistas a construir e desconstruir indícios de materialidade de crimes e criminosos. Retomarei o argumento
da autora no terceiro capítulo desta tese.
79
Segundo Miller (1997), “memória produz asco”. Porém, relembrar uma visão ou um som, não é o
mesmo que tentar acessar novamente um cheiro, um gosto ou um toque. O autor faz suas apostas ao
afirmar que não se pode, diferente da visão ou da audição, “revigorar o cheiro de forma imaginativa”. É
necessário que ele seja “desencadeado [por] uma experiência real do mesmo cheiro ou sabor” (MILLER,
1997, p.76). Durante um certo tempo, é verdade que o odor de certos produtos de limpeza me remetia ao
cheiro de osso tostado e sangue. Com o passar do tempo, os odores desapareceram, restaram apenas
estetizados em palavras e descrições etnográficas, cirurgicamente, construídas. Estas, por suas vezes,
parecem não comunicar perfumes e venenos, mas resultam muitas vezes em caretas, interjeições de nojo
ou expressões de desconsolo.
80
Como sugere Foucault (1980), há uma falsa reconstituição histórica na qual a dissecação desses corpos
mortos é vista como prática transgressora, escondida com prudência sob as penumbras das interdições
morais, religiosas e de obtusos preconceitos que impediam a abertura de cadáveres. Contudo, como
salienta o autor, o que estava em jogo eram duas figuras do saber em disputa. Por um lado, o olhar clínico
e, por outro lado, a anatomia patológica. Dessas disputas surgiria uma reordenação nada pacífica nas
práticas clínicas.
95
81
Bichat foi um fisiologista e anatomista francês, cuja fama se construiu por intermédio do título de pai
da moderna histologia e da patologia dos tecidos. No que tange a essa pesquisa, importa seguir os rastros
deixados por Foucault (1980) sobre sua importância vital nas transformações do olhar clínico. Como
sugere o autor, “Bichat fez mais do que libertar a medicina do medo da morte, ele integrou a morte em
um conjunto técnico e conceitual em que ela adquiriu suas características específicas e seu valor
fundamental de experiência. De tal modo que o grande corte na historia da medicina ocidental data
precisamente do momento em que a experiência clínica converteu-se num olhar anatomoclinico”
(FOUCAULT, 1980, p.167-168).
96
São 15h50. O projetor e a tela branca, localizada atrás da mesa e das cadeiras giratórias, esperam os slides da
aula/apresentação da semana. O professor segue seus procedimentos de rotina: cada novo módulo, a primeira
aula é por ele ministrada com a apresentação dos conceitos básicos de medicina legal à matéria. Desde janeiro,
espero ansiosa pelo módulo em questão: “sexologia forense”. O uso sistemático de slides, disponível aos alunos
em uma pasta online, faz a mediação necessária entre o teórico e o prático. A aula de hoje, voltada à sexologia
forense, destaca, todavia, procedimentos cujo domínio de técnicas é parcialmente conhecido para um estudante
de medicina em formação. As imagens projetadas na tela branca impactam: hematomas na região dos olhos,
cicatrizes nos seios, braços e abdomens, pontos de sangue que escorrem pela face da vítima ou permanecem
retidos nas áreas do glóbulo ocular. Da materialidade dos corpos, a seleção de fotografias passa às feridas
psíquicas impostas pelo ato de violação sexual. Facas, revolveres e formas de coação – o silêncio, o medo ou
relações de autoridade – retratam aquilo que, na lei, é denominado como “grave ameaça”. A sequência de
projeções, com a apresentação de normativas, legislações e diretrizes da Organização Mundial de Saúde (OMS),
não parecia animar à plateia. Os números alarmantes registrados em pesquisas e sequencialmente
apresentados em slide visavam dar dimensões mundiais ao problema: 12 milhões de pessoas sofrem algum tipo
de violência sexual todo o ano. A preocupação do professor em localizar a violência sexual a partir de
indicadores e a atuação médica num contínuo às obrigações ratificadas pelo estado brasileiro em convenções e
conferências sobre o tema, ao menos para mim, chamava atenção. O deslizamento para termos tais como
“conjunção carnal” e “ato libidinoso”, todavia, expostos nos primeiros slides da seção “Perícia”, produzia um
corte abrupto. A citação da obra de Flamínio Fávero construía o mote para um conjunto de técnicas e
ensinamentos. O hímen era o elemento diacrítico cujo formato precisava ser reconhecido e submetido à análise
forense. Um vídeo, iniciado em ato contínuo, demonstrava minuciosamente como o médico-legista deveria
proceder. A mulher estendida na maca e em posição ginecológica era periciada pelo legista e por nós que, dali
por diante, também assistíamos à técnica. A câmera focalizada entre as pernas da paciente era uma extensão
dos nossos olhos aos recônditos do corpo periciado. A filmagem escura e amadora tinha por intuito ensinar.
Afastadas, com as pontas dos dedos, as vilosidades dos grandes e pequenos lábios, a abertura vaginal deixava o
hímen em exposição. Era preciso, para tanto, decifrá-lo. A técnica era criteriosamente explicada. O vídeo era
97
picotado por meio de pausas intencionais. Os alunos precisavam treinar o olhar e reconhecer formatos e
roturas. Com a filmagem encerrada, uma coleção de imagens arrematava aquilo que se pretendia ensinar.
Himens carnosos, anulares, membranosos, íntegros ou roturados eram retratados entre pelos e peles de
tonalidades variadas. Com destaque, uma fotografia sublinhava elementos importantes para constatar a rotura.
Dividida em quadrantes, a membrana himenal rompida deixava em evidência uma gotícula de sangue junto ao
quadrante inferior direito. A lesão ainda sanguinolenta foi contraposta à imagem de um hímen roturado e já
cicatrizado. As bordas da membrana esbranquiçadas e sem rebarbas ficavam em proeminência devido à
presença de um palito de madeira que sustentava a borda inferior da membrana em exposição. (Caderno de
Campo).
São 11h30. Uma, entre tantas Alices, espera o ônibus. O ponto de ônibus vazio
desperta sua ansiedade. Acompanhada por sua mãe Carmem, mais uma Alice observa os
transeuntes que, com rapidez, caminhavam pelo centro da cidade de Campinas. É
reconfortante o fato de ser curto o trajeto entre a DDM e o IML. Os medicamentos,
recebidos depois do atendimento junto ao CAISM, ainda provocam um pouco de enjoo.
O veículo, além de balançar, para em quase todos os pontos. Carmem confere a cópia do
boletim de ocorrência e a “Requisição IML-Pessoa”, entregue pela escrivã, em nome de
Alice. Incomodada, uma Alice pega os papéis das mãos de Carmem. E, sem conseguir
evitar, passa os olhos numa das passagens do “Histórico” do B.O.:
82
A construção do caso de uma Alice não é fruto de observações realizadas diretamente nas salas de
atendimento do IML de Campinas ou de qualquer corporação técnico-científica espalhada pelo Brasil. Tal
relato é uma ficção etnográfica e tem por base a composição de uma variedade de materiais etnográficos.
Entre eles: laudos de corpo de delito recolhidos durante minha pesquisa de mestrado realizada na DDM
de Campinas, entrevistas com médicos-legistas, conversas informais com peritos e legistas em aulas de
medicina legal, bem como fruto das muitas interlocuções entre a minha pesquisa e aquela realizada pelo
antropólogo Julian Simões. Seu material de pesquisa, recolhido junto ao Ambulatório de Violência Sexual
de Campinas, retrata alguns dos dilemas físicos e emocionais vividos por vítimas de estupro atendidas
nesse serviço (SIMÕES, 2016). Também durante minha pesquisa de mestrado escrivãs e delegadas
discutiam as falhas das redes de atendimento a tais crimes e sua parca integração. É desse contexto que
retiro as ilações entre documentos e cotidiano de atendimento. Também é em função da reunião desses
diferentes materiais etnográficos que as formas de grafar os nomes das periciadas, como mencionado na
apresentação desta tese, ganha sentido. O termo ficção, finalmente, faz alusão aos debates empreendidos
por Marilyn Strathern (2014) e será mais bem delineado, no final deste capítulo.
98
contato com o hospital e solicitasse, em nome de Alice, o prontuário hospitalar por eles
redigido.
Os ponteiros do relógio se arrastavam enquanto uma Alice esperava por
atendimento. Depois do que pareceu uma longa espera, por trás do balcão para
informações, um homem de meia-idade trajando branco, ostentando um jaleco com o
nome bordado, anunciou: “Alice, por favor?”. Uma sala pequena, com as paredes meio
amareladas e alguns poucos móveis, era o cenário. Carmem, num ímpeto, acompanhou
Alice que, de imediato, acomodou-se na cadeira de frente para o médico. No
computador, um laudo modelo esperava, no sistema, pelo preenchimento. Os dizeres
protocolares “Secretária de Segurança Pública de São Paulo/Superintendência da
Polícia Técnica-Científica/Núcleo de Perícias Médico-Legais de Campinas” e o brasão
do estado de São Paulo certificavam a oficialidade do encontro. Com a requisição e o
boletim de ocorrências em mãos, o legista informa à Alice que logo dará início ao
atendimento e, de modo mecânico, passa a completar as lacunas de cada formulário:
“B.O.: [número]”; “Laudo: [número]”; “REMETER PARA: [delegacia]”. Diante da
requisição, dois diferentes laudos devem ser redigidos. Os títulos centralizados, contidos
nos documentos, orientam os dois exames a serem realizados: “Laudo de Exame de
Corpo de Delito” – “Exame de Conjunção Carnal”; “Laudo de Exame de Corpo de
Delito” – “Exame de Ato Libidinoso”.
Com a fonte em negrito, o formulário de ambos os exames, de “conjunção
carnal” e “ato libidinoso”, foram completados de modo idêntico:
83
No laudo destinado à averiguação de “ato libidinoso” a descrição foi ainda mais sucinta: “Informa que
teria sido vítima de tentativa de violência sexual”.
100
84
“Coito vestibular” é uma definição médico-legal. Tal tipo de penetração, tecnicamente, não se
configura como conjunção carnal – penetração vaginal através do pênis. O vestíbulo vaginal – ou
“assoalho do vestíbulo vaginal” – é a nomenclatura usada para descrever a região externa da vulva, na
qual estão localizados o orifício urinário e a abertura do canal vaginal. O hímen localiza-se no limite entre
a vulva e o canal vaginal. Diante da presença de “hímen infantil integro” e “exulceração (ruptura)
longitudinal em toda extensão do assoalho do vestíbulo vaginal”, ficou caracterizado o “coito
vestibular” e, por consequência, ato libidinoso diverso de conjunção carnal. As distinções entre estupro e
ato libidinoso serão exploradas, detalhadamente, no próximo capítulo.
102
Sem mais a realizar, o legista imprimiu o laudo e assinou acima do seu nome.
Em duas vias, o papel foi acondicionado numa pilha junto a outros laudos, à espera de
uma segunda assinatura, na seção de protocolos. Entre a requisição do laudo e sua
chegada à delegacia, a escrivã responsável pelo caso oficiou inúmeras vezes o IML:
***
85
Flamínio Fávero nasceu em 1895, em São Paulo. Médico de renome, deu início aos seus estudos em
1919, na recém-criada Faculdade de Medicina e Cirurgia de São Paulo, que a posteriori passou a integrar
aquilo que viria a ser a Universidade de São Paulo (USP). Discípulo e assistente de Oscar Freire de
Carvalho, Fávero assumiu a cadeira de medicina legal, em 1923, em função da morte precoce de Freire.
Seu livro, Medicina Legal, dividido em três volumes, foi publicado pela primeira vez em 1938. De lá pra
cá, foi reimpresso inúmeras vezes e ganhou sua última edição em 1991. Respeitado por sua escrita
bastante clara e objetiva, sua obra segue, até hoje, citada em aulas de medicina legal. A epígrafe acima
transcrita encontra-se publicada na quinta edição do segundo volume de seu tratado de medicina legal.
Dentre os capítulos reunidos nesse volume, os ensinamentos sobre sexologia forense reúnem acepções
sobre a legislação penal para esses crimes, definições, conceitos e elementos do crime no que tange à
medicina legal e, finalmente, explicações sobre às técnicas periciais a serem realizadas nesses casos.
104
Hollywood, optou por frequentar eventos públicos organizados pela indústria de cinema
– festivais, exposições e eventos produzidos junto à Universidade da Califórnia, em Los
Angeles (UCLA). Segundo a autora, tais materiais ofereciam a ela, como pesquisadora
um ponto essencial entre o mundo interior de Hollywood (inacessível a ela) e o mundo
exterior (público) voltado às produções, a seus diretores, elencos etc. Por similaridade,
ser ensinada a perscrutar himens e ânus por meio de slides, vídeos, aulas e bibliografias
médico-legais canônicas de sexologia forense foi fundamental à compreensão das
lacunas a serem preenchidas e seu de efetivo cumprimento por médicos-legistas. De
modo bastante vigoroso, tais elementos permitem, a contrapelo, confrontar os
documentos e técnicas periciais às práticas de ensino gestadas nessas instâncias.
Nesse sentido, a ficção de uma entre muitas Alices, construída por mim a partir
de laudos de corpo de delito investigados e recolhidos durante minhas pesquisas junto a
DDM durante os anos de 2009, 2010 e 2011, é paradigmática. Sua narrativa tem por
inspiração os registros oficiais de um caso ocorrido e denunciado no ano de 2004, cuja
investigação e encerramento foram realizados pela DDM, em maio de 2005. A cena
construída, exatamente por explorar papéis e sua feitura, intenta repor as conexões que a
escrita técnica de um laudo de corpo de delito invisibilizou. Para fazê-lo, utilizei dois
importantes recursos metodológicos. O primeiro ata o laudo de uma Alice à aula de
medicina legal descrita nessa seção. Daí a importância de realizar uma “etnografia de
interface”, tal qual descrito por Ortner (2010). O segundo recurso tem por material
empírico as entrevistas que realizei junto a médicos-legistas do IML de Campinas. As
entrevistas formuladas mediante roteiros abertos contavam com a seguinte pergunta:
“descreva como um atendimento e um laudo de estupro ou ato libidinoso são
produzidos”.
As respostas formuladas por meus entrevistados organizam temporalmente a
feitura de um laudo, bem como salientam as amarrações entre esse documento, outros
papéis – requisições, ofícios e ordens de serviço – e a atuação dos variados setores
internos ao próprio IML. Ou seja, buscando implodir a mística em torno da observação
participante, tenho nos termos de Forsey (2010), intuitivamente defendido que se faz
necessário advogar por uma democracia dos sentidos. Ou seja, não se trata de separar ou
privilegiar a escuta em detrimento ao ver ou de relegar às bordas da pesquisa a
importância do tato ou do olfato. A proposta do autor é, ao contrário, entender os
sentidos, buscando conceitualizar e apreender o impacto que cada um deles tem “sobre
os artifícios retóricos empregados para explicar e justificar [um]a investigação social”
105
86
Para Forsey (2010), ambas as técnicas suportam as formas pelas quais ele e seu colega de pesquisa
conduziram as entrevistas junto a alunos, pais e professores de uma gama variada de escolas americanas.
A “escuta engajada” permitiu aos autores não apenas localizar o lugar da escola na vida de pais, de
estudantes e de professores, como permitiu aos pesquisadores conhecer o meio social e cultural de cada
um dos entrevistados. Isto para, por fim, poder fazer ligações/conexões entre a escolha educacional atual
e as anteriores de cada um de seus entrevistados. Como resume Forsey (2010, p. 568), “a observação
participante não nos teria permitido chegar a este tipo de informações etnográficas”. No caso de minha
pesquisa, impedida de realizar uma observação in loco, escutar sobre procedimentos e técnicas de
atendimento traçava as conexões fundamentais às aulas e manuais de medicina legal.
87
Como demonstra Strathern (2014), a figura de Malinowski como o autor que revolucionou a disciplina
da antropologia mediante a invenção de ideias como “holismo, sincronismo, trabalho de campo intensivo
e todo o resto” é um bom exemplo de tal inevitabilidade. Se, como sugere a autora, os trabalhos de
Malinowski podem ser colocados num contínuo de outras pesquisas que o precederam ou são
contemporâneas a ele, então, qual seria “a invenção” tão propalada em relação aos seus trabalhos?
Strathern (2014, p.180) argumenta que a “invenção residiu em como ele escreveu e especificamente na
organização do texto”. Ou seja, Malinowski, a partir do trabalho de campo, segundo a antropóloga,
“possibilitou um novo tipo de ficção persuasiva” na qual “as culturas e sociedades deviam ser descritas”.
(STRATHERN, 2014, p.180-181). Tal definição passou a inspirar e se transformou num cânone para os
estudos etnográficos que o sucederam.
106
88
As discussões empreendidas nesse capítulo retomam algumas das análises iniciadas em minha
dissertação de mestrado (NADAI, 2012). Naquela oportunidade analisei alguns laudos de corpo de delito
dando destaque à recorrente ausência desses documentos no inquérito policial. Por contraste, nos
documentos policiais nos quais laudos eram anexados ganhavam realce os retalhamentos impostos aos
corpos ali periciados. A ideia de pedaços de carne, portanto, é caudatária desse primeiro olhar para o
material empírico que retomo aqui e hoje figura como elemento central aos argumentos construídos neste
terceiro capítulo.
89
Durante minha pesquisa de mestrado, pude acompanhar, de maneira, mais detida, o desenrolar das
investigações realizadas na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas e que tomam parte da
constituição de um inquérito policial (IP). Entre tais procedimentos, destacaria: os depoimentos de vítima,
autor (quando conhecido) e de possíveis testemunhas, bem como diligências e papéis protocolares
endereçados a setores internos da DDM ou externos a ela (IML, Setor de Criminalística ou Fórum). A
esses inquéritos são agregados ainda os laudos periciais da vítima, os antecedentes criminais do autor, os
laudos de peças, local e armas (quando existem), remetidos pelo Instituto de Criminalística, e os pedidos
de prisão preventiva executados durante a investigação policial. Em seguida, mediante Relatório Final da
delegada, essa peça policial é remetida ao Fórum (NADAI, 2012).
107
das Perícias em Geral”. Em tal texto legal, o exame de corpo de delito, direto ou
indireto, é indispensável quando a infração deixa vestígios, mesmos nos casos em que o
acusado tenha confessado o crime. O procedimento, por conseguinte, obrigatório, deve
ser realizado por um perito oficial e portador de diploma de curso superior, mediante a
requisição de “autoridade policial” ou representante do Judiciário. De modo
pragmático, como argumentou em entrevista um legista,
90
Nesses casos, o exame procedido sem a presença da vítima é fundamentado nas observações feitas por
um outro médico que nem é perito, nem foi designado oficialmente a produzir provas e vestígios. Tal
contexto determina formas distintas de preenchimento de prontuários e laudos. Voltarei a isso no decorrer
das reflexões empreendidas nas seções seguintes.
109
científicas à Polícia Civil: um legista não escolhe realizar um exame de corpo de delito
ou tem autonomia para fazê-lo sem “uma solicitação formal”. Esse condicionante
imposto aos exames realizados em corpos vivos, mas também em cadáveres, engendra,
todavia, uma dupla valência. Daí minha escolha por deslindar aquilo que precede um
laudo. A requisição é, por seu caráter necessário, simultaneamente, uma forma de
controle e uma técnica de direcionamento. Como sugeriu um dos legistas, integrante da
equipe lotada91 no necrotério de Campinas:
91
A separação entre as perícias empreendidas em vivos e aquelas executadas em cadáveres, no caso de
Campinas, por um lado responde ao volume de laudos a serem produzidos, bem como, as instalações
necessárias para o manuseio e acondicionamento dos cadáveres. Como apresentei no capítulo anterior, o
necrotério, emprestado pelo município, dispõem de entradas independentes, salas com luz natural,
acomodação para legistas em noites de plantão, assim como, câmeras frigoríficas para conservação dos
corpos. Por outro lado, se a pragmática organiza as esquipes, também, aptidões e interesses pessoais
exercem seu papel e consolidam a alocação individual de cada legista ou no núcleo de perícias ou no
necrotério. Essas injunções, contudo, não impedem trânsitos entre esses dois lugares e entre as cidades
que abrangem a região sob responsabilidade de Campinas.
92
Entre os anos de 2004 e 2005, estupro estava definido pelo artigo 213 e atentado violento ao pudor
(AVP) pelo artigo 214, ambos disposto no Código Penal de 1940. Pelas definições legais, "estupro é
constranger mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”, enquanto, AVP seria
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique
ato libidinoso diverso da conjunção carnal” (CÓDIGO PENAL de 1940, 1998). Tais tipificações só
vieram a ser alteradas em agosto de 2009, momento no qual essa distinção jurídica foi revogada.
110
93
A dificuldade em precisar tais relações de causalidade ou origem fica ainda mais evidente diante do
comentário de Nucci (2014) à parte do Código de Processo Penal destinada à especificação “Da Prova”.
Segundo o autor, em exames de corpo de delito destinados a crimes sexuais, “apesar da introdução de
novos tipos penais e da modificação de redação de outros [devido à lei 12.015/2009], nenhuma alteração
houve no tocante ao exame de corpo de delito (...)”. Uma genealogia sobre as conexões entre saberes
jurídicos e saberes médicos para os casos de crime sexual seria fundamental, contudo, fugiria
sobremaneira às intenções desta tese. Tal empreendimento foi de algum modo delineado pelos
investimentos de pesquisas realizados por Antunes (1995). Para conhecer mais acerca das relações entre
direito e medicina e da constituição da medicina legal ver: Carrara (1998), Corrêa (1998) e Schwarcz
(1993).
112
envolvendo uma Alice. Fazê-lo, reforça aquilo que nas próximas seções descrevo como
materialidade/vestígios.
Em contraste à fórmula dissertativa que sustenta e preenche os “termos de
declaração”, “auto de qualificação” ou relatórios policiais produzidos pela DDM, o
formulário enquanto recurso estético setoriza, demandando um estilo narrativo objetivo
e direcionado. Ou seja, se, na DDM, chavões tais como “sabendo ler e escrever,
informou que na data dos fatos (...)”; “comparece nesta unidade (...)”; “instaurou-se o
presente feito (..)” encorajam escrivãs e delegadas a contar histórias (NADAI, 2016), a
forma-formulário impele legistas e peritos a soluções textuais breves e comedidas.
Como sugere Strathern (2006), ao se debruçar sobre declarações de missão
universitária divulgadas por instituições acadêmicas em resposta a órgãos
governamentais e ao público em geral, o formato de “bullets” é uma técnica
comunicacional específica. Como uma coleção de pontos fechados em si mesmo, cada
elemento é graficamente delimitado por intermédio de marcadores autônomos: pontos,
asteriscos, pequenos retângulos ou losangos. Sem uma trama narrativa ou
argumentativa, os pontos não permitem ao leitor recompor as políticas de compilação
ali constituídas, bem como é irrelevante a ordem pelas quais os itens são elencados,
podendo inclusive ser misturados sem que, com isso, ocorra qualquer perda de sentido
da informação veiculada por essas declarações.
A autora argumenta, todavia, que o formato não é um “dispare inofensivo”. Ao
contrário, as declarações de missão quando comunicadas, por meio de listagens, minam,
exatamente, meios textuais pelos quais, academicamente, investimos esforços para
executar os objetivos pregados nesses documentos: produção de conhecimento, ilações
argumentativas ou técnicas de construção de problemas. Sustento que os mesmos
questionamentos críticos poderiam ser empreendidos na análise formal dos laudos de
corpo de delito. Tanto na listagem seguida, enumerada e sempre completada quando a
vítima é “Colocada em posição ginecológica”, quanto em função dos domínios
estanques que apartam a queixa empreendida pela vítima, do exame realizado e das
conclusões que correlacionam tais seções do documento.
Inspirada pelas reflexões de Strathern (2006), gostaria de enfatizar o caráter
pouco narrativo imposto aos laudos e sua refração a leituras lineares, causais e/ou
relacionais; com começo, meio e fim. Graficamente, eles estimulam que diferentes
pontos, autônomos e contidos em si mesmos, sejam enumerados, mas sem explicitar,
contudo, as correlações entre os pontos da listagem ali construída. Tal padrão
115
documental está incorporado por aquele que realiza seu trabalho, feito em papel, como
no caso de uma Alice, ou em versão informatizada, como ocorre atualmente, mediante o
uso do sistema “Gestor de Documentação e Laudo (GDL)”94. Os legistas, por sua vez,
ao preencherem a lista, não refutam seu formato imposto, ao contrário, cotidianamente
reafirmam seu preenchimento protocolar e necessário.
Nesse sentido, a padronização, por meio da forma-formulário, já estava em uso,
mesmo antes de uma plataforma intranet da polícia se tornar realidade por intermédio de
computadores e versões digitalizadas. Como destacaram os legistas, cada estado da
federação tem um modelo de laudo que deve ser seguido. Dos modelos pré-formatados
em papel às lacunas fornecidas pelo “GDL”, o formato impõe um caminho a ser
percorrido. Como todos os legistas didaticamente me explicavam: “todo laudo tem o
Histórico, o Exame, a Discussão e a Conclusão e nessa Conclusão, os quesitos oficiais
que você responde”. Tratam-se, aqui, de camadas que vão, sistematicamente, sendo
sobrepostas e atadas de modo a ser improvável que o legista disserte livremente sobre o
“visto e observado”.
O próprio manual técnico-operacional para médicos legistas do estado de São
Paulo, publicado em 2008 pelo Conselho Regional de Medicina do estado de São Paulo,
o CREMESP, reforça essa premissa. O compêndio, construído em parceria com os
Institutos Médico-Legais do estado e com a Associação dos Médicos-Legistas de São
Paulo (AMLESP), é dividido em mais de vinte e cinco capítulos e recobre uma vasta
gama de perícias realizadas pelos IMLs no estado de São Paulo: necropsias variadas,
exame de lesão corporal, odontologia legal, psiquiatria forense, sexologia forense,
embriaguez, exames complementares, indiretos ou pareceres médico-legais etc.
94
Como meus entrevistados me explicaram, era comum o legista realizar o exame, fazendo suas
anotações junto à requisição encaminhada pela Polícia Civil. A digitadora, por sua vez, ordenava as
informações nos modelos pré-formatados do laudo. Nesse sentido, a informatização foi processual e um
árduo desafio. Afinal ainda, em meados de 2004, os legistas, sem habilidades com as exigências hoje
corriqueiras de trabalho, contavam com a ajuda de uma digitadora, responsável por informatizar os laudos
ali realizados. Os expedientes de trabalho, sem banco de dados, eram dependentes de papel, caneta e
livros onomásticos. A busca por um laudo poderia ser uma verdadeira saga e exigia a data de feitura e o
número do laudo para que o mesmo fosse encontrado em uma dezena de livros onomásticos de busca.
Ainda que mais prático, o atual sistema, conhecido como “GDL”, segue, ainda hoje, não integrado a
outras polícias do estado de São Paulo. A crítica de todos os legistas a plataforma é a mesma. Em função
da não integração, é necessário que, durante o exame, digite-se inúmeras vezes as mesmas informações,
que se acessíveis a todos, poderiam ser facilmente retiradas de documento a outro, como a requisição
policial ou o boletim de ocorrência, com eficácia e rapidez. Por contraponto, a possibilidade de emitir o
laudo com assinatura digital é vista pelos legistas como um avanço, ainda que caiba ao legista a
impressão do mesmo e seu encaminhamento ao setor de protocolos cuja função é redistribuir, mediante
malote, o mesmo às delegacias especificadas na lacuna “remeter para” dispostas no laudo.
116
Dos trinta e quatro autores convidados a participar do projeto, apenas três não
eram professores da Universidade de São Paulo (USP) ou funcionários do IML da
capital. Especialistas em algumas das áreas elencadas pelo manual, os autores buscaram,
de modo simples e objetivo, orientar a perícia a ser realizada e determinar fórmulas
textuais com o intuito de padronizar o preenchimento de laudos e pareceres médico-
legais. Chama atenção, todavia, que elencados os autores nas primeiras páginas do
manual, a autoria de cada capítulo segue, porém, completamente invisibilizada.
Quanto ao conteúdo do manual, agrupadas no capítulo destinado à “Sexologia
Forense”, as perícias em casos de “ato libidinoso” e “conjunção carnal”,
fundamentais a esta tese, dividem espaço com temáticas como “aborto”, “contágio
venéreo” e “confronto genético”. Para cada um dos temas apresentado um padrão
narrativo é colocado em operação. É feita uma “introdução” sobre os procedimentos de
exame, seguida por um “roteiro teórico” e pelo “enquadramento legal” (tipificação
penal) da perícia a ser realizada. Apresentados os respectivos “modelos” formais de
laudo, as seções seguintes dissertam sobre como se deve proceder e reverter em texto o
conteúdo da “perícia”, dos “exames laboratoriais” a serem requeridos e da “conclusão
e dos quesitos” a serem respondidos. Encerram a explicação, dados sobre o “destino”
do laudo e os “comentários” laterais importantes à matéria. Ao descrever genericamente
a estrutura textual empreendida na publicação, gostaria de lançar luz ao efeito
ambivalente gestado pelo manual. Se ele é concebido como fundamental à
“padronização” dos exames e perícias realizadas, é curioso como os laudos produzidos,
mesmo antes de tais diretrizes, já estavam em completo acordo ao recomendado pelo
manual95.
Ao aludir à referida publicação, estou sugerindo que, a forma graficamente ali
designada, por intermédio de modelos e fórmulas textuais, instrui e antecede a prática
forense. As lacunas diagramadas em laudo, as listagens enumeradas do que deve ser
perscrutado e as textualidades como “sem lesões de interesse médico-legal” ou
“apresenta hímen (...)” já estavam, desde sempre, sendo executadas. Como fica claro
na aula de medicina legal vivenciada por mim, o exame e sua produção formal são
95
Chamo atenção à semelhança desse manual com aquele escrito por Flamínio Fávero e citado
anteriormente, para retirar dessa confrontação, suas diferenças. Entre elas, o caráter menos científico e
mais pragmático e técnico imposto ao manual do CREMESP e seu esmero em não apenas definir como o
exame deve ser executado, como sugere o tratado de medicina legal de Fávero (1954), mas,
fundamentalmente roteirizar e restringir fórmulas textuais e de preenchimentos possíveis aos modelos
formais dos respectivos laudos ali anexados.
117
técnicas ensinadas cujas ressonâncias remontam aos cânones da medicina legal, mas
também aos manuais, ao ofício diário junto ao IML e a diretrizes corporativas.
Em diálogo estreito com a pesquisa desenvolvida por Riles (2001)96, posso dizer
que a forma-formulário resulta num modelo gráfico insistentemente replicado no IML
ao longo do tempo. Sua manutenção, a depender de mudanças jurídicas em torno da
tipificação para crimes sexuais ou de publicações que visam a padronizar a atuação,
reforça um tipo de prática documental intencional e irrefletida simultaneamente. No
caso empírico desenvolvido por Riles (2001), a “forma matriz”, muito utilizada por
organizações não-governamentais (ONGs) e agências internacionais, impõe um tipo
característico de design e preenchimento. Tais tabelas são estruturadas pela disposição
de linhas e colunas, numericamente infinitas, que determinam entidades autônomas.
Essas, em formato retangular, empilhadas umas sobre as outras, delimitam espaços
vazios a serem completados por aquele que interage com o documento: entidades,
ativistas, delegados de conferências públicas etc. Sempre orientado à ação, os pontos
enumerados na coluna da esquerda, os “problemas” a serem debatidos por esses
sujeitos, norteiam o preenchimento (quase) compulsório dos espaços vazios distribuídos
das colunas seguintes da tabela.
O formato restrito e em tópicos é, por conseguinte, direcionado também para
cada caixa de texto que, da esquerda (“dos problemas”) para a direita (ações),
arregimenta as diferentes “soluções institucionais” a serem debatidas e anotadas no
documento. Os participantes dessas conferências, ao se relacionarem com a necessidade
de responder ao modelo imposto pelo formato do documento, não buscam questioná-lo
ou reformulá-lo. Ao contrário, como salienta Riles (2001), delegados, ativistas e
entidades são levados a preencher as lacunas respeitando a divisão formal pré-definida
pela própria estrutura de linhas e colunas da “forma matriz”. Direcionados por tais
experiências gráficas, numa espécie de mimese, eles replicam, para cada espaço vazio
contido na tabela, um mesmo gênero textual. Preencher o vazio, mesmo que seja com
desenhos sem sentido descritivo imediato, é um imperativo executado e formalizado
insistentemente.
96
Preocupada em etnografar a relação entre agências de ajuda internacional, gabinetes governamentais e
ONGs, a autora se dedicou não só a compreender as redes de atuação imbricadas por esses diferentes
atores, como diferentes artefatos materiais forjados em conferências, instituições e eventos internacionais.
Além disso, ao se debruçar sobre um “conjunto [variado] de práticas informativas”, Riles (2001) interpela
temas consagrados das ciências sociais, tais como: ação coletiva, atuação política, formação de redes
institucionais, financiamento etc.
118
Com essa descrição, Fausto-Sterling (1995) ilustra alguns dos modos pelos quais
o corpo de Sarah Bartmann, a Vênus de Hotentote, foi perscrutado e esquadrinhado por
diferentes cientistas durante o século XIX. Como argumenta a autora, tal interesse
resultou em distintas narrativas sobre Bartmann – sua origem e sua constituição
anatômica – e no acondicionamento, até os anos 80, de seu cérebro preservado, de seu
esqueleto e do molde em cera de seus genitais exibidos no Museu do Homem, em Paris.
O caso aparentemente esdrúxulo resultou em calhamaços de relatórios escritos e
foi apresentado a plateias científicas as mais diversas pelo próprio Georges Cuvier,
considerado o pai da biologia moderna. Em seu artigo, Fausto-Sterling (1995),
preocupada em entender como as descrições anatômicas do corpo feminino se
entrelaçam com as teorias raciais gestadas no século XIX por incontáveis pesquisas
científicas, descreve como os Hotentotes são construídos por esses homens da ciência
na Paris do início do século XIX. Alocados no antigo Museu de História Natural de
Paris, Cuvier e Bainville buscavam expandir suas pesquisas para além do vasto acervo
de peças animais por eles recolhidos e organizados. Tratava-se de estabelecer sistemas
coerentes de classificação e de anatomia comparada, não excluindo, desses estudos,
esqueletos humanos, até aquele momento tão insatisfatoriamente analisados. Como
sugere Fausto-Sterling (1995):
Bartmann tenha descrita sua estatura, seu crânio, seus aspectos faciais – olhos, lábios,
nariz, testa – seus membros e articulações, foram sua nádegas descomunais e seus lábios
genitais de conformação avantajada que ganharam celebridade. O molde em cera de
seus lábios vaginais, junto a seu crânio e esqueleto, por décadas, figurou como elemento
museológico a ser exibido e retido em acervo.
Se, ao espectador do Museu do Homem, em Paris, o “caso 33”, estudado por
Fausto-Sterling (1995), resulta numa exposição curiosa, por semelhanças incontáveis,
também, a mim, a ceroplastia, produzida por Augusto Esteves (1891-966) e arquivada
no Museu Técnico-Científico do Instituto Oscar Freire (IOF) da Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo (FMUSP), resultou em estranheza e interesse.
Augusto Esteves, artista praticamente autodidata, iniciou sua carreira junto a
Vital Brazil, no Instituto Butantã. Contratado em 1937 por Flamínio Fávero, Esteves
produziu cerca de 40 peças em ceroplastia para o recém-inaugurado departamento de
medicina legal da FMUSP. Entre as peças, podem-se ver representados esgorjamentos,
lesões por arma branca e de fogo, cicatrizes, acidentes de trabalho e,
surpreendentemente, himens. As modelagens, acondicionadas em caixas de madeira
vedadas por um vidro, aparecem acomodadas em uma almofada ou um pano branco
com pregas que ressaltam a peça nele contida. Entre um rosto de perfil, mãos solitárias
com dedos faltantes, dorsos baleados por projeteis de arma de fogo, fetos parcialmente
modelados, himens avulsos impactam o espectador. Sem os lábios vaginais e
destacados da genitália, as sucessivas imagens das caixas de madeira colocadas lado a
lado e apresentadas por Carreta (2016) simulam colorações e orifícios himenais dos
mais variados97.
Produzidas há mais de quatro mil anos, a modelagem em cera (ceroplastia)
configurou-se como um modo de representar, com precisão e durabilidade órgãos e
partes internas do corpo, suplantando, assim, a deterioração e a falta de cadáveres
utilizados para estudos anatômicos. Iniciada com mais vigor, na França, por volta de
1860, a moulage foi utilizada para melhor caracterizar lesões dermatológicas para
alunos em formação junto ao Hospital Sant Louise. Imaginada, também, como recurso
didático e técnica de pesquisa, a ceroplastia era, para Fávero, uma forma bastante eficaz
“de fortalecimento técnico da atividade pericial e de delimitação dos objetos e métodos
97
Meu acesso ao artigo de Carreta (2016) já no final da escrita da tese, me levou a entrar em contato com
o museu IOF para saber quais eram as normas de visitação. A informação, contudo, não foi animadora. O
museu segue fechado a visitações e para conseguir acesso seria necessário iniciar a comunicação com
docentes do Instituto Oscar Freire, na USP, uma vez que a gestão do local é feito por tais professores.
122
***
98
Carreta (2016) argumenta que a prática de moldagem em cera perdurou até a década de 1950, quando
novas tecnologias de documentação e representação das doenças começaram a surgir. Modelos em
plástico, mais resistentes, duradouros, flexíveis e com cores mais fidedignas levaram à decadência dessa
técnica de representação, bem como, ao processo de descarte das peças produzidas ao longo dos séculos
XIX e XX. Para correlações instigantes entre cadáveres e exposições, ver Kim, 2012.
123
99
Álvaro Borges dos Reis (880-1932) se formou pela Faculdade de Medicina da Bahia e atuou de 1904
até sua aposentadoria, em 1930, junto ao Instituto Nina Rodrigues. Além da medicina, foi poeta, editor e
escritor com várias obras literárias publicadas. Durante sua carreira, Reis viajou por toda a região
realizando autópsias e jamais deixou de atender gratuitamente a pessoas humildes do bairro. Júlio
Afrânio Peixoto (1876-1947) também foi formado pela Faculdade de Medicina da Bahia, sob influência
de Ninas Rodrigues. Contudo, sabendo da fama extraordinária de Rodrigues, logo no começo do século
XX, em 1902, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde assumiu, em 1904, o posto de inspetor de Saúde
Pública e diretor do Hospital Nacional de Alienados. Foi professor na Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro e na Faculdade Nacional de Direito, ambas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ.
Atualmente, seu nome aparece no Instituto Médico Legal da cidade, o IMLAP (Instituto Médico Legal
Afrânio Peixoto), sediado na região da Leopoldina, no Rio de Janeiro (FERREIRA, 2009). Quanto a
Oscar Freire de Carvalho (1882-1923), ele se formou na Faculdade de Medicina da Bahia e foi um dos
mais conhecidos discípulos de Nina Rodrigues, de quem herdou seus interesses por medicina legal. Oscar
Freire vem a São Paulo, em 1913, a convite do professor Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho, para assumir a
disciplina de Medicina Legal, na Faculdade de Medicina Paulista. Anos mais tarde, em 1934, tal
Faculdade é transformada em Universidade de Medicina concomitantemente à criação da Universidade de
São Paulo. É também nesse momento que a disciplina de medicina legal é reunida às cadeiras de Ética
Médica e Medicina Social e do Trabalho sob o signo do Instituto Oscar Freire, em homenagem póstuma
ao mencionado legista (LIPP, 2008).
124
100
Seguem os nomes de cada um dos orifícios acima apresentados: “Tipos de hímen: 1. Hímen
imperfurado; 2. Hímen perfurado; 3. Hímen anular; 4. Hímen anular variante; 5. Hímen semilunar; 6.
Hímen em carena; 7. Hímen cordiforme; 8. Hímen helicoidal; 9. Hímen bilabiado; 10. Hímen trilabiado;
11. Hímen quadrilabiado; 12. Hímen multilabiado; 13. Hímen septado longitudinal; 14. Hímen septado
transversal; 15. Hímen cribriforme; 16. Hímen em carola; 17. Hímen roto; 18. Carúnculas mirtiformes
(FÁVERO, 1954, p. 213-214).
127
suas roturas, são impactantes. Passamos, desse modo, de forma gradual, da morfologia
da membrana para sua ruptura. Como sugere Peixoto (1934), é inútil que o legista
conheça a morfologia e os formatos possíveis para o hímen íntegro se não for capaz de
diferenciar “entalhes naturais” de “roturas incompletas”. Ou, ainda, se não for
ensinado que o “hímen não se destrói nem desaparece. Rompe-se, lacera-se, faz se em
retalhos, transforma-se em tubérculos, cristas mucosas, carúnculas, mas subsiste,
nestes estados” (PEIXOTO, 1934b, p.120).
Por sua vez, num artigo publicado em 1918, na Revista Brazil-Médico do Rio de
Janeiro, Oscar Freire produz um diálogo com as afirmações de Afrânio Peixoto.
Interessado não apenas em determinar, com exatidão de detalhes, as lesões encontradas
na membrana himenal depois de sua rotura, mas em localizar “rupturas cicatrizadas e
entalhes grandes ou pequenos que recortam a borda himenal” (FREIRE, 1918, p.58), o
autor oferece uma nova técnica, a qual estabelece as bases científicas para a realização
do exame102. Sua proposta é a utilização de uma circunferência graduada dividida em
quadrantes, nos quais linhas com os mais variados ângulos permitiriam, ao legista, obter
grande precisão quanto às lesões encontradas no hímen.
102
Com ironia, o médico legista afirma que procedimentos feitos a olho, por meio de divisões em
metades, não são eficientes. Também o uso de técnicas como aquelas formuladas pelo médico francês
Lacassagne, informadas pelos ponteiros do relógio (através de horas e minutos), resultariam, em terras
brasileiras, em má-fé ou escárnio.
131
Como o próprio autor afirma, contudo, tal procedimento, ainda que eficaz,
impõe desafios para a centralização da figura graduada, em função da pequena e
recôndita área a ser inspecionada. Para resolver tal inconveniente, Freire (1918) sugere
Uma Selma tem um hímen “anular, carnoso, de orla alta, óstio de média
amplitude, apresentando rotura completa, cicatrizada, localizada em junção de
quadrantes anterior e posterior direito”. Se a membrana himenal de uma Márcia, por
sua vez, está “reduzida a carúnculas mirtiformes”, o hímen “anular, carnoso, de orla
baixa, óstio de média amplitude” de uma Madalena é descrito, apenas, como
“apresentando rotura”. Por expedientes semelhantes, mais uma entre tantas Lucianas
tem o hímen “integro, carnoso, orla alta, óstio de média amplitude, não apresentando
rotura”. Assim como Lucianas, uma Laura também apresenta a membrana himenal
“não apresentando roturas”. Seu hímen “anular, membranoso, de orla baixa e óstio de
pequena amplitude”, exatamente porque íntegro, figura meticulosamente apresentado.
Como na história de uma Alice, todas essas mulheres e meninas chegaram ao
IML de Campinas, entre os anos de 2004 e 2005, com uma requisição de corpo de
delito. A queixa tipificada pelo artigo 213 – ou ainda pelo artigo 214 – reverteu-se em
exames de conjunção carnal com “Histórico[s]” breves e sintéticos. A frase “informa a
examinada” ou “informa a acompanhante” é completada por diferentes enredos:
“vítima de ato libidinoso (sexo oral e tentativa de anal) sob ameaça de arma de fogo
em [data]”, “vítima de estupro em [data]”, “vítima teria sido tentada ou abusada pelo
próprio pai” ou “vítima de conjunção carnal, mediante ameaça com revólver em
[data]”.
Se é exatamente por uma fixação de longa data, que himens seguem, até hoje,
tão bem esquadrinhados pelos legistas e aparecem quase autônomos da totalidade dos
corpos “colocados em posição ginecológica”, por oposição, os “genitais externos de
conformação” são vasculhados sem muito interesse. Pequenos e grandes lábios
vaginais, vulva e clitóris não figuram descritos ou investigados individualmente com
minúcia. A todos esses pequenos pedaços resta à afirmação de que estão “norm[ais]
para a idade”103. Mesmo no caso de uma Alice, as lesões encontradas no “assoalho do
vestíbulo vaginal” não foram anotadas em nenhum dos tópicos numerados de 1 a 6. Por
comparação, o tópico destinado ao “Monte de Vênus” sempre é completado, seja pela
descrição de presença de pelos, seja com a coloração dos mesmos. Dedicados ao hímen,
nos exames de conjunção carnal, os legistas são modestos na exposição de outras partes
103
A resposta contrasta explicitamente com as designações fornecidas por Fávero (1954) ao exame dos
órgãos genitais externos femininos. Como adverte o autor, “(...) depois de examinar-se cuidadosamente o
monte de Vênus e o estado do conjunto da vulva (dimensões, manchas etc.) observa-se o aspecto e a
disposição dos grandes lábios, se fecham ou não inteiramente a vulva, se encobrem ou não inteiramente
os pequenos [lábios], [qual] o aspecto, as dimensões, as prevalências de um sobre o outro, etc.”
(FÁVERO, 1954, p.220).
133
104
Tato que se prolonga por meio de aparatos como cotonetes, seringas e tudo aquilo que culmina em
lâminas e amostras importantes aos exames laboratoriais.
134
constituindo uma rede entre esses dois termos. Nesta, o olhar médico deverá ir da
superfície sintomática à superfície tissular, em profundidade (FOUCAULT, 1980).
Como um capítulo da anatomia política105, essas técnicas se apresentam como
via de comunicação e ponto de apoio para as relações de poder e de saber em que os
corpos são tomados como objetos de intervenção e de gestão (FOULCAULT, 1987).
Descrever o corpo implica em conhecê-lo e, dessa maneira, em intervir sobre ele,
fazendo ouvir, no caso do interesse legal pelo hímen, o próprio sexo. Como se interroga
Foucault (1988, p. 77), “que injunção é essa? Por que essa grande caça à verdade do
sexo, à verdade no sexo?”. Apesar da ambiguidade contida no termo, minha escolha por
manter aqui o termo sexo, ao invés de sexualidade, diz respeito ao gênero narrativo
gestado em aulas de medicina legal e laudos de corpo de delito. Inspirada pelos
trabalhos de Foucault (1988), meu uso do termo não remete, aqui, apenas à ideia de
sexo biológico, antes reforça uma
105
A “invenção” daquilo que Foucault (1987) denominou anatomia política não deve ser confundida com
uma descoberta súbita, mas corresponde a uma multiplicidade de processos minúsculos de múltiplas
origens, com localizações esparsas que se repetem e se imitam, apoiando-se uns sobre os outros e que, aos
poucos, esboçam uma fachada, uma espécie de método geral. Uma mecânica do poder que age sobre os
corpos e neles se objetiva, intervindo sobre os corpos para que eles se tornem submissos, exercitados e
dóceis.
135
dessa carne. Por tais atos de “apenas preencher papel” (FERREIRA, 2013)106, o “sexo”
figura como um termo crucial, um lugar de contestação e um campo de batalhas
intelectuais e técnicas. Como sugere Grosz (2000, p.79) em seu balanço teórico sobre as
noções de corpo, “os modos naturalistas e científicos” explicitam apenas uma forma de
forjar o corpo, dentre uma série de discursos disparatados que o inscrevem como
materialidade.
Ainda que Madalenas, Selmas, Márcias, Lucianas, Lauras e Alices tenham um
hímen ou os retalhos que restam dele, é somente diante das correlações de força
tramadas em laudos e aulas de medicina legal que a desprezada membrana tornou-se
protagonista e pode, finalmente, ser alçada a um tipo incontestável de vestígio. A
pergunta a ser feita, todavia, é: depois de inspecionar, sobretudo, o hímen, o que
concluem os legistas? A resposta nos exige retornar à solução narrativa veiculada nos
próprios laudos:
Uma Selma: “Do observado e exposto concluímos que a
examinada apresenta roturas antigas e se ato libidinoso houve
marcas não ficaram...”.
Uma Márcia: “Do observado e exposto concluímos que a
examinada apresenta carúnculas mirtiformes, portanto, não temos
condições de afirmarmos ou negarmos a queixa da pericianda...”.
Uma Madalena: Do observado e acima exposto concluímos que
a examinada apresenta hímen com rotura antiga.
Uma Laura: “Do exposto e observado concluímos que a
examinada apresenta hímen integro”.
Uma Luciana: Do observado e acima exposto concluímos que
a examinada não manteve conjunção carnal, portanto é virgem.
Uma Alice: “Do observado e exposto concluímos que a
examinada não manteve conjunção carnal”.
Dado que muitas são as entradas médicas forjadas por esses especialistas, é
notável que do visto, escutado e tateado apareça sem mediações, mais uma vez e
somente, o hímen. Afinal, o que trouxe mulheres e meninas como Madalenas, Márcias,
Selmas, Lucianas, Lauras e Alices à sala de exames do IML? As conclusões da perícia
se tornam curiosas, uma vez que dos corpos estuprados dessas mulheres, as técnicas
106
Pelo termo, Ferreira (2013) enfatiza ao menos três dimensões da administração executada para casos
de desaparecimento civis executados pelo Setor de Descoberta de Paradeiros, da Delegacia de Homicídios
do Rio de Janeiro. Considerados por esses agentes da polícia como “só procedimentos administrativos”
sem efetividade investigativa, tais documentos indicam a falta de pertinência do trabalho ali colocado; a
evidência de que toda a integralidade do trabalho realizado na repartição passa inevitavelmente pela
produção de muitos papéis, quase sempre ineficazes e, por fim, salientam o caráter inevitável e inexorável
de afazeres de menor importância, cuja vida institucional passa pela materialidade dos papéis.
136
médicas legais existentes no Brasil quase nada tenham a dizer sobre o estupro107. Assim,
focados nos himens e nas roturas dessas mulheres, os legistas terminam em suas
conclusões produzindo um deslizamento entre a requisição do exame de corpo de delito
e a conclusão médica anotada e certificada.
Como apresentei na seção anterior, a requisição de corpo de delito, ao tipificar o
ato como “um 213” demanda do IML que um exame de “conjunção carnal” seja
realizado. As considerações do legista, para tanto, têm por urdidura dois elementos: de
um lado, a “conjunção carnal” e, de outro lado, “o hímen”. Ambos são alinhavados de
modo rotineiro – ou mimetizados – por aquele que deve concluir o laudo. Frases como
aquelas destinadas ao exame de uma Luciana ressaltam, com clareza, essa inesperada
injunção: “que a examinada não manteve conjunção carnal, portanto, é virgem”. Ou,
como no caso de uma Márcia: “que a examinada apresenta carúnculas mirtiformes,
portanto, não temos condições de afirmarmos ou negarmos a queixa da
pericianda...”108.
Ao longo desta pesquisa, excertos como esses passaram a me inquietar
sobremaneira. Assim, impossibilitada de acessar outros laudos de conjunção carnal e
atenta à importância destinada ao hímen nas aulas de sexologia forense cursadas na
Unicamp, eu passei, em minhas entrevistas com médicos legistas de Campinas, a
questioná-los sobre as conclusões possíveis para casos de violência sexual. Meu
questionamento era bastante direto: “nos casos de mulheres que tenham o hímen
roturado em data não recente ...”. Antes mesmo que eu pudesse terminar a frase, eles
respondiam: “só isso que faria o diagnóstico, né?!”. Eu insistia: “não é possível achar
outros indícios de violência”? Eles, dessa vez, eram ainda mais diretos em suas
explicações:
107
Em entrevistas realizadas no primeiro semestre de 2011, com profissionais da Delegacia da Mulher,
todas as escrivãs responsáveis por um cartório foram unânimes em dizer que, ao longo de 10 anos (ou
mais) de carreira, raras foram as vezes em que fizeram a requisição de material de DNA colhido pelo
CAISM. Em compensação, quando exigido por Juízes, a lâmina foi enviada à DDM por meio de carta
endereçada à polícia via correio, para então ser reenviada ao IML. Além do tempo decorrido entre o início
dos trâmites até o laudo emitido pelo IML, a lâmina enviada era o único exemplar. Ou seja, qualquer tipo
de extravio comprometeria irreversivelmente a feitura do laudo. Também as análises que exigem
laboratório ou outras técnicas de detecção, como DNA ou fluidos corpóreos, só são feitas em São Paulo.
Isso significa que o Núcleo de Perícia do IML de São Paulo recebe material para análise do estado todo.
Além disso, em entrevistas realizadas recentemente com médicos-legistas na cidade de Campinas, todos
foram unânimes em alegar a demora e a lentidão no envio dos resultados da maioria dos laudos periciais
concluídos pelo Núcleo de Perícia do IML de Campinas e que exigem resultados fornecidos em pelo IML
de São Paulo. Muitos salientaram que evitam requerer exames toxicológicos, patológicos e de DNA
porque acabam atados aos laudos que permanecem, sem finalização, em suas mesas.
108
No “Histórico”, a queixa da pericianda era “informa a examinada que teria sido vítima de conjunção
carnal e sexo oral mediante ameaça de revólver em [data]”.
137
“então, porque é assim, como você vai provar que ela foi penetrada,
né? O agressor pode dizer que bateu nela, mas não penetrou. Se não
encontrar espermatozoide, se ela já tem uma rotura himenal antiga,
como você vai provar que ela foi penetrada?! A não ser que você
encontre vestígios na roupa. Você pode encaminhar a roupa pro IC,
mas quem tem que fazer isso é o delegado de polícia”. (Entrevista
realizada em janeiro de 2015).
109
Voltarei a esse ponto no quarto e no quinto capítulo desta tese, a partir dos casos periciais assinados
por Badan Palhares. Sugiro que suas investigações não só almejavam integrar IML e IC, como ele mesmo
passou a investir esforços em ir até a cena do crime, constituir equipes multidisciplinares e produzir
laudos bastante interpretativos. O caso envolvendo a morte de PC Farias e Suzana Marcolino indica, com
clareza, os riscos colocados a esses laudos que, a meu ver, como sugeriu Adriana Vianna, em leitura ao
meu trabalho, “vazam para todos os lados”.
139
azulado: “N.P.M.L. Campinas. Confere com o original. É verdade e dou fé. O escrivão
de Polícia. 16 FEV. 2006” e passou a integrar, mais de um ano depois, o inquérito
XXXX/04.
***
Sem hímen a ser inspecionado, o corpo de meninos como Felipes abre caminho
a outras fórmulas narrativas. Se, como afirmei na primeira seção deste terceiro capítulo,
exames de corpo de delito de “ato libidinoso” se debruçam sobre outros orifícios
penetráveis, o laudo destinado a um Felipe evidencia, também, a centralidade do ânus
nesses papéis. Perscrutado por hábito, ou descrito mediante praxes de escrita de rotina, o
ânus ganha protagonismo e uma lacuna em destaque no documento oficial forjado no
IML. O recurso estilístico de destinar, a ele, uma seção em separado busca ilustrar uma
descontinuidade, um corte. Enquanto, himens respondem por conjunções carnais;
“fissuras” aparecem como elementos materiais importantes a serem investigados na
região anal. Tais laudos também evidenciam os raros momentos nos quais os
“genitais”, independente do hímen, figuram como partes a serem descritas com zelo e
precisão.
Sem descrições extensas sobre as “manobras libidinosas” em tratados de
medicina legal, tanto Fávero (1954) quanto Peixoto (1934b) são enfáticos em qualificar
como de difícil conclusão a ocorrência de toques, intercursos anais e em outras sedes do
corpo. As poucas páginas concedidas à matéria na aclamada obra de Peixoto (1934b),
todavia, debruçam-se com mais atenção às chamadas práticas de pederastia do que a
qualquer outro tipo de ato libidinoso. Deslocando o sentido semântico do termo –
pederastia – o autor afirma que “as práticas de pederastia exercem-se sobre os dois
sexos e em todas as idades”. (PEIXOTO, 1934b, p.138-139). As digressões de
renomado médico legista intentam ajudar aqueles que, porventura, vejam-se obrigados a
periciar o ânus daqueles que passivamente são penetrados ou o pênis daqueles que, por
gosto, penetram ativamente a região anal de suas vítimas. Sem elementos decisivos e
irrefutáveis, Peixoto (1934b) pacientemente demonstra como deformidades penianas,
desenvolvimentos excessivos de nádegas e relaxamentos do esfíncter, rasgos,
carúnculas, fissuras e/ou fistulas anais são elementos de pouca confiabilidade. Como
sugere Fávero (1954):
142
110
Para o autor, tais lesões são constatadas mediante eczemas nas margens do ânus e se configuram como
saliências, inflamações, dobras epidérmicas perineais e anais. Todavia, semelhantes a hemorroidas, tais
atritos não devem ser confundidos com saliências venosas características de varizes anais cujo
aparecimento redunda dos hábitos de evacuação do paciente (PEIXOTO, 1934b).
143
111
De seu ânus também foi colhido material para análises laboratoriais, com a inexistência de material
seminal.
144
Ainda que, em exame de “conjunção carnal”, essa região tenha sido retratada
pela máxima: “6. Ânus: sem lesões de interesse médico legal”. As mesmas
características estéticas são explicitadas nos laudos realizados para uma Alice. A
“exulceração (ruptura) longitudinal em toda a extensão do assoalho do vestíbulo
vaginal” é anotada, em diferentes lacunas, nos documentos de corpo de delito
confeccionados pelo IML. Enquanto seus “genitais externos de conformação” são
descritos como “normal para idade”, em exame de “conjunção carnal”, a mencionada
“exulceração (ruptura)” é registrada em seção especial – “genitais” – inserida no
laudo de ato libidinoso.
Em ambos os casos, a aparente contradição exposta por esses papéis apenas
reforça o argumento de que os documentos oficiais implicam em delimitações; em
resposta a cada demanda, certos pedaços de carne devem ser eletrizados, em declínio do
protagonismo de outros. Na “Conclusão”, a contundência quanto à relação entre a
lesão e o ato libidinoso contraria as esquivas sistemáticas desses profissionais em
afirmar a causa jurídica do ato investigado para crimes tipificados como estupro:
Semelhantes roteiros são seguidos para o caso de jovens como uma Bianca. Aos
dezessete anos, uma Bianca foi examinada, nas dependências do IML, no dia 10 de
julho de 2004. Requisitado pelo delegado do 1º Distrito Policial de Campinas, seu laudo
de corpo de delito afirmou em “Histórico” que uma Bianca foi “forçada a relação oral
e anal nesta data”. Feito pouco tempo depois do ocorrido, o exame determinou, na
lacuna “Descrição”, que a jovem não apresentava “lesões corporais” a serem
atestadas. Mas estando uma Bianca em “posição genupeitoral”, os legistas deixaram
anotados “eritema e edema anal; observamos duas fissuras localizadas em posições
[ilegível] na região externa e interna”. E, “do observado e exposto”, concluíram “que
houve prática de ato libidinoso diverso de conjunção carnal”.
Mais uma vez, “fissuras” eram devidamente anotadas como sinal suficiente para
que o “ato libidinoso” fosse confirmado. Sem catálogos ou imagens fotográficas desse
tipo peculiar de úlcera ou lesão aberta na pele ou na mucosa anal, o laudo indireto
145
formulado para uma Joana e a completa ausência de laudo de ato libidinoso para
mulheres como Selmas eram, no mínimo, curiosos.
Sem acessar o corpo de uma Joana com seus próprios olhos, o legista faz
aparecer, em seu laudo, formas narrativas muito mais próximas do resumo. Seu laudo
revela, sem dúvida, uma tensão entre a função de legista ‘oficial’ e as práticas médicas
realizadas por outras instituições, também médicas, como hospitais que atendem à
vítima momentos depois do estupro ter ocorrido. Logo no início, no “Histórico”, o
legista declara ser o referido exame um “Laudo Indireto” feito “de acordo com a cópia
xerográfica do prontuário – HC XXXX-X/ do HC/Unicamp”. Em seguida, caracteriza os
motivos do referido exame:
112
“Cadeia de custódia” é um termo técnico bastante usado pelos legistas para explicar os procedimentos
técnicos de recolhimento, manuseio e guarda de elementos colhidos durante o atendimento clínico
realizado em hospitais para casos variados de violência. Em linhas gerais, as “cadeias de custódia”
documentam a história da evidência, com o registro de posse de todos aqueles que a produziram. Nos
casos de estupro, o questionamento busca enfatizar a centralidade do saber médico-legal em detrimento
do atendimento clínico executado nessas instâncias hospitalares.
146
Sendo assim, proferem sua “Conclusão”: “De acordo com os dados médicos
fornecidos não temos elementos de certeza que permitam afirmar ou infirmar ter
ocorrido ato libidinoso”.
Ainda que exames indiretos redundem em outros expedientes bastante
corporativos, quando contrastados com os exames empreendidos em meninas e jovens
como Lauras e Biancas, eles incitam perguntas. Se “fissuras anais” podem ter origem
em “outras causas de etiologia não traumática”; por que é dado por certo que algumas
“fissuras, eritemas e/ou edemas” são, para certos diagnósticos, elementos de
materialidade e, para outros, motivos de dúvida? Ou, ainda, por que mesmo anotando
em “Histórico” que mulheres como uma Selma foram “vítima de ato libidinoso (sexo
oral e tentativa de anal)”, tais inspeções resultaram apenas em “exame de conjunção
carnal” e não “ato libidinoso”? Por corolário, por que o ânus figura como coadjuvante,
“sem lesões de interesse médico-legal”, enquanto o “hímen anular, carnoso, de orla
alta, apresentando rotura completa, cicatrizada, localizada em junção de quadrantes
anterior e posterior direito” de mulheres como Selmas reina soberano? Para essa última
pergunta, não surpreende que, na “Conclusão”, os legistas afirmem “que a examinada
apresenta roturas antigas e se ato libidinoso houve marcas não ficaram...”.
Os três pontos ao final da assertiva parecem graficamente zombar do leitor. Do
mistério e do enigma impostos aos pedaços de carnes que pairam autônomos dos corpos
periciados restam, factualmente, reticências. Digo isso pela própria qualidade do
material etnográfico aqui reunido. Em função de sua exiguidade e fragmentação, os
laudos e suas formas narrativas calcadas em himens e fissuras não redundam em
tipologias ou convenções narrativas robustas ou claramente discerníveis, tal como
construí em minha pesquisa de mestrado113.
Diferentemente daquilo que afirmei por meio dos inquéritos policiais, a leitura
desses laudos termina por correlacionar uma constelação de luminescências de
tonalidades, brilhos e distâncias variadas. Ou seja, diante da qualidade desses papéis,
113
Nessa pesquisa, com autorização da delegada titular, pude permanecer de modo intermitente durante,
aproximadamente, dois anos nas dependências da DDM, bem como reuni um corpus documental de mais
de duzentos inquéritos a serem analisados. Por meio da leitura sistemática desses papéis e da observação
das práticas de documentar ali gestadas, pude perceber que um mesmo ato (violência sexual) poderia ser
descrito de diferentes maneiras a depender dos cenários, da relação entre vítima e agressor ou ainda das
sensibilidades gestadas por escrivãs e delegadas no decorrer de uma investigação. Chamei essas formas
distintas de narrar de convenções narrativas. Elas se constituem, por meio do uso desigual de uma
variedade de termos. Foi a partir da correlação desses conteúdos às suas carreiras como bens
administrativos, nos termos de Vianna (2002) e da noção de “fábula”, tal qual descrita por Corrêa (1983),
que distingui três diferentes formas de narrar da polícia: Narrações Detetivescas, Casos de Família e
Narrações Empáticas. Para uma análise mais detida sobre isso, ver Nadai (2016; 2012).
147
114
Ricardo Dias foi acusado e condenado pelo estupro e atentado violento ao pudor de dezessete
mulheres na cidade de Campinas e de Sumaré, ambas cidades localizadas no interior do estado de São
Paulo. Ricardo Dias tem, em sua “vida pregressa”, uma condenação anterior – com pena de 10 anos –
por crimes de estupro cometidos na capital de São Paulo, na década de 90. Ricardo Dias também ficou
conhecido na cidade de Campinas em matérias de jornais como o “maníaco que aterrorizou Campinas”
(NADAI, 2012).
148
“lesões no quadril”, “hímen com rotura antiga” não corroboravam com conclusões
sobre o estupro e o ato libidinosos por elas vivenciados, ainda que todas elas tivessem
reconhecido “sem sombras de dúvidas” Ricardo Dias, como o homem que perpetrou
seus respectivos estupros. O leitor sagaz, porém, dirá: mas há outras marcações a serem
consideradas nesses casos. A idade das vítimas ou o fato de o exame de uma Joana ser
estetizado por meio de um “laudo indireto”.
Diante de minha indulgência com tais afirmativas e exatamente pelo caráter
escorregadio imposto ao corpus documental recolhido por mim, eu evitei afirmar
categoricamente que da forma-formulário padronizada resultam fórmulas e enredos que
acabam por modular diferentes convenções narrativas a esses papéis periciais. Ao
contrário, obstinei-me a evidenciar aquilo que desses modelos e papéis é possível retirar
como uma espécie de precipitado, de recorrência. O que os pedaços de carne
materializam? Ou, de modo mais imperativo, como tais pedaços materializam
corporalidades, orifícios e/ou pequenas fendas, “fissuras”? A resposta é ela mesma
traiçoeira. Da forma-formulário se segue um único gênero narrativo: os pedaços de
carne. Himens e fissuras são metonímias de vaginas, ânus e corpos integrais. Mas
“fissuras sangrantes”, diferentes de “roturas cicatrizadas e antigas”, incitam a pensar
os sentidos semânticos para ambos os termos. “Roturas” denotam rompimentos, cortes,
divisões que cicatrizadas estão, portanto, cerradas. “Fissuras” remontam dois diferentes
significados: a ideia de rachadura, pequena fenda ou cissura. E, por extensão, a noção de
paixão, apego excessivo, fixação ou loucura por algo ou alguma coisa. O “sangrante”
adjetiva a expressão com a pungência e a vivacidade.
Em contextos empíricos muito distintos, Maria Filomena Gregori (2016) e Maria
Elvira Benítez (2014; 2015) realizaram pesquisas que servem aqui de inspiração e mote
analítico para a distinção acima enunciada. Tomando a pornografia, o sadomasoquismo
e o uso de objetos eróticos, no caso de Gregori (2016), e a indústria pornô, práticas de
humilhação e dor e o mercado do sexo, no caso de Benítez (2015), ambas as reflexões
estão preocupadas em destacar os momentos nos quais, nos termos de Gregori (2016,
p.182), uma “zona fronteiriça entre prazer e perigo” é estabelecida mediante “tensões,
ressignificações e fissuras das normatividades de gênero e sexualidade”. Como
argumenta Benítez (2015):
115
Como argumenta Foucault (1988), a confissão se desenrola numa relação de poder na qual aquele que
escuta não é um simples interlocutor. Ao contrário, é uma instância que “requer a confissão, impõem-na,
avalia-a e intervém para julgar, punir, perdoar, consolar, reconciliar” (FOUCAULT, 1988, p.61).
150
116
Aqui busco enfatizar os muitos sentidos tramados por intermédio do verbo seduzir. Desde os
significados de atrair, encantar, fascinar, até aquele relacionado às astúcias e expertises (LUGONES,
2012) que induzem ao erro ou à desonra e ao defloramento de donzelas ingênuas e inexperientes.
151
A primeira epígrafe com a qual inicio estes arremates foi retirada do livro de
Mariza Corrêa (1998). A autora, através da citação das frases em questão, assinala o
152
117
Como evidencio em minha dissertação de mestrado, delegadas e escrivãs da DDM de Campinas
enfatizavam, com recorrência, a falta de mobiliário adequado, de infraestrutura básica ao prédio, assim
como, de recursos, pessoas e salários justos ao “duro” trabalho exercido. (NADAI, 2012). Outras
pesquisas também realizadas em setores de atendimento público e estatais reforçam esse mantra. Para ver
mais: Ferreira, 2016; Vianna, 2002; Lugones, 2012; Medeiros, 2012 etc.
153
118
Como fica assinalado em nota de rodapé na versão transcrita de seu curso “Os anormais”, o termo
ubuesco se refere à peça de Alfred Jarry, intitulada Ubu Rei. Em tal obra teatral, o autor destaca o caráter
grotesco, absurdo ou caricato do personagem Ubu. Este último, instigado por sua esposa, mata o rei e
assume o trono. Ao fazê-lo, Ubu Rei instala um governo de pura tirania.
154
119
Ao tratar dos exames psiquiátricos em matéria penal, o autor visa sublinhar, contudo, que tais
terminologias, como qualificações morais, permitem um deslizamento do crime à conduta, do criminoso
ao delinquente, e constitui um médico que será médico-juiz a um só tempo. Para ver tais imbricações no
Brasil: Carrara, 1998 e Fry, 1982; 1985.
155
120
Ainda que o artigo de Oscar Freire (1923) remeta, explicitamente, a defloramentos chama atenção
como suas recomendações são espelhadas às respostas dadas para os quesitos obrigatórios em casos de
estupro. Digo isso, em função da afirmação já mencionada nesta seção: “Comprova-se que ela não é mais
virgem, porém sobre o crime não se pode fazer nada”. Em seu artigo, Freire (1923) afirma ser confusa tal
expressão e que melhor seria dizer, somente, que o hímen se encontra ou cicatrizado ou sangrento. Isto é,
se os retalhos himenais se apresentam arredondados e com as pontas esbranquiçadas; ou se ainda são
franjados, irregulares, avermelhados e com presença de sangue. O tempo de cicatrização para a membrana
roturada em data recente é de oito dias, mas excepcionalmente pode demorar até doze dias para ela estar
completamente cicatrizada.
157
carreira pública e as fronteiras daquilo definido como ético desfraldam algumas das
querelas sobre a inaptidão e a impossibilidade das provas serem colhidas em hospitais e
por médicos, que não são, por ofício e concurso público, legistas.
Exatamente por isso, “fissuras” podem ser resultados de “outras causas
etiológicas” que não a penetração, com violência, retratada por uma Joana e motivo
pelo qual seu prontuário chegou aos escaninhos do IML de Campinas. Também as
“escoriações” encontradas em seu “quadril esquerdo” são insuficientes para dar
legibilidade e materialidade à violência narrada à Polícia Civil. Nesse caso, a expressão
“prejudicado” é, por escolha e proteção, um termo unívoco. Contudo, como apresentei
até aqui, a resposta mediante o uso do termo “prejudicado” é apenas um dos recursos
discursivos manejados por legistas na feitura de laudos periciais. Se tal artifício parece
mais explícito, outros estilizados por expressões como “provável”, “possivelmente”,
“suposto” ou “não temos elementos” reatualizam as (in)conclusões como arremate e
solução médico-legal. (NADAI; VEIGA, 2014).
Nesse sentido, não se trata de avaliar o IML como ineficiente ou seus papéis
como nulos ou inúteis, ao contrário, importa sublinhar o efeito de autoridade e o risco
de sua perda contidos nesses papéis. Os muitos anos nos quais as provas produzidas em
“meia hora” podem ser questionadas impõem, àquele que assina um laudo, uma dose
generosa de prudência. Também, questões geracionais e de experiência no ofício se
interpõem quanto à forma e o rigor por meio do qual um profissional profere e/ou se
compromete com certas conclusões médico-legais. Como enfatizou Carvalho “tem que
se proteger”. Proteção que como espinha dorsal do IML, espalha-se por todo o tecido
que constitui a corporação. Aqui, a expressão arriscar autoridade, cunhada por mim no
primeiro capítulo desta tese, ganha novos contornos.
Inspirada pelo trabalho de Juliana Farias (2014), gostaria de enfatizar o caráter
discricionário e rotineiro por meio do qual se deixa de dizer certas conclusões ou
responder certos quesitos. Em sua pesquisa sobre execuções sumárias empreendidas por
agentes estatais contra moradores de favelas do Rio de Janeiro, a autora se debruça, com
bastante atenção, sobre os laudos cadavéricos como “plataformas de registro pericial”
(FARIAS, 2014, p.154). Para tanto, a figura de um legista aposentado é estratégica.
Como destaca a autora, em reuniões com familiares, promotores e em seu próprio
parecer técnico-científico, Dr. Saul foi enfático ao condenar o exame fornecido pelo
IMLAP à morte de Emanuel. Farias (2014) apresenta a cena etnográfica:
160
Farias (2014), interessada nas disputas, nos usos e nos efeitos que carregam
esses artefatos periciais para a judicialização de execuções sumárias ocorridas em
favelas do Rio de Janeiro, questiona as (in)conclusões forjadas por esses papéis. O
laudo cadavérico, no entanto, não aparece como objeto explícito de sua reflexão. Ou
seja, os papéis são vistos por meio das autoridades que – responsáveis por preencher,
carimbar e assinar papéis – concluem e respondem quesitos obrigatórios por lei em
casos de morte violenta121.
Na opinião especializada de Dr. Saul, os legistas do IMLAP tinham condição de
responder com certeza se tivessem se informado sobre as “dinâmicas dos fatos”
investigadas pelo Instituto de Criminalística Carlos Éboli. Contudo, como destaquei em
negrito, termos como “dedução”, “provavelmente” ou “deveria estar” salientam uma
disputa sobre como e para que fins se deve conduzir um exame pericial. Deduções e
hipóteses parecem contrastar, frontalmente, com aquilo que meus interlocutores
definem como materialidade. Entre inspecionar a carne, anotar na silhuete o T,
referência à zona de tatuagem, e relacioná-lo a outras lesões e dinâmicas dos fatos, há
uma impossibilidade para uns, um dever para outros. Não são escolhas no sentido
robusto do termo. Nem parece frutífero transferir a questão para o reino das
121
Sustenta a tese de Farias (2013), nesse sentido, que o T – a zona de tatuagem, carimbo da polícia
militar marcado na pele do braço esquerdo de Emanuel – anotado e esquecido na silhueta do laudo
cadavérico não é convertido em elemento conclusivo: nem sobre se houve morte, nem sobre qual a sua
causa, menos ainda sobre qual o instrumento ou meio a produziu. Numa espécie de excesso descritivo,
alguns termos ou grafias circunscrevem a morte: explicita-se por meio das palavras, o ferimento
transfixiante de crânio com lesão de encéfalo por ação perfuro-contundente, mas nada é dito sobre a
distância a que ele foi executado, nem sobre suas correlações com a zona de tatuagem anotada em laudo.
161
Capítulo IV. “Por que converso com os mortos”: entre histórias, casos e
acontecimentos.
“(...) o mundo tal qual nós o conhecemos não é essa figura simples onde
todos os acontecimentos se apagaram para que se mostrem, pouco a pouco,
as características essenciais, o sentido final, o valor primeiro e último; é ao
contrário uma miríade de acontecimentos entrelaçados; [se] ele nos parece
hoje "maravilhosamente colorido e confuso, profundo, repleto de sentido"; é
que uma "multidão de erros e fantasmas" lhe deu movimentos e ainda o
povoa em segredo. Cremos que nosso presente se apoia em intenções
profundas, necessidades estáveis; exigimos dos historiadores que nos
convençam disto. Mas o verdadeiro sentido histórico reconhece que nós
vivemos sem referências ou sem coordenadas originárias, em miríades
de acontecimentos perdidos”. (FOUCAULT, 1979, p. 28)
122
Faço aqui referência ao termo utilizado pelo antropólogo Camilo Albuquerque de Braz (2010) em sua tese “À
meia luz...Uma etnografia imprópria em clubes de sexo masculino”. Pelo termo, o autor busca circunscrever um
espaço específico dos clubes de sexo, cujo objetivo é privilegiar o sexo e a caça. Esse local, no qual a penumbra
e um tipo particular de silêncio imperam, é utilizado pelo antropólogo como recurso analítico. O intuito é
demonstrar as ambivalências que constituem esses clubes, seus frequentadores e as práticas sexuais ali
realizadas. Como sugere Braz (2010), “(...) é possível ― acender a luz e enxergar, nas salas de sexo dos clubes
masculinos, a reiteração de normas hierarquizantes de gênero. Mas também é possível permanecer na penumbra,
iluminando algumas de suas partes e questionando se, afinal de contas, essas práticas à meia-luz não podem vir a
ser potencialmente desconcertantes de suas próprias convenções” (BRAZ, 2010, p. 240).
163
de conseguir realizar essa arriscada empreitada, buscarei alinhavar diferentes gêneros textuais:
autobiografia, notícias de jornal, livros e documentos legais. Materiais com caráter polifônico
advindos de diferentes emissores que muitas vezes se sobrepõem e, sobretudo, competem.
Destinados a uma gama variada de espectadores, jornais, autobiografias e perícias guardam,
em suas materialidades, distintos interesses e engajamentos. As costuras empreendidas no
texto, portanto, respeitam alguns procedimentos de alinhavo.
O primeiro deles diz respeito ao uso que faço da autobiografia e do website de Badan
Palhares123. Eles interessam, a esta tese, por serem capazes de iluminar as tramas pelas quais o
IML de Campinas ganhou certo relevo na medicina legal brasileira. Importância visível não
enquanto instituição pericial, mas por intermédio da correlação entre os nomes que
compunham seus quadros de funcionários e a construção de um Departamento de Medicina
Legal e Ética (DMLE) na Unicamp. Seguindo as orientações de Joan Scott (2012), entendo
que a forma pela qual Badan Palhares registra e cristaliza sua carreira e seus casos, de
relevância profissional e política, desnuda um modo de “explorar como a diferença é
estabelecida, como ela opera e como e de que maneira constituem sujeitos que veem e atuam
no mundo” (SCOTT, 2012, p. 302)124.
O segundo procedimento informa sobre o uso que, neste e no próximo capítulo, farei
de noticias de jornal, documentos públicos, relatórios parlamentares e livros acadêmicos.
Preocupada com a construção dos casos envolvendo Badan Palhares, o IML e diferentes
universidades do estado de São Paulo, optei por empreender um uso herético desses artefatos
documentais. Ou seja, sendo eles gêneros textuais específicos cujas produção, circulação e
recepção respondem a múltiplos interesses, busquei fixar minha leitura no conteúdo veiculado
por esses papéis, ao invés de me dedicar a analisar as condições formais que os constrangem e
organizam.
123
Publicada pela editora Landscape, em 2007, sua autobiografia é dividida em três partes e quarenta e três
capítulos e se apresenta como uma espécie de história ‘quase’ linear de sua carreira e de sua vida pessoal.
Escolhidos a dedo pelo próprio Badan Palhares, os fatos pessoais julgados por ele importantes são mencionados
com vistas a construir motivações, bem como indicar, por exemplo, as razões que o instigaram a se tornar
médico-legista. Diretamente conectado a isso, uma multidão de desafetos, contendas e tramas políticas aparecem
como o cerne de seu livro e de sua carreira. Numa espécie de replicação e justaposição, seu web site oficial
orienta e complementa, com mais detalhes visuais, sua carreira acadêmica e profissional. Como uma espécie de
biografia digital de alcance incalculável, o click com o mouse no link “Entrar” do site abre um mundo de abas,
fotos, documentos históricos e bravatas acadêmicas. Para ver o website:
http://www.badanpalhares.med.br/home.htm.
124
Ao dizer isso, saliento que os enquadramentos escolhidos por mim acabam por deixar em baixo relevo uma
multiplicidade de miradas possíveis a essa narrativa, em especial a própria ideia de autobiografia como gênero
literário que conjuga simultaneamente noções como memória, escrita de si ou diário/relato confessional.
Contudo, minha escolha por utilizar expressões cunhadas pelo próprio Badan Palhares, para os tópicos que
seguem, busca enfatizar os empreendimentos biográficos destacados pelo legista. Para uma recomposição da
biografia de Palhares, ver anexo IV.
164
Em relação aos jornais impressos, elegi o jornal Folha de São Paulo como principal
periódico de consulta. A escolha tem por fundamento o uso que o próprio Palhares faz das
reportagens publicadas nesse periódico, mas também as características de produção, tiragem
nacional e acesso do mesmo. No que tange ao conteúdo das manchetes e reportagens
selecionadas, a maioria delas se encontram publicadas no “Primeiro Caderno” do periódico
dedicado à “vida política, institucional e aos movimentos sociais”. Para os casos da “Vala de
Perus” e de “PC Farias”, grande parte das reportagens foram publicadas na seção “Brasil”.
Para o caso “Mengele”, as publicações se encontram predominantemente dispostas na seção
“Internacional”. Todos os casos contam com períodos de publicações diárias – da construção
do caso até seu clímax – e com momentos de arrefecimento de notícias e manchetes. Tais
formas de noticiar revelam distintas estilísticas: imagens meramente ilustrativas ou fotografias
de impacto, reportagens mais ou menos extensas, manchetes de capa ou dossiês que tomam
páginas inteiras do periódico125.
Como afirma Lomnitz (2014), em torno do caso Arroyo126, a mídia impressa, por meio
de rumores e relatórios incompletos ou reticentes, alimenta a voracidade do público em torno
de um determinado crime ou escândalo. Inspirada por Sontag (2003), destaco que tais
notícias, assim como as imagens e fotografias, são o registro de um real, do real visto por um
certo alguém que esteve lá para capturar tais imagens e “furos de reportagens”. Como
salienta a autora, se repórteres se tornam famosos pela coragem de terem estado na guerra,
testemunharem e obterem imagens perturbadoras, aqui, tal destemor leva a reportagens
“exclusivas”, investigações e reviravoltas políticas. O estilo narrativo inspirado pelas novelas
de mistério dá “forma, direção e efeitos políticos” (LOMNITZ, 2014, p. 92) para todos os
casos que serão narrados nas próximas páginas. Ou seja, a mídia impressa, na figura da
“Folha de São Paulo”, como um personagem ou um ponto de vista aparentemente neutro e
125
Nas próximas páginas, não farei menção a tais estilísticas. Apenas para fins informativos destaco a
localização da notícia (página) e sua data de publicação. Quanto a outros jornais, eles serão utilizados apenas
estrategicamente quando suas informações lançarem luz ao argumento empreendido nos próximos capítulos.
Finalmente, ainda que fosse possível uma análise pormenorizada de como os periódicos constroem publicamente
tais casos, os jornais, enquanto gênero narrativo, não são meu objeto de análise nesta tese, eles apenas
comparecem como parte do universo empírico no qual sustento as várias versões dos casos. Para um itinerário
resumido da pesquisa realizada em jornais, ver Anexo III.
126
O caso Arroyo foi um dos primeiros escândalos públicos ocorridos no México. Em 1897, uma tentativa
frustrada de ataque ao ditador Porfirio Diaz desencadeou uma onda de distúrbios amplamente veiculados pela
mídia impressa. O suposto agressor, Arroyo, foi preso e assassinado em sua cela por populares que teriam
invadido a delegacia e executado seu linchamento. O falso distúrbio, todavia, era um plano arquitetado pela
própria polícia mexicana. Entre acusações e rumores sobre a origem das ordens que culminaram na morte de
Arroyo, o delegado da delegacia que confessou o plano se suicida em sua cela, com seu próprio cinto. Em seu
artigo, Lomnitz (2014) explora as controvérsias que forjam o caso Arroyo e seus respingos na figura salvadora
de Porfirio Diaz, na truculência da polícia mexicana, na conivência e corrupção das elites políticas e na
passividade/violência da sociedade mexicana.
165
127
Por trás dessa discussão, há todo um debate sobre as questões de subjetividade que atravessariam o registro
dessas imagens, mas a mesma polêmica poderia ser atribuída aos folhetins detetivescos forjados pelo periódico
em que me debruço aqui. Incidem sobre essas fotos e formas de noticiar, não somente a escolha do foco, como,
também, a luz utilizada, o ângulo escolhido, os estilos artísticos e estilísticos adotados, enfim, toda uma
infinidade de coisas que as colocam sob suspeita. As imagens e/ou reportagens podem ser enganosas. Portanto,
fotos amadoras, tiradas em contextos espontâneos, ou que captam, pelas frações do flash, as lágrimas que
transbordam, as mais ínfimas expressões de desespero – o contrair da face, o cair do olhar, a flacidez dos
músculos – assemelham-se a furos de reportagem. Ao dizer isso, destaco, portanto, como as notícias conformam
uma espécie de gênero narrativo cuja função é prender o leitor que passa a consumir o noticiário como novela
esperando diariamente pelos novos capítulos das tramas ali colocadas (Almeida, 2007).
128
Para todos esses documentos, abre-se uma gama de debates que excedem os objetivos desta tese: regimes
ditatoriais, corrupção na política, constituição de um campo internacional de identificação de pessoas mortas em
contextos de violação de direitos humanos etc. Para algumas miradas sobre ditadura no Brasil ver: Azevedo
(2016) e Sanjurjo (2013); sobre corrupção e política nacional, Teixeira (2000; 2004) e Bezerra (1999); para
contextos de violação de direitos humanos e burocracia, ver Oliveira (2005; 2011) e Muzzopappa (2018).
166
129
O trabalho de Paula Lacerda (2012) se debruça sobre a produção criminal e política do “caso dos meninos
emasculados de Altamira”. Por meio de uma miríade de materiais etnográficos, a autora demonstra como a
produção criminal e os encaminhamentos burocráticos em torno dos assassinatos, emasculamentos e
desaparecimentos de meninos e adolescentes em Altamira, Pará, encontram-se profundamente entranhados ao
deslizamento do caso em causa política preenchida por atos, vigílias e manifestações populares.
167
130
Formada por uma equipe de investigação internacional e multidisciplinar - arquitetos, artistas, cineastas,
intelectuais, advogados e cientistas –, a Forensis Architecture está localizada na Universidade de Goldsmiths, em
Londres e se define como: “una agencia contra-forense que se propone revertir la dirección de la mirada forense
para así enfrentar los abusos de poder de los Estados y las corporaciones en situaciones que cargadas de
tensiones políticas, conflictos violentos y una atmósfera de cambio”. Para ver acesse:
http://proa.org/esp/exhibition-forensis.php. A exposição vista por mim, em Buenos Aires, estava sob a curadoria
de Eyal Weizman, Anselm Franke e Rosario Güiraldeno.
131
Nascido em outubro de 1931, Romeu Tuma se tornou investigador de polícia por meio de concurso público
na Polícia Civil do estado de São Paulo, no ano de 1951. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade
Católica (PUC) de São Paulo, tornou-se delegado de polícia, a partir de 1967. Romeu Tuma atuou como assessor
do delegado Sérgio Paranhos Fleury na Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS) e a partir de 1975, tornou-
se diretor do órgão, atuando na repressão de movimentos políticos de esquerda, em especial, nas greves sindicais
do ABC paulista, dos anos 70. Com a reabertura política democrática, Tuma foi transferido para a
Superintendência Regional da Polícia Federal de São Paulo. Então à frente da direção da Polícia Federal em São
Paulo, entre 1982 e 1985, com a condução de José Sarney à presidência da república, Tuma foi convidado a
ocupar o cargo de diretor-geral da Polícia Federal. Ao longo do governo de Fernando Collor de Mello (1990 -
1992), Tuma assumiu a direção da Receita Federal. Com o impeachment de Collor, Tuma retornou à direção da
Polícia Federal, acumulando simultaneamente o cargo de secretário nacional da Polícia Federal e de vice-
presidente da Interpol. Depois de sua saída por motivos políticos da Polícia Federal (cargo de indicação), durante
a gestão de Itamar Franco, Tuma reassumiu seu cargo nos quadros da Polícia Civil de São Paulo e, em seguida,
foi designado assessor especial do governador paulista Luís Antônio Fleury Filho, no ano de 1993. Já em 1994,
candidatou-se a senador pelo estado de São Paulo. Eleito, Romeu Tuma ocupou o cargo no legislativo por dois
mandados consecutivos. Durante as disputas para reeleição de seu mandato no Senado, Tuma adoeceu e
permaneceu internado até o término do pleito, quando faleceu. Durante sua carreira policial e política, Romeu
Tuma foi acusado de empreender sessões de tortura durante sua direção junto ao DOPS, sendo, também,
responsabilizado por ocultação de cadáveres de militantes políticos mortos durante o regime militar. Para ver
mais: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/tuma-romeu.
168
vez, avisado e realizado uma nova fuga depois de saber das investigações coordenadas pelo
governo americano, pela Alemanha Ocidental e por Israel para levá-lo à juízo (KEENAN;
WEIZMAN, 2015).
Durante uma semana, de 06 a 15 de junho de 1986, a ossada exumada permaneceu sob
a responsabilidade exclusiva da equipe do IML de São Paulo designada para a
identificação132. Tanto o jornal a Folha de São Paulo quanto o Estado de São Paulo e o Jornal
do Brasil noticiaram, com dedicação, os processos envolvidos desde a exumação até às
primeiras informações em torno dos ossos examinados. Tratou-se, sem dúvida, de uma
pequena “novela” cujos capítulos traziam, a cada dia, um novo acontecimento133.
Ao mesmo em tempo que o IML de São Paulo iniciava os estudos antropométricos
junto à ossada, Romeu Tuma dava seguimento às investigações, ‘interrogando’ algumas das
pessoas que supostamente haviam conhecido ou ajudado a esconder a identidade de Mengele
no Brasil134. Dias depois da exumação, contudo, “devido à dificuldade e às altas expectativas
para [a] identificação”, inúmeros especialistas forenses se reuniram nos laboratórios do
Instituto Médico Legal de São Paulo (KEENAN; WEIZMAN, 2015, p. 21). Entre eles: uma
equipe oficial norte-americana e outra da Alemanha Ocidental135, o veterano investigador
israelense de crimes de guerra Menachem Russek, o “legendário antropólogo forense” Clyde
Snow e outros dois colegas de Snow, Leslie Lukash e John Fitzpatrick, enviados pelo Simon
Wiesenthal Center136.
132
A equipe de peritos brasileiros, coordenados por José Antonio de Mello, chefe de Perícias Tanatologicas do
IML de São Paulo e por Daniel Romero Muñoz, antropólogo forense, também, do IML da capital, contou com
mais cinco especialistas. Entre eles: os doutores Luiz Donato Botelho de Melo, Eduardo Pires de Carvalho,
Silvio Guatura Romão – responsáveis pelos exames radiológicos realizados junto a ossada exumada – e José
Donato Próspero e Elio Consentino, incumbidos dos exames anatomopatológicos. Finalmente, antes da
conclusão da identificação, foi incorporado à comissão o Dr. Marcos de Almeida, especialista em estruturas
capilares.
133
Um uso exemplar do termo pode ser visto junto à reportagem publicada pelo jornal Folha de São Paulo em 10
de junho de 1985. Além da chamada de capa “Polícia alemã diz que o corpo é de Mengele”, o periódico
destinou uma página inteira para a apresentação de todas as reviravoltas em torno do caso. Além disso, sob o
título “Uma história de mistérios com muitos personagens”, um quadro sintetizava, aos leitores, um perfil dos
“personagens” envolvidos com a estadia de Mengele no Brasil ou que o teriam conhecido antes de sua suposta
morte em Bertioga.
134
A dentista Maria Helena Bueno Vieira de Castro que afirmava ter tratado de “um alemão que reconheceu ser,
pelas fotos de jornais, Wolfgang Gerhard. Mas seu cliente foi tratado entre fevereiro de 1979 (data do suposto
afogamento de Mengele) e abril do mesmo ano”. Ou a húngara, naturalizada brasileira, Gitta Stammer, que
afirmava ter contratado Mengele, sob outro nome falso – Peter Hochbichlet – como administrador das
propriedades rurais da família Stammer nas cidades de Araraquara e Serra Negra. Ou ainda as afirmações de
Rolf Mengele – filho de Josef Mengele – de que o homem enterrado sob a identidade de Wolfgang Gerhard “é
seu pai”. (Folha de São Paulo, 08 e 12 junho de 1985).
135
Lowell Levine, Ellis R. Kerley e Ali Hameli e os professores Richard Helmer, Rolf Endris e A. Schult,
respectivamente.
136
O Centro Simon Wiesenthal foi fundado em 1977, em Los Angeles, nos Estados Unidos e seu nome é uma
homenagem a um sobrevivente dos campos de concentração nazistas, cuja vida, com o fim da guerra, foi
169
“Os ossos foram retirados da cova por um coveiro que os entregava na mão
do médico José Antônio de Melo que, em seguida, os colocava no recipiente
utilizado para o transporte de cadáveres. Os restos da urna foram deixados
dedicada a “caçar nazistas” que haviam fugido da Europa com identidades falsas. A instituição atua em prol dos
direitos humanos, contra antissemitismo, racismo, terrorismo e genocídios. Para ver, acesse:
http://www.wiesenthal.com/site/pp.asp?c=lsKWLbPJLnF&b=6212365.
137
Segundo indicam os protocolos, primeiramente, é preciso retirar, com a enxada, o excesso de terra, até que se
possa vislumbrar o caixão, dentro da cova. Em seguida, com cuidado e uma pá de pedreiro, o restante de terra
deve ser removido, delicadamente, sem que a madeira da urna seja danificada. Caso o ataúde ainda esteja em
bom estado, a melhor técnica a ser empregada é a do içamento do caixão. Em casos de avançado estado de
deterioração da madeira e com riscos de os restos mortais serem violados, o médico legista deve entrar na
sepultura, abrir o tampo do caixão, fotografar a disposição dos ossos e, só então, retirá-los com cuidado,
preservando fragmentos ósseos ou partículas presas na mortalha do cadáver. Feito esse procedimento, os ossos
devem ser removidos e enviados aos IML.
170
138
Somente com a chegada dos peritos estrangeiros é que os 208 ossos da ossada exumada foram remontados.
Segundo “informações obtidas no IML dão conta de que todos os 208 ossos normais de um esqueleto humano,
recuperados na exumação, estão dispostos sobre uma mesa de uma sala no terceiro andar do prédio, sem
compor um esqueleto. (...). Os especialistas brasileiros também preferiram aguardar a chegada dos estrangeiros
para decidir se o esqueleto do suposto Josef Mengele será ou não montado” (Folha de São Paulo, 16 de junho
de 1985, p.11).
139
O Simon Wiesenthal Center dispunha de um importante material investigativo sobre a vida de Josef Mengele.
Registros oficiais dos arquivos da SS e prontuários médicos de Mengele foram paulatinamente recolhidos pela
entidade e foram centrais no processo de identificação. Por meio deles, fotografias, mas também dados de
possíveis fraturas contidas nos ossos de Mengele, em função de um acidente sofrido por ele, em Auschwitz,
puderam ser comparados à ossada exumada em Embu. Uma ficha dentária de 1937 de Mengele foi cedida pela
polícia alemã e radiografias dentárias cedidas por dentistas brasileiros que teriam consultado Gerhard no Brasil
também foram utilizadas durante a feitura dos exames.
140
O casal austríaco Wolfram e Liselotte Bossert vivia em São Paulo e foi responsável por ajudar Mengele a
assumir, no Brasil, a identidade de um amigo austríaco da família de nome Wolfgang Gerhard, que havia morado
no Brasil e voltado para a Áustria, deixando para trás seus documentos pessoais.
171
Foi graças a essa lesão e “por iniciativa exclusiva do referido diretor, Rubens Brasil
Maluf”, que Badan Palhares, em função de sua formação acadêmica, foi designado o
anatomopatologista oficial e competente a responder ao “ofício 0178/85/GSR/SP”,
protocolado no IML e datado de 22 de agosto de 1985. Como destacou Rubens Brasil
Maluf141, em declaração assinada e com firma reconhecida junto ao 2º Serviço Notorial de
Campinas, em 03 de dezembro de 2000:
141
As informações biográficas sobre o médico-legista Rubens Brasil Maluf são bastante esparsas. Aquilo que
foi possível reunir sobre sua carreira está baseado em dados retirados de entrevistas com outros legistas do IML,
reportagens jornalísticas e informações cedidas por Caco Barcellos ao livro de Janaína Telles (2001). Segundo
tais materiais, Rubens Brasil Maluf foi funcionário do IML de Campinas, provavelmente entre 1975 e 1983,
momento no qual foi designado diretor do IML de SP. Como diretor da corporação, ele foi o primeiro chefe da
instituição a permitir que pesquisas fossem realizadas junto aos arquivos da instituição, depois de longos
períodos de ditadura militar. (BARCELLOS apud TELLES, 2001). Como diretor do IML do estado de São
Paulo, Rubens Brasil Maluf substituiu Harry Shibata e ficou sob o comando do Instituto até maio de 1988,
172
“o Dr. Rubens Brasil Maluf foi colega com a gente aqui, trabalhou com a
gente. Inclusive quando ele foi escolhido pra ser chefe, nós fomos até São
Paulo. Foi uma comissão de legistas. Falamos com o Secretário da
Segurança [para indicá-lo] como chefe do IML do estado [trecho
inaudível] e o cara nos ouviu. (Entrevista realizada em abril de 2015).
Vista por esse ângulo, a designação de Badan Palhares para a perícia do crânio do
cadáver identificado como sendo Josef Mengele, por “iniciativa exclusiva” de Rubens Brasil
quando pediu exoneração do cargo. Antes de comunicar sua saída ao secretário de Segurança Pública Luiz
Antônio Fleury Filho, Brasil Maluf já havia sido afastado em função das críticas contundentes ao mencionado
secretário devido à falta de funcionários e equipamentos para o IML. Em 1989, mesmo já estando aposentado foi
investigado pelo governo do estado, depois que o deputado estadual do PT, Roberto Gouveia, em maio de 1988,
acusou-o de extrair hipófises de cadáveres e contrabandeá-las para os EUA. Rubens Brasil Maluf foi inocentado
das acusações pelo governo do estado de São Paulo por faltas de provas conclusivas. Não obtive dados pessoais
confiáveis de Brasil Maluf, tais como data de nascimento, formação acadêmica e especialidade médica ou data
de falecimento. Neves, em entrevista em 2015, afirmou que o médico-legista já havia falecido e destacou sua
exemplar conduta como legista. Seguindo as indicações dos jornais, no momento em que foi diretor da
corporação, Brasil Maluf tinha entre 57 e 61 anos (Folha de São Paulo, 10 de maio de 1988, p. 11; 06 de agosto
de 1991, p.4).
142
Sem nomear com exatidão, nem em sua autobiografia, nem em seu site oficial, a identidade do “especialista
norte-americano” que havia questionado parte das conclusões apresentadas pela primeira perícia – realizada
junto ao IML de São Paulo –, Badan Palhares cita em sua autobiografia, apenas, uma entrevista concedida por
Romeu Tuma ao jornal campineiro Diário do Povo, em 6 de setembro de 1985: “O senado americano vem
solicitando, através do Setor de Investigações de Justiça dos Estados Unidos, que seja apresentado um relatório
até o final do mês sobre as conclusões do Caso Mengele. O congresso americano quer deixar os americanos e
principalmente os judeus que moram lá bem informados sobre o caso”. (...). “O prazo será o doutor Palhares
que fará” (PALHARES, 2007, p.110).
173
Maluf, ganhava contornos bastante específicos. A designação oficial reunia, num mesmo
ofício, competência, formação profissional e relações pessoais.
Em posse do crânio retirado da sepultura 321, quadra 3, Badan Palhares, em “função
de [ser] professor e chefe do Departamento de Medicina Legal” na Faculdade de Ciências
Médicas da Unicamp, achou pertinente fazer um convite para que especialistas de diversas
áreas – químicos, odontologistas e engenheiros – assistissem ao estudo designado a ele por ser
“médico efetivo do IML”. Como salienta Palhares (2007), para levar o crânio para as
dependências da Unicamp, ele pessoalmente se reuniu com o reitor da Unicamp, Carlos Vogt.
Nessa reunião, enfatizou ao reitor “a grandeza daquele trabalho” e pediu seu apoio para que
a universidade “por meio do departamento”, dirigido pelo próprio Badan Palhares,
participasse das investigações junto à ossada. Em resposta, segundo Palhares, “Vogt
reconheceu ali a oportunidade de demonstrar a expertise do DMLE e autorizou o ingresso
da Unicamp no caso” (PALHARES, 2007, p.110-111). Com a aprovação da reitoria, Badan
Palhares reuniu uma comissão acadêmica143 com o intuito de construir uma “metodologia de
trabalho” e realizar o estudo a ele designado.
Em contraste à grande repercussão midiática durante os processos de identificação de
Mengele ocorridos em São Paulo, nos meses nos quais o crânio de Mengele esteve em
Campinas, as notícias de divulgação sobre mencionados procedimentos foram raras. A
manchete “IML de Campinas faz novo exame em ossos de Mengele”, divulgada pela Folha de
São Paulo, em setembro de 1985, insinuava uma polêmica. Oriunda da “Reportagem Local”,
a matéria apresentava um curto cabeçalho contando sobre a chegada do crânio ao IML de
Campinas, aos cuidados de Badan Palhares. Além disso, a redação era enigmática sobre as
primeiras descobertas da equipe campineira em torno da ossada;
143
Entre esses convidados estavam seu colega de departamento Dr. Nelson Massini, o professor Dr. Celso F. de
Arruda, da Faculdade de Engenharia da Unicamp, o professor Dr. Marcelo Costa Souza, do Centro de
Comunicação da Unicamp, além de técnicos de diversas instituições – Centro de Comunicações, do DMLE, do
Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Telecomunicações Brasileira S.A. (Telebras) e do Laboratório de
Química da Unicamp.
174
“Não foram necessárias muitas explicações técnicas para que Tuma, que
era o delegado responsável pelo caso e, portanto, o único que poderia
autorizar qualquer procedimento com aquele crânio – embora a peça
estivesse sob a guarda do IML de São Paulo – entendesse a importância da
proposta. A iniciativa foi recebida com entusiasmo e aprovada, e fui
autorizado a permanecer com a ossada para a nova empreitada”
(PALHARES, 2007, p. 112).
145
Em sua autobiografia Badan Palhares (2007) também cita seu conhecimento de outros trabalhos da literatura
especializada sobre o tema de reconstituição facial. Para tanto, ele ilustra para o leitor quem seria Betty Pat
Gatlif, com sua foto junto à reconstrução facial do faraó egípcio Tutankamon e das pesquisas realizadas pela
autora que resultou na reconstrução facial de um menino, assassinado na Flórida, nos Estados Unidos. Seus
estudos levaram, segundo Palhares (2007), à prisão do autor do assassinato. Além disso, o trabalho de
reconstituição do busto do faraó Tutankamon foi fruto de um trabalho coletivo, realizado em parceria com Clyde
Snow, um dos especialistas presentes na identificação de Mengele, em São Paulo. Também uma foto de Badan
Palhares com Gatlif, em Boca Rauton, EUA, foi divulgada pelo autor em sua autobiografia.
146
Nelson Massini graduou-se em odontologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), em
ciências jurídicas pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e em medicina pela Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Fez seu mestrado e doutorado em odontologia-farmacologia
pela Universidade Estadual de Campinas e defendeu sua livre-docência pela Universidade de São Paulo, em
1986. Durante sua carreira acadêmica, atuou como professor associado da Faculdade de Direito da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), como professor colaborador, entre 1976 e 2003, na UNICAMP e em diversas
universidades e faculdades privadas do interior de São Paulo. Desde 1999, Massini efetivou-se como professor
titular da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Sua vasta experiência na área de medicina legal, com
ênfase em criminologia foi consolidada por inúmeros casos de repercussão por ele investigados. Entre eles:
Mengele, crime da Rua Cuba, os assassinatos de Stuart Angel Jones e de Zuzu Angel, Chico Mendes e, mais
recentemente, o caso envolvendo a menina Isabela Nardoni, morta na casa de seu pai, em 2008, depois de ser
parcialmente esganada e arremessada pela janela do apartamento. Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá
(madrasta da menina) foram acusados e condenados pelo assassinato. Para ver mais: TOGNOLLI (2012) e
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4761501P7.
147
Eduardo Daruge nasceu em 1933, na cidade de Ribeirão Preto, e faleceu em 2015. Durante sua carreira foi
professor titular da Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), campus pertencente à Universidade Estadual
de Campinas, na qual foi responsável pela cadeira de odontologia legal e deontologia, de 1962 a 2010. Formado
pela Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto, pertencente à Universidade de São Paulo, e em Direito pela
Faculdade Metodista de Piracicaba (UNIMEP), Daruge foi referência na área forense, em função das mais de
cinco mil perícias realizadas durante sua carreira profissional. Além disso, especialista em deontologia, ele atuou
como perito judicial nas áreas de biologia e de odontologia, no Fórum de Piracicaba. Ao longo de sua vida,
Daruge recebeu inúmeros títulos honorários de entidades importantes à medicina e à odontologia forenses, como
aqueles concedidos pela Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de São Paulo, pela Sociedade Paulista de
História da Medicina e pela Associação Brasileira de Odontologia. Em 2013, a Câmara de Piracicaba lhe
concedeu um título de cidadania devido a sua enorme dedicação à cidade e à FOP. Para ver mais: VIERA, 06 de
março de 2015 e http://www.unicamp.br/unicamp/noticias/2015/08/17/unicamp-perde-o-professor-eduardo-
daruge-da-fop.
176
148
O artista plástico Marco Antônio Cavallari, ele nasceu em Piracicaba, no interior de São Paulo. Entre 1965 e
1968, foi aluno da Escola Panamericana de Arte de São Paulo e do Instituto Elly Krayer Krauss, também sediado
na capital. A especialidade em desenhos artísticos e esculturas rendeu ao artista plástico prêmios, menções
honrosas e muitas publicações em livros, revistas, catálogos e jornais. Para ver mais informações:
http://www.mcavallari.com.br/studio.htm.
177
Fonte: http://www.badanpalhares.med.br/artigos_publicacoes/caso_menguele/menguele_fotos.htm.
“Esta cópia a ser exibida pelo diretor da Polícia Federal, delegado Romeu
Tuma, no início de março, segundo previu ontem o principal responsável
pela reconstituição do rosto, o médico-legista Nelson Massini.
- Não é verdade que tenhamos reconstruído o rosto de Mengele por
encomenda dos Estados Unidos ou de Israel. Este foi um trabalho
acadêmico, o primeiro feito no Brasil, para mostrar que é possível chegar
à identificação de um cadáver pela reconstituição das partes moles de um
rosto sobre um crânio em razoável estado de conservação. Eu pessoalmente
gastei Cr$ 12 milhões de meu próprio bolso e toda a equipe trabalhou de
179
graça, dedicadamente, uma média de quatro horas por dia – disse Massini,
em Piracicaba” (Jornal do Brasil, 15 de fevereiro de 1986, p. 9).
Fonte: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1986/03/30/2/
149
Daniel Romero Muñoz nasceu em 1946, em São Paulo. Fez graduação na Faculdade de Medicina de Santos
em meados dos anos 70. Realizou sua residência em clínica médica e hematologia no Instituto Nacional do
Ministério da Previdência Social e sua especialização em medicina do trabalho pela Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp). Concluiu seu mestrado e seu doutorado em patologia pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo (USP). Profissionalmente, atuou em diversas funções do Instituto Medico Legal de
São Paulo: médico-legista, chefe do setor de biologia forense, legista no necrotério e no setor de antropologia
forense. E também consolidou sua carreira na FMUSP, como auxiliar de ensino, professor assistente, professor
livre docente e professor titular, em 2006. Como docente, ministrou cursos de medicina legal na Faculdade de
181
Medicina de Santo Amaro, do ABC, e foi professor adjunto de medicina legal e bioética na Faculdade de
Ciências da Santa Casa de São Paulo. Além de uma consolidada produção científica – artigos, capítulo de livros
e muitas orientações – Muñoz ganhou notoriedade por casos de relevância e repercussão como Mengele, Ulisses
Guimarães, identificação das vítimas do acidente aéreo ocorrido em São Paulo com o avião da TAM e PC Farias.
Durante sua carreira, também exerceu cargos em associações e sociedades destinadas às ciências forenses e à
ética. Para ver mais: http://www.academiamedicinasaopaulo.org.br/biografias/248/BIOGRAFIA-DANIEL-
ROMERO-MUNOZ.pdf.
150
A identificação de seus ossos, bem como, as técnicas de sobreposição de imagens, realizadas antes mesmo do
crânio de Mengele chegar a Campinas, ganhavam destaque na curadoria e no ensaio, “La calavera de Mengele:
el advenimiento de uma estética forense”, escrito por Thomas Keenan e Eya Weizman. O material do livro era
fruto de conversas informais dos autores com Erin Stover sobre as investigações realizadas junto ao IML de São
Paulo e da análise dos arquivos pessoais de Richard Helmer sobre o caso.
182
existiu no Brasil”. Nem o IML de Campinas, nem a Unicamp foram mencionados durante a
matéria jornalística. Contudo, o mesmo “orifício circular” foi, novamente, descrito por
Muñoz durante as gravações. Dessa vez, a lesão foi apresentada como oriunda de uma
provável drenagem realizada em função de uma infecção ou sinusite sofrida por Mengele.
Sinusite ou infecção que só poderia, portanto, ter ocorrido em vida. Sua explicação, porém,
não parecia ter base no laudo formulado por ele e seus colegas do IML de São Paulo. Sua
afirmação parecia ter uma fonte não declarada: o laudo assinado por Badan Palhares e a curta
estadia do crânio de Mengele em terras campineiras. A suposta lesão decifrada por Palhares,
durante os anos 90, seria uma das inúmeras artimanhas responsáveis pela conceder uma
inusitada, incômoda e meteórica visibilidade e fama a Palhares. Ou seja, a contragosto de
muitos e, mediante artifício políticos, o legista seria nomeado por jornais e revistas como
responsável não pela “reconstituição facial”, mas pela “identificação” de Mengele.
Para o telespectador leigo, contudo, a ossada sempre residiu, exclusivamente, desde a
sua exumação até a sua identificação, no segundo andar do prédio do IML de São Paulo. Para
mim, era bastante elucidativo que a “caveira de Mengele” encontrasse, por fim, sua última
“morada”: ficaria exposta, integralmente, junto à Faculdade de Medicina da Universidade de
São Paulo (USP) e à disposição de estudantes que são formados em medicina legal pelo
Instituto Oscar Freire. Talvez, também, as cabeças esculpidas em cera estejam lá guardadas,
empoeiradas e esquecidas.
O caso Mengele, nesse sentido, era uns dos primeiros capítulos de uma outra novela
política, institucional e acadêmica. Um universo habitado por disputas, contenciosos e
apagamentos que se desdobram em novos casos, vivenciados por velhos conhecidos. Ou seja,
a identificação de Mengele funciona, aos meus interesses de pesquisa, como espécie de ponto
nodal e de início para deslindar outros fios que constituem as tramas (GREGORI, 1999)
envolvendo Badan Palhares, DMLE, UNICAMP, Instituto Oscar Freire e USP.
“(...)Nada mudou.
Só chegou mais gente,
e às velhas culpas se juntaram novas,
reais, impostas, momentâneas, inexistentes,
mas o grito com que o corpo responde por elas
foi, é e será o grito da inocência
segundo escalas e registros sempiternos. (....) ”
(SZYMBORSKA, 2011, p.79-80).
184
No dia 4 de setembro de 1990, a vala de Perus foi, mais uma vez, aberta. Sob os
flashes e os olhares de familiares de desaparecidos, entidades de proteção dos direitos
humanos, servidores do cemitério, da Polícia Militar e da Defesa Civil, a vala “irregular,
ilegal e clandestina” exibia os sacos pretos, sem identificação externa e em avançado estado
de deterioração. A vala foi a solução encontrada para acondicionar as sistemáticas exumações
ocorridas a partir de 1974 e autorizadas por diferentes administradores do cemitério Dom
Bosco151. Tratava-se, apenas, de um melhor aproveitamento dos terrenos disponíveis à venda.
Os “indigentes” ali enterrados, por consequência, precisavam ser retirados e realocados (CPI
Perus – Desaparecidos Políticos, 1990).
A exumação em massa da Gleba 1, quadras 1 e 2, havia resultado num amontoado de
sacos plásticos, acondicionados precariamente junto às salas de velório da necrópole. Depois
de meses guardadas de forma “precária”, o Serviço Funerário determinou que as ossadas
fossem novamente reinumadas. Com o auxílio de uma retroescavadeira, uma vala de trinta
metros de comprimento, cinquenta metros de largura e quase dois metros de profundidade, foi
aberta no cemitério Dom Bosco. (Programa Lugares da Memória. Cemitério Dom Bosco -
Vala de Perus. Memorial da Resistência de São Paulo, 2014).
Por muitos anos, a vala, construída sem alvenaria e sem os requisitos básicos
indicados, permaneceu oculta. (INSTITUTO MACUCO, 2012, p.168). Denunciada a Caco
Barcellos pelo administrador do cemitério Dom Bosco, Antônio Pires Eustáquio, a vala viria a
se somar às extensas e impactantes investigações empreendidas pelo jornalista sobre vítimas
fatais, assassinadas pela Polícia Militar (PM) de São Paulo, entre os anos de 1970 e 1992 152.
Enquanto um projeto político municipal e estadual, todos os relatórios apresentados pela
151
Como afirmou em entrevista o Dr. Eduardo Zappa, médico-legista aposentado do Instituto Médico Legal de
Campinas, nessas necrópoles é comum que corpos enterrados por um período de mais de três anos sejam
removidos de suas sepulturas e reorganizados em ossários. Estes últimos, previstos e construídos verticalmente
no próprio cemitério, são divididos em gavetas e urnas. Em geral, as exumações ocorrem quando o cemitério
está com lotação máxima e precisa que as sepulturas sejam reutilizadas. O procedimento é simples: o corpo é
retirado da sepultura e alocado em um saco plástico. Este, por sua vez, recebe uma etiqueta com as identificações
numéricas do cadáver enterrado. Num livro que deve permanecer na administração do cemitério, as exumações
devem ser devidamente anotadas: “o nome do cadáver e/ou o número recebido por ele no IML, seu
sepultamento (quadra) e o local no qual os ossos foram depositados”. (Entrevista realizada em setembro de
2016).
152
O estudo reuniu reportagens do jornal “Notícias Populares”, documentos arquivados junto ao IML de São
Paulo, depoimentos de familiares de vítimas executadas pela PM, processos arquivados junto à Auditoria Militar
de São Paulo e papéis oficiais forjados pela Polícia Civil e pela Justiça Civil. O resultado foi um Banco de Dados
que, até abril de 1992, possuía a identificação, com um rápido perfil, de 4.179 mortos em supostos confrontos ou
tiroteios com a PM (TELLES, 2001). O investimento de mais de sete anos de trabalho foi, mais tarde, em 1992,
publicado através do livro-reportagem “Rota 66: a polícia que mata”. Como destaca Aderaldo (2008, p. 89), foi
“a escrita do rota 66 que colocou o repórter [Barcellos] em evidência, permitindo a ele maior articulação entre o
modelo de jornalismo praticado na imprensa escrita, com maior liberdade de tempo e grande utilização de fontes
primárias, e o telejornalismo”.
185
Comissão da Verdade do estado de São Paulo “Rubens Paiva” (2015) e pela CPI Perus –
Desaparecidos Políticos (1990) destacam a estreita relação entre a construção do Cemitério
Dom Bosco, em Perus, e a ocultação sistemática de cadáveres na cidade de São Paulo,
especialmente entre os anos de 1971 a 1976153.
Com a enorme exposição em torno da reabertura da vala, a prefeitura de São Paulo,
sob o comando Luiza Erundina, assumiu a responsabilidade sob a vala, uma vez que o
cemitério Dom Bosco era um cemitério público de incumbência municipal. No dia 05 de
setembro de 1990, por 28 votos a 0, a Câmara de Vereadores de São Paulo criava a Comissão
Parlamentar de Inquéritos dos Desaparecidos, com vistas a “apurar a origem e as
responsabilidades sobre as ossadas encontradas no cemitério Dom Bosco, em Perus e
investigar a situação dos demais cemitérios de São Paulo” (CPI Perus – Desaparecidos
Políticos, 1990, p.1)154.
Mais uma vez, ossos e restos humanos dariam visibilidade nacional à perícia médico-
legal realizada no interior paulista, sob os cuidados de Badan Palhares. Se no caso Mengele,
sua convocação respondia à confrontação técnica do laudo expedido pelo IML da capital em
relação à fístula no crânio identificado, agora, respondia à pressão de familiares e parentes de
mortos e desaparecidos políticos que exigiam o afastamento de instituições diretamente
ligadas à implementação e manutenção do regime ditatorial no Brasil. A descoberta da vala e
as suspeitas de que ao menos seis desaparecidos políticos estariam ali inumados colocavam
empecilhos morais e éticos ao destino burocrático resguardado a essas ossadas: o IML de São
Paulo.
O envolvimento do diretor do IML, Harry Shibata155 e, de outros legistas do IML de
São Paulo, com a produção de laudos falsos e o translado de corpos ao cemitério de Perus, foi
153
Assim, enterrados quase sempre sem pompas, os cadáveres acondicionados em glebas e quadras do Cemitério
Dom Bosco majoritariamente careciam de identificação, trajes mortuários e/ou registros funerários precisos. Para
ver mais sobre a construção do cemitério de Perus, ir ao anexo IV.
154
A CPI requerida pelo vereador Júlio César Caligiuri Filho e composta por mais seis membros - Teresa Lajolo,
Ítalo Cardoso, Aldo Rabelo, Antonio Carlos Caruso, Marcos Mendonça e Oswaldo Gianotti - foi nomeada pelo
presidente da Câmara de Vereadores Eduardo Matarazzo Suplicy. Durante aproximadamente seis meses,
sepultadores, administradores, superintendentes, legistas e políticos responsáveis pelas obras de construção do
cemitério Dom Bosco foram intimados e seus depoimentos gravados e transcritos em relatórios. Para ver mais,
Azevedo (2016).
155
Harry Shibata foi médico-legista lotado no Instituto Médico Legal de São Paulo, entre os anos de 1956 e
1983, e, entre os anos de 1976 e 1983, assumiu a diretoria da instituição. Ele foi acusado de produzir inúmeros
laudos falsos de necropsia, cujas conclusões ocultavam técnicas de tortura empreendidas contra os cadáveres por
ele necropsiados, a real causa da morte, bem como a identidade civil dos mesmos (ver anexo IV). Em entrevista
que realizei com Neves, ele não só mencionou o nome de Shibata como se certificou de comentar sobre a perda
de seu registro junto ao CRM de São Paulo, devido às sistemáticas denúncias contra ele. Em 1985, antes das
denúncias, Shibata foi chamado por Romeu Tuma para atuar como médico-legista da polícia federal. Em sua
autobiografia, Badan Palhares (2007) apresenta Shibata como “um dos profissionais mais cultos das ciências
186
o argumento central para que as ossadas não fossem identificadas na instituição. Em artigo
publicado em 2001, no Jornal da Unicamp, na “Edição Especial: Projeto de Perus passado a
limpo”, Ivan Seixas afirma:
Dois dias depois do ocorrido, contudo, uma reportagem no mesmo jornal afirmava que
o secretário de Segurança Pública de São Paulo, Antônio Carlos Mariz de Oliveira, havia
designado o delegado Jair Cezaria da Silva para presidir o inquérito policial sobre as ossadas
encontradas. Na mesma matéria jornalística, a “Reportagem Local” informava que o
governador do estado de São Paulo, Orestes Quércia, entendia as “razões” de familiares de
desaparecidos políticos e entidades de direitos humanos, entretanto, “o IML tem que
forenses” que ele conheceu. Além disso, não poupa elogios a sua personalidade atenciosa e sempre disponível;
“recebeu-me inúmeras vezes em seu gabinete para discutir minhas dúvidas nos casos que atendia. Sem entrar
nos méritos das denúncias (...) afirmo que a medicina legal brasileira perdeu, sem dúvida, um grande estudioso
da área com seu afastamento da vida pública” (PALHARES, 2007, p. 80).
187
participar [dos exames de identificação] e vai participar porque é um instituto oficial” (Folha
de São Paulo, 08 de setembro de 1990, p.9).
A frase publicada entre aspas, indicando que a mesma foi proferida tal como o
governador disse à “Reportagem Local”, era parte do texto jornalístico cuja manchete
afirmava “Entidades vão fiscalizar o IML, diz o governador”. Junto à reportagem, a foto de
Badan Palhares, segurando o crânio de uma das ossadas exumadas na vala de Perus, ilustrava
a informação divulgada pelo periódico, na mesma data, em ato contínuo:
órgão. Segundo Badan Palhares (2007), era exatamente seu duplo vínculo – médico-legista do
IML de Campinas e professor e chefe do DMLE – que lhe dava condições de assumir a
identificação das ossadas de Perus. Como descreve, com minúcia, José Eduardo Bueno
Zappa156, integrante da equipe designada por Badan Palhares, “legalmente, a tarefa caberia
ao Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, pois Perus está dentro da área de cobertura
do órgão”. O passado de cumplicidade do órgão e de alguns de seus funcionários, ainda na
ativa, com a ditadura militar inviabilizavam os encaminhamentos convencionais e
obrigatórios. A pressão exercida por familiares e organismos ligados à defesa dos direitos
humanos exigia, portanto, uma solução viável. Diante do “prestígio tanto em nível nacional
quanto internacional” de que gozava o Departamento de Medicina Legal e Ética (DMLE), o
encaminhamento das ossadas para a UNICAMP aparentemente resolvia a querela. Mas, como
alertava Zappa,
156
José Eduardo Bueno Zappa fez sua graduação e seu doutorado em medicina pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP). Sua tese, na área de medicina legal e deontologia, foi defendida em 1994, sob
orientação de Badan Palhares. Profissionalmente, Zappa atuou como professor doutor da UNICAMP e como
professor colaborador ou celetista em diversas universidades: Centro Universitário Salesiano de São Paulo,
Universidade São Francisco, Faculdade Bandeirantes de Medicina e Centro Médico de Campinas. Além da
docência, Zappa ocupou o cargo de médico legista no IML de Campinas. Atualmente é sócio diretor, ao lado de
Badan Palhares, do Instituto de Patologia de Campinas (IPC) e sócio do International Academy of Pathology –
divisão brasileira. Seu currículo destaca, ainda, inúmeros prêmios e menções honrosas na área. Para ver mais:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4584322T8.
189
157
O governo do estado assumia a “guarda das ossadas humanas”, bem como aceitava fornecer apoio pessoal e
técnico às pesquisas a serem realizadas. Em função dos contenciosos, também, se incumbia da “proteção
contínua ao prédio onde os trabalhos se realizarão, bem como a todos os que estiverem trabalhando no local”.
Já o município, na figura da prefeitura, ficava responsável por: “fornecer todos os recursos necessários de que a
equipe de peritos possa necessitar para aprimoramento nas perícias em todos os níveis nacionais e
internacionais” (PALHARES, 2007, p.122).
158
Em sua autobiografia Palhares (2007) destina um capítulo inteiro para descrever, em detalhes, seu empenho
em redigir e encaminhar ao Ministério da Justiça, em 1996, um aditivo ao convênio entre a Unicamp, o estado e
a prefeitura de São Paulo, assinado em 22 de novembro do ano de 1990. O aditivo foi digitalizado integralmente
pelo próprio Palhares e está disponível em seu site pessoal. Os papéis encaminhados, bem como as negociações
em torno de uma verba de 150 mil reais, formam um compêndio de praticamente cinquenta digitalizações.
Chama atenção nessa papelada, o esforço de Palhares por conseguir recursos que seriam revertidos para o custeio
de recursos humanos, complementação salarial, aquisição de material de consumo e despesas em viagens e
gastos adicionais que se fizessem necessários. O aditivo cumpriu seu trâmite administrativo nas instâncias da
Unicamp: na Congregação e no Conselho de Extensão Universitária. Em ambas as instâncias, o novo convênio
foi deferido. Contudo, em 02 de setembro de 1996, os trâmites foram interrompidos em função do ofício
redigido pelo deputado estadual Renato Simões, cujo conteúdo nos termos de Palhares (2007, p.136), consistia
em “acusações descabidas”. Palhares não descreve tais acusações. Apenas insinua que a mesma foi arquitetada
como uma perseguição direcionada exclusivamente a sua coordenação ao Projeto Perus. Isso porque, segundo
Palhares (2007), após seu afastamento, a mesma proposta foi reencaminhada à Comissão de Extensão da
Universidade. Todavia, “devido à demora na tramitação, causada pelas interferências, os recursos não foram
liberados pelo Ministério da Justiça” (PALHARES, 2007, p.137).
190
159
Para mais detalhes sobre a biografia dos militantes políticos identificados pelo DMLE, ver anexo IV.
160
Não foi possível recuperar os nomes de todos os envolvidos no trabalho de catalogação e identificação dos
restos mortais encontrados na vala clandestina. Em seu relatório, Zappa destaca que a equipe era composta por
cinquenta profissionais entre “professores, médicos, dentistas, alunos e funcionários tanto da UNICAMP quanto
de outras instituições”. Enquanto que ao final dos trabalhos, em 1997, ele contava com uma equipe de quatro
membros: “(...) foram também, convidados professores e membros de outras Universidades e Faculdades que
tinham Departamentos de Medicina Legal, porém, não obtivemos respostas” (ZAPPA, 1997, p.6).
191
A catalogação das mais de mil ossadas realizada no próprio cemitério Dom Bosco foi
noticiada pela Folha de São Paulo, no dia 22 de novembro de 1990, com a manchete “ONU
pede relatório sobre as ossadas”. Segundo as informações contidas no corpo do texto, a
catalogação era uma “exigência da Prefeitura para que a transferência [das ossadas para a
Unicamp fosse] feita” (Folha de São Paulo, 22 de novembro de 1990, p. 7). Na mesma
reportagem, a assessoria da prefeitura teria divulgado as previsões de Nelson Massini de que a
catalogação estaria finalizada até o dia 23 de novembro de 1990.
As ossadas, contudo, só foram transferidas definitivamente para os laboratórios do
DMLE da Unicamp no dia 01 de dezembro de 1990162. Já na Unicamp, as ossadas foram
submetidas a novas investigações. Dessa vez, pesquisas relacionadas às características
antropométricas clássicas – sexo, altura, raça, idade – foram executadas em cada uma das
ossadas exumadas163.
Para tanto, como salienta Zappa (1997) em seu relatório, um levantamento
bibliográfico foi realizado e “um treinamento específico para a equipe” foi realizado
161
O número de ossadas catalogadas é impreciso. Os veículos de mídia impressa e os próprios peritos envolvidos
quantificam diferentemente as ossadas catalogadas e aquelas analisadas junto aos laboratórios da Unicamp. Os
números oscilam entre 1.000 e 1.400 ossadas. Os valores de maior recorrência são os de 1.049 e 1.062 ossadas.
162
O translado das ossadas foi acompanhado pela prefeita Luiza Erundina e outros políticos de renome, como o
deputado federal e presidente do Partido dos Trabalhadores à época, Luiz Inácio Lula da Silva. Uma fotografia
publicada no “1º Caderno”, do Jornal do Brasil, destacava Lula e a prefeita ao lado de Badan Palhares (Jornal
do Brasil, 02 de dezembro de 1990, p. 34).
163
Como informou Zappa (1997, p. 11) “a equipe foi subdividida em grupos, sempre com um perito experiente
como responsável, e o trabalho de abrir cada saco, examinar detalhadamente cada osso e extrair todos os
dados necessários foi iniciado”.
192
(ZAPPA, 1997, p. 10). O intuito era elaborar um “protocolo”, em que dados clássicos
antropométricos pudessem ser extraídos de cada ossada, assim como outros elementos
fundamentais a uma possível identificação. Entre eles, tipos e localização das fraturas pré e
post-mortem visíveis nos restos humanos, defeitos congênitos, aspectos dentários, fraturas
consolidadas ou lesões que pudessem sugerir morte por projeteis de arma de fogo etc. Assim,
diante da escassa produção nacional, para cada um dos parâmetros – sexo, altura, raça, idade –
ângulos, tabelas e dados qualitativos foram construídos através de diferentes materiais
internacionais sobre o tema. Elaborado o protocolo, a equipe também formulou um
“questionário” encaminhado aos familiares de presos desaparecidos, com o objetivo de
recolher dados pessoais, fotografias, exames ortodentários ou radiográficos que auxiliassem
nas comparações a serem conduzidas164.
Em sua entrevista, Zappa afirmou que, naquele momento, a tecnologia era muito
insipiente. Muitas informações eram escritas em cartolina e colocadas à vista para que os
dados não se perdessem. Mais tarde, com um computador cedido ao DMLE, as informações
foram, paulatinamente, incorporadas a um banco de dados, num programa computacional
desenvolvido para aquela funcionalidade, por um analista de sistema cedido pelo centro de
comunicações da reitoria (PALHARES, 2007). Zappa me alertou, ainda, que o pioneirismo
daquele projeto foi responsável pela pouca produção material em relação aos estudos:
relatórios, projetos de pesquisa, artigos etc. As lembranças compartilhadas pelo legista,
contudo, só se tornaram visíveis para mim através do programa “Vem Comigo”, apresentado
por Goulart de Andrade e reexibido pela TV Gazeta, em 2013165. Em tal programa, as
164
Não há informações precisas sobre o treinamento fornecido à equipe, nem obtive cópia dos arquivos
denominados “protocolo” e do “questionário” desenvolvidos e indicados por Zappa (1997) como “anexo I” e
“anexo II”. Entre os papéis reunidos por Badan Palhares, na aba “Documentos Ossadas”, em seu site pessoal,
tais formulários não foram digitalizados. Ainda que não seja possível saber com certeza se os protocolos e
questionários não foram digitalizados ou se eles não foram disponibilizados ao público em geral, como me
alertou Julian Simões, em conversas pessoais, tais papéis são, fatalmente, conflitivos. Todos eles poderiam, por
exemplo, permitir que os questionamentos e descontentamentos já em curso contra a atuação do DMLE na
identificação das ossadas fossem redimensionados. Nesse sentido, não disponibilizar os procedimentos
propriamente técnicos ou os recursos científicos utilizados na identificação das ossadas são estratégias bastante
similares aquelas desenvolvidas por instâncias estatais. Ou seja, tais estratagemas podem ser vistos como uma
forma de controlar as informações que se pretender divulgar sobre esses estudos e seus percalços. Voltarei a tais
argumentos nas notas finais desta tese.
165
Goulart de Andrade ficou conhecido por suas reportagens polêmicas, inusitadas e irreverentes. O bordão
característico “Vem comigo” apostava na figura do jornalista investigativo que não hesita a percorrer os mais
inusitados lugares: de obras realizadas no esgoto da cidade a casas de massagem. A gravação original foi
produzida por Goulart de Andrade, no ano de 1993, sob o título “Medicina Forense”. A reportagem, de
aproximadamente cinquenta e cinco minutos, assume um tom quase biográfico, uma vez que Goulart de Andrade
se utiliza da carreira e dos casos periciais assinados por Badan Palhares para apresentar ao espectador o ofício de
legista. Entre os anos de 2012 e 2016, o “Vem comigo” foi reeditado, também pela TV Gazeta, com intuito de
servir de uma espécie de laboratório para jornalistas em formação pela Faculdade Cásper Líbero. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=Lm6jetvhJjg. Acessado em: 14 de março de 2017.
193
168
Por falta de outros elementos, não posso reconstruir todas as supostas técnicas de identificação utilizadas pelo
DMLE de Campinas. O caso de Frederico Eduardo Mayr configura-se com um bom exemplo, uma vez que os
procedimentos utilizados para a reconstituição da ossada de Denis Casemiro, também, inumado na vala comum,
são praticamente inexistentes no material que pude recolher sobre o caso.
195
169
Alguns pontos são centrais: a posição do ponto nasal, localizado bem no topo do nariz entre os olhos; a
localização da espinha nasal, a base do nariz entre as maçãs do rosto; a disposição da rima labial, uma linha que
poderia ser traçada sobre a boca e as proporções dos pontos orbitários (olhos) e do conduto auditivo (orelha).
196
Segundo Laura Petit, irmã de Maria Lúcia Petit, Badan Palhares teria afirmado, em
Xambioá, que a ossada encontrada “seria de alguém que estava na guerrilha” (Jornal da
Unicamp, 2001, p. 16). Em Campinas, contudo, a identificação não avançou. Segundo Laura
Petit, Badan Palhares se recusou a aceitar que a dentista de Maria Lúcia fosse ao DMLE sem
radiografias ou ficha dentária (idem). Somente, em decorrência da publicação no jornal o
Globo de uma fotografia de Maria Lucia Petit, vestida com as mesmas roupas, o cinto de
couro com a fivela e com fragmentos do nylon do paraquedas encontrado em Xambioá, os
procedimentos de identificação voltaram a caminhar. Em coro, a família Petit e muitos
familiares de desaparecidos e militantes afirmavam que os obstáculos acerca dos processos de
identificação das ossadas sempre estiveram relacionados aos interesses pessoais170 de Badan
Palhares, visto, dali em diante, como um entrave a qualquer processo de identificação que,
ainda, pudesse acontecer mediante a análise das ossadas (Comissão da Verdade do Estado de
São Paulo “Rubens Paiva”, Audiência pública, 20 de maio de 2013).
Assim, entre tantas contendas, as “ossadas da discórdia”, como Badan Palhares
nomeou um dos capítulos de sua autobiografia, foram, simultaneamente, o “ápice” do
DMLE, mas, também, o início de seu “deblaclê” (PALHARES, 2007). Depois de Massini e
outros profissionais, como Eduardo Daruge, terem se afastado, em 1991, da equipe de
identificação, também Palhares, diante de conflitos burocráticos, éticos e técnicos, em outubro
de 1996, afastou-se da coordenação das investigações do “Projeto Perus”.
O afastamento de Massini e Daruge deflagrava mais uma rusga entre eles e Badan
Palhares. Oficialmente, este último afirmava que o afastamento era mais uma crise de ego de
Massini e resultado de um desentendimento de Massini com o reitor da Unicamp, Carlos
Vogt. Isso porque Vogt havia determinado que apenas um coordenador se responsabilizasse e
divulgasse qualquer informação sobre os encaminhamentos e as identificações realizadas pela
equipe. O nome de Badan Palhares como responsável acabou por desagradar, mais uma vez,
Massini (PALHARES, 2007). Na versão de Massini, alardeada em jornais, seu afastamento
era uma resposta ética aos descasos e imperícias que vinha ocorrendo no processo de
identificação das ossadas.
A coordenação do “Projeto de Perus” passou às mãos de José Eduardo Bueno Zappa,
que, em abril de 1997, encaminhava um ofício ao reitor José Martins Filho, esclarecendo os
170
Não ficam claros quais seriam os interesses pessoais ou motivações escusas de Palhares que poderiam ter
interferido nos estudos empreendidos nas ossadas de Perus. Enriquecimento indevido, posições ideológicas e
venda de laudos pairam sobre a idoneidade do legista. Contudo, nenhuma investigação foi conclusiva. No
capítulo a seguir, tais denúncias chegam ao seu clímax no caso PC Farias.
197
171
Em seu relatório final, Zappa destacava o empenho do DMLE em analisar sistematicamente também os
grupos III e IV, cujas ossadas eram formadas por ossos fragmentados, crânios não íntegros ou ausentes.
Ressaltava o empenho por identificar Flávio Molina de Carvalho e Dimas Antonio Casemiro, sem, contudo,
terem alcançado avanços significativos. Em ambos os casos, fragmentos ósseos foram retirados e encaminhados
para a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Ossadas exumadas de sepulturas individuais, como foi o
caso de Hiroaki Torigoi, enterradas no cemitério Dom Bosco, em Perus, também foram encaminhadas a UFMG
para pesquisa de DNA. (ZAPPA, 1997).
172
Carlos Delmonte foi designado pelo diretor do Instituto Médico Legal de São Paulo para fornecer um parecer
sobre os trabalhos realizados junto às ossadas de Perus pelo DMLE de Campinas. O documento, registrado com
o brasão do estado de São Paulo, destacava que os “trabalhos foram completos, esgotando as possibilidades de
estudos, considerando os dados de confronto apresentados”. Além disso, o perito afirmava que nenhuma outra
instituição poderia ter realizado uma investigação de tal monta. Por fim, indicava a reinumação dos restos
mortais sem possibilidade de identificação e a permanência no DMLE apenas das ossadas com trabalhos em
andamento ou com possibilidades de identificação (PALHARES, 2007).
173
Ricardo Molina se formou em música e fez mestrado e doutorado em linguística pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP). Em 1992, Molina foi chamado por Badan Palhares para integrar o DMLE. Na época,
ainda mestrando, o foneticista foi convidado a periciar uma gravação com a voz de Antônio Magri, Ministro do
Trabalho. Na fita, Magri afirmava ter recebido 30 mil como propina. Em 1993, incorporado oficialmente ao
DMLE, Molina ofereceu um curso pago sobre fonética forense, que, para Palhares, era uma prática pioneira no
Brasil naquele momento. Sua fama cresceu depois do caso PC Farias. Sua perícia fornecida à gravação da
ligação entre Suzana Marcolino e o dentista Coleoni provocou os primeiros dissensos entre Molina e Palhares.
Daquele ano em diante, uma série de desavenças culminou, inclusive, na extinção do DMLE em 1999. Em lados
opostos, Molina e Palhares atuaram também na perícia do caso de Eldorado dos Carajás. Em 1997, Molina
substitui Palhares na chefia do DMLE e, com a extinção do departamento, em 1999, foi dispensado do cargo de
coordenador de Fonética Forense da Unicamp sob alegação de irregularidades administrativas. Alguns meses
depois, Molina foi readmitido à folha de pagamentos da Unicamp. Desde 2001, o fonetista inaugurou um
instituto particular destinado a trabalhos periciais chamado Instituto de Pesquisa de Som, Imagem e Texto
(IPESIT). Além de palpitar sobre perícias recentes como o caso Nardoni ou sobre a morte de Elisa Samudio a
mando do goleiro Bruno, Molina, em 2017, foi contratado pela defesa do presidente Michel Temer para elaborar
um parecer sobre o áudio fornecido por Joesley Batista, da JBS, que o envolvia em pagamentos de propina e
corrupção ativa. Para ver mais: MAIA, 02 abril de 2015.
198
174
Como denunciou o jornalista Marcello Pellegrini em reportagem publicada na Carta Capital de 09 de
fevereiro de 2015 e intitulada “O crime perfeito da ditadura”. A matéria jornalística alertava para a falta de uma
alvenaria de qualidade para o ossário, o que estava acarretando a deterioração dos ossos que, mofados,
permaneciam à espera de identificação. Além disso, ressaltava que a presença dos fungos e a morosidade dos
trabalhos eram, também, responsáveis pela perda cotidiana dos “resquícios genéticos no colágeno dos ossos”,
tornando a coleta de DNA um trabalho impossível. Para dar prosseguimento aos trabalhos, contudo, Daniel
Muñoz exigia que um novo convênio fosse realizado, agora, com o IOF, da USP. As negociações, contudo, não
caminharam a contento.
199
175
Infelizmente, não consegui acessar o relatório mencionado para mais informações.
176
Outras disputas entre o EAAF, peritos brasileiros, oriundos da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão
Preto e o GAAF acabaram por tomar a cena pública. Nesse caso, as divergências eram em torno da lavagem dos
ossos e da prioridade da identificação das ossadas em detrimento da análise detalhada das lesões e marcas ósseas
200
que revelariam a causa da morte desses indigentes e desaparecidos políticos (G1 Notícias/EPTV, 09 de abril de
2014).
177
Lomnitz (2014), ao se debruçar sobre o caso Arroyo, destaca como o jornal El Imparcial, no México, teve
papel fundamental na construção das histórias e controvérsias que envolveram os efeitos políticos do caso. Isso
porque reunia, num mesmo caso, três diferentes assassinatos: “reais, imputados ou pretendidos”. A autoria dos
crimes, assim como suas conexões, estava em disputa e foi tramada por diferentes atores sociais. A ligação
sensacionalista dos eventos, por fim, sublinhava os conflitos e rivalidades em curso entre os diferentes periódicos
mexicanos, assim como as escusas relações entre esses jornais e o ditador Porfirio Díaz (LOMNITZ, 2014, p.
92). Os leitores exigidos durante o caso Arroyo, por sua vez, eram sagazes; procuravam por pistas e
questionavam, sempre que possível, as intenções ocultas de editores e periódicos.
201
N
o dia 23 de junho de 1996, foi o primeiro da família a chegar cômodos anotadas, para que o
Paulo César Farias foi à casa de praia. A polícia foi trajeto empreendido pelo projétil
encontrado morto em sua contatada e Anita Buarque Gusmão pudesse ser reconstituído.
casa de praia, em foi a primeira perita a entrar na Resíduos de pólvora foram
Guaxuma, Maceió. PC Farias, como cena do crime. Em seguida, testados, ainda no local, nas mãos
o tesoureiro da campanha Nivaldo Cantuária, também perito de Suzana e PC Farias. Os corpos
presidencial de Fernando Collor de do Instituto de Criminalística foram remetidos IML para
Mello ficou conhecido, estava chegou ao local para que a perícia necropsia. Depois, das
deitado em sua cama, ao lado de fosse realizada. Foram feitas investigações preliminares, a tese
sua namorada Suzana Marcolino fotografias dos cadáveres e do de legistas, peritos e do delegado
da Silva. Ambos foram alvejados quarto de diversos ângulos; os Cicero Torres era de que tratava-
pela mesma arma de fogo, pertences pessoais de PC Farias e se de um crime passional. Suzana
encontrada sobre a cama. Os Suzana foram recolhidos do local, havia atirado em PC Farias e
cadáveres foram avistados pelos bem como a arma de fogo e o depois teria cometido suicídio.
funcionários da casa, depois que a projétil encontrado no chão da (Compilação de trecho de
janela do cômodo foi arrombada sala de jantar, enquanto a caseira reportagens veiculadas pelo jornal
pelo lado de fora por uns dos Marize arrumava o café da manhã. Folha de São Paulo, no mês de
seguranças de PC Farias. Seu A parede atingida pelo projetil foi junho de 1996).
irmão, o deputado Augusto Farias registrada e as dimensões dos
Fonte: http://acervo.folha.uol.com.br/fsp/1996/06/24/2/
que estariam ligados (ou não) à morte ‘inesperada’ de PC Farias. Entre eles: as inúmeras
denúncias feitas pelo próprio PC Farias de que era “vítima potencial e consciente de um
atentado”, ou o fato de que o “assassinato se deu a seis dias do depoimento de PC
Farias que, tudo indicava, seria o inaugural de uma série longa e importante da
Justiça”, ou as mortes inexplicáveis de figuras que, antes de PC, ameaçavam denunciar
esquemas de corrupção em torno da campanha de Fernando Collor de Mello178.
Destaca-se, também, a rapidez com que a perícia e as investigações
encaminhadas pela Polícia Civil foram divulgadas pelos jornais. Apenas três dias depois
da morte de PC Farias e Suzana Marcolino, a Folha de São Paulo estimulava, ainda
mais, a polêmica já em andamento: “Namorada não se matou, diz perito”. A manchete
publicada na página de capa do periódico era contígua à fotografia de George
Sanguinetti179, à época chefe do Departamento de Medicina Legal da Universidade
Federal do Alagoas (UFAL). Seu destaque no periódico trazia à tona o acesso
privilegiado de Sanguinetti à perícia: “O médico e coronel da PM George Sanguinetti
apresenta fotografia do corpo de PC Farias”. O sucinto texto, formulado logo abaixo
dos subtítulos da reportagem, sublinhava:
Na mesma data, também a matéria enviada pela “Agência Folha” destacava, por
meio de quadros como “Perguntas sem resposta” ou “Veja o procedimento certo”180,
178
As paradas cardíacas de Elma Farias (ex-esposa de PC) e Luiz Calheiros (importante empresário
alagoano) e o câncer fulminante e raro que vitimara mortalmente Pedro Collor, irmão de Fernando Collor
de Mello.
179
George Samuel Sanguinetti Fellows nasceu em Recife, em 1945. Formou-se em medicina pela
Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco (UFPE) e atuou na área de psiquiatria e medicina legal.
Coronel reformado da Polícia Militar do estado de Alagoas, Sanguinetti foi diretor do Instituto Médico
Legal de Maceió e professor da disciplina de medicina legal na Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Aposentado desde 2001, Sanguinetti filiou-se ao Partido Verde (PV) para se
candidatar a vereador pela cidade de Maceió, onde ocupou a posição de suplente. Seu controverso livro
“A morte de PC e Suzana: o dossiê Sanguinetti”, publicado em 1997, foi vencedor do 40º Prêmio Jabuti,
na categoria reportagem. Depois do caso PC Farias, Sanguinetti voltou a atrair as páginas dos jornais
com pareceres encomendados pela defesa do caso Nardoni e do caso envolvendo o goleiro Bruno e Eliza
Samudio (TOGNOLLI, 14 de junho de 2012).
180
Ambos os quadros buscavam elencar falhas e perguntas não respondidas pela investigação da Polícia
Civil de Maceió. O primeiro quadro, “Perguntas sem respostas”, discriminava dezesseis
questionamentos que poderiam contradizer os encaminhamentos divulgados pela polícia durante as
investigações. Entre eles: se os seguranças teriam (ou não) como escutar os tiros desferidos no quarto de
206
PC; as lesões na epiderme do cadáver de Suzana, a trajetória dos tiros, o horário da morte e o tempo
exíguo para realização da perícia (duas horas) e para a necropsia dos corpos (quatro horas). Já o segundo
esquema, “Veja o procedimento certo”, formulado pelo jornalista Marcelo Godoy, destacava como
hipoteticamente deveria ter sido realizada a perícia. Na lista, oito pontos sublinhavam a importância de:
isolar o local do crime; identificar as pessoas presentes na casa; realizar exame de restos de pólvora em
todos os presentes na cena; não tocar nos cadáveres; certificar-se de arrombamentos; recolher todo o
material relacionado ao crime; verificar se a cena do crime foi violada ou fraudada; e, em caso de
dúvidas, manter o local interditado para novas perícias.
181
O apoio do governador de Alagoas, contudo, era um ponto de conflito. O periódico, em reportagem
assinada por William França, da “Sucursal de Brasília”, afirmava: “A Folha apurou que, em telefonema
de cinco minutos de Jobim a Suruagy, ontem às 8h50, o ministro induziu o governador a pedir ajuda
federal. Logo que o governador disse que a polícia de Alagoas não podia dispensar ajuda, Jobim
anunciou suas ações” (Folha de São Paulo, 27 de junho de 1996, p. 6).
207
182
O material utilizado sob a rubrica dossiê do caso PC Farias está acessível do site pessoal de Fortunato
Badan Palhares em duas abas: “Caso PC Farias”, localizada na aba “Casos”, e “Homicídio seguido de
suicídio X Duplo Homicídio: uma análise do caso ‘PC’ depois do laudo contestante”, reunido junto à aba
“Home”. A paginação citada é fruto do arquivo, por mim construído, que une ambos os dados. Para ver
sobre: http://www.badanpalhares.med.br/home.htm.
208
Nos dias que antecederam a chegada da equipe chefiada por Badan Palhares a
Maceió, o jornal Folha de São Paulo não cessou de enfatizar o caráter corretivo que a
sua convocação pelo ministro Jobim engendrava. Manchetes como as publicadas na
Folha Sudeste, em 30 de junho e 01 de julho de 1996, foram recorrentes: “Badan viaja
hoje para investigar a morte de PC”; “Médico legista aponta contradições no caso”;
“Peritos da Unicamp iniciam investigação”. Palhares (2007), todavia, enfatizava seu
zelo em “evitar confrontos com peritos e jornalistas”. Segundo o legista, a mídia
inflamava o caso com “informações desencontradas” e “boatarias”. Na contramão,
Palhares (2007) afirmava: “Não me interessava assumir qualquer liderança nas
investigações. Minha intenção era atuar em equipe e, na medida do possível, preservar
o trabalho realizado inicialmente” (PALHARES, 2007, p. 240)183.
Assim que chegou a Maceió, no dia 30 de junho de 1996, Badan Palhares optou
por marcar uma reunião com os “peritos, legistas e demais autoridades envolvidas na
apuração das mortes”184 (PALHARES, 2007, p. 240). A reunião foi filmada e os
“especialistas alagoanos” tiveram a oportunidade de mostrar as fotografias registradas
durante a perícia e o trabalho executado junto à cena do crime: disparos, trajetória das
183
Integraram a equipe, um cinegrafista e um fotógrafo do DMLE de Campinas, os peritos criminais
Carlos Alberto Zerbetto e José Carlos Serafim, ambos funcionários do Instituto de Criminalística de São
Paulo, e o médico-legista e diretor do Instituto Médico Legal de Campinas, Antonio Francisco Bastos. A
chefia ficou, exclusivamente, a cargo de Badan Palhares. O perito Wanderley Leal Chagas, presidente da
Associação Brasileira de Criminalística, segundo Palhares (2007) pediu insistentemente para integrar a
equipe. Depois de uma conversa com o ministro Jobim, Chagas foi incorporado à comitiva. Contudo, seu
nome não aparece no laudo produzido, uma vez que, Chagas abandonou as investigações, alegando
pressões do secretário de Segurança Pública de Alagoas e do delegado Cicero Torres, responsável pela
condução do caso (Folha de São Paulo, 2 de julho de 1996, p. 5). Badan Palhares, contudo, tem outra
versão para a saída de Chagas. Em sua autobiografia, ele descreve uma cena de embriaguez de Chagas e
uma reunião arquitetada com o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Legal, Anelino José de
Resende, com o intuito de boicotar a integração e a colaboração entre ambas as equipes de perícia, aquela
chefiada por ele, Badan Palhares, e a outra, composta por peritos e legistas de Maceió.
184
Entre as autoridades, estavam o delegado da Polícia Civil, Cicero Torres, o coronel e secretário da
Secretaria de Segurança Pública do estado de Alagoas, José de Azevedo Amaral, inúmeros policiais civis
e federais, além de desembargadores e de Anelino José de Resende, presidente da Sociedade Brasileira de
Medicina Legal.
209
balas, impacto nos corpos, posição dos cadáveres etc. (PALHARES, 2007). Além disso,
nessa mesma noite, toda a comitiva de peritos, legistas e autoridades seguiu até a casa
de praia de Guaxuma, onde os corpos de PC Farias e Suzana Marcolino foram
encontrados, com o intuito de “conhecer o lugar em condições próximas daquelas em
[que] o fato tinha ocorrido” (PALHARES, 2007, p.241).
Em face de tudo que foi apresentado na reunião e dessa primeira visita ao local
do crime, a equipe de Badan Palhares traçou um “protocolo de ação, com metodologia
específica” para “complementar” a perícia realizada pelos funcionários de Alagoas.
Enfatizo o termo “complementar” com vistas a lançar luz ao argumento tecido por
Badan Palhares sobre a “segunda perícia” realizada, tanto na casa de Guaxuma quanto
nos cadáveres de PC Farias e Suzana Marcolino, ambos exumados em 03 de julho de
1996, a pedido de Palhares185.
Assim, para a feitura desse segundo laudo, a equipe conduzida por Badan
Palhares revisou as fotografias dos cômodos da casa, dos jardins e dos alojamentos de
empregados e seguranças da família Farias, todas registradas por peritos e legistas
alagoanos. Diante da “não preservação” da cena do crime, quinze fotografias, em
particular, foram revistas e estudadas à exaustão pela segunda perícia. Entre elas: as
imagens retratando as marcas de sangue no corpo e nas roupas de Suzana, bem como
nos lençóis da cama. Também a posição da arma e a dobra produzida na colcha branca
que cobria os lençóis da cama foram discutidas.
Em seguida, encaminharam-se para a casa de praia de Guaxuma e realizaram
uma nova perícia no local dos fatos. Travesseiros, roupas de cama e o colchão não
foram analisados, afinal, tais elementos foram queimados pelos funcionários da família
Farias, com autorização dos peritos alagoanos (PALHARES, 2007). Como sugere
Palhares, “em razão da impossibilidade de obtermos respostas satisfatórias através
desses exames já realizados”, feitos em cooperação com o Instituto de Criminalística e
de Medicina Legal da Bahia186, novos exames foram executados pela segunda perícia.
185
A exumação foi realizada com o intuito de responder alguns questionamentos em aberto sobre o caso.
Entre eles, especulações sobre uma possível gravidez, sobre uma fratura no pescoço e hematomas no
rosto de Suzana Marcolino, sobre a causa exata da morte de ambos os cadáveres e seu horário
aproximado (PALHARES, 2007).
186
Dentre esses exames, destaca-se a coleta de material das mãos de Suzana e PC Farias com o intuito de
submetê-los a estudo de residuográficos. O material colhido por meio de algodão e solução Perrier (única
disponível no local) foi guardado em tubo de ensaio e minuciosamente etiquetado. Também, foram
levados, para análise, os líquidos de ambos os copos encontrados nos criados-mudos do quarto de
Guaxuma, os pertences de Suzana e PC Farias presentes no local e o projétil encontrado na sala, ao lado
do quarto.
210
187
A segunda perícia, depois de inúmeros testes de tiro, afirmou que inúmeras condições poderiam ter
abafado os ruídos produzidos durante o disparo da arma do crime, o que justificaria a alegação feita pelos
seguranças da casa de que não ouviram qualquer disparo. Entre eles: os fortes ventos, a turbulência do
mar e os fogos de artificio devido à festa de São João. Tal argumentação, contudo, apenas tinha por
função alegar que os tiros poderiam ser audíveis, mas serem audíveis não significava necessariamente que
os mesmos foram ouvidos (PALHARES, 2007).
188
Todo o procedimento foi realizado com o auxílio de uma caneta de raio laser e uma câmera de
filmagem que registou todos os procedimentos empreendidos pela equipe.
189
Além de documentar todos os exames empreendidos, no laudo oficial foram incorporadas as fotos e
fitas de vídeo resultantes das exumações, necropsias, perícias, testes e simulações empreendidas pela
equipe de perícia. Também foi anexado ao laudo um perfil psicológico de Suzana Marcolino feito por
profissionais da área de psiquiatria da Unicamp.
211
190
A segunda perícia analisou as marcas encontradas no pijama de PC Farias visando determinar a que
distância PC Farias foi alvejado. Em função da distribuição dos metais encontrados nas vestes de PC e da
falta de chamuscamento na perfuração, a segunda perícia concluiu que seria impossível que o atirador
estivesse do lado esquerdo da cama. Isso porque ele estaria obrigado, devido ao mobiliário do cômodo, a
se posicionar numa distância menor do que 85 metros. Caso tal disparo realmente tivesse ocorrido, ele
deixaria uma concentração muito maior de resíduos no pijama de PC Farias.
191
Segundo a perícia, tal distância estaria comprovada devido a um fenômeno denominado “boca de
mina”. Isto é, na lesão de entrada do projétil, a presença de chamuscamento e esfumaçamento ao redor do
orifício. Tais elementos, produzidos pela expansão parcial de gases e chamas no momento do disparo,
devido a curta distância, acabaram impregnados e claramente visíveis na lesão que vitimou Suzana.
212
192
Para a segunda perícia, a posição de lótus seria compatível ao percurso feito pelos respingos de sangue
no joelho de Suzana. Ou seja, o pingo de sangue escorreu em fluxo descendente: do joelho para a virilha.
As golfadas e respingos de sangue, contudo, foram efeito rebote da entrada parcial de gases junto com o
projétil durante o disparo.
193
Infelizmente, não tive acesso ao laudo oficial produzido por Badan Palhares e sua equipe. Todas as
informações acima apresentadas foram retiradas de um dossiê produzido por ele e todos os outros
integrantes da equipe com o intuito de responder à CPI do Narcotráfico, em audiência ocorrida em
Maceió, em 1999.
194
Inúmeras teses foram propaladas em torno da morte de PC Farias e Suzana Marcolino. Entre elas: a
suposição de que eles teriam sido mortos em outro local e apenas colocados no quarto com vistas a
ludibriar a polícia, ocultando, assim, o verdadeiro assassino do casal. Voltarei à tese de duplo homicídio,
no final desta seção.
213
195
A reportagem ocupando duas páginas completas do periódico estetizava – e editava consideravelmente
– o encontro de mais de três horas entre Badan Palhares, George Sanguinetti e o “Estado”, forma pela
qual o jornal fazia menção ao jornalista ou equipe de funcionários do periódico que mediou o encontro.
196
As notícias que se seguiram no periódico eram espaçadas e, em sua maioria, faziam referência a
investigações laterais sobre o caso de corrupção envolvendo Paulo César Farias e o governo de Fernando
Collor de Melo. Por exemplo, as supostas ligações nebulosas de PC Farias com a máfia italiana.
214
p. 8). Além disso, o periódico ressaltava que o legista alagoano teria “carta branca”
para elaborar a peça pericial que seria mais tarde “confrontada ao que foi elaborado
pelo legista da Unicamp”. O laudo de Sanguinetti, contudo, não ganharia tantas
repercussões quanto à designação de uma nova equipe pericial para o caso. A nomeação
feita, novamente, pelo juiz Alberto Jorge Correa indicava dois médicos-legistas e dois
peritos criminais para a função: os legistas Daniel Romero Muñoz, do IML de São
Paulo e professor da USP, e Genival Veloso de França197, professor de medicina legal
da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E os peritos criminais Domingos
Tocchetto198, do Instituto de Criminalística e professor da Escola Superior de
Magistratura do Rio Grande do Sul, e Nicolas Soares Passos, do Instituto de
Criminalística de Alagoas.
Infelizmente, não tive acesso a nenhum dos contra laudos acima mencionados.
No que tange ao laudo produzido por Sanguinetti, não encontrei acessível nenhum dos
seus apontamentos, nem posso afirmar quais outros especialistas foram convidados a
participar de tal parecer. Também a repercussão que a perícia por ele realizada teve na
mídia impressa é uma incógnita, pois nenhuma reportagem da Folha de São Paulo se
debruça sobre seu parecer. Na verdade, absolutamente nada foi divulgado sobre isso nos
meses que se seguem à reportagem de 18 de março de 1997.
Contudo, Badan Palhares, em sua autobiografia, constrói sua versão para o
apagamento e o descrédito de Sanguinetti e de seu laudo. Segundo ele, em posse das
investigações oficiais sobre o caso, o médico alagoano se apressou em publicar um livro
sobre o assassinato de PC Farias, antes mesmo de protocolar seu laudo pericial.
Publicado em janeiro de 1997, o livro de título “A morte de PC e Suzana: o dossiê
Sanguinetti” se utilizava das informações obtidas por meio do processo para sustentar
197
Genival Veloso de França é formado em medicina e direito. Especializado em medicina legal pela
Associação Médica Brasileira, em 1979, os livros de França são referência constante para a disciplina.
Durante sua carreira acadêmica foi professor titular dos cursos destinados à matéria pela Universidade
Federal da Paraíba (UFPB) e professor convidado de inúmeras universidades. Entre elas: a Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal Fluminense (UFF) e a Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE). Genival Veloso de França é membro da Academia Nacional de Medicina Legal
(ANML), foi ex-secretário do Conselho Federal de Medicina (CFM) e presidente do Conselho Regional
de Medicina da Paraíba. Para ver mais: http://genjuridico.com.br/genivalfranca/ e
https://www.youtube.com/watch?v=gjLxWngygHs.
198
Domingos Tocchetto graduou-se em história natural e direito pela Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS). Durante sua carreira profissional, Tocchetto foi professor de criminalística junto à
Escola Superior da Magistratura, da Associação de Juízes do Rio Grande do Sul (AJURIS), entre 1981 e
1998, e perito do Instituto de Criminalística de Porto Alegre, de 1972 a 1991. Desde 1975, é perito
judicial da Academia da Polícia Civil do Rio Grande do Sul nas áreas de documentoscopia, grafoscopia e
balística. Seu livro Tratado de Perícias Criminalísticas foi reimpresso inúmeras vezes e aparece como um
dos manuais de referência ao tema. Para ver mais: Instituto Geral de Perícias (IGP), 08 de julho de 2015 e
https://www.escavador.com/sobre/888085/domingos-tocchetto.
215
sua tese sobre o crime. Para Sanguinetti, na madrugada de 23 de junho de 1996, na casa
de praia de Guaxuma, havia ocorrido um duplo homicídio e não um homicídio seguido
de suicídio.
Quanto aos trabalhos de perícia da terceira equipe, eles tiveram início no dia 09
maio de 1997, como noticiou o jornal Folha de São Paulo, numa discreta reportagem
com o título “Caso PC: Equipe quer exumar o corpo de Suzana” (Folha de São Paulo,
11 de maio de 1997, p.4). A exumação do corpo de Suzana Marcolino, mais tarde
realizada pela equipe, já era alardeada e seria, mais adiante, objeto de inúmeras das
disputas em torno das conclusões proferidas por Muñoz, Veloso de França, Tocchetto e
Passos.
Em sua autobiografia, Palhares dedica dois capítulos a expor suas opiniões sobre
a mencionada terceira equipe de perícias e os testes por eles realizados. Para além de
buscar satirizar os experimentos supostamente realizados – o uso de um suíno
anestesiado para avaliar o “reflexo motor de um corpo em relação ao impacto do
projétil” (PALHARES, 2007, p. 262) – Palhares sustentava a tese de que a terceira
equipe designada ao caso era formada por três dos seus inúmeros desafetos. No caso do
legista Genival Veloso de França e do perito criminal Domingos Tocchetto, a querela e
a disputa se deram acerca das perícias e dos pareceres sobre a morte do vice-governador
da Paraíba Raimundo Asfora, em 1987199. Já no caso de Daniel Romero Muñoz, a
rivalidade teria surgido depois que a USP havia sido preterida para conduzir o parecer
sobre o massacre do Carandiru, presídio de São Paulo, ocorrido em 1992. O convite
teria sido feito diretamente ao DMLE, aos cuidados de Palhares.
199
O caso envolvendo o vice-governador da Paraíba, Raimundo Y. Asfora, ocorreu em 1987. Asfora foi
encontrado morto na sala de sua chácara em Campina Grande na Paraíba. Seu cadáver estava sentado em
uma das cadeiras, junto a mesa disposta na sala de jantar, com o tronco inclinado para frente e a cabeça e
os braços inertes sobre a mesa. Junto ao corpo, encontrava-se um revólver. A porta da casa estava
trancada, sem sinal de arrombamentos. A perícia paraibana concluiu pelo suicídio. A traição da esposa de
Asfora foi indicada como um dos principais motivos para o fato. A família do vice-governador, todavia,
não concordava. Domingos Tocchetto, em posse das fotografias e cópias dos laudos, afirmava que o caso
não era conclusivo quanto ao suicídio. Frente às contradições, o governador Tarcísio Burity solicitou que
a Polícia Federal ingressasse no caso. Em função do convênio entre a PF e o DMLE, o caso chegou às
mãos de Palhares. Segundo Badan Palhares, em João Pessoa, ele procedeu à exumação do cadáver de
Asfora e visitou a chácara onde o corpo havia sido encontrado. Ao final, concluiu pelo suicídio. Já
Tocchetto, em entrevista, nem sequer citou o nome de Palhares na condução das perícias e afirmou: “aqui
no Rio Grande do Sul fizemos uma terceira perícia, praticamente de desempate, porque existia a perícia
feita pelo Instituto de Criminalística do Recife que dava um resultado, uma segunda perícia feita pelo
Instituto Nacional de Criminalística, em Brasília, que dava um resultado divergente, e nós acabamos
fazendo a terceira perícia que não coincidiu com nenhum dos dois, e que foi a perícia definitiva e
conclusiva que foi usada dentro do processo, dentro do inquérito policial” (Instituto Geral de Perícias
(IGP), 08 de julho de 2015).
216
200
Segundo Palhares, a tabela utilizada é genérica e a depender das “discrepâncias de compleição física
entre povos e raças (a margem de erro pode chegar a 5%, embora nesse caso estranhamente atinja
9,4%), especialmente quanto ao compósito altamente heterogêneo da população brasileira” (Folha de
São Paulo, 21 de setembro de 1997, p. 3).
201
As controvérsias em torno do caso de PC Farias são inúmeras. Também o Judiciário não escapou de
tais conflitos. Promotores e juízes foram alterados ao longo do processo e foram inúmeras as
confabulações sobre pedidos de afastamento e destituições. Quanto às investigações exigidas, novas
reconstituições do crime foram realizadas, agora, com a presença de todos os seguranças da família
Farias. Também foi encaminhada a Badan Palhares uma intimação, com o intuito de ouvi-lo sobre os
impactos que tais revelações sobre a altura de Suzana teriam na simulação gráfica, apresentada por ele e
sua equipe, em agosto de 1996, da trajetória do tiro que matou a namorada de PC Farias.
218
202
Sob o título “Confronto em Maceió”, em sua autobiografia Badan Palhares descreve o encontro
realizado em Maceió explicitando os inúmeros questionamentos colocados a ele e sua equipe. A altura de
Suzana, sua posição na cama, a falta de digitais e respingos de sangue na arma do crime, a trajetória do
projétil etc. Segundo Palhares (2007), contudo, a parcialidade da banca escolhida arrefeceu ainda mais as
disputas ali colocadas: eles eram conterrâneos ou colegas de trabalho da equipe que contestava o laudo de
Palhares.
219
Sem dúvida, tudo aquilo que foi escrito, gravado ou fotografo durante o caso
estava em disputa. Exatamente por isso, eu escolhi utilizar repetidas vezes, o termo
‘supostamente’ ou ‘aparentemente’, para recontar o caso PC Farias. Eu mesma poderia
lembrar, ao leitor desta tese, que não há provas factuais de que as páginas registradas,
fotocopiadas e anexadas ao dossiê de Palhares sejam, oficialmente, parte do laudo
assinado por Muñoz e sua equipe. Ainda que digitas em padrões semelhantes àqueles
que acessei junto ao IML, carimbado com os dizeres “Folha / Nº1796” e rubricado por
pelo menos quatro diferentes assinaturas, tal registro foi reunido e divulgado por Badan
Palhares, interessado direto no caso, sendo essa a sua “versão dos fatos”.
Muitas foram as intrigas, contradições, controvérsias durante as investigações e
as perícias tramadas por meio do caso. É sobre elas que assenta meu interesse pelo
evento. A “manhã macabra de Guaxuma”, fazendo menção ao título dado ao primeiro
capítulo, da terceira parte, da autobiografia de Palhares, para descrever a morte de PC
Farias e Suzana Marcolino, já enseja tais intrigas. Palhares afirma categoricamente que
PC Farias morreu entre 5h e 7h da manhã. Tais constatações, por exemplo, apoiadas em
convicção e experiência de ofício, seguiram contestadas e inconclusivas. Os elementos
de controvérsia se multiplicam: a altura de Suzana, a falta de impressões digitais na
arma, a dinâmica das manchas de sangue, a posição de Suzana e da arma do crime, as
ligações de despedida eterna supostamente feitas por ela ao dentista Coleone (apontado
como seu amante), o fato de a cena do crime ter sido visivelmente alterada e elementos
importantes destruídos etc.
O crime segue inconcluso, ainda que julgado. Os seguranças de PC Farias
indiciados como coautores do crime203 foram absolvidos por quatro votos a favor e três
votos contra pelo Tribunal do Júri de Alagoas. Também Badan Palhares, depois de
confrontado em Maceió, foi convocado a depor na Comissão Parlamentar de Inquérito
sobre o Narcotráfico. Em todas as acareações e processos, o legista foi judicialmente
absolvido por falta de provas sobre qualquer imperícia, falsificação ou venda de laudos
203
Sem dúvida, uma reflexão mais rigorosa e atenta poderia ser feita sobre os desdobramentos criminais e
judiciais que levaram aos bancos dos réus três dos quatro seguranças que estavam na casa de praia de
Guaxuma no dia do crime que vitimou PC e Suzana. O único dos seguranças cujo indiciamento foi
arquivado, foi o segurança Rinaldo da Silva Lima, assassinado em condições bastante controversas, em
1999. A morte de Rinaldo acirrou definitivamente a repercussão do caso na mídia impressa da época.
220
realizada durante sua carreira. Como ele mesmo afirmou em entrevista a mim
concedida: “eu só aceito uma única avaliação judicial desse caso! É a do Supremo
Tribunal Federal! [Lá] está descrito que todas as provas realizadas pela nossa equipe
são fidedignas de credibilidade” (Entrevista realizada em 21 de outubro de 2016).
Ainda que a convicção de Badan Palhares sobre a idoneidade e a competência de
seu trabalho seja inabalável, é irrefutável que o caso PC Farias deflagrou o
desaparecimento no cenário nacional das técnicas médico-legais desenvolvidas por ele
em Campinas, em especial pelo DMLE. A extinção do departamento é o ápice de um
processo que já estava em curso desde as críticas e denúncias gestadas à identificação
das ossadas de Perus. A ascensão meteórica forjada mediante o caso Mengele e a crise
de credibilidade decretada pelo caso PC Farias alinhavavam vaidades, relações
pessoais, rusgas, tramas institucionais e visibilidade pública. São riscos que, por sua
vez, desvelam laudos e perícias como plataformas que excedem em muito seu aparente
caráter técnico. No tópico a seguir, busco traçar alguns dos fios possíveis que costuram
casos, instituições e pessoas.
“Vamos acabar com esse herói nacional”: entre tramas institucionais e vaidades
pessoais
Com a suposta frase “vamos acabar com esse herói nacional”, a equipe
chefiada por Daniel Romero Muñoz, responsável pela terceira perícia realizada no caso
PC Farias, desembarcou em Maceió. Segundo Palhares (2007), tal expressão foi
proferida por Genival Veloso de França, publicamente na presença de Vitor Odilon
Pereira e Nivaldo Cantuária, ambos membros da equipe conjunta que assinou a segunda
perícia realizada em 1996, sob a chefia de Badan Palhares. Tal como intento fazer daqui
em diante, também Palhares utilizou-se do suposto bordão para assinalar os motivos e
tramas que, em seus termos, retratariam a “ânsia” de seus inimigos por destruí-lo e por
“brilhar sob os holofotes” lançados ao caso PC Farias pela mídia brasileira
(PALHARES, 2007, p. 258).
Ao dizer isso, contudo, não pretendo resolver ou me posicionar diante desse
espinhoso imbróglio. Ao contrário, busco dar realce às tramas políticas e institucionais
que, por intermédio dos três casos – “Mengele”, “Perus” e “PC Farias” – desenrolam-
se e alinhavam o IML de Campinas ao DMLE. A inspiração teórica para tais
221
“uma rede formada por uma gama de instituições e atores, mas cuja
trama, por sua vez, também revela a existência de conflitos que, na
prática diária, acabam por impedir o desenvolvimento de padrões ou
procedimentos que se consolidem como soluções204” (GREGORI,
1999, p.164-165).
204
Por “soluções”, Gregori (1999) chama atenção aos efeitos perversos de circularidade a que os meninos
e meninas em situação de rua acabam imersos, a partir do momento que eram acolhidos por essas malhas
de atendimento de proteção à infância e à adolescência. Como sugere a autora, “circulando ente vários
organismos, se virando, ele [o menino de rua] sobrevive e se protege. Mas está longe de conseguir
projetar um caminho de saída da menoridade. Seu caminho permanece preso na circularidade das ações.
Parece condenado a ser, para sempre, um menino de rua” (GREGORI, 1999, p. 22).
222
205
Siqueira citava, em documento, o artigo 91 do regimento geral – responsável pela “criação, fusão,
desdobramento ou supressão de disciplinas”. Merzel, em resposta, sublinhava que tal processo deveria
ser norteado pelo artigo 153 do regimento em vigência na época. Isto é, artigo esse responsável pela
fusão, pela manutenção ou pela divisão de departamentos.
206
Em tal documento, o legista buscava assinala, junto à Câmara Curricular, os “objetivos”, a “situação
atual”, o “pessoal”, os “planos futuros” e as “necessidades” colocadas pelo projeto de
departamentalização da disciplina de medicina legal.
223
Freire” era ilustrado por um desenho desbotado, cujos detalhes são ilegíveis 207. A
figura buscava enfatizar “toda a abrangência da medicina legal”, numa tríade há muito
tempo constituída entre ensino, pesquisa e perícia208.
A expansão desejável da disciplina, enquanto departamento, por sua vez,
aparecia como fundamental à consolidação dos serviços prestados à comunidade, aos
interesses pela especialidade, ao ensino e a pesquisas de relevância na área. O intuito,
audacioso por princípio, visava a, nesse sentido, “consolidar o Núcleo de Perícias
Médicas da Unicamp em convênio com a Secretaria de Justiça” e implantar um
“Serviço de Verificação de Óbitos de Campinas, já criado por Decreto do Governador
e ainda não implantado [na cidade]”209. A cooperação, já em curso e regularmente
mantida entre a disciplina de medicina legal e o IML, foi devidamente informada à
Câmara Curricular:
210
O Depósito de Mortos da Gamboa foi construído em 1854 e se tornou o primeiro necrotério da cidade
do Rio de Janeiro. Segundo Ferreira (2009), chegavam, a suas dependências, cadáveres de presos,
escravos, indigentes e indivíduos não identificados e encontrados mortos em via pública.
225
naquilo que ele havia observado na Alemanha e durante sua formação na Bahia como
pupilo de Nina Rodrigues.
Já em São Paulo, as relações entre Serviço Médico-Legal e a disciplina de
medicina legal datam de 1918 quando, segundo Lipp (2008), Oscar Freire assumiu a
mencionada disciplina, na Faculdade de Medicina Paulista, a convite do professor Dr.
Arnaldo Vieira de Carvalho211. Contudo, foi somente em 1934, com a criação da
Universidade de São Paulo (USP), que a disciplina de medicina legal une às cadeiras de
Ética Médica e Medicina Social e do Trabalho sob o signo do Instituto Oscar Freire212.
A morte prematura de Freire deixaria a Flamínio Fávero, seu aluno e discípulo213, a
incumbência de consolidar as relações entre o departamento e o IML de São Paulo, cujo
codinome também homenageia Oscar Freire (CORRÊA, 1982).
Como argumentam Salla e Marinho (2008), Fávero fez parte da primeira turma
diplomada em medicina no estado de São Paulo, em 1918, e sua trajetória profissional e
acadêmica é repleta de cargos e posições de proeminência que atam o ensino
universitário a instâncias estatais e corporativas. Entre elas: a vice e a direção da
Faculdade de Medicina de São Paulo; a presidência da Sociedade de Medicina e
Cirurgia de São Paulo; a presidência da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de
São Paulo; a direção da penitenciária do estado; e, por último, a presença como membro
do Conselho Penitenciário.
Em ambos os exemplos, a “escola Nina Rodrigues” aparece, portanto, como uma
espécie de mito de origem da medicina legal brasileira, tamanha a quantidade de
211
Como salientam Salla e Marinho (2008), Arnaldo Viera de Carvalho gozava de grande legitimidade e
distinção entre os seus pares e contemporâneos. Filho do vice-presidente da Província, José Joaquim
Vieira de Carvalho, advogado e antigo diretor da Faculdade de Direito, Arnaldo Viera de Carvalho havia
se formado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e muito precocemente ocupou posições de
proeminência: Vacinogênico, Hospedaria, Policlínica.
212
O Instituto, responsável por abrigar o Departamento de Medicina Legal, Ética Médica e Medicina
Social e do Trabalho, foi idealizado pelo Escritório de Ramos e Azevedo e concretizado em 1931. O
prédio, com uma arquitetura imponente, localizado na Rua Teodoro Sampaio, dispõe de anfiteatro, salas
para docentes e auxiliares, laboratórios de pesquisa, museu, biblioteca, arquivo e administração.
Atualmente, abriga o Departamento acima mencionado e um Centro de Estudos e Atendimento Relativo
ao Abuso Sexual (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico,
1991).
213
Flamínio Fávero escreve um prefácio emocionado para a publicação póstuma da obra de Freire,
“Lições e Conferências do Prof. Oscar Freire”, de 1968. Em tal discurso afetivo e de devoção, como
aluno e discípulo, o médico-legista sublinha a grandeza de Freire e sua posição completamente
apaixonada pela medicina legal. Fávero ainda destaca o fato de ter sido responsável por embalsamar
Oscar Freire, antes de ser enviado à sua terra natal, onde foi enterrado. Em seus termos, “seguindo a
própria técnica que Oscar Freire me ensinara, com um trocáter perfurei a lâmina crivada do etmoide,
através das fossas nasais e, trêmulo, emocionado, com lágrimas nos olhos, depositei naquele nobilíssimo
tecido nervoso [cérebro] de onde tanta energia criadora se destilara, o líquido conservador que iria
prolongar-lhe a duração da forma arquitetônica” (FÁVERO, 1968, p. 44). Para outras informações sobre a
trajetória acadêmica de Fávero, ver nota 85.
226
214
Ou seja, tratava-se de um processo de adequação dos modelos teóricos europeus às especificidades
nacionais, mas também de constituir locais apropriados a pesquisas empíricas que, no futuro, permitiram
a demarcação, cada vez mais precisa, de especialidades dentro da própria medicina Como argumenta
Corrêa (1998), Nina Rodrigues, inclusive, era enfático quanto a isso: “ao mesmo tempo que professava
sua crença na medicina enquanto saber institucionalizado, tentava demonstrar que a competência
conferida por este saber, porque muito geral, era insuficiente para cobrir todos os campos de atuação
social em que a presença do médico seria desejável” (CORRÊA, 1998, p.113).
227
Rubens Brasil Maluf, diretor do IML. E, de outro lado, a proximidade estratégica entre
Palhares e o diretor da Polícia Federal, Romeu Tuma215.
O convênio assinado entre o DMLE e a Polícia Federal, para tanto, dava
sustentação burocrática e legal ao encaminhamento de casos de maior visibilidade
política investigados pela Polícia Federal no Brasil aos cuidados de Badan Palhares. Em
suas palavras, diante da falta de legistas nos quadros de funcionários da instituição,
“todos os casos importantes da Polícia Federal eram realizados pelo DMLE”.
(Entrevista realizada em 21 de outubro de 2016). Acredito que é por meio desses laços
burocráticos e pessoais que a fama de Badan Palhares foi, paulatinamente,
estabelecendo-se. Campinas e a medicina legal ali constituída, por meio de tais
conexões, passaram a figurar como uma referência para o ofício de médico-legista ou
perito criminal. Os casos apresentados nos capítulos IV e V tiveram por intuito sugerir
como esse processo de visibilidade ganhou corpo. A aparente coincidência entre a
departamentalização e a reconstituição facial de Mengele, em meados de 1986, permite
inúmeras confabulações.
As matérias jornalísticas são exemplares quanto à projeção de Palhares como o
“especialista”. Diante das ossadas de Perus, Badan aparece como o responsável que,
junto com Nelson Massini, identificou Mengele.
215
Romeu Tuma, todavia, foi enfático em afirmar não haver qualquer “vinculação de ordem pessoal”
entre ele e Badan Palhares. Em reportagem publicada pela Folha de São Paulo, em 26 de novembro de
1999, tal declaração do senador e ex-delegado da PF foi reproduzida no periódico abaixo da manchete
“Jobim me indicou no caso PC, diz Badan” (Folha de São Paulo, 26 de novembro de 1999, p.5). As
dúvidas quanto às indicações de Palhares para outros casos de repercussão foram supostamente
respondidas por Tuma ao jornal com afirmações tais como: “Ele (Badan) integrou a equipe do caso
Mengele (carrasco nazista) e ficou com o nome em evidência. Quem queria um legista logo pensava no
Badan” ou “o governo da Paraíba pediu um legista [para o caso de Asfora] para o Ministério da Justiça
e a Policia Federal acionou a Unicamp, que havia montado uma ‘estrutura boa’ no Departamento de
Medicinal Legal” (idem).
228
Sem dúvida, entre os anos de 1985 e 1999, a fama de Badan Palhares, como o
“resolvedor de casos”, foi gradualmente se disseminando: o DMLE da Unicamp foi
chamado a realizar perícias, fornecer pareceres e contestar laudos nos quatro cantos do
Brasil. Para além dos casos que intencionalmente escolhi apresentar neste e no capítulo
anterior, e aqueles citados na reportagem acima, outros de grande impacto político
preencheram páginas e páginas do currículo vitae de Badan Palhares divulgado em seu
site pessoal. Entre eles: o caso de Césio 137, ocorrido na cidade de Goiânia, em 1987; a
identificação das possíveis ossadas do menino José Antônio Penha Brito Junior de 13
anos de idade, desaparecido em 1988, na praia de Ipem/Calhau, Maranhão; o exame
necroscópico do sequestrador do avião da VASP, em 1988, oficializado pelo Delegado
da Polícia Federal de Goiânia; o parecer técnico, requisitado pelo chefe do IML do Pará,
sobre o massacre ocorrido em Eldorado dos Carajás, Pará, em 1996, cometidos por
policiais militares contra trabalhadores rurais sem terra etc. (PALHARES, 2007).
Também os nomes a ele associados, como é o caso de Massini, foram
desaparecendo e Palhares reinou soberano como um nome de referência e fama
incontestável. Por contraste, Massini, Daruge, Molina, Muñoz, Tochetto, Veloso de
França etc. passaram, paulatinamente, a figurar como desafetos e adversários. Por
justaposição, as entidades e instituições a eles relacionadas surgiram como antagônicas,
como é o caso do Instituto Oscar Freire, na USP, a Sociedade Brasileira de Medicina
Legal ou outros IMLs, Institutos de Criminalística ou universidades. Para Palhares, a
proeminência do DMLE:
pessoais que flertavam com quimeras – bem reais – como especialidades, centros de
referência, destino de verbas, constituição de “escolas” e “linhagens acadêmicas” etc.
(SIGAUD, 2007). Como argumenta Sigaud (2007, p.151), “a via clássica e menos
arriscada para atingir tal objetivo [construir um nome] é aliar-se ao mainstream, seguir
os grandes nomes”. Isso para, em seguida, distinguir-se, construindo um nome, uma
posição e/ou uma teoria no sistema acadêmico216.
Em diálogo explícito com inúmeros conceitos desenvolvidos pelo sociólogo
Pierre Bourdieu – campo, capital científico e noções como delegação e palavra
autorizada217 – Sigaud (2007, p. 152) ilumina as muitas estratégias que autores e
profissionais universitários utilizam para “ser[em] escutado[s] e reconhecido[s] como
um membro pleno” do “mundo acadêmico”. Tal como sugere a autora, ao tomar como
exemplo Levi-Strauss218, Palhares, como professor recém-contratado pela FCM, depois
de completar sua graduação e de se doutorar em 1985, pela Unicamp, almejava projetar
o DMLE e – a si próprio – ao mesmo lugar dedicado a outros departamentos, institutos
e personalidades de renome no campo da medicina legal.
A princípio, era fundamental render homenagens à forma pela qual o
departamento de medicina na USP estava estruturado e figurava como exemplar.
Todavia, a implementação do departamento de medicina legal na FCM da Unicamp se
tornou, ao longo de sua consolidação, um projeto de dissidência219. A cadeira de
216
Para a antropóloga, tais processos instauram uma “doxa”. Ou seja, “uma crença sem comprovação”
veiculada por “grandes nomes” cuja opinião e intepretação retiram suas garantias das posições de
prestígio ocupadas por tais eminentes professores dentro do mundo acadêmico.
217
No primeiro capítulo desta tese faço um uso estratégico das ideias de delegação e autoridade, tal como
desenvolvidas por Bourdieu (2008) e utilizadas por Sigaud (2007). Contudo, nesse capítulo será
impossível recompor com densidade o “campo acadêmico” da medicina legal, bem como, suas dinâmicas
e estratégias particulares no caso de São Paulo. Alguns desses desdobramentos estão em meus futuros
empreendimentos de pesquisa.
218
Faço menção às interpretações feitas ao artigo de Marcel Mauss, Ensaio sobre a Dádiva, por Lévi-
Strauss. Segundo Sigaud (2007), tal uso de Lévi-Strauss teve por efeito consagrar uma certa leitura da
obra de Mauss, para que por intermédio dela, Lévi-Strauss pudesse se inserir no mundo acadêmico
francês, cuja mecânica pressupõem enunciar a si mesmo como um seguidor de um mestre (Mauss) para
em seguida distinguir-se dele, apontando um “erro que lhe permitia fazer avançar sua própria teoria e
superar Mauss” (SIGAUD, 2007, p. 139). A “a crença da justeza de suas interpretações” aliada à
“ascensão de nossos dois personagens na hierarquia de prestígio dentro e fora do mundo dos
antropólogos” permitiu que os difusores que os seguiram, seus alunos em especial, jamais retornassem
aos exemplares de Mauss “para verificar a pertinência das interpretações” veiculadas por Lévi-Strauss
(Idem, p.151).
219
Aqui gostaria de salientar que a formação do DMLE é praticamente concomitante à consolidação da
Faculdade de Ciências Médicas e da Universidade Estadual de Campinas, ambas fundadas, em meados
dos anos 60, como centros de excelência. No site destinado a história institucional da faculdade de
Ciências Médicas da Unicamp, há inúmeras informações sobre tal processo de criação e consolidação.
Chama atenção que, em tal memorial, a faculdade de medicina seja comparada a uma espécie de
“embrião” da própria Universidade Estadual de Campinas. Isto porque, a universidade foi oficialmente
fundada em 1966, ao passo que a faculdade de medicina já se encontrava em funcionamento desde 1959,
230
medicina legal e ética, para a qual Badan Palhares foi aprovado em função da
aposentadoria compulsória de seu orientador Arnaldo Siqueira, era um primeiro passo
de um curto caminho que o levou, em outubro de 1986, a ser empossado, pelo diretor da
FCM, como chefe do departamento. Segundo Palhares, como aluno, orientando e
assistente de necropsia de Arnaldo Siqueira, o professor teve papel fundamental em
torná-lo conhecido junto à Sociedade Brasileira de Medicina Legal e no campo da
medicina legal. Arnaldo Siqueira, por sua vez, comandou o IML de São Paulo durante
os “anos de chumbo” e foi acusado de omissão em muitos laudos fraudulentos
produzidos pela instituição220. Sem dúvida, a proximidade e a distância de Palhares com
a ditadura se apresentam como um entre tantos aspectos que tornam ainda mais
intricadas as tramas políticas, institucionais e acadêmicas nas quais ele se inseriu. As
homenagens prestadas a Harry Shibata, publicadas em sua autobiografia, e sua relação
estreita com Romeu Tuma requalificam rumores, boatos e intrigas.
Por intermédio desses efeitos de luz e sombra, toda essa trama que se desenrola
pelos corredores da Unicamp, também deixa à mostra o IML de Campinas. Mesmo em
baixo relevo, o IML da cidade, por conexões semelhantes àquelas forjadas entre o
Instituto Oscar Freire e o IML da capital, figurava no cenário nacional. Como afirmou
Zappa, durante a entrevista a mim concedida, as instituições naqueles tempos – mas, eu
diria desde sempre – eram personificadas por meio de nomes cujas carreiras
conjugavam, simultaneamente, o cargo de médico-legista à atuação de professor
universitário em medicina legal. São posições que se retroalimentam. Nesse sentido,
Badan Palhares era um nome de repercussão cuja existência vinculava legistas e o
próprio IML de Campinas aos casos investigados no DML. O nome de Antônio
Francisco Bastos é um bom exemplo dos procedimentos que busco salientar. Bastos
integrou a equipe de legistas que seguiu a Maceió para a realização da segunda perícia
do caso PC Farias. Contudo, ele não era professor do DMLE. Ao contrário, era amigo
pessoal de Palhares e, na época, atuava como médico-legista e diretor do IML de
Campinas221.
devido ao projeto de lei escrito pelo deputado estadual Ruy de Almeida Barbosa. Para ver mais:
https://www.fcm.unicamp.br/fcm/historico/1946-1962.
220
Segundo reportagem publicada pela revista Fórum, em 2012, Nelson Massini teria questionado
Siqueira sobre seu envolvimento com a ditadura, quando foi chefe do DMLE, entre os anos de 1989-
1991. Siqueira, entre lágrimas, teria afirmado a Massini que “tinha filho para criar” (Revista Fórum, 27
de junho de 2016).
221
Bastos, mais tarde, foi acusado de facilitar o roubo de 300 kg de cocaína apreendida pela Polícia Civil
e armazenada nas dependências do IML (Folha de São Paulo, 03 de fevereiro de 1999, capa). Palhares
231
(2007), em contraposição, salienta a injustiça dessas acusações e relaciona indiretamente tais eventos às
intrigas em curso durante o caso PC Farias.
222
Entidade que mais tarde ele escolheria por não fazer parte, evitando, inclusive, os eventos de medicina
legal organizados por seus membros.
223
Como demonstra o autor, as manifestações rituais levavam à cena, no contexto de Bali, os principais
temas do pensamento político balinês: “o centro é exemplar, o status é o terreno do poder, a arte de
governar é uma arte teatral” (GEERTZ, 1999, p.152). Tal formulação tinha o mito de organização dos
reinos de Bali como horizonte: a fundação de uma corte javanesa era, aos olhos dos balineses, não apenas
um centro de poder, mas um padrão de civilização. A crescente diversidade oriunda da dissolução de uma
unidade devido ao processo de dispersão que culminou numa “pirâmide acrobática de reinos” era,
todavia, assentada nos processos cerimoniais e de prestígio (relações de suseranias e vassalagens
232
“encenações [são] parte das técnicas do próprio poder em exercício” e do IML como
peça que compõe as instâncias estatais no âmbito da segurança pública.
Mas, o que significa coexistirem no estado de São Paulo dois departamentos de
medicina legal de renome e fama? Quais os efeitos de um legista de uma cidade do
interior ter projeção como o “herói nacional” para o ofício? Como um departamento
inquestionavelmente tão jovem, se comparado ao Instituto Oscar Freire, poderia
sustentar sua meteórica notoriedade? Como Palhares, concursado em um IML
localizado no interior do estado de São Paulo, capitaneou tantos holofotes? Qual o papel
dos veículos midiáticos na projeção e ruína profissional de Badan Palhares?
No caso Mengele, Palhares é chamado a determinar a origem anatomopatológica
da fístula encontrada na região malar do carrasco. Ao fazê-lo, acaba por borrar a autoria
da identificação que já havia sido realizada pelo IML de São Paulo. O busto de cera
com as feições de Mengele, jovem e envelhecido, arremata a “confirmação” definitiva,
mas, ainda assim, somente “altamente provável” do esqueleto encontrado em Embu das
Artes. Tal resultado consequentemente dá projeções nacionais ao DMLE, a Campinas e
a Badan Palhares. Já no caso de Perus, outros expedientes são empreendidos. A imensa
expectativa de identificação acerca de uma quantidade descomunal de ossadas lança
dúvida às habilidades de Palhares. A certeza atestada quanto à identificação de
Frederico Mayr, Denis Casemiro e outras quatro ossadas individualmente enterradas em
Perus contrasta com as reticências em reconhecer, com rapidez e eficiência, as ossadas
exumadas em Xambioá, como sendo de Maria Lucia Petit da Silva. O longo tempo e as
ineficiências em torno do Projeto Perus anunciam um descontentamento que acabaria
por envolver o DMLE numa espiral de descrédito. O caso PC Farias, por sua vez,
inflama um período de acusações, já em curso e irreversível, contra Badan Palhares, o
departamento e a medicina legal campineira que engloba inevitavelmente o IML como
aparato técnico e pericial
As polêmicas sobre a altura de Suzana Marcolino deflagram, de modo veemente,
tais conflitos. Por meio dos mesmos expedientes de repercussão e memória, a Folha de
São Paulo contribuiu, preponderantemente, para essa mudança de rota: “Estudo de
Badan derruba seu próprio laudo”/ “4 ossadas de Perus confirmam método de legista”
(Folha de São Paulo, 5 de maio de 1999, p. 13). As medidas feitas de modo indireto e
usadas por Palhares para produzir os dados antropométricos das ossadas enterradas em
simultâneas). Esses últimos, por consequência, desvelavam as frágeis relações de subordinação, tal como
a imagem de um castelo de cartas.
233
Perus passam, naquele momento, a ser utilizadas contra ele. As conexões entre os casos
que levaram à visibilidade e à consolidação do DMLE e de Palhares serviam também
para justificar seu descrédito.
Como salientaram os jornalistas Cesar Guerrero e Gustavo Maia, em reportagem
a Isto é Gente, intitulada “O calvário de Badan Palhares”:
“De acordo com Massini, Tuma teria (...) ligado para Divaldo
Suruagy sugerindo que Palhares entrasse no caso, Suruagy teria
enviado um ofício para a Unicamp, onde Badan Palhares trabalha,
pedindo que ele fosse cedido para as investigações. ‘Ele não foi
convidado pelo Ministério da Justiça, mas pelo governador de
Alagoas’, disse [Massini]” (Folha de São Paulo, 26 de novembro de
1999, p.5).
224
Ao usar o termo repercussão, portanto, gostaria de chamar atenção aos “efeitos que [determinado caso
pericial] pode vir a provocar em diferentes âmbitos de intervenção, para além de seu alcance social ou
midiático” (EILBAUM; MEDEIROS, 2015, p. 415). Nesse sentido, busco lançar luz àquilo que esses
casos incitam, tanto pela espetacularização política e midiática que expõem quanto pelo tipo de
engajamento institucional e pessoal que agenciam.
234
sobre o caso Mengele, em 2016. Ou ainda, sustenta as críticas que Ricardo Molina,
último chefe do departamento, passou a orientar aos relatórios fornecidos para o
“Projeto Perus”, ao próprio departamento e à Unicamp.
As tramas políticas e institucionais que acabaram por extinguir o DMLE,
semelhante àquilo visto por Gregori (1999)225, encerram um projeto de perícia e de
medicina legal. Como afirmou o próprio Badan Palhares:
A magnitude física do DMLE e suas pretensões de ser “um ponto de apoio para
medicina legal nacional” eram entremeadas pela visibilidade que Palhares buscava
alcançar. Ao me contar sobre suas aspirações profissionais, Palhares afirmou: “você
nunca mais ouviu falar em repercussão médico-legal em lugar nenhum. Acabou!”
(Entrevista realizada em outubro de 2016).
Sem dúvida, seu perfil de legista era profundamente diferente daqueles com
quem me relacionei ao longo dos meus quatro anos de pesquisa, circulando por
universidades, IMLs, palestras e cursos de formação que tinham a medicina legal ou a
perícia criminal como objeto de reflexão e atuação. As “investigações tipo CSI”,
formuladas por muitos legistas mais jovens como irreais ou idílicas, tinham, nas
ambições de Palhares, um lugar de destaque. Como “herói nacional”, vilão e pessoa
não grata à medicina legal, a trajetória de Palhares revela, como afirmei no capítulo IV,
uma “miríade de acontecimentos entrelaçados” e “uma multidão de erros e fantasmas”
(FOUCAULT, 1979, p.28). Daí minha ênfase em nomear seus casos por meio da
expressão arquivos malditos. Ao usar o termo, lanço luz ao caráter, simultaneamente,
225
Gregori (1999) mostra como a fase áurea da instituição da Secretaria do Menor resultou num
paralelismo cujas consequências políticas acabaram por enfraquecer a implementação de novas políticas
de atuação junto à infância. Dependente da boa vontade de políticos e gestões públicas, a Secretaria
conseguiu melhorar sobremaneira os serviços de atendimento, investindo em salários, equipamento e
recursos humanos. Contudo, não conseguiu criar “coalizões ou alianças nem no interior do campo
institucional do governo, nem em suas relações com as entidades organizadas da sociedade civil”.
(GREGORI, 1999, p. 178). A variedade de tais entidades e de atuações – alimentar, abrigar, documentar
ou reaproximar os menores de suas famílias – levavam a fragmentações e circularidades institucionais
insolúveis. A rebelião na Febem, em 1992, instaurou uma crise já em curso. O desmanche dos antigos
programas foi inevitável. A Secretaria da Criança que surgiu em seguida, apostou numa nova forma de
gestão, calcada em convênios e parcerias que, na prática, desmantelavam toda uma densa trama
institucional sob a égide do estado.
236
invejável, nocivo e prejudicial que os laudos tiveram na carreira e nas instituições pelas
quais Badan Palhares circulou. Ao fazê-lo, contudo, não busco frisar qualquer
propriedade mágica imposta a esses artefatos. No sentido de que eles – os laudos e suas
cópias organizadas em arquivo – foram amaldiçoados em função de uma sequência de
acontecimentos ocasionados por obra do azar ou da praga de outrem. Antes, intento
salientar os enredamentos insolúveis entre papéis, pessoas e instituições. Se
documentos, nos termos de Navaro-Yashin (2007, p. 87), “carregam a imagem da
prova, da estabilidade e da durabilidade”, também guardam, em suas entranhas, todos os
aspectos “kafkianos” de sua feitura: as ansiedades, os absurdos e outras explosivas
fantasmagorias (erros, intenções escusas e obscuras, ligações políticas perigosas etc.).
Desse imaginário de enigmas e mistérios, a ânsia de Palhares em ter controle de
todos os elementos que, fragmentados e apartados, conformam um crime rendeu a ele a
pecha de o “resolvedor de casos”. Todavia, sua figura centralizadora confronta com as
lógicas pelas quais cargos, funções, especialidades, atribuições, vaidades, relações
pessoais e burocracias são distribuídas em malhas administrativas que enredam
universidades, IMLs, distritos policiais, entidades de direitos humanos, secretarias
municipais e estaduais etc.
Badan Palhares é um nome e uma assinatura. Há um contraste imediato entre os
casos por ele periciados e aqueles que, no terceiro capítulo desta tese, aparecem
assinados por legistas cujos nomes são invisibilizados pelo cargo e pela função oficial
de médico-legista que exercem. Segundo Carvalho, tal contraste desvela duas formas de
produzir provas colocadas em disputa. A primeira delas remontaria aos longínquos
ensinamentos do direito romano e resultaria numa formulação bastante simples: um
determinado ato tem (ou não) materialidade. O legista ou o perito, com vistas a
produzir seu laudo, observa o corpo, o local dos fatos, faz suas anotações e encerra o
documento médico ou pericial determinando se há ou não elementos materiais: lesões,
substâncias, digitais etc. A segunda, ancorada em práticas de perícia desenvolvidas em
solo norte-americano, teria como máxima a frase: “tudo nos leva a crer” ou “diante dos
elementos encontrados, a dinâmica dos fatos mais convincente...”. Nesse tipo de prática
forense, uma cena é remontada baseada na ordenação racional ou coerente das
informações e fatos levantados em diferentes áreas investigativas: legistas, peritos de
local, resultados laboratoriais e inquirição policial. O resultado é a formulação de uma
hipótese mediante uma peça coesa aos moldes CSI.
237
226
Lomnitz (2014) mostra como, no caso Arroyo, o periódico El Imparcial gozava de uma posição
privilegiada frente a outros jornais mexicanos. Tal lugar respondia, por um lado, aos fortes subsídios que
o jornal recebia do governo de Porfirio Diaz e, por outro lado, condizia à escolha do periódico pelo
239
“Entendo (...) que existam situações específicas [de acesso] como a pesquisa
e a estatística. As prefeituras, por exemplo, utilizam os dados única e
exclusivamente com finalidade estatística e devem pesquisar os diagnósticos
nos laudos e fazem isso. Não fosse assim, ninguém faria estatística. No caso
da Prefeitura Municipal de Campinas, os laudos são liberados todo mês
para alimentar o banco de dados” (Caderno de Campo).
Ah, é claro que sua pesquisa foi negada. Você é de Campinas, da Unicamp.
Se você fosse da USP ou se você quisesse pesquisar o IML de São Paulo
[reticências], tenho certeza que eles aprovariam (Caderno de Campo).
“De fato, o saber que o Estado tem que constituir de si mesmo e a partir de si
mesmo, esse saber correria o risco de perder certo número dos seus efeitos
e não ter as consequências esperadas se, no fundo, todo mundo soubesse o
que acontece. Em particular, os inimigos do Estado, os rivais do Estado,
não devem saber quais são os recursos reais de que este dispõe em
homens, riquezas etc. Logo, necessidade de segredo. Necessidade, por
conseguinte, de pesquisas que sejam coextensivas ao exercício da
administração, mas também à necessidade de codificação precisa do que
pode ser publicado e do que não deve sê-lo (FOUCAULT, 2008, p. 367).
Em outubro de 2015, o governo estadual de São Paulo ganhou as páginas de inúmeros periódicos e sites de notícia do
país. A manchete publicada no El País Brasil era exemplar quanto à denúncia em curso: “Os segredos que o governo
Alckmin tinha e ninguém sabia” (El País Brasil, 17 de outubro de 2015, online). A reportagem, assinada por Gil Alessi e
Marina Rossi, desvelava os enredos soturnos que teriam levado o governo do estado a decretar o sigilo de cem anos
para documentos públicos produzidos em empresas e autarquias estaduais como a Companhia Paulista de Trens
Metropolitanos (CPTM), a Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos (EMTU), a Companhia de Saneamento Básico
do Estado de São Paulo (SABESP), a Polícia Militar (PM) e a Secretaria de Administração Penitenciária (SAP). Sem
divulgar a origem das fontes mencionadas, a denúncia chegou a público depois que “jornalistas (...) pediram
informações via Lei de Acesso e receberam como resposta que essas [informações] eram secretas” (idem). Dentre os
documentos protegidos e inacessíveis, estariam projetos técnicos e operacionais, relatórios de obras, boletins de
ocorrência, regimes de gestão etc. A matéria jornalística reunia, ainda, inúmeros especialistas – advogados,
promotores, professores de gestão pública e especialistas em temas como transparência das instâncias estatais –
para opinar sobre os motivos e interesses por trás de tal impedimento de acesso. Termos como “transparência”,
“interesse público”, “improbidade administrativa” ou “legalidade” organizavam a cena. O governador do estado de São
Paulo, Geraldo Alckimin (PSDB), frente às polêmicas, tomou medidas paliativas. Como sugeriram os repórteres do El
País Brasil, “Alckimin anunciou a criação de uma comissão para avaliar os documentos sob sigilo. Na sexta-feira [16 de
outubro], publicou no Diário Oficial um decreto no qual revoga a classificação secreta dos documentos e limita que
242
essas decisões só poderão ser tomadas por ele mesmo ou seu vice, secretários de Estado e procuradores” (El País
Brasil, ibidem).
Terminei o último capítulo desta tese com a pergunta: ‘a que (ou a quem) serve um
laudo?’ Ou melhor, ‘quais conclusões e justiça para quais corpos, cadáveres e contextos?’.
Contudo, formular uma única resposta a tais indagações conforma uma armadilha. Não
acesso, laudos de corpo de delito, tramas e histórias pregressas de nomes e instituições não
perfazem, como busquei argumentar, uma somatória de partes que reunidas formam um todo
coerente e/ou estável. Por conseguinte, ao reunir, nestas notas finais, duas assertivas de meus
interlocutores, um trecho proferido por Michel Foucault (2008) e uma denúncia empreendida
contra o governo do estado de São Paulo, em 2015, busco enredar o leitor aos importantes fios
que perpassaram esta tese.
A primeira das assertivas, sobre a distinção/semelhança entre pesquisas acadêmicas e a
produção de estatística, versa sobre alguns dos esclarecedores diálogos estabelecidos junto ao
principal interlocutor de minha pesquisa. Com esta reflexão, tal médico-legista defendia que
minha pesquisa poderia ser comparada às estatísticas produzidas pela prefeitura municipal de
Campinas. Em vista disso, seu comentário também visava a estabelecer uma continuidade
entre esta minha investigação e aquela que eu havia realizado junto à DDM de Campinas
durante meu mestrado. Para ele, meu recorte empírico permitiria que eu viesse a compreender
e avaliar toda a “rede de atendimento” forjada na cidade para casos de violência sexual.
Nesse sentido, minha tese de doutorado, em seus termos, poderia ser convertida em uma
ferramenta política destinada a “otimizar” serviços e procedimentos.
A segunda frase me foi dita por um funcionário do IML, alguns minutos depois que eu
havia finalizado formalmente a entrevista que ele gentilmente havia me concedido. Com um
misto de humor e sarcasmo, o médico-legista que a proferiu acreditava que o indeferimento
de minha solicitação de pesquisa pela Comissão Científica do IML, localizada na capital,
guardava relações diretas com a instituição universitária na qual eu estava matriculada. Ser
aluna da UNICAMP, da área de ciências humanas e, ainda, pedir acesso para realizar uma
pesquisa junto ao IML de Campinas eram justaposições que, para esse legista, escondiam
tramas e conflitos que eram para mim, naquele momento, completamente nebulosos.
A epígrafe de Foucault (2008, p. 365), por sua vez, refere-se a um “conjunto de
conhecimentos técnicos” que, para o autor, buscam “caracterizar a realidade do próprio
Estado” naquilo que o filósofo chamou de uma nova razão de Estado. Vista à luz de uma
243
228
Há uma relação profunda entre “pastorado” e essa “nova racionalidade de Estado”. Como síntese de seus
argumentos, gostaria de enfatizar dois pontos fundamentais de tal imbricação. O primeiro deles é a ideia de que
o poder pastoral é um tipo de poder religioso que estabelece uma relação fundamental entre Deus e os homens.
É, nesse sentido, um poder que se exerce sobre o rebanho, um poder benfazejo, um poder do cuidado. O pastor
deve “zelar” por todo o rebanho, deve manter uma contínua vigilância sobre ele; deve cuidar do bem-estar de
todas as ovelhas do rebanho sem se esquecer de nenhuma ovelha individualmente. O segundo ponto sublinha a
maneira pela qual a Igreja cristã buscou coagular todos esses temas do poder pastoral em mecanismos e
instituições precisas e definidas. O poder pastoral, como pastorado, torna-se uma rede institucional densa,
complexa, compacta e que se espalha globalmente. Por conseguinte, configura-se como uma arte de conduzir,
dirigir, levar, gerir, controlar e manipular os homens. Torna-se, por assim dizer, o pano de fundo daquilo que
aparecerá, tempos depois, como governamentalidade.
244
Contudo, tal qual nos incita a pensar o excerto de Foucault (2008), “esse saber [que
caracteriza a realidade do Estado] correria o risco de perder certo número dos seus efeitos e
não ter as consequências esperadas” exatamente se explicitado e divulgado a ponto de “todo
mundo [saber] o que acontece” (FOUCAULT, 2008, p.367). Como um conjunto de
conhecimentos/procedimentos técnicos, os documentos da Sabesp, da PM ou da CPTM
especificam elementos e conteúdos, assim como emolduram as instâncias e setores do Estado
como uma totalidade cujas partes seguem orquestradas e coerentes. Como sugerem Mitchell
(2006) e Abrams (1988), tais mecanismos e práticas forjam e dão materialidade a um certo
“efeito de Estado” que, como uma formulação abstrata-formal, por um lado, serve de
postulado e de “cativeiro ideológico” e, de outro lado, trabalha exatamente a serviço do
mascaramento/apagamento da não coesão das práticas políticas e de governo 229 (ABRAMS,
1988).
Como busquei apresentar no decorrer desta tese, experimentei, ao longo de minha
pesquisa, diferentes modos pelos quais se nega ou se permite acesso àquilo que se demanda
ver, participar ou observar230. Argumentei que o não acesso é uma forma de acesso bastante
vigorosa. Se, como alerta Abrams (1988, p. 62), uma habilidade fundamental do poder estatal
é “reter informações, evitar a observação e ditar os termos de conhecimento”, então, ao me
arriscar nessa empreitada, intentei etnografar “o mundo dos segredos oficiais” não como algo
que está escondido, mas como técnicas que incitam a ver determinadas informações, termos,
relações e funções da instituição. Na contramão da crença de um fundo mais real, que deve
ser encontrado sob a face visível de dizeres, papéis e tramas, empenhei-me em evitar
unificações definitivas que reificassem o Estado como um ente que paira sobre todos nós231
(MITCHELL, 2006). Nesse sentido, as estratégias e os impedimentos de acesso a salas,
arquivos e funcionários ditam os termos de conhecimento pelos quais as mecânicas do poder
229
Abrams (1988) não fala apenas daquilo que, em certa medida, faz do abstrato concreto, mas, principalmente,
aquilo que dá existência ao não existente. (ABRAMS, 1988, p. 79).
230
Durante esta tese, muitos foram os momentos nos quais ter informações se assemelhava a ouvir um segredo.
Por contraste, muitas também foram as interações em relação às quais eu não sabia dimensionar o risco que eu
ou meu interlocutor corríamos, caso eu viesse a publicizar, de modo equivocado, certos relatos ou opiniões
concedidas sem cautela ou prudência.
231
Como salienta Mitchell (2006), é importante descrever as linhas internas que são continuamente traçadas sob
os mecanismos institucionais, os quais produzem uma ordem social e uma ordem política como entidades
discretas e apartadas. Tomando como exemplo as relações do governo americano com a empresa Aramco de
Petróleo, ou melhor, os consórcios que dão direito ao acesso ao petróleo da Arábia Saudita, o autor visa a
assinalar a permeabilidade da fronteira Estado-sociedade, bem como os significados políticos de mantê-la. O
caso Aramco demonstra como não existe um exterior real, assim como coloca em relevo que construir essa
fronteira é um mecanismo que gera recursos de poder, disfarça o papel desta empresa na formulação de uma
política internacional e sua força como parte da grande ordem política.
245
232
Faço alusão aqui à pesquisa de mestrado que realizei junto à DDM de Campinas. Sem a autorização
concedida pela delegada titular daquela corporação, seria inviável realizar uma pesquisa, tal como empreendi,
sobre atuação da polícia civil e suas técnicas de narrar crimes de estupro e atentado violento ao pudor.
246
enquanto um ente, mas cujas fronteiras, quando traçadas, produzem efeitos, muitas vezes,
“mortíferos”, como argumenta Foucault (2008). Não se pode entrar, não se pode pesquisar,
não se pode ver, não se pode encontrar “todos os nomes”, porque não se está investido pela
chave (autoridade) que abre a Conservatória. No entanto, não acessar o IML foi, ao final, o
melhor que poderia ocorrer a minha pesquisa. O não acesso nada buscava esconder. Ele,
o (não)acesso, era uma topografia a ser minuciosamente dissecada. Ou seja, descrever o IML-
ideia era dar atenção as suas fontes, suas estruturas, suas variações, seus modos de atuação,
seus efeitos e toda uma série de posturas efemeramente unificadas, que se processam, elas
mesmas, em relação a questões sempre transitórias e contingentes233. Sustento que é por meio
de tal imagem projetada, difundida e acreditada que a própria corporação produz a si mesma
como uma “realidade coesa”, delimitada, dada de antemão e cuja função é “proteger a
identidade das vítimas atendidas”.
Do repúdio e da desconsideração antecipada às estratégias restritivas de “certos
nativos”234, que detêm um certo tipo de poder institucional e, por isso, podem colocar
dificuldades a pesquisas e pesquisadores (TEIXEIRA, 2014), pode-se vislumbrar, todavia, o
IML-sistema. As tramas porque miúdas, intricadas e/ou esgarçadas desvelam os regimes
classificatórios e as mecânicas pelas quais se produzem diferencialmente materialidades,
corpos, técnicas, vestígios, especialistas e expertises. Nesse sentido, as fragmentações, as
disjunções e justaposições traçadas na tese não são metáforas ou deficiências da pesquisa
(LUGONES, 2012). Antes, recompõem conexões, apoios estratégicos e táticas de governo
que forjam o IML como um campo de disputas.
Do entrecruzamento entre atuações técnicas, oficialidade, cientificidade e
verdade/justiça, laudos figuram como produção de conhecimento e um modo herético de fazer
ciência. A universidade se converte em “balcão” de “serviços à comunidade” e um caminho
seguro e científico para a (in)justiça, mediante casos e perícias. O necrotério/IML se
transforma em anfiteatro e espaço pedagógico. Cadáveres destrinchados e desentranhados,
himens e “fissuras” educam, pelo ver e apalpar, os futuros médicos e a antropóloga em
formação.
233
Ao utilizar o termo IML-ideia, faço alusão à divisão explicativa forjada por Abrams (1988) entre “Estado-
ideia” e “Estado-sistema”. A primeira lança luz às teorias sobre Estado, que dão carne à noção de Estado como
“uma coisa”, tanto na sociologia política, quanto nas teorias marxistas. Vista em relação ao “Estado-ideia”, o
“Estado-sistema” colocaria foco descritivo e analítico exatamente na desunião real do poder político, ou melhor,
na incapacidade dessas instituições de funcionar como uma união prática e manifesta.
234
Nos termos de Teixeira (2014, p. 38), “qualificando melhor a máxima somos todos nativos, se assim o somos,
tais considerações sugerem que existem nativos e nativos: em relação a alguns, desenvolvemos empatia e
anthropological blues; já com outros, nem sequer nos sentimos obrigados ou desafiados a compreendê-los.
247
235
Agradeço a Adriana Vianna por visualizar já em meu texto de qualificação algumas linhas de força que só
vieram a ganhar corpo nestas notas finais. A frase formulada por ela de modo tão bonito e vigoroso permaneceu
viva em minhas elucubrações e nas conexões a princípio indutivas que estruturam a tese.
236
Segundo a reportagem, as crianças, sem nome e destinadas a permanecerem sem identificação, teriam de
“zero a 8 anos”, representariam “40%” dos corpos encontrados e teriam sido enterradas na vala de Perus, como
uma forma do regime ditatorial ocultar um surto de meningite ocorrido em São Paulo, em meados da década de
70.
248
As ideias de justiça e injustiça, nesse sentido, têm, por inspiração, a ideia de “frame”,
tal qual foi formulada por Butler (2009; 2010). Segundo a filósofa, “frame/marco” ou moldura
carregaria dois sentidos: num primeiro sentido, a ideia de enquadrar, como um quadro no qual
se coloca uma moldura – com o intuito de dar relevo ou ampliar uma dada imagem, ou
também embelezar; e, num segundo, enquadrar como uma artimanha, no sentido usado pela
polícia de “enquadrar um determinado sujeito”237. Nesse sentido, um “frame” pretende, de
certa forma, conter, veicular e determinar aquilo que podemos ver de uma dada imagem. Esse
é o efeito produzido, por exemplo, pelos “frames de guerra”. Ao contar a história de Daniel
Pearl, Butler (2009) explicita os elementos que apresentam Danny como um homem de
família, com um rosto conhecido, uma história familiar e uma educação partilhada por
milhões de americanos. Por contraponto a isso, a história do palestino que deseja colocar o
nome de seus familiares, mortos no conflito entre palestinos e israelenses, no obituário de San
Franscisco Chronicle, é visto pelos redatores do jornal como uma ação passível de ser
entendida como ofensiva. De um lado, portanto, estariam as vidas que valem a pena serem
preservadas, vividas e, consequentemente, merecem ser enlutadas quando “perdidas” e, de
outro lado, todas aquelas vidas que, por habitarem os limites daquilo que se considera vida,
acabam por ser desprezadas e condenadas a uma vida moribunda e espectral238.
Seguindo a argumentação da filósofa, a possibilidade de luto público está
completamente relacionada ao compartilhamento de uma espécie de precariedade que assola a
237
No livro da autora, essa segunda proposição aparece como uma tática mediante a qual uma série de provas
falsas é encadeada conferindo aparência de verdade a uma falsa acusação. Eu incitaria o leitor a pensar que
enquadrar, antes do que articular uma série de provas falsas, para produzir uma verdade, é, por excelência, um
ardil, mesmo quando reuni provas legitimadas como verdadeiras a crimes vistos como legíveis e, portanto,
injustos e dignos de penalização. Nesse sentido, como argumenta a autora, tais modos de enquadramento não são
estáticos. A reprodução de um “frame” ao longo do tempo depende das condições ou contextos nos quais esse
molde se reproduz. Em outras palavras, cada vez que um “frame” se reproduz, ele altera parte daquilo que
sustenta sua definição. Ou seja, o que torna um “frame” eficaz, permitindo que perdure ao longo do tempo,
constitui também sua vulnerabilidade, na medida em que sua existência está aberta à transformação.
238
A primeira estória é a do jornalista do Wall Street Journal, Daniel Pearl. Executado por terroristas durante a
cobertura midiática na guerra do Afeganistão, “Danny”, como Pearl foi carinhosamente chamado nas
homenagens e recordações publicadas por colegas de jornalismo, é um caso central para a compreensão daquilo
que Butler (2009) nomeou como vidas choradas ou vidas que valem a pena. A estória de Danny funciona em
contraponto a estória de um cidadão palestino que vive nos Estados Unidos e que enviou ao San Franscico
Chronicle um obituário de familiares assassinados por tropas israelenses nos conflitos entre palestinos e
israelenses no Oriente Médio. Mediante tal pedido, o jornal alegou que não publicava nos obituários as mortes
porque não tinha confirmação efetiva sobre as mesmas. Todavia, informou que o periódico poderia publicar o
texto no espaço “em memória”. O cidadão palestino, em face da negativa, reescreveu e reenviou seu texto ao
periódico. Desta segunda vez o jornal recusou a publicação, enfatizando que o periódico não tinha interesse de
ofender ninguém. Visto por meio de tais contraposições, vidas precárias seriam, para a autora, essas vidas que
podem ser eliminadas, pois não são consideradas como vidas vivíveis, merecedoras de lembrança e de dor. Tais
vidas são definidas, segunda a autora, por seu caráter espectral e de desrealização. Por desrealização, Butler
(2009) mobiliza dois níveis de compreensão. Por um lado, argumenta que certas vidas não são consideradas
vidas, assim, não podem ser humanizadas, pois não se encaixam dentro do marco “dominante” do humano. E,
por outro lado, demonstra como tal discurso produz a violência pelo ato mesmo de sua omissão.
249
todos nós. Não se trata de um reconhecimento propriamente dito, mas de uma condição que só
pode ser apreendida, captada, pressuposta (e também negada) por certas normas de
reconhecimento. É disso que se trata pensar laudos e perícias como modos diversos e sempre
em disputa de “fazer justiça”239. Se a pergunta ‘a que (ou a quem) serve um laudo?’ exige
cautela, isso se faz necessário em função das tramas políticas, midiáticas e institucionais que
enlaçam atuações ditas apenas (ou, sobretudo) como técnicas e científicas.
Assim, da disseminada oficialidade e tecnicidade de laudos e perícias emergem as
relações, os interesses e vaidades pessoais que enredam casos e condutas. Um irmão se torna
a justificativa mais poderosa quando se trata da atuação técnica em medicina legal; contatos
profissionais justificam indicações e dão fiança moral a legistas e peritos; nebulosas relações
pessoais conformam acordos, convênios e organizam a atuação de universidades, corporações
policiais, órgãos públicos, prefeituras etc. Há nos exames periciais, bem como em suas
transposições em documentação, muitas noções de tempo, seleção, ordenação e legibilidade
que se entrelaçam de diferentes formas em cada caso. Produzem uma rede de discursos que
conectam pessoas, instituições e convencionam materialidades por meio de técnicas periciais
sempre restritivas diante da polissemia de elementos dispostos nos corpos a serem
investigados.
Como sugere Ferreira (2009, p.23), a partir de premissas weberianas, ainda que “a
impessoalidade” atravesse as formas de administrar levadas a cabo pelas instâncias estatais,
disso não se pode “derivar que procedimentos burocráticos sejam puramente formais e
destituídos de pessoalidade”. Todavia, estas mesmas interações e disputas entre quadros de
funcionários, atuações com “fé pública”, arquivos e técnicas, quando adjetivadas como
pessoais, não tornam, nem conformam como “menos burocráticos” os aparatos e expedientes
de administrar (FERREIRA, 2009, p.24). Ao contrário, como salienta a autora, e como
intentei assinalar no decorrer desta tese, por intermédio da noção de trama, os conflitos, as
disputas, os contenciosos e as relações pessoais constituem ciência, técnica e modos de “fazer
justiça”.
Nesse sentido, ao usar o conceito de “trama”, lanço luz à potencialidade que a
conceitualização de Gregori (1999) nos permite acionar. Trama, como um conceito vigoroso,
enlaça não apenas as relações entre instituições conformadas de antemão, mas permite
239
O número de pesquisadores que têm se debruçado sobre o tema é enorme. Contudo, gostaria de destacar as
pesquisas de Gregori (1999), Vianna (2002) e Lugones (2012) no que tange à gestão de minoridades e infâncias;
as pesquisas de Ferreira (2009; 2015), Lowenkron (2015), Lacerda (2012), Efrem Filho (2017), Farias (2015) e
Vianna (2013; 2014) sobre os múltiplos entrecruzamentos entre instâncias estatais, aparatos burocráticos, causas
políticas e violência.
250
delinear como tais fronteiras são traçadas por atores, regulamentações e soluções
administrativas. Ademais, ao falar de trama e suas figurações sublinho o caráter político,
desigual, esgarçado ou intricando que tal noção ajuda a abarcar, através de sua forma verbal –
tramar240. Visto por meio de tal embocadura conceitual, também as “denúncias constantes
sobre o mal proceder [das instâncias estatais] ou os desajustes de suas partes” não desfazem a
“reiteração contínua de unidade e da idealização que cerca e sustenta” (VIANNA, 2013, p.
18) aquilo que Teixeira e Souza Lima (2010, p. 57) denominam por “administração”.
As tramas ou as “possibilidades de nomeação, qualificação, aliança e oposição entre
atores diversos” são os modos pelos quais “o Estado” é traçado e atua; fixa e destitui
“limites, fronteiras e unidades organizacionais, políticas e morais” (VIANNA, 2013, p. 21).
Tais técnicas de gestão, nesse sentido, incluem os jogos partidários, a esfera do direito, ONGs
que exercem “funções de Estado”, agências técnicas internacionais e segmentos do
empresariado sem os quais jamais compreenderíamos a “máquina pública” (TEIXEIRA;
SOUZA LIMA, 2010, p. 57). Ao dizer isso, sugiro que as tramas são sempre atos de tramar;
se fazem visíveis pelo acúmulo de fios e linhas; podem ser simultaneamente urdidura,
artimanha e ardil. Se o IML figura como uma circunscrição, depois de minha pesquisa,
todavia, ele só ganha contornos mediante conluios intrincados (e, por vezes esgarçados)
estabelecidos com outros entes, eles mesmos provisórios, tais como a universidade,
associações profissionais e científicas e aparatos midiáticos.
240
Para ver outros usos interessantes de trama, Telles e Cabanes (2006) e Padovani (2015).
251
Bibliografia
Imagens e figuras
Caso Mengele
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ROSTO de Josef Mengele foi reconstruído com base em técnica de 1954. Jornal do
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POLÍCIA alemã diz que corpo é de Mengele. Folha de São Paulo, 10 de junho de
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Primeiro Caderno, Brasil, p.9.
LAUDO diz que Suzana matou PC e se suicidou. Folha de São Paulo, 10 de agosto de
1996. Folha Sudeste, Cidades/Esportes, p.7.
LEGISTA se recusa a comentar necropsia. Folha de São Paulo, 31 de março de 1999.
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MAGALHÃES, Mário. Badan não mediu Suzana, mostra vídeo. Folha de São Paulo,
31 de março de 1999. Primeiro Caderno, Brasil, p.6.
MAGALHÃES, Mário. Morte de PC voltará a ser investigada. Folha de São Paulo, 25
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PARA irmã de Suzana, laudo está errado. Folha de São Paulo, 30 de setembro de 1997.
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PC FARIAS é assassinado em Maceió. Folha de São Paulo, 24 de junho de 1996.
Capa.
POLÍCIA insiste em crime passional. Folha de São Paulo, 25 de junho de 1996. Capa.
POLÍCIA comete sequência de falhas no caso. Folha de São Paulo, 26 de junho de
1996. Primeiro Caderno, Brasil, p.6.
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BADAN Palhares participou de casos de repercussão nacional. Folha de São Paulo, 27
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Revista Veja, 09 de janeiro de 1991. Editora Abril, edição 1 164, ano 24.
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271
Anexos
I. Dos Documentos
1. Carta de apresentação
A pesquisa tem por objetivo dar continuidade aos estudos iniciados em minha pesquisa
de mestrado241 e busca oferecer elementos para a compreensão de como são produzidas
as provas materiais em casos de estupro no Núcleo Técnico de Perícia, no Instituto
Médico Legal de Campinas – SP. Com o objetivo de percorrer e analisar, a partir de
uma perspectiva antropológica, os discursos técnicos formulados por meio de laudos de
exame de corpo de delito realizados em corpos vivos. Meu interesse é esmiuçar as
descrições, conclusões e terminologias médicas que permeiam esses documentos
241
Pesquisa realizada na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas entre os anos de 2009 e
2011. Além do levantamento de um corpus documental de, aproximadamente, duzentos Inquéritos
Policiais de Estupro e Atentado Violento ao Pudor, entre os anos de 2004 e 2005, a pesquisa acompanhou
o cotidiano de trabalho da corporação no decorrer de, aproximadamente, dois anos de pesquisa realizada
diretamente nas dependências da DDM. A dissertação defendida e aprovada em junho de 2012, pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, tem como título: “Descrever crimes, Decifrar
convenções narrativas: uma etnografia entre documentos oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de
Campinas em casos de estupro e atentado violento ao pudor”.
272
oficiais, bem como suas possíveis inserções no Inquérito Policial (IP) produzido pela
Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) e sua relevância no resultado final de processos
de estupro tramitados no Fórum de Campinas. Neste sentido, a pesquisa visa
problematizar os mecanismos de produção desse tipo de escrita técnica-pericial,
buscando compreender os mecanismos de institucionalização desses Institutos Médico-
Legais, sua produção como saber técnico científico, bem como destacar suas
especificidades no caso de sua história na cidade de Campinas. A metodologia que
pretendo adotar é qualitativa e tem como intuito percorrer a linguagem escrita e estética
desses laudos, mas também outras linguagens - assinaturas, numerações, carimbos e
protestos de fé - que tornam esses documentos peças oficiais que comparecem como
provas materiais nos crimes estudados. É de interesse, também, desse projeto
acompanhar o cotidiano de trabalho da instituição, bem como das carreiras dos
profissionais que formam seus quadros profissionais. Saliento que, seguindo o Código
de Ética definido pela Associação Brasileira de Antropologia, me certificarei de
proteger a intimidade de todos os profissionais participantes da pesquisa, bem como de
registros que identifiquem documentos e procedimentos sigilosos da instituição.
__________________________________________
Larissa Nadai
N°Doc (RG): XXXXXXXX
Pós-Graduanda em Ciências Sociais
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Contato: ______________________
___________________________________________
Maria Filomena Gregori
N° Doc. (RG): XXXXXXXX
Orientadora
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Contato: ______________________
Solicito por meio desta a avaliação do projeto de minha aluna de doutorado Larissa
Nadai, matrícula 033862, intitulado “Entre documentos de investigação: uma
pesquisa sobre a produção de provas materiais em casos de estupro”. O projeto foi
financiado pela CNPq (Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)
de julho de 2012 a fevereiro de 2014. E, agora, a partir de março de 2014, é financiado
pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). A aprovação
do mesmo pela Comissão Científica do IML é de suma importância para que Larissa
Nadai possa realizar sua pesquisa entre os laudos periciais, em especial laudos de corpo
de delito envolvendo casos de estupro e atentado violento ao pudor, entre os anos de
2003 e 2006. E para a observação do cotidiano de trabalho do Instituto Médico Legal
em Campinas, acompanhando o trabalho de peritos e médicos legistas em casos
envolvendo crimes de estupro e estupro de vulnerável. Esse material será utilizado em
suas futuras análises na tese de doutorado a ser defendida no Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais, pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP.
Por fim, conto com a valiosa colaboração desta Comissão Científica para o bom êxito
deste estudo e me coloco à inteira disposição para eventuais esclarecimentos e entrega
de outros documentos necessários.
Agradeço antecipadamente,
___________________________________________
Maria Filomena Gregori
N° Doc. (RG): XXXXXXXX
Orientadora
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp
Contato: ____________________
Larissa Nadai
ABRIL, 2014.
Resumo
Minha pesquisa de doutorado tem por intuito colocar sob reflexão os documentos
oficiais de perícia produzidos pelo Instituto Médico Legal (IML) de Campinas em casos
de estupro. Ao me centrar nessas provas materiais, dou continuidade aos estudos
iniciados em meu mestrado, no qual me debrucei sobre os documentos oficiais
produzidos pela Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de estupro e
atentado violento pudor, entre os anos de 2004 e 2005. Agora, com o intuito de realçar,
especificamente, essas provas materiais, buscarei percorrer os discursos técnicos
impressos nesses laudos de exame de corpo de delito realizados em corpos vivos, com o
interesse de visibilizar suas descrições, conclusões e terminologias médicas, assim
como suas possíveis inserções no inquérito policial (IP) produzido pela Delegacia de
Defesa da Mulher (DDM) e sua relevância no resultado final de processos de estupro
tramitados no Fórum de Campinas. A metodologia adotada é qualitativa e tem como
intuito percorrer a linguagem escrita e estética desses documentos periciais.
Introdução
242
http://www.polcientifica.sp.gov.br/institucional_IML_historico.asp
243
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou
permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
244
Dentre tais procedimentos destaco: os depoimentos de vítima, autor (quando conhecido) e de possíveis
testemunhas, bem como diligências e papéis protocolares endereçados a setores internos da DDM ou
externo a ela (IML, Setor de Criminalística ou ao Fórum). São agregados, ainda, a esses inquéritos os
laudos periciais da vítima, os antecedentes criminais do autor, os laudos de peças, local e armas (quando
existem) remetidos pelo Instituto de Criminalística e os pedidos de prisão preventiva executados durante a
275
entre eles Ardaillon e Debert, 1987; Vargas, 1997; Coulouris, 2004 - afirmam que a
comprovação material do crime é sempre muito difícil. As autoras remetem essa
dificuldade às marcas de violência serem, quase sempre, invisíveis, ou se perderam
devido à demora da vítima em procurar a polícia, ou, ainda, pelo fato dos exames de
corpo de delito serem muito mais ginecológicos do que atentos às marcas de violência
corporal espalhadas pelo corpo. Entretanto, ainda que os trabalhos falem da dificuldade
de comprovação material dos crimes de estupro, todas as autoras são unânimes em dizer
que esses laudos são centrais durante a investigação criminal e para a resolução desses
crimes na esfera jurídica. De maneira geral, a comprovação da violência sofrida também
é expressa por juristas como Sznick (1992) e Molina (2008) através da noção de
resistência honesta245 da vítima.
Embasada pelo Código de Processo Penal (1941), no Livro I, sob o título
designado “Da Prova”, no Capítulo II – “Do Exame de Corpo de Delito e das Perícias
em Geral”, o exame de corpo de delito, direto ou indireto, é indispensável quando a
infração deixa vestígios. Tal exame deve ser realizado por um perito oficial e portador
de diploma de curso superior. Essa exigência procedimental, regulamentada pela atual
legislação de Processo Penal (1941), não foi exclusiva desse ordenamento jurídico.
Segundo Ferreira (2009), já em 1830, o primeiro Código Penal brasileiro tornou
obrigatório que Juízes de Direito ouvissem peritos antes de proferirem suas sentenças.
Como consequência disso, desde 1832 já havia diretrizes de atuação desses
profissionais no Código de Processo Penal. Diante dessas atribuições, como salienta
Ferreira (2009), as técnicas operadas pelos especialistas da Medicina Legal
constituíram, exatamente, no encontro da Medicina e do Direito. Nas palavras de Corrêa
(1998), os modelos jurídicos e médicos deixavam de ser heterogêneos entre si e
absorvendo um ao outro, florescia uma nova área de saber situada exatamente na
intersecção desses modelos.
Sendo assim, dando sequencia às reflexões iniciadas em meu mestrado, gostaria
de entender os laudos periciais como instrumentos - técnicos, burocráticos, conectivos -
que compõem um repertório mais amplo de provas materiais com fins investigativos. Os
termos, assinaturas e figuras impressas em suas páginas, sua inserção como
instrumentos de investigação e seus nexos com um saber médico e jurídico específico –
investigação policial. Em seguida, mediante Relatório Final da delegada, essa peça policial é remetida ao
Fórum.
245
Segundo Sznick (1992), deve ser possível vislumbrar tal resistência honesta e perseverante (até o fim)
através de lesões, manchas, descamações no corpo e sinais de luta no ambiente.
276
Objetivos
Exposto isso, esse estudo tem como objetivos: (a) compreender como as provas
periciais são formas pelas quais o Instituto Médico Legal, Instituto de Criminalística,
Delegacia de Defesa da Mulher e Fórum Criminal, estrategicamente, perpetuam suas
relações institucionais; (b) como os documentos representam esses corpos vivos,
trazendo elementos cruciais para elucidarmos as práticas de atendimentos e os trâmites
cotidianos de trabalho realizado pelo IML; (c) problematizar como esse corpo é descrito
e apresentado e dele um saber médico é produzido e legitimado, por intermédio de
contendas criminais; (d) entender qual a centralidade dessas provas na condenação ou
absolvição dos acusados de estupro; (e) demonstrar como uma etnografia de
documentos pode contribuir para entendermos as formas burocráticas pelas quais
vítimas e autores tornam-se legíveis em casos de estupro e o Estado pode ser
problematizado através de suas práticas políticas de regulação e disciplinamento e não,
exclusivamente, como uma forma administrativa de organização política e
racionalizada. Por fim, a pesquisa pretende, ainda, (f) colaborar com os debates
realizados em torno das questões relacionadas ao campo das Ciências Sociais, no que
diz respeito à discussão sobre corpo, sexualidade e violência, fornecendo elementos
para pensar como o corpo físico e a sexualidade passam a ser descritos mediante termos
médicos e legais.
Metodologia
Essa pesquisa terá como campo central o Instituto Médico Legal, bem como,
algumas visitas focadas à Delegacia de Defesa da Mulher e ao Fórum Criminal, todos
eles sediados na cidade de Campinas. Com vistas no trabalho já realizado em meu
mestrado, busco acessar os laudos periciais de inquéritos policiais já mapeados e que,
quase sempre, estiveram invisíveis nas dependências da Delegacia de Defesa da Mulher.
Assim, boa parte da pesquisa terá como metodologia a leitura atenta, mediante
cadernos de campo, desses materiais escritos, suas assinaturas, rasuras a caneta,
carimbos e insígnias. Toda a documentação arquivada no IML, nos anos de 2003 a
2006, de Campinas será central em minha pesquisa. Nesse sentido, buscarei, seguindo
as pistas de Kopytoff (2008), apresentar uma biografia desses documentos, enfatizando
suas trajetórias de vida e seus muitos caminhos dentro do Instituto Médico Legal, da
polícia especializada e do Fórum Criminal de Campinas.
277
documentos, uma vez que conseguem produzir descrições técnicas, nas quais os
discursos que falam de materialidades corpóreas, feridas, sangue, sofrimento,
manifestem-se por intermédio de terminologias médicas que transformam o horror de
cenários e dos atos perpetrados em conclusões assépticas e, até certo ponto, cifradas à
leitura de não especialistas. Buscarei olhar essas conclusões pericias como formas
convencionalizadas (sempre em transformação) pelas quais vítimas de estupro e
possíveis estupradores ganham legibilidade e passam a existir mediante esses papéis que
procuram ‘dar provas’ do crime e adensar um largo espectro de investigações que é
mobilizada nas DDMs e no Fórum Criminal.
Finalmente, é importante a esse projeto reacessar as entrevistas realizadas em
meu mestrado com escrivãs e delegadas, mas também realizar entrevistas com médicos-
legistas e técnicos do IML- Campinas, assim como realizar entrevistas com juízes. O
intuito será observar a maneira como eles entendem os laudos produzidos por essa
instituição técnico-científica e a centralidade desse material investigativo nas sentenças
que os mesmos proferem em casos de estupro nas Varas Criminais pelas quais
respondem.
Plano de Trabalho
Atividades/Anos 1 2 3 4
Disciplinas obrigatórias e eletivas X
Levantamento e análise da bibliografia pertinente X X
Participação em cursos de Medicina Legal e temas pertinentes X
Levantamento dos laudos periciais importantes a essa pesquisa e outros documentos X X
centrais a sua compreensão: ofícios, remessas, pedidos de conclusão, etc
Observação do cotidiano de atendimento do IML e entrevista com seus funcionários X X
Retomada de parte do material levantado no mestrado na Delegacia de Defesa da X
Mulher
Levantamento das sentenças deferidas no caso dos inquéritos e laudos levantados na X
DDM e IML e entrevistas com Juízes das Varas Criminais de Campinas
Apresentação da qualificação X
Elaboração e defesa da dissertação X
Bibliografia
ABRAMS Philip. Notes on the difficulty of studying the state. In: Journal of Historical
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279
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2000.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: Editora JC, 1982.
282
DECLARAÇÃO
Declaro para os devidos fins, que o(aO Dr(a) LARISSA NADAI, Registro
Acadêmico_________________, CPF: ________________ e RG:______________,
está regularmente matriculada no Curso de Doutorado de Ciências Sociais no
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH – da Universidade Estadual de
Campinas – UNICAMP.
Campinas, _________ de 2014.
_______________________
Secretário do PPGCS
Matrícula:_______________
DECLARAÇÃO
DECLARAÇÃO
HISTÓRICO:
289
HISTÓRICO:
Ânus:
Genitais:
CONCLUSÃO:
_____________________________ __________________________
Assinatura Médico-Legista Assinatura Médico-Legista
291
Termo de Consentimento
Entrevista
Entrevistado:__________________________________________________
Data: ________________________________________________________
Termo de Consentimento
____________________________________
Assinatura da (o) Profissional
_____________________________________
Larissa Nadai
292
Uma Alice
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento
Uma Bianca
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento
Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
Eritema e edema
anal; observamos
Exame de ato duas fissuras
libidinoso localizadas em
Do observado
posições
e exposto 1. Sim.
Data: 10 de Informa ter [ilegível] na
concluímos 2. Coito anal
julho de 2004. sido região externa e
Lesões que houve 3. Prejudicado
forçada a interna
corporais: prática de ato 4. Prejudicado
Qualificação relação
XXXXXXXXX libidinoso 5. Prejudicado
da vítima: 17 oral e anal Exame
diverso de 6. Não
anos, nesta data laboratóra(is):
conjunção 7. Prejudicado
estudante, Sim. O resultado
carnal.
natural de segue em anexo.
Campinas-SP. [não foi
fotocopiado o
mesmo]
295
Um Felipe
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento
Colocada em
Posição
Laudo de
Ginecológica Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Conclusão
ou quesitos
Delito
genupeitural
observamos
Exame de ato
libidinoso Lesões
Informa a
corporais: 1. Sim.
acompanhante Do
Data: 13 de observa-se 2 2. Sucção oral
(mãe) que notou observado
dezembro de equimoses Ânus: sem 3. Sim
a presença de exposto
2004. avermelhadas lesões de 4. Violência
uma marca concluímos
com cerca de interesse Presumida
‘chupão’ no que fora a
Qualificação 1,5 X 1,2 cm médico-legal 5. Não
pescoço de seu vítima de
da vítima: 12 lateral-direita o 6. Não
filho na data de sucção oral
anos de idade, pescoço, 7. Prejudicado
hoje
solteiro, e ovalada.
estudante.
296
Uma Joana
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento
Laudo de
Descrição do Respostas aos
Corpo de Histórico Discussão Conclusão
Exame quesitos
Delito
LAUDO Fissura no ânus. Embora a
INDIRETO. De Mamas/genitais presença de
Exame
acordo com a externos e fissura anal De acordo
indireto de
cópia internos: sem possa ser com os
ato libidinoso
xerográfica do alterações. compatível dados
prontuário – Presença de com o médicos
Data: 08 de 1. Prejudicado
HC: A vítima escoriação no histórico, fornecidos
junho de 2. Prejudicado
relatava ter sido quadril esquerdo. outras causas não temos
2005. 3. Prejudicado
abordada por Exames de etiologia elementos
4. Prejudicado
desconhecido sorológicos para não de certeza
Qualificação 5. Prejudicado
no caminho doenças traumática, que
da vítima: 22 6. Prejudicado
para o cursinho, sexualmente mas permitam
anos, branca, 7. Prejudicado
sob ameaça de transmissíveis: patológica, afirmar ou
solteira,
arma, sendo negativos na data podem infirmar ter
estudante,
obrigada a do dia 23.09.04 apresentar ocorrido ato
natural de São
manter relação até o último esse mesmo libidinoso
Paulo-SP.
oral e anal em exame datado de achado do
23.09.04. 01.05.05. exame
297
Uma Laura
Data de início
Tipificação
Informações sobre a ocorrência policial e
Penal
encerramento
Uma Luciana
Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
1- Monte de Vênus:
recoberto com
pelos; 2- Genitais
externos de
Exame de Do
conformação:
conjunção observado e
normal para a idade; 9. Não
carnal acima
Informa a 3- Hímen: integro, 10. Prejudicado
exposto
acompanhante carnoso, orla alta, 11. Prejudicado
Data: 22 de concluímos
que a vítima Lesões óstio de média 12. Prejudicado
abril de 2004. que a
teria sido corporais: amplitude, não 13. Prejudicado
examinada
tentada ou ausentes. apresentando rotura; 14. Prejudicado
Qualificação não manteve
abusada pelo 4- Altura Uterina: 15. Prejudicado
da vítima: 14 conjunção
próprio pai não palpável pelo 16. Prejudicado
anos e natural carnal,
abdômen; 5-
de Campinas- portanto é
Mamas: nada digno
SP. virgem.
de nota; 6- Ânus:
sem lesões de
interesse médico-
legal.
Exame de ato
libidinoso Do
observado e 1. Não
Informa a
Data: 22 de exposto 2. Prejudicado
acompanhante
abril de 2004. Lesões concluímos 3. Prejudicado
que o pai teria Ânus: nenhuma
corporais: que se atos 4. Prejudicado
tentado abusar lesão
Qualificação ausentes. libidinosos 5. Prejudicado
da própria filha
da vítima: 14 houve 6. Prejudicado
em 15/11/99.
anos e natural [rasurado] 7. Prejudicado
de Campinas- vestígios
SP.
299
Uma Madalena
Tipificação Data de início e
Informações sobre a ocorrência policial
Penal encerramento
Colocada em
Posição
Laudo de Respostas aos
Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
Corpo de Delito quesitos
genupeitural
observamos
Exame de 1- Monte de Vênus:
conjunção pêlos negros; 2-
carnal Genitais externos de
conformação: Do
Data: 15 de Informa a normal para a idade; observado e 1. Sim
outubro de 2004 examinada 3- Hímen: anular acima 2. Não recente
Sem
e 18 de julho de que teria carnoso, de orla exposto 3. Prejudicado
lesões de
2008. sido vítima baixa, óstio de concluímos 4. Prejudicado
interesse
de estupro média amplitude, que a 5. Prejudicado
médico-
Qualificação da em apresentando rotura; examinada 6. Prejudicado
legal.
vítima: 25 anos, 08/10/04. 4- Altura Uterina: apresenta 7. Não
branca, sem lesões; 5- hímen com 8. Prejudicado
assistente Mamas: sem lesões; rotura antiga.
administrativo, 6- Ânus: sem lesões
solteira e natural de interesse médico-
de Londrina-PR. legal.
300
Uma Márcia
Data de início
Tipificação
Informações sobre a ocorrência policial e
Penal
encerramento
Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
1- Monte de Vênus:
pêlos negros; 2-
Do observado
Genitais externos
Exame de e exposto
Informa a de conformação:
conjunção concluímos
examinada normal para a
carnal que a
que teria idade; 3- Hímen: 1. Sim
examinada
sido vítima Lesões reduzido a 2. Não recente
Data: 30 de apresenta
de corporais: carúnculas 3. Prejudicado
maio de 2005. carúnculas
conjunção sem lesões mirtiformes; 4- 4. Prejudicado
mirtiformes,
carnal e de interesse Altura Uterina: não 5. Prejudicado
Qualificação portanto, não
sexo oral, médico- palpável pelo 6. Prejudicado
da vítima: 27 temos
mediante legal abdômen; 5- 7. Prejudicado
anos, condições de
ameaça com Mamas: sem lesões 8. Prejudicado
convivente e afirmarmos ou
revólver em de interesse
natural de Foz negarmos a
19/05/05. médico-legal; 6-
do Iguaçu-PR. queixa da
Ânus: sem lesões
pericianda...
de interesse
médico-legal.
301
Uma Selma
Data de início
Tipificação
Informações sobre a ocorrência policial e
Penal
encerramento
Colocada em
Laudo de Posição
Respostas aos
Corpo de Histórico Descrição Ginecológica ou Conclusão
quesitos
Delito genupeitural
observamos
1- Monte de Vênus:
pêlos negros; 2-
Genitais externos de
Laudo de
conformação: normal
conjunção
para a idade; 3-
carnal Informa a
Hímen: Anular,
examinada Do observado
carnoso, de orla alta,
Data: 18 de que teria sido e exposto
óstio de média 1. Sim
outubro de vítima de ato Lesões concluímos
amplitude, 2. Não recente
2004. libidinoso corporais: que a
apresentando rotura 3. Prejudicado
(sexo oral e sem lesões examinada
completa, cicatrizada, 4. Prejudicado
Qualificação tentativa de de apresenta
localizada em junção 5. Prejudicado
da vítima: anal), sob interesse roturas
de quadrantes 6. Prejudicado
solteira, ameaça de médico- antigas e se
anterior e posterior 7. Prejudicado
balconista, 22 arma de fogo legal ato libidinoso
direito; 4- Altura 8. Prejudicado
anos e natural em 16 de houve marcas
Uterina: não palpável
de Alfenas- outubro de não ficaram...
pelo abdômen; 5-
MG. 2004
Mamas: sem lesões
de interesse médico-
legal; 6- Ânus: sem
lesões de interesse
médico-legal.
302
A pesquisa tomou como principal periódico a ser investigado o jornal a Folha de São
Paulo. A escolha responde à produção diária de tal veículo, por sua expressiva tiragem
nacional e em função das referências feitas por Badan Palhares. No que tange sua
autoimagem, a Folha de São Paulo afirma “oferecer ao leitor informações pluralistas e
apartidárias, para que ele exerça sua cidadania. É, ao mesmo tempo, um instrumento
fundamental para os formadores de opinião, que nele encontram análises sobre os últimos
acontecimentos”.
O periódico encontra-se acessível e integralmente digitalizado para consulta, com
exemplares disponíveis a partir do ano de 1921. O acesso às informações é de domínio
público e seu sistema de busca é bastante prático, sendo possível que se selecione um período
temporal e palavras-chave específicas. Exemplo: “De [data] a [data]” com as seguintes
palavras “[palavras escolhidas]”. Depois de inseridas as informações desejadas,
automaticamente, a plataforma lista todas as reportagens contendo as palavras-chave
elencadas, dentro do recorte temporal escolhido. Em linhas gerais, consta a data da matéria
jornalística, qual caderno do jornal foi publicada e sua página.
Quanto a outros jornais, escolhi utilizar tais periódicos a partir de datas bastante
circunscritas, seguindo indicações de outros materiais etnográficos, como a autobiografia de
Badan Palhares (2007) ou documentos oficiais. Um desses, o Jornal do Brasil, encontra-se
também digitalizado e seu acervo é de domínio público. Contudo, a busca em sua plataforma
exige a inserção de datas específicas para a pesquisa, motivo pelo qual uma análise mais
sistemática de suas tiragens tornou-se bastante prejudicada. Já os jornais O Estado de São
Paulo e O Globo exigem assinatura e disponibilizam ao leitor o acesso a, no máximo, dez
reportagens mensais. Tais obstáculos demandariam a realização de uma pesquisa etnográfica
dedicada somente a jornais. Por esta razão, faço apenas um uso estratégico destes periódicos.
Para o corpus de reportagens reunido, defini certos recortes temporais e palavras-
chave. Toda a pesquisa está ancorada nos procedimentos discriminados a seguir:
Numa busca junto ao acervo do jornal Folha de São Paulo, com a palavra “Mengele”,
entre 01 de junho de 1985 a 05 de setembro de 1985 – data na qual a ossada foi
encaminhada à Campinas – encontrei 96 reportagens. Já em relação ao período de
reconstituição da face de Mengele, compreendido entre os meses de setembro de 1985
a junho de 1986, obtive um conjunto de 31 notícias contendo alguma citação sobre o
carrasco nazista. Todas elas foram publicadas no “Primeiro Caderno”, na seção
303
Biografia
Filho primogênito de Hélia Badan Palhares e Geraldo Amaral Palhares, Fortunato Antônio
Badan Palhares, nasceu no dia 27 de junho de 1943, na cidade de São Paulo. Aos doze anos
de idade, Badan Palhares começou atuar na farmácia Santa Estela, construída por seu pai.
Sem grandes riquezas materiais, e depois da doença de um dos seus sete irmãos, a família
Palhares fechou o estabelecimento farmacêutico por eles adquirido e se mudaram para
Campinas, cidade do interior do estado de São Paulo. Entre o serviço militar obrigatório, a
formação escolar e a ajuda na nova farmácia, Badan Palhares conseguiu seu primeiro
emprego como auxiliar técnico de laboratório, na recém-criada Faculdade de Ciências
Médicas (FCM) da Unicamp. Formado na primeira turma do curso técnico de laboratório,
oferecido pela referida faculdade, Palhares tentou por dois anos consecutivos ingressar no
curso de medicina da FCM. Postergado o sonho de se tornar médico, ele estagiou em
inúmeros laboratórios da faculdade de medicina de Ribeirão Preto e em laboratórios
particulares da mesma cidade. O retorno a Campinas e o trabalho no laboratório da Casa de
Saúde de Campinas foi interrompido pela aprovação para cursar medicina em Portugal.
Através de um “convênio cultural” entre Brasil e Portugal, destinado a alunos de escolas
públicas e com bom desempenho escolar, Badan Palhares iniciou seus estudos na faculdade
de medicina de Coimbra, no ano de 1967. No quarto ano de graduação, incentivado por
professores e estudantes mais velhos, ele solicitou sua transferência para a Universidade de
Lisboa para que pudesse complementar sua formação devido à magnitude do hospital
universitário ali alocado e da variedade de instituições hospitalares que a capital dispunha.
Em 1971, pressionado por seu pai e, em função dos problemas cardíacos de sua mãe, Badan
Palhares prestou as provas de seleção para alunos remanescentes oferecidas pela Unicamp. Ao
ser aprovado, ele retornou ao Brasil. O período de graduação em Campinas foi marcado por
inúmeros postos de trabalhos, tais como o emprego na maternidade de Campinas, no banco de
sangue da Unicamp e em plantões prestados em diversos hospitais da cidade. Num misto de
superação e mérito pessoal, Badan Palhares retrata a si mesmo como um menino pobre que,
com dificuldade e força de vontade, cursou medicina, fez sua residência na área de anatomia
patológica, e, finalmente, tornou-se doutor e professor do Departamento de Anatomia
307
CASO MENGELE
Josef Mengele
Josef Mengele nasceu em 1911, Günzburg, no sul da Alemanha. Filho primogênito de uma
família católica, representante da burguesia local em função de uma fábrica de implementos
agrícolas, Mengele iniciou sua formação acadêmica em medicina e antropologia por volta de
1930. Em 1935, tornou-se Ph.D. em antropologia física, pela Universidade de Munique.
Começou sua carreira como assistente de um renomado médico alemão, Otmar Von
Verschuer, junto ao Instituto de Biologia Hereditária e Higiene Racial da Universidade de
Frankfurt. Em 1937, Mengele se filiou ao partido nazista e, em pouco tempo, passou a
integrar a Schutzstaffel (SS), onde em 1943 foi promovido a capitão e enviado ao campo de
concentração de Auschwitz, para comandar uma parte do complexo de Birkenau, sob o
comando do capitão da SS, Eduard Wirths. Acredita-se que seu apelido “Anjo da Morte” ou
“Anjo de Branco” foi cunhado devido à frieza com a qual, junto à rampa de acesso em
Auschwitz, selecionava aqueles que deveriam ser imediatamente mortos nas câmeras de gás.
Além disso, suas experiências médicas e científicas, muitas vezes agonizantes e letais,
mataram inúmeras crianças gêmeas judias e ciganas. Com o fim da Segunda Guerra Mundial,
Mengele se escondeu na Bavária, Alemanha, de onde seguiu para a Argentina, o Paraguai e,
finalmente, o Brasil, onde ficou domiciliado em inúmeros municípios do estado de São Paulo,
entre eles: Araraquara, Serra Negra, Caieiras e Diadema. Informações sobre o paradeiro de
Josef Mengele vieram à tona pela primeira vez em meio às investigações que permitiram que
Adolf Eichmann fosse encontrado pelos agentes da Mossad, polícia secreta israelense, em
Buenos Aires, Argentina. Contudo, durante a prisão de Eichmann, Mengele conseguiu fugir
em direção ao Paraguai. Dali em diante, uma nova cortina de fumaça permitiu que o carrasco
nazista permanecesse escondido por mais de quinze anos. Em maio de 1985, depois de uma
longa investigação, a polícia da Alemanha Ocidental chegou a uma propriedade da família
Mengele, localizada em sua cidade natal, na Bavária. A invasão a casa desenterrou uma
coleção de documentos que se transformariam em tesouros históricos para compreensão e a
reconstituição do regime nazista. Entre esses documentos, foram encontradas cartas pessoais
trocadas entre a família de Mengele e o casal austríaco Wolfram e Liselotte Bossert. O casal
Bossert vivia em São Paulo e quando contatados pela polícia da Alemanha Ocidental,
confirmaram as informações e a estadia de Josef Mengele no Brasil. Mengele, para tanto, e
309
ajudado pelos Bossert, assumiu a identidade de um amigo austríaco Wolfgang Gerhard, que
havia morado no Brasil e voltado para a Áustria, deixando para trás seus documentos
pessoais. O contato com a família Bossart, contudo, revelou um paradeiro impensável para o
carrasco nazista. Josef Mengele encontrava-se enterrado no Cemitério de Nossa Senhora da
Conceição, em Embu das Artes, São Paulo, depois de ter se afogado, em 1979, durante um
banho de mar, em Bertioga, litoral de São Paulo. O IML de Santos realizou a necropsia no
cadáver de Wolfgang Gerhard, seu nome falso, e determinou como a causa da morte um
derrame cerebral.
Fonte: United States Holocaust Memorial Museum, Enciclopédia do Holocausto, disponível
em: https://www.ushmm.org/wlc/ptbr/article.php?ModuleId=10007060, e Galle, 2011.
310
CASO PERUS
O cemitério Dom Bosco foi inaugurado em 1971, durante o governo municipal de Paulo
Salim Maluf, nomeado para o cargo pelo general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974).
Com uma extensão de 254 mil metros quadrados, a necrópole foi construída em Perus,
subprefeitura na zona norte da capital de São Paulo, com vistas a atender os bairros
periféricos da cidade e abrigar o sepultamento de indigentes ou indivíduos pobres sem
identificação. Fazia parte do projeto inicial de sua construção, a implementação de um
crematório. Contudo, tal proposta para um cemitério destinado a indigentes causou muitas
suspeitas. Em particular, porque o projeto não previa portas de acesso restrito às salas de
cremação, nem um hall para cerimônia e acolhimento a familiares presentes durante o
processo. Diante dos entraves legais tanto em âmbito nacional quanto internacional, a ideia foi
abandonada. O forno encomendado junto à empresa Dawson & Mason, em 1969, foi mais
tarde, em 1974, instalado no cemitério da Vila Alpina. Segundo os documentos oficiais, a
construção do crematório não era o único projeto de gestão municipal a cemitérios
empreendidos pelo governo de Paulo Maluf. Durante sua atuação como governador, não
foram poucos os seus investimentos em modificar as legislações vigentes para sepultamentos
e exumações e em alterar a organização e o uso de outros cemitérios, como o da Vila
Formosa, que até 1971 recebia a maioria dos corpos designados como “indigentes”. No caso
de exumações, o CEMIT – Departamento de Cemitérios – estava autorizado a desenterrar
qualquer corpo depois de decorridos três anos de seu sepultamento. Foi exatamente
cumprindo essas diretrizes que o administrador do cemitério Dom Bosco, Dr. Dilermando
Lavrador Filho, autorizou, em 1974, a exumação dos corpos sepultados nas quadras 1 e 2, da
Gleba 1, da necrópole. Procedimento padrão, ainda hoje, conduzido por cemitérios públicos,
as ossadas exumadas visavam dar espaço a novos sepultamentos, ainda que o terreno do
cemitério não estivesse à época completamente utilizado. A escolha pela exumação tinha por
objetivo liberar os espaços mais nobres do cemitério e colocá-los a venda. As ossadas
retiradas deveriam ser ensacadas individualmente e armazenadas no ossário da necrópole. As
primeiras ossadas desenterradas, cerca de aproximadamente quatrocentas, permaneceram
amontoadas, por cinco meses, junto às salas de velório do cemitério Dom Bosco. Nos anos
seguintes, Rubens José Vieira, administrador que substituíra Lavrador Filho, deu
311
políticos enterrados no cemitério Dom Bosco. O muro foi, em 2015, revitalizado por
grafiteiros e coletivos do bairro de Perus, tornando-se um memorial da luta de resistência na
cidade de São Paulo e um marco sobre a violação dos direitos civis empreendidas durante o
período ditatorial no Brasil.
Fonte: INSTITUTO MACUCO, 2012; TELLES, 2001, Relatório CPI Perus, 1999 e
Cemitério Dom Bosco e Vala de Perus, Programa Lugares da Memória, Memorial da
Resistência de São Paulo.
Antônio Carlos Bicalho Lana nasceu em 02 de março de 1948, em Ouro Preto, Minas Gerais.
Envolvido com o movimento estudantil desde meados da década de 60, Lana atuou ao lado de
militantes universitários, secundaristas e operários. Filiado ao Corrente Revolucionária de
Minas Gerais, CORRENTE Brasil, o militante viajou para Cuba, entre 1969 e 1970. Retornou
ao Brasil já na clandestinidade, depois de receber seis meses de treinamento de guerrilha. No
início dos anos 70, como dirigente da Ação Libertadora Nacional (ALN), Lana passou a
militar em São Paulo. Depois de inúmeras emboscadas, ele foi capturado, em novembro de
1973, em São Vicente, São Paulo. Na data de sua prisão, ele estava acompanhado por Sonia
Maria de Moraes Angel Jones. Lana foi torturado pelo capitão Ênio Pimentel e faleceu no dia
30 de novembro de 1973. Oficialmente, foi divulgado que Antônio Carlos Bicallho Lana
morreu depois de uma troca de tiros ocorrida em Santo Amaro, em São Paulo. Seu laudo de
necropsia foi assinado por Harry Shibata e Antônio Valentini e data de 05 de dezembro de
1974. Nos documentos do cemitério de Perus, consta que Lana foi enterrado no dia 01 de
dezembro de 1973 e exumado no dia 24 de novembro de 1977. Seus restos mortais foram
retirados de uma sepultura individual do cemitério Dom Bosco e identificada pelo DMLE da
Unicamp em 07 de agosto de 1991. O enterro de sua ossada ocorreu em Ouro Preto, em Minas
Gerais, no dia 12 de agosto de 1991.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=186.
313
Dênis Casemiro
Emanuel Bezerra dos Santos nasceu no dia 17 de junho de 1943, na cidade de São Bento do
Norte, no Rio Grande do Norte. Ainda no ensino secundarista, em 1961, o militante fundou o
jornal O Realista e O Jornal do Povo, cujas publicações eram distribuídas em diversos
municípios da região. Em 1967, ingressou na Faculdade de Sociologia da Fundação José
Augusto e durante seus anos de graduação atuou em inúmeros quadros dirigentes do Diretório
Central dos Estudantes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e da União
Nacional de Estudantes (UNE). Filiado ao Partido Comunista Brasileiro (PCB) e depois ao
Partido Comunista Revolucionário (PCR), ainda em 1969, Emmanuel Bezerra dos Santos foi
preso e cumpriu pena em quartéis do Exército, no distrito policial e na base naval de Natal.
314
Depois de solto, entrou para a clandestinidade. Como dirigente nacional do PCR, passou a
militar nos estados de Pernambuco e Alagoas. Antes de ser novamente preso, junto com
Manuel Lisboa de Moura, no dia 16 de agosto de 1973, em Recife, Emmauel Bezerra dos
Santos viajou para a Argentina e para o Chile com o intuito de reunir exilados brasileiros à
luta política contra a ditadura. Dias depois de ser torturado no DOPS/PE, ele foi entregue ao
delegado Sérgio Paranhos Fleury, em São Paulo, onde foi mais uma vez torturado. Na versão
oficial divulgada pelos policiais, Emmanuel e Manuel morreram em um tiroteio ocorrido no
Largo de Moema, no dia 4 de setembro de 1973. Seu laudo necroscópico foi assinado por
Harry Shibata e Armando Canger Rodrigues e nele as torturas empreendidas contra
Emmanuel Bezerra dos Santos foram completamente omitidas. Seu cadáver foi enterrado no
cemitério do Campo Grande, São Paulo, como indigente. Sua ossada foi identificada pelo
DMLE, da Unicamp, em meados de 1992. Seus restos mortais foram entregues à família, na
cidade de São Bento do Norte, no dia 14 de julho de 1992.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=188&m=3.
Frederico Eduardo Mayr nasceu no dia 29 de outubro de 1948, em Timbó, Santa Catarina.
Aos 18 anos, Frederico Mayr ingressou na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (UFRJ) e já em seu segundo ano de graduação engajou-se no movimento
estudantil, passando a militar, tempos depois, pela Ação Libertadora Nacional (ALN). Em
1969, foi processado em auditorias militares do Rio de Janeiro. Depois de condenado, Mayr
abandonou a faculdade e, na clandestinidade, viajou para Cuba, onde recebeu treinamento de
guerrilha. Em 1971, retornou ao Brasil e se filiou ao Movimento de Libertação Popular
(MOLIPO). Frederico Eduardo Mayr foi preso no dia 23 de fevereiro de 1972, depois de ser
baleado na perna. No DOI-CODI de São Paulo, Mayr foi torturado e morreu um dia depois de
sua prisão. Segundo os agentes da polícia, Mayr morreu devido a uma troca de tiros, ocorrida
no Jardim Glória. Seu laudo necroscópico foi assinado por Isaac Abramovitc e Walter Sayeg e
reafirmava o óbito em função dos três tiros deflagrados contra seu corpo. Sob nome falso,
Frederico Eduardo Mayr foi enterrado no Cemitério Dom Bosco. Sua ossada foi retirada da
vala comum de Perus e identificada pelo DMLE, da Unicamp, em 1992. Seus restos mortais
315
foram entregues à família Mayr e enterrados no Rio de Janeiro, no dia 12 de julho de 1992.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009; INSTITUTO MACUCO, 2012 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=159&m=3.
Helber José Gomes Goulart nasceu no dia 19 de setembro de 1944, em Mariana, Minas
Gerais. Desde os onze anos de idade passou a trabalhar com a venda de jornais, em escritórios
e como datilógrafo. No começo dos anos 60, mudou-se para São Paulo em busca de melhores
condições de trabalho. Influenciado pelo pai, filiado ao Partido Comunista Brasileiro, Helber
Goulart juntou-se ao Grupo dos Onze, tal qual idealizado por Leonel Brizola, em 1962. Com
o golpe militar, em 1964, mudou-se para o Mato Grosso para trabalhar na construção da
hidrelétrica de Urubupungá. As duras condições de trabalho e de segurança fizeram com que
Helber retornasse a sua cidade natal, no fim dos anos 60. Antes de militar pela Ação
Libertadora Nacional (ALN), Helber participou do Corrente Revolucionária de Minas Gerais,
CORRENTE Brasil. A partir de 1971, em função da atuação junto à ALN, ele mudou-se, na
clandestinidade, para São Paulo. A sua morte data de 16 de julho de 1973. A versão oficial
sustenta que o rapaz foi alvejado durante um tiroteio ocorrido das imediações do Museu do
Ipiranga, em São Paulo. Alguns militantes detidos no DOI-CODI/SP, na época, afirmaram
que Helber José Gomes Goulart foi preso dias antes da data de sua morte. Ele foi torturado e
chegou a ser hospitalizado no Hospital Geral do Exército. Seu laudo necroscópico, requisitado
por Romeu Tuma, chefe do DEOPS-SP, foi assinado por Harry Shibata e Orlando Brandão e
ratificou a versão oficial de troca de tiros. Sua ossada foi retirada de uma sepultura individual
do cemitério Dom Bosco e identificada pelo DMLE da Unicamp, em 1992. Seus restos
mortais foram transladados para Mariana, no dia 12 de julho de 1992.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=194&m=3.
Sonia Maria de Moraes Angel Jones nasceu no dia 09 de novembro de 1946, na cidade de
Santiago de Boqueirão, no Rio Grande do Sul. Começou a cursar a Faculdade de Economia e
316
Maria Lúcia Petit da Silva nasceu em 20 de março de 1950, em Agudos, São Paulo.
Envolvida com o movimento político estudantil desde que se tornou secundarista, Maria
Lúcia Petit decidiu desenvolver sua militância no interior do Brasil. Filiada ao Partido
Comunista do Brasil (PCdoB), atuou como professora, em atividades de plantio e na luta
armada – guerrilha do Araguaia – nas regiões de Goiás e no sul do Pará. No dia 16 de junho
de 1972, foi fuzilada por tropas da 3ª Brigada de Infantaria do Exército. A exumação de Maria
Lúcia Petit da Silva foi realizada por Badan Palhares em um terreno sem limitações claras,
sem registros de sepultamento ou ícones como cruzes ou marcas de divisão entre os jazigos,
no cemitério de Xambioá, no Tocantins, em 1991. Depois de horas de escavações, “um tecido
sintético amarelado destacou-se no fundo de uma das covas abertas. Retirada a terra,
encontramos restos mortais esqueléticos, fragmentados e em boa parte descalcificados e
esfarelados, envoltos em um gomo de paraquedas. No lugar da cabeça havia um saco
plástico transparente rompido, esgarçado nas bordas e com alguns fragmentos de ossos do
crânio, dentes, fios de cabelo em seu interior. A quase totalidade da ossada estava
desintegrando, dificultando o manuseio”. Além dos fragmentos ósseos, as roupas – camisa,
calça, botas, um cinto com uma fivela de ferro e botões de metal – permaneceram em bom
estado de conservação. Também um projetil de calibre 20 intacto e outro de calibre 7,62 deans
foram removidos e enviados aos laboratórios do DMLE. Maria Lucia Petit da Silva só foi
identificada em 1996, depois que duas de suas fotografias foram publicadas no jornal O
Globo, em 28 de abril de 1996. Seus restos mortais foram sepultados pela família em Bauru,
São Paulo. Antes, seus despojos foram recebidos pela Câmara de Vereadores de São Paulo,
onde ocorreu uma vigília e um culto ecumênico. A entrega e sua visibilidade midiática foi
motivo de acaloradas disputas políticas entre o vereador Renato Simões e o próprio Badan
Palhares. Maria Lúcia Petit da Silva foi a única militante da Guerrilha do Araguaia a ser
identificada.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009, PALHARES, 2007, p.147-150 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=364&m=3.
passou a atuar junto à Ação Libertadora Nacional (ALN). Depois de um treinamento de dois
anos em Cuba, retornou em 1971 ao Brasil para atuar como militante do Movimento
Libertador Popular (MOLIPO). A família Molina tomou conhecimento de sua morte em 1979,
através de documentos da Justiça Militar. Flávio Molina foi preso pelo DOI-Codi em data
incerta (entre os dias 04 e 06 de novembro de 1971), foi torturado e morreu no dia 07 de
novembro de 1971. Seu laudo necroscópico foi assinado por Renato Capellano e José
Henrique da Fonseca. Nele, os legistas atestavam que Molina havia falecido em virtude de
ferimentos deflagrados durante um tiroteio ocorrido no bairro Ipiranga, em São Paulo.
Enterrado como indigente, sob o codinome falso de Álvaro Lopes Peralta, no cemitério de
Perus, havia fortes suspeitas de que seu corpo estaria inumado na vala clandestina. Nos anos
80, seu irmão, Gilberto Molina, chegou a procurar por sua ossada, mas, diante da quantidade
de sacos e pela débil identificação dos mesmos, pediu para que a vala fosse fechada. Com a
consolidação do convênio e no projeto de identificação edificado pelo DMLE, a família
Molina teve suas esperanças renovadas. Apesar disso, mesmo depois de transcorrido todo o
processo de catalogação e análise junto às ossadas pelo DMLE, da Unicamp, Flávio Molina
não foi identificado. Amostras de DNA foram colhidas e encaminhadas para análise na
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Nenhum resultado conclusivo foi obtido.
Somente em 2005, depois de inúmeros processos contra diversas instâncias estatais, a família
Molina teve a ossada de Flávio identificada através de laboratório particular, Genomic. Seus
restos mortais foram entregues a sua família no dia 10 de outubro de 2005, no auditório da
Procuradoria da República, em São Paulo.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009; PALHARES, 2007 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=127&m=3.
Hiroaki Torigoe
Hiroaki Torigoe nasceu no dia 02 de dezembro de 1944, na cidade de Lins, em São Paulo.
Residente na cidade de Piracicaba, São Paulo, Hiroaki Torigoe mudou-se para a capital de
São Paulo para estudar medicina, na Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São
Paulo. Ainda no quarto ano do curso, Torigoe ingressou na Ação Libertadora Nacional (ALN)
e passou a atuar na clandestinidade. Depois de abandonar a faculdade para se dedicar ao
Movimento Libertador Popular (MOLIPO), Torigoe chegou a ocupar importantes cargos de
comando. Na versão oficial do DOI-CODI/SP, o militante foi baleado e preso, no dia 05 de
320
janeiro de 1972, e faleceu, no hospital, em virtude dos ferimentos decorridos do tiroteio. Seu
laudo necroscópico foi assinado por Abeulard de Queiroz Orsini e Isaac Abramovitch.
Fotografias originais encontradas no IML/SP, todavia, confirmam que Hiroaki Torigoe
apresentava inúmeros ferimentos e escoriações, além de ter sido alvejado por
aproximadamente dez tiros. Sob a identidade falsa de Massashiro Nakamura, Torigoe foi
enterrado como indigente no cemitério Dom Bosco, no dia 07 de janeiro de 1972. Em 1990,
com a abertura da vala comum de Perus, a família Torigoe teve esperanças de que,
finalmente, poderia finalizar os rituais budistas de guarda das cinzas do filho. As informações
guardadas na necrópole indicavam que Torigoe havia sido exumado, em 1976, e novamente
inumado, na mesma sepultura, tempos depois. Na campa indicada como sendo sua, todavia,
foram encontradas três diferentes ossadas. Somente em 2004, depois de serem estudadas pelo
DMLE, da Unicamp, e por Daniel Muñoz, foi confirmado que nenhum dos três despojos
exumados eram de Hiroaki Torigoe. Em 2007, novas informações levaram a exumação de
mais uma ossada. Os exames de DNA, entretanto, foram inconclusivos.
Fonte: ALMEIDA et all, 2009 e
http://www.desaparecidospoliticos.org.br/pessoa.php?id=165&m=3.
321
CASO PC FARIAS
PC Farias
passar pelo Paraguai, Argentina e Inglaterra, PC Farias foi preso na Tailândia e deportado
para o Brasil. No dia 7 de janeiro de 1994, PC Farias foi condenado a quatro anos de prisão,
devido aos crimes de sonegação fiscal e falsidade ideológica. Ainda em 1994, novos
escândalos ligaram PC Farias à máfia italiana e à lavagem de dinheiro. PC Farias cumpriu um
ano de pena no Corpo de Bombeiros de Alagoas, numa cela reformada especialmente para
recebê-lo. Sua esposa Elma Farias faleceu em julho de 1994, durante sua prisão, em virtude
de um infarto fulminante. Meses depois, apresentados por uma funcionária da Tratoral, PC
Farias recebeu a visita de Suzana Marcolino da Silva. Já em regime aberto, e, mais tarde, em
liberdade condicional, PC Farias retomou suas atividades como empresário e voltou a investir
no jornal Tribuna de Alagoas. Durante esse período, assumiu publicamente seu namoro com
Suzana Marcolino da Silva. Ambos foram encontrados mortos a tiros, no dia 23 de junho de
1996, na casa de praia de PC Farias, em Guaxuma, Maceió, Alagoas. Naquele momento, PC
Farias acertava os últimos detalhes para o lançamento da candidatura de seu irmão, Augusto
Farias, à prefeitura de Maceió e estava convocado a prestar depoimento junto ao Supremo
Tribunal Federal. Sua morte ocorrida no final de semana anterior à convocação inviabilizou
que seu depoimento viesse a público.
Fonte: http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/farias-paulo-cesar.
Suzana Marcolino da Silva nasceu em 1969, na região de Pão de Açúcar, Alagoas. Filha do
prefeito de Palestina, um pequeno município do sertão de Alagoas, Suzana tinha mais nove
irmãos – dois irmãos, filhos da união de seu pai com sua mãe, e, sete deles, filhos de seu pai
em outros casamentos. Sua mãe, vereadora da cidade, bem mais jovem que seu pai, era
conhecida pela postura valente e pela posse da arma de fogo que intimidava qualquer
adversário político. Aos doze anos, Suzana, seus dois irmãos e duas empregadas da família
mudaram-se para Maceió para que os adolescentes tivessem melhores condições de vida.
Depois de uma temporada morando com a mãe no interior da Bahia, retornou a Maceió e com
a ajuda de amigos ingressou num emprego público na cidade. Entre namorados mais velhos,
casados, ciumentos e influentes na política, Suzana conheceu PC Farias. Apresentada a ele
por uma antiga funcionária das empresas Farias, Suzana passou a visitá-lo regularmente na
prisão. Com a liberdade condicional de PC Farias, o romance progrediu e eles passaram a ser
vistos como um casal. Dentre os presentes de PC Farias a Suzana estavam carros, um cartão
323
com generosos limites de crédito e uma loja de roupas administrada por ela. No dia 23 de
junho de 1996, Suzana Marcolino da Silva foi encontrada morta, ao lado de PC Farias, no
quarto do casal, na casa de praia de PC Farias, em Guaxuma, Maceió, Alagoas. Já nos
primeiros dias de investigação, a tese de crime passional foi contrariada pela família
Marcolino, que afirmava que Suzana estava feliz na relação com PC Farias e não teria
motivos para matá-lo. Durante os longos anos de investigação, Suzana foi descrita por laudos
psiquiátricos fornecidos pelo DMLE, da Unicamp, como uma mulher instável, ciumenta e
com tendências suicidas. A família Farias insistia nesta tese afirmando que Suzana já havia
tentado se suicidar, que sabia que PC Farias estaria apaixonado por outra mulher e iria
terminar o relacionamento com ela. No dia de sua morte, Suzana foi ao salão de belezas e
almoçou com amigas. Na madrugada de sua morte, ligou para o dentista Coleone, em São
Paulo, se despediu e enfatizou a felicidade de, mesmo naquelas circunstâncias, ter o
conhecido. A fita com a gravação das mensagens de voz deixadas por Suzana Marcolino à
Coleoni foram periciadas pelo foneticista Ricardo Molina, também, do DMLE e foram
motivos de discórdia entre Molina e Palhares.
Fonte: Carvalho, 2004; Folha de São Paulo, 26 de junho de 1996, p. 7 e 10.