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Ficha Técnica

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© Helena Carvalhão Buescu
e Imprensa Nacional-Casa da Moeda
 
TÍTULO
O Poeta na Cidade
AUTORA
Helena Carvalhão Buescu
REVISÃO
Mário Azevedo
 
1.ª edição
Março, 2019
ISBN 978-972-27-2540-8
EDIÇÃO N.º 1021709
Índice
Capa

Ficha Técnica

I. A COMEÇAR
1. Literatura e História: Algumas Relações
2. Múltiplas Durações e Historicidade dos Fenómenos e Objetos
Literários

II. HOJE E ONTEM: CONFIGURAÇÕES


3. Memória Historiográfica e Memória Simbólica
3.1. Raízes: A Historiografia Medieval
3.2. A Entrada do Mundo nas Letras Portuguesas: A Expansão e os
Seus Reversos. Historiografia, Narrativa e Literatura de Persuasão
3.3. O Período Romântico como Lugar de Confluência Entre Literatura e
História. Alexandre Herculano. Almeida Garrett. Camilo Castelo Branco.
Posteridades
4. A História como Conteúdo. Estudo de Casos
4.1. A Épica. Escritas, Reescritas e Transformações
4.1.1. Almeida Garrett, Camões
4.1.2. Guerra Junqueiro e a Preparação de Mensagem, de
Fernando Pessoa
4.1.3. António Lobo Antunes, As Naus
4.1.4. Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia
4.2. A Representação do Evento Histórico Memorável: O Terramoto de
1755
4.3. A Ficção Histórica: Oitocentos e Novecentos. Um Caso: O
Medievismo
4.4. Anacronia, Circulação Literária e Intempestividade: Gonçalo M.
Tavares, Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai
4.5. No Século XX: Crises, Guerras e Transformações
5. A História de Transformações Sociais
5.1. Representação de Tipos Sociais e Históricos
5.2. A Revolução do Quotidiano Burguês e a Queda do Antigo Regime:
Camilo Castelo Branco
5.3. Migrações, Emigrações, Imigrações: Campo e Cidade; Fora e
Dentro
5.3.1. A Dinâmica Histórica como Perturbação: Maria Velho da
Costa. Mário Cláudio
5.4. A Emancipação Feminina e Outras Formas de Cidadania. O Poeta
na Cidade
A opção pela ortografia estabelecida pelo Acordo Ortográfico (AO) de 1990 nesta
edição decorre da determinação legal a que a Imprensa Nacional (chancela editorial) está
obrigada. A aceitação que tal facto implica não revoga a discordância de princípio que,
por razões científicas, a Autora tem relativamente ao AO.
Senhores dos planos de urbanização
responsáveis pela paisagem
cuidado com o poeta na cidade
Não há nem pode crescer na rua
árvore mais inútil que a palavra do poeta
(Ruy Belo, «Aquele Grande Rio Eufrates»)
I. A COMEÇAR
1. LITERATURA E HISTÓRIA:

ALGUMAS RELAÇÕES

A relação entre História e Literatura é um dos elementos


fundadores do que hoje consideramos como o fenómeno literário
e, muito embora sob diversíssimas configurações, tem contribuído
para a perceção das duas formas de discurso como mutuamente
fecundáveis e em vários aspetos certamente próximas. Em alguns
momentos, as fronteiras parecem quase indistintas: por exemplo,
como veremos, em casos-chave da historiografia medieval a
separação entre facto e ficção é pouco operativa, e ambos
parecem fazer parte de um mesmo universo imaginário. Em outros
momentos, porém, e com diferentes conceitos operatórios, parece
chegar-se quase a uma conceção antagonista das duas formas de
discurso, como se a uma, e só a uma, coubesse o monopólio da
verdade; enquanto a outra pareceria construir-se com base num
afastamento potencialmente perigoso do real, ficando «presa» da
imaginação.
A posição que este livro defende repousa sobre a compreensão
de que os vínculos entre História e Literatura1, sendo de
compreensão essencial para ambas, devem refletir a sua variação
histórica. Esta variação não significa senão que a partilha entre os
vários terrenos de expressão humana não é eternamente fixa. E
que o que a pouco e pouco se vai cristalizando como História e
Literatura vai sendo, ao longo dos séculos, objeto de uma reflexão
sobre o sentido dos eventos, o sentido do que acontece ao homem
na sua vinculação pessoal e social.
Tal não significa subscrever uma posição em que surgissem
fundamentalmente diluídas as diferenças que foram sendo
historicamente constituídas entre facto e ficção. Essas diferenças,
embora como disse variáveis, são de consideração central quer
para a História quer para a Literatura. Argumentar o contrário,
numa perspetiva de relativismo extremo, tornaria na prática
inviável, entre muitas outras coisas, este mesmo livro. E não é
naturalmente disso que se trata.
Nos últimos anos, e sobretudo na sequência de trabalhos como
por exemplo os de Maurice Halbwachs, Pierre Nora ou Jan
Assmann e Aleida Assmann2, um outro conceito veio a ter uma
consideração muito especial no contexto que aqui nos interessa: o
conceito de memória, cultural e coletiva. Este conceito veio chamar
a atenção para o facto de que o discurso histórico, feito de uma
sedimentação e cristalização do acontecido através da memória
coletiva de uma comunidade, tem com esta uma relação também
muito especial, que a literatura partilha. A negociação entre
memórias potencialmente não-coincidentes, ou mesmo
potencialmente conflituais, vai sendo feita através de diversos tipos
de discurso, e ocorre tanto na História como na Literatura. Por
vezes, a História alimenta-se do que a Literatura estabilizou, como
memória do passado para o futuro. Outras vezes, é a Literatura
que vai buscar à História o enredo do acontecido.
Assinalemos ainda o quanto uma reflexão que, a este propósito,
mobilize aquilo para que a tradição clássica da teoria da memória e
da retórica veio chamar a atenção, ao distinguir entre memoria
rerum e memoria verborum, pode a nosso ver significativamente
representar3. Na realidade, ao separar a possibilidade do exercício
(e do treino) da memória das coisas, ou seja, do acontecido
(transposto para o discurso como tópicos), e da memória das
palavras (por exemplo através do exercício da citação), a tradição
clássica e depois medieval insiste num aspeto que julgamos aqui
de particular relevância: em certos casos, a História aparece na
Literatura como representação do presenciado (é este o caso por
exemplo de alguns historiadores do século  XVI, ou de muitos dos
que contemporaneamente escreveram sobre o Terramoto de
1755); mas na maior parte dos casos trata-se de representar uma
História que foi já objeto de discursivização (ou discursivizações)
anterior(es), e cuja conformação literária (ou letrada) é feita
sobretudo sobre a memória das palavras que a constituiu enquanto
objeto. Não se trata aqui, naturalmente, do exercício retórico do
treino da memorização. Mas o certo é que a «ficção da História»,
tal como a encontramos nesse género maior que é o romance
histórico, é fundamentalmente guiado pela possibilidade de
construir uma narrativa a partir apenas da memória das palavras
que do vivido se conservou, memória essa mais ou menos
longínqua, mais ou menos fidedigna. Todas estas questões
levantam naturalmente problemas diferentes, no caso de se
pretender equacionar do ponto de vista teórico as relações
complexas entre facto e ficção. Não é este o lugar para os discutir.
Entretanto, certamente ajudará a nossa reflexão compreender o
quanto tópicos e palavras se articulam com conceitos e tipos de
memória diferentes, e que por isso se associam a representações
diferenciadas que o discurso literário pode integrar do fenómeno
histórico.
Temos pois que as relações entre Literatura e História passam
de forma privilegiada pelos conteúdos que partilham ou que põem,
total ou parcialmente, em comum. Mas as relações entre ambas
ultrapassam, em muito, a questão dos conteúdos. Nas linhas que
se seguem falaremos da questão preferencial dos conteúdos mas
também de algumas outras dimensões que eles por vezes deixam
na sombra mas não devem, em nosso entender, ser ignoradas,
porque muito do que se entretece entre Literatura e História passa
por ali. O reconhecimento de uma dimensão mais poliédrica, que
não se esgota na questão dos conteúdos, é um aspeto decisivo
deste volume, embora ele não possa naturalmente seguir todas as
implicações dos aspetos que aqui ficam apenas mencionados.
Em primeiro lugar, podemos falar da importância que uma certa
vontade de realismo inevitavelmente traz para a sedimentação do
facto histórico, ou da inserção em contexto histórico, enquanto
fator-chave para a construção literária. Na verdade, a ideia de que,
de uma forma ou de outra, essa vontade de realismo faz parte
intrínseca da imaginação literária, e não se opõe a ela, transporta
para dentro da literatura uma particular atenção a esse especial
efeito de real que é a consciência histórica.
Em segundo lugar, e relacionado com este aspeto, embora
distinto dele, a obra literária pensa-se como produto dentro da
história, ela mesma como um objeto histórico manifestado não
apenas no momento da sua efetiva feitura mas ainda nos diversos
momentos (potencialmente infinitos) da sua (re)emergência
histórica. Decorre de alguns dos aspetos que no capítulo seguinte
referiremos que a literatura, enquanto produção artística, tem
diversas formas de sobrevida, entre as quais uma sobrevida
intermitente, com desaparecimentos e reaparecimentos
imprevisíveis, e historicamente sempre significativos. O facto de o
fenómeno literário existir na História é, deste ponto de vista,
fundador.
Em terceiro lugar, a construção da literatura é sempre, também,
uma construção histórica. Nos últimos séculos, ela tem
manifestado essa consciência através de duas representações
principais: a que, a partir do final do século  XVII, e sobretudo ao
longo do século  XIX e início do XX, faz reconhecer na história
literária um instrumento essencial para a construção de uma
simbólica da nação comum4, sustentando-se fundamentalmente
num paradigma de continuidade; e a que, mais recentemente, se
debate com a multiforme ideia de cânone literário, para chegar à
compreensão de que apenas é possível falar dele (mas é possível
falar dele) como uma conformação historicamente variável, e de
que essa mesma variabilidade é uma das condições para que a
ideia de um Portugal histórico possa ser pensada em literatura.
Finalmente, em décadas recentes, e na sequência das reflexões
sobretudo de Hayden White5, assistimos à emergência de uma
aproximação entre texto historiográfico e texto ficcional, com base
numa argumentação que em ambos reconhece a dimensão de
«artefacto» narrativo. Sob esta perspetiva, não seria apenas o
texto literário que procuraria aproximações ao texto historiográfico,
mas também este que partilharia, com aquele, mecanismos de
produção de sentido que ganhariam em ser investigados como tal.
No caso especificamente português, interessa sublinhar uma
outra ideia fundadora: a de que a consciência de um tempo
histórico longo, enquanto identidade portuguesa retrospetivamente
constituída, implica muitas vezes um «peso» histórico de que as
várias expressões culturais se encontram imbuídas e que
estruturalmente manifestam. Na realidade, a «ideia de Portugal»,
sobre que pensadores como José Mattoso e Eduardo Lourenço6
têm estruturalmente refletido, sob perspetivas diferentes mas
complementares, implica que existe uma consciência histórica de
Portugal profundamente embrenhada na consciência das letras
portuguesas e, em consequência, daquilo a que virá a chamar-se,
a partir do século  XVIII, a literatura portuguesa. Na sua mesma
diversidade constitutiva, a ideia de um país cujas raízes medievais
são fundadoras, e cujo período áureo é feito coincidir com o
período da Expansão (séculos  XV-XVI), traz inevitavelmente
consequências decisivas para a imaginação literária fecundada
pela imaginação histórica. Eduardo Lourenço tem sobre este
paradigma algumas observações reveladoras:

Portugal é um país que nasceu num contexto, que é o


contexto da chamada Europa Medieval. A Europa Medieval foi
uma Europa em que aquilo a que nós chamamos Europa cristã
— com uma unidade ainda sem ruptura importante — era o
paradigma da cultura e da civilização. E nós pertencemos de
uma maneira orgânica a essa Europa Medieval. Portugal
nasceu num período áureo — que chegou a chamar-se o
Primeiro Renascimento, segundo o famoso italiano —, no
século  XII, o da independência política, das primeiras
manifestações dum pequeno reino da Península Ibérica.
Portugal tem lugar nesse contexto, no seio de uma cultura
extremamente orgânica e organizada, brilhante, no plano
filosófico, no plano religioso, etc., que foi a cultura cristã da
Idade Média. (Lourenço, 2011, pp. 13-4)

A memória histórica relativa à história de Portugal, uma história


cujas raízes medievais e cuja continuidade (na sua mesma
diversidade) implicam uma tradição de longos séculos, não pode
deixar de manifestar-se na memória de que a literatura portuguesa
também dá conta, por vezes sob o modo de assombração — como
assombrações literárias julgo serem «casos históricos» de que a
literatura se apropria, com particular destaque para o
sebastianismo e para o mito de Inês de Castro7. Eis aqui dois bons
exemplos de como a história de Portugal, que está na base destes
dois complexos de representação simbólica, fecunda de modo
indelével a literatura e nela faz transparecer, em inúmeras e
diferenciadas representações, o peso e as diferenças da História.
Este peso, que na verdade dificilmente se pode considerar
resolvido, faz do mito sebastianista uma fábula simultaneamente
histórica, lendária e mítica que combina aspetos entre si muito
diferenciados, desde rumores e impostores a alusões a factos
dificilmente comprovados. Mas o que aqui interessa reter é a
sobrevivência desse mito para lá das hipóteses históricas da sua
confirmação, ou seja, para lá de qualquer verosimilhança histórica.
Ao aceitar ser anacrónico e historicamente impossível, o regresso
de D. Sebastião ao Reino e a hipótese de este encontrar nessa
figura a única viabilidade da sua sobrevivência transformam-no
inevitavelmente num mito que, por o ser, não deixa de fecundar de
forma talvez ainda mais intensa a memória histórica, política e
simbólica de um rei que nunca acaba de chegar. Maria Leonor
Machado de Sousa recorda algumas obras centrais, em Portugal e
em Espanha, para a construção do mito, a que poderíamos
acrescentar, pela dimensão e consequências simbólicas que têm,
a obra ensaística de Sampaio Bruno, O Encoberto (1904), mas
também, com inigualável alcance literário, dois textos decisivos: o
texto dramático oitocentista de Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa
(1844), em que a atmosfera sebastianista permeia todo o ambiente
e todas as personagens, aliás todas elas «fantasmagorias» de um
passado que impede o presente e o futuro; e A Mensagem (1934)
de Fernando Pessoa, cuja própria estrutura e composição revelam
o alcance simbólico com que Pessoa revisita (de certa forma
ocultando-a, na medida do possível) a epopeia camoniana de Os
Lusíadas (1572), para dela conservar o mito de um rei que, ao
contrário da obra de Camões, vale não tanto pelo que faz (ou pelo
que se espera que faça) mas pelo sonho e pela loucura que
manifesta, que o mesmo é dizer pelo sonho que pode permitir aos
vindouros. Aliás, já Cardoso Bernardes implicitamente aponta para
o recorte antecipatório de alguns traços sebastianistas no poema
camoniano, ao dizer:

Como o próprio canto épico, os feitos narrados são


endossados ao rei, quer como seu beneficiário directo, quer
como seu continuador. Situado a este nível, D. Sebastião é não
apenas o depositário da história nacional, mas também a
esperança concentrada da sua sublimação.

Por conseguinte,

a figura do rei integra-se assim no contexto de uma atitude


messiânica, do mesmo modo que […] se enquadra num lastro
providencialista em que o tempo da história (concretamente
balizado pela pressão dos turcos sobre a Europa e pelo direito
de conquista contra os mouros) se amplifica em ordem a uma
espécie de tempo hiero-histórico de alcance universal e
ecuménico.8 (pp. 77-8)

Em meados do século  XX, um outro grande poeta escreve uma


obra dramática densa e com implicações simultaneamente
históricas e políticas, centrada apenas na figura de D.  Sebastião.
Trata-se de Jorge de Sena, que no seu texto (em verso) intitulado
O Indesejado situa a sua obra no momento ambíguo dos jogos de
poder que agitaram a cena política portuguesa e espanhola (e
europeia!) na sequência do desaparecimento de D. Sebastião na
Batalha de Alcácer Quibir.
Resta dizer, nestas páginas iniciais, que, como é sem dúvida
autoevidente, não houve neste volume qualquer preocupação de
exaustividade, que seria impossível — e aliás indesejável. Não se
pode tratar nunca de esgotar nem os tipos nem os casos de
relação entre história de Portugal e literatura portuguesa, nem
sequer de os tipificar e, menos ainda, de pretender submetê-los a
qualquer forma de tipologia. Pretendemos, isso sim, identificar
alguns modos preferenciais sob os quais podemos hoje pensar as
relações variáveis entre esses dois discursos, o historiográfico e o
literário, e sobretudo mostrar a sua operacionalidade para pensar
um conjunto robusto de formas da imaginação literária. Que as
letras e a Literatura tenham sido e continuem a ser, muitas vezes,
um elemento decisivo na constituição das fontes historiográficas é
para todos uma evidência. Que a História é, analogamente, um
manancial quer de conteúdos quer de procedimentos discursivos
com os quais a literatura dialoga muitas vezes intimamente é algo
que importa igualmente reconhecer. Por isso, trata-se aqui
sobretudo de identificar alguns dos modos preferenciais que tais
relações estabelecem, chamando a atenção para a importância
simbólica que assumem na nossa perceção, hoje, do que é a
história de Portugal e a literatura portuguesa. Nenhuma delas
(história e literatura) é, aliás, stricto sensu portuguesa. Apenas
assim as designamos um pouco por engano. Mas nada do que é
«português» é apenas português.
Temos de sublinhar, ainda, o facto de que ambas representam
um acesso mediado ao passado, reconhecendo nele uma
alteridade constitutiva. A ideia de perda, que Paul Ricoeur9
sublinha como elemento constitutivo do carácter passado do
passado, deve também ser reconhecida como algo que funda as
diferentes formas por que história e literatura se relacionam com o
que, sendo passado histórico (isto é, sedimentado enquanto
fenómeno histórico), é trazido pelo discurso para o presente da
escrita e da leitura. Não espanta, pois, que específicas formas de
idealização e/ou nostalgia assombrem igualmente muito em
especial várias representações literárias do passado histórico,
tornando mais visível a forma como elas se perderam. É o caso,
por exemplo, da recuperação do imaginário medievalizante, de que
nos ocuparemos em capítulo posterior.

1 No âmbito deste volume, grafamos quer História quer Literatura com maiúsculas, quando
nos interessa frisar que se trata de dois universos de discurso que concetualmente
separamos para melhor pensarmos a sua relação; e ainda porque, no quadro do
pensamento sobre a literatura, o conceito de história designa também os conteúdos de
efabulação de que os fenómenos literários se constroem.
2 Verem particular : Maurice Halbwachs, La Mémoire Collective, Paris, PUF, 1967; Pierre
Nora, Les Lieux de Mémoire, Paris, Gallimard, 1997; Aleida Assmann, Cultural Memory and
Western Civilization. Functions, Media, Archives, Cambridge UP, 2011.

3 Remeto aqui, entre várias obras possíveis, para o livro clássico de Frances Yates, The Art
of Memory, London, Routledge, 1966.

4 Cf. a este respeito o meu capítulo intitulado Literatura, Cânone e Ensino, in Helena
Carvalhão Buescu, Experiência do Incomum e Boa Vizinhança. Literatura Comparada e
Literatura-Mundo, Porto, Porto Editora, 2013, pp. 140-65; e ainda Vítor Aguiar e Silva, As
Humanidades, os Estudos Culturais, o Ensino da Literatura e a Política da Língua
Portuguesa, Coimbra, Almedina, 2010.

5 HaydenWhite, Metahistory. The Historical Imagination in Nineteenth-Century Europe,


Johns Hopkins UP, 1973.

6 Cf.entre outros, Eduardo Lourenço, Pequena Meditação Europeia, Lisboa, Verbo, 2011;
José Mattoso, Identificação de Um País. Ensaio sobre as Origens de Portugal (1096-1395),
Lisboa, Editorial Estampa, 1985.

7 Para estes dois casos, aconselham-se como leituras de aprofundamento: Sobre o


Sebastianismo, Maria Leonor Machado de Sousa, D. Sebastião. História e Mito em
Portugal e Espanha, in Em Louvor da Linguagem. Homenagem a M.ª Leonor Buescu,
Lisboa, Edições Colibri, 2003, pp. 223-34; ver ainda Maria de Fátima Marinho, D. Sebastião
entre o Ser e o Parecer (a propósito de O Encoberto); D. Sebastião e o Romance Histórico,
in Um Poço sem Fundo. Novas Reflexões sobre Literatura e História, Porto, Campo das
Letras, 2005, pp. 393-430. Sobre Inês de Castro, Maria Leonor Machado de Sousa, Inês de
Castro na Literatura Portuguesa, Lisboa, Biblioteca Breve, ICALP, 1984; para os ecos
europeus do episódio e dos seus contornos míticos, ver, da mesma autora, Inês de Castro.
Um Tema Português na Europa, Lisboa, Ed. 70, 1987. Ver ainda Maria de Fátima Marinho,
As Máscaras de Inês; Constança de Eugénio de Castro ou O Outro Lado do Mito; Inês de
Castro Outra era a Vez, in op. cit., pp. 323-92. Especificamente para esse lugar maior que
é A Castro, de António Ferreira, veja-se ainda Thomas Earle, António Ferreira’s Castro:
Tragedy at the Cross-Roads, in Maria Barbara e Karl A. E. Enenkel (eds.), Portuguese
Humanism and the Republic of Letters, Leiden, Brill, 2012, pp. 289-318. Ainda do mesmo
autor, A Castro de António Ferreira e a concepção estóica do tempo, Euphrosyne, 38,
2010, pp. 243-52.

8 JoséAugusto Cardoso Bernardes, As Estâncias Finais d’Os Lusíadas ou o «nunca ouvido


canto» de Camões, Máthesis, 9, 2000, pp. 72-80.

9 Paul Ricoeur, La Mémoire, l’Histoire, et l’Oubli, Paris, Seuil, 2000.


2. MÚLTIPLAS DURAÇÕES E HISTORICIDADE DOS
FENÓMENOS E OBJETOS LITERÁRIOS

Podemos combinar as várias observações que temos vindo a


fazer, agrupando-as em torno de três questões principais.
Em primeiro lugar, a literatura tem constituído um manancial
informativo e documental precioso para o discurso histórico e para
a compreensão do passado que ele reelabora e compreende. Ou
seja, a literatura tem-se constituído como um repositório de
informação cultural e simbólica, factual, económica e política sem o
qual a escrita da história apenas tem um acesso muito mais
fragmentado e precário ao passado que tenta compreender. Esta
dimensão de repositório deve ainda complexificar-se com a noção
afim de arquivo, que em particular Foucault e Derrida10 exploraram
em várias das suas implicações, e que se reflete em todo o
pensamento reflexivo de Aleida Assmann. Existe no conceito de
arquivo a consciência não apenas do que está compilado e
recolhido, mas também, e de forma muito sustentada, de um
conjunto de documentos cujo valor potencial é decisivo. Ou seja,
de algum modo o que reconhecemos na conceção da literatura
como arquivo é o facto de que ela contém inúmeras possibilidades
de esse arquivo ser lido e ser tido em conta historicamente; e de
que existe uma dimensão próxima do seu carácter inesgotável que
a enriquece e a projeta para o futuro. Hoje, o que historicamente
lemos e portanto atualizamos na literatura é um conjunto de
informações documentais que amanhã poderemos vir a completar,
alterar e complexificar de forma inesperada. A literatura é, pois, um
arquivo de diferenças históricas que o discurso histórico nunca
pode desdenhar, sob pena de lhe passar ao lado o que, em
determinado momento do passado, constitui uma experiência
historicamente decisiva. Mas a noção de arquivo podemos nós
ainda remetê-la quer para a consciência da perda a que atrás fazia
também referência, quer para a pulsão de conhecimento que liga
passado e futuro: existe um «mal de arquivo» (Derrida) que aquele
que está comprometido com a história não pode deixar de
experimentar, uma pulsão em direção às origens que o arquivo
materializa como possibilidade de leitura inesgotável, e por isso de
obsessão potencial — mas também inapelavelmente nostálgica.
Ler a literatura como parte essencial desse arquivo é ver nela o
repositório efetivo e potencial de uma história que não acaba
nunca de ser feita.
Em segundo lugar, Literatura e História partilham (parcialmente)
mecanismos de produção discursiva fundamentalmente articulados
em torno do discurso narrativo, mecanismos que sublinham a
existência de características afins, como a selecção e a
montagem. Estes mecanismos orientam o discurso narrativo,
historiográfico ou ficcional, que é efetivamente feito, por um lado.
Mas por outro, sobretudo se os considerarmos em função das
observações relativas ao arquivo, eles permitem não rasurar nunca
o carácter potencial e por isso inesgotável de qualquer discurso
realizado. Porque narrar implica selecionar e combinar fenómenos
considerados como fazendo parte de uma determinada história, e
porque os mecanismos efabulatórios (o emplotment de Hayden
White) implicam a existência de narrativas potencialmente
divergentes, aquilo que o discurso narrativo da história e da
literatura acaba por sublinhar é o nosso reiterado envolvimento na
forma como fazemos (ou tentamos fazer) sentido do mundo, entre
outras coisas, pelos modos como nos relacionamos com ele
através das histórias que contamos.
É claro que existem diferenças entre o impulso ficcional e o
impulso histórico (que me parece descrição mais correta do que a
sua redução à oposição entre facto e ficção). Ambos, entretanto,
narram, e fazem-no com base em fenómenos parcialmente
comuns, ou potencialmente comuns. É que a literatura também
nunca acaba de escrever-se. E, se não podemos reduzir a
literatura aos textos narrativos que ela integra, estes são parte
fundamental, não única, do arquivo do passado que ela constitui
para o futuro.
Em terceiro lugar, vimos que a literatura tem uma memória
interna, que é uma memória histórica da sua própria condição. Os
dois grandes movimentos de articulação histórica que a literatura
manifesta, como continuidade e como rutura, são prova e
manifestação dessa memória. Como continuidade, a literatura
«lembra-se» de modelos e paradigmas, de processos e temas, e
repetidamente glosa, de forma mais manifesta ou mais implícita, o
modo como eles marcam, a partir do passado, o que a literatura do
presente faz. A grande narrativa (Jean-François Lyotard) sobre os
«modelos clássicos», que no que ao Ocidente diz respeito
assombra a memória literária desde que os Romanos entenderam
ser os herdeiros dos Gregos, projeta nesses modelos do passado
uma maior perfeição literária, que se trataria de preservar e repetir.
Pela assunção desses modelos sublinha-se, pois, uma forma de
continuidade histórica que implica reconhecer e valorizar os elos
com um passado que se erige também como projeto futuro da
literatura. Assim, de cada vez que a memória histórica interna à
literatura privilegia a narrativa das continuidades, o que sobressai é
o seu potencial de citação e de conservação (e sempre
transformação) do passado, como acontece com os modelos
clássicos em Correia Garção. O segundo grande movimento de
articulação histórica consiste, pelo contrário, na valorização dos
movimentos de rutura, enquanto uma outra específica forma de
andamento histórico. É claro que a rutura é ainda uma forma de
«citar» (a contrario sensu) o passado. Mas essa citação faz-se por
uma vontade expressa de o recusar e, por isso, de imaginar um
futuro que pudesse ser totalmente novo. As ruturas modernistas
são um excelente exemplo de como a evolução histórica da
literatura passa também por especiais modos de relação com o
passado que o postulam como algo a ser deixado para trás e,
mesmo, a ser entendido como cristalizado. Fernando Pessoa não
faz outra coisa ao criar o «poeta bucólico de espécie complicada»
que é Alberto Caeiro, ou ao inventar o clássico dos clássicos em
língua portuguesa, que é Ricardo Reis. E é por isso que eles são
inseparáveis do poeta das ruturas vanguardistas que é, a seu
modo, Álvaro de Campos. Não devemos ainda esquecer a
importância de procedimentos como a paródia, que cita o passado
para dele se apoderar e para o repetir de forma lateral e se
possível «errada» (porque existem projetos de «erro histórico»): a
relação de muito do que tem vindo a ser chamado pós-
modernismo com a história passa justamente por procedimentos
paródicos cuja centralidade é, por isso, decisiva. Poderemos
considerar o caso totalmente paradigmático da obra de José
Saramago, para perceber que o «erro» na citação histórica e por
isso na relação com o discurso histórico faz parte integrante do seu
projeto romanesco e, mormente, da forma como reencena a
relação com o romance histórico tradicional. A possibilidade de
«errar a História» é ainda uma forma de a homenagear, é claro.
Avancemos entretanto um quarto grupo de questões,
acrescentando-as às até agora equacionadas. A evolução histórica
faz-se, não apenas de diferentes modos de articulação, mas
também de velocidades temporais diferenciadas. Claudio Guillén11
tem a este respeito reflexões de grande interesse, ao pensar a
pertinência da heterogeneidade das diferentes durações históricas,
conceptualizadas no quadro da Nouvelle Histoire, para a
perspetivação da literatura e dos fenómenos (também eles
históricos) que a constituem. Guillén chama a atenção para a
forma como a equacionação de longas, médias e curtas durações
pode, efetivamente, oferecer um quadro interessante para o
problema dos supostos «universais» em literatura. Poderíamos, ao
invés de recorrer a conceitos de perigo totalizante (e por isso a-
histórico), como o de «universal», insistir no reconhecimento de
categorias que se movem com grande lentidão e que exigem uma
«lente» histórica de grande amplitude para o seu dinamismo poder
ser reconhecido. O exemplo que dá destas longas durações
literárias seria o dos seus modos (lírico, épico-narrativo e
dramático), que ganhariam assim em ser reconhecidos não como
invariáveis literárias mas como categorias de duração longa e
persistente, cuja variação tem de ser equacionada de uma forma
totalmente diferente de outro tipo de fenómenos literários imbuídos
de velocidades históricas mais rápidas e pontuais. No quadro das
médias durações Guillén coloca preferencialmente a reflexão sobre
períodos literários que, podendo abranger massas temporais
significativas, manifestam, entretanto, um dinamismo interno mais
rápido e por isso mais suscetível de perceção imediata. Seria o
caso por exemplo de períodos como o Classicismo ou o
Romantismo. Finalmente, teríamos os fenómenos de curta
duração, como por exemplo as já aludidas vanguardas, em que a
velocidade histórica se acelera e o dinamismo se torna vetor
fundamental. Nestes momentos de tempo acelerado e de maior
concentração, as mudanças históricas tornar-se-iam mais visíveis
e agitadas (mas isto não significa, entretanto, que apenas nelas a
mudança se verifique, como vimos).
Entretanto, Claudio Guillén acrescenta a estas três durações
uma quarta forma de velocidade histórica, que recupera do
historiador de arte George Kubler e que ambos consideram
específica dos objetos e procedimentos culturais, e a que convirá
darmos uma atenção particular. Trata-se das durações
intermitentes. Existem fenómenos culturais, neste caso literários,
que estão imbuídos de uma duração que não se exprime por uma
mais longa ou mais curta massa temporal, mas pela sua
capacidade de ocorrência em diferentes contextos históricos, e por
isso de repetição diferenciada. A sua capacidade de intermitência
torna-se assim um facto histórico que implica uma especial forma
de historicidade: interessa não apenas aquilo que um fenómeno é,
mas também o modo como se relaciona com outras suas
ocorrências históricas, e por isso os elos que com elas mantém. Já
vimos, por outro lado, que esses elos podem oscilar entre
combinatórias diferenciadas, em direção aos polos quer da
continuidade quer da rutura. Tudo isto significa que, no quadro dos
objetos literários, o fenómeno histórico tem de implicar também as
relações entre objetos, e não apenas cada um em si mesmo
considerado. Guillén dá o exemplo do género pastoril, ou do
romance histórico. O potencial de ressurgimento que estes
géneros evidenciam, e que é também o seu potencial de
reinvenção, dá conta de uma peculiar forma de duração histórica
dos fenómenos literários: a sua intermitência.
Tudo isto significa também algo mais, que quero aqui sublinhar,
pelas consequências que tem no que respeita ao carácter histórico
da literatura: é que não podemos nunca considerar um fenómeno
literário (ou cultural) como definitivamente enclausurado no
passado, porque pela sua intermitência ele pode reaparecer,
repetido e entretanto novo, num contexto historicamente
imprevisível. E esse seu surgimento vai afetar, de forma indelével,
a história passada, presente, e futura desse fenómeno. O não-
encapsulamento do passado no passado faz parte do carácter
histórico da literatura e rege, em meu entender, os modos pelos
quais ela se manifesta. Um só exemplo pode ser lembrado no que
à literatura portuguesa diz respeito: a revivescência da épica que,
anunciada como projeto por Garcia de Resende no prólogo ao
Cancioneiro Geral (1516), e nesta coletânea já timidamente
encenada, não para de surgir nos séculos posteriores, como
aceno, tentativa ou projeto autónomo, para se configurar
maximamente em Os Lusíadas (1572) e nos acompanhar ao
presente, até ao recente Viagem à Índia (2010), de Gonçalo M.
Tavares.

10 Jacques Derrida, Mal d’Archive. Une Impression Freudienne, Paris, Ed. Galilée, 1995;
Michel Foucault, Archéologie du Savoir, Paris, Gallimard, 1969.

11 ClaudioGuillén, Cambio Literario y Múltiple Duración, in Homenaje a Julio Caro Baroja,


Madrid, ed. A. Carreira, 1978, pp. 533-49.
II. HOJE E ONTEM: CONFIGURAÇÕES
3. MEMÓRIA HISTORIOGRÁFICA

E MEMÓRIA SIMBÓLICA

Neste capítulo, tratar-se-á sobretudo de olhar para algumas


configurações possíveis que as relações entre Literatura e História
vão assumindo, no caso específico da literatura portuguesa. Na
realidade, temos em primeiro lugar de sublinhar que é necessário
ter um entendimento lato sensu do que podemos incluir no
conceito de literatura, muito em particular no que diz respeito às
práticas discursivas que ele engloba anteriormente ao século  XVIII.
Não cabendo aqui rastrear as razões que acabam por levar a uma
especialização dos discursos com destaque para a esteticização
do literário, em particular a partir do século  XVIII, cabe entretanto
frisar que até essa época o universo das práticas discursivas é
extremamente diversificado e, muitas vezes, a poesia coexiste com
outros discursos que hoje tenderíamos a considerar alheios ao
literário stricto sensu. Temos pois de lidar com um conceito mais
abrangente de literatura, que engloba a ideia de letras e, nele, a
ideia de discursos diferenciados que entretanto se supõem
constitutivamente mais próximos do que por vezes os vemos, hoje,
ser pensados.
Esta constatação tem algumas consequências interessantes no
que a este volume diz respeito: por um lado, leva-nos a ter de olhar
para um conjunto de discursos que hoje não consideraríamos
imediata ou necessariamente na esfera da literatura, mas que
importa perceber que com ela urdiram a sua comum pertença às
letras portuguesas e ao que, sobretudo entre os séculos  XV e  XVII,
viria a conformar-se em torno do conceito de república das letras12.
É por exemplo o caso do discurso historiográfico, de que neste
ponto seguiremos algumas conformações, em torno de três dos
seus momentos específicos, a Idade Média, o Renascimento e o
Romantismo. Por outro lado, permite-nos sublinhar o carácter
historicamente diferenciado do que podemos entender como
literatura portuguesa, nela integrando um conjunto entre si
heterogéneo de práticas discursivas que importa reconhecer. Por
isso, permite-nos também frisar a riqueza dessas mesmas práticas
discursivas, mostrando que historicamente elas sempre
manifestaram, de modos muito diversos, o potencial de
contaminação e de remissão que as foi ligando.

3.1. RAÍZES: A HISTORIOGRAFIA MEDIEVAL

O discurso historiográfico medieval constitui, pelo seu carácter


misto, um expressivo lugar para a consideração das relações entre
Literatura e História. Recordemos, em primeiro lugar, o carácter
fundadoramente heterogéneo das práticas discursivas anteriores
ao século  XVIII, para percebermos que aquilo que encontramos
muito especialmente na Idade Média é uma das expressões mais
peculiares dessa partilha entre os domínios da história, da ficção
narrativa de imaginação, da lenda, do mito, ou mesmo da
hagiografia. Não existe, estabelecida de forma a priori, uma
segregação crítica entre o que é integrado enquanto facto histórico
e o que ocorre no quadro do discurso simbólico-literário. E será um
trabalho longo e com etapas diferenciadas que permitirá chegar a
uma visão da História como a que Fernão Lopes já manifestará, no
século  XV, com uma consciência crítica invulgar e aliás fundadora,
no que às letras portuguesas diz respeito13.
Na realidade, antes de Fernão Lopes a dimensão histórica
emerge especialmente subordinada a uma visão de carácter
genealógico da História, através da noção de linhagens e, por isso,
de uma História que se organiza em torno de uma genealogia e de
um património familiares. Não é tanto a noção de indivíduo que
nela surge como elemento-chave, e por isso não é sobretudo a
ação individual que sobreleva, embora em alguns casos essa ação
individual seja naturalmente decisiva. É por exemplo o caso da
narrativa da Batalha do Salado14 no Livro de Linhagens do Conde
D. Pedro. Mas os três Livros de Linhagens15 (escritos entre o
último quartel do século  XIII e meados do século seguinte) que se
conservam, o último dos quais da iniciativa de D. Pedro, conde de
Barcelos (filho bastardo de D.  Dinis), coloca a tónica sobre os
registos de famílias nobres, de que importa conservar a memória
para que possam naturalmente exercer-se os direitos e deveres
patrimoniais inerentes à família respetiva. Para além de manifestar
um reforço da autoperceção da classe aristocrática e das famílias
que a constituiriam, estes Livros de Linhagens poderão também
talvez ser encarados sob a perspetiva do exemplo bíblico do Livro
dos Números, em que justamente importa conservar o registo das
famílias das doze tribos para que, em última análise, se possa
chegar à linhagem de Cristo, descendente da casa de David. No
caso português, o prólogo do Livro do Conde D. Pedro aponta
ainda um objetivo relacionado com o conhecimento dos parentes
próximos, de forma a garantir que o casamento entre nobres fosse
efetuado no respeito do direito canónico.
De alguma forma, trata-se de assegurar o conhecimento comum
das principais famílias da aristocracia portuguesa, em particular da
primeira dinastia. Mas enquanto os primeiros livros a isso
praticamente se resumem, o último acrescenta-lhes objetivos muito
mais amplos, em termos de conceção e amplitude historiográfica
(tratar-se-ia de apresentar «o linhagem de Jesu Cristo des Adam
acá»), pelo que apresenta traços de uma história universal, desde
a época bíblica até aos Godos, passando por Grécia, Roma,
Inglaterra, Pérsia, Egito; e em termos ainda de cruzamento dos
objetivos historiográficos das linhagens com os da ficção medieval,
ao combinar as narrativas de linhagens com a inscrição de lendas
de base folclórica, fantástica e medieval, como as narrativas do rei
Dom Leir, da Dama do Pé de Cabra ou da Dona Marinha. Esta
matéria ficcional pertence ao legado folclórico europeu e, sendo
cristalizado no Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, atesta a
singular e persistente circulação de lendas e narrativas no
Ocidente medieval. Por outro lado, atesta ainda a partilha
simbólica de um conhecimento baseado na memória de origens
remotas e ancestrais, que se manifestaria na possibilidade quer de
narrar lendas como as atrás referidas quer de registar as linhagens
familiares e genealógicas.
Para além de recordarmos as implicações especificamente
literárias que narrativas como as do rei Leir ou da Dama do Pé de
Cabra têm, visto que ambas reaparecem mais tarde em contextos
especificamente literários (a primeira sob a pena de Shakespeare,
a segunda enquanto narrativa de Alexandre Herculano, que
aproveita outras narrativas históricas dos Livros de Linhagens para
textos seus literários, como a narrativa sobre a morte do Lidador),
duas narrativas merecem particular destaque, do ponto de vista
que nos ocupa no presente volume, e pelas implicações históricas
que terão. Trata-se da lenda do rei Ramiro e da narrativa da
Batalha do Salado.
A lenda do rei Ramiro, ou lenda de Gaia, tem particular interesse
por alguns elementos histórico-míticos que nela podemos
reconhecer no que respeita às origens das monarquias ibéricas, e
em particular de Portugal. A história, tal como surge no Livro de
Linhagens16, é relativamente simples, no seu recorte heroico, feito
de raptos, traições e vinganças. O rei Ramiro (comummente
identificado com Ramiro II, rei de Leão em meados do século  X, e
aparentemente o primeiro a intitular-se «rei da terra portucalense»
durante brevíssimo período), ter-se-ia envolvido, no quadro da
Reconquista cristã, em dissensões militares com o rei mouro
Alboazer. A estas dissensões acrescentaram-se as pessoais e
familiares, com Ramiro a apaixonar-se pela irmã do rei mouro e a
raptá-la; e Alboazer a vingar-se raptando, por seu turno, a mulher
de Ramiro. É neste quadro que Ramiro, ao libertar a mulher, se vê
confrontado com a traição desta, que se apaixonou por Alboazer.
Depois de castigar a mulher com a morte, e de derrotar Alboazer,
tomando o seu castelo em Gaia, Ramiro teria casado com a
princesa moura, de quem teria tido vasta descendência.
Esta lenda, também recordada por Almeida Garrett na recolha
que faz de alguns episódios lendários medievais, interessa aqui
por vários motivos, brevemente apontados. Em primeiro lugar, ela
espelha um momento decisivo da Reconquista cristã e das suas
implicações para a formação do Condado Portucalense e mais
tarde do reino de Portugal, ao colocar os dois reis, Ramiro e
Alboazer, habitando respetivamente as margens norte e sul do rio
Douro, aludindo assim ao carácter fronteiriço que esse rio teve,
durante largo período, na separação entre territórios cristãos e
territórios sob domínio muçulmano na Península Ibérica e, em
particular, no seu extremo ocidental. Em segundo lugar, podemos
ler neste episódio histórico e na lenda a que dá origem o
reconhecimento do carácter misto das origens dos reinos
medievais na Península Ibérica, fruto de uma miscigenação política
e cultural entre as duas culturas que a dominam. Nem o rei cristão
nem o rei mouro funcionam como personagens independentes
nesta história. Ambos se apaixonam por mulheres pertencentes à
«outra» cultura e ao «outro» rei, com os quais lutam e dos quais
divergem. Ambos misturam inextricavelmente a dimensão política
e guerreira com a dimensão pessoal do desejo. Ambos dão conta
de como os reinos peninsulares, e Portugal muito especialmente
(pela implantação simbólica de Gaia no contexto de afirmação do
condado Portucalense), se afirmam num contexto político em que
as raízes políticas mistas têm de ser compreendidas e
sublinhadas. A lenda do rei Ramiro, para além de ser uma história
com episódios típicos de uma efabulação romanesca, de traições,
raptos e guerra, dá conta de uma conjuntura histórica (as guerras
entre cristãos e muçulmanos na Península) que ilumina uma
estrutura fundadora daquilo que virá a ser Portugal.
Já no que respeita à Batalha do Salado, ela constitui uma das
mais notáveis e precoces narrativas de carácter histórico em língua
portuguesa, sendo posteriormente retomada, entre outros, por Luís
de Camões, no Canto III de Os Lusíadas. Na versão que integra o
Livro de Linhagens, ela figura na parte final da biografia de Fr.
Álvaro Gonçalves Pereira, Prior do Hospital e pai de Nun’Álvares
Pereira, e narra de forma pormenorizada e literariamente
conseguida a batalha travada em 1340 perto do estreito de
Gibraltar, entre, por um lado, os reis cristãos Afonso XI de Castela
e Afonso IV de Portugal e, por outro, o sultão de Marrocos e o rei
de Granada. Trata-se por isso de um outro momento decisivo da
luta secular que faz da Península Ibérica um palco privilegiado
para as guerras político-religiosas que opõem cristãos e
muçulmanos desde a invasão da Península, no século  VIII. Numa
narrativa que naturalmente vai sublinhar a existência de uma
unidade cristã visível na aliança entre as coroas de Portugal e de
Castela, alguns elementos constituintes vão frisar os objetivos da
memória histórica que a narrativa alcança, como lembra Bernardo
Vasconcelos e Sousa17: o desequilíbrio do fator numérico entre os
dois exércitos, realçando assim a importância da vitória dos reis
cristãos; a discrepância inversamente proporcional do número de
mortos e feridos, com o campo dos cristãos a ser miraculosamente
quase poupado; o surgimento do elemento mítico-religioso,
associado à profecia e à relíquia da Vera Cruz que os cristãos
tinham transportado consigo.
Na perspetiva narrativa, sublinhemos a capacidade compositiva
deste texto, nomeadamente na construção de uma atmosfera
dramaticamente carregada em que o clímax é precedido de etapas
que se vão gradativamente sucedendo, manifestadas através de
pormenores concretos como as referências ao cansaço, ao
sangue, aos ruídos da batalha, aos gemidos dos feridos. Ponto
culminante, deste ponto de vista, é o conjunto de interrogações
que antecedem o decisivo volte-face da batalha a favor dos
cristãos, quando estes, aparentemente desesperados, se dirigem a
Deus para interrogar as razões do seu abandono. Estas
interrogações correspondem literariamente a um momento-chave
da narrativa, e constituem um mote para inúmeras reflexões
históricas sobre o «abandono de Deus» (do Terramoto de 1755 às
narrativas do Holocausto, ou ao magnífico romance do japonês
Shusaku Endo, Silêncio, 1966).
Na Batalha do Salado, entretanto, e embora os cristãos sejam
assolados por um momento de dúvida e mesmo de desespero,
eles são depois confirmados no poder da sua crença. Deus está
por eles, e «os mouros […] disseram que seu Mafamede nom
havia poder para os defender». Assim, um episódio de crise
política e de potencial crise religiosa é transformado num episódio
de confirmação, afinal jubilosa, da unidade política e do poder
religioso, sublinhado, na sequência da batalha, pelas celebrações
com que os monarcas cristãos são recebidos em Sevilha. Por
outro lado, o discurso que D. Afonso IV dirige às suas tropas, antes
do embate com os Mouros, permite recortar a apresentação da
ideologia cavaleiresca em articulação estreita com a cruzada anti-
islâmica, e representa um momento alto da organização do relato.
É aliás esta mesma atmosfera que os posteriores relatos
historiográficos deste episódio vão sublinhar. Dêmos, no entanto,
algum espaço, em virtude da matéria deste livro, à forma como
Camões integra este episódio na trama maior de Os Lusíadas, nas
estrofes 109 a 114 do seu Canto III. Um dos elementos decisivos
na estruturação deste episódio no poema épico reside na forma
como ele vai surgir subsumido pelo tema da unidade cristã
peninsular: «Juntos os dous Afonsos, finalmente», frisa Camões,
na sequência do episódio da formosíssima Maria, cujo pedido
dramático de socorro ao marido é atendido por seu pai, Afonso IV.
Esta unidade aponta precisamente para o ideal cavaleiresco e
guerreiro cuja importância em Os Lusíadas é também ela decisiva
e estrutura, como vimos, a narrativa do Livro de Linhagens. Por
outro lado, a Batalha do Salado ocorre, no poema camoniano,
como contraponto de outros dois episódios com os quais
estabelece elos narrativos muito próprios. De um lado, temos o
episódio da formosíssima Maria, que Camões aproveita para tecer
como motivação lírica do episódio guerreiro e bélico. Do outro lado,
temos o posterior episódio de Inês de Castro, lugar de uma
matança anticavaleiresca que contraria os ideais de piedade cristã
que as motivações aqui frisadas teriam manifestado. Do ponto de
vista estrutural, pois, Camões usa a descrição da Batalha do
Salado, dois séculos depois de ela ter ocorrido e de ter sido
integrada no Livro de Linhagens, como elemento compositivo do
seu poema épico, criando elos e contrastes entre as dimensões
lírica e bélica, entre os valores cristãos e a guerra religiosa, entre
os ideais de cavalaria e a crueza política.
Mais recentemente18, tem-se ainda colocado a hipótese da
existência de uma canção de gesta perdida, mas reconhecível
através de vários episódios de diversas crónicas, entre as quais a
Crónica Geral de 1344, a Crónica de Cinco Reis de Portugal19 e a
Crónica Breve de Santa Cruz, tendo como figura central a
personagem de Afonso Henriques. Trata-se de um caso que, pela
sua exemplaridade e especial interesse contextual, merece algum
destaque. A ser assim, estaríamos perante um caso extremamente
precoce e interessantíssimo de construção de uma memória
nacional, e por isso de uma identidade portuguesa legitimada pela
eleição da figura de um herói que em si mesmo congregaria as
principais características capazes de assegurar a viabilidade de
uma nação independente e que as crónicas parecem desde logo
apresentar como personagem escolhida, desde o berço, para
assumir a responsabilidade pelo destino da futura nação20. Parece
poder postular-se a existência de uma épica oral, de tradição
jogralesca, em que a Crónica Geral de 1344 se teria inspirado para
relatar a história, já de recortes lendários, de Afonso Henriques, o
primeiro rei de Portugal. Como dizem Lopes e Saraiva21, «preside
a este ciclo lendário a intenção de exaltar a figura e feitos do
primeiro rei de Portugal e defender a sua causa. De modo
especial, pretende mostrar, contra as pretensões de D. Teresa, que
ele é o herdeiro legítimo do território deixado pelo conde seu pai; e
também que a razão está do seu lado no conflito com a Santa Sé».
Parece poder deduzir-se, das diferentes versões conhecidas da
lenda relativa à vida e feitos de D. Afonso Henriques, que existiria,
até, um conjunto de diferentes tradições épicas, ou seja, um ciclo
épico cujas bases históricas consistiriam na construção de uma
memória histórica, simbólica e política em torno da figura do
primeiro rei de Portugal. Encontramos a clara definição do herói, D.
Afonso Henriques, dos seus antagonistas (D. Teresa) e apoiantes
(Egas Moniz), dos locais em que a ação preferencialmente decorre
(o norte de Portugal e em especial Coimbra). E encontramos em
particular uma atenção concreta aos feitos e às características do
protagonista, que Lopes e Saraiva descrevem como «um cavaleiro
bravio e impulsivo». Por tudo isto, não pode deixar de frisar-se este
caso como um «surto de um sentimento nacional a definir-se e
pode considerar-se como uma gesta da independência. Porventura
encontramos aqui a primeira expressão de um sentimento épico
ligado ao ‘amor da pátria’ e à consciência de uma actividade
nacional que inspirará essa grande epopeia que são as crónicas
de Fernão Lopes»22.
Óscar Lopes e António José Saraiva têm razão ao classificar a
obra historiográfica de Fernão Lopes como uma «grande epopeia».
Ao querermos olhar para a representação da história de Portugal
na literatura portuguesa, três nomes se destacam em termos de
sínteses integradoras e de sistematização de tal entrecruzamento:
o nome de Fernão Lopes, o cronista-mor do Reino que exerceu a
sua atividade ao longo da primeira metade do século  XV; o nome
de Camões, que grava em Os  Lusíadas a história de Portugal
desde a fundação até quase ao termo do século  XVI e da gesta
heroica da Expansão; e o nome de Alexandre Herculano, que
marca o século  XIX e a profunda revisão historiográfica e literária
que o Romantismo português com ele leva a cabo. Mas o que
devemos reconhecer desde logo é que o trabalho de Camões e de
Herculano não teria sido possível sem o de Fernão Lopes. Bem
assim, o escopo e as qualidades literárias evidenciadas por
Herculano, na sua paixão pela época medieval e alguns dos seus
heróis, são igualmente devedores dos que Fernão Lopes
consistentemente manifesta na sua obra. E, porque esta última é
de uma dimensão muito significativa, em termos de ambição, de
matéria e de vontade de compreensão, não custa perceber a razão
que leva Lopes e Saraiva a referirem-se-lhe como uma «grande
epopeia».
Não se trata apenas de uma imagem ou de um elogio. Trata-se
de que a obra de Fernão Lopes nasce de uma ideia de um projeto
comum e coletivo, sem a qual o impulso épico não existe. Trata-se
de que esse projeto encontra em específicos protagonistas
(Nun’Álvares Pereira, cuja mitificação é já aqui evidente; e o rei D.
João I) uma capacidade de se cristalizar corporeamente. Trata-se
de que existe um fôlego patriótico, em Fernão Lopes, que unifica a
distinção material entre várias crónicas, algumas das quais de
atribuição conjetural, mas várias delas certamente da autoria do
cronista, entre as quais, e principalmente, a Crónica de El-Rei D.
Pedro, a Crónica de El-Rei D. Fernando, e as duas partes da
Crónica de El-Rei D. João I (a primeira ocupando-se do interregno
entre a morte de D. Fernando e a eleição de D. João, e a segunda
começando com a subida ao trono deste rei). E trata-se ainda de
que esta é, a todos os títulos, uma obra que podemos já considerar
como literária: pelo fôlego compositivo que manifesta, pelos
diferentes ritmos narrativos que utiliza, pela perceção do contraste
entre cenas e narrações, pela forma como relaciona, por oposição
ou semelhança, personagens diferentes, pela sabedoria descritiva
que manifesta, pela discreta e sábia ironia que utiliza e, ainda, pela
espantosa capacidade de articular ação humana pontual com
movimentações sociopolíticas de maior escopo e vibração.
De um outro ponto de vista, as várias crónicas de Fernão Lopes
dão conta de uma dimensão autorreflexiva sobre o ofício de
historiador que deve ser sublinhada e atestam um poder narrativo
(alinhamento de ações, sequencialização e montagem)
amadurecido, capaz de alternar ritmos, situações, episódios e
personagens com vista à criação de um interesse narrativo sustido.
A dimensão autorreflexiva e crítica sobre o ofício de historiador é
em primeiro lugar remetida, de acordo com as convenções
historiográficas, para os prólogos que abrem cada uma das
crónicas referidas, e muito em especial as duas partes da Crónica
de D. João I, em que Fernão Lopes dá conta das dúvidas (por
exemplo, acerca da legitimidade do testemunho oral), dos limites e
do juízo crítico que sempre tentou ter em conta na sua elaboração
historiográfica, mas em que também sublinha a própria
possibilidade e por isso a legitimidade desse tipo de discurso. A
consciência dos limites do seu labor reconstitutivo e da forma
como o recurso às fontes, por muito cuidadoso que seja, comporta
sempre uma dimensão precária, que ele tenta reduzir ao mínimo
aceitável, constitui uma das outras características essenciais, que
fazem de Fernão Lopes um historiador que é também um escritor,
a título inteiro. Teresa Amado, na obra atrás citada, chama ainda a
atenção para o cap. 31 «per modo de prollogo», da Crónica de D.
João I, que ela considera, com inteira razão, um texto essencial
«para se compreender melhor as suas ideias sobre o escrever da
História» (p. 69), onde Fernão Lopes segue o preceituado na
composição do discurso cronístico, em particular o elogio dos
protagonistas das crónicas; mas em que a composição da figura
de Nun’Álvares, surgindo como herói complementar do rei D. João
I, parece sugerir uma maior complexidade do entendimento da
História e, sobretudo, da avaliação da ação de vários dos seus
protagonistas.
Duas dimensões devem em particular ser sublinhadas na forma
como Fernão Lopes elabora e constrói as suas crónicas, em
especial a relativa a D. João I, que representa o lugar de maior
fôlego da sua composição historiográfica. Por um lado, temos a
dimensão política de um período, o do final da primeira dinastia e
início da segunda, marcado por inúmeros episódios de uma
história conturbada que, encontrando o seu palco em Portugal, e
mormente nas dissensões políticas e dinásticas com Castela, na
realidade manifestam as dissensões europeias mais latas da
Guerra dos Cem Anos (explicando assim a aliança entre D. João e
John of Gaunt, pai de Filipa de Lencastre). A importância das
narrativas bélicas e a forma como elas pontuam a narrativa, com
particular destaque para a decisiva Batalha de Aljubarrota, são,
pois, aspetos essenciais deste pano de fundo medieval mais
amplo, em que encontramos já a consciência (expressa no
prólogo) de um viés crítico que faz de qualquer historiador um
narrador vigilante, mas nunca neutro.
Por outro lado, a Crónica de D. João I exprime, num fôlego
compositivo mais amplo, a consciência de que os feitos dos
protagonistas da História não esgotam a complexidade dela. A
ousada introdução da dimensão coletiva na narração dos eventos
históricos; a importância dada aos eventos e feitos de personagens
ditas menores, mas que exprimem o sentir de uma comunidade
(emergentemente nacional), que encontra já formas de se
expressar; a perceção de que as forças de ação histórica não se
ficam pelos heróis singulares (de entre os quais se destacam, com
polaridades diferentes, a forte Leonor Teles e o pusilânime D.
Fernando, ou o par complementar Mestre de Avis e Nun’Álvares)
mas abarcam também grupos que partilham interesses comuns ou
que exprimem objetivos opostos; tudo isto faz da atitude
historiográfica de Fernão Lopes uma atitude complexa e rasgadora
de futuros. A eleição do espaço da cidade de Lisboa e dos
«moradores da cidade», como lhes chama, deve ser entendida
neste contexto, como salienta Teresa Amado:

Sobre esses atributos de singularidade, que a História […]


impunha [a Lisboa], Fernão Lopes construiu um dos níveis
ficcionais da narrativa: concentrou no espaço da cidade um
microcosmos de afectos e emoções — confiança, ódio,
coragem, medo, esperança, crueldade, ternura, dor, alegria —
que repercutem no resto do país com intensidade variável. Era
realmente Portugal que ali se decidia, porque ali estavam
representados todos os (verdadeiros) portugueses. (Op. cit., p.
37)

O cap. XI da Crónica de D. João I, «Do alvoroço que foi na


cidade cuidando que matavom o Meestre, e como alá foi Alvaro
Paaes e muitas gentes com ele», é um perfeito exemplo da
interação narrativa entre as massas e os heróis individuais que
com elas se cruzam e das quais no fundo também dimanam. E
assume particular relevância, também, a comovida narração da
fome na cidade de Lisboa durante o cerco castelhano («Das
tribullaçoões que Lixboa padeçia per mingua de mantiimentos»),
com especial ênfase para os episódios dramáticos do quotidiano
de uma população que, apesar da crueza do cerco, continua a
querer resistir:

[…] Toda a çidade era dada a nojo, chea de mezquinhas


querellas; sem nenhuũ prazer que hi ouvesse. Huũs com gram
mingua do que padeçiam; outros avemdo doo dos atrbullados;
e isto nom sem razom, ca, sse he triste e mezquinho o
coraçom cuidoso nas cousas contrairas que lhe avir podem,
veede que fariam aquelles que as continuadamente tam
presentes tiinham? Pero com todo esto, quando rrepicavom,
nenhuũ nom mostrava que era faminto, mas forte e rrijo contra
seus emmiigos. […]
Hora esguardaae, como sse fossees presente, hũa tall
çidade assi descomfortada e sem nenhuũa çerta feuza de seu
livramento, como veviriam em desvairados cuidados quem
sofria omdas de taaes afliçoões! Oo geraçom que depois veo,
poboo bem av tuirado, que nom soube parte de tantos malles,
nem foi quinhoeiro de taaes padeçimentos!23

Antes da epopeia renascentista que Camões nos deu em


Os Lusíadas, cumpre efetivamente reconhecer na obra de Fernão
Lopes, como defendem Lopes e Saraiva, um substrato do que
poderíamos considerar pelo menos um impulso em direção a uma
epopeia em prosa, afim de outras epopeias que a tradição
medieval europeia e em particular peninsular tinha cristalizado, por
exemplo, no Cantar de Mio Cid. O seu carácter misto,
simultaneamente obra historiográfica e obra literária, apenas atesta
o carácter também ele heterogéneo e muitas vezes complementar
de diferentes tipos de discurso nas letras medievais,
aconselhando-nos, da mesma forma, a tomarmos com algum grão
de sal a separação demasiadamente «pura» entre discurso
histórico e discurso literário. Fernão Lopes, entre muitos outros,
estará sempre no horizonte de quem compreende que não é em
absoluto necessário escolher entre um e outro, e que o carácter
literário do discurso e do texto não afeta o escopo crítico de uma
narrativa que se quer consciente e criticamente historiográfica.

3.2. A ENTRADA DO MUNDO NAS LETRAS


PORTUGUESAS: A EXPANSÃO E OS SEUS REVERSOS.
HISTORIOGRAFIA, NARRATIVA E LITERATURA DE
PERSUASÃO

O segundo momento em que a dimensão historiográfica nas


letras portuguesas deve ser equacionada de forma central é,
naturalmente, o que se situa globalmente na época da Expansão.
Do ponto de vista estritamente literário, e pese embora a qualidade
de dicção que neles devemos reconhecer, não encontramos
nenhum cronista nem historiador da craveira de Fernão Lopes, em
termos de capacidade compositiva, de caracterização das
personagens, de criação de atmosferas físicas e psicológicas, de
organização do discurso. Mas encontramos, na narrativa de
viagens que podemos situar na esteira da tradição medieval
inaugurada por Marco Polo, uma obra sem dúvida literária, e cujo
interesse do ponto de vista historiográfico é decisivo: a
Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto. Não podendo ser
considerada, como as outras, uma obra de cariz apenas
historiográfico, podemos entretanto compreender o seu alcance
histórico se recordarmos as observações que atrás fizemos sobre
o poder de arquivo que a literatura comporta, sobre o repositório
de diferenças que ela constitui e, por isso, sobre o carácter muitas
vezes insubstituível enquanto lugar em que se armazena um
conjunto heteróclito e precioso de informações sobre o passado e,
por isso, de possibilidades de seu conhecimento.
Do caso singular de Fernão Mendes Pinto trataremos mais
adiante. No que diz respeito às narrativas mais especificamente de
teor historiográfico, o seu interesse aqui deriva do facto de termos
de continuar a considerar as letras entre o século  XV e o
século XVII como devedoras ainda de um sentido amplo do conceito
de literatura, que o torna afim do conceito de «letras», capaz de
dar conta das relações entre tipos de discurso que mais tarde
viemos a considerar diferentes «províncias» especializadas.
Perfeito exemplo disto é o caso da assim chamada República
das Letras, que caracteriza o espaço das letras europeias
sobretudo entre o século  XV e o século  XVIII. Desde os seus
primeiros passos, a República das Letras chama a atenção para
diferentes aspetos que interessará termos em conta nestas
reflexões. Entre eles destacam-se a inexistência de fronteiras
nacionais no estabelecimento de tal república, o facto simbólico de
que um dos seus meios preferenciais de estabelecimento ocorre
através da correspondência e de outras formas de partilha e troca
de saber, bem como a consciência de continuidades intelectuais
historicamente diferenciadas, que a constituem. Desde o seu
início, pois, o conceito implica a existência quer de bens
intelectuais comuns quer de práticas que são partilhadas, ou
podem vir a sê-lo.
Justifica-se, neste ponto, refletir sobre o significado do termo
«letras» na expressão «República das Letras»24. O consenso geral
sublinha a sua não-coincidência com o (mais tardio) conceito de
«literatura». Para Burke25, a partir do século  XV o termo «letras»
referia aquilo a que hoje se chamaria «learning» (pp. 8-9) (e que
poderíamos talvez traduzir como «saber culto», visto implicar uma
estreita associação entre conhecimento e aprendizagem). Ao
propor a consideração desta república como uma das
«comunidades imaginadas» de Benedict Anderson, Burke sublinha
também o carácter invisível e transnacional de tal comunidade,
enraizada em práticas e discursos consensuais, e por isso no
diálogo, na «equidade intelectual» e na «cooperação de
estudiosos» (p. 8).
Uma questão a sublinhar é a diversidade discursiva implicada
pelo conceito de «letras», e por isso a sua não-coincidência com a
noção de literatura. A república incluía não apenas o que era
conhecido como «belles-lettres», e que depois veio a dar origem à
noção de «literatura», mas também de diferentes formas de troca
académica e intelectual, como a correspondência, a historiografia
ou o diálogo científico (previamente à especialização dos
discursos, cf. Grafton 2009-a26). Os princípios da
transnacionalidade, trans-historicidade e da diversidade discursiva
são, pois, pilares fundamentais desta república. O conceito de
«letras» era mais lato e mais abrangente do que o conceito de
literatura, quer em termos de substância quer em termos de
características geográficas, históricas, culturais e linguísticas (a
existência de uma língua reconhecida enquanto comum, o latim, é
de consideração central pelo menos até meados do século XVII).
É pois neste contexto que convém situar a forma como a
historiografia renascentista pode ser considerada como um dos
lugares de eleição para a representação da História naquilo que
hoje designamos como Literatura, e que como vimos o conceito de
«letras» mais amplamente recobre.
E porquê a historiografia renascentista? Justamente porque nela
se espelha um passo decisivo da construção quer da História quer
da Literatura em Portugal, que podemos designar, de forma
simples e ao mesmo tempo substantiva, como «a entrada do
mundo nas letras portuguesas». Não queremos com isto dizer,
naturalmente, que o mundo em geral tinha estado totalmente
arredado dos discursos literário e historiográfico até aqui. As fontes
de Fernão Lopes27, por exemplo, dão conta da circulação
significativa de textos e saberes durante a Idade Média, que
devemos sublinhar com tanto maior intensidade quanto tal
circulação nem sempre é suficientemente reconhecida. Mas a
verdade é que a Expansão, na qual o papel de Portugal foi
decisivo, como se sabe, e o conhecimento direto, que veio a
possibilitar, de continentes e regiões deles até aí ou totalmente
desconhecidos ou apenas indiretamente representados pelos
discursos oriundos da Europa tiveram como consequência uma
alteração que devemos reconhecer como revolucionária dentro do
que consideramos as práticas letradas, e literárias em particular.
O cronista oficial que se segue a Fernão Lopes, Gomes Eanes
de Zurara, anuncia já, no século  XV, a inflexão historiográfica em
direção aos feitos da gesta do Além-Mar. A terceira parte da
Crónica de D. João I, que elabora (provavelmente retomando
materiais de Fernão Lopes), é simultaneamente conhecida como
Crónica da Tomada de Ceuta, porque é centrada sobre este
episódio inaugural do que viria a ser a dominante historiográfica
nacional dos séculos seguintes. Zurara redige ainda três outras
crónicas, as duas últimas consagradas a D.  Pedro de Meneses e
D. Duarte de Meneses, enquanto a segunda, Crónica dos Feitos
da Guiné, se centra sobre a exploração da costa africana
subsequente à campanha de Marrocos, relatando episódios e
combates vários e chamando já a atenção para o comércio de
escravos.
Zurara inaugura também um aspeto que devemos realçar no
contexto que aqui analisamos: a efetiva deslocação dos cronistas
ou historiadores da Expansão a territórios que, fora de Portugal,
atestam a presença dos Portugueses na consciência e no contexto
planetários que agora progressivamente se instalam. Zurara, no
século  XV, deslocou-se a Marrocos por duas vezes. Mas, no
século XVI, João de Barros esteve na Mina e no Brasil (embora não
seja sobre essas regiões que a obra que nos chegou até hoje
incide); e Gaspar Correia, Fernão Lopes de Castanheda e Diogo
do Couto todos eles viveram, por períodos mais ou menos largos,
fora de Portugal, e contactaram de forma direta com as realidades
não-europeias sobre as quais vieram a escrever. Na Índia todos
estiveram, e a partir dela puderam fazer viagens pelo Oriente, que
naturalmente lhes permitiram um conhecimento mais apurado não
apenas de tradições, usos, costumes e realidades históricas, mas
também (e este aspeto é decisivo) de fontes documentais
complementares das ocidentais e, em particular, das portuguesas.
No dizer de Luís de Sousa Rebelo, os cronistas quinhentistas da
Ásia «traçam a narrativa da presença portuguesa na Índia e no
Oriente, iniciada com a partida de Vasco da Gama de Lisboa em
1497 até aos anos 50 do século  XVI. Nem todos abrangem porém
esse período na totalidade. Fernão Lopes de Castanheda planeava
tratá-lo em dez livros na sua História do Descobrimento e
Conquista da Índia pelos Portugueses. João de Barros, nas suas
Décadas da Ásia, detém-se em 1539. E Diogo do Couto, que
procurou continuá-las, estende as suas Décadas até ao ano de
1550. Gaspar Correia, nas suas Lendas da Índia, abrange um
período de igual duração, dando um quadro minucioso do que
ocorre entre 1497 e 1550. De todos eles o primeiro a redigir e
publicar a sua obra é Fernão Lopes de Castanheda, que viveu dez
anos no Oriente, conhecia os lugares que descreve e não
desempenhava qualquer cargo na corte» (p. 184)28.
A obra de Castanheda, publicada pela primeira vez em 1551, e
traduzida ainda durante o século  XVI para francês, castelhano,
italiano, alemão e inglês29, o que comprova o enorme interesse que
a sua matéria suscitou por toda a Europa, desagradou a muitos na
corte, visto que o historiador não poupava críticas aos Portugueses
em muitos episódios que justamente considera criticáveis nas
relações entre Portugal e a Índia, ao mesmo tempo que atribui a D.
João II (e não a D. Manuel) os louros da descoberta do caminho
marítimo para a Índia. Estes aspetos são revistos e censurados na
edição imediatamente posterior (1554), e o relato que daí dimana
acaba por ser mais conforme com o de uma narrativa oficial, que
passa pelo crivo da censura e dos vários interesses que se agitam.
Luís de Sousa Rebelo recorda ainda a dimensão ideológica e
simbólica presente nesta narrativa por exemplo na apresentação
providencialista das Descobertas, contida na carta de Duarte
Galvão ao Samorim de Calecute reproduzida na 2.ª  edição de
Castanheda, a que devemos associar quer a manifestação da ideia
imperial manuelina, quer a construção retrospetiva de um desígnio
que Castanheda faz remontar ao Infante D. Henrique e, por isso,
uma linhagem espiritual que ligaria as diferentes gerações da
segunda dinastia na prossecução de um destino providencial.
No entanto, o colorido das descrições e dos episódios de recorte
realista atinentes sobretudo aos primeiros encontros entre
Portugueses e Indianos, a existência de pormenores inesperados
na notação de costumes e práticas (o adorno do sexo dos homens,
o hábito de beber de gomis sem lhes tocar com os lábios), a
atitude não moralizante assumida pelo historiador fazem desta
obra de Castanheda, em particular a 1.ª edição, um documento
precioso não apenas do ponto de vista historiográfico mas também
do ponto de vista literário e cultural. O cronista refere a sua
presença de forma discreta mas legível, como se para legitimar o
conhecimento em primeira mão que obteve, e parece
particularmente interessado no registo pormenorizado e colorido
de tudo quanto possa manifestar diferenças culturais, traços
exóticos, cenas inesperadas, construindo assim a narrativa quer da
viagem de Vasco da Gama quer da conquista (palavra que ele
significativamente prefere à de «achamento») da Índia. Fala de
como se vestem os reis malabares, que tecidos usam, como lhes
chamam; das leis de acesso ao trono e perfilha; dos rituais da
guerra e de morte dos inimigos; de como se administra a justiça;
descreve com pormenor a ilha de Ceilão, os nomes por que é
conhecida e qual o seu significado, a abundância de frutos que
tem, a doçura das laranjas, a existência da canela, como são
capturados e domesticados os elefantes; as tradições e principais
lendas; fala da cidade de Ormuz, e do grande reino de Sião, dos
seus luxos incontáveis, das populações variadas que em Ormuz se
cruzam: «Esta cidade é cabeça do Reyno, que dela toma ho nome
que tem muytas cydades e vilas cõ fortalezas, assi na costa
Darabia, como na da Persia: e as mais delas muyto abastadas de
pão e de vinhas, palmares, e pomares» (cap. 58); das rotas até à
China, Malaca e Singapura… Mas não cala, como vimos, na 1.ª
edição, a dimensão crítica aos episódios de desleixo e de
desinteresse pelas coisas portuguesas a que foi assistindo, por
parte dos próprios Portugueses. E a visão que oferece é, assim,
uma visão mais plurifacetada e rica, em que não temos apenas a
versão oficial e institucional da «conquista da Índia» mas um
conjunto de episódios entre si diferenciados e sempre atentos aos
pormenores e ao carácter material da realidade representada, com
cores, ruídos, cheiros e brilhos. É esta a dimensão literária da obra
de Castanheda: a capacidade de fazer chegar até nós não apenas
o relato historiográfico de um momento particularmente
significativo na história de Portugal, mas a atenção ao caso real
que dá vida e cor a uma narrativa. Sente-se no cronista uma
dimensão de espanto perante o inusitado e o invulgar, que as
viagens pela Ásia permitiram apurar e que ele tenta passar,
através dos seus relatos, para o futuro.
Castanheda abre a tónica que será dominante na escrita
historiográfica em Portugal até meados do século  XVII, claramente
focada na expansão imperial e em especial na expansão asiática,
que a descoberta do caminho marítimo para a Índia permitiu. Entre
outros, Maria Augusta Lima Cruz sublinha precisamente esta
questão, articulando-a aliás com a dimensão heroica construída
em simultâneo com a narrativa historiográfica30. Em consequência
desta sustentada opção, esse foco vai centrar-se numa
representação da História que elege descrever a situação de
Portugal olhando-a a partir das relações conturbadas e muitas
vezes contraditórias, mesmo se narradas a partir da perspetiva
religiosa da expansão da fé, com o que justamente está fora de
Portugal.
Do ponto de vista literário e simbólico, assistimos assim nestes
autores a uma espécie de desterritorialização de Portugal, que tem
como consequência também um igualmente súbito silenciamento
das dimensões restritas, apenas peninsulares, de um país cuja
identidade geográfica e simbólica parecia já estar estabilizada.
Muito do que acontece na representação literária e simbólica do
país pós-Expansão decorre desta espécie de desequilíbrio e
contraste entre a dimensão imperial, que incha e toma proporções
excessivas, e a dimensão comparativamente exígua da sua
realidade continental. A gesta da expansão, de tão ampla e magna,
acaba por trazer associado um certo obnubilamento do que lhe
escapa, e a oscilação entre o que está fora e o que está dentro das
margens do território português fica pouco esclarecida. O que está
fora é demasiado grande para o que ficou dentro — é desta
desproporção que o nosso maior ensaísta contemporâneo,
Eduardo Lourenço, tem repetidamente falado. E é também dela
que, ao modo elegíaco, Oliveira Martins também falava na
segunda metade do século  XIX, ao fazer uma interpretação d’Os
Lusíadas como «poema póstumo da nacionalidade».
Esta dimensão deve ser reconhecida desde já. Porque a
narração heroica e encomiástica da expansão imperial portuguesa
tem de ser associada a uma dimensão também ela melancólica,
sobre a qual vários teorizadores dos estudos pós-coloniais31 (que
devem abranger, do nosso ponto de vista, também a expansão
colonial e a realidade da então chamada «metrópole») têm
refletido, e que une, em graus e modos entre si diferenciados mas
relacionáveis, autores e textos como Camões, de Garrett, a obra
historiográfica de Oliveira Martins, já referida, ou a Mensagem, de
Pessoa. Obras contemporâneas como, e em primeira instância, as
de António Lobo Antunes, Mário Cláudio ou Gonçalo M. Tavares
não poderão ser compreendidas se não tivermos em consideração
que ambas estas dimensões, heroica e anti-heroica, coexistem
desde o início na representação do projeto imperial e
expansionista. Pode haver uma revisão e mesmo uma amputação
conformista, como a que ocorre entre as edições de 1551 e 1554
de Castanheda. Mas o próprio facto de tais amputações e revisões
ocorrerem apenas atesta a profundidade de uma má consciência
que julga que a troca ou mesmo a eliminação das palavras pode
alguma vez redundar numa reescrita da realidade ela mesma.
Por contraste, João de Barros manifesta uma visão
fundamentalmente épica e estruturada da Expansão, assente na
opção por um modelo providencialista da gesta dos feitos dos
Portugueses na Índia e, por isso, numa legitimação providencial
lista destes. Essa visão aproxima-o da forma como Camões
globalmente descreverá esses mesmos feitos na sua epopeia,
embora seja também imprescindível reconhecer, n’Os Lusíadas, a
dimensão crítica e melancólica que atinge o poema e nele vai
inscrevendo o reverso da gesta heroica.
Do ponto de vista literário, o profundo conhecimento que
Camões demonstra ter da obra historiográfica de João de Barros, e
em particular das suas Décadas da Ásia, é um outro ponto a reter,
até para sublinhar a forma como a obra considerada com o alto
lugar da expressão literária portuguesa, Os Lusíadas, se vai
elaborar e cerzir com base num conjunto variado e numeroso de
discursos que não são imediata ou explicitamente literários em si
mesmos.
É claro que a questão das numerosíssimas fontes de Camões
aponta para a forma como a literatura se alimenta (vorazmente,
como no caso manifesto de Os Lusíadas) de todas as outras
formas e de todos os outros tipos de discurso, de si nada
excluindo. É uma questão central para o presente volume, que
podemos articular recordando o valor do literário como arquivo
sustentado e permanente de diferenças, que são tanto culturais,
sociais e políticas quanto pessoais, estéticas e literárias. Dentro da
literatura portuguesa, o caso singularíssimo d’Os Lusíadas pode
ser considerado como lugar paradigmático dessas relações, como
aliás tem vindo a ser sublinhado por vários estudiosos32. A esta
questão voltaremos, de forma mais estruturada, no conjunto de
capítulos que focam algumas das ramificações da epopeia
camoniana na nossa Literatura.
Voltemos a João de Barros e às suas Décadas da Ásia, longa e
estruturada narrativa que traz até nós o conhecimento mais
sustentado dos cento e vinte anos sobre que se debruça,
correspondendo a uma revolução planetária sem paralelo. O
carácter estrutural, do ponto de vista literário e simbólico (mas
também do ponto de vista histórico), que Barros reconhece na
viagem do Gama à Índia (e que é outro ponto de contacto com a
epopeia camoniana) permite-lhe, também como Camões, propor
uma leitura retrospetiva de episódios da história portuguesa como
profeticamente aludindo a esse evento histórico decisivo, ao
mesmo tempo que o situa na esteira do espírito de Cruzada
medieval33. João de Barros parece ter concebido um projeto, pelo
menos parcialmente conseguido (apenas se conserva a parte
relativa à Ásia), de narração dos feitos dos Portugueses durante a
Expansão34, subordinada a uma tripartição dedicada à
«Conquista», à «Navegação» e ao «Comércio», e em termos
geográficos integrando desde a Europa até África, o Brasil e o
Oriente. Deste projeto monumental restou-nos a parte relativa à
Ásia. Sobre ela, a sua elaboração e o método utilizado por Barros
para a redigir, diz Ana Isabel Buescu:

Historiador «sedentário», como já foi chamado35, João de


Barros teve como feitor da Casa da Índia — cargo que
desempenhou ao longo de mais de trinta anos — acesso
directo e privilegiado às informações dos sucessos políticos,
militares e marítimos, por vezes da boca dos próprios
protagonistas. Pela sua mão passavam regimentos, roteiros,
relações, cartas e negócios de África e do Oriente. A realização
da sua obra historiográfica articula-se pois, de forma estreita,
com a sua carreira de funcionário: «Parece que assim estava
ordenado de Cima» afirma, dirigindo-se a D. João III, «que não
somente me coubesse por sorte da vida os trabalhos de
feitorizar o comércio de África e Ásia, mas ainda escrever os
feitos que vossos vassalos na milícia e conquista delas
fizeram»36.

Para escrever a Ásia, João de Barros não se limitou contudo às


fontes portuguesas, ao seu vasto conhecimento dos escritores
greco-latinos e à leitura de muitos dos autores cristãos que, desde
Marco Polo até ao seu tempo, escreveram sobre as coisas
orientais. Procurou com frequência documentar-se sobre a história
do Oriente a partir de fontes próprias, que várias vezes refere ao
longo das Décadas. Tem conhecimento, por exemplo, das crónicas
dos reis de Quíloa, Ormuz, Guzarate ou Bisnaga, refere o Lorigh
ou Tarigh, espécie de sumário dos reis da Pérsia, «o qual temos
em nosso poder em língua persiana»37, sobre a China utilizou (na
Geografia) um livro de cosmografia «que nos foi de lá trazido e
interpretado por um chim que para isso houvemos»38. Sousa
Viterbo afirma ser indubitável que Barros tinha uma assinalável
coleção de manuscritos orientais, e que provavelmente possuía
alguns rudimentos da língua persa39.
Do ponto de vista literário, e tendo em conta as recentes
perspetivas avançadas por áreas como os estudos pós-coloniais
ou mesmo os estudos na área da literatura-mundo comparada
(world literature), e da perspetiva planetária que ambos promovem
e integram na consideração das literaturas europeias, a obra
historiográfica de João de Barros é notável desde logo pela
atenção à diversidade de culturas que dá a ver. Embora haja aqui
um projeto heroico, baseado também ele, como em Castanheda,
na ideia de «conquista», ele não esgota o olhar interessado de
Barros, que genuinamente se surpreende não apenas com a
diversidade, mas também com as diferenças culturais, antecipando
o que elas significam para um mundo que subitamente deixa de
poder ser subsumido por uma perspetiva apenas europeia.
Tais diferenças levam ambos os cronistas a prestar uma atenção
especial aos «costumes» dos gentios, mas também ajudam a
explicar o interesse muito particular que Barros manifesta pela
dimensão geográfica na sua obra, visto que essa dimensão,
mormente no que à Ásia diz respeito, lhe permite sublinhar a
magnitude das terras que descreve e, é claro, concretizar aquilo
que poderiam ser as rotas comerciais a implementar.
Tal é válido em especial para a China, mas ainda para outros
territórios em que a imaginação geográfica lhe permite antecipar a
diversidade cultural, por exemplo na descrição do reino de Sofala.
A este respeito, e para lá de dar conta de toda a sorte de minas e
processos de as explorar, bem como das relações de poder a este
propósito estabelecidas entre mouros e gentios, que a presença
dos Portugueses vem naturalmente alterar, Barros descreve os
usos e costumes das populações, os rituais dos defuntos, a forma
como o povo se comporta perante o seu «imperador», como se
constroem casas e quais as suas características e porquê (por
exemplo, a ausência de portas), ou como se processa a justiça.
Igualmente pormenorizada e desenvolvida é a descrição da cidade
de Goa, quer em termos naturais (o porquê da existência de
ferozes «lagartos de água» nos lagos à sua volta, por exemplo),
quer em termos de populações, quer em termos de riquezas. E o
mesmo acontece relativamente a muitas outras cidades, regiões e
povoações que pormenorizadamente descreve, Malaca, Ceilão,
Sião, Cantão na China. Podemos por isso fazer ressaltar, com T. F.
Earle40, a importância da dimensão visual na composição das
Décadas, acrescentando que ela se exprime historiograficamente
na articulação primacial entre História e Geografia (existem várias
referências, ao longo do texto, à existência de «tábuas» em que os
mapas seriam visíveis); e, por outro lado, se exprime literariamente
pelo predomínio de uma imaginação visual que Earle põe em
evidência e de que dá numerosos exemplos: «o seu interesse
pelas representações gráficas, meios visuais, mapas, pinturas,
gravuras» (p.  88); mas, muito em particular, os manifestos e
recorrentes traços pictóricos nas descrições paisagísticas que faz,
por exemplo, da natureza agreste das ilhas Molucas, e que dão
conta de uma imaginação visual muito concreta, que atravessa os
relatos historiográficos da sua obra.
Vários heróis, por outro lado, povoam a narrativa de João de
Barros, mas entre eles talvez sobrelevem os nomes de Vasco da
Gama, Francisco de Almeida e Afonso de Albuquerque, nos quais
Barros parece reconhecer qualidades de coragem e de
humanidade que lhes dão uma têmpera diferente da maioria e dos
quais aliás cala, em conformidade com o seu projeto de uma
história verdadeira mas simultaneamente moralizante, e não feita
de um «enxurro» de factos, episódios considerados menos
dignos41. E se ele, ao contrário por exemplo de Castanheda e de
Gaspar Correia, evita narrar episódios que perturbem o geral relato
de uma gesta cujo valor épico e imperial lhe é evidente, fá-lo
sabendo que esse é um propósito explícito do que narra, e que por
isso a sua escolha de calar episódios menos dignificantes obedece
a um projeto historiográfico reconhecível: relatar um período
heroico da história de Portugal. Entretanto, a diversidade cultural é
de tal forma inesperada que o cronista não pode evitar narrar
alguns episódios que saem deste modelo preconcebido: em África,
refira-se o episódio da chegada de Diogo de Azambuja à Guiné e o
seu encontro com o régulo Caramansa; na China, leiam-se as
observações acerca da existência do concubinato ou da forma
como as mulheres saem à rua na rica cidade de Cantão, ou ainda
tantos outros de semelhante recorte. Todos eles são bons
exemplos dessa notação etnográfica e da surpresa que ele não
pode completamente esconder. Por outro lado, Barros não se
coíbe ainda de implicitamente apontar a primazia de muitos
aspetos da cultura chinesa sobre a ocidental:

E bem como os gregos, em respeito de si, todalas outras


nações haviam por bárbaras, assi os chins dizem que eles tem
dous olhos de entendimento acerca de todalas cousas, nós, da
Europa, depois que nos comunicaram, temos um olho, e
todalas outras nações são cegas. E verdadeiramente quem vir
o modo de sua religião, os templos desta sua santidade, os
religiosos que residem em conventos, o modo de rezar de dia e
de noite, seu jejum, seus sacrifícios, os estudos gerais onde se
aprende toda ciência natural e moral, a maneira de dar os
graus de cada ũa ciência destas, e as cautelas que tem para
não haver subornações e terem impressão de letra muito mais
antiga que nós, e sobre isso o governo de sua república, a
mecânica de toda obra de metal, de barro, de pau, de pano, de
seda, haverá que neste gentio estão todalas cousas que são
louvados gregos e latinos.42
Cabe aqui ainda referir dois outros nomes, no quadro da obra
historiográfica produzida no século  XVI e que, de forma tão
repentina quanto duradoura, marcará a presença e impressão do
mundo no quadro da literatura portuguesa. Trata-se de Diogo do
Couto e de Gaspar Correia. Comecemos por este último, dadas as
vicissitudes editorais da obra de Couto, que tiveram naturalmente
repercussão na forma como pôde ser lida e foi sendo conhecida.
Gaspar Correia, que viveu a maior parte da sua vida no Oriente,
organiza em quatro volumes as suas Lendas da Índia. A lógica que
lhes subjaz é a das armadas que desde 1497 partiam para a Índia,
bem como dos governos que os Portugueses lá estabeleceram43.
Mas Gaspar Correia não se fica pelo relato oficial destes
momentos que escandem a estruturação do império português no
Oriente. Tendo sido testemunha pessoal de muitos episódios, e
tendo sido ainda escrivão de Afonso de Albuquerque, Gaspar
Correia teve acesso a conhecimentos e situações que a muitos
outros estariam vedados, e pôde por isso elaborar uma obra que,
além de reportar episódios oficiais, marca a presença de quem a
escreve como uma testemunha interessada e legitimada na
narração da sua matéria.
Ao mesmo tempo, Gaspar Correia não era, como os outros
cronistas, um «letrado», o que terá contribuído para a diferença do
seu discurso narrativo e, afinal, para o seu afastamento dos
cânones.
O mais interessante, por isso, é a forma como Correia participa
dessa matéria como espetador e relator. Longe de ser apenas o
anotador distante daquilo que observa, o narrador aproxima-se da
matéria que narra com minúcia e extrema pormenorização, não se
coibindo de dar conta de muitos episódios indignos e dos
desmandos daquilo que viria a constituir a chamada «lenda negra»
do império português na Índia, e de que Diogo do Couto se fará
também arauto na sua obra. Gaspar Correia não cala por exemplo
revoltas como a dos marinheiros contra Vasco da Gama, e a forma
como ela foi subjugada; e, sobretudo, de tudo isto dá pormenores
e apontamentos, lista ruídos, vozearia, movimentações,
pormenores sobre o que comiam e como, o que diziam e como, as
ambições e os projetos de um conjunto grande de personagens
que se agitam na sua obra. De umas conhecemos os nomes
(António Faleiro, António de Brito, Dimião Bernardes, António de
Macedo, por exemplo), mas outros são apenas personagens
anónimas de um mundo volátil e em ebulição que o Oriente
frequentado pelos Portugueses continha e expunha, com
aventureiros e ladrões, aventuras e ambições. Por vezes, a própria
sobre-exposição de tantas personagens e tantos pormenores faz
com que a narrativa pareça excessiva, mas por outro lado
aproximamo-nos de um conhecimento histórico de grão fino e, ao
mesmo tempo, de uma narrativa literária que aposta não na
seleção e montagem de uma história majestosa, como a de João
de Barros, mas na profusão de acontecimentos e episódios.
O Oriente que ressalta desta obra de Gaspar Correia é um
mundo em efervescência e de uma realidade concreta, em que
tudo parece mudar e as regras, quando existem, são
permanentemente desconsideradas.
A grande questão que ocupa Correia parece ser a vontade de
conseguir transmitir essa mesma efervescência, em detrimento de
uma narrativa lógica e em que todos os aspetos convergissem de
forma coerente. Mas esta característica faz parte, também, da sua
inusitada beleza literária. Não se trata de um projeto monumental,
em que se ergueria uma História com um princípio, um meio, e por
isso um fim. Mas de um território discursivo em que a narrativa
serve como registo, como forma de acumular o variado, como
arquivo do diferente e do que, parecendo não ser entre si coerente,
apesar de tudo pertence ao mesmo domínio das realidades. Por
isso se compreende a extrema atenção que Gaspar Correia dá a
ladrões e aventureiros, traidores e homiziados, grandes e
pequenos agentes anónimos de uma gesta que, sendo épica, teve
também o seu reverso de uma contraepopeia que o próprio
Camões não calou n’Os Lusíadas. Se a geografia organiza, em
João de Barros, a estabilidade da narrativa histórica, aqui é a
contínua e volátil presença dos humanos que desestabiliza o relato
e, ao impedi-lo de seguir uma linha coesa da ação, ao mesmo
tempo lhe atribui a latitude do que se vê a movimentar-se: um
Oriente em que os vários mundos já se encontram e agitam.
Mas é Diogo do Couto quem, do ponto de vista literário,
transporta da História para a Literatura a matéria mais complexa e
plurifacetada. Sabe-se que Couto, embora mais novo do que
Camões, conheceu o Poeta e foi seu amigo na Índia, tendo aliás
ambos regressado a Portugal no mesmo navio, em 1570. Ter-se-
ão lido mutuamente?44 Não parece haver provas de que Camões
conhecesse a obra de Couto (que à época tinha ainda escrito
pouco, sendo bastante mais novo do que Camões), mas pelo
contrário há-as de que Couto, nas suas Décadas, conheceu e
chegou a citar Os Lusíadas. Seja como for, partilharam
experiências e conheceram as mesmas realidades. E a visão,
simultaneamente encantada (no caso sobretudo de Camões) e
desencantada, que quer Luís de Camões quer Diogo do Couto dão
da realidade do Império, e não apenas das suas características
ideais, irmana-os sob vários pontos de vista. Em primeira instância,
irmana-os uma explícita crítica às ambições mesquinhas, à cobiça,
aos interesses apenas pessoais, aos oportunismos, aos
favorecimentos indevidos, aos enriquecimentos ilícitos, aos
subornos, às burocracias ilógicas. Mas em segundo lugar ambos
partilham, a um nível mais profundo, a convicção de que nada
disso deveria ter sido assim, de que havia alternativas na História
que não foram exploradas e que foram mesmo desprezadas, e de
que a ideia de expansão e de império, que naturalmente ambos
subscrevem e em que ambos acreditam, comportava modos a seu
ver legítimos que em teoria deviam ter conseguido prescindir de
todos os que dela se aproveitaram em favorecimento próprio e em
detrimento dos outros e da própria pátria que deveriam representar
com orgulho.
Referir-nos-emos aqui, não tanto à obra historiográfica
monumental que constituem as Décadas da Ásia que Couto
também publicou45, dedicadas sobretudo aos feitos dos
descendentes de Vasco da Gama, mas a um seu outro título que
reputamos de imenso interesse e segura inovação no contexto que
neste livro constitui a problemática nuclear do cruzamento entre
Literatura e História: o Diálogo do Soldado Prático. Comecemos
por observar que não é por acaso que o título da obra de Couto,
Diálogo do Soldado Prático, ostenta no seu subtítulo a ideia de
oscilação entre «engano e desengano», ideia aliás muito ao gosto
barroco e que dá conta do projeto do livro: mostrar os enganos
vividos e equacionar formas certas de desengano que pudessem
ainda inverter (se tal fosse possível, e é uma questão a debater)
aquilo a que Rodrigues Lapa, que publicou uma edição do texto
em 1937, e que considerava este livro «um dos mais honrados da
literatura portuguesa», chamou «a espantosa decadência do
Império».
Diogo do Couto escreveu uma primeira versão desta obra, que
lhe foi roubada. E, por volta de 1610, poucos anos antes de morrer,
refez uma segunda versão, provavelmente a partir de cópias
diversas. A história editorial é assim complexa, até porque a obra
acabou por ser publicada apenas no final do século  XVIII, em
179046. Seja como for, esta obra é um libelo contra os desmandos
da expansão portuguesa no Oriente, em particular na Índia. E, para
Diogo do Couto, a consciência de que tudo tinha começado por ser
diferente, e de que na «Índia primitiva» o comportamento e a
atitude dos Portugueses tinham sido moral e substancialmente
diferentes, apenas lhe acrescenta a consciência da acusação
moral que não se coíbe de fazer.
O retrato feito pelo «soldado prático» é demolidor. Para já,
apontemos os efeitos que a opção por um «soldado prático», ou
seja, experiente, tem para a conceção da obra como um lugar
onde se fala não a partir de conhecimentos genéricos, distantes e
supérfluos, ou apenas de documentos, mas a partir de uma
experiência de vida acumulada e sólida (a que Camões também se
refere como legitimação da sua epopeia e si mesmo como poeta
épico). O narrador, este soldado sexagenário, não fala do que
ouviu dizer: fala daquilo a que assistiu ao longo de muitos anos,
fala do que viu.
A sua posição enquanto testemunha privilegiada é pois
simultaneamente desencadeadora da narrativa e legitimadora da
verdade do que se conta. Esta questão é tão mais importante
quanto a obra assume, do ponto de vista literário, uma estrutura
que devemos reter. Na realidade, ela apresenta-se formalmente
como um diálogo entre três personagens: o Soldado, o Fidalgo,
antigo governador da Índia, e o Despachador, funcionário
administrativo do Rei no tocante às coisas da Índia. Em termos
formais, a obra divide-se em três partes e cada uma delas se
estrutura em cenas (dez, seis e quatro, respetivamente),
decorrendo, como o texto diz, «em três dias sucessivos», em casa
do Despachador. Nela se encontram as três personagens, e nelas
conversam sobre a realidade de ambição, injustiça, corrupção e
desmando que Diogo do Couto considera ser a do império
português no Oriente. No entanto, frisemos desde já um aspeto
decisivo: é que esses defeitos, ocorrendo embora na Índia, onde
cada um procura apenas a ambição e o lucro pessoal, têm como
sua origem o Reino, ou seja, Portugal. E por isso em O Soldado
Prático não se trata apenas de verberar o governo e a realidade
dos Portugueses no Oriente, mas de verberar a própria corte e, em
certo sentido, o próprio governo de Portugal, que o Oriente se
limitaria, assim, a refletir. A introdução da personagem
administrativa e burocrática do Despachador, inexistente na
primeira versão da obra, e a localização da ação em Lisboa
corroboram esta ideia de que Couto compreende que o que a
História julgará não é apenas o ocorrido na Índia, mas o ocorrido
em Portugal.
Sublinhemos ainda uma outra questão, interessantíssima do
ponto de vista literário. A «encenação» da obra como um diálogo
entre três personagens, em que a do Soldado sobreleva e toma
um peso muito particular, como personagem principal, retoma a
tradição do diálogo como obra de indagação da verdade, na
tradição filosófica que aqui se combina com a do testemunho
histórico. Luís Sousa Rebelo, num luminoso ensaio em que se
refere longamente a esta obra47, encara-a como um manifesto de
«humanismo cívico» e relaciona-a com a presença, reconhecível
no texto, de Cícero, Santo Agostinho e sobretudo Erasmo.
Argumenta convincentemente Rebelo que o reconhecimento desta
presença permite compreender a forma como se cruzam neste
texto por um lado objetivos históricos de crítica da Expansão (sem
prejudicar a crença mais profunda de que ela se encontraria
justificada pelo espírito de Cruzada — como aliás Camões também
considera) e, por outro, objetivos humanísticos de reflexão sobre a
ideia de uma república baseada em preceitos morais capazes de
conduzir a vida pública no sentido de um bem público. Mas o
alcance propriamente político da obra, por exemplo na clareza com
que a opção entre conquistar a Índia ou conquistar África se
coloca, deve ser sublinhado para insistir na complexidade de um
texto que, por todas as características mencionadas, merece um
destaque à parte neste capítulo.
Por outro lado, enquanto na maior parte das inúmeras obras de
carácter historiográfico dedicadas à Expansão (e de que
deveríamos ainda salientar a do grande humanista que foi Damião
de Góis) o discurso escolhido é sempre o da narrativa, nesta obra
de Couto a forma do diálogo introduz uma componente dramática
que permite acolher uma maior vivacidade na narração que,
embora erudita, não ilude o confronto de perspetivas diferenciadas,
coincidentes parcial ou totalmente, sobre a realidade que foi
experimentada e narrada. Deste ponto de vista, o que temos
também, do ponto de vista literário, é um texto que se aproxima da
crítica e mesmo da sátira de costumes que, embora incidindo
apenas sobre a realidade do Reino, Gil Vicente nos dera no seu
Auto da Índia, cerca de um século antes (e muito poucos anos
depois da primeira viagem de Vasco da Gama à Índia). Em ambos,
é ao poder degenerativo do dinheiro e do enriquecimento, que em
Couto é denunciado como claramente ilícito, que se atribui a raiz
de um conjunto de problemas sociopolíticos e até éticos que, a
bem dizer, nos acompanharão em muitos diagnósticos
desenganados feitos ao longo da nossa História.
Importa neste momento sintetizar alguns dos aspetos que
podemos considerar comuns aos autores e às obras, de natureza
primordialmente historiográfica, que até agora analisámos.
Sublinhemos em primeira instância a questão do olhar, questão
ambivalente e contraditória, como vimos e teremos de seguida
ocasião de desenvolver. Na realidade, trata-se aqui de
compreender que o ponto de vista dos Portugueses, no contacto
com novos mundos, ou completamente desconhecidos e
inesperados, ou ficcional e simbolicamente sobreinvestidos, ou
ainda concebidos a partir de relatos parciais e imaginários, é um
olhar complexo e contraditório, que não pode reduzir-se a um
modelo comum e muito menos a um padrão ou a uma tipologia.
Aquilo que lhes é comum é o que, do ponto de vista europeu e
especificamente português, não pode deixar de surgir como um
«descobrimento» — quando sabemos que, do ponto de vista das
terras e das culturas supostamente «descobertas», se trata
principalmente de um encontro, pessoal, cultural, simbólico,
político e económico. As contradições entre expectativas e
realidade, bem como a ideia arreigada de que a perspetiva
europeia era naturalmente superior às culturas que iam sendo
«achadas», vêm a distorcer perspetivas, olhares, apreciações e
avaliações. Mas mesmo naqueles que, imbuídos de funções
institucionais, se ocupam de tentar transmitir uma narrativa capaz
de sublinhar sobretudo os aspetos positivos da Expansão, é
impossível rasurar a consciência das contradições entre espírito
cruzadístico e realidade exclusivamente material, governada pela
cobiça e pela obtenção por qualquer meio, legítimo e ilegítimo, do
enriquecimento fácil.
Nem Gil Vicente nem Camões, dois dos maiores nomes da
literatura do século  XVI, ficam imunes à representação de e à
reflexão sobre estas contradições, que ambos aliás representam
como insanáveis e como capazes de minar aquilo que, do ponto de
vista europeu, poderia surgir como legitimação para a conquista.
Será, entretanto, nas representações que hoje associamos de
forma mais imediata à literatura, como a narrativa ou a literatura
didática (por exemplo, com os Sermões de Pe. António Vieira), que
as contradições acima expostas serão mais desenvolvidas,
caracterizadas e, até, duramente criticadas. Por essa razão,
ocupar-nos-emos nas páginas seguintes de algumas formas que
explicitam este lado negro da Expansão, e que dá bem conta de
como, mesmo do ponto de vista dos descobridores e
colonizadores, havia consciência de como a Expansão se fazia
com muita gente, mas também contra muita gente, dentro de
Portugal e fora de Portugal, por esse mundo fora.
Neste quadro, referência deve ser ainda feita às chamadas
narrativas de viagem, de cariz mais historiográfico ou mais literário,
para a história da literatura portuguesa no século XVI e a partir dele.
No caso português, refira-se o trabalho notável que Maria Alzira
Seixo48 em torno da representação literária da viagem tem
realizado. Nenhuma consideração dos encontros entre Literatura e
História nas letras portuguesas pode prescindir destes relatos, de
carácter mais ou menos elaborado (desde roteiros de viagem,
como o de Álvaro Velho, até diários de bordo, por exemplo), que
completam e pormenorizam a história da Expansão portuguesa,
quer dando muitas vezes informações preciosas sobre o
acontecido, o quotidiano da viagem, o dia a dia menor da gesta
que se quer heroica, quer permitindo portas de entrada curiosas
para a perceção in situ do que estava a acontecer. Percebemos
também, por estas narrativas, que as reações dos próprios
portugueses à aventura em que estavam empenhados não são
uniformes, e muito menos todas elas gloriosas. Pelo contrário,
revoltas (até na armada de Vasco da Gama), traições, formas
contraditórias de reagir a e afrontar os perigos da viagem
encontram-se espelhados nestes relatos, que podemos considerar
como uma das manifestações narrativas mais interessantes, como
disse, do lado menor da gesta da Expansão. Em definitivo, o
motivo da viagem, nas diversíssimas configurações discursivas
sob que aparece, traz o mundo para dentro da literatura
portuguesa, questão confirmada, de outro ponto de vista,
sobretudo linguístico-cultural, pela profusão de gramáticas,
dicionários e no geral documentos que comprovam o enorme
interesse que a diversidade linguística do planeta assume no
âmbito da Expansão portuguesa, com especial destaque para as
missões dos jesuítas. Maria Leonor Buescu, a grande estudiosa
deste fenómeno em Portugal49, deixou vasta obra em que é
possível compreender e recuperar a extensão de algo que, do
ponto de vista histórico e cultural, infunde nas letras portuguesas a
indelével presença do mundo. Fá-lo aliás de uma forma tão
articulada que nunca mais a imagem que os Portugueses terão de
si próprio e de Portugal deixará de a poder incluir — mesmo
quando o silenciamento desse mundo ocorre enquanto tática cujo
alcance político nunca consegue desfazer as malhas de que a
História efetivamente se tece.
Mas um outro conjunto de relatos, já atrás mencionados, deve
aqui também ser referido, já de uma perspetiva em que narrativa e
dimensão histórica não são completamente coincidentes com as
obras explicitamente historiográficas sobre que até agora nos
detivemos. Quer isto dizer que o que institucionalmente surge
como do domínio da História é acompanhado, desde o início, de
um conjunto de narrativas de carácter não só erudito como até
popular, e que a memória da Expansão, na literatura portuguesa,
deve ser procurada em fontes e textos de natureza e origem muito
diversos, que dão um carácter poliédrico à matéria narrada. Esta
progressiva autonomização da narrativa (e da emergência de
procedimentos ficcionais) relativamente ao relato conscientemente
historiográfico é aquilo de que em seguida nos ocuparemos.
Veremos como, ao lado do relato histórico mais ou menos oficial,
outros relatos e outras narrativas vêm complexificar a História que
é feita, e o olhar lançado quer sobre o mundo quer sobre os feitos,
de ousadia e coragem mas também de violência, dos Portugueses
no processo expansionista.
Começaremos por relatos que justamente podem ler-se como
afins do de Couto, no sentido de proporcionar uma visão poliédrica
e anti-heróica da expansão portuguesa e da gesta do império.
Trata-se dos relatos contidos na obra, que veio a ser também
publicada como tal no século  XVIII, História Trágico-Marítima, e que
circularam em folhas volantes e folhetos de cordel até serem
reunidos e publicados sob a forma de livro, por Bernardo Gomes
de Brito, em 1735-6. A primeira observação que interessa aqui
fazer é que, sendo relatos claramente historiográficos, eles se
centram num tema muito específico da Expansão marítima
portuguesa. Interessa ainda frisar, como acima dissemos, que
manifestam a penetração e a importância que ele teve na
imaginação e na cultura populares, consumidora desses (e outros)
folhetos de cordel.
Do primeiro ponto de vista, o temático, as narrativas publicadas
por Bernardo Gomes de Brito relatam doze histórias de naufrágios
de naus e galeões, sobretudo de metade do século  XVI em diante,
entre 1552 e 1602. Mas o número de relatos era muito superior, e
edições posteriores desta obra foram lhe acrescentando outras
narrativas de semelhante temática. Havia, pois, claramente um
público para essas histórias de catástrofe, que constituíam o
reverso e o complemento de uma história mais oficial que
naturalmente os eruditos e a corte geralmente conheciam, mas
que a população comum não podia conhecer. Estes relatos de
naufrágio constituem um arquivo extraordinário do ponto de vista
histórico e literário, porque, sendo baseados, sem sombra de
dúvida, em ocorrências verídicas e aliás verificáveis, a sua própria
matéria temática convida a um investimento literário e em especial
retórico, de modo a captar o interesse e a mantê-lo ao longo das
descrições e narrações, na generalidade muito minuciosas e
cheias de pormenores visuais e outros, que são feitas de
catástrofes e da sua progressão.
Do segundo ponto de vista, a dimensão naturalmente patética e
melodramática dos relatos atesta um interesse generalizado sobre
a empresa expansionista por parte do público leitor ou ouvinte, e
não apenas por parte da corte e das instituições. Sem dúvida
esses relatos circulavam, de forma oral ou oralizada, sob várias
formas, mas o facto de terem dado origem a um subgénero
característico (as narrativas de catástrofe) e de conhecerem uma
ampla circulação (através dos folhetos de cordel) deve ser tido em
conta para compreendermos de que forma se encontra ligada à
empresa expansionista uma imaginação simultaneamente histórica
e literária que se implantará fortemente no imaginário popular.
Bastará lembrar a fortuna que o Romanceiro popular, pela
primeira vez recolhido por Garrett, teve, quer oralmente quer por
escrito. O romance da Nau Catrineta é um bom exemplo de como,
mesmo até finais do século  XX, ele se imiscui nas letras
portuguesas (no caso do cantor Fausto, e do seu disco Por Este
Rio Acima, em confluência com a obra Peregrinação, de Fernão
Mendes Pinto).
Ouçamos o que diz Giulia Lanciani, que estudou de forma
continuada estes relatos:

Tão duradoura fortuna é acompanhada de uma invulgar


difusão entre o público leitor. Ignoramos, em geral, qual era a
tiragem destes opúsculos, mas sabemos que muitos deles
eram reimpressos várias vezes e que, em certos casos, a
primeira edição se esgotava em brevíssimo tempo, dado que
saía uma segunda no mesmo ano. Além disso, em relação
pelo menos a um destes relatos, precisamente o Naufrágio de
Jorge de Albuquerque Coelho, Capitão e Governador de
Pernambuco, do próprio texto depreendemos que tanto da
primeira como da segunda edição se tiraram mil exemplares
em cada uma, enquanto os estudiosos consideram que na
segunda metade do século  XVI a tiragem média de um livro na
Europa dificilmente superava os trezentos exemplares.50 (p. 52)

A título de comparação significativa, recorde-se que a primeira


tiragem de Os Lusíadas se situa entre 400 e 600 exemplares…
Com este aspeto, aliás, deveremos relacionar obras literárias
posteriores como as numerosíssimas descrições, relatos e poemas
que o Terramoto de 1755 veio a desencadear, escassos vinte anos
depois da publicação da coletânea de Bernardo Gomes de Brito;
ou o texto dramático Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, uma
das expressões literárias mais fortes de um espírito de presságio e
de catástrofe da literatura portuguesa; ou ainda, quer a visão não
apenas crítica, mas mesmo «póstuma» (para utilizar um vocábulo
que é seu) manifestada pelo historiador Oliveira Martins na sua
História de Portugal, no final do século  XIX, quer a forma como
Fernando Pessoa, em a Mensagem, parece encontrar numa
revisão do mito do Quinto Império, exemplarmente proposto pelo
Pe. António Vieira, no século  XVII: uma forma de responder à
consciência de que as perdas do império, tendo começado por ser
as de naufrágios, bens e vidas humanas, bem depressa se
tornariam mais amplas, assumindo um destino histórico e mítico
que seria também o de Portugal. De uma outra perspetiva,
poderíamos aliás relacionar este imaginário com uma obra que,
afastando de si o projeto catastrofista e patético, parece aproveitar
destes relatos uma estratégia de rutura para sobre ela erguer uma
História dentro da Literatura, como a que José Saramago relata no
romance A Jangada de Pedra. De algumas destas obras teremos
oportunidade de falar mais amplamente no presente volume, pelo
que nos limitamos aqui a registar estes nexos que ajudam a
perceber a existência de ecos e nexos que a História Trágico-
Marítima e os relatos que a constituem manifestam no quadro mais
lato das letras portuguesas.
A dimensão dos relatos da História Trágico-Marítima é variada,
mas alguns podem assumir uma extensão bastante longa,
constituindo-se em episódios narrativos encadeados através da
lógica preferencial da gradação e do encaminhamento em direção
ao desfecho trágico, que Lanciani relaciona, e bem, com a
estrutura do conto. É por exemplo o caso do «Naufrágio que
Passou Jorge de Albuquerque Coelho, Capitão, e Governador de
Pernambuco», da autoria de Bento Teixeira Pinto, ou, talvez o mais
conhecido, «Relação do Naufrágio de Sepúlveda», cuja 1.ª edição
datará de 1554. Nestes, como em outros relatos, a destruição das
embarcações, a perda das riquezas e sobretudo a morte de tantos
homens, mulheres e até crianças (que faziam também parte da
tripulação) constituem os pontos nodais em torno dos quais os
sucessos são narrados. Um dos aspetos a sublinhar é o manancial
de pormenores e de aspetos concretos que fazem parte dos
relatos, quer no inventário do que vai ser perdido, quer mesmo na
narração minuciosa de pequenos subepisódios que servem para
sublinhar a ação principal e a atmosfera patética descrita: por
exemplo, a narração do conflito que estala entre os passageiros da
nau no momento em que é preciso tomar a decisão sobre a
resposta a dar aos ataques dos corsários franceses, no relato de
Jorge de Albuquerque.
Provavelmente o mais conhecido dos relatos de naufrágio,
aquele em que a total destruição se associa a uma espécie de
violência sacrificial em direção a um pathos final, é o relativo ao
naufrágio de Manuel de Sepúlveda, que veremos adiante
prolongar-se, como narrativa épica, na pena épica de Jerónimo
Corte-Real. Trata-se de uma narrativa feita com mestria e com um
sentido de composição extraordinário, que contrapõe a felicidade
doméstica do protagonista, da sua mulher e dos filhos de ambos a
uma espécie de destino cego que sobre eles se abate e que
apenas os poupa, no naufrágio, para se encarregar de os punir
com provações e mortes. Fome, sede, um caminho desorientado e
sem destino, os ataques a que são sujeitos, a violência sofrida
pelos filhos, a violência final de ver a mulher, desnudada,
enterrando-se na areia para aí morrer coberta, tudo isto quebra
finalmente o espírito do protagonista Manuel Sepúlveda,
conduzindo-o à loucura que o leva a entrar voluntariamente na
selva africana, sem destino nem salvação possível (recordando
aqui o que, num outro contexto colonial, e no âmbito da literatura
inglesa, Joseph Conrad viria a narrar no seu extraordinário Heart of
Darkness, que, como se sabe, foi revisto e alterado para outro
contexto bélico moderno, o da guerra no Vietname, no filme de
Francis Ford Coppola, Apocalypse Now).
Mas refiram-se, além dos dois já mencionados, também outros
relatos, como o «Tratado das Batalhas e Sucessos do Galeão
Santiago», da autoria de Melchior Estácio do Amaral, o «Naufrágio
da Nau S. Bento», de Manuel Mesquita Perestrelo, e a «Viagem e
Naufrágio da Nau S. Paulo», de Henrique Dias.
Um outro aspeto comum a todos os relatos é a existência de
uma personagem que, sendo testemunha daquilo que aconteceu,
se apresenta como o sobrevivente a quem é dada a oportunidade
de narrar a tragédia, conservando dela a memória para o futuro. É
por exemplo o caso do naufrágio de S.  João, em que se anota
cuidadosamente o nome do sobrevivente (Álvaro Fernandes) que
teria contado ao autor do relato tudo quanto se teria passado. Esta
estratégia narrativa, que simultaneamente garante a veracidade do
que se relata, será pedra de toque para um magnífico romance
que, no século  XIX, se constrói sobre este conjunto de
procedimentos e dá conta da mesma imaginação heroica e ao
mesmo tempo catastrófica. Trata-se do romance do autor
americano Herman Melville, Moby Dick, cujo carácter monumental
e arquitetónico vive de um óbvio conhecimento de relatos
semelhantes na cultura quer erudita quer popular.
Finalmente, os relatos não calam algumas das causas mais
frequentes para a multiplicação dos naufrágios: entre elas avultam
o mau estado das embarcações (por exemplo, das suas velas), as
partidas fora do tempo azado, e por isso a maior precariedade da
viagem face aos elementos naturais e aos perigos por eles
desencadeados, e, finalmente, a sobrecarga de riquezas que
traziam naus e galeões no regresso a Portugal, e que os tornava
menos capazes de agilmente reagir aos perigos, fossem eles
naturais (tempestades) ou humanos (ataques de corsários,
batalhas navais com holandeses, franceses ou ingleses). Por
exemplo, no relato do naufrágio do Galeão S. João, aponta-se
explicitamente que um dos objetivos é explicar a razão da perda de
38 naus da Índia no curto espaço de vinte anos.
Ao lado deste conjunto de relatos trágicos de narrativas de
viagem, convirá referir um outro documento que, de carácter
oficial, oferece uma visão solar quer dos objetivos quer dos
resultados das viagens e dos «achamentos» que elas iam
permitindo. Trata-se da carta que Pêro Vaz de Caminha dirige ao
rei D. Manuel I, descrevendo a chegada ao Brasil, integrado na
armada de Pedro Álvares Cabral, em 1500. Trata-se
indubitavelmente de um relato de natureza histórica e mesmo
documental, afim de vários outros que, como acima referimos, iam
sendo feitos na mesma época, entre os quais podemos mencionar
o «Roteiro de Álvaro Velho», que narra a propósito da chegada à
Índia aquilo que Caminha faz relativamente ao Brasil.
Mas a narrativa de Caminha, pela sua minúcia documental e pela
sua agilidade e surpresa perante o que vê, merece que se lhe dê
um particular destaque. Sendo uma narrativa oficial (Caminha
escreve uma carta ao rei), não deixa por isso de ser um
testemunho de enorme poder de concretização e de capacidade
de se deixar surpreender por uma terra desconhecida, da qual são
relatados pormenores quer geográficos e naturais, quer humanos e
de costumes. O maravilhamento de Caminha é evidente, tanto no
que diz respeito à fauna exuberante que aprecia, como no que diz
respeito às diferenças culturais que observa nos índios (e nestes,
muito em particular a naturalidade com que a nudez, ou a quase-
nudez, são encaradas). Não há nesta carta qualquer suspeita de
que o Paraíso terrestre não possa ser alcançável: Caminha como
que o descobre e descreve nestas terras «achadas» que, embora
desconhecendo as promessas de Cristo, parecem conter
promessas edénicas, de que a repetida «inocência» surgiria como
prova cabal. Por outro lado, e muito embora se trate de uma carta,
ela não deixa de incorporar elementos que a aproximam da
notação temporal do diário, por dias ou mesmo momentos dos
dias, o que de certa forma acrescenta, ao interlocutor oficial (o rei),
a presença concreta do narrador, que se posiciona dentro do que
conta e das cenas que narra. Esta carta é, pois, um documento
cujo alcance quer histórico quer literário deve ser sublinhado,
representando um lugar quase único de uma descrição de
chegada a um território, no caso o Brasil, quase imune a qualquer
tipo de contaminação menos feliz. A carta faz parte, assim, do que
virá a ser consistentemente a criação do mito de um «Novo
Mundo» americano, capaz de representar um novo começo para
uma Humanidade que teria falhado a construção de uma
sociedade justa e feliz no «Velho Mundo». E, deste ponto de vista,
é um documento cujo alcance simbólico e mesmo político deve,
ainda, ser insistentemente sublinhado. Curioso é ainda
compreender que nem todos os «achamentos» constituem o Novo
Mundo: este apenas o é a oeste da Europa, num mundo
percecionado como «subcivilizado». A leste da Europa, sobretudo
na China e no Japão, encontra-se um mundo mais «Velho» do que
o Velho Mundo, que a Europa já conhecia (por exemplo por Marco
Polo) e que, em muitos aspetos, era bem mais opulento e
ritualizado do que a Europa ainda claramente medieval.
No quadro desta complexa (e afinal não unilateral, se bem
analisada) gesta da Expansão, um dos maiores destaques tem de
ir, como não podia deixar de ser, para a obra de Fernão Mendes
Pinto, Peregrinação, obra ainda escrita no século  XVI, quase
contemporaneamente de Os Lusíadas, mas apenas publicada
postumamente, em 1614. Referimos que ambas as dimensões,
heroicas e anti-heroicas, coexistem, na literatura portuguesa,
desde o início da representação do projeto imperial e
expansionista. Vimos que, de formas variadas, elas vão surgindo,
com maior ou menor sistematização, e incidindo sob diferentes
aspetos desse projeto, associadas à consciência de que o sonho
da grandeza heroica e do espírito cruzadístico não esconde
totalmente o lado obscuro das perdas, violências e derrotas que
são o seu reverso.
É este o espírito do episódio do Velho do Restelo, no final do
Canto IV de Os Lusíadas. Erradamente, e sobretudo
ideologicamente interpretado, ao longo de vários anos, pelo
discurso oficial como a representação da voz do retrocesso, de
alguém que quer impedir o devir histórico (também ele
erradamente equacionado com uma forma inevitável de
progresso), o Velho do Restelo deve antes ser lido no quadro de
uma reflexão mais complexa e menos unilateral sobre o processo
expansionista português. As críticas sociais, morais e cívicas que
ele encarna não correspondem, n’Os Lusíadas, apenas a uma
consciência epigonal da decadência da sociedade portuguesa.
Antes dão voz (em discurso direto e inflamado) a uma posição
crítica que, sendo a contracorrente do discurso oficial e do discurso
maioritariamente aceite, não encontrava muitos lugares para se
exprimir (como vimos com as alterações introduzidas na obra de
Castanheda, entre a 1.ª e a 2.ª edições).
E essa voz não está sozinha, entre os maiores escritores de
literatura do século  XVI. Bastará lembrarmos Gil Vicente, que no
seu Auto da Índia não foi mais brando do que o Velho do Restelo.
Se em outros lugares Gil Vicente não se coíbe de apresentar uma
produção dramática claramente crítica dos defeitos vários que
atingem e se manifestam na sociedade sua contemporânea, nesta
obra o foco reside na Expansão e, nela, no lugar maior que a Índia
(política, simbólica e materialmente) representa no interior dessa
Expansão. Das personagens do seu auto, nenhuma se salva.
Nenhuma delas fica imune ao que hoje chamaríamos ganância,
corrupção, decadência moral, dissolução dos elos sociais e
pessoais. Nem o marido que parte, nem a mulher que fica, nem os
seus amantes, nem a criada que a todos serve: todos, sem
exceção, foram tocados pela corrupção material que, no contexto,
obriga a ler as algumas referências ao espírito cruzadístico como
um dos mais terríveis «enganos» que a aventura marítima teria
produzido. Ambos, o Velho do Restelo e Gil Vicente, exprimem o
lado obscuro do que se passa em Portugal, fruto do processo
expansionista. Não sobra espírito de Cruzada ou imaginário
cavaleiresco, nem qualquer almejo de dimensão religiosa ou
metafísica.
Fernão Mendes Pinto, ele, ocupar-se-á diretamente, e com um
notável fôlego, dadas as dimensões da sua obra, dos modos como
esse lado negro se manifestou também fora de Portugal, em
particular na Ásia, que ele tão bem conheceu. A  sua obra é um
vasto políptico sobre as aventuras e as desventuras da Expansão
portuguesa; dos seus episódios inesperados, de deslumbramento
e de maravilhamento perante civilizações requintadas, por um
lado; e, por outro, da violência e da destruição que homens ditos
civilizados podiam transportar consigo e sem qualquer pejo nem
interrogação moral praticar contra outros. Na sua obra, já não se
trata tanto de «descobrir» ou «achar» o que quer que seja, mas de
conhecer sociedades cuja tradição histórica era secular, por um
lado; e, por outro, de narrar os feitos e desmandos dos
aventureiros que a grande gesta da globalização a partir de
Quinhentos permitiu que se espalhassem por todo o mundo. Mas,
ao lado disto, o deslumbramento com as civilizações orientais, a
sua história secular, o seu refinamento civilizacional, a sua
expressão luxuosa e elaborada, trazem para dentro da
Peregrinação um espírito diferente: um homem ocidental que
compreende, em muitos pontos, a inanidade de defender a sua
supremacia perante aqueles que ele mesmo considera serem, em
muitos aspetos, seus superiores, como Barros, embora em menor
escala, acaba por fazer.
Neste contexto, importa começar por sublinhar, na obra de
Mendes Pinto, a forma como ela arquiva um vasto conjunto de
diferenças, conjunto também ele heteróclito e conscientemente
contraditório. Mendes Pinto não pretende, como por exemplo João
de Barros, erguer um edifício monumental construído sobre o
sentido de uma História homogénea e linear. Mas, por assim dizer
descendo ao terreno, e animado de um espírito a que poderíamos
chamar em muitos aspetos pré-etnográfico, registar diferenças,
novidades, episódios singulares, aventuras e desmandos,
deslumbramentos e peripécias imprevisíveis, muitas delas
derivadas do encontro entre dois universos culturais que pela
primeira vez entravam em contacto de forma sistemática e
organizada. E, por isso, Mendes Pinto é um espetador privilegiado
da revolução planetária em que, nos séculos XV e XVI, Portugal teve
um decisivo papel de protagonista.
Por outro lado, não deveremos deixar de frisar o carácter a todos
os títulos singular da obra de Mendes Pinto. Desde logo, pela sua
extensão. De seguida, pelo cruzamento elaborado entre as
dimensões simultaneamente documental e ficcional que comporta.
Finalmente, pela representação autobiográfica que delas decorre,
e pela criação de um herói cujas relações com a narrativa
picaresca têm também sido amplamente sublinhadas, muito em
especial por António José Saraiva51. Comecemos pela sua
extensão, que não é facto meramente quantitativo. Pelo contrário,
o texto compacto da obra dá conta de um projeto de narração que
naturalmente se articula com a prolongada estadia de Fernão
Mendes Pinto no Oriente, onde permaneceu ao longo de vinte e
um anos. Além disso, essa estadia comportou inúmeras viagens
por diferentes reinos e lugares da Ásia, com particular destaque
para a China e para o Japão, mas também o Sião ou a Birmânia,
que ou desde logo foram identificados ou têm vindo a sê-lo ao
longo da investigação histórica conduzida nos últimos anos — com
a exceção do reino do Calaminhão. Ana Paula Laborinho52
sublinha precisamente esta questão, referindo-se aliás à escrita da
Peregrinação como um processo de maturação, que teria permitido
ao escritor um distanciamento e por isso uma sedimentação
relativamente aos episódios experienciados, fantasiados ou
narrados.
Estes elementos conduzem ao segundo aspeto referido, o do
cruzamento entre as dimensões documental e historiográfica, de
um lado, e imaginativa e ficcional, do outro. Mais uma vez,
Laborinho tem dedicado uma atenção especial a esta questão53,
que merece igual destaque. Na realidade, podemos detetar pelo
menos três estratos principais na narrativa de Mendes Pinto. Em
primeiro lugar, as fontes e documentos de natureza historiográfica
nos quais se baseia, como os subscritos por Gaspar da Cruz a
propósito da Índia ou por Tomé Pires, relativos à embaixada a
Cantão em 1516, ou ainda informações provenientes de crónicas
locais. Existe, pois, um conjunto de informações, bastante amplas
e elaboradas, em que o princípio da veracidade assume especial
relevância, e que não devemos menosprezar, mesmo se
simultaneamente sublinhamos a necessidade de ler esta obra
como uma obra literária em primeira instância, e não de natureza
ou projeto historiográficos, como por exemplo a de Barros ou
Castanheda.
Em segundo lugar, o estrato proveniente da experiência, que se
ligará à dimensão autobiográfica. Fernão Mendes Pinto não hesita
em colocar-se ele mesmo no centro das suas experiências, e em
indexar os episódios narrados não a um saber alheio mas a um
saber experimentado em primeira mão. Neste ponto, a
aproximação a Camões, cuja ligação entre experiência de vida e
experiência de escrita é determinante (na épica mas também na
lírica), tem nesta obra de Mendes Pinto um curioso paralelo de
uma necessidade de veridicção que encontramos em várias obras
deste período, tanto mais significativa quanto se trata de
comprovar a legitimidade de factos que eram, até bem pouco
tempo antes, quase só de natureza fabulosa. Mendes Pinto
encontra-se empenhado em se apresentar também como
testemunha direta de muito do que relata, sendo esse por exemplo
o caso do relato que faz das viagens, que acompanhou, do Padre
Francisco Xavier por Malaca e pelo Japão, ou do sucessor deste,
Padre Belchior, pelos mares da China. Mas esta dimensão
experienciada não exclui, antes pelo contrário, a dimensão
ficcional que desde logo foi reconhecida nesta obra (e que durante
bastante tempo sustentou uma sua interpretação desvirtuada,
como obra «de fingimento» ou, de forma mais crua, cheia de
mentiras). Mais uma vez, a leitura em que Laborinho insiste é
decisiva, ao sublinhar que temos de reconhecer o impulso ficcional
da Peregrinação, mesmo se reconhecemos também o seu valor
documental e de testemunho direto.
Finalmente, um outro aspeto que faz deste texto uma obra
singular, no contexto da perspetiva em que aqui nos situamos, de
cruzamento entre Literatura e História, é a sua dimensão
multiforme e heterogénea de narração tendencialmente
autobiográfica, aspeto este sobretudo valorizado e estudado quer
por António José Saraiva, quer por João David Pinto Correia54. Na
realidade, se toda a Peregrinação é assumida pela existência de
um narrador que se presentifica, como vimos, no conjunto de
experiências e episódios que vai narrar, existe ainda uma
dimensão por assim dizer mais pessoal que expõe o narrador
como personagem atravessada por sentimentos, projetos, receios,
desejos, avaliações e juízos diferenciados. Ou seja, Fernão
Mendes Pinto não é apenas um «eu» que testemunha, de fora, o
que aconteceu. Ele é também alguém que se projeta e perfila, a si
próprio, como sujeito individual, com reações por vezes
inesperadas e até mesmo contraditórias. Um indivíduo, por isso,
capaz de assumir a sua subjetividade através da narração que faz.
Assim, quer o início quer o final da obra constroem esta ideia de
sujeito individualizado perante o acontecido que, convém lembrar,
relativamente poucos conseguem fazer, à época, de forma tão
sustentada e espessa. O  início e o final da obra centram-se em
torno deste eu que fala sobre si e sobre a forma como aquilo que
viveu condicionou a sua escrita: «treze vezes cativo, e dezassete
vendido», diz ele, trabalhos e desventuras cujo perigo só considera
ser ultrapassado pelo facto de a tudo ter escapado para contar,
para deixar aos filhos, como diz, a herança da sua história. A sua
«peregrinação», diz ele, começa em Portugal, pela idade de dez
ou doze anos, em Montemor, onde a miséria o oprimira. E continua
por esse mundo largo, «Índia, Etiópia, Arábia Feliz, China, Tartária,
Macácer, Samatra e outras muitas províncias daquele oriental
arquipélago dos confins da Ásia». Trata-se portanto também de
continuar o topos clássico e medieval do homo viator e, por isso,
da vida como uma viagem, uma peregrinação em que Eduardo
Lourenço55 reconhece, também, um carácter expiador e
penitencial. Mas trata-se de uma viagem em que o eu se encontra
sempre presente, quer porque vive, quer porque testemunha, quer
porque narra. E  por isso a dimensão autobiográfica, que não é
incompatível com a dimensão ficcional, forma um núcleo de
consideração central nesta obra.
Não podemos entretanto deixar de acentuar, no que a esta
questão diz respeito, a especial ligação entre esse sujeito e uma
das várias personagens com que se cruza nas suas andanças pelo
Oriente. Trata-se do aventureiro e pirata António de Faria, em que
algumas das leituras interpretativas da obra viram uma espécie de
alter ego ou máscara de Fernão Mendes Pinto, que assim se
sentiria legitimado para contar, por interposta pessoa, atos e
mesmo atrocidades em que teria tido parte ativa. Toda a parte
relativa a António de Faria, em que, como lembra Pinto Correia, o
«eu» se transforma em «nós», dá conta de quanto as aventuras
nos mares do Oriente se encontravam pejadas de piratas e
mercadores, lutas e saques, violência, assassinatos, roubos e
traições. Ao lado da descrição deslumbrada e quase utópica da
China, de cidades como Pequim ou Nanquim, com os seus
palácios e luxos refinados, com os seus celeiros para pobres, com
a sua sociedade regulada pela história e pelas tradições,
encontramos aqui um outro mundo, afim daquele que tinha
começado a ser descrito por Diogo do Couto: um mundo em que o
encontro de civilizações se fazia, em grande medida também, pela
via do confronto e da violência.
Neste contexto, não poderíamos deixar de fazer referência ao
exemplo maior da literatura portuguesa do século  XVII, e da
literatura portuguesa em geral, que é Pe. António Vieira (1608-
1697). Vimos atrás que a obra de Fernão Mendes Pinto, embora
publicada no início do século  XVII, foi escrita ainda no século  XVI e
pode considerar-se praticamente contemporânea de Os Lusíadas
— coincidência temporal cujos efeitos históricos e simbólicos têm
sido várias vezes referidos e explorados. No que respeita a Vieira,
a sua obra, constituída em grande medida pelos Sermões que faz
e publica e por Cartas que envia, em especial ao rei, é
seiscentista, e situa-se principalmente na segunda metade do
século. Este aspeto não é de consideração menor. O mundo da
Peregrinação, como o mundo d’Os Lusíadas, é o mundo das
viagens, da aventura e das desventuras que lhes estão
associadas. O mundo de Vieira é o mundo da fase histórica
seguinte: a da colonização e da construção do império. Os
objetivos desta, embora decorrentes dos da Expansão, não podem
confundir-se com eles. Não se trata da viagem pelo mundo e das
características que ela traz para dentro das letras. Trata-se, em
Vieira, de considerar uma empresa de colonização que coloca a
ênfase nos contactos quer pessoais e individuais, e por isso
humanos, entre colonizadores e colonizados; quer entre a potência
colonial e os territórios sob seu controlo político e administrativo,
uma outra forma de ter como horizonte das preocupações e dos
conteúdos literários e historiográficos a pessoa humana.
A segunda metade do século  XVII tem do mundo uma visão
geográfica que, em termos globais, pode dizer-se em grande
medida coincidente com a que hoje temos. É claro que havia
numerosos territórios por conhecer e descrever (por exemplo,
quase todo o interior de África). Que havia um sem-número de
culturas e civilizações que ainda não tinham entrado neste
«comércio global» que a empresa expansionista cimentou para o
futuro. Mas as linhas-mestras da descrição planetária estavam já
definidas, e depois disso seria sobretudo uma questão de expandir
o universo desses conhecimentos e as fronteiras que os limitavam.
A fase histórica de que Pe.  António Vieira participa não é a que
ocorre durante a empresa da deslocação e da viagem, mas a que
dela advém: o contacto sistemático entre pessoas e civilizações
diferentes; a ocupação de territórios e as contradições e violências
nela implicadas; o início da instalação do edifício colonial e as
características políticas, administrativas, burocráticas, morais e
éticas que esse edifício faz revolver.
O palco principal em que Vieira faz ocorrer tudo isto é o país em
que viveu uma parte significativa da sua vida e em que se educou
como jesuíta: o Brasil. Ora, sabendo-se a decisiva importância que
os jesuítas tiveram na missionação pós-Expansão, um pouco por
todo o mundo, da América Latina ao Japão, não espanta que
Vieira nos dê um retrato extraordinário da forma como esta
segunda fase pós-expansionista estava a decorrer, bem como das
características que, um pouco por todo o lado, ia adquirindo. As
críticas que faz ao poder colonial, as explícitas descrições da
exploração dos índios, a emocionada empatia que demonstra para
com todos aqueles que esta empresa torna ainda mais
vulneráveis, naquilo a que já chama o «Mundo Novo», fazem da
obra vieiriana um exemplar caso sobre a forma como Literatura e
História se podem cruzar.
Este aspeto é tanto mais de sublinhar quanto Vieira foi, no Brasil,
em Portugal, ou na Europa (por onde também andou, ajudando a
Coroa portuguesa no reconhecimento diplomático da recém-
conquistada independência), um homem de ação, um homem que
concebeu palavra e ação como duas características entre si
indissolúveis. Uma vez mais, tal não é de espantar: Pe. António
Vieira foi, enquanto missionário jesuítico, sobretudo um pregador
conhecido e admirado. Ora, a literatura parenética, que se exprime
em particular pelo sermão e pela eloquência que ele implica, é um
dos casos maiores, no século  XVII, pelos quais a reflexão e a
análise se aliam à orientação com vista à ação. Não se trata
apenas de contemplar, mas de analisar agindo, ou convidando os
outros a que ajam. É aquilo a que Margarida Vieira Mendes, uma
das mais notáveis estudiosas de Vieira, chamou «estética da
eficácia»56, e que consistia precisamente em considerar o sermão
como o lugar geométrico em que beleza e ação (moral e prática)
se podiam conjugar. Deste ponto de vista, eloquência sacra
(sermão, palavras) e ação prática e política no mundo constroem
uma aliança que subsume uma outra, também defendida por
Vieira: a de que a ação terrena e material é apenas uma outra
forma de, dentro do mundo, manifestar a ação divina. E que, por
essa razão, os desvios morais e concretos, praticados na ação
terrena, têm consequências inevitáveis quando chega ao juízo
divino. Deus é, para Vieira, um defensor dos que precisam de ser
defendidos.
Veremos de que forma estas questões surgem em alguns dos
seus sermões, a que acrescenta as observações que faz em
muitas das cartas que envia ao rei. Entretanto, consideremos aqui
o caso de Vieira também como paradigmático no tocante a uma
outra questão: a da discussão sobre a sua «nacionalidade
literária» de Vieira. Na realidade, encontramos aqui um curioso
caso, que pode ajudar a tornar explícitas algumas questões política
e simbolicamente significativas, decorrentes da Expansão e das
profundas alterações que ela trouxe para o mundo. Pe. António
Vieira é um dos nomes significativos de alguma forma
«reivindicado» por duas literaturas nacionais, a portuguesa e a
brasileira. Os argumentos de um e outro lado são evidentes, e
talvez não valha a pena circunstanciá-los. Naturalmente, o
problema começa (e talvez acabe) quando se quer aplicar a lógica
nacionalista de forma exclusiva e retrospetiva, querendo com ela
subsumir situações complexas como a do Brasil e de Portugal
como territórios em situação colonial. Assim, talvez mais
interessante do que atribuir Vieira ou outros autores a uma ou
outra literatura nacional (atribuição que decerto Vieira não
entenderia, ele que certamente se considerou do Brasil e de
Portugal), é deslocar para outro terreno o seu verdadeiro
significado: Vieira pertence a um mundo, e escreve num mundo,
em que as relações históricas se planetarizam, criando
comunidades histórico-políticas e simbólicas que não mais se
desfarão, embora se vão naturalmente alterando. A relação
Portugal-Brasil, que é uma das formas que toma a relação Europa-
América, recorta já, na segunda metade do século  XVII, uma
relação histórica entre potência colonial e colónia que não pode
nem deve ser rasurada. Esta questão constitui o cerne da
argumentação desenvolvida no Sermão da Epifania, em que se
defende a América como parte integrante do mundo,
acrescentando Vieira ao «Mundo Velho» o «Mundo Novo» que tão
bem conhece.
A história de Portugal assim redesenhada é, no século  XVII, para
o bem e para o mal, uma história comum, em que o que tem
origem no território português afeta, de vários modos, o território
brasileiro, e em que o que se forma neste necessariamente
(e  muitas vezes decisivamente) se projeta naquele. A literatura,
como outras formas de comunicação simbólica, participa desta
comunidade-em-devir que é a comunidade luso-brasileira. E é sem
dúvida de enorme importância que um dos nossos maiores
escritores, na literatura portuguesa, possa ser reconhecido, e com
toda a legitimidade, também como um dos fundadores da literatura
brasileira. O  interessante aqui é a não-necessidade de
exclusividade nacional (e muito menos nacionalista), cujo
significado simbólico, político e histórico faz também ele parte do
tema central do volume que escrevemos.
Assim, e ao lado de temas políticos como o das instruções de
príncipes, que dão conta de uma reflexão sobre a boa governação
e as suas características (Sermão da 3.ª Dominga Pós-Epifania,
Sermão da 6.ª Sexta-Feira da Quaresma), bem como sobre a
regulação e os limites do poder real, encontramos uma constante
atenção, que Margarida Vieira Mendes sublinha, ao tema do
pregador e às características a que a pregação deve obedecer
para que não seja o sermão aquilo a que chama «comédia». O
sermão mais conhecido a este propósito é o da Sexagésima, mas
o tema constitui um dos nódulos centrais da reflexão de Vieira,
manifestando o quanto a palavra, e sobretudo o uso da palavra,
era para ele a semente (para utilizar a sua própria metáfora) da
ação. Esse uso era pois o terreno nobre em que a moral humana e
religiosa se decidia, sob todos os pontos de vista. O sermonário
vieiriano reflete, entre numerosas outras questões, esta convicção
de que a palavra do pregador é uma das formas mais sérias e
nobres de praticar e viabilizar, na terra, a justiça e a equidade
divinas.
Por isso encontramos sermões em que a crítica vieiriana se torna
audaz e mesmo violenta, como o conhecido Sermão de Santo
António aos Peixes, onde critica duramente a escravidão dos
índios e advoga a sua libertação; outros em que defende a causa
dos cristãos-novos, reconhecendo a forma como foram forçados à
conversão; outros, como o Sermão Décimo Quarto, em que fala da
escravidão dos «pretos» e a verbera, dando conta das terríveis
circunstâncias que ela implicava; ou mesmo o Sermão do Bom
Ladrão, pronunciado diante do rei D. João IV e onde é realizada
uma violenta crítica aos desmandos da administração colonial: o
verdadeiro ladrão não seria o que rouba para comer, e depois é
enforcado, mas o que rouba aqueles que já nada têm e, além
disso, tem o poder de os enforcar.
Por outro lado, Pe. António Vieira faz-nos chegar um
impressionante relato do que estava a acontecer, no palco
brasileiro, no tocante às guerras entre diversas potências coloniais
europeias no sentido de garantir a posse daquele enorme território.
O  Brasil, como outros lugares do mundo, foi no século  XVII lugar
privilegiado onde se jogou a passagem de predominância política
planetária dos primitivos protagonistas da Expansão (Portugal e
Espanha) para a segunda fase de ocupação territorial por outros
países europeus, com particular destaque, no caso, para os
Franceses e os Holandeses e, um pouco mais tarde, os Ingleses.
Sermões como o do Bom Sucesso pelas Armas de Portugal contra
as de Holanda, em que utiliza como envolvimento retórico uma
pregação ficcional ao próprio Deus, advertindo-o para as
consequências que teria uma eventual vitória dos protestantes
holandeses sobre os católicos portugueses, é um exemplo
particularmente convincente da forma como política, religião e
guerra se encontravam estreitamente unidas no palco colonial, e
de como essa união era para Vieira evidente. A vitória dos
Portugueses seria aqui, afinal, a vitória de Deus.
Em última análise, a visão que Vieira propõe é a das relações
entre Homem, Mundo e Deus. A História é o terreno em que essas
relações se jogam, em que cada um se deve interrogar sobre
como cumpre a sua vida, se de acordo com os preceitos da justiça
divina, se em formas de afastamento deles que são,
simultaneamente, afastamento dos preceitos da lei da
Humanidade. Como diz num dos seus Sermões da Quarta-Feira
de Cinzas, as perguntas serão sempre, em última instância:
«Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é
bem que viva? Memento homo?» A História e a Literatura são
também, neste autor, uma forma de colocar as grandes perguntas
que desde sempre a Filosofia tinha também colocado ao Homem.

3.3. O PERÍODO ROMÂNTICO COMO LUGAR DE


CONFLUÊNCIA ENTRE LITERATURA E HISTÓRIA.
ALEXANDRE HERCULANO. ALMEIDA GARRETT. CAMILO
CASTELO BRANCO. POSTERIDADES

Entramos assim no terceiro momento que considerámos nuclear


na partilha discursiva entre História e Literatura no caso português.
Depois da historiografia medieval e da historiografia clássica, com
os seus diferentes perfis e escopos, depois das multiplicações
literárias e discursivas que a história da Expansão e do império
nascente trazem para dentro das letras portuguesas, a
historiografia romântica, acompanhada da ficção romântica, em
particular de conformação histórica, ergue-se como lugar decisivo
em que a Literatura vai olhar para a História como uma das formas
prioritárias de configuração da imaginação literária.
Falar de Literatura e História no período romântico é
naturalmente falar de inúmeros autores — mas o protagonismo
desse cruzamento, aliás de acordo com padrões e objetivos
diferenciados (ou seja, distinguindo já claramente uma «ideia de
ciência histórica» de uma «ideia de literatura») vai, como não podia
deixar de ser, para Alexandre Herculano.
No século  XIX, Herculano é, juntamente com Almeida Garrett
(que mais longamente consideraremos em capítulos posteriores),
uma das figuras fundadoras do Romantismo em Portugal, um dos
seus emblemas e na realidade a sua consciência moral figurada.
Foi este um papel que Herculano desempenhou ao longo de toda a
vida, mantendo uma atitude coerente na vida política, cultural e
literária que o fez recusar honrarias públicas mas que também lhe
trouxe o reconhecimento como referência moral ao longo de todo o
século XIX. A Geração de 70, em particular Oliveira Martins, tê-lo-ia
como mestre.
As suas opções ideológicas devem assim considerar-se
fundamentais, no sentido em que determinam todas as suas
ações, quer o papel ativo que desempenhou na Guerra Civil,
lutando pelos Liberais, por volta dos seus vinte anos; quer a sua
permanente defesa da liberdade como a força motora da
sociedade, ao ligá-la a qualidades como a vitalidade moral e com
períodos históricos como a Idade Média; quer também o seu
profundo sentimento religioso, que combina com o ataque certeiro
às forças conservadoras do clericalismo reacionário e
ultramontano; quer ainda a forma como as efabulações narrativas
refletem a sua posição ideológica, figurando a liberdade
personificada num herói combativo e muitas vezes por essa razão
condenado.
Alexandre Herculano começou a sua carreira como colaborador
num periódico, o Repositório Literário, imediatamente após a
vitória do Liberalismo em Portugal (1834), coincidindo com a altura
em que desempenhava funções na Biblioteca Pública do Porto.
Nele publicou diversos artigos sobre questões críticas, conceptuais
e estéticas, demonstrando um sólido conhecimento literário,
proveniente sobretudo de fontes inglesas e alemãs. As duas
primeiras obras que publica, todavia, ilustram um interesse por
formas não-canónicas, sobretudo se tivermos em consideração as
linhas mestras da sua produção posterior: A Voz do Profeta (1836),
uma forma de lamento profético na esteira da obra de Lamennais
Paroles d’un Croyant, apresentando uma voz poética que,
exprimindo-se numa forma de prosa literariamente marcada, deve
na verdade ser considerada como uma metonímia do Poeta
romântico, encarregue, à maneira de Shelley, de uma missão
simultaneamente transcendente e social no mundo imanente; e A
Harpa do Crente (1838), o seu único livro de poesia lírica, mais
tarde expandido sob o título de Poesias (1850). Nele encontramos
uma dicção poética muito diferente da tradição lírica mais forte em
Portugal, especialmente próxima do pensamento conceptual e por
isso de um pensamento reflexivo capaz de ecoar Camões e que
antecipa poetas de outro ponto de vista tão diferentes como Antero
de Quental ou Fernando Pessoa. A opção por versos longos,
poética e retoricamente fortes, serve um projeto estético de
expressão, cujas características primeiras se centram em torno do
sentimento religioso, manifestado pela contemplação e pela
meditação sugeridas por uma cena natural; do sentimento social,
diretamente relacionado com a consciência do exílio (literal e
simbólico), numa solidão moral que distancia o Poeta da corrupção
e dos compromissos; e da integridade moral e ética que ele
manifesta e representa, e que se torna assim a sua característica
distintiva.
Herculano passa depois para o terreno da narrativa, em que a
aliança entre Literatura e História dará os seus mais importantes
frutos. Sublinhemos em primeiro lugar a sua ficção em prosa: entre
1839 e 1844, publica no periódico O Panorama um conjunto de
narrativas, entre o conto curto e a novela, que aparecerão mais
tarde, em 1851, sob o título de Lendas e Narrativas.
Fundamentalmente constituída por contos e novelas de inspiração
histórica, esta série de narrativas deve ser considerada como a
semente da qual o romance histórico, que Herculano funda em
Portugal, na esteira de Walter Scott, como ele mesmo afirma,
nasce e a partir da qual se vai afirmar.
Se o romance histórico herculaniano se institui grosso modo na
década de 1840, as décadas seguintes verão surgir em Portugal
um grande número de obras daquilo a que a tradição literária
passou a chamar e a reconhecer como narrativa histórica ou, se
quisermos ser mais precisos, romance histórico. Não é nosso
propósito fazer aqui a história deste género em Portugal: esse
trabalho encontra-se exemplarmente feito por Maria de Fátima
Marinho57, que dedicou uma grande parte da sua atenção crítica
precisamente à génese, evolução e transformações deste género
em Portugal, desde a sua implantação, como dissemos na década
de 1840, até à atualidade. Entretanto, e embora centremos a
nossa atenção na obra herculaniana, pela dimensão extraordinária
que ela assume no contexto das relações entre Literatura e
História na tradição portuguesa, convém relembrar alguns dos
fatores e dos nomes que Maria de Fátima Marinho longamente
analisa na sua pesquisa. Em capítulo posterior analisaremos um
caso específico dentro desta tradição da narrativa histórica, o
medievismo oitocentista, que assume especial importância pelo
trabalho, que realiza, de construção e reconhecimento de um
passado no qual o presente se enraíza.
Antes, todavia, retenhamos a singular permanência do
imaginário histórico no âmbito da ficção dos séculos  XIX  e  XX (e
mesmo já XXI). Na realidade, a afirmação, relativamente comum há
algumas décadas, que remetia para o período oitocentista a prática
sistemática do romance histórico, com nomes como Pinheiro
Chagas, Rebelo da Silva, Arnaldo Gama, e o grande Camilo
Castelo Branco, tem hoje de ser revista e completada pelo enorme
interesse que a forma despertou sobretudo na segunda metade do
século XX, no âmbito daquilo que veio a designar-se como romance
pós-moderno. Se uma das formas que esta forma de modernidade
prioritariamente assume, como defendeu entre outros Linda
Hutcheon58, é uma certa consciência obsessiva (e subversiva) dos
efeitos da ficção historiográfica, não será difícil ver que, em autores
como — e para citar apenas alguns dos nomes mais significativos
— José Saramago, António Lobo Antunes, Álvaro Guerra, Mário
Cláudio, Agustina Bessa-Luís, Mário de Carvalho ou Fernando
Campos, a História surge como motor de um pensamento sobre o
contemporâneo que retira qualquer efeito passadista à reflexão
feita sobre o passado. Pelo contrário, o imaginário histórico serve,
no século XIX como no século XX (embora com diferenças, como de
seguida veremos), para uma melhor compreensão do presente e
uma consciência dos rumos a seguir no futuro, como aliás
Herculano e também Almeida Garrett implícita e explicitamente
defendiam nas suas efabulações históricas.
Em segundo lugar, sublinhemos que a permanência deste
imaginário histórico depende, em grande medida, das alterações e
das transformações que sabe integrar. Assim, se o romance do
século  XIX segue sobretudo a linha de um relato fiel às grandes
linhas da História, nela inserindo uma intriga individual em que
espaço privado (o amor) e espaço público (a política) se cruzam59,
podemos entretanto nele detetar, segundo a proposta de Pierre
Barbéris60, duas diferentes modalidades: na primeira, o panorama
histórico funciona sobretudo como grande enquadramento de uma
intriga que, a pouco e pouco, se vai «privatizando», colocando o
indivíduo, as suas relações e as suas contradições, no palco
central da narrativa. Barbéris dá para este caso o exemplo
verdadeiramente paradigmático do romance, justamente
classificado como «psicológico», de Mme. de La Fayette, La
Princesse de Clèves; na segunda, que Barbéris relaciona como o
modelo scottiano, passa-se um pouco o inverso: a intriga
individual, sendo importante, pode entender-se como o motor a
partir do qual é a cena da História, e da sua reconstituição
poderosa, que ocupa o protagonismo do romance. Basta
lembrarmos a forma como Victor Hugo pratica a forma do romance
histórico em Notre-Dame de Paris para percebermos que a história
das (comoventes) personagens individuais não dilui, antes pelo
contrário, a grandiosidade da reconstituição histórica que é,
também, um dos objetivos prioritários deste tipo de romance.
Ora, o século  XX introduz neste panorama, que podemos
globalmente designar como a ficção histórica clássica,
significativas alterações. Uma delas constitui o propósito de
revisão, que se exprime num projeto ficcional que, a maior parte
das vezes, repousa sobre a significativa alteração de uma ou mais
premissas do saber histórico estabilizado.
Podemos dar como exemplo deste procedimento o episódio
desencadeador de vários dos romances históricos de Saramago; o
facto de um acontecimento súbito alterar a História, ou pelo menos
o discurso que dela pode ser feito (por exemplo na História do
Cerco de Lisboa), constitui o ponto de partida para uma ficção
histórica que repousa, afinal, sobre a possibilidade e a
potencialidade de revisão do consabido. Uma outra alteração, com
esta relacionada, implica o reconhecimento de leituras alternativas
da História, o que significa que o discurso da História nunca está
completamente feito, e não se esgota na dualidade entre verdade
e mentira. Finalmente, como lembra Hutcheon, estas ficções têm
também um propósito metaficcional, o que significa que a reflexão
sobre os objetivos e intuitos do discurso histórico se encontra
duplicada por uma reflexão sobre a natureza, as possibilidades e
os limites do discurso ficcional. Relativamente a ambos podemos
encontrar a ideia novecentista de suspeita sobre a capacidade de
qualquer discurso coincidir totalmente com a verdade (ou o que se
supõe que ela possa ser). Essa suspeita afeta e ao mesmo tempo
constitui quer a narrativa historiográfica (com a consciência de que
a História dos vencidos é diferente da dos vencedores — como
aliás Fernão Lopes, no seu prólogo da Crónica de Dom João I, de
algum modo também exprimia); quer a narrativa ficcional, que
manifesta também, na sequência da exposição dos seus
procedimentos ficcionais, que podemos designar como ironia
romântica, a consciência dos limites e das condições de
narrativização.
Em grandes traços, podemos dizer que aquilo que Alexandre
Herculano veio instituir dentro da literatura portuguesa representa,
na sua evolução, uma das linhas mestras que é necessário
reconhecer. O imaginário histórico como força motora e
desencadeadora da ficção corresponde à invenção de uma
tradição literária de que hoje temos de nos saber ainda herdeiros.
Voltemos, pois, a Herculano e às suas Lendas e Narrativas.
A maior parte das narrativas que constitui este conjunto deve ser
relacionada diretamente com o trabalho de pesquisa histórica no
qual Herculano estava também empenhado durante o mesmo
período. Isto é especialmente verdade para textos como «A Dama
Pé de Cabra», que parte de pequena narrativa contida nos Livros
de Linhagens medievais; ou «Arras por Foro de Espanha», em que
a memória das crónicas de Fernão Lopes é evidente; ou «A
Abóbada», em que a independência de Portugal, depois da crise
de 1383-5, é arquitetonicamente configurada através do fecho da
abóbada do mosteiro. Esta ficção de carácter histórico é aqui
maioritário, abrangendo ainda períodos como o da independência
de Portugal («A Morte do Lidador») ou o da viagem de Vasco da
Gama à Índia («Três Meses em Calecut. Primeira Crónica dos
Estados da Índia (1498)»). Mas, ao lado dele, e manifestando
como a memória do passado é sempre uma forma de refletir sobre
o presente (voltaremos a esta questão a propósito de Garrett),
encontramos ainda neste conjunto exemplos da narrativa de
carácter contemporâneo, que devem ser mencionadas pela sua
manifestação de diferentes características: «De Jersey a
Granville», um episódio diretamente relacionado com a experiência
do exílio político de Herculano, e por isso ainda uma forma de a
política e a História interferirem mesmo numa ficção de carácter
individual e memorialístico; e «O Pároco de Aldeia», uma narrativa
de ambiente aldeão em que o Reitor, figura de recorte prático e
caracterizada pelo humor, desempenha um papel e manifesta uma
presença simbólica e ritualística, capaz de assegurar que aquilo
que devia permanecer, do passado, encontra canais de entrada no
futuro.
A combinação das duas características: a história do passado,
que faz de Herculano o nosso primeiro romancista histórico; e a
história do presente, que o traz para o palco das convulsões e
mudanças sociais da transição entre o Antigo Regime e a época
contemporânea, deve aqui ser entendida como um marco
verdadeiramente excecional, não apenas pelo que representa
relativamente a Herculano, mas pelo que aponta de caminhos para
o futuro. Digamos que a história do passado, protagonizada pela
narrativa ou pelo romance históricos, nunca é para Herculano
apenas a história do passado. Pelo contrário, a ideia de que ao
tornarmos esse passado presente estamos a falar do que nos
rodeia, das opções, lutas e valores em que ativamente cada um de
nós participa, sublinha o carácter central da narrativa histórica em
Herculano como narrativa de cidadania. Desse ponto de vista, as
narrativas contemporâneas que ele também integra nas suas
Lendas e Narrativas demonstram o mesmo tipo de preocupações.
No século  XIV como no século  XIX, há que compreender e agir
historicamente no mundo, nele projetando os valores morais que
podem combater traições e corrupções da ordem moral, que é a
ordem fundadora da sociedade e o garante da sua efetiva
permanência e existência históricas.
Aliás, Almeida Garrett procedeu de forma semelhante com as
incursões históricas, que, como veremos, encontrarão o seu lugar
geométrico em Frei Luís de Sousa (1844), mas que ele
constantemente revisita, desde o imaginário clássico das suas
primícias teatrais, com Catão ou Mérope, nos anos de 1820; quer
com textos dramáticos como O Alfageme de Santarém (1842),
Filipa de Vilhena (1846) ou Um Auto de Gil Vicente (1841); quer
ainda com a incursão garrettiana mais explícita no romance
histórico, com o Arco de Sant’Ana (1845-50). Deles falaremos mais
adiante, mas registemos desde já que em todos podemos
reconhecer um mesmo propósito. Não o de ressuscitar o passado
apenas pela «cor local» que ele implica, e por isso por uma forma
de distanciamento que poderíamos classificar como exotismo
histórico, como aparece por vezes em exemplos menores do
chamado romance histórico. Mas o de arrastar o passado para o
presente, encontrando analogias ou manifestando diferenças,
sempre encarando esse passado, como Garrett faz questão de
dizer em O Arco de Sant’Ana, como uma forma de restituir o
presente (e a História do presente) a uma compreensão refletida.
Movimento simultaneamente diferente e semelhante é o que
encontramos no grande escritor do presente e do passado que é
Camilo Castelo Branco. Ele, que não é comummente considerado
como paradigma do chamado romance histórico português, deve
ser encarado como uma dos mais intensos «historiadores» das
convulsões que marcaram (e que deixaram traços até à
atualidade) a sociedade portuguesa, com a transição do Antigo
Regime para a sociedade contemporânea. A passionalidade
camiliana é uma passionalidade historicamente inscrita, em que os
direitos do coração e do indivíduo se afirmam e revoltam contra o
peso da tradição, do passado e da lei instituída pela sociedade.
Contra as leis sociais e o seu peso autoritário e prepotente, ergue
Camilo o direito individual, que só pode ser pós-Revolução
Francesa. Teresa e Simão, de Amor de Perdição, não são apenas
os heróis de um amor tão intenso que o mundo não o pode conter.
Eles são também os heróis históricos dos pequenos/grandes
combates que o microcosmos familiar encena, e onde a História
social se manifesta: a família é em Camilo o lugar central daquilo
que Michel Foucault61 emblematicamente analisou e caracterizou
como micropoder. Encontramos assim em Camilo uma outra forma
de encarar e praticar a ficção histórica: não se trata nem de usar a
história individual para chegar ao grande fresco histórico; nem de
utilizar o enquadramento da História para o dissolver na intriga
pessoal. Mas de mostrar como História e pessoalidade se
contaminam de forma tão intensa e inextricável que é impossível
olhar para uma sem detetar a outra; que a História se faz dos
desencontros e violências domésticos, como dos que o palco
social manifesta na cena política mais vasta. De igual forma, os
constantes recuos ficcionais que Camilo faz a épocas anteriores
acontecem para que o leitor tenha consciência de como não é
possível falar do presente, e muito menos entendê-lo, sem ter em
conta o peso que as raízes históricas cristalizam na noção de
família.
Em Camilo Castelo Branco, o universo familiar é, assim, a
primeira e talvez mais clara fundação do social e histórica, um
espaço supostamente privado onde os poderes públicos se
exprimem e as descoincidências de objetivos e reivindicações se
erguem. Para compreender os indivíduos do presente, pois, é
preciso que a história deles (que é a sua, mas também a da sua
família) se manifeste. Para compreender o presente, é preciso que
as raízes históricas que tem se revelem, para lá de qualquer
dúvida. E por isso os mistérios que ensombram o passado são
objeto de uma escavação histórica (em metáfora de Walter
Benjamin) que une inextrincavelmente o que se passou ao que se
passa. É assim por exemplo em O Retrato de Ricardina, como o é
em O Judeu, O Senhor do Paço de Ninães, Anátema (o primeiro
romance de Camilo, publicado em 1851), ou O Livro Negro do
Padre Dinis. A Batalha de Alcácer Quibir e as suas consequências
individuais (em O Senhor do Paço de Ninães, numa história cujas
relações com Frei Luís de Sousa são interessantes); as Invasões
Francesas — tema de enorme fortuna entre nós, e que mereceu
recentemente um estudo de grande fôlego, da autoria de Gabriela
Gândara Terenas62 —, a Guerra Civil entre absolutistas e liberais; a
Inquisição e a perseguição aos judeus; são alguns dos temas
históricos para a narrativa camiliana. Mas, mesmo nos romances
(ou nas novelas) não diretamente designados como «históricos»
(que é a maior parte), Camilo revela uma consciência aguda da
condição histórica do indivíduo, em termos quer de herança
temporal quer de atmosfera social.
No mesmo contexto, a obra de Alexandre Herculano surge como
um edifício consistente, em que ficção histórica e discurso
historiográfico se fecundam mutuamente. Podemos dizer que o
próprio Herculano não concebe o seu trabalho de escrita sem essa
mútua indexação entre o trabalho de arquivo, nomeadamente
quando fica à frente da Torre do Tombo, e o trabalho de
imaginação, que o acompanha, de uma forma ou de outra, ao
longo de toda a sua vida. Assim, as características que atrás
pudemos analisar, presentes nas Lendas e Narrativas, irão surgir,
de forma mais elaborada e sustentada, em todos os seus
romances históricos, também eles parcialmente publicados, em
primeira instância, como folhetins em diferentes periódicos (o
mesmo aconteceu, aliás, com Almeida Garrett e sobretudo com
Camilo Castelo Branco): Eurico, o Presbítero (1844), O Monge de
Cister (1848) e O Bobo (1878, póstumo). Todos eles seguem o
exemplo de Walter Scott, enfatizando momentos de transição
social em que a crise subitamente se torna inevitável, e abrindo
lugar, simultaneamente, ao surgimento de «indivíduos reais», os
heróis que podem constituir referência para gerações futuras.
É também importante sublinhar o profundo dinamismo que tal
caracterização implica. Em Eurico, o Presbítero, o quadro temporal
é o século  VIII, durante a invasão da Península Ibérica pelos
Árabes, que pôs um fim à monarquia visigótica; em O Monge de
Cister, encontramo-nos no limiar da segunda dinastia da
monarquia portuguesa, depois da crise política de 1383-5, e em
que as instituições estão ainda a tentar encontrar uma forma de se
afirmar na nova sociedade, que simbolicamente separa, na ótica
de Herculano, a vitalidade medieval do poder moderno, mais
centralizado e autoritário; finalmente, em O Bobo é
verdadeiramente ao «nascimento de uma nação» que assistimos,
através da rivalidade política e simbólica entre mãe e filho, pela
qual Portugal viria a afirmar-se como nação independente, e que é
representada a  partir da figura do bobo da corte, que dá título ao
romance: é frente aos seus olhos que os episódios políticos e
individuais, públicos e privados, se desenrolam (numa espécie já
de «contra-história»).
Pelo carácter paradigmático que ocupa quer na ficção
herculaniana, quer no quadro do romance histórico português,
detenhamo-nos um pouco em Eurico, o Presbítero. O romance foi
escrito em 1843, tendo alguns dos primeiros capítulos aparecido
em dois periódicos, O Panorama e a Revista Universal
Lisbonense, e depois surgido em volume em 1844. Nas palavras
com que antecede esta publicação, Herculano confessa a sua
perplexidade no tocante ao género a que o seu texto pertenceria, o
que permitiu aliás que este romance histórico tenha sido lido, nos
quase duzentos anos que se lhe seguiram, de formas muito
diferentes — e, curiosamente ou não, como um mote reflexivo para
cada um dos presentes vividos e dos futuros antecipados. Sendo
um expoente do romance de inspiração e cenário históricos,
Eurico, o Presbítero é-o também para a ficção com implicações
sociais e alegóricas, como veremos, permitindo olhar para a
atualidade de acordo com os conflitos que o passado também
conheceu.
O romance situa-se como dissemos no início do século  VIII, no
momento da agonia da monarquia visigótica na Península Ibérica,
que abre caminho à invasão muçulmana e, na sua sequência, à
construção das nações medievais «modernas». A perspetiva
escolhida por Herculano acentua a perceção de tal período como
um momento de crise, em que transições, valores e traições se
apresentam como decisões estruturantes dos homens e das ações
em que se envolvem. Eurico é o solitário presbítero de Carteia,
depois de ter sido guerreiro e homem de corte, tendo decidido
consagrar a sua vida a Deus na sequência do que considera ter
sido uma traição ao seu amor por Hermengarda. Intuindo que a
sua pátria está prestes a ser invadida e conquistada não apenas
por outra nação, mas também por outra religião, Eurico escolhe
reaparecer na vida pública, sob o manto do anonimato,
transformando-se assim no herói solitário, o Cavaleiro Negro que,
apesar de tudo, não consegue evitar a traição de que a pátria será
alvo, nem a sua subsequente destruição. Ao ser obrigado, pelas
circunstâncias, a salvar Hermengarda das mãos dos invasores,
Eurico tem de enfrentar a questão moral do celibato dos padres:
morrerá num ato de autossacrifício, que lhe surge como a única
solução moralmente sustentável. Hermengarda, por seu turno,
tornar-se-á em mais um exemplo das mulheres enlouquecidas
pelos desajustes da vida, frequentes em narrativas românticas.
O presente romance representa, para Herculano, muito mais do
que o mero desejo ou mesmo evocação de um passado (se bem
que essa evocação faça parte da sua constituição romanesca).
Esse passado, em que o herói era ainda transparente e apesar de
tudo visível para todos, é também vista como a fundação da
esperança num futuro que, por ser incerto e obscuro, não deixa de
ser possível — e para isso está no romance a figura de Pelágio.
Física e moralmente, o herói é marcado por traços distintivos que
acentuam a sua radical diferença das «massas» que, entretanto,
ele tão bem representa. Trata-se do drama de uma elite que se
concebe através do paradoxo de uma comunhão com uma
multidão de que também radicalmente diverge. É talvez por essa
razão que Eurico, como outros heróis de romances e contos
herculanianos, é um ser fundamentalmente rasgado pelas suas
contradições interiores e pelo carácter absoluto do seu ser moral,
empenhado numa luta contra a morte que, ao mesmo tempo que
se projeta num mundo transcendente, encontra o seu palco dentro
do sujeito e da sua consciência. Ora, não custa perceber que esta
cisão entre massas e elites, que estrutura o romance, estrutura
também o pensamento romântico sobre o Poeta e a progressiva
reflexão que, ao longo do século  XIX, irá desembocar na figura do
intelectual.
Provavelmente por esta razão, Eurico imediatamente se torna o
farol de toda uma geração, a ponto de o crítico Vitorino Nemésio
ter falado da existência de um «complexo de Eurico». Pela mesma
razão se torna ainda no paradigma do poeta romântico, ele cujos
hinos eram cantados por toda a Península Ibérica. Neste herói,
guerreiro e poeta, encontramos o ato de autoexclusão do mundo,
emblemático da atitude de Herculano e de vários outros autores
românticos europeus, um gesto tão simbólico quanto existencial.
No início do romance, encontramos Eurico prestes a reentrar no
mundo, não através dos seus atos no mundo social da corte, mas
através da sua capacidade guerreira, que permanece, é claro, uma
outra forma de ação social, bem como mais uma metáfora para a
relação amorosa traçada e a impossibilidade de sua consumação.
Entretanto, aquilo que deve ser sublinhado nesta situação é o facto
de que tal reentrada não pode deixar de ser considerada como um
simulacro. Por um lado, porque a nação visigótica na realidade já
não existe no início do romance, mesmo quando ainda o aparenta
(as notas de Herculano são reveladoras a este respeito). Por outro
lado, porque toda a intriga romanesca repousa sobre a noção de
traição, que é o simulacro institucional. No final do romance, Eurico
luta, não contra os muçulmanos, mas contra os godos que traíram
a sua pátria. Finalmente, o próprio Eurico, se bem compreendido,
também não existe: aquela parte de si mesmo que se transforma
no Cavaleiro Negro apenas ocupa a cena como uma máscara que
oculta o guerreiro que não tem sequer direito ao próprio nome. Nos
mesmos anos, Garrett criava também um fantasma histórico sem
direito ao seu nome: Frei Luís de Sousa foi, como Eurico, o
Presbítero, escrito em 1843 e publicado em 1844. As coincidências
são, apesar de tudo, significativas. E explorá-las-emos, em
capítulo seguinte, quando com mais demora nos ocuparmos deste
texto dramático de Garrett.
Estes momentos de transição, emblematicamente figurados no
romance Eurico, o Presbítero, tipicamente ancorados em
diferentes períodos da Idade Média (a invasão da Península; a
fundação de Portugal; o fim da crise dinástica e a manutenção da
independência), sublinham a importância do simbolismo nacional,
convergindo para uma teoria do romance que nele reconhece uma
distinta ressonância ética e estética. No contexto deste
enquadramento histórico, e desempenhando nele um papel ativo,
através das relações estabelecidas entre os diferentes níveis da
ação, desenrola-se a história individual, normalmente centrada em
torno de uma relação amorosa reconhecida como impossível ou,
pelo menos, dificultada por razões sociais. A conexão entre ambos
os níveis, o individual (amoroso) e o público (histórico), é garantida
pelo herói, que invariavelmente luta pela liberdade, animado pelo
desejo de vingança das diferentes formas que a traição pode
revestir. E, por isso, este herói torna-se simultaneamente o símbolo
da identidade nacional e aquele que se distingue das «massas» e
das manipulações a que estão sujeitas e a que se prestar.
As obras redigidas no domínio da historiografia são uma parte
muitíssimo significativa do percurso de Alexandre Herculano, e
devem ser encaradas, no presente contexto, quer pelo seu
intrínseco valor quer porque na realidade representam o início da
historiografia moderna em Portugal. Ao longo de toda a sua vida,
Herculano demonstrou e desenvolveu o seu interesse pela
História, em particular pela Idade Média. Além de ter
desempenhado funções como segundo secretário na Biblioteca
Pública do Porto, foi posteriormente nomeado diretor nos arquivos
nacionais da Torre do Tombo. Em ambos os lugares, tomou
decisões cruciais para impedir o desaparecimento de documentos
históricos; colecionou materiais históricos provenientes do país
inteiro, mais tarde publicados sob o título de Portugaliae
Monumenta Historica; e escreveu vários livros sobre a História
portuguesa: Cartas sobre a História de Portugal (1842),
concebidas a partir do modelo do historiador francês Thierry, nas
quais lança as bases de uma historiografia crítica; História de
Portugal (4 vols., 1846-53); e vários outros títulos, como Da
Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (3 vols.,
1854-9) ou A Reacção Ultramontana em Portugal (1857). Em toda
a sua obra historiográfica, Herculano reitera o seu pensamento
liberal e crítico, enfatizando as raízes municipalistas e
antiabsolutistas da sociedade e das instituições medievais, e ao
mesmo tempo tornando-o o inimigo declarado de todas as formas
de reacionarismo, quer no campo estritamente político, quer no
campo religioso. Esta sua posição está na base de diferentes
polémicas em que se envolveu — e de que nunca fugiu — em
diferentes momentos da sua vida. As mais conhecidas serão
aquela que, em 1850, o opõe a uma grande parte do clero
português, quando recusa a aceitação das narrativas do milagre de
Ourique como fazendo parte da documentação historiográfica,
recusando assim a «tese» da caução divina da monarquia
portuguesa63; e em 1865, com a sua defesa do casamento civil em
Portugal. No que respeita à sua obra historiográfica, a obra maior
de Herculano é sem dúvida a sua História de Portugal, em que
pela primeira vez uma história das instituições, e não apenas dos
factos políticos e dos indivíduos, é conseguida.
Devemos em primeiro lugar a Almeida Garrett e a Alexandre
Herculano, como vimos, a introdução e sistematização do romance
romântico em Portugal, fundamentalmente ao longo da década de
1840. Tal não acontece por acaso: o seu surgimento tardio pode
relacionar-se com os tumultos sociais em que os agentes literários
se tinham visto envolvidos até então, ocupados sobretudo em lutas
e ações sociais que, se não lhes impediram a prática literária,
condicionaram pelo menos as circunstâncias para que ela fosse
tornada pública. Pelo contrário, na década de 1840 tanto Garrett
como Herculano se encontram em plena maturidade vivencial e
literária, ao mesmo tempo que as condições sociais permitem uma
literal explosão de meios, revistas, sociedades e publicações em
geral, que rapidamente conduzem ao proliferar da atividade
literária e artística. Por outro lado, o romance surge, aos olhos
destes nossos românticos, como dotado de capacidades técnicas
(a sua componente narrativa e a sua articulação com a descritiva)
que permitiam uma formulação relativamente sistematizada dos
grandes princípios românticos: a defesa da liberdade e da
igualdade, a afirmação da capacidade evolutiva e constituinte do
Indivíduo enquanto tal, universo coerente de uma consciência una
mas também variada, como do mesmo modo, a nível social, o
entendimento da Nação enquanto ser dinâmico, dotado de uma
energia vital e transformadora, capaz de se assumir e afirmar.
Não é difícil, aliás, ligar de modo evidente todas estas
características, criando uma narrativa cuja ação apresente um
herói que simbolicamente constitua a representação de um ideal
de grupo e que, ao mesmo tempo, reivindique para si a defesa
intransigente dos princípios da liberdade. Vimos ser este o
princípio norteador da narrativa histórica que Alexandre Herculano,
inspirado sobretudo por Walter Scott, vai modelando nos vários
contos e nos vários romances que publica. Com efeito, e deste
ponto de vista, a constituição da narrativa herculaniana formula-se
em torno de uma individualidade indiscutivelmente psicológica,
para quem o lugar exterior é, muitas vezes, mero palco de
apresentação, de exibição de condutas morais. A ação exterior
apresenta-se então mais como consequência de uma interioridade
que, corretamente assumida, se projeta de modo inevitável no
chamado «mundo social», do que como um elemento-outro,
desligado do mundo do sujeito.
Se chamamos a atenção para este aspeto, é porque é por vezes
estabelecida uma oposição demasiado simplista entre «história»,
ou «passado», e «presente» ou «contemporaneidade». Ora, será
bom insistir sobre o facto de que «contemporaneidade» e
«história» não constituem, deste ponto de vista, oposição
paradoxal, ou lugar ideológico de uma opção alternativa, em que
um dos elementos exclua o outro. Se o chamado «romance
histórico», nomeadamente na sua feição romântica, é
aparentemente «passadista», propondo um olhar retroativo para
uma época que não é a contemporânea, importa não esquecer que
esse passado estabelece com o presente, mormente aos olhos de
um autor multifacetado como Alexandre Herculano, uma relação
dinâmica, estruturadora de uma compreensão do contemporâneo,
possibilitando pois uma ação mental e até factual sobre esse
mesmo presente.
É neste quadro que o romance histórico aparece a Herculano —
mas também a Garrett, que o tentou em O Arco de Sant’Ana —
como campo privilegiado para a execução narrativa de
pressupostos ideológicos e estéticos de que o Romantismo nasce
e a partir dos quais se desenvolve: pelo que permite de
concentração do fluxo e da tensão narrativa em torno de um
sujeito, individualidade capaz de se demarcar em relação a outros
através de instrumentos que facilitam a sua oposição, a sua luta e,
consequentemente, a sua marginalização e solidão; mas também
pelo que permite de identificação do destino pessoal e do destino
nacional. Isto porque, sendo herói, ou seja, «marcado», o seu
destino é inegavelmente público, extra-ordinário, e portador
inequívoco de uma carga simbólica; e ainda, finalmente, porque se
torna relativamente fácil a esse herói defender com intransigência,
nesses tempos conturbados e épicos em que, sob a ótica
herculaniana, tem a honra de viver, os princípios da liberdade e da
justiça que (por comparação implícita… e às vezes explícita) a
contemporaneidade tantas vezes parece negar — preferindo a
mediocridade de uma paz podre em que os possíveis heróis se
tornam fatalmente, no dizer de Almeida Garrett, tristes barões.
Mais do que como saudade — que também o é —, o passado é
visto, pois, por Herculano como fundamentação de uma esperança
com raiz no presente e projeção no futuro, tempo e lugar em que o
herói não estava ainda em dissolução e era por isso fácil
reconhecê-lo. Física e moralmente, com efeito, o herói surge
marcado por «traços distintivos» que acentuam a sua radical
divergência da «turba», que, no entanto, representa (isto é, não
pode deixar de representar) — drama de uma elite que apenas se
pode sentir enquanto tal e, paradoxalmente, enquanto em
comunhão com a multidão com que se não pode confundir. Talvez
por isso mesmo o herói da narrativa herculaniana, em particular da
narrativa histórica, seja fundamentalmente «rasgado» pelas suas
contradições interiores, numa luta de morte que, se se projeta no
mundo social, tem dentro de si e da sua consciência o lugar de
eleição. Talvez por isso mesmo, e como já atrás sugerimos, seja
Eurico o herói que, de todos os criados por Herculano, se torna o
mentor de toda uma geração e de toda uma dicção literária.
Vitorino Nemésio falará daquilo a que chama, com graça e
propriedade, o «complexo de Eurico» do nosso Romantismo;
talvez por isso mesmo os vários heróis das várias narrativas
históricas de Herculano (mas também dos seus seguidores)
acabem sempre por se referir, de um modo ou de outro, a esse seu
parente emblemático: Eurico, o Presbítero.
Na realidade, Eurico será o que melhor ecoa todo este conjunto
de situações e elementos complexos e até, como vimos,
pontualmente contraditórios. Figura que glosa o gesto de
autoexclusão do mundo, gesto este caro a Herculano do ponto de
vista simbólico mas também existencial, o certo é que
encontramos Eurico, no início do romance, prestes a fazer a sua
reentrada numa situação intramundana, não por via da sua ação
na vida social da corte, mas por via da sua ação guerreira — que
é, aliás, uma outra forma de ação social, e ainda metáfora da
própria relação amorosa. No entanto, o que esta situação tem de
particular é que, na realidade, tal reentrada deve desde logo ser
entendida como da ordem do simulacro: não só porque a
sociedade visigótica de facto já não existe (e as notas do
historiador Herculano a este respeito são esclarecedoras), mas
também porque toda a ação do romance se baseia numa traição
(que é o simulacro institucionalizado); e ainda porque, bem vistas
as coisas, o próprio Eurico é tão-só uma assombração, uma das
várias que pululam na literatura portuguesa — aquilo que nele é o
Cavaleiro Negro surge, como máscara, para rasurar o gardingo
que não voltou a nascer, apesar dos insistentes pedidos de
Teodemiro.
Assim, Eurico reservará para si duas esferas de ação que pode
congregar de forma significativa: presbítero e guerreiro, a sua luta
encontra, na dimensão religiosa e sagrada, uma justificação
simbólica que de qualquer outro ponto de vista lhe é negada.
Também deste ponto de vista Eurico já é mais um instrumento do
transcendente, no romance, do que uma figuração do imanente,
que são todas as outras personagens. Esta exata dimensão
transcendental e sagrada torna-o afim da voz profética que
Herculano recorrentemente utiliza na sua poesia. Não será por
acaso, então, que o romance nos dá a ler e presentifica, portanto,
a voz salmódica e religiosa de Eurico — quer através das elegias
solitárias que escreve quer através dos cânticos que as virgens do
Mosteiro da Virgem Dolorosa, prestes a aceitar o sacrifício da
automutilação, entoam. O solitário, o segregado Eurico é ainda, e
mais uma vez, a figuração de um absoluto que Herculano parece
conceber apenas na esfera da intransigência moral, ética e
axiológica.
Mas, por outro lado ainda, Eurico é também a voz guerreira e
metonímica, aquele que incita à morte, verberando a traição e o
pacto. Ele será o representante dos «milhares de godos», das
«aras do Senhor», das «imagens de Cristo», dos «muros
enegrecidos das cidades incendiadas». Neste particular, Eurico é a
alegoria do Mundo, agonizante. A sua superioridade e a sua
marginalidade vêm-lhe, assim, deste paradoxo: ele é como os
outros, na medida em que é o seu representante emblemático, o
seu paradigma; mas ele é mais do que os outros,
necessariamente: é que um paradigma não se pode confundir com
um mero exemplo, que apenas ilustra. Um paradigma é um
exemplo teórico. Eurico é a teoria da Nação.
De alguma forma, todos os outros heróis herculanianos, pelo
menos os das narrativas históricas, seguem este preceito, e
declinam este paradigma. Nenhum outro — com possível exceção
de Afonso Domingues, o cego visionário, construtor de catedrais —
atinge, todavia, idêntico grau de rarefação.
Existe ainda um outro aspeto que, pela sua importância na
efabulação histórica herculaniana, deverá ainda ser objeto de
algumas considerações. Trata-se do papel desempenhado pela
tarefa de reconstituição histórica que assume em Herculano, e
contrariamente por exemplo ao que se passa com Garrett, uma
dimensão de relevo, aliás decorrente de uma intenção didática de
carácter social.
Na realidade, escrever uma narrativa histórica é ainda mais uma
forma de ação, para Herculano, mais uma maneira de participar
crítica e ativamente na feitura do corpo social em que de tantas
outras maneiras ele se empenhou ao longo da vida. A
necessidade, pois, da reconstituição histórica explica certas
características da ficção de Herculano: a sua insistência no
concretismo, na visualidade, na pormenorização, que não são
meros meios de dar «cor local»; a preocupação com a componente
descritiva, de elementos materiais (o vestuário, por exemplo) mas
também de atos ou cenas sociais (saraus, procissões, autos); a
forma insistente como utiliza um vocabulário medieval, não só a
nível da reprodução de expressões coloquiais, exclamações ou
expressões idiomáticas, mas ainda a nível da sua própria utilização
técnica. Na realidade, tudo isto ajuda a entender que a
evidentíssima idealização das personagens, patente num
maniqueísmo por vezes simplista, se ajusta a uma visão que parte
exatamente de antinomias que se pretendem realçar, em torno da
dicotomia fundamental Passado/Presente. A polarização das
personagens, que traz muitas vezes como consequência a sua
perspetivação enquanto «personagens-planas», de reduzida
dimensão ou complexificação psicológica, é um instrumento
necessário à «lição da História» que Herculano continua a
pretender com a sua ficção — inserindo-se por outro lado no reino
dos absolutos que parece mover todas as conceções morais de
Alexandre Herculano, como aliás Vitorino Nemésio64 já referira de
modo lapidar: «Em Garrett a vida é caleidoscópica, efémera; em
Herculano, panorâmica e absoluta.»
O problema é também que, hoje, num tempo de tantos
relativismos, entendemos pior tudo quanto se queira «panorâmico»
e «absoluto» — e parece-nos mais fácil reduzir os objetivos de
Herculano, não reconhecendo neles a profunda coerência que
manifestam. Coerência intransigente, sem dúvida — mas também
hoje, como há cento e cinquenta anos, se pactua… É por isso
importante reconhecer o significado mais profundo dos dualismos
e das antinomias que governam, no geral, a ficção e também a
poesia herculanianas. Talvez por isso mesmo possamos dizer que
a questão se coloca, em termos alternativos, como submissão ou
capacidade de transcendência em relação às limitações impostas
pelo exterior. Interessa, pois, o modo como a personagem se
posiciona enquanto demonstração da sua capacidade de
«ultrapassar» barreiras, e a possibilidade concomitante de se
afirmar qualitativamente não-submisso a uma qualquer ordem
social, capaz justamente de representar a criação ou
institucionalização de novos limites. Por outras palavras, o herói é
condição de um progresso evolutivo. O indivíduo verdadeiramente
digno deste nome é o que não se deixa submeter pela sociedade
organizada, mas a cria e transforma, ultrapassando os limites que
ela lhe apresenta. E é por isso, por definição, um marginal, um
proscrito — voltamos por aqui à ideologia romântica.
Não deixa de ter importância acentuar de novo, neste contexto, a
inevitabilidade de afirmação pública da ação individual; não há,
não pode haver, na realidade, oposição de base entre o «ato
pessoal» do herói e a incidência pública que ele acaba, afinal, por
representar — a vontade pessoal é uma vontade de grupo,
idealmente uma vontade «nacional». O  seu ato é nesta medida
sempre público, porque deriva de uma compreensão globalizante
pela qual o sujeito/indivíduo se torna, mais até do que o
representante, o símbolo do próprio sentimento e do próprio ser
nacional. Por isso Afonso Domingues «é» o Mosteiro, e o Mosteiro
«é» a vitória da identidade nacional. Por isso Eurico «é» a raça
goda, e a sua morte apenas uma formalização do que afinal já
antes deixara de existir.
Uma atitude emerge de tudo isto, passível de síntese através da
palavra «exibição»: devemos expurgá-la aqui de conotações
negativas, entendendo-a por exemplo no seu registo técnico, como
quando falamos de «exibição teatral» — o que, aliás, não está
desadequado ao universo «cénico» dos romances de Herculano. O
herói herculaniano torna-se, por necessidade dos pressupostos
que o constituem, o que se exibe enquanto tal, e se afirma no
teatro do mundo através dessa exibição — de onde a fundamental
incidência do estatuto público dos seus atos. O tempo aparece,
assim, como um continuum simbólico, projeção da eternidade dos
valores morais, e em contraste com a efemeridade constitutiva do
indivíduo: sendo o herói, afinal, aquele que oscila entre o efémero
da sua vida pessoal e o eterno dos valores que, literalmente,
encarna.
Fará ainda sentido introduzir uma outra componente que ajude a
complexificar a visão da obra literária de Herculano, naquilo que
nela se relaciona diretamente com a representação da História. É
que, embora reconheçamos que a imaginação histórica é, no
quadro da obra por ele produzida, quantitativa e qualitativamente
preponderante, o certo é que, como atrás foi referido, Herculano
produziu também algumas narrativas de fundo contemporâneo,
entre as quais avultam, como mais conhecidas, as narrativas que
inclui no seu volume Lendas e Narrativas, sob os títulos de «O
Pároco de Aldeia» e «De Jersey a Granville». Esta última narrativa
corresponderia, aliás, a ter razão Vitorino Nemésio (e creio que a
tem), a um capítulo de um livro que Herculano teria desejado
escrever, e acabou por deixar esboçado, com o título de Cenas de
Um Ano da Minha Vida. Esse ano seria o que decorre entre 1831 e
1832, ano pois de exílio, de sofrimento, de meditação do soldado
liberal lutando pelos seus ideais. O seu cunho autobiográfico, por
outro lado, também o distingue das outras narrativas históricas:
trata-se sobretudo de uma meditação, algo desencantada, por
vezes, mas outras vezes certeiramente irónica na observação do
pormenor, capaz de um tom intimista que não nos habituámos a
considerar típico de Herculano… mas que, no entanto, lá está.
Juntando-se-lhes outros fragmentos relativos ao mesmo período,
como propõe Nemésio, ficamos com um esboço fragmentário do
que, entre autobiografia e diário, merecerá todavia uma atenção
que julgo não ter ainda obtido.
Quanto a «O Pároco de Aldeia» trata-se de um conto que, pela
sua singularidade na obra de Herculano, mas também no âmbito
do que demonstraria ser a linha de desenvolvimento da nossa
narrativa oitocentista, merece uma referência especial. Por um
lado, dá conta de uma atenção particular a uma orientação bem
visível no romance romântico europeu: a narrativa de ação
contemporânea e de ambiente campestre, de intriga relativamente
simples e centrada na delineação de personagens cuja inserção no
quotidiano se torna fator central. Com efeito, esta narrativa, que
parece ter sido começada em meados da década de 30 (o que a
tornaria verdadeiramente inovadora no âmbito do nosso
Romantismo), tem como indicação temporal para a ação o ano de
1825, e a intriga decorre, toda ela, numa pequena aldeia serrana
cujas ligações com a personagem, que assume a voz narradora,
são também especialmente significativas. Tempo contemporâneo,
espaço campestre, relações com a infância e os lugares da
tradição rural constituem assim os grandes vetores deste conto-
novela, cuja significativa consistência, do ponto de vista da
extensão e da estruturação, se combina com a existência de
excursos de recorte meditativo, realizados naquilo que, para a
dicção herculaniana, seria obviamente um «tom menor», sobretudo
se o compararmos com o de uma outra obra sua contemporânea,
A Voz do Profeta.
Por outro lado, devemos ainda reconhecer aquilo que, neste
texto singular, surge como antevisão de uma linha que, embora
tendo relativo pouco eco (mas não pequeno sucesso) entre nós,
não deixa de representar uma questão significativa se tomada na
sua dimensão europeia, como dissemos. Na literatura portuguesa,
e a este nível, Herculano encontrará seguidores nos nomes de
Rodrigo Paganino e Júlio Dinis, sendo que, embora por via
indireta, podemos reconhecer uma sua parentela distante em
alguma da ficção do último Eça de Queirós, bem como na poesia
ficcionada de António Nobre. E assistimos à constituição de uma
figura que, pelo seu recorte e valor simbólico, não deverá ser
esquecida: justamente, a do «pároco de aldeia», garante de uma
autoridade moral que, por ser praticada com alguma bonomia, não
deixa de se erigir como suporte axial de toda uma comunidade.
Deste ponto de vista, Herculano oferece-nos um contraponto ao
«herói heroico» protagonizado por Eurico — ambos surgem, afinal,
como garante da presença dos valores morais e éticos sem os
quais, para Herculano, nenhuma comunidade, e por maioria de
razão nenhuma nação, pode sobreviver.
Repensar a obra literária de Herculano é, assim, recolocar o
problema da validade ética e política no literário. E, se a narrativa
histórica surgiu, aos olhos deste autor, e por via dos seus
conhecimentos e da sua prática como historiador, enquanto
domínio privilegiado para o exercício desse constante chamamento
moral e comunitário, o certo é que tal opção não deve rasurar a
diversidade e a complexificação sob as quais ele se manifesta, nos
vários domínios da prosa e mesmo da poesia herculaniana.
Herculano soube ser o intérprete privilegiado desse olhar
«panorâmico e absoluto» que, mesmo se dificilmente pode ser o
por todos praticado na dimensão das opções quotidianas, não
pode deixar de ser reconhecido como a manifestação de uma
consciência sempre atenta à clarificação ética e axiológica que, de
forma mais ou menos explícita, surge como o inevitável suporte
dessas mesmas opções.
Também Almeida Garrett, a que temos vindo a fazer diversas
referências, importa ser considerado como elemento central no
pensamento que articula Literatura e História, no Romantismo
português: Garrett é sem dúvida um dos nomes fundadores, não
só do Romantismo português, mas ainda de uma conceção
tipicamente moderna do intelectual e do papel cívico e político que
lhe cabe, idealmente, na sociedade contemporânea. A sua
sustentada formação clássica, orientada por um seu tio, é visível
em grande parte da sua obra, que pode assim considerar-se,
globalmente, como uma manifestação particularmente evidente
das potencialidades de cruzamento e até conciliação, em muitos
casos feliz, entre as matrizes clássica e romântica.
Encontramo-lo em 1816 matriculado na Universidade de
Coimbra, já manifestando as duas vertentes, que prosseguirá ao
longo da vida, de intervenção sociopolítica e estético-literária.
Publica, como atrás vimos, em 1821 a sua primeira obra, Retrato
de Vénus, na mesma altura em que, acabado o curso, ingressa na
administração pública. Mas logo em 1823, na sequência da
insurreição absolutista, liderada pelo infante D. Miguel, é obrigado
a fugir, optando por um exílio em Inglaterra e em França que, com
intermitências, se prolongará até ao início da década de 1830,
altura em que integra a expedição de D. Pedro, lutando ao lado do
exército liberal. As repercussões deste exílio são enormes, quer no
aprofundamento dos seus ideais liberais quer no direto
conhecimento das complexas movimentações estéticas e literárias
que, na Europa já então romântica, veem surgir algumas das suas
obras mais significativas. É imbuído deste espírito que Garrett
escreve os dois poemas narrativos geralmente considerados como
textos onde a estética romântica pela primeira vez
consistentemente se manifesta em Portugal: Camões, 1825, e
Dona Branca, 1826. Ambos são, aliás, publicados no estrangeiro,
como o tratado Da Educação, 1828, a sua primeira recolha
poética, Lírica de João Mínimo, 1829, e o poema Adozinda, 1828,
primeira recolha do romanceiro popular que posteriormente
aprofundará com o início da publicação do Romanceiro a partir de
1843. Em capítulo posterior falaremos de forma mais demorada do
poema Camões, pelas repercussões que tem para a constituição
de um imaginário histórico que elege a figura, a biografia e a obra
camoniana como lugar geométrico para a reflexão sobre a
complexa e afinal precária identidade de Portugal.
Estas obras revelam, apesar das naturais diferenças
provenientes da introdução dos procedimentos românticos na sua
produção literária, o conjunto de qualidades que viriam a ser
característica específica da produção garrettiana posterior. De
forma sintética, é possível dizer de Garrett que a sua obra dos
anos de formação manifesta um sentido inesgotável de curiosidade
intelectual e de experimentação literária que permanecerá como
seu traço distintivo. Repare-se, com efeito, na multiplicidade de
géneros e de objetivos literários que o conjunto da sua obra mais
juvenil atesta: a poesia lírica (Lírica de João Mínimo) reflete já a
posição da ironia romântica e da diluição entre realidade e
experiência literária que voltaremos a reencontrar em textos como
O Arco de Sant’Ana ou Viagens na Minha Terra (1846); os poemas
narrativos românticos (Camões e Dona Branca) oferecem a
qualidade de alguns dos traços tipicamente garrettianos, desde a
criação de uma mitologia pessoal (Camões) até ao uso do
substrato popular, na esteira de Herder; o ensaio pedagógico
(Tratado da Educação) revela um conjunto de preocupações
cívicas que não mais abandonarão o cidadão e o intelectual que
Garrett sempre fará questão de ser; finalmente, Adozinda surge,
em Portugal, como a primeira atestação escrita da poesia oral e
tradicional portuguesa, no que mais tarde virá a ser a compilação
garrettiana do Romanceiro (3 vols., 1843-51).
Em termos gerais, este período dá conta de um autor em
maturação e dinâmica aprendizagem dos procedimentos literários
e dos grandes objetivos estéticos por que pautará a sua ação, que
aliás nunca poderemos desligar da afirmação e da ação cívica. É
também por esta razão que este período de formação,
exemplarmente estudado por Ofélia Paiva Monteiro65, deve ser
contextualmente considerado como de especial importância para a
conformação da figura de Almeida Garrett como escritor romântico
e como figura-chave da afirmação da modernidade em Portugal.
Ora, e como analisaremos adiante, as escolhas realizadas por
Garrett decorrem de uma profunda e diversificada reflexão sobre a
identidade nacional e as suas raízes históricas, que ele valoriza, ao
modo romântico, nas próprias expressões populares.
É com o seu regresso definitivo do exílio, em 1836, depois da
vitória do liberalismo em Portugal, na sequência de uma
prolongada guerra civil em que desempenhou, como Alexandre
Herculano, um papel ativo, que Garrett encontrará as condições
necessárias para poder desenvolver e amplificar o seu labor
literário, intelectual e cívico.
Assim, a partir de meados da década de 1830, a sua ação de
intervenção cultural aprofunda-se e alarga-se, pautando-se sempre
pelos princípios que até aí o tinham norteado. É colaborador (e
mesmo redator principal, por vezes quase único) de uma série de
jornais e revistas, redige planos para o restabelecimento do teatro
nacional (o género dramático já desde bem cedo o interessara,
como tinha já demonstrado com as suas tragédias juvenis Catão e
Mérope), torna-se enfim na figura do polígrafo incansável e
participativo: Almeida Garrett será o dramaturgo cuja produção
literária se integra num projeto, já romântico, de criação de um
repertório nacional (Um Auto de Gil Vicente, 1838, Dona Filipa de
Vilhena, 1840, O Alfageme de Santarém, 1842, e sobretudo o seu
magnífico texto de maturidade que é Frei Luís de Sousa, 1844); o
poeta lírico que, de Flores sem Fruto, 1845, a Folhas Caídas,
1853, soube dar forma a todo um conjunto de temas, motivos,
ritmos e operações retóricas já manifestamente libertos da dicção
clássica em que tinha sido educado; o romancista, tentado pelas
duas grandes formas de expressão romanesca romântica, o
romance histórico (O Arco de Sant’Ana, 2 vols., 1845 e 1850) e o
romance contemporâneo, intimista e digressivo (Viagens na Minha
Terra, cujos primeiros capítulos foram publicados, sem o resumo
inicial que depois neles foi integrado, na Revista Universal
Lisbonense, em 1843); e, além disto, o jurista e o pedagogo, o
jornalista e o político, o compilador da tradição oral portuguesa e o
ensaísta. Garrett foi sem dúvida uma «instituição» indiscutível da
primeira metade do século  XIX em Portugal, nome pelo qual passa
tudo quanto de significativo e consequente na época foi tentado
dentro do panorama intelectual e literário português, mas também
do seu panorama histórico-político.
Sigamos agora, de forma um pouco mais pormenorizada, alguns
dos traços, significativos para uma reflexão sobre as íntimas
relações entre Literatura e História na obra deste escritor, que a
sua obra reúne, nos cerca de vinte anos que medeiam entre o seu
regresso a Portugal depois do exílio e a sua morte em 1854.
Devemos entretanto ter sempre no horizonte a prática polifacetada,
de intensa curiosidade e experimentação, que constitui o atributo
decisivo que Garrett oferece, desde logo, à formação de uma
literatura portuguesa realmente moderna.
Olhemos em primeiro lugar para a produção dramática, que
desde o período da sua formação atraiu, como vimos, Almeida
Garrett. Os seus primeiros textos, ainda norteados pela
experiência clássica, Catão e Mérope, já davam conta da
centralidade da res publica no pensamento e na obra garrettianos.
Mas é entre 1838 e 1843, num período pois muito curto, que
Garrett escreve e vê encenados três textos dramáticos em que
lança as bases de um repertório para a dramaturgia portuguesa
oitocentista. Um Auto de Gil Vicente (1838) e O Alfageme de
Santarém (1842) retomam a matéria portuguesa como inspiração
de base para a produção textual, funcionando ainda como lugares
de clara autorreflexão estética e programática, sobretudo com a
figura tutelar de Gil Vicente, que Garrett vai buscar de forma
paralela à que tinha feito com Camões. Em ambos os textos, o
cenário histórico serve como palco para uma indagação sobre a
identidade daquilo que seriam as raízes da literatura e da
nacionalidade portuguesas. O dramaturgo português do
Renascimento, Gil Vicente (Um Auto), e a crise política de 1383-5
(O Alfageme) dão conta das principais preocupações simbólicas,
políticas e estéticas de Garrett, que encontrarão, entretanto, no
drama Frei Luís de Sousa (1844) uma das formulações
literariamente mais conseguidas dentro de toda a produção
dramática portuguesa.
Este texto dramático, a que dedicaremos mais à frente uma
especial atenção, pela centralidade com que manifesta as relações
entre literatura, mito e história, representa um dos expoentes da
literatura romântica em Portugal, em particular do género
dramático. A Memória ao Conservatório Real, prefácio de particular
importância autorreflexiva, permite a Almeida Garrett expor de
forma especialmente certeira os princípios norteadores da sua
prática e do seu pensamento estéticos, num momento (meados da
década de 1840) em que se encontra no pleno exercício das suas
capacidades enquanto escritor e cidadão. Ambas as preocupações
se refletem nas suas obras maiores que são Frei Luís de Sousa,
no teatro, e Viagens na Minha Terra, no romance. É neste contexto
que o prefácio Memória deve ser lido: não como um conjunto de
reflexões pertinentes apenas para Frei Luís de Sousa, mas ainda
para a restante produção dramática de Garrett, para a história do
teatro em Portugal, bem como para a compreensão do conjunto da
obra garrettiana no quadro do Romantismo e do Liberalismo em
Portugal. Neste prefácio assume especial relevância a
caracterização que Garrett faz de Frei Luís de Sousa como um
texto que responde simultaneamente aos princípios da tragédia
clássica e do drama romântico, contribuindo assim para uma
reapreciação crítica da tradição dramática oitocentista.
O contributo deste texto para essa tradição será a todos os
títulos decisivo. Por um lado, é inegável a sua densidade histórica,
simultaneamente poética e simbólica, com a colocação da ação no
início do século  XVII, durante o período da dominação castelhana
em Portugal: trata-se aqui de encenar a presença de uma nação
que se representa como um espectro coletivo, na realidade
incapaz de se autoafirmar através de uma independência que seja
algo mais do que mero gesto político. Ao lado deste espectro
coletivo, encontramos vários outros, que representam também de
forma amadurecida a herança shakespeariana, a começar por
Camões, o Poeta dos poetas, que reaparece neste para uma
revisitação que é pessoal e também coletiva. Não apenas o seu
nome e a leitura de excertos da sua epopeia nacional, Os
Lusíadas, sintomaticamente iniciam a ação; mas também a sua
efígie na segunda parte do drama vai tutelar o adensar da intriga e
o seu desfecho, numa sala em que os outros dois retratos são de
outros (supostos) mortos, o rei D. Sebastião e o primeiro marido de
D. Madalena, D. João de Portugal, ambos desaparecidos em 1578
na Batalha de Alcácer Quibir. D. Sebastião e D. João
correspondem assim a outros dois fantasmas, cuja presença se
torna cada vez mais evidente no seu próprio carácter impalpável.
Assim, o inesperado (mas a todos os títulos inevitável) regresso de
D. João de Portugal, mais de vinte anos depois do seu
desaparecimento em África, explicita o que desde o início
augurava ser uma história de involuntário adultério e traição, cujas
consequências se farão sentir sobre todas as personagens:
Madalena e Manuel de Sousa Coutinho, os inocentes culpados de
tal adultério; sua filha Maria, que morrerá consumida por uma
tuberculose que é simultaneamente o fogo da sua «vergonha»; e
mesmo Telmo, o velho amo de D. João e de Maria, dividido entre
os direitos de ambos e a incompatível lealdade a ambos. Todas as
personagens comungam de uma mesma atmosfera na realidade
trágica em que a proximidade relativamente às regras aristotélicas
das três unidades apenas dá conta de que é a inocência culpada
que aqui ocupa o palco, numa ação que põe em jogo a dialética
entre acaso e necessidade, e que segue de perto o preceito de
fazer acontecer a tragédia apenas àqueles cuja elevação moral os
distingue do comum. Se o espírito trágico está, pois, fortemente
presente neste texto, o certo é que o seu peso histórico não é
menos decisivo, constituindo-se como um dos lugares-chave para
uma reflexão sobre a constituição (ou não) da nação portuguesa
sobre valores que são interrogados e já, aliás, objeto de profunda
suspeita.
Este tipo de interrogações históricas e políticas permite-nos
compreender os profundos laços existentes entre a produção
dramática de Garrett da década de 40 e a sua produção
romanesca, começando por O Arco de Sant’Ana (publicado em
dois volumes, em 1845 e 1850), e dando um lugar de especial
destaque, como se justifica, a Viagens na Minha Terra (1846).
Almeida Garrett deixaria ainda incompleto um outro romance, de
matéria exótica (passado no Brasil), intitulado Helena.
O Arco é um romance de matéria histórica, que regressa à Idade
Média para na realidade contar uma história cuja leitura
contemporânea não só é evidente como é aliás diretamente
apontada pelo próprio Garrett. Assim, o Porto medieval permite
encenar historicamente a tradição portuguesa de prepotências
políticas e autoritárias, a que Garrett vai contrapor a também
tradicional capacidade de revolta e organização popular.
Lembremos que o Porto tinha desempenhado um papel decisivo
nas lutas entre liberais e absolutistas, e que este romance tem
início através do recurso ao topos do manuscrito encontrado,
recuperando assim para a construção romanesca a
contemporaneidade cívica e política de que Garrett tinha sido ativo
participante. A história, situada no século  XIV, é assim uma história
também do século  XIX — é esta a leitura que Garrett dela propõe,
acentuando a reflexão sobre as formas de opressão e o direito à
revolta, de contornos tipicamente românticos.
A intriga desenrola-se à volta do rapto de uma donzela, vivendo
no Porto, pelo bispo daquela cidade, digno representante do
homem sem princípios criticado por Garrett. O aparecimento de
Vasco, o herói romântico capaz de se lhe opor sem quartel,
permite entretanto a Garrett introduzir uma dimensão familiar (e
potencialmente trágica) cuja pervivência na sua obra não é demais
acentuar: a luta entre Vasco e o bispo do Porto associa-se à
descoberta gradual de que este último é o pai do primeiro, em
declinação de uma situação de ilegitimidade familiar que uma parte
dos grandes textos garrettianos de alguma forma manifesta. A
família como núcleo histórico, de estabilidade mas também de
perturbação, encontra neste romance um novo exemplo
significativo. E sublinhe-se, em último lugar, a forma como este
romance dá ainda vazão à expressão de um profundo sentimento
religioso, combinado com um não menos intenso sentimento de
anticlericalismo, que Garrett combina com numerosos seus
contemporâneos, a começar por Alexandre Herculano.
Viagens na Minha Terra representa um marco na história do
romance em Portugal, não apenas por aquilo que sintetiza de
tradições e heranças, mas ainda pelo que abre de prática
romanesca e discursiva para o futuro. Trata-se de um romance de
ação contemporânea, que marca o advento da sociedade pós-
absolutista em Portugal, e que combina a intriga de ordem social,
política e amorosa com as vertentes intimista e digressiva. Tal
conciliação é conseguida através de uma composição estrutural
particular: num estrato mais englobante, encontramos o narrador
que, numa narrativa de 1.ª pessoa, (supostamente) faz o relato de
uma sua viagem de Lisboa a Santarém; no estrato mais interior, é
contada a história de Joaninha e suas relações amorosas com seu
primo Carlos, soldado liberal regressado ao Vale de Santarém da
sua infância depois de longo exílio, motivado pelas suas opções
liberais. Os dois níveis romanescos intersectam-se na medida em
que é o primeiro que de algum modo legitima e torna plausível a
inserção do segundo. Do cruzamento dos dois resulta uma
profunda reflexão sobre as esperanças e as desesperanças que o
interventivo Garrett, mal disfarçado em (aparentemente) anónimo
narrador, manifesta como suas e, afinal, como as de toda uma
geração cujo empenhamento se vê, afinal de contas, gorado. Não
é demais dizer que Viagens, em 1846, manifesta já o desengano
histórico que os principais nomes do Liberalismo vieram a sentir.
De novo, a História enganou a Nação.
Pode então dizer-se que o título, na sua formulação plural e
simbólica, sublinhada pelo próprio Garrett, quer significar este
percurso, já minado por um evidente desencanto, de um homem
que crê profundamente que o futuro apenas existe porque a «sua
terra» saberá continuar existente — mas ao mesmo tempo de um
homem que vê o seu presente ser ocupado por figuras
«usurariamente revolucionárias» e «revolucionariamente
usurárias» (como o barão), que tinha acreditado não serem mais
possíveis. As viagens são, como diz, ao mesmo tempo físicas e
simbólicas: porque o levam até Santarém, porque atravessam, por
meio de significativas elisões, a memória da história portuguesa,
desde a Idade Média até ao presente, porque permitem ao
narrador manifestar os seus diversíssimos conhecimentos,
interesses, leituras e em geral atitudes. Sabemos deste narrador
as suas opiniões, os seus juízos sobre a realidade histórica e
política portuguesa, sobre a sociedade moderna que estava em
plena construção, com os seus almejos e as suas fundas
contradições. Sobre as ideologias e a sua fundamentação, bem
como a possibilidade, sempre em aberto, de que degenerem na
prática social. Sobre literatura, desde os romances populares até
Camões, passando por obras e autores determinantes quer da
tradição clássica quer das literaturas europeias modernas. Sobre a
oposição romântica entre D. Quixote e Sancho Pança enquanto
emblemas das contradições do homem contemporâneo. Sobre o
amor e a amizade. Sobre os valores, caros à ideologia e estética
românticas, e em particular garrettianas, da liberdade e da
democracia. Sobre as profundezas e complexidades da psicologia
humana. Sobre arquitetura; sobre história… Viagens na Minha
Terra pode assim ser considerado como a expressão da
profundidade e da heterogeneidade de um sujeito que assume a
sua posição relativa num mundo que descobre, cada vez mais,
como permeável às (demasiadas) relatividades.
Neste sentido, a metáfora da viagem, que organiza a estrutura
romanesca desta obra, representa a verdadeira manifestação
formal do carácter fundador da narrativa e da imaginação histórica
que a governa: a partir dela se estabelece o carácter digressivo do
texto, considerado como o processo pelo qual é possível aceder à
verdadeira intimidade do sujeito. É por esta via, aliás, que é
possível defender que o projeto garrettiano passa também pela
defesa deste narrador como, no fundo, o verdadeiro herói do texto.
Num tempo em que os «poetas em anos de prosa» se veem
forçados a retirar as ilações necessárias do seu efetivo
desajustamento social, rendendo-se à prosa ou continuando a
defender a dimensão existencial da poesia, o narrador garrettiano
estabelece-se como herói também pela diferença que, nele,
poderemos ler face à especular renúncia que afeta o (suposto)
herói da novela da Menina dos Rouxinóis, Carlos. Nesse herói-
narrador convergem, então, empenhamento cívico e social,
profundidade e contradições psicológicas e sentimentais não
anuladas (como em Carlos), uma dimensão cognitiva múltipla e
diversificada, capacidade de valorização da herança cultural
heterogénea que é a sua e a da «sua terra». Digressão e
intimidade surgem, no contexto, como verdadeiros temas cuja
valência é, nesta obra, constantemente alvo de concretizações e
reformulações.
Mas a viagem psicológica, física, histórica e simbólico-cultural
encontra ainda uma outra dimensão, que poderia ser designada,
em metáfora de inspiração garrettiana, como uma «viagem
discursiva», figurada em primeiro lugar na importância e no
significado da instância dialogal. Efetivamente, todo o texto simula,
de modo consistente, um diálogo com o potencial leitor (e com a
potencial leitora), pelo qual pela primeira vez na prosa romanesca
portuguesa a linguagem literária incorpora, sustentadamente, uma
voluntária aproximação à linguagem quotidiana. Trata-se de um
diálogo efetivamente transcrito, com toda uma série de marcas
discursivas próprias da linguagem oral, como reticências, frases
suspensas, alteração da estrutura sintática, interrupções de um
dos interlocutores pelo outro, exclamações, monossílabos,
períodos elípticos. O texto das Viagens na Minha Terra mima uma
efetiva conversa pela qual o narrador reconhece a sua interação
com o leitor e simula um projeto de espontaneidade discursiva que
é entretanto tão consistentemente construído como qualquer outro.
Por outro lado, digressão e diálogo cruzam-se de forma
significativa, colocando no centro do interesse romanesco essa
figura multifacetada que é o próprio narrador do romance. É este
mesmo cruzamento entre as três componentes acima referidas
(diálogo, digressão e intimismo) que permite compreender a
profundidade ainda de uma quarta característica, a da ironia
garrettiana, profundamente vinculada à ironia romântica.
Retoricamente, a ironia manifestada por este narrador contamina
todos os estratos, todos os níveis de observação, todos os sujeitos
(até inclusivamente ele próprio…). Tal ironia dá conta, mais uma
vez, da permanente consciência de uma relatividade das posições
no mundo, relatividade essa para que a componente dialogal
aponta e que ela assume de forma claramente fundadora. Em
último lugar, este conjunto de elementos permite ainda sublinhar a
dimensão estética da linguagem garrettiana, cujo trabalho em torno
da ironia, do valor expressivo do adjetivo e do advérbio, dos efeitos
rítmicos, muitas vezes anafóricos, é visível ao longo de todo o
texto, levando a que possa ser considerado como o lugar fundador
de uma prosa literária resolutamente moderna.
O estrato mais interior do romance, constituído pela novela de
Carlos e Joaninha, localizada no Vale de Santarém, que o narrador
contemplara a partir do estrato mais englobante, relaciona-se
estruturalmente com o primeiro pelo processo da alternância, que
leva a que as relações entre ambos sejam sempre equacionadas
como significativas. Trata-se de um «romance familiar» de linhas
condensadas, que repousa sobre três questões principais,
centrando-se em torno da figura de Carlos, o «herói possível»: por
um lado, o passado misterioso que funda a culpa familiar —
elemento temático cujas ressonâncias românticas não devem
deixar de ser reconhecidas, e que liga Viagens a textos como O
Arco e sobretudo Frei Luís de Sousa; por outro lado, a
complexidade sentimental, unilateral e por isso redutoramente
resolvida; finalmente, a traição histórica e ideológica que
acompanha a anterior resolução.
Vejamos brevemente quais os contornos que estas três questões
assumem. A intuição (confirmada) de que algo há, no passado
familiar (e por isso histórico), que funda uma culpa encoberta, mas
nem por isso menos existente, está na raiz das observações
retrospetivas que percorrem todo o texto da novela, quer por meio
de relatos, sobretudo contidos na longa carta de Carlos a
Joaninha, quer por meio de alusões e insinuações, principalmente
na fase inicial da novela, e centradas em torno das figuras
diferentemente crípticas da avó cega e do misterioso e fatídico Frei
Dinis.
O clima criado repousa, então, na consciência de um peso
familiar e histórico que, vindo do passado, se projeta sobre o
presente, ensombrando-o de modo que mostrará ser irremível. Tal
culpa marca a família e as personagens que a constituem. São os
aparentemente inocentes Carlos e Joaninha que refletirão o modo
como o sujeito não tem maneira de se desligar daquilo que são as
suas raízes históricas: Joaninha, declinando o paradigma da
«mulher-anjo», morrerá em remissão da culpa que não tem; Carlos
viverá com ela, embora mascarando-a através da sua redução ao
materialismo social tão duramente criticado pelo narrador,
tornando-se barão e deputado.
A segunda questão prende-se com a complexidade sentimental,
vivida como paradoxo insustentável por Carlos, e que ele
lucidamente analisa na sua carta autobiográfica, dirigida a
Joaninha. Através dela acedemos a um relato de carácter
retrospetivo, que descreve uma transformação psicológica e
sentimental no «quase herói» que Carlos é: a forma como passa
de um amor inocente, protagonizado pela sua relação com
Joaninha, para um estado contraditório que combina a sua atração
(designada como «flirt») pelas três irmãs inglesas, com quem
convive no exílio, com o centramento em torno da mais nova,
Georgina, que o seguirá até Portugal. A análise de Carlos, mesmo
se lúcida, não lhe permite no entanto viver em consequência. A
sua opção vivencial dá conta de uma queda, a verdadeira queda
para o narrador: a da negação dessa complexidade e a sua
resolução aparente através do uso de uma máscara social que
aparentemente rasure o problema. Este percurso sentimental
repete o percurso ideológico, e Carlos surge também como a figura
em torno da qual se manifestam as contradições históricas do ideal
liberal. Das esperanças incorporadas ao estatuto do soldado
liberal, que arrisca a vida em defesa dos ideais da liberdade que
lhe são caros, Carlos não conservará senão a aparência formal,
visível pelo pacto que constitui o ter-se tornado barão e deputado
(num texto que tantos esforços fez, na sua parte inicial, para
esclarecer o significado desprezivo dessas duas figuras na
sociedade contemporânea). Isto significa, mais uma vez, que as
esperanças legítimas se transformaram em desesperanças reais.
Digamos que ficam patentes as contradições políticas que a
história do pós-liberalismo sustentou para o futuro, no advento da
República e mesmo depois dela.
Viagens na Minha Terra deve, assim, ser considerado como um
texto de viragem e fundação na moderna literatura portuguesa:
pela densidade temática, semântica e estrutural; pela magnífica
síntese que realiza do melhor da tradição literária portuguesa mas
também europeia; pela manifestação dos valores ideológicos cuja
consideração será central para as movimentações estéticas e
literárias dos séculos  XIX  e  XX; por uma linguagem que combina
ductilidade, rigor, ironia, densidade retórica e aparente
espontaneidade coloquial. E, de tudo o que acima ficou dito, é
evidente que o seu poder de conformação histórica lhe permite
situar-se como um dos marcos da nossa produção romanesca
oitocentista: nele, o indivíduo pós-Revolução Francesa é
confrontado com as suas contradições amorosas e políticas, que
começam a tornar-se insolúveis; as opções ideológicas e políticas
abrem lugar a conflitos cuja solução manifesta uma sociedade em
que a movimentação social ameaça a sua anterior estabilidade; o
quadro sócio-histórico e político é incorporado como elemento
central da ação e interfere, de forma decisiva, na história dos
indivíduos. Na realidade, podemos dizer que nenhum dos
elementos da família, em torno de quem a intriga se concentra, fica
imune aos ventos da História. E, por outro lado, estes são vividos e
tematizados de modo paradigmático pela figura do narrador, esse
que fala de protagonistas históricos, conhece os marcos da
revolução e do exílio, lutou em diferentes batalhas, desempenhou
importantes papéis no quadro da sua ação intelectual e política e
se interessa, afinal, por tudo quanto constitui a vida histórica da
sua cidade.
Não é possível deixar de reconhecer uma semelhante maturação
discursiva na lírica garrettiana, desde a compilação juvenil da
Lírica de João Mínimo (1829) a Flores sem Fruto (1845) e Folhas
Caídas (1853). No primeiro destes três títulos, ao lado dos moldes
ainda arcádicos surge já uma leveza irónica que, tornando-se
visível desde logo nas palavras prévias, dá conta de uma matriz
moderna capaz de relativizar a educação neoclássica do jovem
Garrett. Encontramos também uma dicção anunciando já os
moldes conversacionais que dão conta, na poesia lírica
portuguesa, da progressiva incorporação do discurso quotidiano,
nas suas diversas vertentes, à dicção poética, em movimento que
virá a consubstanciar-se, vinte anos depois da morte de Garrett,
nesse poeta ímpar da poesia portuguesa que é Cesário Verde e,
na esteira dele, em Fernando Pessoa. A experiência lírica de
Flores sem Fruto manifesta o sentido desta maturação garrettiana:
uma poesia lírica fortemente ancorada na experiência sentimental
do poeta, dentro da qual a experiência amorosa, nos seus
variadíssimos cambiantes, ocupa lugar de destaque. De uma
poesia cuja herança setecentista ainda era visível num certo gosto
pelo descritivismo, bem como numa dicção mantendo alguns dos
traços discursivos neoclássicos, passa-se em Flores sem Fruto
para o privilégio concedido a uma teoria expressivista, bem ao
gosto romântico, ocupada em analisar não apenas situações
sentimentais mas, e talvez sobretudo, as contradições e mesmo os
paradoxos emotivos do poeta. Como diz Garrett na advertência (e
seria possível estabelecer aqui um nexo com idêntico tópico de
Viagens), estas «flores sem fruto» são a experiência pessoal de
alguém que a si mesmo se vê desadequado a um tempo onde se
plantam apenas «beterrabas». A  «conversa» (dialogante ou
monologante) estabelecida entre o poeta e, preferencialmente, a
mulher amada ocupa lugar central nesta coletânea, anunciando a
sua obra de maturidade lírica, Folhas Caídas, em composições
como por exemplo «Tronco Despido», «Solidão» (poema em prosa
de expressa filiação romântica), «Suspiro d’Alma» ou «Olhos
Negros», em que a recuperação da tradição da poesia popular,
nomeadamente através do uso do verso típico da redondilha,
transporta ainda a memória camoniana que sempre acompanhou
Garrett.
Mas é Folhas Caídas que melhor vai deixar transparecer o
amadurecimento garrettiano também no quadro do lirismo, em
compilação onde o poeta se liberta de qualquer tipo de espartilho
de escola para abraçar um discurso fluido, sabiamente criando a
ilusão da espontaneidade e da coloquialidade. O  grande tema
continua a ser o da paixão amorosa, vazada num discurso que
conjuga diversíssimas fontes de inspiração temáticas, métricas e
rimáticas, rítmicas e simbólicas. A dimensão erótica e passional é
plenamente assumida através da manifestação de um sujeito
atravessado por contradições e desejos paradoxais, no corpo
como na mente, e cuja sintonia com a Natureza circundante
retoma, da experiência romântica da paisagem, aspetos
fundamentais para caracterizar a paixão. Alguns dos poemas que
podem ser referidos como particularmente conseguidos são
«Cascais», «Estes Sítios», «Não Te Amo», «Barca Bela» e «Os
Cinco Sentidos». Em todos eles se pressente a forma como o
verso garrettiano encontrou enfim a conjunção perfeita entre saber
técnico, educação histórica e descoberta de uma dicção pessoal,
aparentemente frágil e espontânea, em que a herança da poesia
popular é de facto decisiva. Para este último aspeto contribuiu,
naturalmente, o intenso labor de recolha e publicação do
Romanceiro, atividade em que, como vimos, Garrett foi pioneiro
dentro do espaço português.
Cabe ainda focar a atividade de Almeida Garrett enquanto
intelectual e político, de argutas intervenções e decisões culturais e
literárias. Juntamente com Alexandre Herculano, seu companheiro
de lutas ideológicas e estéticas, Garrett atingiu um estatuto de
alcance simbólico enquanto ativista empenhado e convicto:
relembre-se o seu papel como lutador liberal durante e após a
Guerra Civil; as suas extraordinárias capacidades como orador
político; a sua conseguida educação literária em literaturas
clássicas e modernas; o seu estatuto moral e social. Se a tudo isto
acrescentarmos a sua constante e intensa produção literária como
romancista, poeta, dramaturgo, ensaísta, crítico, político,
colaborador de diversos periódicos, fundador e diretor de vários,
tornar-se-á evidente que Garrett desempenha na vida intelectual
portuguesa da primeira metade de Oitocentos o papel decisivo do
escritor romântico: um verdadeiro intelectual, cuja obra literária
articula a qualidade e variação estética com o poder de
intervenção cívica.
Com efeito, Garrett interveio em várias polémicas literário-
judiciais; ou demarcou-se com veemência de posições e críticas
que considerou injustas e mesquinhas, como nos prefácios de
Arco de Sant’Ana ou Viagens na Minha Terra. A sua atividade
passou ainda pela legislação sobre as bases e o lançamento de
uma renovação da escrita dramática e das artes performativas, em
particular do teatro, em Portugal; pela reflexão sobre as condições
político-sociais portuguesas no quadro europeu mais vasto, com
Portugal na Balança da Europa (1830); e mesmo pela retoma e
atualização dos tradicionais tratados de educação de príncipes,
com Da Educação (1829). Finalmente, a sua ação como deputado,
orador e até ministro permite entender a intervenção pragmática de
Garrett como mais uma face de um projeto afinal enciclopédico,
praticado todavia já ao modo romântico, ou seja, praticado a partir
de uma conceção pessoalizante que não exclui a consciência de
uma ação solidária.
Justifica-se assim, no contexto, dar conta daquilo que podemos
considerar como alguns dos núcleos fundamentais de interesse da
obra garrettiana, transversais relativamente aos géneros e aos
períodos em que o seu autor os utilizou e desenvolveu. Podemos
assim brevemente caracterizar sete dos núcleos principais do que
consideramos ser a «enciclopédia garrettiana», sublinhando desde
já a forma como cada um desses núcleos reflete e pratica a
densidade da matéria histórica no interior da obra deste autor:
1. A enciclopédia clássica, desde as raízes materialistas que
pontuam O Retrato de Vénus (1821) e que o fazem ser alvo de
ferozes ataques, como o protagonizado por José Agostinho de
Macedo, até ao peso quantitativo e qualitativo das numerosas
referências, legíveis na poesia e na narrativa, passando pela
memória clássica ativada para efeitos de memória estética, sem
dúvida, mas também de pragmática ética — com os casos por
exemplo de Lucrécia, Catão e Mérope, na sequência de Alfieri,
Addison e Voltaire.
2. A enciclopédia descritivista e em particular exótica, de raízes
próximas em Bernardin de Saint-Pierre e Chateaubriand, captável
no espaço brasileiro do romance póstumo incompleto Helena —
mas que, como lembra Ofélia Paiva Monteiro66, despertara já, em
meados da década de 1820, o interesse literário de Garrett, tendo-
o mesmo levado à composição do «fragmento romanesco»
intitulado Komurahy, História Brasileira. Esta enciclopédia
descritivista, tributária da poesia de Setecentos, nomeadamente
nas suas espécies descritiva e topográfica, acompanha Garrett ao
longo da sua obra, de D. Branca, até Helena, fixando-se de modo
paradigmático em Viagens na Minha Terra.
3. A enciclopédia da história de Portugal: D. Branca e o passado
de raízes árabes peninsulares; Camões e o paradigma poético da
nacionalidade política e literária portuguesa; Frei Luís de Sousa e o
emblema do período trágico da perda da nação; Um Auto de Gil
Vicente e o encontro das raízes populares da verdadeira literatura
nacional; e, associados a estes, textos como Filipa de Vilhena ou
os fragmentos do poema Magriço, ou os 12 de Inglaterra, em que a
revisitação da história de Portugal é feita de forma consistente,
acompanhando as inúmeras referências e alusões a várias épocas
e diversos tempos da memória histórica nacional.
4. A enciclopédia histórico-literária e estética que lhe permite,
logo desde 1820, ir propondo uma visão particular da história
literária portuguesa, por um lado com o Bosquejo da História da
Poesia e Língua Portuguesa, completado em 1828 por essa
particular história da poesia portuguesa que é a carta a Duarte
Lessa, que serviu de prefácio à publicação londrina de Adozinda.
Temos, por outro lado, a revisitação de alguns dos nomes
fundadores da literatura nacional, como Camões, Gil Vicente e Sá
de Miranda. Refira-se ainda a História Filosófica do Teatro
Português, esboço de ensaio histórico-literário publicado em 1997
por José Oliveira Barata67, que apresenta já, cerca de 1822, os
principais esteios da reflexão garrettiana sobre o teatro, mais tarde
expendida na introdução ao Auto de Gil Vicente e na Memória ao
Conservatório Real. E recorde-se também a polémica história da
pintura que constitui O Retrato de Vénus, cujas relações com a
poesia didática, descritiva e ecfrástica do século  XVIII são
sobremaneira evidentes.
5. A enciclopédia da cultural oral e popular, tornada manifesta em
primeiro lugar com a publicação de Adozinda, continuada e
alargada com a publicação do Romanceiro, variamente existente
em diversas obras, como nas trovas a Santa Iria, das Viagens na
Minha Terra, e servindo como molde lírico em cuja inspiração se
vaza muito do discurso lírico de Garrett, já em Flores sem Fruto e,
em particular, nas Folhas Caídas.
6. A enciclopédia poética, que o faz atravessar e mesmo reunir,
em sistemático hibridismo, vários géneros — da tragédia ao
drama, do ensaio à narrativa, da forma poética fixa à quadra de
recorte popular, da inspiração clássica à prática especificamente
moderna. Refira-se neste âmbito o interessante esboço de
romance picaresco Memórias de João Coradinho, iniciado em
1825 e cujos fragmentos foram publicados por Gomes de
Amorim68, onde é possível detetar, ao lado da coloquialidade e do
humor característicos da dicção garrettiana, uma reflexão por
vezes desenganada sobre a realidade contemporânea portuguesa,
que anuncia obras maiores como as Viagens.
7. Finalmente, a enciclopédia monumental e histórica, geral mas
também em particular nacional, que liga a Lírica de João Mínimo,
com as reflexões nela expendidas em torno do convento de
Odivelas e do túmulo de D. Dinis, ou a memória da Sé Velha de
Coimbra, a obras posteriores como a emblemática Viagens, com o
«livro de pedra» que é Santarém, o convento de S. Francisco e o
túmulo, também profanado, de D. Fernando.
A figura e a ação de Almeida Garrett moldam assim,
decisivamente, não apenas o Romantismo português, nem apenas
a primeira metade do século  XIX. Elas são elemento central na
conformação da modernidade literária portuguesa, pelas
aquisições discursivas e retóricas sistematizadas; pela descoberta
de um sujeito aberto a contradições que são já, em certa medida,
insanáveis; pelo estatuto de intelectual, espírito aberto a uma
pluralidade de contributos literários mas também a uma presença
cívica e política sempre interventiva. O que ele trouxe à história da
literatura portuguesa extravasa do muito que ele fez, para se tornar
evidente no muito que foi buscar ao passado e no muito que
permitiu ao que depois de si foi escrito.
Não será assim de estranhar que, no quadro da obra de Garrett,
nos detenhamos em particular sobre dois textos que têm com a
História uma particular imbricação. Não tanto o mais imediato do
romance histórico O Arco de Sant’Ana, sobre que as observações
já feitas dão conta de uma retoma e revisão da narrativa histórica,
mas os dois textos em que Garrett a nosso ver melhor mergulha na
densidade de uma reconstituição histórica que se torna reescrita
literária da História ela mesma. Referimo-nos ao poema narrativo
Camões, que consideraremos no capítulo referente à épica e às
suas reescritas; e ao magnífico e assombrado texto de Frei Luís de
Sousa, em que as dimensões cívica e política, histórica, mítica e
simbólica se reúnem para nos dar aquilo que continua a ser, sem
qualquer dúvida, um dos momentos mais altos da produção
dramática portuguesa, sobre um dos mais complexos períodos da
história de Portugal, a dinastia filipina.
Debrucemo-nos, pois, sobre Frei Luís de Sousa, propondo-o
como um texto literário em que de forma singular a História se
reflete, em assombrações do passado que refletem as
contradições do presente. É que, nesta obra, os corpos privados
dos indivíduos tornam-se as metáforas corpóreas de um
implicação pública na vida da polis, e dão por isso conta de uma
imaginação histórica que vai muito além da recuperação de figuras
ou factos do passado. Podemos de algum modo dizer que a
História é neste texto dramático de Garrett não apenas o núcleo do
conteúdo da ação que nele se desenrola, mas a própria forma que
ele recebe. Esta é a questão que a tragédia Frei Luís de Sousa
encena no primeiro plano da sua ação: o mundo inteiro ocupado
por sujeitos cujos corpos subitamente deixam de ter existência e
substância histórica, por loucura, morte, existência «ilegal», ou
retirada para o convento. A dimensão espectral destes corpos
assume um efeito visual metaforicamente denso, de forma a
encenar o momento em que é a própria nação que ameaça
transformar-se num outro espectro — momento em que a
cidadania se encontra suspensa e é relegada para o território do
inexistente. É este sentimento, identificado por Eduardo Lourenço
como sendo de «fragilidade ôntica», que é revelado no elemento
trágico do texto garrettiano. O autor tinha já, como vimos, recorrido
ao passado nacional para representar teatralmente o presente.
Mas não tinha até então totalmente explorado as possibilidades
trágicas de uma história em que o passado histórico-político da
cidade vem implicar o presente, quer pessoal quer socialmente,
levando até ao limite a reflexão sobre a natureza ética da polis e
dos seus cidadãos.
Voltemos a recordar que quer Alexandre Herculano quer Almeida
Garrett não apenas eram dois convictos liberais, do ponto de vista
político, mas ainda que ambos participaram ativamente nas lutas
militares e políticas que o seu empenhamento cívico e ideológico
lhes fez escolher. Ambos passaram uma parte significativa da vida
em exílio e foram pois exemplos de como a cidade pode de facto
expulsar de si os poetas, como Platão descreveu na República, em
virtude de opções ideológicas que eles nunca separaram
totalmente da sua ação literária. Ambos associaram escolhas
pessoais e políticas e escolhas éticas e históricas. Quer Herculano,
quer Garrett regressaram a Portugal após a vitória liberal sobre o
absolutismo (1834) e envolveram-se de formas diversas mas nem
por isso menos empenhadas e sérias, no que consideraram a re-
fundação de um «novo» país e, nele, de uma «nova» forma de
cidadania. Para ambos os escritores, os resultados da sua
atividade literária eram, simultaneamente, uma «defesa da poesia»
(como Shelley descrevera) e uma «defesa da cidade». Literatura e
História.
No caso de Garrett, e para que possamos compreender o
alcance da imersão histórica de Frei Luís de Sousa, é necessário
tomar consciência da desilusão crescente do autor relativamente à
viabilidade de um tal projeto de cidadania. Este facto significa
também que ele foi sentindo que a sua vida pessoal se tornara
gradualmente isolada de uma imersão utópica na vida da cidade, o
que se vem a refletir na descrença manifestada relativamente à
vitalidade do futuro histórico da nação. Alexandre Herculano, ele,
responderá a semelhante desilusão através da completa renúncia
aos assuntos da cidade, e ao seu voluntário retiro em Vale de
Lobos. Quanto a Garrett, a sua resposta tomará sobretudo
diferentes formas literárias, com momentos culminantes nas
reflexões empreendidas quer no romance Viagens na Minha Terra
quer na sua tragédia dramática (chamemos-lhe assim, de
momento) Frei Luís de Sousa. Em ambos os textos, o escritor
romântico parte da sua implicação nos assuntos da sua polis, visto
que a sua autoperceção enquanto sujeito ético provém da
consciência que de si tem como parte integrante da sua cidade, ao
ponto de poder conceber-se como voz mais límpida da sua nação.
O  problema, todavia, reside no facto de que esta comunidade se
manifestará paradoxalmente distante das virtudes quer éticas quer
estéticas que o poeta tinha pensado poder representar e transmitir.
É pois, em última análise, com este gradual esvaziamento ético e
histórico que o poeta se confronta, levando-o a uma progressiva
descrença na sua capacidade de se apresentar como mentor dos
seus concidadãos (paradoxalmente no quadro de uma monarquia
constitucional).
No contexto da obra garrettiana, o teatro desempenha um papel
central neste complexo de questões, pois nele a cidade pode ser
representada, no sentido mais amplo do termo, e as suas opções
históricas podem tornar-se matéria encenada. É neste sentido que
podemos entender os corpos privados dos indivíduos, em Frei Luís
de Sousa, como metáforas corpóreas da implicação pública na
vida da cidade. As vidas pessoais ecoam os compromissos
ideológicos e éticos que um cidadão justo devia poder assumir,
como acontece com a personagem Manuel de Sousa Coutinho, e
os cenários que esta tragédia apresenta manifestam um elo íntimo
entre corpos privados, com os seus problemas pessoais e
individuais, e os atores públicos envolvidos nos assuntos da
nação. É esta precisamente a tragédia que Frei Luís de Sousa
encena: um mundo inteiramente ocupado por sujeitos com corpos
historicamente precários, numa cena também ela historicamente
perturbada. A  dimensão espectral atrás referida, que poderíamos
facilmente relacionar com a herança shakespeariana de Hamlet69 e
com as poderosas implicações histórico-políticas que ela arrasta,
torna-se visualmente densa, de forma a encenar o momento em
que a nação ameaça também ela tornar-se um espectro histórico,
o momento em que a existência comunitária é potencialmente
suprimida e relegada para o território do inexistente.
Na peça, tudo isto é transmitido através de uma qualidade que
deve ser enfatizada desde o início: o carácter escasso de
episódios, corpos e mesmo acontecimentos encenados. O único
acontecimento efetivo, envolvendo algum tipo de ação, em sentido
próprio da palavra, é a revolta pessoal de Manuel de Sousa
Coutinho contra o poder castelhano, e a subsequente decisão que
toma de incendiar o seu palácio em Lisboa de modo a impedir que
os castelhanos usurpadores nele se instalem. Esta escolha
honrada, numa tão complexa e perturbada situação histórica como
a do período posterior à perda da independência portuguesa a
favor de Castela (1580), leva-o a ter de acolher-se, bem como à
sua família, ao palácio (e ao local simbólico) de D. João de
Portugal, primeiro marido de sua mulher, supostamente
desaparecido na Batalha de Alcácer Quibir, em 1578, com D.
Sebastião e uma parte significativa da aristocracia portuguesa. A
ida de Manuel de Sousa Coutinho, de sua mulher, D. Madalena, da
filha de ambos, Maria, e de Telmo (amo quer de D. João de
Portugal quer de Maria) para o palácio em Almada, que acontece
na passagem do Primeiro Ato para o Segundo, imediatamente
coloca a ação sob a alçada de três espectros: o próprio D. João; D.
Sebastião, o rei desaparecido; e Camões, o poeta da nação. Os
três estão «presentes» sob a forma de retratos que velam sobre a
ação na sala em que os acontecimentos principais se desenrolam.
A eles responderá, mais tarde, o surgimento de um misterioso
peregrino, supostamente trazendo notícias de África. Este
peregrino, que virá a revelar-se ser o primeiro marido de D.
Madalena, sem que tal identificação seja formalmente requerida
por ele, nem acompanhada da atribuição de um nome, implicará a
impossibilidade não apenas da família e dos seus elementos
individuais, mas também da cidade ética a que as personagens,
todas elas verdadeiros patriotas, simbolicamente pertencem.
Ao considerarmos quais os corpos que, neste texto, poderiam
ser vistos como verdadeiramente materiais e reais, e qual o lugar
em que tal materialidade poderia residir, vimos enfim a
compreender que, mais cedo ou mais tarde, todos se revelam na
sua natureza espectral, encenando a sua vida e morte. Na
verdade, a única personagem «terrena» é ironicamente a de um
frade, Frei Jorge: é ele o único dotado de um corpo material capaz
de sobreviver às turbulências históricas que agitam e destroem
todos os outros. A paradigmática adolescente Maria, com o seu
corpo doente e perturbado, hesitando entre puberdade e morte, é a
este respeito uma figura exemplar. A consciência de cidadania que
ela encarna, no seu fervor radical, torna-se impossível no momento
em que a nação se torna também ela impossível. A  cidadania
revela-se como o lugar social do corpo, lugar em que a
personagem tem a capacidade de aprender o jogo das relações
interpessoais e das suas consequências políticas. Esta
consciência comunitária é em Frei Luís de Sousa sustentada por
uma ética imanente que rege o corpo inteiro das dramatis
personae e que tem consequências decisivas para a totalidade do
texto. Eduardo Lourenço foi dos que melhor compreendeu o radical
significado desta qualidade:

Interpretou-se (à superfície) o Frei Luís de Sousa em termos


de puro melodrama psicológico, de pura contextura romântica
— o que também é, naturalmente — mas o autêntico trágico
que nele existe é de natureza histórico-política, ou, se se
prefere, simbólico-patriótica. É ao passado e no passado —
mas por causa do presente, como Herculano — que o cidadão,
o autor, o combatente liberal e patriota Almeida Garrett dirige a
interrogação, ao mesmo tempo pessoal e transpessoal: que
ser é o meu, se a pátria a que pertenço não está segura de
possuir o seu?70

É este sentimento, que acima referimos ser o que Lourenço


classifica como de «fragilidade ôntica», que se revela no elemento
trágico do texto garrettiano. Como vimos, Garrett já antes tinha
usado o passado nacional para reencenar teatralmente o presente
(O Alfageme de Santarém, 1842, Um Auto de Gil Vicente, 1838),
mas nunca até aqui tinha totalmente explorado as possibilidades
trágicas de uma história em que o passado político da cidade (da
nação) vem a representar as relações pessoais e as suas
implicações comunitárias e históricas, interrogando até ao seu
limite a natureza ética da polis e dos seus cidadãos.
Por outro lado, no seu conjunto, Frei Luís de Sousa permanece
uma fábula familiar, na melhor tradição da própria tragédia grega:
uma fábula familiar em que política e os assuntos da nação são
representados de forma comprimida e intensa. Neste texto, não
existe qualquer personagem moralmente baixa, como o próprio
Garrett refere no seu importante prefácio, «Memória ao
Conservatório Real»:

Nem amores nem aventuras, nem paixões nem caracteres


violentos de nenhum género. Com uma acção que se passa
entre pai, mãe e filha, um frade, um escudeiro velho, e um
peregrino que apenas entra em duas ou três cenas — tudo
gente honesta e temente a Deus — sem um mau para
contraste, sem um tirano que se mate ou mate alguém, pelo
menos no último acto, como eram as tragédias dantes — sem
uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de
incestos, tripudiada ao som das blasfémias e das maldições,
como hoje se quer fazer o drama — eu quis ver se era possível
excitar fortemente o terror e a piedade — ao cadáver das
nossas plateias, gastas e caquéticas pelo uso contínuo de
estimulantes violentos, galvanizá-lo com sós estes dois metais
de lei.71 (p. 64)

Em Frei Luís de Sousa, ninguém é culpado e, entretanto, todos


carregam o peso da culpa: a culpa de ser historicamente ineficaz.
Não deve pois surpreender que tanto o Romeiro (o fantasma vivo
de D. João) como Maria (que vê o seu estatuto ilegítimo
confirmado) partilhem a mesma consciência de que basta estar
vivo para ser culpado. E os verdadeiros traidores não têm, por
isso, nem voz nem lugar neste texto, devido à sua matriz trágica.
Manuel de Sousa é o verdadeiro patriota, honrado ao ponto da
desgraça. D. Madalena contraiu o segundo casamento de acordo
com a lei, depois de o seu primeiro marido ter sido declarado
legalmente morto. Maria nunca pediu para nascer, para depois
«morrer de vergonha». O Romeiro lutou pelo seu país, apenas
para descobrir, ao regressar, que perdeu o direito a ter um nome e
uma identidade. Telmo descobre que a lealdade, que ele tinha
julgado ser qualidade absoluta, conhece formas complexas e até
contraditórias, ao compreender que o que antes o ligara a D. João
tinha sido substituído pelo que o ligava a Maria.
O problema, no entanto, é o seguinte: como é possível refletir
sobre o presente e o futuro históricos através de um género que
parece não apenas ecoar o próprio passado, mas colocá-lo como o
seu enquadramento estético e político? Barata considera, com
razão, que esta é uma das questões centrais em Frei Luís de
Sousa:

O Frei Luís de Sousa surge no panorama dramático


português, e no quadro estrito da produção garrettiana, como
um projecto desfasado, fora de qualquer sintonia com a
realidade literária predominante. Com efeito, num momento em
que tudo indicava assistir-se ao triunfo de um certo drama
romântico, Garrett escreve uma tragédia.72 (p. 149)

Do ponto de vista que aqui subscrevemos, é preciso


compreender a aparente anacronia do projeto trágico nesta obra
de Garrett, se queremos compreender que é nela que reside a sua
complexa historicidade. Com certeza que se trata de representar
um momento histórico simbolicamente grave, de interrupção da
independência nacional. Com certeza que isso é feito num
momento também (meados do século  XIX) em que a entrada de
Portugal no mundo contemporâneo se fazia com dificuldades e
inúmeras contradições. Mas, além de tudo isto, nesta tragédia é a
própria forma da tragédia que manifesta o modo como uma das
formas de ser histórico é viver fora de tempo, como estas
personagens vivem (e como, de algum modo, o Garrett da década
de 1840 começa a acreditar viver).
A interrogação da História faz-se, assim, não apenas pela
capacidade de declinar as memórias que ela permite manter, mas
ainda por tornar visíveis as contradições e os anacronismos que
também a constituem. A gravidade trágica pretendida por Garrett
serve-lhe para refletir sobre o que já na altura lhe surgia como o
declínio dos valores éticos, morais e políticos da nação. Deste
ponto de vista, o carácter anacrónico (e mesmo ultrapassado) da
tragédia, em tempos de drama romântico, é, e como bem viu
Nietzsche nas suas Meditações Intempestivas (Unzeitgemässe
Betrachtungen, 1873-1876), uma das condições paradoxais da
modernidade. Fernando Pessoa, ao criar em Ricardo Reis o mais
clássico dos nossos poetas clássicos, não faz outra coisa: vai a
contra-pêlo da História, e por isso produz uma História ainda mais
espessa do que a que parece surgir sem problemas.
Deste ponto de vista, poderíamos considerar Frei Luís de Sousa
como um exemplo daquilo a que Edward Said73 chamou o «estilo
tardio» (late style), uma forma de escrita particularmente pungente,
surgindo usualmente na parte final da vida criativa. Por ela, diz
Said, o escritor não atinge uma visão global da obra e da vida
capaz de se exprimir pela «harmonia e resolução», mas pelo
contrário manifesta «instransigência, dificuldade e contradição
irresolvida» (p. 7). Ao lermos o texto dramático de Garrett, bem
como o já mencionado prefácio «Memória ao Conservatório Real»,
parece óbvia a forma como eles enfatizam a «contradição
irresolvida» e não a «harmonia» ou unidade, e como falam das
«dificuldades» daquilo a que Garrett chama a «tragédia nova»,
numa altura em que aparentemente respostas mais simples
existiam. Ao optar pela dificuldade e pela contradição históricas
como enquadramento desta sua peça final, Almeida Garrett estava
já a corresponder ao «estilo tardio» de Said:

Late style is in, but oddly apart from the present. Only certain
artists and thinkers care enough about their métier to believe
that it too ages and must face death with failing senses and
memory. As Adorno said about Beethoven, late style does not
admit the definitive cadences of death; instead, death appears
in a refracted mode, as irony. But with the kind of opulent,
fractured, and somehow inconsistent solemnity of a work such
as the Missa Solemnis, or in Adorno’s own essays, the irony is
how often lateness as theme and as style keeps reminding us
of death. (p. 24)

Frei Luís de Sousa deve ser considerada uma das manifestações


mais complexas e ricas da imaginação histórica do nosso
Romantismo. Neste texto, uma teoria da nação enquanto polis e
lugar de cidadania é interrogada e problematizada, para que as
respostas possíveis demonstrem de que forma decisiva a História
é o lugar, não de pacificações e verdades consabidas, mas de
lutas e verdades cuja construção é difícil e provisória.
Neste texto, que inaugura a última fase da produção garrettiana,
e que apenas cerca de vinte anos separam do início formal da
carreira do escritor, inscreve-se por outro lado um conjunto de
diferenças simbólicas que podemos exemplificar com a sua
justaposição à obra Camões, de 1825.
O tempo histórico que medeia entre os dois textos corresponde a
uma fase de intensa vida política pessoal, de Garrett, e social, de
Portugal. É um tempo de profundas alterações na consciência
comunitária que exprime as dissensões entre o Portugal do Antigo
Regime e o Portugal que se queria «novo» (como a «tragédia
nova»). Essas alterações, de facto irresolvidas (ao tempo de
Garrett como no futuro), exprimem uma forma de perceber a
História como algo mais do que uma mera herança e uma mera
representação: a História pode também ser o lugar onde se agitam
fantasmas que nos fazem compreender que não é impunemente
que escrevemos e construímos uma história de Portugal com
vários séculos. O  Romantismo é o momento em que as
contradições do passado e as perturbações que elas projetam
sobre o presente integram, de forma plena, a consciência da nossa
História como algo permanentemente a fazer-se.

12 Para esta questão, cf. capítulo respetivo em Helena Carvalhão Buescu, Experiência do
Incomum e Boa Vizinhança. Literatura Comparada e Literatura-Mundo, Porto, Porto
Editora, 2013.
13 Cf.
António José Saraiva, Fernão Lopes, Lisboa, Publicações Europa-América, s.d.;
Teresa Amado, Fernão Lopes. Contador de História, Lisboa, Editorial Estampa, 1991; cf.
José Mattoso, 1383-1385 e a Crise dos Séculos XIV/XV, História e Crítica, 12, 1985.

14 Cf.
Bernardo Vasconcelos e Sousa, O Sangue, a Cruz e a Coroa. A Memória do Salado
em Portugal, Penélope. Fazer e desfazer a História, 2, fev. 1989, pp. 28-48.

15 Cf.edição crítica de José Mattoso do Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, Lisboa,


Academia das Ciências, 2 vols., 1980; cf. ainda Luís Krus, A Concepção Nobiliárquica do
Espaço Ibérico. Geografia dos Livros de Linhagens Medievais Portugueses (1280-1380),
Lisboa, Fund. Calouste Gulbenkian/JNICT, 1994.

16 O relato da Batalha do Salado incluído no Livro do Conde D. Pedro foi aí integrado na


2.ª refundição, de 1380-83, por um autor (que não o Conde D. Pedro, cuja morte tinha
ocorrido em 1354) próximo dos Pereiras e da Ordem do Hospital; daí o relevo dado ao
Prior Álvaro Gonçalves Pereira no milagroso desfecho da Batalha. Sobre este último
aspeto, além das obras referidas, de Krus e Vasconcelos e Sousa, cf. António José
Saraiva, O Auto da Narrativa da Batalha do Salado e a Refundição do Livro do Conde D.
Pedro, Boletim de Filologia, XXII, 1971, pp. 1-16.

17 Op. cit.

18 António José Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, Porto, Porto
Editora, 17.ª edição, pp. 82-5.

19 Verno que a esta crónica respeita: Fernando Figueiredo, Da Imagem do Inimigo à


Construção do Herói. O Reinado de Afonso Henriques na Crónica de Cinco Reis de
Portugal, in Teresa Amado (coord.), A Guerra até 1450, Lisboa, Quimera Editores, 1994,
pp. 377-90. Trata-se de um volume de enorme interesse e alcance para o conjunto de
questões colocadas no presente livro, dado a sua matéria e o seu objeto se situarem
precisamente na intersecção entre discurso histórico e discurso literário.

20 Cf. Figueiredo, op. cit., pp. 379 e seguintes.

21 Op. cit., p. 83.

22 Lopes e Saraiva, op. cit., p. 85.

23 Fernão Lopes, Crónica de D. João I, Primeira e Segunda Partes, Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 1977, p. 73.

24 Helena Carvalhão Buescu. Pascale Casanova and the Republic of Letters, in Theo
D’Haen, David Damrosch and Djelal Kadir (eds.), The Routledge Companion of World
Literature, New York, 2012, pp. 126-144.
25 P. Burke, Erasmus and the Republic of Letters, European Review, 7(1), 1999, pp. 5-17.

26 A.Grafton, A Sketch Map of a Lost Continent: the Republic of Letters. Republics of


Letters: A Journal for the Study of Knowledge, Politics, and the Arts, 1(1), 2009-a.
<http://rofl.stanford.edu/node/34> (último acesso em 9 de setembro de 2018).

27 Maisuma vez apontamos, no que a este aspeto em particular diz respeito, para a obra
de Teresa Amado, atrás citada.

28 Luís de Sousa Rebelo, As Crónicas Portuguesas do Século XVI, in Fernando Gil e


Helder Macedo, Viagens do Olhar. Retrospecção, Visão e Profecia no Renascimento
Português, Porto, Campo das Letras, pp. 183-205. Ver ainda Isabel Allegro de Magalhães
(coord. científica), História e Antologia da Literatura Portuguesa. Século XVI, n.º 14, Lisboa,
Fund. Calouste Gulbenkian, 2000.

29 Cf.Ana Paula Avelar, Fernão Lopes de Castanheda, in Enciclopédia Virtual da Expansão


Portuguesa, Centro de História de Além-Mar, FCSH, s/v, último acesso em 14 de janeiro de
2012.

30 Maria Augusta Lima Cruz, Os Cronistas do Império: da Gesta das Armas aos Heróis do
Mar, in Catálogo da Exposição Outro Mundo Novo Vimos, Lisboa, Comissão Nacional para
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.

31 Paul Gilroy, Postcolonial Melancholia, Columbia UP, 2005.

32 VítorAguiar e Silva, Camões. Labirintos e Fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994; idem, A Lira
Dourada e a Tuba Canora, Lisboa, Assírio e Alvim, 2008; idem, Jorge de Sena e Camões.
Trinta Anos de Amor e Melancolia, Coimbra, Angelus Novus, 2009; Martim de Albuquerque,
A Expressão do Poder em Luís de Camões, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1988; Helder Macedo e Fernando Gil, Viagens do Olhar. Retrospecção, Visão e Profecia no
Renascimento Português, Porto, Campo das Letras, 1998; Jorge de Sena, Trinta Anos de
Camões. 1948-1978, Lisboa, Edições 70, 1980; Vasco Graça Moura, Os Penhascos e as
Serpentes e Outros Ensaios Camonianos, Lisboa, Quetzal Editores, 1987; Jorge Borges de
Macedo, Os Lusíadas e a História, Lisboa, Verbo, 1979.

33 Rebelo, op. cit., p. 190.

34 Ana Isabel Buescu, A Ásia de João de Barros — um Projecto de Celebração Imperial, in


Roberto Carneiro e Artur Teodoro de Matos (coord.), D. João III e o Império. Actas do
Congresso Internacional Comemorativo do seu Nascimento, Lisboa, CHAM e CEPCEP,
2004, pp. 57-74.

35 Manuel Rodrigues Lapa, «Prefácio» a Historiadores Quinhentistas, selecção, prefácio e


notas, 3.ª edição, Lisboa, 1972, p. XV.
36 João de Barros, Década I, «Prólogo».

37 Ibidem, liv. 1, cap. 1.

38 Ibidem, liv. 9, cap. 1; cap. 2; cap.3. V. também liv. 3, cap. 3 e cap. 12; liv. 8, cap. 6;
Década II, liv. 2, cap. 2; liv. 4, cap. 4; liv. 5, cap. 1; liv. 8, cap. 1; liv. 10, cap. 7; Década III,
liv. 1, cap. 1; Manuel Severim de Faria, Discursos…, fols. 39-41v; António Baião,
«Introdução», cit., pp. LV-LVII.

39 SousaViterbo, O Orientalismo em Portugal no Século XVI, sep. do Boletim da


Sociedade de Geographia de Lisboa, 12.ª série, n.os 7 e 8, Lisboa, 1893, pp. 10-12.

40 T. F. Earle, A Imaginação Pictórica de João de Barros nas Décadas da Ásia, Oceanos,


27, julho-setembro 1996, pp. 84-91.

41 Cf. Ana Isabel Buescu, op. cit.

42 Década III, liv. II, cap. VII.

43 Ana Paula Avelar, Gaspar Correia, in Enciclopédia Virtual da Expansão Portuguesa,


Centro de História de Além-Mar, FCSH, s/v, último acesso em 14 de janeiro de 2012.

44 Para um sustentado paralelo, de interessantes características, entre o Poeta e o


cronista, veja-se o excelente artigo de Charles Boxer, Camões e Diogo do Couto, irmãos
nas armas e nas letras, Ocidente, 1972, n.º especial, pp. 25-37. Ver ainda, na obra a seguir
citada de Coimbra Martins, o capítulo intitulado «Camões e Couto», pp. 7-26.

45 Veja-se a este respeito: Maria Augusta Lima Cruz, Diogo do Couto e a Década 8.ª da
Ásia, Lisboa, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 1994. E ainda Rui Manuel Loureiro, Notícias da Pérsia nas
Décadas da Ásia de Diogo do Couto, Erebea, Revista de Humanidades y Ciencias
Sociales, 2, 2012, pp. 271-87.

46 Cf. a este respeito: António Coimbra Martins, Em torno de Diogo do Couto, Coimbra,
Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, 1985; e ainda a edição que faz Ana María
García Martín de O Soldado Prático, Coimbra, Angelus Novus, 2009.

47 Luís Sousa Rebelo, Armas e Letras, in João José Cochofel (dir.), Grande Dicionário da
Literatura Portuguesa e da Teoria Literária, Lisboa, Iniciativas Editoriais, vol. I, 1977,
pp. 426-54.

48 Cf.,
entre outros títulos, Maria Alzira Seixo (coord.), A Viagem na Literatura, Lisboa,
Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, Publ.
Europa-América, 1997.
49 Ver,entre numerosos estudos, Maria Leonor Carvalhão Buescu, A Galáxia das Línguas
na Época da Expansão, Lisboa, 1992; e ainda, da mesma autora, O Estudo das Línguas
Exóticas no século XVI, Lisboa, Biblioteca Breve, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa,
1983.

50 Giulia
Lanciani, «Introdução», in Sucessos e Naufrágios das Naus Portuguesas, Lisboa,
Caminho, 1997.

51 António José Saraiva, Fernão Mendes Pinto ou a Sátira Picaresca da Ideologia


Senhorial, Lisboa, Jornal do Foro, 1958. Saraiva várias vezes voltaria ao mesmo tópico,
pelo que o consideramos estruturante da leitura que o crítico faz da obra.

52 Ana
Paula Laborinho, Peregrinação «claramente vista», Exposição do IC sobre Fernão
Mendes Pinto, Suplemento do Jornal de Letras, n.º 1015, p. 142, 26 de agosto de 2009.

53 Verem especial a tese de doutoramento de Ana Paula Laborinho, O Rosto de


Jano: Universos Ficcionais da Peregrinaçam de Fernão Mendes Pinto, apresentada à
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2007.

54 JoãoDavid Pinto Correia, «Introdução», in Fernão Mendes Pinto, Peregrinação, Lisboa,


Ed. Comunicação, 1983, pp. 11-95.

55 Eduardo Lourenço, A Peregrinação e a Crítica Cultural Indirecta, in Fernão Mendes


Pinto, Peregrinação, versão de Maria Alberta Menéres, Lisboa, Afrodite, 1971, vol. 2, pp.
CXI-CII.

56 Margarida Vieira Mendes, A Oratória Barroca de Vieira, Lisboa, Ed. Caminho, 2003
(1989), p. 173.

57 Ver, desta autora, os volumes intitulados O Romance Histórico em Portugal, Porto,


Campo das Letras, 1999; e Um Poço sem Fundo. Novas Reflexões sobre Literatura e
História, Porto, Campo das Letras, 2005.

58 Vero texto a este respeito fundador de Linda Hutcheon, Historiographic Metafiction.


Parody and the Intertextuality of History, Johns Hopkins UP, 1989.

59 Vera este respeito o meu ensaio sobre Almeida Garrett: Helena Carvalhão Buescu,
O Cívico, o Romântico e o Afectivo. Visões Culturais de Inglaterra em Almeida Garrett, in
Grande Angular. Comparatismo e Práticas de Comparação, Lisboa, Fund. Calouste
Gulbenkian/ Fund. Ciência e Tecnologia, pp. 131-50.

60 Pierre Barbéris, Prélude à l’Utopie, Paris, PUF, 1991.


61 MichelFoucault, Droit de Mort et Pouvoir sur la Vie, Histoire de la Sexualité, tome I, La
Volonté de Savoir, Paris, Gallimard, pp. 175-211.

62 Gabriela Gândara Terenas, Entre a História e a Ficção. As Invasões Francesas em


Narrativas Portuguesas e Britânicas, Lisboa, Caleidoscópio, 2012.

63 Aeste respeito, veja-se a obra de Ana Isabel Buescu, O Milagre de Ourique e a História
de Portugal de Alexandre Herculano. Uma Polémica Oitocentista, Lisboa, INIC, 1987.

64 Vitorino Nemésio, Garrett e Herculano, in Ondas Médias, Lisboa, Bertrand, 1945, p. 235.

65 Ofélia
Paiva Monteiro, A Formação de Almeida Garrett. Experiência e Criação, Coimbra,
Centro de Estudos Românicos, 1971.

66 Ofélia Paiva Monteiro, op. cit., vol. 2, pp. 316 e seguintes.

67 In Discursos. Estudos de Língua e Cultura Portuguesa, 14, 1997, pp. 107-41.

68 Garrett.
Memórias Biográficas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, vol. 1, pp. 453-68.
Estes fragmentos foram posteriomente republicados por Teófilo Braga na sua edição das
obras completas de Almeida Garrett.

69 Cf.,
a este respeito: João Almeida Flor (coord.), Colóquio sobre Shakespeare, Fundação
Calouste Gulbenkian/ACARTE, Lisboa, 1990; João Ferreira Duarte, The Politics of Non-
Translation: a Case Study in Anglo-Portuguese Relations, ACT 1 — Sublime Tradução,
Edições Colibri/Centro de Estudos Comparatistas, Lisboa, 2000, pp. 59-72; Maria do Céu
Saraiva Jorge,  Shakespeare e Portugal, Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa,
1941; Fernando de Melo Moser, Shakespeare in Portugal: Selected Facts and Problems,
Discurso Inacabado. Ensaios De Literatura Portuguesa, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian, 1994, pp. 243-251; Jorge Bastos da Silva, Shakespeare no Romantismo
Português. Factos, Problemas, Interpretações, Coleção Campo da Literatura/ Ensaio, n.º
125, Campo das Letras, Porto, 2005.

70 Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade. Psicanálise Mítica do Destino Português,


Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1978, p. 92.

71 Almeida
Garrett, Frei Luís de Sousa, Maria João Brilhante (ed.), Lisboa, Ed.
Comunicação, 1982.

72 José de Oliveira Barata, Dramática (Literatura), in Helena Carvalhão Buescu (ed.),


Dicionário do Romantismo Literário Português, Lisboa, Ed. Caminho, 1997, pp. 139-51.

73 Edward Said, On Late Style, London, Bloomsbury, 2006.


4. A HISTÓRIA COMO CONTEÚDO.

ESTUDO DE CASOS

4.1. A ÉPICA. ESCRITAS, REESCRITAS E


TRANSFORMAÇÕES

A epopeia Os Lusíadas tem de ser considerada, no contexto em


que escrevemos, como o lugar geométrico em que a história de
Portugal é condensada, interrogada e também profeticamente
concebida. Na realidade, o texto camoniano é um dos altos lugares
da nossa memória histórica, inscrita na literatura. No decurso dos
capítulos anteriores, fomos por isso deixando que as referências e
as análises de algumas questões relativas a Os Lusíadas fossem
surgindo de modo regular, até porque tal corresponde à nossa
convicção de que não é possível, por inúmeras razões, deixar de
reservar a este texto o reconhecimento de um papel especial do
ponto de vista quer literário quer histórico. Não apenas por aquilo
que ele é, enquanto texto, e enquanto «lugar de memória» (Pierre
Nora) de um conjunto de saberes extraordinário, espécie de
summa que, na realidade, encontra no texto de Dante, A Divina
Comédia, o seu modelo medieval: organização dos discursos e
dos saberes históricos do mundo. Não apenas pelas inúmeras
dimensões especificamente históricas que Os Lusíadas refletem e
que manifestam, e de que daremos como exemplo paradigmático o
imaginário guerreiro e cavaleiresco que transporta a memória da
fundação da nação para a escrita da Expansão além-mar. Mas
também pelas razões de memória literária que implicam que o
texto camoniano constitui, desde a sua publicação, o lugar para
que converge, de variadíssimas maneiras e com diversíssimas
tonalidades axiológicas e de avaliação histórica, toda a história dos
textos e das instituições literárias em Portugal e em português.
Sejamos claros. Uma forma inigualável (de facto inigualável) que
Os Lusíadas têm de refletir a História e serem eles mesmos
História é o modo como representam o marco em função do qual
nada do que virá depois deles poderá ignorar que eles ali estão.
Para utilizar uma expressão feliz de Manuel Gusmão, Os Lusíadas
são talvez o melhor exemplo, em Portugal, de algo que fica inscrito
para que, depois dele, outros, potencialmente todos, saibam que
vêm depois dele.
Tentámos fazer refletir esta condição transversal à história da
nossa literatura através do recurso a frequentes remissões para
episódios, elementos e características que eles mobilizam, nos
capítulos que antecedem. Para quem for lendo o que escrevemos
a propósito de diversas questões, terá já ficado clara a forma como
nessa epopeia convergem ansiedades e expectativas anteriores,
que brevemente recordaremos, e como dela partem as linhas de
força que, de uma forma ou de outra, estruturam toda a literatura
posterior — mas também muita da reflexão histórica posterior. No
presente capítulo, destinado à épica, e em primeira instância à
memória de Os  Lusíadas e à forma como a história de Portugal
nela narrada ocupa lugar central, concentrar-nos-emos na forma
como aquilo que a epopeia camoniana faz com a história de
Portugal nela recontada transita para os séculos seguintes,
sofrendo alterações várias que, por isso mesmo, a transportam até
ao nosso presente. Isto corresponde à convicção de que um dos
modos de inscrição na História consiste não apenas na
possibilidade de representar discursivamente o passado, o que
muita da literatura conscientemente faz, mas também na
capacidade que alguns textos, como Os Lusíadas, têm de se
manifestarem eles mesmos como objetos históricos, atravessando
os tempos e constituindo-se como um fenómeno da História ela
mesma, repercutindo-a e modelando-a.
Assim, mesmo se naturalmente damos alguma atenção à forma
como a epopeia de Camões reflete uma narrativa «historiográfico-
literária» que configura alguns dos episódios mais conhecidos da
nossa História — caso paradigmático do episódio de Inês de
Castro —, daremos particular ênfase ao modo como o texto de
Camões se prolonga na História e suscita revisitações muito
diversas entre si, migrando assim para géneros, períodos e
autores muito distantes, por vezes ao ponto de poderem surgir
como seus antípodas. Mas é precisamente o facto de Os Lusíadas
representarem um eixo axiológico da história da literatura
portuguesa que não pode aqui deixar de ser considerado como um
factor extraordinário, que nenhum outro texto consegue igualar. A
sua importância não reside, pois, no facto de que todas as
interpretações são coincidentes. Mas, pelo contrário, no facto de
que o imparável surgimento de novas interpretações, novas
leituras, novas reescritas, novas respostas dá conta da
fecundidade histórica de algo que não para de ser produzido a
cada momento.
De um certo ponto de vista, Os Lusíadas podem ser
considerados como um ponto nodal para que convergem
antecipações e mesmo ansiedades anteriores: um texto com estas
características e com estas dimensões não surge do nada, e é
preciso que, além do génio individual que Camões
indubitavelmente tinha e foi, houvesse uma atmosfera histórica que
criasse condições para o seu surgimento: em primeiro lugar, pela
consciência de que havia matéria para o canto épico; em segundo
lugar, pela tentativa de produzir uma interpretação da história de
Portugal até aí que surgisse como legitimação simbólica e até
profética da afinidade entre Nação e Expansão; em terceiro lugar,
que valorizasse a forma épica, com as suas tradições clássicas (e
em especial a tradição que remonta a Vergílio e ao seu papel na
legitimação da Roma imperial), como forma apta a cantar tudo
quanto era necessário cantar.
Este último aspeto é importante: ele situa Os Lusíadas no quadro
de uma produção que os engloba mas a eles não se limita. E
esforços recentes têm vindo a situar a epopeia camoniana no
quadro daquilo a que poderíamos chamar um «sistema épico» em
Portugal que traduz, afinal, a consciência histórica de que só a
epopeia ofereceria as condições adequadas a um canto
extraordinário de uma matéria extraordinária. Os estudos que, a
este respeito, Hélio Alves74 tem vindo a publicar sublinham a
importância do reconhecimento de que Camões não apareceu
sozinho, por muito que o mito camoniano posterior assim o tenha
construído. A vontade de epopeia que ele traduz e efetivamente
eleva ao mais alto grau é contemporânea de grande parte dos
acontecimentos históricos a que dá voz.
Assim, cabe sublinhar que essa vontade de epopeia deve ser
reconhecida como um fenómeno histórico que a própria gesta da
Expansão integra, e que não é construída apenas post factum.
Como recorda Ana Isabel Buescu,

O prenúncio e o convite à epopeia, já formulado, por


exemplo, por D. Pedro de Menezes na oração de sapiência na
abertura das aulas na Universidade de Lisboa em 1504, por
Garcia de Resende em 1516 no «Prólogo» do Cancioneiro
Geral, e esboçado pelo próprio João de Barros na profecia de
Fanimor na Crónica do Imperador Clarimundo, teve nas
Décadas um decisivo fundamento historiográfico.75

Lembremos que o próprio Gil Vicente, em 1520, no seu Auto da


Fama, contrapunha o desejo de fama de castelhanos, franceses e
ingleses à realidade dela, que só poderia vir a ser portuguesa; e
ainda observações de António Ferreira que, sem se referir
explicitamente à épica, claramente deixava um convite a que os
altos feitos dos Portugueses viessem a ser cantados.
Compreende-se, pois, no contexto, que a epopeia camoniana não
surge do nada, mas de algo que pode exprimir-se como a
necessidade (aliás renascentista) de fazer com que os factos
históricos possam aceder à dignidade da glória literária. Este
topos, que o próprio Camões utiliza no início da sua epopeia,
recorda aos heróis do «fazer» que eles não serão ninguém para o
futuro se alguém os não associar ao «dizer». Trata-se de um topos
clássico, que o Renascimento retoma com particular ênfase, em
várias literaturas europeias.
O herói integral é, pois, aquele que combina ação e escrita, e
Camões (que invoca por diversas vezes a sua dupla condição de
guerreiro e poeta, «numa mão a espada, na outra a pena») tem
plena consciência da forma como é à Poesia que cabe dignificar a
História. Este aspeto é suficientemente significativo para que sobre
ele nos detenhamos no quadro das reflexões deste volume.
Porque no Renascimento é a Literatura que pode exercer o seu
fascínio sobre a História: aquilo que a Literatura imortalizar viverá;
aquilo que a História não conseguir fazer traduzir em poesia
passará da memória dos homens. Este aspeto significa, pois, que
a Literatura é encarada e valorizada não como algo que se
distingue da ou se opõe à História, mas como o discurso que
melhor transforma o acontecido naquilo que é digno de ser
preservado pela memória humana.
Por outro lado, convém ainda recordar, como lembra Aguiar e
Silva76, que Os Lusíadas fazem parte daquilo que deve ser
reconhecido, sobretudo até finais do século  XVII, como a
«comunidade interliterária luso-castelhana» (p. 58), que associa as
diversas manifestações literárias da Península Ibérica como
formas de uma mesma consciência cultural que opta por
expressões literárias afins. Ora, a gesta da Expansão é
protagonizada, até final do século  XV, por Portugal e por Castela,
uma comunidade de países que, embora politicamente distinta (e
que virá a tornar-se una, como sabemos, durante os 60 anos da
monarquia ibérica), naturalmente não pode deixar de reconhecer e
manifestar as suas afinidades culturais mais latas. Assim, a
canonização de Camões, iniciada como mostra Aguiar e Silva
quase contemporaneamente à vida do Poeta, é obra não apenas
do seu reconhecimento dentro do espaço nacional e do sistema
literário português, mas de uma comunidade mais vasta, a
comunidade interliterária peninsular, que muito cedo reconheceu o
valor da obra lírico e épica de Camões. Significativo a este respeito
é o interesse, também recordado por Aguiar e Silva (p. 63),
manifestado por Felipe II de Espanha na tradução de Os Lusíadas,
que foi objeto de duas traduções para castelhano publicadas logo
em 1580. É asim possível dizer que a ideia épica, configurada de
forma decisiva em Os Lusíadas, faz parte de um sistema
peninsular (e não apenas português) que conscientemente avalia a
História como suficientemente digna de ser validada e glorificada
pela Poesia.
Um dos elementos de tal glorificação ocorre, em Os  Lusíadas,
pela releitura que é feita da história de Portugal, nela integrando os
episódios antecipatórios requeridos pela distância temporal entre o
tempo da escrita e o tempo da ação, isto é, todos os factos
posteriores à viagem de Vasco da Gama e, naturalmente,
anteriores à redação d’Os Lusíadas. Jorge Borges de Macedo77
tem um livro decisivo, a respeito da profunda relação entre Os
Lusíadas e a História, em que analisa as grandes linhas de
orientação e as principais características da forma como este texto
é fruto de um conhecimento histórico cujos contornos e cujo
alcance merecem ser objeto de reflexão. Só assim se poderá
compreender que a ligação entre a epopeia camoniana e a História
é substancialmente complexa. Ela abrange, por um lado, a
manifestação discursiva da substância histórica da história de
Portugal, tal como se configura principalmente na narração do
Gama ao rei de Melinde; e, por outro lado, ela forma uma parte
substancial da inspiração do Poeta, ao ponto de podermos dizer
que sem estes laços profundos entre matéria épica e matéria
histórica não existiria, na nossa literatura, a obra maior que é Os
Lusíadas.
A releitura da história de Portugal centra-se na caracterização de
um sentimento patriótico que é feito coincidir, por Camões, com as
próprias origens da monarquia portuguesa, e que na urdidura da
ação épica vai ligar primeira e segunda dinastias, por um lado a
afirmação e a consolidação das fronteiras peninsulares do reino de
Portugal, por outro a descoberta de que tais fronteiras existem
para que melhor possam ser ultrapassadas e assim se possa,
como viria a dizer Pessoa, «cumprir Portugal».
É desta forma que devemos considerar o imaginário guerreiro e
cavaleiresco, plasmado quer no ideal cruzadístico que de alguma
forma unifica a história de Portugal, com o seu ímpeto fundador de
Reconquista cristã inextricavelmente ligado ao ímpeto das
Descobertas e ao ideal da Expansão, quer na consciência de um
sentimento nacional e patriótico que toma a forma histórica de um
sentimento anticastelhano. Os episódios bélicos d’Os Lusíadas
devem ser lidos contra este pano de fundo, unindo num fio
narrativo as três grandes batalhas que o poema narra: Ourique,
Salado e Aljubarrota. A  visão dada da primeira dinastia é assim
uma visão de afirmação progressiva da identidade nacional e do
reconhecimento de Portugal como nação independente.
Cleonice Berardinelli78, entre os ensaios camonianos que
produziu, tem sobre estes três episódios bélicos d’Os Lusíadas, e
sobre as características comuns e diferentes que os unem e
distinguem, um notável estudo, em que compara a dimensão e os
elementos constituintes dos episódios, ocorrendo nos Cantos III e
IV do poema. A análise que conduz põe em relevo a estrutura
idêntica que compõe a narrativa das referidas batalhas
(preparação; combate; e vitória dos Portugueses), bem como
algumas características da elocutio que são comuns aos três
episódios, entre as quais a desproporção entre os intervenientes; a
valorização dos inimigos (ambos os aspetos convergem no
reconhecimento do valor bélico dos Portugueses); e a narração
descritivamente intensa das referidas batalhas e dos efeitos
decisivos de cada uma delas (legitimação do reino de Portugal;
vitória do espírito cruzadístico no território peninsular; reforço da
independência de Portugal face a Castela). A maior extensão que,
no contexto, ocupa a Batalha de Aljubarrota pode ser relacionada,
como frisa Berardinelli, com a consciência de que é essa a batalha
fundadora da dinastia de Avis, a que pertence D. Sebastião, o rei a
quem o poema é dedicado; e de que a ameaça castelhana,
afastada por essa batalha, no século  XIV, de novo se voltava a
perfilar, no século  XVI, como horizonte de possível perigo à
independência portuguesa. A história de Portugal, subsumida por e
articulada com a viagem de Vasco da Gama, constitui assim um
ponto nodal da estrutura, da composição e do significado da
epopeia.
A este respeito, citemos as palavras do camonista José Augusto
Cardoso Bernardes79, em observações cujo valor hermenêutico
cabe sublinhar, a respeito daquilo a que chama, com inteira razão,
a interpenetração entre a história de Portugal e a viagem do Gama:
O primeiro efeito que cumpre destacar relaciona-se com a
ligação existente entre a viagem do Gama e a História de
Portugal, tal como é narrada ao Rei de Melinde pelo próprio
Gama:
Chegado a Melinde, após ter escapado à cilada de
Mombaça, Vasco da Gama é, pela primeira vez, tratado
amistosamente. E é sob interpelação do chefe melindano que
vai situar-se no espaço e no tempo. Até aí, a narração tinha
exclusivamente incidido sobra a viagem marítima, envolvendo
as respectivas peripécias, cruzadas com a intriga mitológica
que nela se repercute. Chegou a vez de ser apresentado o
último nível da acção. Sabendo nós que a escolha do poeta se
verificou a favor de matéria factual, a narração não pode fugir a
ela também neste nível. Sintomático se torna porém que o
protagonista da viagem ao Oriente seja também o narrador da
História de Portugal, como revelador se afigura que a acção
que agora vai iniciar-se seja rigorosamente trazida até ao
momento em que o narrador se encontra, ou seja, remonte aos
primórdios da nação para apenas se suster no momento em
que as naus do Gama partem para a Índia. A conclusão a
extrair só pode ser uma: a viagem do Gama constitui a
continuação lógica de toda a História narrada por ele próprio.
Não se trata de um parênteses nem de um facto menor; antes
pelo contrário: trata-se de um acontecimento culminante, que
deve entender-se na sequência de Ourique, de Aljubarrota ou
do Salado mas também de Inês de Castro ou do Adamastor. A
viagem é relacionável com tudo isso e, em boa verdade,
encontra-se impregnada de um telos, repartido entre um termo
inicial (Ourique) e um termo final (o apelo a uma partida nova).

Não devemos no entanto esquecer, no quadro do poema


camoniano e do seu ideal de glorificação da gesta dos
Portugueses, simbolicamente contida, in nuce, na viagem de
descoberta do caminho marítimo para a Índia por Vasco da Gama,
que em contraponto ao ideal heroico, que a epopeia camoniana
reconhece e canta como o ponto nodal da gesta dos feitos dos
Portugueses, encontramos também, dentro do modelo épico
relativamente contemporâneo de Os Lusíadas, textos que se
abrem a uma dimensão polar oposta. Nestes, a experiência dos
desmandos e da lenda negra associada, como vimos em capítulo
anterior, a alguns dos relatos historiográficos, em particular Gaspar
Correia e Diogo do Couto, e alguns textos narrativos como os da
História Trágico-Marítima, surge como aspeto central do poema.
Para esta questão, remetemos para o estudo global de Hélio
Alves, Camões, Corte-Real e o Sistema da Epopeia Quinhentista80,
em que a perspetiva adotada tem, como dissemos, entre outras
vantagens, a de colocar a epopeia camoniana num quadro
sistémico que, em todo o caso, confirma o génio de Camões e o
complexo valor do poema por ele escrito.
Evoquemos neste contexto em particular textos épicos como os
de Bento Teixeira, Prosopopeia, centrada sobre os altos feitos de
Jorge de Albuquerque Coelho, a mesma personagem protagonista
do relato de naufrágio da História…; e o de Jerónimo Corte-Real,
Naufrágio e Lastimoso Sucesso de Manuel de Sousa Sepúlveda e
D. Leonor de Sá Sua Mulher, igualmente tendo como base uma
das mais conhecidas histórias contidas na mesma obra, sobre a
história dos conturbados amores entre Leonor de Sá e Manuel de
Sousa Sepúlveda, o naufrágio ao largo da costa de África da
embarcação de Sepúlveda e a progressiva dizimação de todos os
sobreviventes, até ao voluntário abandono da vida do herói que,
acometido pela loucura, caminha para dentro da selva africana,
sem mais ser visto. Do mesmo autor, o poema épico Sucesso do
Segundo Cerco de Diu, Estando D. João de Mascarenhas por
Capitão da Fortaleza, muito embora narre os feitos heroicos do
protagonista (na realidade de três protagonistas, já que além deste
encontramos ainda D. João de Castro e D. Manuel de Lima) na
conjuntura histórica em questão, tem como pano de fundo da ação
o cerco de Diu e portanto um contexto em que o enaltecimento dos
feitos dos protagonistas e da glória sebastiânica e dos
Portugueses em geral só pode ser realizado se tida em conta a
atmosfera de perigo e de ataque que contrasta com a epopeia
gloriosa que Camões imprime ao seu canto. Sobre este poema,
observa Hélio Alves:

Outro aspecto em que o Segundo Cerco antecipa


Os  Lusíadas é na interpretação da verdade épica como
verdade histórica. O poema de Corte-Real opta
assumidamente pelo relato de matéria histórico-
geograficamente comprovada, no seguimento duma prática
com antecedentes castelhanos e novilatinos. Embora
tenhamos de aceitar que a veridicção histórica nada tem de
inovador no género épico tal como se praticava no século de
Quinhentos, Corte-Real é o primeiro a transferi-la para a língua
portuguesa. Como se pratica? Até ao pormenor. Há, no
entanto, um alto grau de selectividade, quer no que diz respeito
às fontes preferenciais, quer quanto aos acontecimentos a
mencionar.81 (p. 178)

De tudo isto é possível retirar como elementos significativos para


a reflexão que aqui nos ocupa que a épica quinhentista, mormente
Os Lusíadas, representa um dos lugares maiores em que
Literatura e História se tocam, cruzam e fecundam. Na obra
camoniana podemos encontrar, como atrás foi dito, uma espécie
de summa do conhecimento historicamente relevante quer para a
narração específica que se faz, da viagem de Vasco da Gama,
quer para a narração mais lata efetuada da fundação e
consolidação da monarquia portuguesa, bem como das relações
entre ambos os estratos: entre outras fontes82, as leituras de
Camões incluem obras de geografia e de astronomia, roteiros de
viagens como o de Álvaro Velho, tripulante da primeira armada de
Vasco da Gama à Índia, e textos historiográficos (com particular
destaque para As Décadas da Ásia de João de Barros, mas
também a obra de Castanheda). Quanto ao conhecimento da
história de Portugal, Camões conhecia a fundo os cronistas de que
tivemos oportunidade de quem acima falámos, e ainda de vários
outros que não analisámos, como por exemplo Rui de Pina ou
Duarte Galvão. E a forma como faz convergir, como recorda Hélio
Alves, verdade épica e verdade histórica, enquanto quadro central
de estruturação do seu poema, faz da epopeia camoniana um
texto cuja consideração é decisiva, quer o consideremos pelo lado
da Literatura, quer o olhemos pelo lado da História.
Mas, como dissemos, o poema de Camões, para além de
significar (e muito) por aquilo que é como texto e como obra,
significa também pelas vias abertas que o fazem ressoar, de
variadíssimas maneiras, em variadíssimos textos do futuro.
O  restante capítulo será pois votado a seguir algumas dessas
linhas de recuperação e transformação da epopeia e da memória
camonianas, sublinhando como nessas recuperações sempre se
encontra implicada uma ideia de revisitação nacional e, por isso,
de interrogação da identidade nacional e das suas características
históricas e simbólicas. Podemos dizer, com algum grau de
segurança, que a epopeia camoniana passa a ser indistinta de
toda e qualquer reflexão sobre a identidade histórica portuguesa,
quer para a orientar polarmente para uma ideia de glória do
passado nacional (Os Lusíadas foram para tal direcionados na sua
versão didática mais corrente), quer para ceticamente refletir sobre
o declínio e o fim de Portugal, como sobretudo Oliveira Martins, na
Geração de 70, cristaliza enquanto imagem futura, que outros
como Guerra Junqueiro ou Fernando Pessoa herdarão e moldarão
a seu gosto, como veremos. Sigamos, pois, algumas dessas
cristalizações e desses ecos da epopeia de Camões, dando conta
de como ela não acaba de se reescrever na cena da História e da
Literatura portuguesas.
Sublinhe-se entretanto que o impulso contra-épico, de reescrita e
implosão da epopeia e do autor central ao cânone que é Luís de
Camões, preside a algumas das obras sobre que a seguir
refletimos, como aliás a várias outras, entre as quais destacamos,
no século XXI, as biografias ficcionadas da personagem de Luís de
Camões evidenciadas pelos romances de Frederico Lourenço
(Pode um desejo imenso, 2002) e de Mário Cláudio (Os Naufrágios
de Camões, 2016). Estas convergem numa tendência comum:
uma revisão de impulso iconoclástico daquele que talvez fosse, e
para Mário Cláudio a interrogação faz sentido, o autor d’Os
Lusíadas. Camões deixa de ser o poeta glorioso e mitificado da
sua imagem canónica, para passar a ser visto pelas lentes
diferenciadoras do contexto homoerótico ou da personagem
marginal que não teria sobrevivido a um dos naufrágios que sofreu.
Já Oliveira Martins, aquando das comemorações do tricentenário
da morte de Camões, ironizava sobre a existência de tantas
imagens/representações de Camões quantos os projetos a que ele
poderia ser associado por quem o lia. Nos séculos  XX  e  XXI, o
mesmo pode ser dito, de forma ainda mais densa, dada a
tendência revisionista que o chamado pós-modernismo permitiu
desenvolver. «Outro» Camões: «outros», relativamente à sua
figuração canónica, tomam assim forma, apresentando-se como
tantos outros modos de sobrevida.

4.1.1. ALMEIDA GARRETT, CAMÕES

Falámos atrás de Frei Luís de Sousa, e podemos sempre


lembrar que Camões é um dos três retratos tutelares que, ao lado
dos de D. Sebastião e de D. João de Portugal, preside a tragédia
que ocorre, dos regressados sem pátria, e de uma pátria que não
pode regressar. Mas antes desta obra, que já analisámos no
contexto romântico que acima nos interessou, Garrett inaugurou a
sua reflexão sobre Camões, que o acompanharia ao longo de toda
a vida, com uma obra de juventude, justamente intitulada Camões
e que lhe serve para, entre outras coisas, medir a estatura do
épico ensaiando a seu modo a inspiração concretizada no poema
narrativo longo, estruturalmente organizado, como Os Lusíadas,
em cantos.
Como tivemos ocasião de referir, o passado histórico e literário
serve aos Românticos, e em particular a Garrett, para refletir sobre
o seu presente histórico e para delinear (ou não) as ideias de um
futuro pensado de acordo com as opções ideológicas liberais que
Garrett sempre defendeu. O  poema Camões corresponde a este
conjunto de preocupações, podendo pois para já afirmar-se que
ele é, por um lado, uma afirmação de uma imagem do Poeta
romântico como defensor de cidadania (Garrett encontrava-se
exilado quando compôs o poema) e, por outro, uma afirmação dos
valores éticos e históricos associados ao princípio inigualável da
Liberdade.
Almeida Garrett emigrara, como vimos, para Inglaterra em 1823,
na sequência da Vilafrancada. No ano seguinte, mudara-se para
França (primeiro o Havre, depois Paris). É durante este período de
exílio que comporá o poema narrativo Camões. Poema, que vê a
luz também em Paris, em 1825. O  enquadramento
simultaneamente expectante e já surpreendentemente desiludido
(Garrett, nascido em 1799, é ainda um jovem de vinte e poucos
anos) faz parte das circunstâncias pessoais que o texto
concentrará em torno da figura de Camões e daqueloutro poeta
que sobre ele reflete. Por outro lado, a experiência europeia de
Garrett permitir-lhe-á compreender o alcance da reflexão e da
prática românticas, que no final do primeiro quartel do século XIX se
encontravam no geral já sistematizadas. É este o quadro em que
deverá ser compreendida a composição de Camões, e em que
convém ter em conta as implicações deste poema, que Eduardo
Lourenço83 considera, a justo título, «um momento da nossa mais
alta poesia», acrescentando que bastaria «o canto V para o
imortalizar […]» (p. 75).
Será um texto que acompanhará toda a vida literária de Garrett,
certamente não por acaso. Veremos que a sua complexidade e a
sua qualidade literária e simbólica oferecem a Garrett um meio
privilegiado para imaginariamente inscrever a figura do Poeta e a
ideia de uma Poesia fortemente implicada no exercício de
cidadania, como atrás vimos que o teatro veio a ser para Garrett, e
de forma análoga, uma cena indistinta da vida histórica e política
da sua comunidade.
As quatro edições que o poema conhece em vida do autor (1825,
1839, 1844 e 1854, ano da morte de Garrett) dão sobretudo conta
de como este poema permanece, aos olhos do seu autor, como um
texto claramente não fechado numa eventual forma de juvenilia.
Sendo um texto de juventude, Camões será também um texto de
maturidade e será, talvez sobretudo, um texto cujas
transformações descrevem o próprio percurso literário e até
político de Garrett. De alguma forma podemos dizer que as
transformações que vão ocorrendo neste texto, nos quase trinta
anos em que o autor dele se ocupa, configuram um conjunto de
preocupações históricas que vão respondendo às circunstâncias
políticas e ideológicas da primeira metade do século  XIX em
Portugal: desde a Guerra Civil, que força Garrett ao exílio, até à
vitória dos liberais e à instalação do regime parlamentar com que
Garrett começa por colaborar e em que começa por acreditar, para
a pouco e pouco dele se ir distanciando, acabando por o
considerar, como diz no romance Viagens na Minha Terra, e a
propósito do barão, figura exemplar do regime,
«revolucionariamente usurário». A escrita e as reescritas a que
Camões vai sendo sujeito acompanham, pois, uma reflexão
histórica e política continuada, e de alguma forma refletem as
grandes opções ideológicas e valorativas do escritor, entre 1825 e
1854.
Desde Teófilo Braga, e por isso desde o início do século  XX, o
poema Camões é feito coincidir com o início do Romantismo em
Portugal. Teófilo tinha razão, se considerarmos que estas datas
inaugurais nunca podem significar que é o panorama inteiro que
repentinamente se altera. Mais do que isso, estes textos-charneira
por assim dizer introduzem dissonâncias muitas vezes paradoxais
na cena literária existente. É isso que Camões faz, e desse ponto
de vista podemos efetivamente considerá-lo como momento
inaugural do nosso Romantismo, mesmo sabendo que só
aproximadamente uma década mais tarde, após a vitória dos
liberais e o regresso de grande número de exilados, entre os quais
Garrett e Herculano, estarão criadas as condições para a
existência de um movimento romântico enquanto tal.
Que em Camões possamos ver a súbita eclosão das mais
importantes características românticas não significa (antes pelo
contrário!) que a herança do Classicismo seja ignorada ou sequer
sentida como estruturalmente incompatível. Todos os grandes
românticos reconhecem a importância de tal legado, e Garrett não
é exceção — mormente quando o objeto dos seus textos é, como
neste caso, um nome (Camões) ou uma obra (Os Lusíadas) em
torno dos quais se concentra a essência mesma dessa herança.
Não esqueçamos, por outro lado, como a sólida educação clássica
de Almeida Garrett era já visível nos seus textos anteriores, e o
quão ela ficará impregnada numa certa qualidade de limpidez
discursiva para a qual Garrett encontrava um mestre em Filinto
Elísio.
Não admira pois que Camões seja um texto que inaugura o
Romantismo em Portugal e em que, em simultâneo, a inspiração
temática e estrutural é entretanto também devedora do paradigma
clássico, muito em especial da memória épica. Assim, a estrutura
retoma a divisão em cantos (dez, como Os Lusíadas) bem como
outros elementos característicos da epopeia, como a invocação
inicial (que é, entretanto, realizada à entidade romântica que tutela
o poema, a Saudade). Já Carlos Reis84 tinha sublinhado, neste
contexto, a importância do início in medias res, exigindo narrações
retrospetivas análogas às da epopeia camoniana. E poderíamos
ainda mencionar o uso do verso decassilábico (embora branco),
que coexiste entretanto com o carácter heterogéneo da dimensão
estrófica, dependente da substância do que é contado e não do
respeito pela oitava camoniana. A narração retrospetiva que no
início do Canto III tem início pode ser lida como semelhante àquela
que, n’Os Lusíadas, Vasco da Gama faz ao rei de Melinde: aqui, é
o próprio Camões quem conta a sua história e as suas viagens ao
religioso espanhol que o acolhera aquando do seu regresso a
Lisboa, e que o acompanhara depois da visão funérea do enterro
da sua amada Natércia (Canto II). De forma idêntica ao poema
camoniano, também em Camões há visões proféticas: D. Manuel
teria aparecido espectralmente a Camões, levando-o a
empreender a sua longa viagem e ainda profetizando quer a
composição da epopeia, quer a perda da independência de
Portugal. Poderemos notar como as duas questões surgem em
Camões já a par, e não mais deixarão, no imaginário coletivo
português, de aparecer estreitamente associadas: é a famosa
leitura do poema camoniano enquanto «poema-epitáfio» ou
«poema póstumo» da nacionalidade, como lapidarmente lhe
chamará Oliveira Martins. Escrita da epopeia e fim de Portugal
fariam coincidir num momento paradoxal a glória épica e o seu
mesmo carácter póstumo. A  argúcia garrettiana está em construir
um poema em que isto não descreve apenas 1580, mas também
1825.
Talvez o momento alto da construção analógica que Camões
realiza relativamente a Os Lusíadas, e que é simultaneamente a
medida da diferença entre os dois poemas, resida na «canção de
morte» que Camões entoa no Canto V do texto garrettiano. Trata-
se de um lamento lírico pelo amor perdido em que se torna difícil
não reconhecer os ecos daquela «outra» figura central daquele
«outro» Canto V do poema camoniano, o Adamastor, também ele
liricamente lamentando a impossibilidade do seu amor e nela
fazendo radicar a melancolia que Garrett faz dizer ao Poeta. O
Adamastor garrettiano, que aqui coincide com a figura maior do
seu criador, Camões, é a grande figura do Romantismo no poema,
alçando-se ao recorte que Prometeu ou Fausto, os heróis da
revolta humana, representavam.
Os Cantos VII e VIII ocupam-se, por seu turno, da narração,
realizada em Sintra, no cenário romântico por excelência, d’Os
Lusíadas a D. Sebastião, feita por Camões. Aqui, a paráfrase da
epopeia camoniana adensa naturalmente o decalque — ousado —
com que o jovem Garrett se mede, e mede o seu poema. O facto
de a alusão ao Adamastor ser feita apenas de passagem (estrofe
10 do Canto VIII) reforça a ideia de que ele já apareceu. E os
cantos finais de Camões concentram-se naquilo que
verdadeiramente importa: no final do Canto IX, sabe-se que Os
Lusíadas são publicados; e no Canto X assistimos, com a
linearidade das coisas complicadas, à miséria de Camões, à
derrota de Alcácer Quibir e à morte do Poeta.
Compreendemos, pois, que a vida de Camões, que ocupa
sensivelmente a primeira metade do poema de Garrett, não é mais
do que a preparação desta sua morte. E que a substância da
epopeia camoniana, tornando-se gradualmente dominante, permite
relê-lo como um poema autorreflexivo, cuja matéria é
fundamentalmente e no essencial o Poema de Camões. Aliás, já
na famosa carta endereçada a Duarte Lessa (1824), Garrett falava
da «novidade de fazer um poema assunto de outro». É
efetivamente verdade.
É claro que tudo isto representa, e na aceção mais nobre do
termo, aquilo a que Teresa Almeida85 chama o carácter
«encenado» do poema, a seu ver visível não apenas no texto da
última edição publicada em vida do autor (4.ª edição, 1854)86, mas
muito especialmente nas alterações e correções introduzidas por
Garrett de edição em edição, mormente no aparato de notas,
efetivamente copioso e eloquente, a que o texto poético vai dando
origem.
É por isso legítimo dizer que a obra garrettiana intitulada Camões
é (vai sendo) constituída por duas partes, formalmente distintas,
com implicações de género diferentes, cada uma permitindo um
tipo de discurso diverso. De um lado, temos o texto poético-
narrativo tutelado pela personagem de Camões e pela feitura
preferencial do poema Os Lusíadas, como já vimos. Do outro lado,
porém, temos o texto ensaístico (de outra forma poético) dos
prefácios e das notas, na realidade apresentando uma outra
personagem (Garrett ele mesmo), ocupada na composição de um
outro poema, que dá pelo nome de Camões. Em outro lugar87,
analisei com demora a forma como prefácios e notas foram
sempre, ao longo de toda a carreira literária de Garrett, lugares
decisivos para a reflexão por ele empreendida sobre a Poesia e o
seu lugar na Polis. Isto é particularmente verdade no que toca ao
poema Camões, que, como acima referi, acaba por ser uma obra
em constante transformação e revisão, de 1825 até 1854.
Esta escrita em palimpsesto, que cruza o poema de Garrett com
o de Luís de Camões, e por outro lado cruza o texto poético com o
texto ensaístico, introduz espessamento histórico na obra
garrettiana. Esta escreve ao mesmo tempo duas histórias, cujo
entrelaçamento comporta curiosas implicações literárias e
simbólicas: a história de dois Poetas, separados por quase quatro
séculos de História; a história de dois livros, em que a sombra do
primeiro é formalmente requerida para se projetar sobre (e
sustentar) o segundo; a história, enfim, do que se escolhe como
condição do poeta moderno (romântico), aquele que parece não
ter alternativa senão desacordar-se dos ventos da História
dominante e ir, como Camões, contra eles. A descrição deste
poeta é singularmente feita na nota B do Canto I: exilado, «só e
consumido», «proscrito» e «pobre». De quem se fala? Camões ou
Garrett? De ambos. Hoje (século  XIX) como então (século  XVI),
Portugal teria um problema histórico com a Poesia, de que Os
Lusíadas e Camões seriam dois momentos paradigmáticos.
A associação de Garrett, enquanto Poeta, a Camões —
associação aliás não inédita entre nós, bastando pensar em
idêntica construção em Bocage, no século  XVIII — não é apenas
uma forma de legitimação simbólica do poeta novo pelo poeta
antigo, embora também seja isto. Tal associação é sobretudo uma
forma de mostrar a continuidade histórica da Poesia como
problema, constituindo um modo preferencial de atravessamento
dos tempos que dá conta da constante precariedade do Poeta na
sua Cidade — na Cidade não só em que vive, mas de que é o
mais lídimo representante. Este problema é associado por Garrett
ao estatuto também ele precário de Portugal enquanto pátria
possível, como vimos. Dificilmente se poderia encontrar figura mais
iluminante a este respeito do que Camões, que no início do
século  XIX tinha já o estatuto mítico daquele que «morreu com a
Pátria» (como o fim do poema de Garrett recorda), daquele que
melhor a cantou como Pátria imaginária, com Os Lusíadas, e ainda
daquele que ela mais cortantemente deserdou.
Camões é um passo inaugural nesta que é reflexão constante de
Almeida Garrett, bem como sua constante reivindicação, como
aliás atrás vimos, ao analisarmos a densidade histórica do Frei
Luís de Sousa. A mediação de Camões enquanto herói, e a
concomitante identificação simbólica que ela permite a Garrett
tornam-se elementos decisivos para pensar a espessura histórica
de uma pátria que, em 1580 como em 1825 (e depois), reforça a
sua dificuldade com a Poesia e com os poetas que tem.
José-Augusto França88, na sua habitual argúcia crítica, já o frisou
suficientemente, ao evocar, além do rastreio nacional da fama do
poeta Camões, também a atmosfera europeia de finais do
século XVIII e inícios do século XIX, bem como o simbólico e intenso
interesse provocado pela «vida dolorosa do próprio Camões, poeta
e aventureiro, homem de cultura e de experiência vivida, alma
apaixonada de ingrato destino» (p. 94).
Ora é neste quadro nacional como europeu que a figura de Luís
de Camões surgirá a Almeida Garrett como podendo contribuir
para uma outra forma de pesar «Portugal na Balança da Europa».
Ao abrir, em 1825, Portugal ao Romantismo, e ao reiniciar,
enquanto romântico (sempre não espartilhado, como todos os
grandes), a sua vida literária, Garrett procura em Camões a
legitimidade poética para a polis — com desesperanças que o
poema não evita nem mascara, e cujo avolumar de novo
encontrará na figura de Camões, em 1844, o seu representante
maior, no texto dramático do Frei Luís de Sousa. Notemos ainda
que é também no mesmo ano, 1844, que surge mais uma edição,
a 3.ª, do poema Camões. Compreender-se-á então que os elos
entre o que normalmente surge como um texto de juventude
(1825) e o que é reconhecido como um texto de maturidade (1844)
são mais complexos e profundos do que a mera indicação
cronológica pareceria argumentar, e que existe sempre, em toda a
obra garrettiana, uma matriz de incessante revisitação do que foi
anteriormente escrito. No caso presente, essa revisitação sustenta-
se na figura do poeta Luís de Camões, que surge como
acompanhando toda a intensa experiência literária garrettiana —
como acompanhará depois Cesário Verde, Oliveira Martins, Guerra
Junqueiro, Teixeira de Pascoaes, Fernando Pessoa, Jorge de
Sena, António Lobo Antunes, Vasco Graça-Moura, Mário Cláudio
ou Gonçalo M. Tavares. Não se trata, pois, apenas de um recurso
pontual ou meramente tático. Mas de uma continuada conversação
entre poetas, poemas e poéticas na História.
É neste contexto que convém notar a importância de o poema
garrettiano começar sob o signo funéreo, fazendo Camões
regressar para assistir ao funeral da sua amada Natércia. E é
ainda sob o signo funéreo que ele acaba, ao fazer Camões morrer
com Portugal («[…], Pátria, ao menos/ Juntos morremos… e
expirou com a pátria»). Pelo meio fica aquele grande arranque
épico que consiste na leitura de Os Lusíadas a D. Sebastião em
Sintra, que não impede a História, mas que lhe dá a espessura
reflexiva que apenas a voz de um Poeta, convertido no melhor
cidadão da sua cidade, parece poder garantir. Ontem como hoje,
Camões como Garrett.
A possibilidade de trazer Camões e Os Lusíadas para a
atualidade é ainda realizada por Almeida Garrett através de uma
analogia que manifesta as diferenças de que se tece: trata-se de
re-ver. Esta forma de revisão assume particular relevância se a
considerarmos como manifestação visível do espessamento
histórico que põe dois textos, dois autores e duas épocas
históricas em confronto, prolongando-as uma na outra e ao mesmo
tempo tornando notória a sua distância. Tem aqui inteira razão
Gabriel Magalhães89, quando aponta que, «a partir de 1825,
surgem obras de Garrett e de Rivas que ainda são poemas épicos
— e, ao mesmo tempo, já o não são» (p. 169). Isto significa que é
também a matriz épica que se encontra sob intensa auscultação,
num momento (o Romantismo) que assiste já à afirmação do
género romanesco. Garrett lucidamente compreende o quanto a
modernidade literária passa pelas revisões e impurezas feitas das
matrizes herdadas. Camões e o poema épico; Viagens na Minha
Terra (em minha opinião, um dos mais conseguidos romances do
século  XIX europeu) e o complexo género romanesco; Frei Luís de
Sousa e a sua hesitação constitutiva entre tragédia e drama —
todos eles são grandes textos que não duvidam chamar as suas
tradições para com elas se medirem e para a partir delas
pensarem o que pode ser um seu premente aggiornamento. Isto
significa também que o processo pelo qual essa revisão procede
faz parte integrante da possibilidade de ser moderno, na sequência
aliás da Querela dos Antigos e dos Modernos que, havia em 1825
mais de um século, suscitara tantas posições e interpretações
divergentes. A  resposta de Almeida Garrett a esta questão, com
Camões, passa por ousar ler de outro modo, e escrever de outro
modo. O  afastamento da matriz épica tradicional, num texto que,
como vimos, tanto dela é devedora, é uma forma de respeito por
aquilo que não está fechado: a memória da epopeia.
Podemos, entretanto, detetar o quanto esta revisão está também
afetada por uma funda dimensão irónica que faz mesclar crença e
descrença, ideia de futuro e desanimada perceção do passado.
Talvez não tenha sido suficientemente sublinhado o facto de
Garrett fazer Camões confiar ao religioso espanhol, que o acolhe,
acompanha e ouve, no Canto IV, o seu livro-a-vir, Os Lusíadas:
[…] Meu haver único,
Todos os meus tesouros são um livro.
Pouco valor, — nenhum tem porventura;
Mas de longas fadigas, do trabalho
Da vida inteira é fruto. […]
Já náufrago nas águas desse rio
Onde tudo perdi, de um braço a vida,
Nadando, às ondas confiei revoltas,
Para no outro o salvar. — Este depósito
Em vossas mãos confio. Se mais novas
Não houverdes de mim… quem sabe? Acaso
Útil poderá ser à minha pátria.
Ela, e o seu amor, todo o inspiraram.
À sua glória inteira é consagrado.

Esta entrega simbólica, realizada nas vésperas da perda da


independência portuguesa, não é certamente casual: parece não
haver portugueses, em Portugal, dignos de respeitar o poema
camoniano, como não houve portugueses capazes de acolher
quem o escreveu.
Assim, esta entrega não pode por outro lado deixar de ser
relacionada com o que se passa no final do poema. Camões acaba
com uma invetiva contra os Portugueses, «raça de ingratos» que
esqueceram até o lugar onde jazia o Poeta: «Nem o humilde lugar
onde repoisam/ As cinzas de Camões, conhece o Luso». Este
escândalo (que persegue Garrett ainda nas suas Viagens) faz do
poema garrettiano um «canto de indignação» — e é por o ser que
o escritor «envia» o seu poema, não aos Portugueses, mas aos
«povos do universo», que, esses sim, saberiam prezar o que
Portugal desprezou. Ao fazer Camões confiar a um espanhol o
poema nacional por excelência, Garrett fá-lo antecipadamente
julgar o desprezo de que viria a ser alvo: Os Lusíadas e Camões
são símbolos nacionais de uma pátria que, afinal, pouco ou mesmo
nada os mereceu.
A este complexo de questões podemos ainda acrescentar uma
arguta observação de Gabriel Magalhães90, cujo alcance histórico
deve ser especialmente sublinhado, e que, a nosso conhecimento,
não foi ainda objeto de nenhum estudo específico (o que não deixa
de ser estranho, como «ponto cego» da nossa consciência pós-
colonial): o facto, por ele recordado, de a declaração de
independência do Brasil, a «joia da coroa» portuguesa, ter ocorrido
em 1822, e de ela ter sido reconhecida por Portugal no mesmo ano
em que Camões é publicado, 1825.
Este facto, recorrentemente esquecido, permite-nos olhar para o
poema de Garrett à luz de um outro conjunto de problemas,
articulados ainda com a noção de perda. No final do primeiro
quartel do século  XIX, a independência do Brasil significa
efetivamente um redimensionar da pátria que Portugal pode ser:
um Brasil que, a diferentes olhares, tinha surgido como a hipótese
de criar um «outro» e mais novo Portugal, capital do império. Não
admira, pois, que Magalhães considere Camões como «um texto
que regressa do império» (p. 179), sendo por isso, para 1580 como
para 1825, uma dupla reflexão sobre aquilo a que chama «um luto
imperial».
Ora esta questão surge como um elemento decisivo na
legitimação de uma leitura que não é apenas nacional, mas que
começa já a ser pós-colonial. A primeira grande perda moderna do
império português ver-se-ia assim simbolicamente inscrita no
regresso em perda de Camões, bem como na impossibilidade
desse regresso para Garrett.
A epopeia não teve pois como função única uma construção
ideal da identidade nacional, ou uma glorificação da Expansão que
a essa identidade foi associada. Ela abriu portas também à
construção de uma ideia de perda moderna que acompanhou,
sobretudo, a conceção de Portugal ao longo dos séculos  XIX e  XX.
Sem Garrett, Oliveira Martins não teria podido ler Camões como o
canto do cisne de Portugal como nação portuguesa. Ora, Oliveira
Martins, o historiador que sob vários pontos de vista herda e
prolonga o magistério historiográfico de Herculano, moldará a
interpretação coletiva que estará na base dos decisivos eventos
históricos que acompanham o final da monarquia, na passagem do
século  XIX para o século  XX, e entrará na conformação de muitas
gerações novecentistas, em particular na primeira parte do século.
Com Guerra Junqueiro, outra figura paradigmática de reflexão
literária sobre a identidade nacional, associada à ideia de
decadência nacional, Oliveira Martins fará entrar no século  XX,
ligada à ideia da epopeia camoniana, uma reflexão sobre Portugal
mais tarde continuada por António Sérgio e de que, de muitos
pontos de vista, ainda hoje podemos considerar-nos herdeiros.

4.1.2. GUERRA JUNQUEIRO E A PREPARAÇÃO DE


MENSAGEM, DE FERNANDO PESSOA

A modernidade não pode deixar de se fazer pelas fronteiras com


o pré- ou mesmo o antimoderno. Foi essa a ideia-chave que
defendemos no livro Cristalizações. Fronteiras da Modernidade91.
Nele, tentámos deslocar a reflexão da ideia de rutura ou de
revolução, literariamente acoplada à noção de vanguarda, para a
ideia de uma continuidade abrupta e paradoxal com o que de
menos moderno a modernidade reconheceria. Neste território mais
estranho, são conceitos como os de retaguarda que surgem como
potencialmente inovadores, no momento em que se compreende
que uma das peculiares formas de ir para a frente é ir para trás.
Este movimento de recuo pode levar até a um momento tão
distante que só certas sobrevivências do arcaico parecem
corresponder a um projeto de futuro possível, conjugando-se então
o pré-moderno no moderno de uma forma dir-se-ia imprevisível —
para quem olha para as coisas como uma ordem ordenada no
tempo, e não vê o seu potencial de brusquidão, que Nietzsche já
claramente tinha apontado nas suas reflexões «fora de tempo»,
com as quais tudo isto naturalmente se relaciona.
Esta questão, em que se complexifica a densidade histórica, dá a
ver a História como um problema bem mais interessante do que a
sua expressão unilinear e cronológica. A  relação com o passado,
que sustenta o pensamento histórico, é variável em termos de
extensão e em termos de juízo avaliativo, o que significa que a
consciência de aparecer «fora de tempo» é um dos fenómenos
históricos de contornos mais complexos e mais interessantes de
seguir. Para que isso aconteça, é necessária uma consciência
temporal estratificada e heterogénea, que integra a compreensão
de que a ideia de progresso — fundadora do pensamento
positivista — não permite descrever a totalidade das formas
históricas que os objetos e os fenómenos podem tomar e
efetivamente tomam. Este é, em traços gerais, o fundo do
problema que aqui queremos seguir através da forma como a
articulação entre Junqueiro e a sua leitura por Pessoa
correspondem a uma forma histórica de, no século XX, se receber a
epopeia e a transformar, revendo-a. A epopeia, essa, continua
sempre a regressar, não se cansa de o fazer.
Reconheçamos desde já que a leitura de Junqueiro não pode
não estar afetada por esse potencial antimoderno (que faz parte da
sua densificação histórica), quer ao nível da dicção, quer ao nível
simbólico-literário. Entretanto, esse potencial de antimodernidade
profético surgiu precisamente como o terreno em que melhor se
alicerçou, também, o seu potencial de futuro — pelo menos, o
futuro daquele particular passado que foi o seu presente. No que
segue esboçaremos algumas das razões pelas quais a pré- e
antimodernidade junqueirianas foram necessárias ao irromper do
moderno, ao ponto de, com algum carácter equívoco, Fernando
Pessoa se lhe referir92 como equiparável a Goethe, Wordsworth ou
Shelley. Refletiremos assim sobre o modo como é o facto de nele
se conjugarem as retaguardas possíveis que permite que outros o
tomem como arauto e profeta das vanguardas de que, aliás,
chegou a ser literal contemporâneo.
As lutas (para que o vocabulário bélico aponta) eram outras,
todavia. Junqueiro olhava numa direção totalmente oposta àquele
que nos habituámos a considerar, com razão, como maioritária. É
o seu grau de desfasamento que aqui interessa aquilatar, pelo que
ele diz não apenas sobre Junqueiro mas também sobre a
necessidade que os gestos de rutura têm de se fazer acompanhar
de gestos de profecia do passado. Aquilo que vale a pena
acompanhar é a forma como a longa construção da obra
junqueiriana repousa sobre uma matriz revisionista, que a pouco e
pouco introduz nos textos do passado esse tom e essa dicção
proféticos que são retrospetivamente atribuídos como atos
simultaneamente de validação e legitimação estéticos e éticos.
Tais atos são centrais para o «reconhecimento» de Junqueiro
como o antimoderno dentro da modernidade e, paradoxalmente, é
também por isso que arautos da modernidade, como Pessoa,
podem aceitá-lo como figuras de mediação.
A distância que vai de A Velhice do Padre Eterno (1885) a Finis
Patriae (1890) e a A Pátria (1896) é a distância que marca um
percurso que, em 1885, se orienta ainda pela ideia de um
Progresso capaz de aceitar os limites voltairianos impostos a Deus
para sustentar um projeto de futuro, aparentemente não duvidoso;
que, em Finis Patriae, sob a sombra do Ultimatum, pendularmente
oscilou para o seu polo oposto, descrevendo uma pátria encolhida
sob o peso de uma história que a teria feito soçobrar, e em que
apenas a ideia de uma «mocidade das escolas» pareceria acolher
e manter a formulação da esperança; e que, em A Pátria, se
configura em torno de uma matriz filosófica e política já claramente
republicana, em que «os simples» que Junqueiro tinha posto em
evidência quatro anos antes pareciam talvez vir a encontrar uma
ideia de pátria capaz de os realizar, mas onde a figura do Doido
sobreleva tal possibilidade. Há, portanto, um projeto de idealismo
humanitarista e de futuro que, progressivamente, vai esgotando a
sua aura de combatividade e a sua crença, para acentuar uma
consciência desistente e decadente cuja única saída parece ser
aquela (complexa) ideia de «simplicidade» que norteara Os
Simples (1892) e que já abrira, em 1885, A Velhice do Padre
Eterno, ao evocar as «almas cheias de paz, humildade e alegria».
Vários críticos se ocupam em distinguir «teses» e «fases» na
obra de Guerra Junqueiro93. O que mais comummente assim é
distinguido é, de um lado, a sua obra mais expressivamente
combativa e de intervenção, de contornos filosóficos e políticos (A
Morte de D. João, A Velhice do Padre Eterno, A Pátria), e do outro,
a sua obra mais ligada a uma reconstrução de teor metafísico, de
raízes panteístas (Os Simples, as Orações). Mas a ideia que aqui
vale a pena defender é que não faz sentido olhar para elas como
duas fases, antes como diferentes e lógicas manifestações de um
mesmo projeto que pode receber, em momentos diferenciados,
diversas configurações. Estas ganham em ser entendidas à luz de
uma perspetiva que, longe de as distinguir como opostas, as
reconstitui como rede, para compreender aquilo que na difícil
simplicidade de Os Simples é, por exemplo, análoga proposta da
ideologia de A Pátria. Ou aquilo que, na Oração à Luz, pode ser
entendido como resposta às decrepitudes descritas nas «mortes»,
«velhices» e «fins» de outros textos.
Este mesmo projeto repousa, como vimos, sobre uma ideia de
profetismo arcaico que Junqueiro transporta para o presente como
uma ideia de modernidade precisamente no seu carácter
antimoderno. Já Antero de Quental, em 188694 (e portanto
bastante cedo no que pode ser uma vida de um profeta nascido
em 1850…), falava da «deplorável mania de profeta» de Guerra
Junqueiro, acrescentando que ela ameaçava «perdê-lo como
perdeu Hugo». Esta visão anteriana não poderia ser mais justa, se
confrontada com o que o futuro trouxe. Junqueiro ocupou-se em
confirmar este lugar simbólico quer junto dos seus
contemporâneos quer junto dos seus imediatos descendentes
literários, alguns dos quais foram, aliás, ainda seus
contemporâneos. Dois deles merecem particular referência, pela
abertura dissonante com que aquilatam o legado junqueiriano e
pela forma como o conjugam quer com a obra própria que
produzem, quer com a imaginação que fabricam da modernidade.
Trata-se de Raul Brandão e de Fernando Pessoa.
Raul Brandão sintetiza, em Junqueiro, a dualidade que acima
frisei, e a forma como ela é articulada. Para Brandão, Junqueiro é
uma «voz prodigiosa que atinge a orquestração formidável da
Pátria ou que nos fala baixinho pela boca dos humildes […].
[Guerra Junqueiro] desejou ser Poeta e ser Santo»95. A memória
épica é aqui uma referência que, por ser ínvia, não deixa de ser
essencial. A justaposição brandoniana das duas figuras e dos dois
tipos de voz é precisamente a medida de que para ele essa
«orquestração formidável» não é senão uma outra forma de
reconhecer o modo como Junqueiro também «fala baixinho pela
boca dos humildes». Este é por isso um projeto político-ideológico,
sem dúvida, mas cuja base metafísica encontra na rede d’Os
Simples e de ambas as Orações (em particular a Oração à Luz,
conforme Fernando Pessoa apontou) uma curiosa amplitude. O
profetismo junqueiriano, em que oratória e eloquência são peças
centrais, assenta então também, e paradoxalmente, nesta
capacidade de «falar baixinho», fazendo-o «pela boca dos
humildes».
A descrição brandoniana unia assim as nossas duas gerações
finisseculares, a de 70 e a de 90, num comum projeto nacional de
reconhecer que havia voz nos que até então pouco se tinham feito
ouvir96, aqueles a quem Lindeza Diogo chama, com simplicidade
justa, os «irmãos dissemelhantes»97. E sem dúvida que é de
Brandão que Brandão também fala, ao assim caracterizar
Junqueiro — como é legítimo perguntar se a sombra do Antero
recordado no in memoriam queirosiano não é também projetado
nesta revisitação junqueiriana por Brandão. Não estranhará, pois,
que o Poeta se visse a si próprio como iluminado, ou acreditasse
que lhe teria sido cometido tal papel: pela sua palavra poderiam
talvez vir a falar, retrospetiva e prospetivamente, os que a história
tinha esquecido, e isto faria do poema A Pátria uma forma de
considerar como é possível ter um projeto de esquecimento
histórico para o futuro. Talvez não seja possível prescindir, de
quando em vez, destes sujeitos de fé, também eles destinados aos
céticos e ao ceticismo, porque sobre eles se podem depois
construir posteriores ruturas e inovações. Mesmo com todas as
limitações em que a tenaz e contraditória receção98 junqueiriana se
tornou fértil.
É também de Pessoa que Fernando Pessoa fala quando, a
propósito de Oração à Luz (e Junqueiro lembra que, mesmo se
publicada em 1904, ela é anterior em termos de composição a Os
Simples), e na sequência de Oração ao Pão (1902), se pronuncia
no ensaio A Nova Poesia Portuguesa, publicado em 1912 na
revista A Águia. Para Pessoa, Junqueiro é o primeiro poeta de uma
nova corrente literária, exprimindo abertamente a confluência entre
poesia e filosofia, sendo o lugar maior de tal confluência
precisamente Oração à Luz, considerada por Pessoa «uma das
maiores poesias metafísicas do mundo»99, e colocando-a ao nível
da Ode de Wordsworth.
Interessa entender de que forma Pessoa, no momento em que
articula e monta diferentes tipos de vanguardismo, olha para
Junqueiro como arauto da novidade. Cremos que esta
interpretação aparentemente paradoxal só poderá entender-se
mediante o olhar arguto de Eduardo Lourenço100 e a conformação
do papel mediador que cabe, dentro da tribo pessoana, ao mestre
Caeiro, entendendo nós este mestre como justamente um poeta da
estirpe do Junqueiro «simples» que Brandão descobrira, e do
Junqueiro metafísico que Pessoa descortinara. A tese de Lourenço
é a de que é Caeiro, no seu bucolismo antibucólico, bem como na
sua redução mitológica de um Padre Eterno Velho a um Filho
Eterno sempre criança, no poema VIII do Guardador de Rebanhos,
quem assegura a passagem de Junqueiro à poética modernista e
pessoana em particular. O destaque vai aqui para Unamuno e o
seu papel n’A Águia, como mediador de tal transição. Mas não
menos importantes serão dois outros elos lembrados por
Lourenço: a forma como Pátria é um texto decisivo para o
entendimento da problemática e da temática da Mensagem (p.
115); e o modo como o reconhecimento de Oração à Luz enquanto
forma alta de poesia metafísica, por Pessoa, não pode deixar de
ser lido como uma afirmação seriíssima por parte de quem nutre,
precisamente pela poesia metafísica, um respeito poético acima de
qualquer dúvida.
Acrescentemos ainda outro dado muito significativo no contexto,
e que nos permitirá chegar ao texto de Os Lusíadas como um dos
fantasmas emudecidos de Junqueiro (e mais ainda de Pessoa). Na
nota publicada em 1892 como posfácio a Os Simples, Guerra
Junqueiro fala do seu livro como uma inquirição metafísica sobre
«o segredo íntimo das coisas». Não será a isto que Alberto Caeiro
responde, efetivamente, quando, iconoclasta de outro iconoclasta,
proclama que «o único sentido íntimo das cousas é elas não terem
sentido íntimo nenhum»? Seja como for, a ligação entre Junqueiro
e Pessoa, a fazer-se pelo lado da reflexão metafísica e pela
articulação entre poesia e filosofia, como parece ser o caso, não
poderia deixar de ser construída sobre o nome que, na tradição
épica e lírica portuguesa, emblematiza tal reflexão, constituindo-se
como seu epítome: Camões. Tanto mais quanto Camões é, para
Junqueiro, nome e figura que obsessivamente regressa, fantasma
transportando tudo quanto nele o poeta conseguir ler. Tanto mais
quanto Camões é, para Pessoa, sobretudo esse Outro emudecido
que se trata de, se possível, superar. A relação entre Junqueiro e
Pessoa manifesta o silenciamento da sombra que a ambos
aproxima: a figura de Camões, quer por via direta, quer por via
desse seu revisitador apocalíptico que foi, no final do século  XIX,
como atrás vimos, Oliveira Martins.
Deste ponto de vista, a aproximação de Junqueiro a Oliveira
Martins, várias vezes proposta por nomes como Oscar Lopes,
Machado Pires ou Helder Macedo101, sublinharia não apenas a
pertença a um mesmo ideário geracional ou percurso cronológico,
que aliás ambos partilharam com Antero, mas o reconhecimento
de que tanto Junqueiro como Oliveira Martins se querem, ambos,
como os obreiros de uma história e sobretudo de uma conceção de
história nacional que Herculano penosamente começara a erguer
mas que dificilmente se podia dizer estar nos seus fundamentos
aparelhada, nos finais do século  XIX. Seabra Pereira é claro a este
respeito, quando afirma:

O nacionalismo literário do fim-de-século empenha-se numa


imagem singularizadora de Portugal através da evocação de
figuras e feitos passados e através da fixação no patriarcalismo
de formoso cenário rural. Todavia, não menos se empenha no
profetismo visionário, incrementado por Oliveira Martins no
prefácio às Odes e Canções (1884) de Luís de Magalhães, em
coerente contrapartida do influxo depressivo originado pela sua
interpretação apocalíptica da história de Portugal.102 (p. 538)
Há em Guerra Junqueiro e Oliveira Martins a proposta de uma
ideia histórica de Portugal que, também em ambos, não
surpreende ver-se polarizada em torno da figura poligonal de
Camões. O profetismo junqueiriano, a sua eloquência, o seu gesto
oratório podem compreender-se como outros tantos episódios
desta tentativa de achar a forma para, em poesia, reencontrar a
epopeia possível: aquela que fustiga os cortesãos e as figuras
análogas a D. João, e que condena a subserviência dos rituais
farisaicos; e aquela que subitamente faz acreditar ser possível
«desagrilhoar» Prometeu e reconstruir de algum modo a Pátria.
Era aliás o próprio Junqueiro o primeiro a reconhecer que o seu
poema A Pátria continha uma ideia de ressurgimento da Nação em
torno das figuras, para ele emblemáticas, de Nun’Álvares e de
Camões. Mas, no mesmo poema, atenção especial deve ser dada,
no contexto presente, à figura do Doido, bem como as relações
que estabelece com o políptico de Oliveira Martins e a
caracterização que ele faz da história de Portugal. Já Helder
Macedo103, com justeza, sublinhara a visão orgânica da história de
Portugal de Oliveira Martins e a sua impossibilidade ontológica (e
por isso paradoxal existência histórica) como «visão fantasmática
de Portugal», lembrando a caracterização que este autor faz do
país como uma nação «decrépita e doida», caída em «estado
comatoso» (idem). Ora a figura do Doido é central no poema de
Junqueiro, transportando memórias simultaneamente
shakespeareanas e camonianas — visto que ao seu recorte
alusivo a tragédias como Hamlet ou King Lear se acrescenta o
facto de que é explicitamente associado à figura de Camões
através da citação direta da epopeia: «Esta é a ditosa pátria minha
amada…» Devemos ainda atender à dinastia espectral dos
Braganças, desfilando perante D. Carlos. Esta dimensão espectral
e fantasmática, associada àqueloutra representada pela figura do
Doido, introduz no poema um modo de reflexão que faz convergir a
questão político-social com a questão mítico-simbólica.
O projeto literário de Junqueiro parece propor a reescrita da
epopeia como o lugar moderno por excelência, no que seria um
projeto claramente deslocado, ou pelo menos de conformação
paradoxal, como a futurante Mensagem deixaria entrever. E à
literatura parecia caber, no ethos junqueiriano, um papel
fundamental (e para começar possível), de confluência entre
política e ética. Mas isto não era específico de Portugal, nem de
Junqueiro: em França, a figura de Anatole France, ou Zola e o
Affaire Dreyfus não respondiam a outra convicção, senão a essa
mesma. E há momentos em que as convicções existem: «Crentes
e combatentes», no dizer de Junqueiro104 ele mesmo.
A construção da modernidade da Mensagem precisa, assim, da
retaguarda que Junqueiro lhe oferece como mediação camoniana
— a que se associa, em grau maior, o magnífico poema narrativo
de Cesário Verde, publicado em 1880, «O Sentimento dum
Ocidental». Camões e em particular Os Lusíadas, os grandes
silenciados na obra de Pessoa, são-no também pela sua
incorporação através de Junqueiro e de Cesário Verde e pela
forma como são anexados, via Oliveira Martins, como particular
obsessão apocalíptica que em Mensagem se acoplará ao
visionarismo do Quinto Império. Mas nada disto poderia fazer-se
sem o decisivo tom de retaguarda imprimido por Junqueiro ao
poema Pátria, com a sua eloquência deslocada de profeta de um
passado incompatível com o projeto fundador da modernidade.
O  paradoxo junqueiriano, que pensamos inultrapassável em
termos de receção crítica, deriva disto mesmo: trata-se de uma
obra que diz anunciar um futuro na precisa medida em que se
recusa a dizê-lo e, sequer, a procurar a sua linguagem, refugiando-
se na dicção depurada de um passado mais-que-perfeito. Quase
como se Junqueiro levasse a sério o paradoxal anacronismo
histórico descrito por Borges no seu efeito de Pierre Menard, ao
escrever no século  XX a perfeita língua arcaica cervantina do
século XVII.
Não espanta, pois, que Camões seja a figura que
simultaneamente se encontra em e se evade de este encontro
entre poetas e escritores refletindo sobre História: Fernando
Pessoa, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins. A todos eles Camões
e Os Lusíadas oferecem um esteio (aliás, um ponto de fuga) que é
ao mesmo tempo passado, presente e futuro; glória, apocalipse e
redenção; mito e política; vanguarda e retaguarda; modernidade e
pré-modernidade. De novo, a leitura de «O Sentimento dum
Ocidental», de Cesário, permite iluminar este conjunto de
paradoxos da modernidade, construída simultaneamente em face
de e contra o passado histórico.
Entretanto, Camões e a epopeia camoniana funcionam para
Pessoa e a Mensagem como o significativo indito que apenas o
gigantesco Adamastor sinaliza de forma indelevelmente textual no
poema pessoano. Talvez por isso mesmo Junqueiro e A Pátria
surjam como lugar alternativo possível para aquilo que assim tinha
sido silenciado. Helder Macedo105 já tinha assinalado que «muito,
na Mensagem, até na sua imagística, foi recebido e transformado
daquilo que, na Pátria, transcende o seu sentido político imediato».
E sublinhara também por exemplo a imagem da espada, dando
ainda especial ênfase ao processo de caracterização da loucura,
afinal sebastiânica, que uniria estas duas obras à de Oliveira
Martins, e que aproximaria também Mensagem da História de
Portugal pelo regresso ao esvaziamento de um processo de
redenção que apesar de tudo A Pátria teria assumido. E conclui,
significativamente: «Neste sentido, a Pátria é um poema de
esperança visionária e a Mensagem um poema de visionarismo
sem esperança» (pp. 161-2).
Esta «esperança visionária» repousa, entretanto, sobre a
interpretação da figura e da obra camonianas como lugares-chave
em que futuro e esvaziamento coincidem, neste sentido aliás
recuperando a forma como também para Oliveira Martins o poema
de Camões tinha representado simultaneamente o ponto cimeiro e
o inicial ponto de degradação do processo evolutivo da nação.
Escreve Oliveira Martins sobre Os Lusíadas: «Camões escreveu
um poema que foi um epitáfio, porque a sociedade que cantou
acabou com ele. Os Lusíadas consagram as obras dos heróis.»106
E repete mais à frente (p. 116):

O poema ficou desde então [1572] gravado na alma nacional


como o epitáfio da alma da nação que encontrava ali os
impulsos que a tinham movido, os sentimentos que a tinham
agitado, os amores por que chorara, as esperanças por que
suspirara, encontrando também agora o pessimismo triste de
que se via irremediavelmente ferida.

Não é, pois, difícil ver que a figura de Camões é para Oliveira


Martins, e depois para Junqueiro, um emblema, sim, mas de algo
que é afetado pelo anacronismo, pelo seu carácter fora de tempo:
quando acontece está já «irremediavelmente ferido», no dizer de
Oliveira Martins, sendo por essa mesma razão que é
simultaneamente o elogio do que consagra e o epitáfio do que é
consagrado.
Este carácter lutuoso e glorificador, em simultâneo, faz d’Os
Lusíadas um texto com uma dimensão melancólica que aliás
quadra à gesta apocalíptica da História de Portugal, tal como
Oliveira Martins a concebe. Mas é este mesmo carácter que
Junqueiro herda para a conceção do seu poema A  Pátria, o que
nele acentua a forma como um projeto de futuro repousa sobre
uma conceção lutuosa de passado e sobre uma ideia de «nação-
epitáfio» que, na realidade, dificilmente pode ser ultrapassada.
Também aqui a modernidade virada para a frente de Junqueiro não
poderia prescindir deste projeto de passado. A própria figura do
Doido dificilmente poderia ser lida sem a descrição, em pano de
fundo, feita por Oliveira Martins, de Lisboa recebendo a notícia da
catástrofe de Alcácer Quibir: «O desvairamento invadiu toda a
gente. Lisboa parecia uma mansão de doidos. Os homens, a força,
os maridos, os filhos, tudo passara, tudo ficara em África. Havia
apenas mulheres, crianças, velhos, enfermos; havia Camões,
encostado às suas muletas, vivendo de esmolas; havia o cardeal
feito rei, pendurado aos peitos de Maria da Mota, como uma
criança, tremendo de susto, bolsando o leite» (p. 120).
Camões, o Camões de Oliveira Martins, faz parte integrante
deste paradoxal projeto junqueiriano: uma ideia de futuro que não
se distingue do profetismo do passado, uma modernidade que a si
mesma se concebe como arauto de tempos extintos. Veja-se como
Oliveira Martins faz coincidir no poeta quinhentista o momento
glorioso e paradoxal dessa extinção: «Em Camões, a noite fecha-
se com a morte do seu povo e com o desespero fúnebre da sua
alma na força perdida da pátria, na beleza apagada do mundo» (p.
129). Extraordinária formulação, esta última: o mundo como o lugar
onde a beleza que se apaga é, em simultâneo, aquilo que sustenta
a dimensão do poeta, cuja melancolia é assim condição da sua
própria poesia. E é ainda a Camões e a Os Lusíadas, em particular
ao seu Canto IV (14-19) (muito provavelmente mais uma vez
mediado por Oliveira Martins, A Vida de Nun’Álvares, 1883), que
Guerra Junqueiro vai buscar a figura de Nun’Álvares Pereira como
aquele princípio pátrio que em um breve instante se corporizou.
Esse herói, saído d’Os Lusíadas e da cronística medieval para
inteiro assombrar A Pátria, dá conta do limite impossível para o
qual tende Junqueiro, nesse dealbar da modernidade que ele
simultaneamente recusa e profetiza107.
Guerra Junqueiro pode surgir como arauto dos tempos que virão
porque na realidade ele é tomado como o garante de que o
passado não se esvairá. Paradoxalmente, a sua iconoclastia é
uma condição para a sobrevivência, como o seu carácter pré-
moderno e mesmo quase arcaico pode surgir como forma de
garantir que o «novo» (entendido como aquilo que se deseja, ou
que pelo menos se prega) tem versões segundo as quais a
componente revisionista não é incompatível com tal novidade.
Iconoclastia e revisionismo não são contraditórios, antes
estranhamente solidários. É deste ponto de vista que, assim o
entendemos, deve ser olhada a obra de Junqueiro, bem assim a
forma como simbolicamente a sua figura foi investida como profeta
e patriarca.
A Velhice do Padre Eterno e Os Simples são, desta perspetiva,
textos que se complementam, e o carácter pré-moderno do
segundo, ao argumentar a representação simbólica de um mundo
rural e arcaico em vias de acelerada desagregação pelo irromper
da modernidade, sustenta a possibilidade daquilo em que se quer
acreditar como novo. Alberto Caeiro seria, deste ponto de vista, o
mestre, precisamente porque o simples dos simples, mas «de
espécie complicada»… Este novo comportaria gestos de regresso,
mesmo se apenas sob a sua forma nostálgica, que um profeta do
futuro deveria também saber incorporar, tornando-se por isso de
algum modo profeta do passado.
A simplicidade e os simples junqueirianos, a que devemos
associar essas também «formas simples» que são «o pão» e «a
luz» das suas orações, não são assim meras fases de contradição
ou arrependimento, ou sequer momentos de compensação. Num
Discurso Republicano pronunciado em 1897, escrevia Junqueiro:
Pão! venha pão! ululam bocas formidandas.
Ideal! Ideal! Ideal! — gritam as almas às estrelas.
Porque as bocas têm direito ao pão e as almas têm direito à luz.108

Assim, as duas orações, respetivamente de 1902 e 1904, ao pão


e à luz, no seu mesmo regresso a uma simplicidade elemental, não
são mais do que a transposição desse progressismo regressivo
que é o de Junqueiro, dessa conceção paradoxal que é a sua ideia
de futuro enigmaticamente fechada ao futuro ele mesmo. Assim,
aquilo que lhe foi «perdoado»109 por estas duas orações, que
parcialmente compensariam a iconoclastia da sua obra mais
revolucionária, parece-me ser tão-só uma outra forma que recebe
aquilo que é o mesmo irresolúvel paradoxo de uma modernidade
que se inaugura pela profecia do passado, e que encontra em
Camões e nos simples, no pão e na luz, no doido e na criança, os
lugares da sua resolução apocalíptica, como não podia deixar de
ser.

4.1.3. ANTÓNIO LOBO ANTUNES, AS NAUS

Existem dois tipos de relações fundamentais que unem o homem


à terra, configurando de um lado formas de nomadismo e
deambulação e, do outro, formas de fixação e sedentarismo. A
terra convidaria, segundo a nossa cultura sedentária, a ficar, e em
consequência a ter como lugar simbólico, e ponto de fuga ideal, o
enraizamento do homem na terra que o viu nascer ou crescer, ou
que ele mesmo escolheu como sua pátria existencial e simbólica.
Sabemos, todavia, que isto nem sempre foi assim, e que as
raízes mais profundas, e também mais ancestrais, da nossa
cultura mergulham em movimentos de nomadismo de que muitos
textos, nomeadamente literários, se fazem eco, deles
transportando numerosas marcas. Aquilo que aqui interessa, no
contexto deste volume em geral mas também no contexto deste
capítulo em particular, que segue algumas das conformações e
revisitações da épica camoniana e da sua indagação sobre
Portugal como História, é entretanto de uma relação com a terra
que ambiguamente se situa «entre» estes dois movimentos
antropológicos essenciais, visto que ela implica tanto o
reconhecimento de um eixo geográfico que se constitui como
fundador também do ponto de vista axiológico, como a orientação
frequentemente em rutura em direcção a um fora de tal lugar
simbólico: dir-se-ia, nestes casos ambíguos e historicamente
complexos (existem vários exemplos deles), que o lugar existe
para que melhor dele se possa sair, para que a partida possa (ou
não possa, precisamente) dar lugar a um regresso.
É claro que a história de Portugal, centrada como está, em
termos de extensão temporal e peso simbólico, em torno da
Expansão, tem desta última relação ambígua uma experiência
particularmente pregnante, dando forma literária a um grande
conjunto de textos e reflexões que manifestam a oscilação e a
hesitação entre partir e ficar, entre uma experiência da pátria como
lugar onde se está e uma consciência de que essa mesma pátria
«se cumpre» (de novo recorremos a Pessoa) tanto melhor quanto
mais fora de si mesma souber estar. Sabemos que uma forma de
«se cumprir Portugal» residia, para Fernando Pessoa, numa
dimensão metafísica configurada em torno da noção de Quinto
Império, herdada de Pe. António Vieira. Mas o que aqui nos ocupa,
centrando-nos numa reflexão herdeira das transformações
assombradas que a epopeia camoniana vai sofrendo, para melhor
continuar a sustentar uma reflexão sobre Portugal, a sua História e
a identidade portuguesa, é sobretudo a consciência literária da
tensão entre ficar, partir e regressar, que podemos dizer essencial
para a compreensão de tudo quanto se escreve em português, em
torno desta matéria, desde a historiografia medieval.
Partir e regressar pertencem então a este registo complexo e
potencialmente contraditório, pelo qual o espaço é interrogado não
tanto enquanto lugar de permanência mas enquanto eixo capaz de
medir a distância de todo o além relativamente a si mesmo. É este
movimento, ou esta combinação de movimentos complementares,
que neste capítulo seguiremos, tomando como objeto um dos
romances de António Lobo Antunes, As Naus, publicado em 1988.
Se romancista contemporâneo há, em Portugal, para quem a
inquietação e a ansiedade de pertença identitária estão no coração
do seu projeto literário, ele é António Lobo Antunes, e as mais de
duas dezenas de romances que publicou desde 1979. Diga-se
desde já que tomaremos este romance como uma escrita desviada
da epopeia Os Lusíadas. E propomos que esta escrita desviada
seja sentida como mais uma das conformações históricas que a
reflexão sobre a História vai tomando. No capítulo anterior, era a
retaguarda junqueiriana que dava forma histórica à memória épica.
Aqui, é a reescrita alterada antuniana que revisita a mesma
memória e a traz historicamente para o presente, dando conta das
transformações a que este presente a tem de sujeitar. Vejamos
pois.
Partir e regressar constituem, como atrás dissemos, dois
movimentos que escandem o imaginário simbólico em Portugal, ou
seja, a sua História mas também, e sobretudo, aquilo que os
Portugueses nela projetam como passado, presente e futuro.
Partir, lembremo-lo, foi um projeto quase coincidente com a
fundação da nacionalidade: Portugal, fundado em meados do
século  XII, conhece cem anos depois, com o rei D. Dinis, a
empresa de plantação do extenso pinhal de Leiria, sem a qual
nenhuma empresa marítima futura teria sido possível. Plantar a
terra, ato afinal sedentário por definição, torna-se aqui, mesmo se
retrospetivamente (mas é assim que se vai construindo a História),
condição para poder partir, para um certo tipo de nomadismo —
em tensão que apenas poderá parecer paradoxal a uma primeira
vista. Desde o século  XIV que partir se torna palavra-chave para
compreender os destinos e os eventos históricos em Portugal. Não
são poucos os exemplos, históricos e literários, alguns dos quais
constituem matéria de capítulos precedentes, em que o sentido de
território é interrogado de forma direta, visto que Portugal,
enquanto lugar de pertença histórica, parece simbolicamente
conceber-se sobretudo a partir do engendramento de outras terras
que o projetam como distância. Desta tensão coletiva entre um
território europeu politicamente fixado e geograficamente estável,
de um lado, e, do outro, um imenso território «além-mar»,
imaginado como inesgotável (é este o sentido simbólico do Quinto
Império pessoano, aliás), nasce como vimos a epopeia camoniana,
bem como todos os sinais que a antecedem e a envolvem. E a
História daqueles que partem, e que se espalham pelo mundo,
torna-se assim a única possibilidade de conceber a História dos
que ficam, dos que antes ficaram. Estranha condição, esta, em que
habitar um território apenas parece ser possível a partir de um
outro território, que é também o território do outro…
É também porque se parte que esta epopeia coincide, histórica
mas também simbolicamente, com a perda da independência (que
por ser transitória não deixa de estar enraizada na memória
coletiva e no imaginário português), no final do século  XVI: D.
Sebastião, o jovem rei que parte sem todavia regressar, e que por
isso mesmo poderá sempre fazê-lo, hoje como há mais de 400
anos.
É este o contexto histórico que permite, e para começar pelo
final, que o romance As Naus termine com uma assembleia de
retornados (e literalmente fantasmas!) que olha fixamente para o
mar, aguardando ouvir «os relinchos de um cavalo impossível» que
o rei cavalgaria. Mas muitos mais partem também. Por razões
económicas e/ou políticas, em especial nos séculos  XIX e  XX, partir
recebe nomes especiais: falamos então de emigrantes e exilados,
como aqui de retornados, aqueles que a terra não soube preservar
de uma partida forçada, e que poderão um dia voltar… ou não.
A todas estas partidas, a última parte do século  XX acrescenta
movimentos de regresso: o regresso às fronteiras europeias, com
a independência das colónias, depois de 1974; o regresso súbito
de centenas de milhares de portugueses das ex-colónias, aqueles
que ficarão conhecidos sob o nome de «retornados». É possível
pois dizer que o final do século  XX confronta Portugal com um
território que a história lhe tinha feito ir evitando, se não mesmo
fugindo.
Esta tensão histórica é também ela suscitada pela literatura:
poucos textos como o deste romance de Lobo Antunes se dirigem
à ideia desta contraepopeia do regresso dos deserdados, aqueles
que a pátria expatriou, e dos quais no fundo pouco desejou ou
previu o regresso. Terão eles de viver numa terra que não foi a
deles e de algum modo continua a não ser: deverão habitar
dolorosamente uma pátria de que suspeitam. Numa entrevista
publicada no momento em que redigia este romance110, declarava
o escritor: «Eu estou a tentar escrever aquilo que o Camões se
esqueceu de escrever, ou não teve tempo para escrever… é uma
exaltação dos valores nacionais… A ideia básica é a seguinte: as
pessoas regressam ao país e então viver uma vida…» Digamos
que As Naus (a que o autor pensou chamar, num primeiro
momento, O Regresso das Caravelas) tematizam a dificuldade de
viver uma vida, encetar uma vida depois de um regresso que, na
maior parte dos casos, nunca tinham equacionado.
António Lobo Antunes quis aqui fazer um livro sobre o regresso
sem glória dos retornados — embora ele encontre nesse regresso
sem glória uma forma de verdadeiramente «exaltar os valores
nacionais». Trata-se assim de refletir sobre as complexas relações
entre territorialidade e desterritorialização, encontrando a relação
entre a população e a terra que habitou e da qual foi obrigada a
partir, por um lado; e a relação entre ela e a terra que nunca
habitou e onde é forçada a viver, sem que a sua receção seja
menos ambígua ou equívoca. O romance de Lobo Antunes, pode
dizer-se, transforma a Geografia em História, e é nas contradições
da primeira que vemos encenadas as tensões da segunda.
É esta a razão pela qual o romance escolhe desenrolar-se
através do cruzamento entre os séculos XV-XVI e o século XX, como
na mesma entrevista o próprio escritor já explicava: «Por exemplo:
o Bartolomeu Dias será fiscal da companhia das águas… O Pedro
Álvares Cabral vive com uma mulata, etc.» A recuperação do
passado faz-se pela introdução no romance, como personagens,
de nomes de agentes gloriosos da História obrigados a voltar das
Descobertas e a protagonizar, no presente, a procura de uma
identidade que nenhum deles afinal conservou.
Mas deste ponto de vista, e do ponto de vista das numerosas
personagens que atravessam este romance (como convém a uma
contraepopeia), a construção mais pungente, e capaz de
testemunhar de forma mais dramática essa falta de pertença,
realiza-se através dos dois velhos que constituem o casal anónimo
que regressa a Lixboa (a cidade também ela grafada à antiga)
depois de ter vivido durante cinquenta e três anos na Guiné:
nenhum deles terá alguma vez um nome, e ambos acabam
separados, sem nada que possam partilhar, nem memórias, nem
linguagem, nem vida conjunta. No entanto, é precisamente porque
nunca terão um nome que conseguem atingir um patamar
alegórico que não é incompatível com a experiência do concreto
nem do histórico. Nestas duas personagens se inscreve, então, a
perda mais dolorosa: a que atinge a possibilidade de diferenciação
histórica, através da linguagem e da memória.
A lógica global que conduz este romance é pois, do ponto de
vista que aqui desenvolvemos, a lógica espacial, que aqui governa
a lógica temporal e histórica, visto serem os lugares a fazer
aparecer e reaparecer as personagens de nomes histórica e
simbolicamente significativos, como se fossem paródias de
fantasmas — paródias no sentido mesmo em que são afetados na
sua memória, e que os pequenos traços de recordações gloriosas
que conservam apenas existem para que melhor possa sobressair
o seu carácter inadequado, quase patético. As  porosidades
temporais que constituem o romance, construindo uma realidade
simultaneamente do século  XVI e do século  XX, e os consequentes
cruzamentos de realidades históricas existentes em tais mundos
paralelos têm também efeitos decisivos na estrutura do romance e
no sentido existencial que ele propõe.
Na realidade, é possível dizer que estamos diante de um
processo de anonimização do romance, processo tanto mais
paradoxal quanto se trata de um texto em que abundam nomes
importantes da História sobretudo da Expansão como o rei D.
Manuel, Vasco da Gama, Diogo Cão, Bartolomeu Dias, Francisco
Xavier, Manoel de Sousa Sepúlveda. Se a estes acrescentarmos
outros, como Cervantes, Buñuel, García Lorca ou Gomes Leal,
para citar apenas alguns, compreenderemos que o peso das
referências históricas a acontecimentos, por exemplo, o naufrágio
de Manoel de Sousa Sepúlveda, e a personagens historicamente
reconhecíveis é imenso, e faz parte da carga simbólica que este
romance transporta.
O processo de anonimato que atrás referimos repousa em
primeira instância sobre a própria estrutura romanesca, construída
por dezoito capítulos sem qualquer título nem nenhuma estrutura
hierarquizante e, deste ponto de vista, baseada numa lógica
paratáctica, que privilegia a acumulação e a justaposição de
materiais discursivos, e não a sua subordinação uns aos outros.
Além deste aspeto, as únicas personagens que se podem eximir à
reescrita paródica são aqueles que não têm uma existência textual
e histórica prévia, os dois velhos anónimos. Todas as outras
personagens são de algum modo arrancadas ao seu tempo e
violentamente introduzidas noutro, não guardando desse passado,
em geral, senão muito poucos atributos, entre os quais o seu nome
«glorioso». Em última análise, esta estrutura sublinha o
fechamento celular das diversas personagens e das suas histórias
sobre si próprias, já que o romance insiste sobre a ausência de
interação entre as personagens, bem como sobre a falta de
coincidência narrativa e também histórica entre as histórias
respetivas.
O romance dá assim a ver um mundo de certa forma
pulverizado, em que o denominador comum parece ser constituído
pelo regresso à terra, pelo ato de regressar que em princípio
fecharia o círculo aberto, tantos séculos antes, pela partida. No
entanto, este mundo pulverizado a que se regressa, esta terra
histórica que recebe depois de ter feito partir, é sobretudo um
espaço de interrogação e questionamento, mais do que de
acolhimento: estamos longe das perfeitas narrativas de viagem da
Antiguidade Clássica, os nostoi, em que partida e chegada
completavam o círculo da perfeição. Aqui, os mesmos nomes dos
que partiram regressam agora: mas a sua terra e as suas histórias
mudaram entretanto, e é por isso sobretudo necessário considerar
como e em que medida o passado (os passados) pode(m)
construir a terra em que eles habitam no(s) presente(s). É também
neste sentido que Maria Alzira Seixo observa, com razão, que o
regresso à pátria é realizado através de uma visita ao tempo
presente111. E  assim, mesmo se de forma oblíqua, o tempo é
captado sob a sua dimensão espacial e o regresso à pátria torna-
se numa revisitação da história da comunidade. Uma vez mais, a
circularidade (aqui imperfeita) da viagem espacial combina-se de
forma inextricável com a representação histórica da distância que
separa os séculos XV e XVI do século XX.
O romance As Naus recusa assim reger-se por uma lógica
totalizante, como se fosse já impossível descrever uma realidade
em que a ação principal devesse ser reconhecida por toda a gente.
É esta a razão pela qual essas ações, ditas secundárias, se
atropelam umas nas outras e os universos a que pertencem são
paralelos e simultaneamente se intersetam. Cabe afinal ao leitor,
que pode coordenar todas essas ações através da lógica atrás
descrita, identificar o carácter trágico de um mundo construído
sobre a falta de reconhecimento e a falta de contacto.
Esta pulverização das várias histórias, assim como quer o
anonimato quer o secreto mutismo que as associa sem entretanto
as fazer verdadeiramente cruzar, veem-se intensificadas pela
escolha da voz narrativa. Porque neste romance, contrariamente
àqueles que o precederam na carreira literária do autor (com
exceção de Fado Alexandrino, 1983), não existe nenhuma voz que
se alce ao estatuto de narrador central, pelo que as histórias se
veem também elas distribuídas pelas vozes fragmentárias que
topicamente (e volatilmente) as assumem. Esta questão é tanto
mais importante quanto tivermos consciência do facto de que Lobo
Antunes tinha previsto que o narrador deste romance fosse o
próprio Luís de Camões: «[…] era suposto que essas coisas
fossem escritas pelo Camões. Como o livro todo»112: aquilo a que
chegamos com este romance é também à perda da grande voz
histórica aglutinante que presidia à épica, perda que é preciso
tematizar para que ela possa constituir-se enquanto herança
possível.
Neste quadro, não é difícil considerar que o espaço e a forma
como o lugar é habitado são vistos como a soma das histórias de
vida frequentemente patéticas que aí se desenrolam, como um
avesso (e uma vingança) de toda a História que foi realizada pela
partida primeira, que conduziu a um «descobrimento» de outros
territórios em detrimento daquele que assim se viu recusado. Mas
o espaço é aqui interrogado sob o modo da pertença, e a pouco e
pouco se torna claro que, se alguma coisa é capaz de reunir toda
esta pluralidade, é justamente a falta de pertença que afeta todas
as personagens históricas que desfilam perante os nossos olhos: é
assim preciso habitar de forma dolorosa um mundo em que já não
existe lugar para nós. Tudo isto equivale a reconhecer a
centralidade narrativa, histórica e simbólica do refrão
obsessivamente repetido pela mulher do casal anónimo que
regressa da Guiné: «Já não pertenço aqui», a que o marido
responde: «Já não pertencemos nem sequer a nós». O espaço, a
terra, a ideia de pátria são subsumidos pela procura de uma
identidade precária e, talvez, em vias de desaparecimento
histórico, por incapacidade de integração conseguida entre a
História do passado e a História do presente.
Será também preciso sublinhar o facto de que, de todas as
categorias que estruturam a narrativa tradicional, o espaço parece
também ser a única que, aqui, permite interrogar as questões
conexas da identidade e da pertença históricas, num território que
é Portugal entre os séculos XV e XX. Na realidade, o macronarrador,
eixo de uma história capaz de cruzar os diferentes níveis da ação,
desapareceu deste romance, e cedeu o seu lugar à pluralidade de
vozes narrativas que quase não comunicam entre si, no sentido de
uma verdadeira comunicação e interação; a narrativa renunciou ao
projeto de uma ação principal, de que as outras seriam devedoras,
e desfaz-se em diversas pequenas histórias cujas únicas
características comuns residem no facto de que se referem a
retornados, e no facto ainda de que encenam paródias
estruturadas a partir dos grandes nomes da História da Expansão:
Vasco da Gama, Pedro Álvares Cabral, Francisco Xavier, Diogo
Cão. Também o tempo se desdobra em vários momentos
pulverizados entre os séculos  XV-XVI e  o  XX, o que implica que as
personagens se veem impedidas de pertencer totalmente seja a
um seja a outro momento, e que em consequência se encontram
devoradas por uma lógica temporal que as des-loca no preciso
momento em que não lhes permite estar integralmente num só
momento histórico. A História transforma-se, neste romance de
Lobo Antunes, numa consciência de uma carga que, por muito
atravessar os tempos, não deixa de se tornar mais pesada: é a
História que, no fundo, regressa sem, contudo, se resolver. Em As
Naus é a impossibilidade de colocar o passado no passado que
transforma o presente num tempo fantasmagórico em que até D.
Sebastião pode continuar a ser esperado. E, quem sabe, regressar
de vez. Quem sabe quantas vezes.
Do outro lado, também o espaço parece oferecer o
reconhecimento de um território equívoco e precário que,
entretanto, pode continuamente ser interrogado: Lixboa (escrito à
antiga), Portugal. De onde todos partiram e a que todos
regressam, cinco séculos depois.
Deste ponto de vista, o espaço torna-se, neste romance, o último
reduto histórico da territorialização e da identidade, num mundo
contemporâneo em que a perda de identidade é tantas vezes
assimilada à ausência de pontos de referência num território, de
que decorrem várias das ameaças atinentes à globalização. Em
Lobo Antunes, cumpre-se de algum modo também a perceção que
Oliveira Martins explicitamente conformou no final do século  XIX,
legando-a para o século  XX: é o excesso de História que subjaz às
dificuldades de compreender Portugal como identidade. Não uma
falta de História, mas por assim dizer «História a mais».
Surpreenderá perceber que este excesso de História se encontra
figurado num «homem de nome Luís»? Certamente que não: Esse
«homem de nome Luís» começa no cap. 8 a escrever oitavas
épicas sentado à mesa de um café lisboeta (como Fernando
Pessoa) e tem a sua estátua (perto da de Pessoa) numa praça no
centro histórico de Lisboa (cap. 14). E a ele pertence o símbolo
mais pregnante dessa identidade comum tornada dolorosa. Luís,
de quem o nome de Camões parece ter desaparecido, nome
simbólico jamais pronunciado ao longo do romance; Luís, que
regressa de África com o cadáver do seu pai que terá de enterrar
furtivamente, e que canta a epopeia gloriosa da sua pátria no
momento mesmo do seu declínio histórico; Luís, finalmente, que
«perde» também o seu nome, como o casal anónimo alegórico.
Deixar de ser reconhecível pela fragilização do nome torna-se
neste romance processo central, que afeta as gentes anónimas
que realmente cruzam as nossas vidas e as terras em que
habitamos, mas que afeta de igual modo os poetas que deixam de
poder, por antonomásia, representar a identidade simbólica da sua
pátria histórica.
O regresso dos retornados àquela que lhes deveria ser terra-mãe
é pois fundamentalmente decetivo, porque essa terra-mãe revela-
se sobretudo como… madrasta. Os deslocamentos que esse
regresso implica podem situar-se, neste romance, a dois níveis: de
um lado, encontramos as viagens de «retorno» das ex-colónias
africanas, representadas como um discurso paródico dessas
antigas e míticas viagens de regresso que a herança ocidental
recebeu sob o nome de nostoi, e que propunham o regresso à
terra-mãe como o completamento de uma viagem circular e
perfeita. Do outro lado, temos as deambulações e os
deslocamentos erráticos e também eles decetivos de inúmeras
personagens pela cidade de Lisboa e arredores, pelos cais,
pensões sórdidas, ruas, cafés, estações de comboios, pequenas
lojas, elétricos. A representação labiríntica que aqui se reproduz (e
a que o próprio romance se refere como «dédalo») é importante
para compreendermos que a Lisboa e o Portugal aqui descritos
não são os das grandes descrições do progresso e da
modernidade inequívoca, mas lugares históricos que manifestam
os traços de tempos e passados contraditórios.
O primeiro tipo de viagem atrás referido responde ao avesso da
epopeia camoniana e da revisitação que ela já constituía do
protótipo clássico, em especial a epopeia de Vergílio; o segundo
tipo, porém, retoma de algum modo a experiência pós-
baudelairiana da cidade como «flores do mal» (ou
etimologicamente uma sua outra «antologia»), para dela reter, não
tanto o carácter exaltante e epifânico mas, pelo contrário, as
sombras patéticas de um passado arruinado.
No que respeita ao primeiro tipo de viagem, é possível dizer que
ele responde a um movimento de partida de uma pátria que, em
tempos idos, tinha existido talvez sobretudo para criar condições
para o regresso per-feito: Ulisses partindo de Ítaca e a ela
regressando; os Lusíadas, na epopeia camoniana, passando no
Canto IX pela ilha mítica da fecundação e da glória, antes da sua
chegada a Lisboa. A este primeiro tipo de viagem, As Naus opõem
os múltiplos regressos sem glória de todos os que partiram.
Quanto ao segundo tipo de viagem, respeitante à deambulação
urbana que Baudelaire inaugurou como topos para a modernidade,
Lobo Antunes retoma-o sob o modo de uma «exploração dos
lugares». Se o primeiro tipo tinha permitido as «descobertas» do
exterior, caberá ao segundo, pelo regresso, abrir a possibilidade
das «descobertas» eventuais (e surpreendentes) no interior do
país a que se volta.
Neste contexto, a passagem da epopeia em verso ao romance
em prosa pode entender-se como sublinhando também a
passagem do encantamento mítico relacionado com o passar das
fronteiras («ainda além da Taprobana»), na epopeia, às
deambulações muradas e miniaturizadas que têm lugar na cena
urbana: neste sentido, Lobo Antunes responde a Camões (que
tinha respondido a Vergílio, que tinha respondido a Homero…) de
forma semelhante à resposta imaginada por Joyce a Homero.
Porém, enquanto a cidade de Dublin, em Joyce, contém em si
mesma todos os gérmenes de que a epopeia homérica se tinha
construído, em Lobo Antunes a estrutura épica é descentrada pela
imaginação de longas viagens da Expansão convertidas em
viagens em miniatura intra muros na cidade de Lixboa, bem como
pela manutenção dos nomes das personagens históricas para
melhor considerar a impossibilidade do seu regresso, no preciso
momento em que não têm alternativa senão regressar.
Tudo isto significa que As Naus podem ser lidas de acordo com
dois regimes diferentes, embora conexos: o regime por assim dizer
histórico-político e o regime simbólico-literário. Pelo primeiro,
acedemos a uma leitura do romance como reflexão sobre as
diversas partidas, chegadas e habitações que escandiram a
História portuguesa a partir do século  XV, e que estruturaram a
visão do mundo portuguesa e, de um certo ponto de vista, também
europeia: trata-se de uma experiência histórica imperial, colonial e
pós-colonial que, de formas entre si muito diferentes, não pode
deixar de fazer parte da história de Portugal como nação europeia
e da história da Europa como conjunto de nações coloniais. Tal
história foi feita de inúmeras partidas: como é então possível, no
presente, regressar do império? Em que consiste a condição pós-
colonial que afeta, como não pode deixar de ser, também o país
que foi o colonizador? Como pode o passado dar forma à pátria
presente? São questões cuja validade estrutura a experiência
portuguesa da História, e não apenas a sua avaliação de eventos e
factos supostamente encerrados no passado.
Mas mencionámos também um segundo regime, com este
relacionado, mas que podemos identificar como independente
dele, o regime simbólico-literário: As Naus constituem também
uma revisitação da memória literária que herdámos e, sobretudo,
transformámos: como faz qualquer bom herdeiro, não se limita a
receber, mas acrescenta e modifica aquilo que recebeu. Ora tudo
isto não é estranho à reflexão sobre a terra como forma de
pertença, pelo contrário: o território geográfico a que pertencemos
(ou não) é sempre ele também um território histórico e um território
cultural, uma paisagem feita de memórias inscritas sobre a terra
que dizemos ser a nossa. A cidade a que se regressa, o país onde
teremos de habitar são também lugares construídos pelas
memórias literárias e simbólicas que o romance pode ativar. E
Camões e Os Lusíadas tornam-se, assim, o centro simbólico de
uma História que avalia literariamente o passado para interrogar as
condições do presente e, por isso, do futuro. Literatura e História.
4.1.4. GONÇALO M. TAVARES,

UMA VIAGEM À ÍNDIA

Existe um legado heterogéneo no pensamento utópico, como tal


reconhecido por numerosos críticos, que o leva a hesitar entre
estabilidade, ou mesmo rigidez, por um lado, e transformação e
processo, por outro. A invenção de lugares simbólicos
(principalmente literários) que tenham tido a experiência da utopia,
sejam eles a Utopia, de More (1516), A Cidade do Sol, de
Campanella (1623), ou 1984, de George Orwell (1934),
necessariamente tende para a primeira hipótese (estabilidade),
enquanto a utopia mais imediatamente relacionada com um futuro,
desejado ou temido, parece sublinhar a segunda (transformação),
como vimos acontecer por exemplo em Pe. António Vieira (História
do Futuro) ou Fernando Pessoa — e como aliás o grande
historiador do pensamento utópico, que foi Ernst Bloch113, sublinha.
Fredric Jameson, outro importante ensaísta que se tem debruçado
sobre o utopismo sob diferentes perspetivas, propõe a este
respeito a distinção entre utopias como «programa» e como
«impulso»114, ao mesmo tempo que sublinha as suas diversas
implicações. O próprio Bloch está a nosso ver mais interessado na
última (o impulso) do que na primeira (o programa). Na realidade, o
«princípio de esperança» de Bloch, pelo qual a utopia é vista
sobretudo como uma ligação entre o futuro e o presente, ou seja,
como uma forma antecipatória de realismo, sublinha uma das
principais questões no pensamento utópico: o facto de que ele
pressupõe um confronto entre (e por isso uma tomada de
consciência de) aquilo que é e aquilo que, nos agudos termos de
Bloch, provém do Ainda-Não. O saber relativo a este «Ainda-Não-
Consciente», consubstanciado na dimensão antecipatória do
futuro, dirige-se a esse mesmo futuro e consiste na esperança de
que a utopia e os princípios daquele que será um «mundo melhor»
um dia existirão. Assim, a noção básica que está no centro do
conceito de utopia, tal como Bloch o entende, é não a de
estabilidade mas, pelo contrário, a de processo e movimento115.
É  este «impulso» e esta dinâmica que agora seguiremos na
relação entre por um lado Os Lusíadas, o poema épico publicado
por Camões em 1572; e por outro Uma Viagem à Índia, uma
reescrita paródica de Os  Lusíadas publicada por Gonçalo M.
Tavares em 2010.
A hipótese principal aqui enunciada é dupla. Em primeiro lugar,
propomos a leitura dos últimos dois cantos de Os  Lusíadas, ou
seja, o longo episódio da Ilha dos Amores, como uma invenção
figurativa de uma realidade utópica imaginária. Alguns pontos de
contacto mais superficiais saltam desde logo à vista: trata-se de
uma ilha (não um istmo, mas perto disso) e as viagens resultantes
da Expansão portuguesa são o seu núcleo central — ambos
aspetos cuja importância é sabida no tocante à Utopia de More.
Esta não é, diga-se desde já, uma leitura nova do episódio. Cabe
aqui recordar o crítico brasileiro Leodegário de Azevedo Filho, no
seu livro intitulado Camões, O Desconcerto do mundo e a estética
da utopia116, assim como o grande camonista que é Vítor Aguiar e
Silva, que trata diretamente a polémica respeitante à possibilidade
de considerar ou não este episódio como pertencente ao discurso
utópico. A resposta de Aguiar e Silva117 é especificamente dirigida
ao historiador Martim de Albuquerque que, no seu livro intitulado A
Expressão do poder em Luís de Camões118, recusa considerar a
Ilha dos Amores como parte de um projeto utópico, em especial
porque limita o modelo da utopia àquele proposto por Thomas
More, e porque não encontra qualquer indicação de uma possível
influência dele sobre Camões. Entretanto, como Aguiar e Silva
propõe, e para voltar aos termos usados por Jameson, no caso de
se definir Utopia apenas como programa, e de forma ainda mais
restrita apenas o programa de More, parece evidente que poucas
obras responderão a um modelo tão resguardado. A utopia
enquanto impulso, tal como Jameson a defende, não será
reconhecida e, no tocante a Os Lusíadas, a Ilha dos Amores de
forma alguma corresponderá ao modelo de descrição de uma
cidade ideal e socialmente organizada, que regula o
comportamento social dos pontos de vista político, moral e sexual.
É esta precisamente a razão pela qual a reflexão de Ernst Bloch
é aqui decisiva: porque, ao colocarmos a hipótese de utopia como
possibilidade de impulso, logo reconheceremos que a Ilha dos
Amores oferece um conjunto de características que não podem
deixar de ser consideradas como tal. Aguiar e Silva sublinha, entre
outras: o sentido alegórico e simbólico do episódio e da ilha
imaginada; não só um locus amoenus, mas aquilo a que ele chama
uma «jubilosa copulatio» (p. 150) de homens e divindades, que
gerará, nas próprias palavras de Vénus, uma nova estirpe humana
(IX, 42). Aguiar e Silva argutamente interpreta este jubiloso
encontro sexual como «a anunciação do início de um novo ciclo na
história do homem» (p. 151), ao mesmo tempo que ele lhe parece
constituir o contraponto da consciência de dissolução e de
corrupção da ordem real do mundo. Uma outra característica a
reter, sublinhada também por Aguiar e Silva, é o facto de que a
«iluminação antecipante» de Bloch é relacionada, neste episódio,
com a esperança do desejo, da fecundidade, da Natureza e, em
consequência, da «paisagem esplendorosamente erótica da ilha»
(p. 152).
Assim, a atmosfera de sagração intelectual e sexual, de
sabedoria (a «máquina do mundo») e de abundância material,
encontrada na ilha, converge com a possibilidade de ler este
episódio de Os Lusíadas como o clímax do poema, a consagração
dos heróis, e a construção da utopia dirigida ao futuro e ao
«princípio da esperança» que o constitui. A Ilha dos Amores é, em
toda a sua extensão, a invenção figurativa do «Ainda-Não
Consciente», que tem um papel tão importante no pensamento de
Bloch sobre a utopia. E é, pois, uma forma decisiva de pensar a
História, porque não se trata apenas de imaginar um lugar
imaginado mas, e talvez sobretudo, de antecipar a construção de
um futuro histórico que, apesar de não ter ainda data definida, não
deixa de ser considerado como tempo-na-História.
Há, entretanto, pelo menos dois outros elementos que convirá
acrescentar a esta descrição, e que se combinam no sentido de
nos dar uma interpretação mista e complexa da Ilha dos Amores.
Por um lado, a Ilha não é apenas um lugar a que os navegadores
chegam; é também o lugar que abandonam para regressar a casa.
Na Utopia de More, Rafael também regressa. Mas a verdade é que
ele não é um habitante da Utopia, nem vem fundar outra seja onde
for. Os habitantes da Ilha ficam nela, continuam a habitá-la. Em Os
Lusíadas, a combinação da «função utópica» (no dizer de Bloch)
com o legado clássico da narrativa do nostos, que desempenha
um papel tão importante na tradição épica, dá a este episódio de
Os Lusíadas um sentido distinto: os navegadores saboreiam uma
primeira versão da Utopia e da perfeição — mas acabam por
regressar à realidade e à sua imperfeição, como Eça de Queirós,
alguns séculos mais tarde, levará Ulisses a fazer, no seu conto
«Perfeição».
Por isso, devemos também reconhecer a reflexão sobre a
natureza mista deste episódio camoniano, bem como sobre o
sentido de um regresso a casa, que nos faz reinterpretar a leitura
utópica da Ilha dos Amores. Estamos em crer que, no contexto, a
recuperação do tópico do nostos sublinha que a Ilha dos Amores é
mais uma utopia-como-impulso do que como programa. Com
efeito, não fica delineado um programa para o futuro, na ilha, nem
sequer um programa viável, enquanto totalidade, para uma
sociedade estruturada. No entanto, o impulso está lá, mesmo
quando não assume «a combinação de fechamento e sistema» (p.
5) que Jameson atribuía ao programa da Utopia ela mesma — ou
que Louis Marin119 reconhecia como «totalité et harmonie de la
description utopique» (p. 79), no seu livro seminal publicado em
1973. Podemos ainda, a este respeito, recordar as reveladoras
palavras de Helder Macedo120:

The climax of the poem is […] not Vasco da Gama’s


successful arrival in India after the voyage that provides its
historical framework, but the discovery, on the voyage home, of
an Island of Love, metaphor for a new Golden Age where all
opposites could be reconciled in historical time. (p. 11)

O segundo elemento que vale a pena enfatizar a este propósito é


o seguinte: os navegadores portugueses não só regressam a casa,
como sobretudo vêm acompanhados das Ninfas: «Levam a
companhia desejada/ Das Ninfas, que hão de ter eternamente,/
Por mais tempo que o Sol o Mundo aquente.» (X, 143). Ora, à luz
destas linhas, parece ser possível reinterpretar a dimensão utópica
da Ilha dos Amores (ou da Ilha do Amor): o seu impulso é afinal
dirigido ao futuro («hão de ter eternamente»), e a completa
realização da Utopia dará origem necessariamente a uma nova
geração e a uma nova raça humana, como vimos, bem como a
uma terra novamente fundada, em que os heróis do futuro possam
viver: não a Ilha dos Amores, mas um novo Portugal. A utopia do
futuro funde-se inextrincavelmente com o destino de Portugal.
Deste ponto de vista, o nostos é uma necessidade fundamental
nesta imaginação do futuro: a Ilha dos Amores não pode ser a
utopia fechada e perfeita a fim de que Portugal a possa vir a ser,
naquele futuro em que a nova humanidade já tiver nascido. É esta
já uma críptica antevisão do imaginário Quinto Império, que
desempenhará um lugar tão central em Pe. António Vieira e na sua
posteridade, incluindo Fernando Pessoa? Talvez não seja possível
afirmá-lo de forma definitiva. Mas o que é possível dizer, sem
sombra de dúvida, é que Camões está aqui a imaginar, não
apenas uma utópica Ilha dos Amores, mas um utópico e entretanto
histórico Portugal, um Portugal substancialmente distinto do que
tão vividamente é criticado em vários pontos do poema, incluindo o
próprio Canto X. Podemos pois afirmar que Camões se encontra a
imaginar o futuro, nele incorporando o «princípio de esperança»
que o desespero do presente também pode permitir.
Vimos no início que o argumento aqui desenvolvido é duplo, e
que a função da Ilha dos Amores, em Os Lusíadas, corresponde
apenas a uma parte da reflexão conduzida no contexto de uma
interpretação da utopia. A segunda parte desta reflexão toma como
objeto a obra de Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia. Trata-
se de um texto que, muito evidentemente, tem como principal
objetivo uma reescrita paródica de Os Lusíadas, reescrita muito
interessante e complexa, que aqui brevemente caracterizaremos.
Em primeiro lugar, na referência a esta obra evitámos uma
classificação de género, e utilizámos o termo, voluntariamente
descritivo, de «obra». A razão para tal é que, como virá agora a
ficar claro, a sua classificação genológica é em si mesma
contraditória. Apresenta-se estruturalmente como um poema épico
— e mesmo, como veremos, um determinado poema épico,
específica reescrita da epopeia camoniana. Mas a verdade é que
dificilmente o poderíamos considerar uma epopeia. Eduardo
Lourenço121 refere-se a este texto como «sobretudo [um]a contra-
epopeia, ao mesmo tempo luminosa, paródica e burlesca» (p. 15).
Mas a sua proximidade de (e mesmo aproximação a) Os Lusíadas
implica, em nosso entender, que é (ou quer ser) mais do que
«apenas» uma contraépica.
Em certo sentido, é a própria noção de aggiornamento que aqui
está no centro da discussão e, através dela, a de diferimento
cultural, ou da cultura como repetido diferimento. Talvez não seja
errado relacionar esta obra de Tavares com a recuperação
(também ela irónica) de uma estética da imitação de que a nossa
originalidade de origem romântica tanto julga encontrar-se
alheada, sem o conseguir: sob que condições é hoje possível
escrever algo que responda à épica, sendo todavia devedor do que
neste início do século XXI a tornou impossível, ou pelo menos difícil
e precária? Esta resposta ou reescrita é, pois, como todas as
outras, uma profunda homenagem, que tem de ser reconhecida
como parte integrante de uma contraleitura da epopeia e da sua
complexa e perturbadora receção na modernidade.
Existem evidentemente vários elos que resgatam Os  Lusíadas
do século  XVI, em que foi escrito e publicado, e que o prolongam
repetidamente no seu mesmo futuro. Podemos recordar alguns
deles: Pe. António Vieira, e a sua História do Futuro; Almeida
Garrett, de forma central no seu poema narrativo Camões, mas
ainda no drama Frei Luís de Sousa, como vimos; Cesário Verde e
o seu opus magnum «O  Sentimento dum Ocidental»; Guerra
Junqueiro e o influente poema Pátria; Teixeira de Pascoaes e o
seu poema narrativo Marânus; Fernando Pessoa e Mensagem,
bem como o heterónimo Álvaro de Campos, muito particularmente
na «Ode Triunfal»; e, mais recentemente, como tivemos
oportunidade de analisar no último capítulo, o romance de António
Lobo Antunes, As Naus, ou a produção narrativa de Mário Cláudio
e de Frederico Lourenço.
Pelo seu carácter central no que respeita à narrativa
contemporânea e pela sua estrutura, mereceu-nos um especial
relevo o romance de Lobo Antunes, ao compor o desenvolvimento
da narrativa dos «retornados» das ex-colónias portuguesas, em
1975, em torno de uma figura maior, «um homem de nome Luís»,
que escreve a sua epopeia mesmo à nossa frente e a quem falta,
como a Camões faltava, um olho. O facto de o seu nome, Camões,
não ser pronunciado ao longo do romance torna ainda mais
significativo o reconhecimento de que uma das principais figuras
deste romance é um Camões empobrecido e abandonado, que
regressa de África com o caixão do seu pai (em mais uma alusão
indireta ao Eneias de Vergílio, e à sua fuga de Troia com
Anquises). Se recordarmos, como atrás dissemos, que Lobo
Antunes várias vezes se referiu ao facto de que deveria ter sido
aquele homem, Camões, a ser o narrador do romance do
século  XX, tornar-se-á mais fácil compreender o quanto esta obra
de Lobo Antunes é um elo decisivo no contexto em que o poema
narrativo de Tavares deve ser lido.
Em As Naus, as alusões e referências a Os Lusíadas são
constantes, mas gostaria de mencionar em particular uma das
alusões à Ilha dos Amores, no último capítulo do romance, quando
a «máquina do mundo» é explicitamente recordada pelo «homem
de nome Luís»: «Desde que regressara de África que até o fluir do
tempo se lhe afigurava absurdo, e não se conformara ainda com
os demorados crepúsculos de calda de marmelo do verão, a
ausência de capim e o seu restolhar ávido de insectos, e movia-se
na cidade como num planeta criado pelo mecanismo da sua
imaginação, informado por notícias de jornal tão enigmáticas como
arrulhos de baleia» (p. 240)122. Assim, neste romance é o próprio
Poeta a realizar o que tradicionalmente corresponderia ao nostos,
o regresso da viagem a um «mundo melhor», depois dos «perigos
e guerras». Mas, na realidade, no universo da contraépica, que é o
do universo pós-colonial de Lobo Antunes, a narrativa do nostos é
substituída pela dos retornados, e o regresso a casa é sempre, e
sobretudo, uma experiência de alienação, não de reintegração
harmoniosa.
Se aqui sublinhamos em especial este romance é porque nos
parece que a reflexão literária nossa contemporânea se encontra
paradoxalmente (ou não) significativamente envolvida com a
epopeia camoniana. E a leitura de As Naus terá certamente sido
um passo importante para o delinear do projeto de Gonçalo M.
Tavares. Entretanto, Uma Viagem à Índia tem uma genealogia e
um conjunto de tradições mais complexos, e a sucinta descrição
feita até agora pode e deve ser enriquecida. Por um lado, a sua
relação com Os Lusíadas precisa de ser descrita em toda a
amplitude das suas implicações. Por outro lado, entretanto, esta
conversa não se desenrola em «tête à tête», entre Tavares e
Camões, no que poderia parecer mais uma instância do diálogo
entre o Poeta forte e o seu epígono, como queria Harold Bloom.
Pelo contrário, é uma conversação múltipla, e o diálogo com
Camões é mediado por um conjunto de outros textos e vozes que
convém também reconhecer e descrever de forma adequada.
Comecemos, então, com Os Lusíadas. Uma Viagem à Índia
conserva a estruturação formal do poema narrativo em cantos;
mas, e além disso, a obra retoma especificamente a epopeia de
Camões pela manutenção do mesmo número de cantos que ela
utiliza (dez), bem como, em cada canto individualmente
considerado, do mesmo e exato número de estâncias que
estruturam o poema camoniano. No entanto, a ottava rima é
abandonada: cada estância oscila entre cinco e onze versos, com
uma clara predominância de sete ou nove, o que talvez possa ser
redescrito pelo reconhecimento de que a oitava parece justamente
não ser uma preferência; o isomorfismo versificatório e métrico,
isto é, o uso de decassílabo heroico, é também ele abandonado,
como a rima e o seu esquema uniforme em Os Lusíadas.
Além da estrutura épica, no entanto, a estrutura temática interna
de Os Lusíadas é também ela reconhecível na narração da
contemporânea viagem à Índia: alguns dos seus episódios
estruturantes são reconhecíveis sem dificuldade, como por
exemplo as traições de Baco, o episódio do Velho do Restelo ou,
precisamente, o relativo à Ilha dos Amores. Eles surgem sob
diferentes aparências na obra de Tavares, e integram visivelmente
a composição da história. A Ilha dos Amores, que no poema
camoniano tem início no Canto IX, estância 52, e vai até à estância
143 do Canto X, ou seja, praticamente o fim do poema, é
reconhecível na obra de Tavares nas estâncias exatamente
correspondentes: trata-se de um convite a ler este longo episódio e
os seus principais acontecimentos (a recompensa erótica dos
navegadores, o banquete, a contemplação da «máquina do
mundo», com as respetivas profecias) como uma reescrita muito
próxima dos acontecimentos do poema original. O século  XXI é
assim relido de acordo com um modelo quinhentista — e este
facto, que sublinha os evidentes pontos de analogia e interseção
entre os dois textos, também manifesta as dissemelhanças
históricas e literárias que igualmente os relacionam.
Em termos de legado não exclusivamente nacional, entretanto,
Viagem acrescenta a este quadro um conjunto de outros
elementos relevantes. O protagonista da viagem, aquele a quem é
atribuído o papel que Vasco da Gama desempenha em Os
Lusíadas, é uma personagem chamada Bloom. Isto por um lado
cria uma espécie de rima interna com outros romances de Tavares,
agrupados em séries como «O Bairro», e com títulos como
Monsieur Valéry, Monsieur Brecht, ou Monsieur Calvino. Mas
Bloom é um estrangeiro muito especial, pois migra da sua
condição de protagonista da obra de James Joyce Ulysses,
romance publicado em 1922 e que tenta responder à Odisseia de
Homero como Tavares faz relativamente a Os  Lusíadas de
Camões. Assim, se Viagem reescreve o poema camoniano, fá-lo
através da mediação de Joyce e de Homero, este mesmo também
um modelo na linhagem camoniana, através da epopeia de
Vergílio.
Todos estes textos (proto)épicos (refiramo-nos a Ulysses e a
Viagem provisoriamente assim, embora acrescentando a esta
designação vários grãos de sal) apresentam características
comuns: a viagem e a deambulação; a interrogação em torno do
tópico do nostos; o reconhecimento de diferentes noções de
viagem, geográfica, histórica, simbólica, mesmo alegórica; um
protagonista que faz parte da sua comunidade e que interroga e
manifesta o seu papel enquanto tal; uma revisitação da memória
através de uma reescrita que é também, pelo menos no caso de
Camões, Joyce e Tavares, uma reinterpretação e por isso uma
transformação quer de diferentes literaturas «nacionais», quer do
próprio conceito de literatura nacional.
Assim, um dos principais pontos de interesse, se tomarmos tudo
isto em consideração, é o seguinte: o que acontece à possibilidade
de utopia (como vimos histórica) que Os  Lusíadas continham na
Ilha dos Amores? Como pode esse episódio quinhentista «traduzir-
se» para esta contraépica (?) contemporânea, de Tavares? Poderá
Uma Viagem à Índia ainda conter essa particular intenção de futuro
que, em qualquer caso, a função utópica e o seu impulso
pressupõem?
Reparemos assim com atenção neste episódio. A sua estrutura
em Os Lusíadas é bem conhecida. Os navegadores chegam a
uma ilha cuja descrição idílica é pontuada por óbvios elementos
eróticos, logo depois materializados pelo surgimento das Ninfas,
que imediatamente entram num jogo erótico de desejo e
perseguição amorosa com os navegadores. A  primeira parte (IX,
52-87) do episódio é, pois, uma descrição materialmente
carregada do encontro sexual entre Ninfas e navegadores. Ela é
seguida da interpretação alegórica do episódio (IX, 88-95), na qual
o Poeta fala das «deleitosas honras» que são a raiz da verdadeira
imortalidade. O  Canto  X abre com um banquete oferecido pela
Ninfa Tétis ao Gama e aos restantes navegadores, em cuja
primeira parte a Fama dos heróis é profetizada e detidamente
descrita, para ser apenas interrompida por Tétis, que leva o Gama
a contemplar a «máquina do mundo». A atenta descrição de que
esta é alvo, bem como a pormenorizada atenção dada ao seu
significado geossimbólico, conduzem a uma renovada
interpretação do próprio planeta. Finalmente, o episódio termina
(X, 143) com o embarque dos navegadores para o seu regresso a
Lisboa, acompanhados, como vimos, das Ninfas. E o poema
termina com uma última invocação a Calíope, a musa do Poeta, e
uma última exortação ao rei D. Sebastião, que contém as
sementes da alegria e da esperança (X, 147-8), da justiça (X, 151)
e da experiência (X, 153), todas elas cantadas pelo próprio Poeta
e, assim, imortalizadas (X, 154-6).
Em primeiro lugar, sublinhemos uma vez mais a forma como o
futuro está implicado neste longo episódio do poema: por um lado,
porque o encontro erótico entre as Ninfas e os homens estará na
origem de uma nova raça humana, que ultrapassará a que integra
os homens que já obtiveram, pelos seus feitos, o estatuto de
heróis; e, por outro, porque essa nova geração se concretizará
num tempo e num lugar historicamente a vir, mas determinável:
Portugal.
Mas existe um outro sentido no qual o futuro está aqui implicado:
o significado da imortalidade repousa sobre, não apenas os feitos
já realizados, mas a existência do Poeta, bem como do Poema que
ele se encontra a completar. Desta forma, é possível dizer que o
«princípio da esperança» implicado na Ilha dos Amores apenas
pode ser integralmente cumprido caso a obra do Poeta seja
reconhecida como esse canto capaz de lançar as bases da
imortalidade, pela qual permaneça no tempo e mesmo o
ultrapasse, lançando as bases da «história do futuro». Se o
considerarmos deste ponto de vista, como julgo que devemos
fazer, então o impulso utópico que encontramos governando os
dois últimos cantos d’Os Lusíadas repousa, em última análise, na
capacidade de o poema historicamente transcender a história,
tornando-se no lugar utópico do Ainda-Não-consciente, como
queria Bloch.
Reparemos agora em Uma Viagem à Índia, e tentemos compará-
lo com Os Lusíadas no que a estas questões diz respeito. Os
momentos principais que encontramos na epopeia camoniana
podem também eles ser reconhecidos no poema de Tavares. Dois
homens regressam da Índia, Bloom e Anish, e encontram-se em
Paris com Jean M. Assim que aterram, combinam um encontro
com três prostitutas e vão com elas até um bosque no meio do
qual existe uma casa: «E eis que o avião aterra, finalmente […],
Jean M, Bloom e Anish cumprimentam-se./ As mulheres são
apresentadas brevemente;/ Jean M/ pisca o olho a Bloom; dois
táxis estão já à espera,/ e o grupo segue de imediato para os
arredores de Paris,/ onde uma casa alugada será o espaço da
festa/ merecida» (IX, 51). Este bosque, em que podemos querer
reconhecer o da tradição sexualmente carregada do Bois de
Boulogne, em Paris, é descrito com vários pormenores: um
pequeno monte, um pequeno lago (que se tornará importante no
subsequente desenrolar do episódio). Diferentes tipos de árvores
(«árvores de fruto», «laranjeiras», «loureiros,/ pinheiros, álamos»,
IX, 56-57), diferentes tipos de frutos e bagas (laranjas, cerejas
vermelhas, amoras) e diferentes flores (o lírio, a rosa, as violetas)
crescem neste bosque, o que por um lado alude à descrição idílica
e de abundância da Ilha dos Amores, e por outro introduz um
escuro e secreto elemento que arrasta consigo um outro
importante intertexto: a selva oscura da Divina Commedia de
Dante. Esta é, na verdade, uma selva oscura: «(Mas o espaço só
estará completo com um morto ou,/ lá em cima, com uma ave.)»
(IX, 62). E tal significa reconhecer que a componente idílica vinda
de Camões é cruzada por Tavares com uma componente elegíaca:
a morte é o contraponto da própria vida. Mors amor.
Está é uma ideia particularmente importante para uma
compreensão integral do que acontece em Viagem. Bloom viajou
até à Índia, passando por diferentes lugares, e agora regressa a
casa. Mas a sua história também inclui, no passado, o assassínio
do seu pai, o que traz até à nossa leitura uma relação interpretativa
mais, desta feita com o mito e a tragédia, claro, de Édipo. Esta
viagem à Índia poderia ter representado uma forma de expiação e
redenção, semelhante à viagem que o cego Édipo perfaz
acompanhado de sua filha Antígona, antes de regressar ao seu
local de nascimento (e morte), Colono. Mas será que assim a
podemos interpretar? Será que é possível, no século  XXI, uma
verdadeira expiação? E uma completa redenção histórica? O
poema de Tavares alude ele mesmo ao século  XXI (IX, 65) e assim
o coloca como horizonte interpretativo. Pessoalmente, parece-nos
que este é um elemento importante para a compreensão do poema
narrativo de Tavares, em especial nos seus dois últimos cantos: a
história narrada passa-se na nossa estrita contemporaneidade, e o
posicionamento histórico nela reconhecível desempenha um papel
significativo no âmbito desta interrogação sobre a sobrevivência
utópica contemporânea, ou precisamente sobre o seu
desaparecimento alternativo.
Uma parte fundamental desta interrogação reside na
compreensão do papel do próprio Bloom, bem como dos seus
companheiros. Vimos que o Gama e os navegadores portugueses
receberam, em Os Lusíadas, o estatuto de heróis, e que tinha sido
enquanto tal que foram recebidos e recompensados pelas Ninfas:
eles mesmos já de algum modo se tinham ultrapassado enquanto
homens. Na realidade, tinham sido as suas próprias honra e glória
a legitimar a união sexual com as divindades. No entanto, em
Viagem, Bloom não é na realidade um herói, mesmo se muito lhe
aconteceu e mesmo que tenha transgredido vários limites, durante
as suas viagens. Eis como Tavares o descreve, nas mesmas
estâncias (IX, 88-9) em que Camões revela o sentido alegórico da
Ilha dos Amores:
No entanto, esse homem que já reflectiu sobre
Todas as coisas, Bloom;
Esse homem que já amou e sofreu,
Que já viu morrer, que já matou;
Esse homem que pensava virar a existência
De cabeça para baixo, parti-la em dois como a um caco,
É esse mesmo homem que agora acaricia as nádegas mais ou menos
firmes
De uma mulher de quem nem conhece o nome.
Quem é Bloom? Ninguém sabe (muito menos ele: está demasiado perto.)
É um organismo que tem tudo em potência.
Pode ser santo, ou vender anjos roubados
À igreja de um padre que salva.
Os homens têm fome, e quando
Têm medo fogem e nessa fuga pisam o
Chão ou outros animais. O amor existe,
Mas não num ser vivo que se move.
O inesperado insinua-se no que parece definitivo
E ninguém se conhece antes de morrer. Ámen.

Esta descrição caberia mais às descrições e reflexões de Fernão


Mendes Pinto, na Peregrinação, do que às de Camões em Os
Lusíadas: homens que não são conduzidos por valores como a
honra, a glória e as decorrentes fama e imortalidade; mas, pelo
contrário, homens que se conduzem a si mesmos pelas desordens
do taedium vitae, essa mesma melancolia que veremos ir
crescendo ao longo de todo o episódio, para culminar no seu final:
Não procurou proezas extraordinárias,
Porque viveu o suficiente para perceber
As várias epopeias que existem
Num só dia de Inverno onde o tédio
E o frio empurram levemente o homem para a janela.
A imobilidade como epopeia ínfima,
Eis o que descobriu já depois de estar cansado.
Não há assim tanto mundo, pensa agora Bloom.
Os órgãos individuais estão organizados e são firmes:
Terramotos universais podem não interferir
Na mais leve sensação de um homem.
O universo e eu
Não nos cruzamos. (X, 100-101)

O pathos melancólico que se adensa no último canto da obra de


Tavares não deve fazer-nos esquecer que, na realidade, a
melancolia é também um contraponto crucial do heroísmo e da
imortalidade, em Os Lusíadas. De facto, faz parte do argumento
deste capítulo a consciência de que estâncias como as que em
último lugar foram citadas representam uma reescrita direta de
algumas reflexões camonianas dispersas por vários cantos do seu
poema, mas imediatamente reconhecíveis, no Canto X, nas
estâncias 8-9, ou no seu final, estância 145. O Poeta perde a sua
voz, a alegria do seu canto, ao mesmo tempo que o verão
rapidamente se muda em outono, e o frio apaga o calor:
[…] Aqui, minha Calíope, te invoco
Neste trabalho extremo, por que em pago
Me tornes do que escrevo, e em vão pretendo,
O gosto de escrever, que vou perdendo.
Vão os anos decendo, e já do Estio
Há pouco que passar até o Outono;
A Fortuna me faz o engenho frio,
Do qual já não me jacto, nem me abono;
Os desgostos me vão levando ao rio
Do negro esquecimento e eterno sono.
Mas tu me dá que cumpra, ó grão Rainha
Das Musas, co que quero à nação minha. (X, 8-9)

No entanto, enquanto em Camões o princípio da esperança


limita (ou pelo menos combina-se com) o lado mais escuro da
angústia maneirista, como entre outros Vítor Aguiar e Silva e
Helder Macedo exemplarmente sublinharam, e assim cria uma
atmosfera contraditória e complexa que acaba por caracterizar Os
Lusíadas, na obra de Gonçalo M. Tavares nada parece capaz de
resgatar a alegria e a crença para longe do tédio e da nostalgia do
passado (e da infância perdida). Neste último canto, Bloom é
gradualmente invadido por uma incapacidade de reagir, e parece
gelado pela sua inabilidade de viver quer no passado quer no
futuro:
[…] Estou entre o solo e o céu, em sítio
Intermédio, pousado sobre nada, em caminho
Indeciso. (O pior sítio para estar vivo
É entre aquilo que um dia nos exige
E aquilo que o eterno nos promete. No meio, eis o sítio pior. (X, 104)

Num mezzo del camin metafórico, que também evoca Mário de


Sá-Carneiro, Bloom é apanhado pela impossibilidade de agir quer
como homem quer como um deus («entre o solo e o céu»): ele não
pode comparar-se aos heróis camonianos e, em consequência, o
sentido alegórico que vimos atribuído à Ilha dos Amores torna-se
totalmente inoperante. Não existe utopia no futuro, afinal, até
porque (sabemos hoje, porque viemos depois de Camões) aquela
nova raça humana de semideuses nunca chegou a nascer. Bloom
é um dos heróis impossíveis do século  XXI, prisioneiro dessa
«Melancolia contemporânea» que constitui o posfácio e o mapa
alusivo que fecham o poema de Tavares. Que o seu último «feito»
seja o assassinato (um inexplicável assassinato, contextualmente
legível apenas como manifestação de um tédio que passa a
destruir outros, em vez do próprio sujeito) da prostituta com quem
Bloom estava apenas sobrevém como confirmação de que «O que
se faz quando nada se sente é brutal» (X, 134).
Estranhamente, é neste momento que o poema afirma o estatuto
paradoxal de Bloom como herói: «[…] foi Bloom, foi o herói Bloom/
quem matou a mulher/ que entrou já morta no lago com o/ bolso
completo com várias notas altas» (X, 133). Se, em Os Lusíadas, os
navegadores não só copulam com as Ninfas, mas as trazem com
elas no seu regresso a casa, assim criando uma nova estirpe
humana, em Viagem a reescrita deixa bem claro que apenas uma
versão burlesca de um tal episódio permanece viável num mundo
em que os homens se tornaram tão-só pequenas paródias de um
ideal. Assim, a utopia não é reprodutível no bosque e na casa que
no meio dele está; a Ilha dos Amores existe apenas na sua versão
menor de homens que pagam para ter sexo com mulheres; e o
final do episódio não sustenta uma vida futura, mas uma morte
presente: «No coração de Bloom uma certeza, um refrão:/ já não
sou um impulsivo que mata, sou um assassino» (X, 136).
O resto do poema de Tavares, entretanto, deixa bem claro que
esta nova forma de estranho contra-heroísmo, que repousa
também sobre aquilo a que Hannah Arendt chamou a «banalidade
do mal» moderno, caracteriza Bloom na medida em que ele matou
não por impulso, mas por frio assassínio: «Nos homens que
matam existe um certo orgulho/ temporário muito próximo da
sensação de imortalidade/ que manuais religiosos descrevem com
pormenor» (X, 139); «[…] Ao lado de um assassino qualquer
homem/ sente medo e orgulho» (X, 142). Orgulho, imortalidade e
medo conjugam-se neste herói estranhamente impossível, que
assim se torna quando afirma o seu estatuto extraordinário. Não
pode haver heróis camonianos; não pode haver Lúcifer e a sua
excecional revolta — apenas este novo contra-herói sem fama
nem glória, cujo estatuto repousa sobre o estatuto trivial do mal
moderno.
A principal diferença a este respeito, então, entre Os Lusíadas e
Uma Viagem à Índia é também ela dupla: tornou-se impossível
replicar os dois horizontes maiores da utopia incluída na Ilha dos
Amores: o horizonte heroico e histórico e o horizonte
geossimbólico. Tornou-se igualmente impossível realizar o nostos
que vimos sustentar Os Lusíadas e que, parece-nos, está no
coração do impulso utópico desse episódio. Em Viagem, Bloom
realmente regressou a Portugal, de comboio. Mas nunca
saberemos se chegou ou não a atirar-se da ponte abaixo.

4.2. A REPRESENTAÇÃO DO EVENTO HISTÓRICO


MEMORÁVEL: O TERRAMOTO DE 1755

Sábado, primeiro de novembro, e vigésimo oitavo da Lua,


amanheceu o dia sereno, o Sol claro, e o Céu sem nuvem
alguma. Durava já esta serenidade por muitos dias do mês de
outubro, sentindo-se maior calor que a estação do outono
prometia. Pouco depois das nove horas e meia da manhã,
estando o Barómetro em 27 polegadas, e sete linhas, e o
Termómetro de Réaumur em 14 graus acima do gelo, correndo
um pequeno vento nordeste, começou a terra a abalar com
pulsação do centro para a superfície, e aumentado o impulso,
continuou a tremer formando um balanço para os lados de
norte a sul, com estrago dos edifícios, que ao segundo minuto
de duração começaram a cair, ou a arruinar-se, não podendo
os maiores resistir aos veementes movimentos da terra, e à
sua continuação. Duraram estes, segundo as mais reguladas
opiniões, seis para sete minutos, fazendo neste espaço de
tempo dous breves intervalos de remissão este grande
Terremoto. Em todo este tempo se ouvia um estrondo
subterrâneo a modo de trovão quando soa ao longe […].
Escureceu-se algum tanto a luz do Sol, sem dúvida pela
multidão de vapores, que lançava a terra, cujas sulfúreas
exalações perceberam muitos […]. A poeira, que causou a
ruína dos edifícios cobriu o ambiente da Cidade com uma
cerração tão forte, que parecia querer sufocar todos os
viventes. […] A  estes impulsos da terra se retirou o mar,
deixando nas suas margens ver o fundo às suas águas nunca
de antes visto, e encapelando-se estas em altíssimos montes,
se arrojaram pouco depois sobre todas as povoações
marítimas com tanto ímpeto, que parecia quererem submergi-
las estendendo os seus limites. Três irrupções maiores, além
de outras menores, fez o mar contra a terra, destruindo muitos
dos seus edifícios, e levando muitas pessoas envoltas nas
suas águas. Que cena lamentável me recorda a memória?
Tanto objeto lastimoso me representa a lembrança, que a
multidão, a variedade, e a mágoa me embaraça o discurso
para a narração.123

São diversíssimas as reações ao Terramoto de 1755 que


podemos seguir no quadro quer português quer europeu. Embora
aqui tenhamos naturalmente em conta o contexto mais lato de uma
reação em particular europeia, que aliás enforma e complexifica a
reação portuguesa, é sobretudo em torno desta última que
refletiremos, até porque ela sem dúvida o merece, pelo seu
carácter numeroso mas também pela diversidade de tons
(naturalmente lamentosos e frequentemente patéticos) sob que se
declina.
Sendo de natureza entre si diversa, todos os textos a que a
catástrofe de 1755 deu origem partilham entretanto, naturalmente
em maior ou menor grau, alguns elementos comuns que podemos
desde já anotar: o reconhecimento da perturbação de uma
estabilidade que começa por ser geográfica e arquitetónica, para
logo passar a ser histórica, simbólica e antropológica; os efeitos
sobre a compreensão de um fenómeno que, porque salta várias
fronteiras do conhecido, cedo se transforma em paradigma do
incompreensível, com os consequentes debates sobre como
compatibilizar Deus e a destruição havida; a conformação do medo
e do terror como efeito maior do acontecido, como já Goethe
notava: «Talvez que o ‘Daimon’ do medo jamais tenha espalhado
tão velozmente e tão poderosamente o seu terror sobre a
Terra»124.
A  experiência do Terramoto e do Maremoto de 1755, a
experiência de destruição de Lisboa e da inimaginável aniquilação
humana que lhe está associada configuram um evento a todos os
títulos memorável, correspondendo ao que o conceito de memória
cultural, como inscrição de um evento traumático na matriz social e
simbólica, poderosamente recobre.
O texto que acima transcrevemos, retirado de uma das inúmeras
obras dedicadas ao Terramoto, o volume de Joaquim José Moreira
de Mendonça, História Universal dos Terramotos, aponta para uma
série desses elementos, que acabam por constituir por vezes
quase um lugar-comum. Assinalem-se desde já dois desses
elementos: a manifestação do que poderemos designar como uma
testemunha ocular e a consciência de que, por se ter visto demais,
o discurso fica «embaraçado», e a palavra tolhida. Parece pois
haver uma relação contrária e quase paradoxal entre ver e dizer,
porque o que sobra, como excesso, da primeira é o reverso do que
falta à segunda. E,   entretanto, todas as narrações feitas
endereçam essa dificuldade de dizer, resolvendo-a, como no caso
presente de Moreira de Mendonça, pelo lado de uma apresentação
exaustiva da história e dos sucessos dos terramotos, em particular
o de Lisboa; ou pela escolha de um tom patético e exclamativo,
que grande parte da poesia dedicada ao tema, de João Xavier de
Matos ao Abade de Jazente e a Domingos dos Reis Quita ou
Francisco Pina e Melo optará por desenvolver.
Ser testemunha ocular é, com efeito, uma das posições
privilegiadas para assegurar a legitimidade daquilo que se
consegue narrar. As implicações desta situação são várias. Por um
lado, trata-se de dar conta de uma presença que é garante de um
saber: quem conta esteve lá, e o carácter de atestação da
experiência permitir-lhe-á assegurar quem lê da veracidade
incontornável do que conta. Por outro lado, esta dimensão é tanto
mais importante, mesmo necessária, quanto se sabe também que
se fala de um evento extra-ordinário, cujo carácter fora do comum
poderia remeter para o território do ficcionado: ora, trata-se de
assegurar que a realidade ultrapassa, em poucos mas não menos
violentos casos, o que se entendia ser apenas do domínio da
imaginação, ou mesmo do mito (as analogias várias do Terramoto
com a submersão da Atlântida, narrada por Platão, dão
precisamente conta deste aspeto, bem como as analogias com
cidades bíblicas como Sodoma, Nínive ou Babilónia). Por último,
ser testemunha ocular também aponta para um outro, e a meu ver
não menos significativo, elemento, cujas raízes podemos encontrar
aliás no Livro de Job na Bíblia: toda a destruição tem de conseguir
preservar alguém que, tendo visto, possa vir a contar, porque sem
isso nenhum futuro guardará memória (e por isso saber) do
passado. Isto significa que toda a catástrofe nunca poderá ser
completa, caso em que seria o terreno da própria humanidade que
se encontraria ameaçado. Poder contar uma história surge, então,
como fundação do território do homem enquanto ser histórico,
cultural, político e até simbólico. É este o caso de Ismael, o
narrador-testemunha do romance de Melville, Moby Dick.
É por isso que em muitos dos relatos encontramos a consciência
de que é preciso contar para que as gerações futuras (que também
somos nós) possam viver sabendo-o, e construir a sua vida com
essa sabedoria, preservada pela memória: «O dia primeiro do
corrente ficará memorável a todos os séculos pelos terremotos, e
incêndios que arruinaram uma grande parte desta Cidade […]»,
refere a Gazeta de Lisboa125, periódico que curiosamente não
interrompe a sua publicação por causa do Terramoto, constituindo-
se em excecional órgão de informação e também redução do
pathos associado a todas as narrativas de catástrofe.
Ao longo dos meses que se seguem, a Gazeta amontoará as
notícias que de todo o lado lhe chegam sobre o Terramoto — do
estrangeiro mas naturalmente com maior destaque de Portugal.
Sucedem-se as notícias e descrições (por vezes com abundância
de pormenores e notações), vindas de vários pontos do país, sobre
o Terramoto e seus efeitos. Castelo de Vide, Alenquer, Linhares,
Gouveia, Mafra, Ericeira, as ilhas da Madeira e dos Açores, Tibães,
Guimarães — de todos os lados convergem para a Gazeta relatos
sobre sinais, sintomas e consequências: as águas dos rios
vermelhas e sulfurosas, os lagos que estranhamente crescem e
diminuem, a poeira que fez empalidecer o Sol, os rochedos
submersos que repentinamente ficam à vista, as águas do oceano
que incham e desincham ou ainda o súbito surgimento de cometas
atravessando a noite; e depois as notícias de que desde Tânger ou
Marzagão até à América, passando por França, Inglaterra,
Alemanha ou Noruega, o Terramoto por todo o lado se fez sentir.
Fazem-se listas dos edifícios arruinados, desfeitos ou atingidos;
narram-se pequenos episódios, como o de os padres que fogem
ainda paramentados das igrejas onde diziam missa; dá-se conta
das primeiras reações do estrangeiro, como a do rei inglês, que
imediatamente disponibiliza uma soma privada para acudir aos
mais necessitados; ou anota-se «a consternação e o abatimento»
com que as notícias sobre o Terramoto foram recebidas em
Hamburgo; recorda-se, a propósito do corrido na praça africana de
Marzagão, que «o Alcaide mor desta praça, que o Mar arrebatou, e
levou consigo, também depois do mesmo tempo o tornou a meter
vivo dentro da Praça por um postigo. Administraram-lhe logo os
Sacramentos, mas dentro em oito dias, depois de haver vomitado
areia, búzios, conchinhas, e algum sangue pisado, convalesceu
por mercê de Deus»126.
«Ver para crer» parece assim constituir uma posição implícita em
muitos dos relatos, o que serve naturalmente quer para garantir a
qualidade verídica do que é narrado, e assim legitimar o narrador,
quer ainda também para atribuir a este uma qualidade de
sobrevivente histórico que poucos poderiam gabar-se de ter tido.
Mais ainda, houve aqueles que sobreviveram e houve os que
contaram. Mas poucos terão sido os que puderam conjugar as
duas experiências, a de presenciar e a de contar. Essa
convergência transforma quem conta num ser quase único:
Farei, que de temor fique sentindo
Sustos o coração mais obstinado,
O espectáculo mais horrendo ouvindo,
Que até agora os humanos têm chorado.
Quanto, ó mortais, vos ponho aqui patente,
Não é informação da vaga gente:
Nem notícia também da antiga História,
Escrita para assombro da memória:
Eu no perigo ainda me suponho
Do lamentável caso, que proponho,
Do susto macilentos os semblantes,
Os juízos incertos, vacilantes;
Inda os quebrados olhos rasos de água
Mostram a dor de tão terrível mágoa.127

É claro que os ecos camonianos do «ver claramente visto» se


fazem também aqui sentir, nestes versos de Reis Quita,
associados ao carácter presencial e histórico daquilo que vai ser
contado. Desse ponto de vista, seria interessante considerar a
forma como estes relatos de catástrofe se pensam como possíveis
contrapontos da epopeia camoniana d’Os Lusíadas, respondendo
ao carácter construtivo e edificador desta com a narração da
destruição e da ruína do Terramoto. Julgo que não será difícil
reconhecer neste texto de Reis Quita, como no texto do Abade de
Jazente «Ao Terremoto do primeiro de Novembro de 1755.
Romance Fúnebre», ou ainda nos de João Xavier de Matos
(«Romance Heróico ao Terremoto do primeiro de Novembro de
1755») e Pina e Melo («Ao Terremoto do Primeiro de Novembro de
1755. Parenesis»), quer a presença do decassílabo que o próprio
Xavier de Matos designa como «heroico» quer um conjunto de
imagens que assimilam a lição épica de Camões para sobre ela
elaborarem uma forma de destruição e vanidade. Assim, a
testemunha ocular que aqui é convocada é também um Poeta que
para si reclama um lugar especial: vários terão sido os que viram,
os que viveram; mas poucos os que souberam transformar a
experiência vivida em palavra dita, transmitindo-a aos outros.
O  Poeta é aquele que, afinal, garante a transformação do evento
em História.
Esta dimensão presencial e ocular dos relatos arrasta consigo
outros dois elementos: em primeiro lugar, a visualidade associável
a todos os relatos feitos do Terramoto, e a irresistível atração pela
abundância de pormenores, casos e episódios com ele
relacionáveis. Em segundo lugar, o carácter espetacular legível
nas narrações feitas, privilegiando-se uma visão cenografada de
um espectáculo patético que, em muitos casos, se aproxima
daquela forma específica de representação teatral, tão cara ao
século XVIII, que conhecemos sob o nome de melodrama128.
Comecemos pela primeira das questões enunciadas. A
dimensão visual das narrativas associadas ao Terramoto é,
naturalmente, uma sua característica-chave. Trata-se, em todas
elas, de aproximar o mais possível o leitor da posição imaginária
de um espetador, partilhando com ele, fazendo-o ver o que as
palavras contam:
E tu mortal, que passas, se buscando
Andas o objecto do clamor que escutas;
Não prossigas, detém-te, volta os olhos,
Que verás ainda mais do que procuras.
Dilata a vista pelo mapa informe
Desses desenhos míseros; consulta
Maior espanto; observarás mudada
Em ermo triste a habitação jucunda.129

«Ver ainda mais do que procura[s]» é, aliás, expresso sinal do


carácter excessivo do evento: a isto regressarei mais tarde. Por
agora, fixemos a forma de endereçamento direto do Poeta ao
passante, convidando-o a uma atitude de contemplação, pela qual
ele poderá ver e depois refletir sobre a mudança: uma habitação
transformada em deserto, lugar onde nenhum homem pode
sobreviver. Encontramo-nos pois perante aquilo que poderíamos
designar como a perda da dimensão histórica da habitação
humana, que o Terramoto acarretará. Começamos assim a
perceber que este evento natural tem sobretudo efeitos culturais, e
é um dos melhores exemplos da forma como a Natureza se
converte em História. É  deste ponto de vista que por exemplo a
dimensão visual passa a constituir elemento fundador das cenas
descritas, podendo-o ser quer por demorada descrição de algum
episódio quer por rápida enumeração de fugidias situações que se
seguem todas umas às outras e representam, pela forma como se
sucedem com tanta rapidez, o carácter invasor da experiência do
Terramoto e do Maremoto:

Neste horroroso conflito somente o amor-próprio dominava.


Os Pais deixavam os filhos; estes não se lembravam dos que
lhe deram o ser. Os Esposos se esqueciam das Consortes.
Não havia amigo para amigo […]. Buscava a morte a muitos;
mas com diverso sucesso. Uns saíam das suas casas, em que
não houve ruína de perigo, e ficavam sepultados com as
paredes de outras vizinhas. Outros postos de joelhos, e os
olhos no Céu, foram mortos pelas pedras dos edifícios. Houve
mãe que lhe morreu o filho nos braços ficando ela livre; outra
que alcançou uma pedra para a matar sem ofender a criança,
que levava ao colo. Foi visto um Religioso do Carmo posto em
uma altíssima janela de onde não podia sair para dentro, nem
para fora, pedir a absolvição a um Sacerdote, que passava de
longe, e esperar com constância o fogo que o consumiu […].
Consternados os homens com tanto perigo vagavam como
loucos buscando os campos sem descanso algum. Qual com
alguma Imagem na mão entoava as preces, que continuavam
muitos, que o seguiam, todos com vozes, e passos trémulos.
Outros caminhavam mudos, e pasmados.130

Os exemplos poderiam naturalmente multiplicar-se, porque se


trata, como disse, de um dos elementos de consideração central
nas narrativas da catástrofe. Aquilo a que a retórica antiga
chamava pôr diante dos olhos (ponere ante oculos) representa,
assim, uma modalidade central na construção do relato da
catástrofe, num tempo em que evidentemente não há recurso aos
inúmeros instrumentos de visualização instrumental de que agora
dispomos (e bastará recordarmos a forma como a catástrofe do
maremoto na Ásia, nos últimos dias de 2004, serviu de súbita e
excessiva matéria a toda a série de imagens, fotografias,
composições, vídeos, filmes, desenhos que saltaram para dentro
do nosso quotidiano). Compete à narrativa verbal fazer
desencadear a imaginação do evento, para lá da experiência direta
que cada um dele possa ter tido. Por outro lado, da partilha dos
casos, que enchem todos os relatos, da Gazeta de Lisboa às
inúmeras cartas trocadas sobre o assunto, públicas e privadas,
passando pelos textos dramáticos, pelos poemas dedicados ao
tema ou pelas tentativas épicas, dessa partilha cresce também a
possibilidade de pôr em comum uma experiência que, de outra
forma, corre o risco de cristalizar numa espécie de clausura
traumática: ler assim concretamente sobre os outros, tantos outros,
«vê-los» através dos relatos pode funcionar, neste contexto, como
forma de assegurar que a experiência traumática pode ser
ultrapassada pela forma como é posta em comum e partilhada com
todos os outros que a viveram e a podem ainda imaginar. Deste
ponto de vista, escrever sobre a catástrofe equivale a um gesto de
sobrevivência, seja o que for que sobre ela cada um consiga
articular.
Mas esta capacidade de visualização desemboca,
inevitavelmente, em modos evidentes de um patético facilmente
identificável através de formas de teatralização melodramática
pelas quais o leitor (como vimos transformado em espetador
imaginário) é convocado a não apenas contemplar à distância o
acontecido mas, de modo muito claro, também participar, mesmo
se apenas por partilha e empatia emotiva, dos quadros e das
cenas que lhe são narradas. Esta qualidade de encenação de um
espetáculo terrível, que assim se apresenta ao espetador, faz da
cidade de Lisboa, repentinamente, um enorme palco em que todos
os espetadores se convertem também em atores, de forma mais
ou menos direta, de forma mais ou menos imediata.
É por isso que tantas das descrições do acontecido sublinham o
poder visual e até simbólico da convergência dos quatro elementos
primordiais na destruição da cidade, como demoradamente analisa
Isabel Maria Barreira de Campos131: a terra que treme; o mar que
engole a cidade; o fogo que destrói o que restava; o vento ciclónico
que transporta a imensa poeira e escurece o ar. Miguel Tibério
Pedegache, por exemplo, comenta do seguinte modo o acontecido
durante o fenómeno: «A terra, o ar, e a água tinham-se conjurado
contra a infeliz Lisboa, e seus aflitos Cidadãos. Faltava só o fogo
para completar a nossa ruína»132. O Terramoto de Lisboa teria
então também tocado a imaginação contemporânea por oferecer
um quadro particularmente vivo do modo súbito e violento como a
Natureza se ergue e se revolta contra o homem, atingindo-o no
lugar onde o seu domínio sobre ela pareceria ter sido mais forte: a
Cidade. Não teria sido apenas a terra a tremer, mas toda a
Natureza que subitamente (e este carácter súbito é ainda elemento
fundamental, porque arrasa a possibilidade de qualquer previsão
de segurança para o homem, que apenas pode edificar habitações
precárias) se tinha concertado para, de forma terrível, atacar o
homem.
É claro que isto tem ainda outras consequências, nomeadamente
as que ecoarão por toda a Europa a partir das reflexões que
Voltaire dedica ao Terramoto de Lisboa, quer as incluídas no seu
Candide quer as mais imediatamente representadas no seu poema
«Poème sur le Désastre de Lisbonne»: não viveríamos, pois, no
melhor dos mundos, como o filósofo Leibniz tinha proposto. E 1755
representa, deste ponto de vista, o momento em que
espetacularmente se encerra a possibilidade de considerar a
dimensão de um progresso tranquilo como o lugar seguro para
aquilo a que hoje chamamos modernidade. Para Voltaire, o
Terramoto de Lisboa é prova de que «o mal existe», como ele diz,
e também de que existe um problema, de que falaremos adiante,
com a forma como Deus permite e até incentiva (por omissão) as
manifestações desse mal dentro do mundo histórico dos homens.
O carácter cénico das inúmeras descrições do evento e das suas
consequências deve então também ser lido como um modo
particularmente pungente de descobrir que não só não vivemos no
melhor dos mundos possíveis como, pelo contrário, o mundo em
que vivemos pode repentina e cegamente virar-se contra aquele
que supostamente seria o seu centro: o homem. É por isso que
textos como Teatro Lamentável, Cena Funesta: Relação
Verdadeira do Terremoto do Primeiro de Novembro de 1755133 não
fazem mais, no fundo, do que expor essa dimensão patética como
constituindo um fator iniludível de um teatro que se converteu,
agora, num teatro em ruínas.
Confrontemos, aliás, ainda nesta linha, as numerosíssimas
gravuras e ilustrações diversas de cenas relativas ao Terramoto: e
não será difícil verificar que visualmente o modo preferencial de
representação passa pelo estabelecimento evidente de laços
visuais com o espectáculo teatral, quer pela forma como a cena é
retratada (escolha da perspetiva, enquadramento, direção do
olhar) quer pelo tipo de relações narrativas e descritivas
estabelecidas entre as personagens, e entre elas e os elementos
naturais que compõem a terrível cena (terra, água, fogo e ar). O
patético da cena cabe no exagero dos gestos que são traçados,
nos pormenores dos corpos contorcidos, das bocas
desmesuradamente abertas em gritos que se não ouvem mas ali
são representados, nos olhares desencontrados que rimam com os
trajes descompostos, nos movimentos descontrolados: estamos
em pleno terreno de melodrama (Peter Brooks recorda, aliás, as
analogias entre melodrama e pesadelo), lugar por onde,
justamente, o equilíbrio da representação teatral do Classicismo
francês e europeu tinha construído o seu ponto de fuga. Que tal
«teatro» seja «lamentável» e tal «cena» funesta não retira, antes
pelo contrário, espessura à capacidade de construir o Terramoto
como encenação de um espetáculo cuja dimensão excessiva se
torna, também, o garante do seu efeito persuasivo e de resgate:

As nossas casas tremiam como folhas das árvores, e os


nossos corações, como as nossas casas. Imaginai, ó
vindouros, o pavor com que o ranger e o rebombar da queda
dos edifícios, que ruíam em massa, nos abrasava, como um
fogo, até à medula dos ossos. Aqui uma caterva de gente
contorcia-se sob os escombros, na mais cruenta agonia. Além
gritos lancinantes de morte ecoavam através das pedras e da
terra, e a ninguém era possível acudir aos desventurados que
se debatiam sozinhos. Mais além um desgraçado rasgava as
unhas e a carne até aos ossos, a fim de salvar a sua pobre
vida de uma sinistra cova — tal, porém, para nada mais lhe
valendo senão para se tornar em coveiro de si mesmo,
porquanto, com suas mãos, preparava o próprio túmulo.134

Não é evidentemente de esquecer, neste contexto, que Lisboa


não é uma «cidade qualquer», mas à data uma das mais ricas e
monumentais cidades europeias, juntamente com Paris, Londres e
Nápoles. E que o espetáculo da sua destruição, pois, é também a
capacidade de ver o contraste entre o que era tanto e, tão de
repente, deixa de ser. O Núncio intitula uma carta Dalla Terra dove
Lisabone fu, em imitação de Vergílio: esse lugar histórico rasurado
da face da terra, esse lugar desaparecido que apenas resta como
memória do que foi. Porque convém não esquecer que,
justamente, uma das hipóteses de reconstrução apresentadas ao
Marquês de Pombal por Manuel da Maia foi a hipótese de fazer
tábua rasa da localização anterior de Lisboa, para construir uma
nova cidade mais a oeste, no local em que aparentemente as
defesas naturais contra a possível repetição do maremoto eram
mais fortes. Sabemos que não foi essa a opção do Marquês — é
entretanto curioso notar que o arrasamento e o abandono da
Lisboa-histórica foram uma opção encarada e debatida à data,
indo ao encontro do sentimento de destruição por todos partilhado.
E por isso o contraste entre a suprema glória e a mais miserável
miséria é, ainda, outro dos elementos que repetidamente ecoa nas
inúmeras descrições feitas do evento: como lembram alguns
testemunhos, «uma hora» bastou para transformar o mais no
menos, para destruir aquilo que os séculos tinham pesadamente
edificado:
Um só momento, um só, porém terrível
Abre, rompe, destrói, faz em pedaços
Os doces lares, as sublimes torres,
Os Templos Santos, e os Palácios altos.
A rude queda das paredes rotas
Devora vidas mil por modos vários;
Pois sendo um só destino, é bem diversa
A morte que resulta dos acasos.135

Aquilo de que o Abade de Jazente está aqui a falar tem uma


dupla dimensão: por um lado, trata-se de anotar que «um só
momento, um só» instala a diferença dentro do universo dos
humanos — e que essa diferença, por ser imprevisível, súbita e
terrível, transporta consigo um grau de absoluta incerteza sobre o
modo como os homens e as suas cidades (isto é, tudo quanto elas
simbolizam de edificação) conseguem assegurar formas de
continuidade e sobrevivência. Por outro lado, é a própria noção de
morte que é aqui alterada para um modo aleatório, arbitrário e
também ele ainda mais imprevisível: os «modos vários» por que
«mil vidas» são arrebatadas levam a captar a perceção dolorosa
de quantas mortes subitamente resultam de um mesmo «acaso».
E morrer por acaso comporta uma inevitável dimensão trágica que
o Abade de Jazente anota, porque atinge bem fundo a eventual
falta de sentido da morte e, por isso, da própria vida. A destruição
de Lisboa é pois, neste contexto, algo de mais fundo e terrível do
que «apenas» a queda dos edifícios, porque com eles cai qualquer
tipo de segurança que pudesse ter sido edificada. E é por isso que,
no Abade de Jazente mas também em tantos textos de tantos
autores, uma das imagens a que repetidamente se recorre é a de
um Juízo Final, um Dies Irae que este mal súbito teria de alguma
forma anunciado:
Que escuto, e sinto, ó Deus! Não sei que soa
Por modo nunca ouvido: o Tejo cresce:
Abalam-se as montanhas; e parece,
Que o mar com novas ondas nos atroa:
Casas, Palácios, Templos desprovoa
Este medonho som, que me esmorece:
A gente pasma, a terra se estremece:
O fogo prende; e funde-se Lisboa.
Que será? Quem o sabe?… O entendimento
Se perturba de horror; e em tanto estrago
Está vendo um final acabamento.136

A experiência do Terramoto é, pois, a experiência do inaudito:


coisas nunca antes ouvidas, experiências que se tornam opacas à
compreensão humana («parece que»…), que só a pergunta
retórica «Quem o sabe?» permite endereçar, porque não espera
resposta, tal a «perturbação» do entendimento. Fica, pois, a
hipótese do «final acabamento», em aparente pleonasmo que
assinala apenas a aproximação do Juízo Final, do dia do
Apocalipse que em inúmeros relatos e reflexões surge como
anunciado pelo Terramoto. E registem-se ainda as notações
humanas implicadas por vocábulos como «esmorecer» ou
«pasmar», relacionáveis com aquilo que designámos como a
perceção de um modo já sublime de apreensão da catástrofe: algo
que não encontra grandeza igual fora de si próprio, algo que
excede e sobra para lá do registo histórico de que pode haver
memória, algo que subitamente dá conta da opacidade dos
desígnios de Deus e da violenta cegueira que se pode esperar
também da Natureza. Que os homens esmoreçam e pasmem
perante o evento apenas atesta que eles se apercebem da sua
dimensão por assim dizer extra-humana, irremível ao universo
histórico dos eventos «normais» (entre os quais se contam
violências várias, embora sempre enquadradas dentro de
parâmetros de compreensão apesar de tudo compreensíveis). É
precisamente por isso, porque esta catástrofe parece apontar para
uma natureza diferente, que Kant fala, nos ensaios que dedica ao
fenómeno, do modo como a intuição dessa natureza diferente teria
aberto caminho quase imediato a tentativas, nomeadamente de
ordem teológica, de recondução do evento aos sentidos humanos:
«A história não regista outro exemplo duma agitação das águas
tão grande e tão extensa numa tão larga superfície da Terra.» […]
«Como o terror lhes [à maior parte dos homens] rouba a reflexão,
julgam que estas grandes desgraças são das tais que se não
podem minorar por qualquer precaução e supõem que a dureza do
destino só pode ser abrandada por uma submissão cega e
entregam-se completamente à misericórdia ou à cólera divina»137.
O caso do Abade de Jazente constitui, deste ponto de vista,
exemplo emblemático, pois nele a intuição do fim do mundo surge
como hipótese forte para a compreensão de tanto desnorte: trata-
se a seu ver (e ao ver de tantos outros que sobre o Terramoto
escreveram, em Portugal e nos estrangeiro) de um sinal
inequívoco daquilo que se prepara: uma «ruína universal» que
deveria levar a que cada homem pensasse na sua relação com
Deus:
Geme o Centro imortal, o Abismo estala,
O Vento se enfurece, o Ceú se enluta;
Do mais enorme peso a massa bruta
Rompe em soluços, em tremor se abala.
O mar o seu prefixo termo escala;
Na prisão subterrânea o fogo luta,
E horrores vomitando em vada gruta,
Com medonho estridor o Inferno fala.
Tanta desordem, tanto desconcerto
Nos Elementos todos, são indício,
Que a ruína universal vem já mui perto.138

É que, se as duas quadras do soneto descrevem o modo abismal


como tudo parece ter subitamente enlouquecido, saindo do seu
curso conhecido, o terceto aponta para o único teor explicativo que
possa reconduzir tais eventos ao domínio da compreensão: o fim
do mundo surge, neste contexto, como uma tentativa de
explicação, da ordem do que a palavra de Deus anunciara aos
homens.
Para Francisco Pina e Melo139 («Ao Terramoto…»), é a própria
Terra que deixa de ser o «sólido elemento» e como que ostenta o
«delírio» de Copérnico, quando afirmava o movimento da Terra em
torno do Sol (questão a que voltará no seu Juízo…): uma
Natureza, pois, que parece infirmar os princípios tidos como
divinos, muito embora a seguir se reconheça (2) «que nos
portentos/Fala Deus pela voz dos Elementos». E o próprio facto
de, no terramoto (o maior «grito» de Deus, segundo Pina e Melo),
o homem achar primeiro a sepultura que a morte (3) confirma a
visão do topos barroco de um mundo ao revés que vem, aliás,
associar-se imediatamente à recordação medievalizante quer da
dança macabra, que a todos iguala na sua voragem, quer do
memento mori que com ela surge tantas vezes referida. E por isso
a destruição da cidade deixa, como resto, a memória de um nome
a que nenhum referente parece poder corresponder, um nome
absoluto e por assim dizer vazio:
[…] O caminhante
Imóvel, assombrado, ou ignorante,
Quando nelas por ambas perguntava,
Nem já Lisboa, ou Santarém achava (5).

A este vazio responde o sujeito com a enumeração «Eu soluço,


eu suspiro, eu gemo, eu choro» (7), em reconhecimento de uma
infralinguagem que apenas pode exprimir-se pelo inarticulado: o
Terramoto faz vir à tona uma linguagem outra, que se exprime
justamente pela impossibilidade de articular, e que por essa razão
contradiz a linguagem comum. E é por isso que o mesmo Pina e
Melo, no seu Juízo…, reconhece que, embora seja natural querer
penetrar as causas da catástrofe, a sua natureza íntima é tal que
«cada um só deverá falar, menos com as vozes, que com o
coração, e mais com o assombro, que com as palavras» (1): o
sublime vai-se conjugando já com o topos do inefável, ao mesmo
tempo que a linguagem é confrontada com os limites que só ela,
afinal, pode dizer. É também nisto que, de um certo ponto de vista,
consiste o fim do mundo: quando deixamos de poder dizer, o
Apocalipse não pode deixar de estar perto:

Se quereis saber a causa deste horror, deste assombro,


desta calamidade, não olheis para o que dizem, sem alguma
evidência, os Matemáticos, e os Filósofos, olhai para o que vos
diz o mesmo Deus pela boca do Profeta Isaías: Quando chegar
o tempo (adverte o Profeta) em que a Terra se mova do seu
lugar, será um tremendo sinal da indignação do Senhor dos
exércitos; e de que é chegado o dia da sua ira, e do seu furor.
(4)

Não é pois de espantar que os debates teológicos tenham


assumido a dimensão e o carácter extraordinários na sequência do
Terramoto de 1755: outra coisa, afinal, e estamos 250 anos depois,
não está implicada na interrogação que a catástrofe ocorrida na
Ásia, a 26 de dezembro de 2004, lançou por todo o mundo, e de
que o jornal Público se fez eco, ao publicar no dia 5 de janeiro um
dossier intitulado: «Onde estava Deus naquele dia?», e remetendo
as respostas para os diferentes universos religiosos pressupostos
por hindus, muçulmanos, cristãos, budistas e judeus. Em meados
do século XVIII, e no quadro dos debates teológicos tão frementes à
época, a que se somava o clima obscurantista vivido em Portugal e
representado pelo peso e pelo poder da Inquisição, esta questão
assumirá naturalmente uma extensão muito significativa,
reacendendo-se na forma como a coincidência de o Terramoto se
ter dado no dia de Todos os Santos (dia católico por excelência,
mas justamente não protestante) pode passar a ser lida e
interpretada.
As análises com bases teológicas não eram naturalmente novas
— e dois séculos antes, comentando o ocorrido aquando do
Terramoto de 26 de janeiro de 1531 (fenómeno aliás de
características e violência muito semelhantes ao de 1755), Gil
Vicente já se lhe referira, numa carta ao rei, verberando os
pregadores que tinham usado o pânico da população para
aumentar o terror e lhe anunciar o fim dos tempos:

Os frades de cá não me contentaram, nem em púlpito, nem


em prática, sobre esta tormenta da terra que ora passou,
porque não abastava o espanto da gente, mas ainda eles lhe
afirmavam duas cousas, que os mais fazia esmorecer. A
primeira que polos grandes pecados que em Portugal se
faziam a ira de Deus fizera aquilo e não que fosse curso
natural, nomeando logo os pecados por que fora em que
pareceu que estava neles mais soma de ignorância que de
graça do spírito Santo. O segundo espantalho que à gente
puseram foi que quando aquele terremoto partiu ficava já outro
de caminho senão quanto era maior e que seria com eles à
quinta-feira uma hora depois de meio dia. Creu o povo nisto de
feição que logo o saíram a receber por esses olivais, e inda o
lá esperam.140

É a esta situação que ele reage, falando em público contra tais


interpretações e desenvolvendo duas contrateses: a de que o
acontecido não pode ser imputável à ira de Deus; a de que pecam
por superstição os que pensam que podem anunciar o que está
por vir:

Concruo que não foi este nosso espantoso tremor ira Dei;
mas ainda quero que me queimem se não fizer certo que tão
evidente foi e manifesta a piedade do Senhor Deus neste caso
como a fúria dos elementos e dano dos edifícios. […] Concruo
virtuosos padres sob vossa emenda que não é de prudência
dizerem-se tais cousas pubricamente nem menos serviço de
Deus porque pregar não há-de ser praguejar.

Os problemas de interpretação apropriativa e manipulação


ideológica a que o século  XVIII assiste, na sequência do Terramoto,
não são pois diferentes daqueles a que Gil Vicente, dois séculos
antes, tinha reagido. Mas talvez tenha faltado, à reação
setecentista, o desassombro de um Gil Vicente, que ainda pôde,
no século  XVI, chamar «espantalho» àquilo que os pregadores
faziam e considerá-los ignorantes, e que desafiadoramente
avançava a hipótese de ser queimado, sem que tal o afastasse da
intervenção pública que entendeu fazer, e cujos efeitos
tranquilizadores (sobretudo sobre os cristãos-novos) também
descreve.
Os dois grandes campos que se confrontam, neste domínio, são
naturalmente os de católicos e protestantes — embora na verdade
as suas posições sejam redutíveis a um mesmo tipo de explicação,
a do castigo divino. O que difere é, naturalmente, o que é
considerado como razão justificativa do castigo. Para os católicos
trata-se dos inúmeros desvios à lei de Deus e às instituições
religiosas que representariam a Sua vontade entre os homens,
com particular destaque para o que seria a inexplicável «brandura»
do Santo Ofício: seria preciso os homens castigarem-se a si
mesmos, mais e melhor do que até aí. Para os protestantes, pelo
contrário, o motivo para o castigo figurado no Terramoto consistiria
na superstição e na idolatria católicas, que Deus teria querido
assinalar como tal, manifestando a sua ira e legitimando, a
contrario sensu, as convicções protestantes.
Este debate é europeu, naturalmente, e atinge ecos talvez de
outra forma inimagináveis. Mas, entre os vários atores que nele
participam, destacarei a posição de dois portugueses que ocupam
posições polares na contenda, e que irónica mas também
simbolicamente viriam a ser alvo de semelhante condenação
(embora não de idêntico desfecho): o Padre Gabriel Malagrida e o
Cavaleiro de Oliveira. O primeiro virá a ser queimado em auto de
fé, alguns anos mais tarde, no fundo por razões políticas: as suas
posições extremas e de teor fundamentalista, em defesa de uma
maior musculação do Santo Ofício, eram incompatíveis com os
desígnios esclarecidos que o Marquês de Pombal, enquanto
déspota iluminado, defendia. A sua eliminação tornou-se, em dado
momento, necessária à abertura de um caminho diferente,
conducente à modernidade. Do outro lado, encontramos o
Cavaleiro de Oliveira, com um percurso de vida bem digno de um
estrangeirado (grande parte da sua vida viveu-a em cortes da
Europa como a austríaca ou a inglesa), e que se tinha convertido
alguns anos antes ao luteranismo e assim abandonado qualquer
veleidade de se compatibilizar com o statu quo nacional, de
«austera, apagada e vil tristeza».
A obra do Cavaleiro de Oliveira (que foi também queimado,
embora só em efígie, no mesmo auto de fé que eliminou
Malagrida), Discurso Patético sobre as Calamidades Presentes
Sucedias em Portugal141, surge em francês e é publicada em
Londres em 1756, tendo logo circulado clandestinamente em
Portugal, apesar da imediata proibição do Santo Ofício. O
Cavaleiro de Oliveira funda a sua reflexão no reconhecimento de
que as catástrofes (que pressente já como à escala mundial) têm
na sua origem a ira divina, e que é por isso o «Deus Forte, Deus
das Vinganças» (p. 7) Aquele que assim exprime, por esses
cataclismos, a sua cólera. Mas o Cavaleiro de Oliveira tem como
objetivo dirigir-se particularmente aos Portugueses, aos «súbditos
de Sua Majestade Fidelíssima José I, rei de Portugal», e assim
distinguir, dentro do convite geral ao arrependimento, alguns dos
que, a seu ver, mais se destacam na senda da superstição e do
pecado. As suas propostas, cuja fundamentação religiosa
(pronunciada por alguém que abjurou da fé católica) é a sua pedra
de toque, giram sobretudo em torno da erradicação de algumas
das raízes do mal em Portugal: a idolatria (pp. 21-3), a Inquisição
(p. 27) e a expulsão dos judeus (p. 45) surgem-lhe como a raiz de
um mal que escolhe, por isso mesmo, e em plena «consciência»,
manifestar-se em dia sagrado. A coincidência entre o dia santo e a
catástrofe perturba-o (como perturba muitos outros): porque Deus
é a raiz do sentido para o que de outra forma surgiria como brutal
acaso, não lhe resta senão aceitar que há sentidos que através do
mal fazem operar um bem potencial. É aqui que pode, justamente,
entrar o arrependimento, pelo qual o mal passaria a poder ser
integrado, mesmo se irónica e paradoxalmente, no sistema do
bem. De outra forma, o mal torna-se impensável, porque absurdo e
fechado ao sentido humano, sublinhando a impotência da
compreensão e o completo obscurecimento do mundo:

Alteza: Não é pois possível duvidar mais de que o duplo


crime de haver suprimido a Palavra de Deus, e de haver
exercido uma tão longa, e tão horrível perseguição contra
tantos inocentes, não seja uma das principais causas das
calamidades que acabam de tombar sobre os culpados
habitantes de Lisboa. O mal é premente […]. (p. 56)

Assim, o Cavaleiro de Oliveira faz-se eco dos muitos que lá fora,


por toda a Europa, interpretavam o Terramoto como a
manifestação da condenação divina pelos vícios católicos, ou
pelos pecados acumulados na cidade de Lisboa, rica, cosmopolita,
mas por isso mesmo corrupta. E, no fundo, a interpretação não
difere muito da que o lado católico oferece visto que este partilha
também da visão de que teria sido a corrupção de Lisboa, entre
todas, a razão por que Deus teria escolhido esta cidade para
manifestar a sua cólera. Pina e Melo, no seu Juízo…, di-lo
expressamente, e esta será ainda a posição defendida à
saciedade pelo Padre Malagrida: o vício e o pecado, provenientes
do progressivo afastamento da lei católica, não podiam deixar de
encontrar um castigo exemplar, que o Terramoto configuraria como
exemplo para todos os tempos:

Nem digam os que politicamente afirmam, que procedem de


causas naturais, que este Orador sagrado abrasado no zelo do
amor Divino faz só uma invectiva contra o pecado, como
origem de todas as calamidades, que padecem os homens, e
que se não deve comprovar com estes espíritos ardentes, que
só pretendem aterrar os mesmos homens, e aumentar a sua
aflição com ameaços da ira Divina desembainhada; porque é
certo, se me não fosse censurado dizer o que sinto destes
políticos, chamar-lhes-ia Ateus.142

De um modo ou de outro, pois, Deus era convocado como


origem, testemunha ou razão para o inexplicável, em prefiguração
do carácter humanamente absurdo (isto é, interpretativamente
obscuro, até ao fim) de várias experiências do mal com que a
modernidade se confronta, como bem viu Susan Neiman143, que
neste ponto aproxima o Terramoto da experiência de Auschwitz. As
razões que opõem Malagrida aos «Ateus», Voltaire e Pombal
incluídos (e que resultarão na sua condenação à morte, como
vimos), esclarecem assim dois mundos cuja compaginação se
torna insustentável em situação de catástrofe: de um lado, a
crença absoluta num mal cuja natureza transcendente apenas
pode levar, por reação, à reconfirmação do divino como única sede
e razão do humano; do outro, a necessidade racionalizante de, ao
reduzir não tanto as proporções mas as razões da catástrofe, a
redimensionar à escala do humano, afirmando a possibilidade e
sobretudo a viabilidade de viver para lá e apesar da catástrofe: de
algum modo, com ela (e contra ela).
Do conjunto de posições e textos aqui abordados, sobressaem
alguns elementos comuns que fomos progressivamente
sublinhando. Mas gostaríamos, antes de terminar o presente
capítulo, de voltar a um deles, a dimensão excessiva do evento —
porque ela parece ser o elemento que subjaz a todas as reflexões
a que deu origem. Porque há catástrofes com origem ou pelo
menos algum grau de participação humana, como reconhecem
vários textos (guerras, doenças, epidemias, agressões), a
catástrofe de 1755 sobressai como estando para lá deste conjunto
apesar de tudo compreensível de fenómenos. E é precisamente
para essa dimensão de excesso que os testemunhos históricos e
as reações literárias apontam, quando convergem para a notação
teatral e cénica do acontecido, quando pretendem configurar
descrições e narrações em que o rasgamento do mundo se dê a
ver, possa ser lido. Ser testemunha ocular é então compreender
que ver demais conduz a procurar como resposta (a única
possível?) o falar apesar de as palavras não chegarem, apesar de
o discurso ficar sempre aquém do horror histórico.
Deste ponto de vista, falar (e por isso escrever) é um dos modos
privilegiados de dar forma à experiência traumática, transportando
o evento do território da experiência para o território da linguagem,
constituindo aquilo a que chamamos memória cultural. Os textos
que hoje podemos ler sobre o Terramoto de 1755 e a pluralidade
de fenómenos que lhe estão associados dão conta muito
especialmente dessa consciência de que se trata de configurar um
evento para que os que dele depois vierem possam conhecê-lo.
Nós somos alguns desses, que vieram depois: Hélia Correia, com
a sua Lilias Fraser (2001), a criança do olhar dourado que
sobrevive a uma batalha na Escócia para vir ser testemunha, em
Lisboa, do Terramoto. Ou mesmo José Saramago, se pensarmos:
a «catástrofe natural» (mesmo sem grandes consequências
humanas) que põe a Península Ibérica a flutuar pelo oceano, em A
Jangada de Pedra (1986), não será ainda devedora do mesmo
imaginário de uma terra movendo-se, com epicentro ibérico? De
um Atlântico de algum modo engolindo uma Ibéria cujas ligações
terrestres se mostram subitamente tão frágeis? Não foi a
experiência dessa mesma fragilidade o centro das reações ao
Terramoto?

4.3. A FICÇÃO HISTÓRICA: OITOCENTOS E


NOVECENTOS. UM CASO: O MEDIEVISMO

Voltemos aqui a uma ideia a que já atrás mencionámos, mas que


pode no contexto surgir para enfatizar uma dimensão que terá já
ficado clara, relativamente a muitos dos textos e autores que aqui
temos vindo a referir. Trata-se da ideia de perda, que Paul
Ricoeur144 sublinha como elemento constitutivo do carácter
passado do passado. Na realidade, ela deve ser aqui reconhecida
como algo que funda as diferentes formas sob que História e
Literatura se relacionam com o que, sendo passado histórico (isto
é, sedimentado enquanto fenómeno histórico), é trazido pelo
discurso para o presente da escrita e da leitura. Não espanta, pois,
que específicas formas de idealização e/ou nostalgia assombrem
igualmente muito em especial várias representações literárias do
passado histórico, tornando mais visível a forma como elas se
perderam. É o caso, por exemplo, da recuperação da imaginação
medievalizante, de que nos ocuparemos no presente capítulo.
Reservemos para já esta ideia: a de que a relação do literário com
o histórico (enquanto fenómeno) repousa necessariamente sobre
esta ideia de perda, analisada por Ricoeur. E que por isso as
revisitações implicadas por essa relação comportam com
frequência uma dimensão nostálgica que faz parte da própria
representação literária do fenómeno histórico, sobretudo se
recordarmos a base etimológica do próprio termo de nostalgia:
uma dor (algia) intimamente articulada com a ideia de um regresso
(nostos) entendido como impossível, pela distância temporal e
histórica que a literatura encontra e representa. Não é apenas algo
que faz parte da História. É algo que totalmente passou.
O caso que aqui vamos equacionar, no contexto do presente
volume, é o do medievismo, tal como o romance dos
séculos  XIX e  XX o pratica. Digamos desde já que grosso modo os
dois séculos revisitam a Idade Média de formas globalmente
diferenciadas, e que seria por isso incorreto considerar que o que
se passa no romance do século XX é apenas uma continuação das
linhas de interpretação tecidas no século anterior.
Se tivéssemos que os distinguir de forma sintética, poderíamos
dizer que o romance oitocentista privilegia a dimensão nostálgica
sob um modo a que poderíamos chamar aproximativo, no sentido
em que tenta sobretudo reduzir a separação histórica aproximando
axiologicamente, pela narrativa literária, o passado do presente.
De um certo ponto de vista, a perda de que fala Ricoeur é aqui o
ponto de partida para a tomada de consciência de que as
diferenças permitem, apesar de tudo, o entendimento de formas de
continuidade que, por muito distantes que pareçam estar (e estão),
sustentam a possibilidade de algumas formas de regresso. É este
globalmente o caso do romance histórico praticado por Herculano
e de Garrett, de que já atrás falámos e que neste capítulo vamos
voltar a referir. É claro que já não é possível encontrar heróis como
Eurico no século  XIX. No entanto, é possível (mesmo se
infrequente) compreender que as opções éticas e históricas,
mesmo se assumem configurações diferentes no século  XIX, são
intimamente idênticas. E isto faz do romance histórico um meio
privilegiado para uma didática literária da História: é possível que o
presente aprenda com o passado. Um dos modos de o fazer é
através da revisitação da História, protagonizada pela Literatura.
Outro no entanto é o caso do que se passa globalmente no
século XX, como aliás bem viu Linda Hutcheon, a que atrás fizemos
referência. Na verdade, a revisitação novecentista do romance
histórico, e dentro dele do medievismo em particular, faz-se pelo
reforço de uma distância histórica que é afinal uma outra forma de
representar a perda, desta feita pela sua manifestação ou mesmo,
em alguns casos, exibição. A insistência em tal distância é
realizada com base em formas de reescrita paródica que
manifestam a ironia, ou seja, a consciência de que é impossível
ficar imune à consciência do que radicalmente separa o passado
do presente. E por isso, no século  XX, e mesmo se encontramos
ainda representantes de uma linha de continuidade relativamente
ao romance histórico oitocentista, a revisitação do passado, e em
especial da Idade Média, faz-se através introdução de efeitos que
reescrevem o passado, que afastam a narrativa da versão linear
que dele era anteriormente feita e que, por isso, insistem no
carácter mediador e transformador do fenómeno literário face à
narrativa historiográfica.
Talvez um dos casos paradigmáticos de tal reescrita e de tal
conjunto de operações, no século  XX, seja o que ocorre no quadro
da obra de José Saramago. É claro que a sua obra é devedora das
grandes linhas da ficção novecentista da segunda metade do
século  XX, em particular do chamado «realismo mágico» sul-
americano, forma híbrida de grande alcance para a consideração
das transformações que o realismo (e a História, com ele) vai
sofrendo. As formas de reescrita por ele empreendidas, e que
maximamente se configuram em romances como Memorial do
Convento, O Ano da Morte de Ricardo Reis, ou Viagem do
Elefante, implicam a adoção de um ponto de vista alternativo ao da
História oficial, embora desta integre elementos e quadros
imediatamente reconhecíveis.
Críticos especialistas na obra de Saramago, como Carlos Reis
ou Ana Paula Arnaut145, sublinharam ambos estes aspetos, em
obras que se detêm muito em especial na forma como a História,
enquanto experiência do humano, é categoria decisiva para a
conceção do literário neste autor. Mas, naturalmente, do ponto de
vista que aqui consideramos, o medievismo, a obra saramaguiana
mais significativa é sem dúvida História do Cerco de Lisboa. Este
romance, publicado em 1987, pode considerar-se um caso
sintomático da revisão da História que o romance contemporâneo
efetua. Na realidade, a dimensão irónica e de reconhecimento do
afastamento entre os dois tempos, presente (de escrita) e passado
(dos eventos), é manifestado neste romance através do
cruzamento de duas histórias que nada faria prever cruzarem-se: a
história passada em meados do século  XII, aquando da conquista
da cidade de Lisboa aos mouros por D. Afonso Henriques, e a
história do revisor Raimundo Silva e da sua editora, Maria Sara,
duplamente envolvidos quer na reescrita da História quer na
relação amorosa que entre eles se vai tecendo. É a introdução de
uma palavra no reconto da História, a palavra «não», que vai criar
o ponto de vista alternativo: segundo a versão oficial da História,
os cruzados ajudaram os Portugueses na conquista de Lisboa. De
acordo com o erro voluntário introduzido no relato pelo revisor, os
cruzados não ajudaram os Portugueses. E esta transformação
discursiva vai ter efeitos inesperados, quer no modo como a
História do passado é relatada e interpretada, quer na experiência
do presente e, naturalmente, na «linhagem» que é feita da cidade
de Lisboa. Com efeito, nesta é assim enviesadamente sublinhada
a presença histórica dos dois mundos que nela se encontraram, o
mundo islâmico e o mundo cristão, fazendo do romance a
recuperação de uma memória histórica que, através da distância
factual (representada pelo «erro» de Raimundo Silva), pode apesar
de tudo aceder, pela representação literária, à consciência de
quem lê.
No entanto, e para que se chegasse ao ponto de poder encarar a
História como lugar de reescrita literária, e por isso de
transformação simultaneamente subjetivante e simbólica, a obra
literária de enquadramento histórico, nomeadamente de quadro
medievalizante, teve de se constituir, ao longo do século  XIX, como
um dos lugares fundamentais de interrogação do passado. Por
isso é imprescindível começar por reconhecer que o conceito de
medievismo, tal como o conhecemos, apenas faz sentido no
quadro do pensamento inaugurado com a progressiva implantação
do Romantismo. Poder-se-á pois dizer que, no âmbito da literatura
portuguesa, ele deve ser fundamentalmente equacionado em
função da prática literária dos séculos XIX e XX.
Tal não é de estranhar, visto que decorre em grande medida do
facto de que o pensamento de carácter historicista e o interesse
mais lato pela História quer como categoria quer como disciplina
se elaboram sobretudo na Europa setecentista que prepara o
surgir do movimento romântico. O romance gótico dos finais do
século  XVIII em Inglaterra, a revalorização dos Märchen pelos
irmãos Grimm, a redescoberta de formas populares tradicionais
como a balada (Burger, Percy), eventuais falsificações de cantos
medievais como os de Ossian, a voga do romance histórico tal
como o início do século  XIX vê ser praticado por Walter Scott e a
revalorização de um sentimento religioso e cristão próximo das
raízes populares (Chateaubriand) constituem um quadro
suficientemente amplo para que possa compreender-se a
amplitude e a intensidade com que o interesse pela Idade Média
vai expandir-se por toda a Europa e, no caso vertente, Portugal.
Acresce a esta situação o fôlego com que o pensamento
historiográfico (Guizot e Thierry) se implanta, o que contribui para
dar um peso ainda mais significativo a qualquer manifestação que
de alguma forma se enquadrasse no mesmo conjunto de
interesses. O medievismo, surgindo neste quadro, apresenta além
disso um especial contributo: é que ele surge, em particular, como
forma de interrogar as raízes (e muitas vezes a própria fundação)
do conceito de nacionalidade, o que simbólica e politicamente
representa um passo essencial para a constituição do Estado
moderno, procurando na História a sua legitimação política.
Em Portugal, a obra historiográfica de Alexandre Herculano é a
este respeito fundadora, quer pela publicação de documentos
antigos, até aí inacessíveis (Portugaliae Monumenta Historica),
quer pela produção de uma narrativa consequente da História de
Portugal que em termos periodológicos se centra na Idade Média.
Este interesse será seguido, com menor grau de eficácia, por
vários outros nomes, como por exemplo Rebelo da Silva, Pinheiro
Chagas, Feliciano de Castilho e Teixeira de Vasconcelos. São
especialmente conhecidos, neste quadro, romances e narrativas
dos dois primeiros, visto que cumprem de forma muito clara os
preceitos entronizados para a narrativa histórica de recorte
clássico. Podem referir-se, por especial interesse para o presente
volume, textos como Ódio Velho não Cansa (1848), de Rebelo da
Silva, que retoma episódio central do Livro de Linhagens do Conde
D. Pedro, embora alterando-lhe o desfecho; ou Novelas Históricas,
de Pinheiro Chagas (que também escreveu sobre o Terramoto de
Lisboa), em que surgem episódios históricos como a tomada de
Santarém aos Mouros ou o cerco de Lisboa pelos Castelhanos em
1384 (remetendo neste último caso para os eventos históricos
narrados por Fernão Lopes). Mas ainda aqui poderíamos remontar
a Garrett ao redigir o poema narrativo D. Branca: a história,
passada no reinado de D. Afonso III, da filha deste e da conquista
do Algarve. O enquadramento medieval e a acentuação, por
Garrett, neste poema, das raízes árabes peninsulares podem ser
considerados como dois fatores decisivos que acompanharão o
pensamento histórico garrettiano, e que irão dando origem à
produção do seu Romanceiro, conjunto de romances por ele
reescritos que atestam, pela primeira vez, a existência escrita de
uma produção poética narrativa cujas origens remontam à Idade
Média e aos episódios cavaleirescos que o imaginário popular
desses tempos foi conservando e transmitindo oralmente.
Entretanto, é ainda a Herculano que cabe, na década de 1840, a
implantação do romance histórico em Portugal, cujo recorte
medievalizante acompanha aliás os interesses historiográficos da
restante produção herculaniana. Nisto foi acompanhado por uma
série de nomes, entre os quais se destaca o seu companheiro
geracional Garrett (O Arco de Sant’Ana), mas também os
epígonos, de geral menor felicidade, mas ainda assim com obras a
considerar, como Rebelo da Silva, Pinheiro Chagas, Oliveira
Marreca (que em O Conde Soberano de Castela, 1843, não anda
muito longe, em termos de recriação do contexto histórico, do
Saramago de História do Cerco de Lisboa), Arnaldo Gama e
Coelho Lousada. O drama histórico, de fundo medieval, é também
muito cultivado na mesma época, devendo referir-se O Alfageme
de Santarém e, pelo seu valor simbólico, Um Auto de Gil Vicente,
de Almeida Garrett, mas ainda produção afim, da autoria de nomes
como Mendes Leal ou José Freire de Serpa Pimentel. Veja-se a
este respeito, e com ênfase colocada na forma como o drama
finissecular vai aproveitar e desenvolver o enquadramento
histórico, a obra de Elsa Rita dos Santos, intitulada Teatro. História.
Contexto — Identidade Nacional e Tempo de Mediação no Drama
Histórico Português (1898 a 1924)146: é efetivamente interessante
perceber como radicam no drama histórico romântico alguns dos
elementos decisivos que vão servir, na passagem do século  XIX,
para a reflexão em torno de crises contemporâneas,
nomeadamente a questão imperial tal como colocada pela crise do
Ultimatum.
Ao nível da produção lírica, e na sequência do poema de Garrett
atrás referido, encontramos o gosto pelas baladas
medievalizantes, de que os títulos de Castilho constituem
exemplos paradigmáticos (A Noite do Castelo, Os Ciúmes do
Bardo), com inúmeros imitadores, pelas xácaras de memória oral
(Luís Augusto Palmeirim) e, no geral, pela recuperação de um
imaginário medieval que encontra nesse período o lugar ideal para
a reiteração de uma série de imagens, temas e vocabulário que, a
partir de meados do século, faz já parte de uma dicção
reconhecível pela repetição. Periódicos da época, como
O Trovador, O Bardo ou A Grinalda atestam esta proliferação.
Deverá neste quadro, entretanto, considerar-se como categoria à
parte o trabalho de Garrett, já atrás referido, em torno do
Romanceiro, trabalho verdadeiramente pioneiro e inovador no
contexto, embora com limitações, aliás naturais, na reconstituição
das versões. A memória desse trabalho prolonga-se na própria
produção lírica garrettiana e espelhar-se-á, mais tarde, na dicção
poética neogarrettista, em particular António Nobre ou, já no
século  XX, Camilo Pessanha e mesmo Fernando Pessoa, em
particular o ortónimo. Ainda na segunda metade do século  XIX,
refira-se o nome de Soares de Passos, em que a memória
medieval é no geral bastante mais conseguida do que nos seus
companheiros de geração, e onde surge já a antevisão de um
clima simbólico que, alguns anos depois, Antero de Quental virá a
reutilizar.
Na geração realista, e para lá do trabalho de reflexão
historiográfica (mas também simbólica) protagonizado por Oliveira
Martins, será de considerar o romance de Eça de Queirós A Ilustre
Casa de Ramires, em que de qualquer modo a componente
paródica introduz já um importante elemento de alteração
contextual. O mesmo Eça deve ainda ser considerado pelo seu
trabalho em Últimas Páginas e em contos como «A Aia», em que
avulta a forma densa e sistematizada pela qual o recurso à Idade
Média como cenário histórico é utilizado, com a mestria
queirosiana, para ilustrar um conjunto de valores morais e éticos
que os tempos presentes parecem já não conter.
Na passagem do século  XIX para o século  XX, o imaginário de
recorte medievalizante concentra-se sobretudo na produção
poética, onde conhece exemplos notáveis na poesia simbolista e
neogarrettista, com particular destaque para o já referido Nobre, ao
lado de Eugénio de Castro e Afonso Lopes Vieira — quer pelo
exotismo de tendência aristocratizante de que pode revestir-se
quer pelas características popularizantes e tradicionais (não
incompatíveis com as aristocráticas…) que permite manifestar. É
nesta linha que, por exemplo, poderemos considerar alguma da
poesia de Fernando Pessoa, sobretudo ortónimo, e em particular
na Mensagem mas também em vários outros poemas em que o
imaginário de recordação medieval assume uma importância
simbólica que não deve ser desdenhada, como na grande obra de
Camilo Pessanha.
Até por volta dos anos 80 do século  XX, o medievismo na
Literatura Portuguesa era criticamente considerado, senão morto,
pelo menos em extinção. Na realidade, e se olhado com atenção,
ele reaparece em obras maiores, como A Torre da Barbela (1964),
de Ruben A., ou O Físico Prodigioso (1966), de Jorge de Sena,
servindo claramente como «rede» em função da qual o passado, o
presente e o futuro de Portugal são reequacionados e reavaliados.
Mas o certo é que a opinião generalizada ia no sentido de
considerar que o romance histórico de fundo medieval parecia não
corresponder já às preocupações dominantes das várias gerações
e movimentos literários que ocupavam a cena da vida literária
portuguesa. O trabalho a este respeito decisivo, até pela revisão e
reavaliação que permitiu da realidade literária, é o de Fátima
Marinho, que publicou, entre outras coisas, dois volumes de
enorme amplitude e argúcia sobre a questão do romance histórico
em Portugal147. Nele fica sobejamente demonstrada a forma como
a inspiração histórica permeia toda a literatura portuguesa do
século  XX, devendo no que à Idade Média diz respeito serem
referidos, para além dos atrás mencionados, pelo menos nomes
como Agustina Bessa-Luís (Adivinhas de Pedro e Inês, 1983),
António Cândido Franco (Memória de Inês de Castro, 1990), Mário
de Carvalho (Um Deus passeando pela Brisa da Tarde, 1994, ou A
Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, 1983, em que
encontramos procedimento semelhante ao atrás descrito para o
romance de Saramago) ou até mesmo Herberto Helder, com o
texto «Teorema», inserto no seu Os Passos em Volta (1963).
Além desta (correta) alteração de perceção, as transformações
do cânone europeu e ocidental mais uma vez tiveram impacto
entre nós: o chamado «romance pós-moderno» (em formulação
que continua a ser polémica) recolocou o problema da História no
centro das preocupações literárias e deu origem a uma renovação
do género: os problemas de verosimilhança histórica e de um certo
(mas mais mitigado do que por vezes se afirmou) refúgio no
passado, que caracterizavam o romance histórico tradicional,
deixaram de ser os fios norteadores da narração, e a relação com
o passado assumiu, como atrás referimos, formas mais
problemáticas e complexas, que estão na origem do súbito
sucesso que a narrativa histórica tornou a conhecer nestes finais
do século XX. Também em Portugal tal aconteceu: José Saramago,
Mário de Carvalho, Fernando Campos, Luísa Costa Gomes, João
de Aguiar e António Cândido Franco são alguns dos nomes a
referir entre aqueles que, nos últimos vinte anos, retomaram com
sucesso (e procedimentos bastante diversificados) a narrativa
histórica de recorte medievalizante.
Resta fazer uma pergunta, para encerrar este capítulo. É  uma
pergunta difícil, com resposta(s) também ela(s) complexa(s). Qual
o conjunto de razões pelas quais a Idade Média surge, em tantas
obras, como lugar geométrico de interrogação do passado
nacional? As respostas parecem-nos ser múltiplas e, aliás, não
mutuamente exclusivas. Apontemos algumas. Por um lado, é na
Idade Média que se encontram as raízes de uma consciência
nacional portuguesa permanentemente interrogada, no momento
da sua própria construção. Por outro lado, a Idade Média propõe o
reconhecimento de um período histórico em que Portugal se
encontrava, de alguma forma, contido nas suas fronteiras
geográficas (embora a Reconquista lhe fosse gesto fundador) e,
por isso, de alguma forma oferece uma analogia para os tempos
que se seguem ao grande interregno da Expansão e do império. É
por exemplo esta a interpretação que o municipalismo de
Herculano e a tese sobre a decadência nacional, subscrita por
Antero de Quental e por Oliveira Martins, implicam. Ora, estas
teses transitam para o século  XX e tornam-se nele centrais, até se
moldarem aos formatos a que os novos tempos da História
permitem chegar, no pós-25 de Abril. De algum modo, talvez se
tornasse possível identificar, nos tempos medievais, uma espécie
de utópico (e inexistente, claro) «tempo puro», anterior ao «erro»
da Expansão, que permitisse encontrar a verdadeira matriz de uma
nação que teve de sair de si para se encontrar consigo mesma. É
claro que tal tempo utópico nunca existiu. Mas é o próprio facto de
que é nele que mergulham as raízes da independência nacional
que o torna especialmente permeável a uma interpretação que, à
perda de que falava Paul Ricoeur, associa o encontro de
características paradigmáticas para a autoperceção que a
Literatura oferece da História de Portugal. A este respeito, o
episódio de Inês de Castro, a que temos vindo a fazer referências
várias ao longo do presente volume, oferece uma espécie de ponto
de fuga paradigmático, ao nele fazer concentrar um conjunto de
elementos a que não é alheio o gesto fundador de Camões, ao
tratá-lo em Os Lusíadas.

4.4. ANACRONIA, CIRCULAÇÃO LITERÁRIA E


INTEMPESTIVIDADE: GONÇALO M. TAVARES, UMA
MENINA ESTÁ PERDIDA NO SEU SÉCULO À PROCURA
DO PAI

O conceito de intempestividade, mais especificamente daquela


que se manifesta quando aquilo que acontece parece surgir
«atrasado», interessa-me aqui como forma e manifestação
autorreflexiva daquilo que pode ser a circulação literária. Tomo
este conceito, e trabalharei com ele, de forma ampla, partindo do
princípio de que ele diz respeito não apenas à circulação material
das obras, uma vez publicadas, mas também à circulação do
material temático e formal que as compõe. Interessa-me, pois,
olhar para a obra de Gonçalo M. Tavares, Uma Menina Está
Perdida no Seu Século à Procura do Pai, enquanto modelo da
forma como a reutilização de materiais temáticos e formais, e em
particular a cristalização de descoincidências entre História e
Literatura, podem ser objetos da própria análise romanesca. A
hipótese é que dentro dos modos de circulação literária existem
alguns que sublinham tais descoincidências, dando por isso a ver
as falhas temporais e históricas de que a literatura também se faz.
Na verdade, o próprio afastamento entre acontecimento histórico e
fenómeno literário, entre História e Literatura, bem como a forma
como ele é utilizado enquanto procedimento literário podem aqui
surgir como paradigma do que voluntariamente se apresenta como
se fosse intempestivo, e como se essa intempestividade ilustrasse
um modo específico da circulação literária e, mais amplamente, da
circulação cultural. É uma proposta especificamente literária e uma
instância de autorreflexividade que aqui estão em jogo, portanto.
O conceito de intempestividade, na sua modalidade «atrasada»
(porque ela pode também acontecer como «antecipação»), não
representa na realidade um verdadeiro e inocente atraso. Este
último implica que as coisas deviam chegar em determinado
momento e se atrasaram, conseguindo chegar apenas mais tarde.
A ênfase é aqui colocada no momento de chegada. O conceito de
intempestividade, entretanto, implica que as coisas que acontecem
vêm «fora de tempo», circularam de modo historicamente
complexo e chegaram num momento que manifesta uma
descoincidência histórica entre o seu acontecer e o seu chegar. A
ênfase é aqui colocada não apenas no momento de chegada, mas
também, e talvez principalmente, no processo que as fez chegar
tão tarde (ou tão cedo).
Este processo levanta desafios hermenêuticos, visto ser
necessário dar conta das descoincidências mencionadas, o que
significa manter dois focos históricos permanentemente em vista e
em contacto.
Em alguns casos, não se trata apenas de ter perdido o momento
certo para chegar (embora também possa ser isso, como vimos),
mas sim de manifestar a falta de sincronia entre o tempo histórico
e o tempo das ações e acontecimentos humanos, que podem ser
intempestivos pela simples razão de que uma das formas que a
historicidade assume é o seu carácter anacrónico, aquele que de
repente leva a refletir sobre a falta de propriedade de uma
determinada ação num determinado momento.
Esta intempestividade também atinge a literatura e a circulação
literária, por exemplo cada vez que «ir para trás» se transforma em
um modo de «ir para a frente». Um dos exemplos (de modo algum
o único) sobre que devemos refletir com seriedade é a forma como
a ideia de retaguarda permeia a noção de vanguarda e com ela se
combina, na conceção de vários aspetos dos modernismos —
desde a atração do primitivismo até à do classicismo, em tempos
que não lhes pareceriam ser particularmente fecundos. Em outro
lugar debrucei-me a este respeito sobre o caso de Ricardo Reis, o
anacrónico heterónimo de Fernando Pessoa148. Mas
evidentemente poderíamos pensar também no caso de Oswald de
Andrade, e no seu conceito de antropofagia cultural (um literal
caso de andar para trás para a frente), e teríamos outro exemplo
de uma vanguarda que se cria com e a partir das retaguardas
aparentemente mais «atrasadas» ou intempestivas. No caso
francês, autores como Claudel e a sua reinvenção do dístico
bíblico, ou como o anacrónico Péguy, sustentam o mesmo tipo de
aproximação complexa ao tempo histórico: como Walter Benjamin
dizia, «escovar a história a contra-pêlo»149. Ora, esta «escovagem»
é ainda uma forma de circulação literária, e é isso que pretendo
desenvolver neste capítulo.
Na realidade, podemos dizer, deste ponto de vista, que a
circulação literária é um campo em que o fenómeno da
intempestividade mais se torna evidente e, por isso, ganha maior
peso. De algum modo parece tornar-se claro que, pelo menos em
termos de tradição do fenómeno literário, é a intempestividade que
caracteriza a circulação, não a pretensa simultaneidade entre duas
ou mais ocorrências de um mesmo fenómeno ou de um mesmo
conjunto de fenómenos similares.
Tudo isto vem a propósito da obra do grande romancista
português que é Gonçalo M. Tavares. Pretenderei analisar a forma
como os passados que traz à tona apontam, em termos de
materialidade temática e até formal, para uma significativa
intempestividade que se trata não apenas de verbalizar mas,
ainda, de tornar evidente. Não se trata tão-só de que os materiais
circulam, mas de que estes materiais circulam com peculiar atraso,
dando assim a ver o carácter anacrónico que possuem. Tal
anacronismo é uma forma de historicidade e, muito em especial,
uma forma de acelerar o passado em direção ao presente,
fazendo-o circular de modo muitas vezes inesperado e, até,
surpreendente. A minha proposta relativamente a Gonçalo M.
Tavares é que é precisamente isto que acontece.
Comecemos por um dos possíveis princípios, apresentando
como hipótese que a obra de Tavares provém de uma
preocupação específica com uma certa noção de cosmopolitismo
profundamente implicada numa reflexão sobre os direitos humanos
e, até, sobre a própria noção de humanidade. Trata-se, no entanto,
de olhar de forma revisionista para o conceito de cosmopolitismo a
partir do presente, no «nosso século» (século  XXI), expressão que
no caso vertente se torna, como veremos, muito eloquente. Tal
significa que temos de fazer retroagir sobre o conceito de
cosmopolitismo, de raízes iluministas, tudo aquilo que, a partir de
hoje, representa a forma de «escovar a história a contra-pêlo».
Concretizando: não é possível recuperar esse conceito sem que os
sedimentos do que entretanto passou nele se concentrem e
tenhamos a preocupação de mostrar não apenas as origens dessa
noção mas também o modo como a história nela se instalou e
procedeu. Trata-se, assim, de tornar manifesta a forma como a
circulação literária do conceito de cosmopolitismo chega até ao
presente e pode estar na origem de representações literárias
intempestivas como é o caso de vários romances de Gonçalo M.
Tavares.
Implicará tal intempestividade um «atraso» historicamente
incompatível com o presente, e um aprisionamento da reflexão
literária num tempo que já não é o seu?
Para responder a esta questão convirá introduzir um outro
conjunto de questões. É que a evolução histórica e a circulação
literária fazem-se, não apenas de diferentes modos de articulação,
mas também de velocidades temporais diferenciadas. Claudio
Guillén150 tem a este respeito, e como vimos nas páginas iniciais,
reflexões de grande interesse, ao pensar a pertinência da
heterogeneidade das diferentes durações históricas, para a
perspetivação da literatura e dos fenómenos (também eles
históricos) que a constituem. Às longas, médias e curtas durações,
acrescenta ele, e gostaria eu de retomar, neste momento, as
durações intermitentes. Recordo que para Guillén estas dizem
respeito a fenómenos culturais, neste caso literários, que estão
imbuídos de uma duração que não se exprime por uma mais longa
ou mais curta massa temporal, mas pela sua capacidade de
ocorrência em diferentes contextos históricos, e por isso de
repetição diferenciada.
A sua capacidade de intermitência torna-se assim um facto
histórico que implica uma especial forma de historicidade:
interessa não apenas aquilo que um fenómeno é, mas também o
modo como se relaciona com outras suas ocorrências históricas, e
por isso os elos que com elas mantém. Já vimos, por outro lado,
que esses elos podem oscilar entre combinatórias diferenciadas,
em direção aos polos quer da continuidade quer da rutura. Tudo
isto significa que, no quadro dos objetos literários, o fenómeno
histórico tem de implicar também as relações entre objetos, e não
apenas cada um em si mesmo considerado. O potencial de
ressurgimento que estes géneros evidenciam, e que é também o
seu potencial de reinvenção, dá conta de uma peculiar forma de
duração histórica dos fenómenos literários: a sua intermitência, o
não-encapsulamento do passado no passado como parte do
carácter histórico da literatura e, na verdade, aquilo a que Walter
Benjamin veio a chamar a sobrevida da literatura (pensando-a
através da tradução), mas que podemos também alargar ao
conceito de reescrita, que naturalmente a tradução também é. A
revivescência da épica é desta intermitência e desta sobrevida um
exemplo modelar, que atrás analisámos, desde os seus anúncios
no início do século  XVI até às suas diferenciadas encenações nos
séculos posteriores, para se configurar maximamente em
O Lusíadas (1572) e nos acompanhar, até presente, quer na obra
de António Lobo Antunes (As Naus, 1988), quer em Uma Viagem à
Índia (2010), de Gonçalo M. Tavares, ou mesmo Mário Cláudio, Os
Naufrágios de Camões (2017).
Este exemplo pode também ajudar-nos a entender o que se
passa, no universo de Gonçalo M. Tavares, relativamente ao
conceito, atrás mencionado, de cosmopolitismo, observando-o a
partir dessa lente revisionista que o pensa como caso intempestivo
de circulação literária. Será pois esse o meu passo seguinte.
Para tanto, recupero algumas das linhas de força da questão
sobre que me vou debruçar com mais profundidade. Com efeito, a
pensadora alemã Aleida Assmann151 retomou recentemente, no
âmbito do seu prolongado interesse pelos estudos de memória
(que são uma forma de tempo histórico humanamente filtrado),
campo que constitui uma das discussões mais interessantes da
última década, uma reflexão em torno dos conceitos de
reconhecimento e de respeito como fazendo parte do processo a
que ela chama «civilizing societies». As origens iluministas de
ambos os conceitos (como aliás do de cosmopolitismo), na sua
aceção moderna, conduzem-na a repensar a forma como eles se
transformam na nossa sociedade global: de conceitos que,
teoricamente, conduziriam a uma neutralização das diferenças
culturais, passaram a ser «new transcultural candidates for our
post-ideological age» (p.  69). Concebe ainda, em visão que
partilho, «the anthropological concept of recognition as a vital
resource for individual and collective identity constructions» (p. 6).
A forma pela qual Assmann coloca o problema é já pois, em si
mesmo, caracterizador do movimento de circulação cultural e
literária: os conceitos que analisa têm raízes históricas
reconhecíveis, mas o modo como circulam transforma-os, por
vezes de modo irónico, como é o caso que ela levanta. Para já,
pois, a circulação literária pode deformar conceitos e questões,
levando-os a uma perda de operacionalidade, ou até mesmo a
uma sua degradação irónica. No entanto, também é verdade, do
ponto de vista de Assmann, que a entrada em jogo de diferentes
contextos e interferências pode, igualmente, levar a alterações
substanciais que conduzem a recuperações inesperadamente
consolidadas. Adianto já que me parece ser este o caso da obra de
Gonçalo M. Tavares.
Assim, a algumas das ambiguidades que o conceito de
reconhecimento («recognition»), individual e coletivo, implica,
responde Assmann com o conceito de respeito, que ela subdivide
em cinco diferentes tipos. Um deles é o respeito cultural, e é dele,
que pressupõe o reconhecimento das diferenças, individuais e
comunitárias, dos processos civilizacionais, que esta minha
reflexão parte.
Na realidade, é deste tipo de respeito, e de uma outra forma que
dele decorre, e de que falarei mais adiante, que deriva a empresa
de Gonçalo M. Tavares, desde Jerusalém a Uma Viagem à Índia,
de Aprendendo a Rezar na Era da Técnica até Uma Menina Está
Perdida no Seu Século à Procura do Pai, este último um romance
publicado no final de 2014, e que aqui constitui o foco da minha
análise. Tavares cria em todos estes romances uma efabulação
que, afinal, sinaliza sobretudo a opacidade da narrativa, das
personagens e do seu passado, do modo como todas elas derivam
de um conceito de História incapaz de esclarecer os outsiders,
precisamente, ou sequer de os tomar verdadeiramente em
consideração. Veremos que esta posição implica que a ação
decorre em espaços urbanos que já muito pouco têm que ver com
a cidade burguesa e do flâneur de que Baudelaire e Walter
Benjamin falaram. Pelo contrário, encontramos aquilo que
poderemos designar como um cidade alternativa — e alternativa
de vários pontos de vista. Esta cidade alternativa é labiríntica e
aparentemente sem sentido. Embora seja atravessada pela
deambulação dos protagonistas, tal atravessamento não a torna
menos opaca e, de certa forma, distante. Da cidade baudelairiana
recuperamos o percurso deambulatório e a ocorrência de
episódios inesperados e por assim dizer fulgurantes. Dela
recuperamos ainda um modo de conceber a sua população como
heterogénea e cosmopolita. E, no entanto, esta heterogeneidade e
este cosmopolitismo são, a todos os títulos, simultaneamente
herdeiros e diferentes dos seus parentes iluministas. No que estes
esclareciam, os outros obscurecem. No que estes ordenavam, os
outros desordenam. No que estes faziam ganhar sentido, os outros
ofuscam-no ao ponto de compreendermos que a base da
construção do sentido é, afinal, o não-sentido. A circulação literária
faz-se assim no sentido de uma degradação.
E, no entanto, tal degradação faz entrar no material literário do
romance português, através de um inesperado movimento de
circulação, um conjunto de tópicos e obsessões que hoje nos
pareceriam poder ser totalmente anacrónicas: afinal, quase um
século está a passar sobre as terríveis convulsões em que o
nazismo e seus avatares fizeram mergulhar a Europa e, de forma
abrangente, o mundo. Qual o sentido, pois, do surgimento
intempestivo de uma obra romanesca (e, em particular mas de
modo algum exclusivamente, do romance de que me ocupo) que
retoma, no campo literário português, o enorme material e a
pesada memória do Holocausto? Em especial se tivermos em
consideração que Portugal foi, durante a Segunda Guerra Mundial,
um país cuidadosamente neutral? E mais ainda se tivermos em
consideração que tal memória e tal circulação nunca, até agora,
tinham encontrado um eco estruturado e sistemático no caso da
literatura portuguesa, para além de representações tópicas e sem
repercussão específica? Qual a razão por que só no século  XXI
parece Portugal ter-se aberto de forma sistemática à
representação da memória do Holocausto, uma questão histórica
que parecia ser alheia e anacrónica relativamente ao nosso
presente? Precisamente, trata-se de um caso de circulação
literária intempestiva e «atrasada», em que o material literário
chega tarde. Mas, quando chega, vem estruturado e a sua
presença opaca é quase inultrapassável. Em Gonçalo M. Tavares,
diga-se desde já, é essa opacidade que melhor manifesta a forma
lenta pela qual a memória do Holocausto chegou finalmente à
literatura portuguesa — das experiências malignas que os médicos
de Hitler conduziam até ao percurso de refugiados sem nome, que
invadiram toda a Europa.
Comecemos também por compreender que toda a obra de
Gonçalo M. Tavares, mas em particular aquela sobre que me
debruço, manifesta uma forma de dar voz a uma reivindicação e ao
estabelecimento de um argumento: o respeito cultural, analisado
por Aleida Assmann, é uma das vias privilegiadas para «dar
atenção» àqueles que não são socialmente reconhecidos e, por
isso, respeitados. E é o «reconhecimento das diferenças», para
utilizar uma apta expressão de Assmann, que é assim mobilizado
para dar conta de uma cidade alternativa, uma polis onde os
barbaroi, os estrangeiros, os não-conformes, talvez apesar de tudo
possam vir a encontrar o seu lugar.
No caso deste romance, Uma Menina Está Perdida no Seu
Século à Procura do Pai, acabamos por não encontrar o pai que a
protagonista Hanna, a menina de catorze anos com trissomia  21,
procura. Não sabemos sequer se algum dia ele virá a ser
encontrado, e se com ele poderá o passado ser reescrito. Mas é
nestas cidades opacas que as personagens se movimentam e
deambulam, a maioria das vezes sem que se saiba de onde vêm,
porque se deslocam, como o fazem, e com que sentido. Por isso
todas as personagens por um lado participam desta opacidade e
por outro todas, sem exceção, transportam o segredo da sua
história e, em consequência, o segredo do seu sentido — segredos
que o leitor não conseguirá desvendar.
A cidade alternativa do mundo nosso contemporâneo já não é
mais aquela em que as estratificações eram em grande medida
invisíveis — é aquela de onde parecem ter desaparecido quaisquer
sinais de estabilidade, sem que todavia isso tenha introduzido uma
outra ordem social e sobretudo civil.
Esta noção de alternativa coincide, assim, com a noção de
intempestividade. Esta é de alguma forma a condição daquela. É
porque acontecimentos chegam fora do tempo e são, por esse
motivo, pouco compreensíveis, ou transportam consigo uma certa
medida de incompreensibilidade histórica, que nos encontramos
perante mundos alternativos compostos por um movimento de
circulação literária irregular e por isso não antecipável. A Segunda
Guerra Mundial e as cidades alternativas que vamos atravessando,
com Hanna e o narrador, em busca de um pai cuja existência é
apenas pressuposta, são elementos anacrónicos relativamente a
este nosso presente aparentemente pós-ideológico. Mas é também
isso que o movimento intempestivo faz surgir: a incongruência dos
tempos históricos, por um lado; e a incongruência entre eles e
manifestações literárias que, dir-se-ia, dele se encontram já muito
distantes.
Não é pois de surpreender que o esquema global de várias
narrativas de Tavares, entre as quais o romance de que me ocupo,
decorram num tempo e numa ou em várias cidades em que
praticamente o único ponto de orientação é sabermos que vêm
depois do nazismo — um tempo e uma cidade de onde a
consciência deste não pode, pois, passar a inexistir.
Esta consciência de vir depois é uma das formas mais cristalinas
que pode permitir a noção de intempestividade. De facto, cada vez
que o passado assombra o presente de tal modo que nesse
presente mesmo se transforma, como é o caso, aquilo que
encontramos é uma forma de ler (e por isso falava, atrás, de
desafio hermenêutico) que tem necessariamente de fazer confluir
passado e presente. Não podemos ler apenas a partir de «hoje»
(embora sempre o façamos): temos também de reconhecer que
estamos perante um outro modo de ler que, através da consciência
do carácter intempestivo da matéria literária, a identifica como
tendo chegado fora do seu tempo. Ler no ponto em que «passado»
e «presente» se encontram, ler compreendendo que só a
circulação literária pode permitir que convirjam e, entretanto, se
mantenham diferenciados, torna-se deste modo um desafio
hermenêutico que é, simultaneamente, um desafio histórico.
Ora, este mesmo reconhecimento histórico afeta todas as
personagens, de uma forma ou de outra, e encontra a sua
figuração mais densa e paradigmática na figura da menina com
síndrome de Down, que procura um pai que até talvez nunca tenha
existido como tal no seu passado. A verdade, porém, é que
encontra esse mesmo pai configurado simbolicamente na figura do
narrador e dos segredos que também a ele impelem para uma
inexplicada fuga. Assim, ao abandono e ao isolamento de Hanna
respondem os de Marius: «a sua vida é outra, nada tem a ver com
aquilo, ele tem de tratar do seu assunto — esconder-se o mais
possível, estar atento às notícias, ir ouvindo a rádio, perceber se
precisa de mudar de cidade […]» (p. 71)152. Medo inexplicável?
Talvez. Mas também talvez uma nova ocorrência do medo e do
terror relativamente ao que em qualquer momento histórico parece
poder fazer ressurgir o nazismo e as sociedades totalitárias
identificadas no passado. Nunca saberemos de que tem medo
Marius. Por que razão poderia ser forçado a fugir, a vigiar a sua
segurança, a mudar de cidade. Mas precisamos de saber? Na
verdade, ao reconhecermos o carácter intempestivo deste medo,
que nos chega do passado de há quase cem anos, estamos ao
mesmo tempo a reconhecer o seu carácter sempre presente.
E não são apenas as ocorrências históricas que podem repetir-se
(mesmo se sob modalidades diferentes, como notou Marx). As
ocorrências literárias podem, trazendo a retaguarda para a
vanguarda do presente, também elas «escovar a história a contra-
pêlo». Ao  fazê-lo, estão ao mesmo tempo a manifestar a forma
complexa e heterogénea como a circulação literária se dá a ver,
como queriam Kubler e Guillén, através de durações intermitentes,
não estáveis e, no entanto, não menos ponderosas.
O romance em causa, como aliás vários outros do mesmo
escritor, é assim povoado por figuras que, em sentido literal ou
figurado, andam todas à procura do pai, procura essa declinada ao
longo do romance. Não se trata apenas de Hanna: também de
Marius, em alusões e metáforas; de Agam Josh, o homem de olho
vermelho, cujo pai fora morto na guerra; de Terezin e a sua
frequentação do grande arquivo abandonado, em que vinha
investigar «a (sua) família, as (suas) origens» (p. 145); ou de
Vitrius e os seus seis dossiers, herança do pai, do avô e do bisavô,
dossiers carregados, preenchidos, completados por números e
números. Números, dossiers, arquivos: todas estas figurações o
são de registos materiais daquilo que pode, precisamente, ser
posto a circular, permitindo a memória, mesmo se intempestiva. A
ansiedade manifestada em relação ao que não se consegue
decifrar, aos livros que não se conseguem ler, às informações que
não é possível recuperar atravessa assim este romance de forma
também ela obsessiva: afinal, o que chega fora de tempo traz
consigo aquilo que é mais importante — o ato mesmo de chegar.
Tudo quanto se perde (e neste romance também muito se perde),
por outro lado, não chegará nunca. Devemos centrar-nos um
pouco sobre os efeitos que o desaparecimento, total ou parcial, de
material literário tem para a sua circulação e, por isso, para a
criação e consolidação do património que é também histórico.
Na verdade, e de forma mais abrangente, é possível afirmar que
o presente romance tematiza, através deste conjunto de questões,
um outro aspeto central no pensamento sobre a circulação literária:
a questão da perda, provisória (como a obra de Lucrécio, que na
realidade esteve desaparecida até inícios do século  XV) ou
definitiva (o segundo livro, sobre a comédia, da Poética de
Aristóteles), de textos patrimoniais da literatura.
Esta perda tem efeitos decisivos para o que aqui importa, e que
podemos enunciar da seguinte forma: a circulação literária é feita
não apenas daquilo que manifestamente circula mas, também,
daquilo que circula deficientemente ou, mesmo, é impedido (por
diversos motivos) de circular. Acresce que relativamente a estes
últimos casos, e como é evidente, a nossa memória cultural é
também ela muito fragmentária: podemos saber que houve livros
que se perderam e ressurgiram, parcial ou totalmente, em
determinado momento (Lucrécio); podemos ter uma memória
enunciativa do que se sabe ter existido mas aparentemente
desapareceu (o livro sobre a comédia de Aristóteles, referido pelo
próprio autor na sua Retórica, e de que se sabe seguramente ter
existido uma tradução siríaca do século IX); mas existe uma massa
indeterminada e muito, muito significativa de obras cuja existência
e, por isso, potencial circulação nos é totalmente desconhecida, ou
nos é conhecida sem que a possamos decifrar (caso da literatura
do Egipto Antigo, cujos hieróglifos foram impermeáveis à
decifração até ao início do século XIX).
Isto permite-nos enunciar um segundo ponto decisivo: a
circulação literária faz-se também do que apenas indicialmente
podemos reconstruir, como as obras mencionadas, e até mesmo
de outras que tão-só podemos pressupor. Ter este aspeto em
consideração permite-nos ter uma visão complexa do que a
circulação literária pode ser. Na verdade, se não nos é possível
atestar que tipo de circulação tiveram obras cuja existência
totalmente desconhecemos, já sobre outras, como as atrás
mencionadas, de Aristóteles e Lucrécio, podemos ter informações
interessantes, mesmo se esboroadas e descontínuas, que nos
permitem reconstruir pelo menos alguns episódios da sua
circulação. É esse o caso, por exemplo, da obra de Stephen
Greenblatt sobre Lucrécio, intitulada The Swerve 153, que traça o
complexo caminho da obra De Rerum Natura desde a sua redação
no século  I a.C. e posterior desaparecimento, vários séculos
depois, até à sua redescoberta num mosteiro da Europa Central
pelo humanista Poggio Bracciolini, no início do século  XV. Este
exemplo é particularmente fecundo, já que Greenblatt faz datar a
história do materialismo moderno, a partir do Renascimento, da
leitura, tradução e circulação que a obra de Lucrécio pôde ter, uma
vez localizada.
Quantas obras ou textos tiveram um destino diferente, circularam
em algum momento e depois desapareceram; de quantas outras
não restou nem a memória do seu título ou autor — é algo que
claramente complexifica a natureza da circulação literária. Ora,
este é um aspeto para que o romance de Gonçalo M. Tavares
explicitamente aponta: trata-se também de refletir sobre a
precariedade textual (que o é da sua dimensão material) e sobre a
precariedade da sua circulação. Não é pois por acaso que tantas
personagens deste romance se encontram ansiosamente
empenhadas na decifração e preservação de textos e documentos
e, através deles, da memória que ativam. Trata-se de uma questão
que, de novo, importa para o material temático de que o romance é
feito, bem como para os problemas teóricos de preservação e
esquecimento em que qualquer tipo de circulação cultural se
inscreve e de que, em grande medida, depende.
É também este, afinal, um dos sentidos centrais implicados pelo
topos literário da procura do pai, um dos melhores exemplos de
material literário «em circulação» desde a Antiguidade. A procura
do pai é da mesma natureza que a preservação textual e a
capacidade de fazer perdurar algum tipo de memória cultural. Em
ambos os casos, neste romance, lidamos preferencialmente com o
lado de perda, mais do que com o lado de recuperação. Na
verdade, nem o pai será alguma vez encontrado nem os dossiers,
números, arquivos, por mais preservados que sejam, poderão
conter tudo aquilo que os seus oficiantes neles esperaram vir a
conservar, para memória futura. Há, pois, uma menina que procura
o pai, e que acabará por apenas poder vir a encontrar naquela
simbiose, reconhecida por Assmann, entre reconhecimento e
respeito que lhe dão, afinal, direito de cidade dentro da História
que é a sua e nossa contemporânea.
O que significa então vir depois, viver depois do que o nazismo
foi, do que o extermínio representa? Sabemos que esta tem sido
pergunta várias vezes reiterada, a que várias respostas (aliás até
contraditórias) no fundo nunca podem responder em definitivo.
Mas é uma das perguntas centrais, não apenas deste romance de
Tavares, mas ainda de um conjunto de textos ficcionais da sua
obra mais vasta. E este elemento levanta uma outra interrogação:
qual o significado histórico, quase um século mais tarde, de
construir em Portugal a reflexão literária mais consolidada e
complexa sobre o nazismo e o Holocausto? Talvez a resposta a
estas questões possa articular-se, precisamente, com os conceitos
assmannianos de reconhecimento e respeito. Detenhamo-nos
sobre esta questão.
«Cultural respect is claimed by those who have recovered their
collective culture, history, and identity after long periods of
misrecognition and disrespect», diz Assmann (p. 86). Só este
respeito cultural pode depois levar, em seu entender, à forma
antropologicamente mais densa de respeito, que designa como
«respeito civil». Aqui, já não se trata apenas da afirmação e da
aceitação das diferenças culturais, mas do reconhecimento de que
elas não devem desembocar, sob perigo da sua efetiva
neutralização, no ghetto da incomunicabilidade, que apenas
reafirma o fechamento dos diferentes grupos que a si mesmo se
reconhecem como cultural e civilmente alheios. Pelo contrário,
lembra Assmann, o respeito civil repousa na «redescoberta de
similaridades» (p. 87) que não anulam as diferenças reconhecidas,
antes lhes dando uma forma mais complexa cuja resposta nos leva
a um conceito moderno de «civilidade», que integra os
fundamentos iluministas mas a eles não se resume. Assim,
enquanto «cultura» se refere, no ensaio de Assmann, sobretudo ao
reconhecimento das diferenças de grupo (étnicas, raciais,
religiosas, de classe, etc.), o conceito de «civilidade» surge como
aquele que, mesmo se precariamente, permite e potencia o
reconhecimento de similaridades civis que não anulam as
diferenças mas tornam possível o diálogo entre elas.
Ora, o que se passa no romance de Tavares pode ser aptamente
descrito através desta passagem de cultura a civilidade: nenhuma
personagem, das várias que se cruzam no romance, sempre de
modo imprevisto e inesperado, corresponde ao modelo tradicional
de personagem. Cada uma declina uma diferença que, na
realidade, apenas no caso de Hanna encontra uma explicação,
patente na trissomia 21 de que sofre. Os  desajustes de todas as
personagens, relativamente a um putativo modelo de personagem,
ou mesmo entre si, no universo do romance, não são
neutralizáveis, e é sobre eles que recai, aliás, a existência de algo
que funcione como uma comunidade. Esta descrição permite
sublinhar um aspeto decisivo: se todas as personagens são,
efetivamente, diferentes entre si, na verdade são essas diferenças
que constituem o elo específico que gregariamente as torna num
exemplo de comunidade. As similaridades civis que declinam são,
deste modo, um dos aspetos essenciais da sua caracterização —
mormente num romance onde se trata de equacionar o conjunto de
extirpações dessa civilidade, prosseguidas e concebidas pela
teoria e pela prática do nazismo.
Não é, pois, de estranhar que, neste romance, nos encontremos
diante de uma representação da cidade enquanto espaço
simultaneamente humano, físico e simbólico: porque essa cidade é
o lugar onde se cruzam os diferentes mas também, e apesar de
tudo, o lugar onde os diferentes podem falar entre si.
Do ponto de vista humano, as personagens que na cidade se
movem e se cruzam (de uma forma que apenas o espaço urbano
permite) pertencem, todas elas, a um lugar construído sobre o seu
des-conhecimento (no sentido de misrecognition). Anonimatos,
segredos aludidos e nunca explicados, silêncios que impedem a
plena compreensão do acontecido: as personagens pertencem à
cidade alternativa do contemporâneo, em que se cruzam o
diferente e o heterogéneo e parece existir, pelo menos
aparentemente, dificuldade em comunicar, seja qual for a razão
para tal.
A cidade física é também ela alternativa: ela é constituída por
espaços anónimos, como as estações de comboio (um dos não-
lugares, na já clássica designação de Marc Augé); por becos e
ruelas, mesmo por ruas principais onde permanece o anonimato;
por hotéis sem nome e em que cada quarto, em vez de um
algarismo, tem um nome de um campo de concentração nazi,
Auschwitz (onde Marius e Hanna dormem), Treblinka, Dachau,
Mauthausen-Gusen; hotéis-labirinto, em que as personagens se
perdem, sem luz e sem sentido.
Finalmente, a cidade simbólica é ainda alternativa: aquela de
onde não pode ser erradicado o peso da História e, em particular, o
modo como o século  XX sacudiu e destruiu, qual terramoto, como
pretende a filósofa Susan Neiman154, a aparentemente estável
cidade burguesa que o século XIX tinha erigido.
Se compreendermos, com Margaret Somers155, que «social life is
itself storied and […] narrative is an ontological condition of social
life» (p. 50), então estaremos também aptos a compreender a
procura do pai e das origens que a todos, de uma forma ou de
outra, conduz: trata-se de uma base ontológica, em que o carácter
do narrado sinaliza a condição simultaneamente individual e social.
Isto ajuda também a compreender o carácter ao mesmo tempo
concreto e alegórico das fábulas que constituem a narrativa de
Gonçalo M. Tavares, de que o presente romance é um excelente
exemplo. Falo da profunda opacidade que se abate sobre
personagens, espaços e histórias do romance. Tal opacidade é
figurada alegoricamente por tudo o que de inexplicado (e
inexplicável) constitui o romance. O mundo (a cidade) em que as
personagens se movem é difícil de reconhecer, porque é um
mundo (uma cidade) alternativo(a), aquele submundo que
contemporaneamente de alguma forma se espera que não queira
vir a ser reconhecido.
O que nos irmana, enquanto leitores, relativamente às
personagens é a certeza de que esta alegoria, ao contrário da
alegoria medieval, não nos transporta ao mundo do que já foi
explicado antes, e nos torna a ser explicado outra vez. Pelo
contrário, trata-se de uma alegoria que ontologicamente sinaliza o
fundo opaco do que contemporaneamente nem podemos nem
sabemos explicar. Uma espécie de alegoria do mal, no sentido em
que Neiman utiliza, filosoficamente, o conceito de mal: aquele que
determina, por um lado, o confronto impossível do homem com os
limites da sua condição humana; e, por outro, a interrogação sobre
o lugar desse mal num mundo de onde Deus se retirou. Em
consequência, e recordando Voltaire, nem tudo está bem, nem
tudo é o melhor dos mundos possíveis, como queriam Leibniz e
Alexander Pope. A memória do Holocausto, os judeus existentes
no submundo deste romance representam a permanência do mal
na cidade contemporânea, que é sempre a cidade depois do que o
nazismo inventou. A alegoria do mal sustenta, assim, esta opaca
narrativa: o que faz a fotografia de Goering, uma enorme fotografia
de 10 m x 6 m, fixada por cima de um prédio? «Quem o pusera ali?
Como é que haviam dado autorização?» (p. 122). Ou a figura que
lhe responde, Moebius, com as costas integralmente tatuadas com
uma única palavra, «judeu», em uma imensidão de línguas: «um
dicionário em todas as línguas do mundo, mas dicionário de um
único vocábulo […], dicionário que era ainda, simultaneamente, um
mapa anatómico e geográfico» (p. 115).
Talvez seja essa, afinal, a razão da reescrita e da obsessiva
presença deste material literário no século  XXI, na literatura
portuguesa, através da obra de Tavares. Tal como o carácter
fragmentário e precário do material literário circulante é, como
vimos, central para a sua conceção, também a opacidade
conseguida através de todos os momentos e de todas as
figurações da inexplicabilidade, no romance, devem a meu ver
convergir para a noção de circulação literária, sublinhando que ela
é também feita daquilo que é impossível, em alguns casos,
determinar. De onde vêm estas personagens e quais são,
efetivamente, estas cidades a partir das quais o romance se
constrói são interrogações cuja provável ausência de resposta
ilumina, uma vez mais, a forma como o material literário e cultural
pode circular de forma alusiva. Não se trata, pois, apenas de
detetar movimentos sociológicos positivos e historicamente
demarcados — embora se trate, também, em vários casos, disto
mesmo. Podemos entretanto falar de uma outra forma de
circulação literária, que procede, como no presente romance, por
alusões, movimentos hermeneuticamente ambíguos, opacidades
ou múltiplas hipóteses. É esse o caso do material literário relativo
ao nazismo e ao Holocausto no que à obra romanesca de Gonçalo
M. Tavares respeita.
É também por esta razão que não estamos aqui no terreno
positivista das influências, nem sequer no da receção em sentido
estrito. Ambas estas questões dizem respeito a uma instância
positivamente determinada ou determinável. Mas a circulação
literária que aqui pretendi iluminar, aquela que se agencia em
especial pela forma como o material literário, temático e formal, vai
circulando, não é, em muitos casos, constituída por episódios com
um sentido em si próprio. O caso da circulação literária do tema e
dos motivos relacionados com o nazismo e com os campos de
extermínio consolida a noção de que o carácter inexplicável do mal
(e por isso, em grande medida, da narrativa que o pretende contar)
pode transferir-se, com saltos temporais visíveis (as durações
intermitentes de Guillén), de uma a outra literatura, de um a outro
século, sem que haja uma explicação objetiva para que assim
aconteça. Talvez a ausência de explicação remeta, precisamente,
para o carácter inexplicável deste mal moderno, de que o nazismo
constituiu um terrível paradigma.
Uma outra questão, no romance, articula-se com a localização
da história e por que lugares então circulam as personagens e nos
fazem, também, simbolicamente circular. Onde exatamente se
passa, então, a história? — cabe perguntar. Os nomes são
germânicos, em quase todos os casos. Hanna identifica a cidade
do pai como sendo «Blim» — será Berlim? E para Berlim se segue,
sem resposta certa, pelo menos durante algum tempo. Hanna e
Marius vão de comboio. Passam por uma ruela escura, onde um
homem cola cartazes, surpreendentes cartazes, numa parede. O
seu nome é Fried Stamm. O que é que, na verdade, os cinco
irmãos da família Stamm pretendem, ao colar cartazes por todas
as cidades da Europa? «Tentamos em parte relembrar o que
aconteceu e o que está a acontecer noutro lado; excitar a
memória, às vezes também é isso — mostrar o que se está a
passar no lado que não vemos» (p. 28). Uma estratégia de
reconhecimento, pois, na aceção de Assmann.
E o que acontece, então, neste romance? Tão-só
acontecimentos fugazes, encontros breves e surpreendentes.
Nada os prepara, quase nada lhes sucede na história — e cidade,
personagens e romance parecem todos andar à deriva num mar
de destroços em que, paradoxalmente, o único ponto de arrimo
parece ser Hanna, a menina com síndrome de Down, que procura
o seu pai, perdida no seu século.
Como ela, todos deambulam, desorientados (para utilizar uma
palavra do romance), por uma cidade que nada permite
visualmente construir, apenas uma rua principal, pequenas ruas
secundárias, um café, um prédio em ruínas, uma fotografia
gigante, um hotel sem nome. Não existe nenhum assomo de
arquitetura visível, nenhuma relação visual num dédalo que se
trata, sobretudo, de percorrer. Apenas uma: «[…] casas, então,
incompreensíveis, casas que não se compreendem enquanto
casas porque não se podem reconstruir» (p. 53). O  que é uma
casa incompreensível, e uma cidade feita de casas
incompreensíveis? Que humanidade habita uma tal cidade e um tal
mundo?
Em Berlim, afinal, deambulam sem sentido nem orientação a
menina com trissomia 21 e o seu mentor Marius. Como se ambos
penetrassem numa selva oscura dantesca, onde no entanto não há
círculos perfeitos, apenas diferentes formas de perder e procurar.
Ao longo do romance criou-se, entretanto, um «respeito civil», e é
isso que une Hanna e Marius, como é também isso que faz
despontar, em todos os transeuntes que se cruzam com Hanna,
um sorriso nos lábios. Esta personagem representa,
figuradamente, todas as diferenças e todas as existências
alternativas que se cruzam na cidade, das quais a trissomia 21 e o
ser judeu em Berlim, debaixo do retrato de Goering, são o mais
visível sinal.
4.5. NO SÉCULO XX: CRISES, GUERRAS E
TRANSFORMAÇÕES

A literatura portuguesa do século  XX tem dentro de si um


manancial de enorme importância para a reflexão sobre as difíceis
e muitas vezes conflituosas representações históricas de um
tempo conturbado, com agitações sociais quer nacionais quer
internacionais de monta. Assim, neste último capítulo de estudos
de caso elegeremos algumas conformações principais da História
dentro da representação literária, tentando mostrar que ao longo
do século  XX encontramos formas de engagement que revelam o
quanto as questões do envolvimento do Poeta na sua cidade
continuavam a estar no centro das atenções literárias. Podemos
dizer que é esta uma questão candente, na realidade. Ela recebe
diversas configurações, mas de certa forma é uma ansiedade de
cidadania que podemos dizer percorre integralmente o século  XX,
embora conheça expressões diferenciadas.
Por um lado, é natural que ao longo do século  XX encontremos
um conjunto de representações literárias que refletem a presença
obsessiva, através das mais variadas formas de expressão
literária, do imaginário e da realidade das guerras. As perturbações
sociais que eclodem na cena europeia (e mundial) através dos dois
conflitos mundiais completam-se, no caso que aqui nos respeita,
com a consciência da Guerra Civil de Espanha (que forma o
cenário mais amplo de um romance como O Ano da Morte de
Ricardo Reis, 1984, de José Saramago) e, mais tarde, com a
experiência traumática da guerra colonial e do conjunto de perdas
e dores a que deu origem. Acresce a isto que a entrada de
Portugal no século  XX tinha ocorrido à sombra da enorme
turbulência política e social causada quer pelo Ultimatum inglês,
com as inúmeras reações de revolta que atravessaram a
sociedade portuguesa da época; quer pelo regicídio que vitimou D.
Carlos em 1908 e a subsequente Implantação da República, em
1910. Se a tudo isto acrescentarmos as perturbações sociais que
caracterizaram a 1.ª República, a instauração da ditadura em
1926, e o seu fim em 1974, teremos um quadro de enorme
conflitualidade que não pode deixar indiferentes aqueles que a ele
assistem e sobre ele refletem, assim abrindo a representação do
fenómeno literário ao fazer de uma História que, no próprio
momento em que acontece, deixa atrás de si um rasto sangrento e
de grande perturbação. Os escritores novecentistas respondem a
esta situação pela imersão numa realidade histórica, política e
social a que a Literatura não pode ficar alheia. E fazem-no através
da manifestação de uma tomada de consciência de cidadania que
pode dizer-se marca a forma como o escritor vive e certamente
escreve.
Comecemos pelo Ultimatum, até porque falámos já de uma das
respostas fundamentais que conhece, através da figura patriarcal
que é, no final do século  XIX e início do século  XX, Guerra
Junqueiro. Na realidade, é Junqueiro quem, em Finis Patriae
(1890), e sob a sombra do Ultimatum, descreve uma pátria
encolhida sob o peso de uma História que a teria feito soçobrar, e
em que apenas a ideia de uma «mocidade das escolas» pareceria
acolher e manter a formulação da esperança.
Mas podemos, no contexto, mencionar dois outros textos que, no
início do século  XX, e ao retomarem explicitamente no seu título a
referência ao Ultimatum, de algum modo dele se posicionam como
herdeiros. Nestes textos, é a noção de rutura que se transforma na
pedra de toque: textos que pretendem ter uma dimensão de
iconoclastia relativamente ao passado que permita, ou que torne
possível, a construção de um futuro capaz de romper com a
continuidade que não terá dado frutos. Referimo-nos aos textos
assinados por Almada Negreiros, Ultimatum Futurista às Gerações
Portuguesas do séc. XX, redigido em 1917, e pelo heterónimo de
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos, que no mesmo ano publica,
em Portugal Futurista, o seu Ultimatum.
Trata-se de dois textos que, em termos históricos, unem assim o
final do século  XIX, e a promoção da ideologia republicana, na
sequência do Ultimatum inglês de 1890, ao início das perturbações
europeias e mundiais novecentistas, que se manifestam com a
Grande Guerra de 1914-18, e ainda as turbulências nacionais que
derivaram de acontecimentos históricos como o regicídio, a
Implantação da República e o período da 1.ª República. O texto de
Álvaro de Campos e o de Almada Negreiros unem-se ainda por
uma comum utilização de um discurso de rutura e de violência, que
pretende chocar e ser, em si mesmo, uma das instâncias da
destruição preconizada. Se no passado não se encontram nem
sementes nem raízes capazes de assegurar o futuro de uma
sociedade moderna, então é preciso rasgar esse passado, romper
com ele. E por isso em ambos os textos a visão da História
passada é acompanhada de uma visão crítica de enorme
contundência e violência, espelhada aliás nas imagens de rutura
utilizadas e no discurso de manifesto de ambos os textos.
No texto de Álvaro de Campos, efetua-se um «Mandado de
despejo aos mandarins da Europa! Fora», dando início a uma
reflexão sobre a Grande Guerra e a crise europeia, e tendo como
pano de fundo a situação portuguesa. No último verso, o Poeta
está «de costas para a Europa» e fita o oceano, saudando o
Infinito. Podemos ver nesta simbólica imagem a síntese daquilo
que este manifesto defende: trata-se de um corte com o passado
histórico, geográfico e cultural, até porque o texto de Campos não
se limita, ao contrário do de Almada, à realidade nacional, surgindo
como uma invetiva cujas dimensões políticas, económicas,
culturais e literárias implicam, por um lado, o ato de destruir o
passado e, por outro, o de abrir alas ao futuro, como diz Campos,
«em altos gritos». Fernando Pessoa comentou ele mesmo este
texto nos seguintes e interessantes termos: «Falando acerca
do  Ultimatum,   dizia-me  certa vez Álvaro de Campos156: ‘Esta
guerra é a dos pigmeus mais pequenos contra os pigmeus
maiores. O tempo mostrará (foi isto dito em janeiro de 1918) quais
são os maiores e quais os mais pequenos, mas, de qualquer
modo, são pigmeus’».
Já o Ultimatum Futurista, de Almada Negreiros, mantém o
mesmo tom doutrinário e de invetiva que o de Campos também
demonstrava, centrando-se de igual modo em torno de um
referente político que aliás constitui a base de uma mensagem
que, como o título indica, se dirige ao futuro: é um manifesto
futurista, por um lado; e, por outro, tem como seu público as
gerações portuguesas do século  XX, propondo-se como um
referencial de conduta para elas. Esta orientação em direção ao
futuro, no sentido de «criar a pátria portuguesa do século  XX»,
articula-a Almada com o esforço bélico que aqui é integrado e
interpretado como uma manifestação concreta de um espírito de
destruição que está na base de um futuro novo. Por isso, em
ambos os textos encontramos ainda uma reflexão que parte da
realidade da Grande Guerra (recorde-se que ambos são escritos
em 1917), e que dão por isso também conta das discussões e das
polémicas políticas que tinham antecedido e acompanhado a
decisão da entrada de Portugal na Guerra Mundial. Ao investirem
no cenário bélico e na sua violência e capacidade de rutura como
elemento central de um programa doutrinário para o futuro, tanto
Pessoa/Campos como Almada se integram num panorama
europeu mais vasto que, nas décadas iniciais do século  XX,
encontra nesse mesmo cenário as condições históricas
propiciadoras de um corte definitivo com o passado e os erros,
também eles históricos, em que sistematicamente tinha caído.
Assim, a experiência traumática da Grande Guerra é também ela
entendida como a possibilidade de «começar de novo».
De alguma forma, este carácter panfletário e doutrinário
prolonga-se em vários outros textos da época, mas talvez o que
maior destaque mereça seja um outro texto de Almada Negreiros,
A Cena do Ódio, cuja história editorial merece aqui uma referência
especial. Escrito por Almada em 1915, para surgir no n.º 3 de
Orpheu, ele apenas conhece uma publicação parcial em 1923 e só
será publicado na íntegra já no final da década de 1950. Apesar
disto, trata-se de um texto absolutamente decisivo para as
questões que aqui nos ocupam, e que aliás configuram este autor
como uma das figuras centrais na consideração das ligações que o
Modernismo português estabeleceu com a atmosfera cultural,
histórico-política e simbólica na primeira parte do século  XX.
Concordamos neste ponto com Osvaldo Silvestre157, que chama a
atenção para a forma como a dimensão performativa da multímoda
atividade de Almada contrasta com a exclusiva atividade textual de
Pessoa, sendo com frequência por ela obnubilada. Ora, a seu ver,
tal rasura produz efeitos perniciosos no próprio entendimento da
vanguarda modernista e, muito em especial, no apagamento do
papel central que nela o carácter performativo das intervenções de
Almada teria tido.
É de facto neste contexto que devemos considerar o poema A
Cena do Ódio, que sem dificuldade surge como um dos textos-
chave na interpretação vanguardista que faz do passado e da cena
literária, cultural e política portuguesa (simbolizada na figura de
Júlio Dantas, o escritor que motivará o também conhecido
Manifesto Anti-Dantas, alguns anos mais tarde) e na rutura violenta
que propõe com esse passado. A ideia de um ódio fundador, capaz
de produzir a destruição que é absolutamente necessária para dar
lugar ao novo, surge neste texto de Almada como um motor de
arranque para um cenário iconoclasta, que já foi classificado como
«antiépico» justamente pela releitura arrasadora que faz do
passado nacional e de alguns dos momentos, personagens e
episódios mais conhecidos (como os «Fuas» ou os «Távoras», ou
mesmo os Descobrimentos).
Mas também o presente histórico é referido no texto, como os
conflitos relacionados com o episódio do «14 de Maio de 1915»,
conflito armado de que resultaram feridos e mortos, em Lisboa: A
Cena do Ódio constitui-se como o manancial gritante e exclamativo
de um espírito destruidor, que revisita o passado e o presente para
chegar a uma imagem de um pequeno Portugal, incapaz de
qualquer coisa grande, semelhante pois à imagem do «pigmeu»
que Álvaro de Campos também tinha utilizado.
Um dos conjuntos de textos que constituem manancial para a
equacionação das relações entre Literatura e História, ao longo do
século  XX, é constituído por textos de cunho diarístico,
memorialístico e autobiográfico. Clara Rocha158, que, juntamente
com Paula Morão, é das vozes críticas que mais consistentemente
tem estudado este tipo de produção literária (e histórica) entre nós,
tece a este respeito as seguintes considerações:

O memorialista escreve não apenas para dar corpo de


eternidade ao seu próprio tempo vital, mas também para
preservar a memória de acontecimentos, figuras, ideias e
valores que enquadram esse tempo. Ele é um autobiógrafo
com o sentido da história […]. Nessa tensão entre um «eu» e a
história se constroem os relatos memorialísticos, destinados a
assegurar a conservação e a transmissão de um património
que é parte integrante da consciência histórica. (p. 375)

Ora, ao longo do século  XX assiste-se a um eclodir quase


sistemático destes tipos de textos que, situando-se na charneira
entre o pessoal e o social (são diários, memórias ou autobiografias
de um indivíduo e da sua vida, mas são simultaneamente memória
do tempo e da sociedade em que esse indivíduo viveu), dão
testemunho dos densos cruzamentos entre indivíduo e sociedade
e constroem uma visão da História que repousa, afinal, na
perceção de recordações e vivências pessoais.
Trata-se aqui de uma História vivida por assim dizer por dentro,
em que é a constituição da vida pessoal que permite o acesso aos
eventos históricos. Alguns dos nossos maiores escritores
passaram por esta dimensão de escrita memorialística ou diarística
e deixaram rasto da sua presença histórica em obras que, além do
seu intrínseco valor literário, representam um inesgotável
manancial documental para o estudo da História. Podemos aqui
lembrar alguns desses nomes. De Raul Brandão, mencionem-se
os dois volumes de Memórias, publicados respetivamente em 1919
e 1925; de Teixeira de Pascoaes, o seu Livro de Memórias, 1928;
de Aquilino Ribeiro, Um Escritor Confessa-se (1974) e É a Guerra
(1934), este último especificamente sobre a Grande Guerra, que
aliás esteve na origem de um grande número de textos do mesmo
género; de José Gomes Ferreira, A Memória das Palavras ou o
Gosto de Falar de Mim (1965); de Miguel Torga, um dos mais
atentos espetadores do século XX, os dezasseis volumes de Diário,
iniciado em 1941; de Vergílio Ferreira, os vários volumes de Conta-
Corrente, publicados a partir de 1974. Retenhamos, pela
importância e pela dimensão das reflexões e dos cruzamentos
entre História e Literatura, os textos de Brandão e de Torga,
considerando-os como exemplos lapidares das preocupações que
aqui nos ocupam.
A obra de Raul Brandão pode considerar-se, do ponto de vista
literário, como um dos expoentes da produção novecentista. A
aguda consciência social de Brandão, manifestada de forma
intensa em toda a sua produção mais diretamente literária, como
as narrativas Húmus (1917) e Os Pobres (1906), ou textos
dramáticos como O Gebo e a Sombra (1923), ou ainda romances
históricos como El-Rei Junot (1912), encontra nestas suas
Memórias um terreno propício para se espraiar. Em primeiro lugar,
tal fica a dever-se ao enquadramento histórico que Brandão
escolhe como cenário principal das suas recordações: do fim da
Monarquia ao assassínio de Sidónio Pais decorre um período
conturbado do ponto de vista da História nacional, e as
perturbações sociais e políticas que o narrador recorda dão afinal
conta de uma realidade que é instável por natureza e cuja
instabilidade marca, quer os eventos ocorridos, quer a visão
sombria que deles tem o narrador. Esse teor perturbado de uma
História que ocorre sob os seus olhos é por exemplo configurado
no episódio do regicídio (vejam-se por exemplo as suas
observações em «Ainda o Regicídio», Tomo II) e,
subsequentemente, na revolução republicana. Mas é a ideia de
que, em última análise, viver sob o signo da História é viver, como
ele diz, «sem teto, entre ruínas» (frase que sintomaticamente
Augusto Abelaira virá a retomar como título para um seu romance,
anos mais tarde) que sobressai deste conjunto heteróclito de
memórias a que o próprio Raul Brandão não tenta dar carácter
contínuo nem tom homogéneo. Encontramos excertos organizados
em forma de diário, publicação de textos documentais, como por
exemplo proclamações, editais ou telegramas, reflexões
organizadas em torno da recordação de figuras, como Junqueiro
(«Os Últimos Anos de Junqueiro»). E, em tudo isto, é um período
de enorme turbulência social e histórica que se agita na frase de
Brandão, dando voz àquilo que acaba por sempre ser, do seu
ponto de vista, a incapacidade de a História se escrever
unilateralmente, de haver vencedores e vencidos, de, seja de que
forma for, a violência e a injustiça não serem erradicadas, e de os
sofredores continuarem a sofrer. A consciência histórica daqueles
a quem Brandão chama, várias vezes, «os humildes» desdobra-se
de uma consciência metafísica do seu sofrimento e, por isso, de
uma consciência ética da voz que o escritor empresta a quem de
outro modo não se pode exprimir.
No caso de Miguel Torga, encontramos um Diário que
acompanha praticamente toda a longa vida do escritor e que atesta
bem a sua constante atenção a e implicação em o tecido histórico,
em especial nacional, de que participou. Em Torga, não se trata
sobretudo de reduzir o escritor a uma forma de atenção expectante
da sua realidade, se bem que remetida para segundo plano. Pelo
contrário. O que nele encontramos é ainda uma consciência da
figura do intelectual e do escritor como figura cimeira da vida da
polis, e por isso de um escritor que está constantemente incluído,
como consciência observadora e crítica, nas escolhas políticas,
históricas e simbólicas que a sua sociedade vai fazendo.
A implicação cívica de Miguel Torga é ainda devedora
daqueloutra implicação cívica a que figuras tutelares do nosso
século  XIX, como Garrett e Herculano, sempre souberam
responder. Não se trata, em Torga como naqueles outros seus
antecessores, de aceitar pactos ou compromissos, nomeadamente
quando eles fazem perigar os princípios éticos que cada um
defende denodadamente. Antes pelo contrário, Torga tem
consciência, como Herculano e Garrett tinham tido, de que as suas
posições têm um efeito multiplicador na polis a que pertencem.
Ora, tais efeitos repousam em duas condições essenciais. Em
primeiro lugar, o conhecimento do desenrolar da vida histórica, tal
como ela se perfila no quotidiano e nos eventos diários a que cada
um pode assistir. Em segundo lugar, a capacidade de os refratar e
de sobre eles refletir, dando conta de uma posição que não se
limita a relatar mas junta, ao relato, a consciência cívica aliada ao
saber literário. No caso de Torga, é possível dizer que os vários
volumes do seu Diário dão conta de um projeto que passa por
narrar minuciosamente a realidade sócio-histórica (e simbólica) de
Portugal. Com efeito, diz ele no penúltimo volume do Diário:
«Portugal. Foi a procurar entendê-lo que compreendi alguma coisa
de mim». Assim, Torga entende o papel do escritor, e
consequentemente o seu próprio papel, como o de uma
permanente atenção ao seu país, à sua terra, e às suas gentes,
projeto que aliás irmana, da sua perspetiva, a dimensão literária e
a dimensão cívica que fundam a consciência do Poeta. A  sua
escrita diarística é pois, em simultâneo, uma procura de si e uma
procura do seu país, país de que descrê em tempos sombrios de
ditadura, mas de que descrê, talvez ainda com mais tristeza, nos
tempos que se seguem ao 25 de Abril. No volume XIII do Diário,
diz Torga:

Não. Tal como o santo, o artista não se opõe ao poder.


Mesmo sem santidade, ele é o oposto do poder. Mais do que
revolucionário, ele é um revoltado; e mais ainda do que um
revoltado, ele é um rebelde. Um campeão da liberdade, tão
livre, que vive em luta permanente com os seus próprios
demónios.159 (p. 16)

É este fundamento de liberdade, intimamente associado ao da


rebeldia, que a seu ver constitui o artista como figura ímpar da
polis, e que impede esta de poder prescindir dele, sob pena de
anulação da sua própria consciência, daquilo a que ele mesmo
chama o seu «civismo crítico». Os episódios narrados, pois, desde
a insistência no não cair no desespero, em plena ditadura, até à
falta de preservação do seu património e por isso do seu passado,
ou à narração emocionada do 25 de Abril e ao período que se lhe
seguiu, do golpe militar à ocupação das instalações da Pide ou à
realização das primeiras eleições livres, são um precioso
testemunho de um tempo histórico que é sobretudo transmitido
através da íntima associação entre relato e reflexão, característica
da escrita torguiana e do seu projeto literário e cívico. Igual projeto,
embora com diferentes tonalidades discursivas, anima a obra de
Vergílio Ferreira, como Rosa Maria Goulart160 amplamente
demonstrou, ao falar a respeito destes dois autores daquilo que
eles paradigmaticamente representariam: a «responsabilidade dos
homens de letras».
Podemos por outro lado dizer que a consciência crítica figurada
em Torga, bem como a sua crença no papel do escritor como
alguém que transporta não apenas a sua voz, mas as vozes de
muitos outros, é passível de ser encontrada, ao longo do século XX,
em autores e obras de recorte muito diferenciado, mas que por
aqui se aproximam do projeto ético e cívico que Torga entende ser
o do escritor. Lembremos, a este respeito, alguns dos ecos que a
Guerra Civil de Espanha teve entre nós, desde a obra de José
Rodrigues Miguéis, empenhado defensor da causa republicana, ou
o extraordinário poema de Carlos de Oliveira «Guernica» (in
Trabalho Poético), descrevendo os horrores de uma guerra
fratricida que mutila e desfaz toda e qualquer forma de identidade,
até ao romance de José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo
Reis, onde a Guerra Civil espanhola constitui um dos modos de, no
romance, se pensar uma História que não distingue fronteiras
políticas e atinge e marca para além delas. Na verdade, com as
guerras lá fora repensa-se o «cá dentro» como um palco que só
aparentemente é imune às grandes transformações sociais e aos
eventos históricos que agitam o século XX.
O certo é, todavia, que o que se passava «cá dentro», pela sua
especificidade histórica e política, encontrou inúmeros caminhos
literários para se explanar e desenvolver. Para lá de obras de
recorte peculiar, como os romances de Álvaro Guerra que
alegorizam, em torno dos cafés, a história de Portugal do século XX
(Café República, 1982; Café Central, 1984; Café 25 de Abril,
1986), refiramo-nos, pela sua importância de enquadramento e
pelo seu carácter sistemático e de escola, ao movimento
neorrealista, que, de forma mais ou menos coesa, teve, sobretudo
entre a década de 1940 e o final da década de 1960, um
extraordinário papel de agitador das consciências e de
representação direta da realidade política, humana e até mesmo
etnográfica que constituía Portugal, que em meados do século  XX
se encontrava em processo de acelerada transformação histórica,
frequentemente com consequências contraditórias e heterogéneas.
Alguns dos nomes mais importantes deste movimento, como Alves
Redol, Manuel da Fonseca, Mário Dionísio ou José Gomes
Ferreira, ocupam-se em dar conta de um tempo que parece ter
estagnado, quando afinal tanto mudou e tanto tem de mudar, para
que a justiça social se torne clara e efetiva. Todos eles se ocupam,
pois, em fazer refletir nas suas obras as condições sociais e os
casos pessoais de uma sociedade atrasada relativamente ao
presente, prisioneira de uma realidade política ditatorial que a
impede, justamente, de se transformar. Bastará pensar em obras
como Avieiros (1942) ou Gaibéus (1939), de Alves Redol, Aldeia
Nova (1942) ou O Fogo e as Cinzas (1953), de Manuel da
Fonseca, ou ainda O Dia Cinzento e Outros Contos (1944), de
Mário Dionísio, para compreender que comum a todos estes
autores é uma reflexão sobre o que metaforicamente pode ser
entendido como o «dia cinzento» que histórica e politicamente se
tinha abatido sobre Portugal e as suas gentes. E que é o
quotidiano das gentes humildes, na sua enorme variedade
regional, no campo e na cidade, que desencadeia o interesse
literário. De alguma forma, com o movimento neorrealista
aproximamo-nos daquela capacidade de harmonizar «vozes
sociais e universos de ficção» que Vítor Viçoso161, um dos maiores
estudiosos deste movimento, demoradamente analisou.
Este tempo estagnado, pronto para explodir, que até ao final da
década de 1960 é retratado como um dos lugares parados da
História, vai dando lugar a experimentações literárias que
anunciam as transformações sociais, e de algum modo as
preparam enquanto possibilidades históricas. É esse o caso com
autores como Nuno Bragança que, em Directa (1977) e sobretudo
em A Noite e o Riso (1969), nos oferece dois romances que
retratam a atmosfera sufocante dos anos 60 e a procura, por vezes
desregrada, da liberdade, a fuga política, a luta contra a repressão.
Trata-se de uma revolta diferente da romântica, que era centrada
sobre o indivíduo. Agora, o(s) indivíduo(s) exprime(m) uma
coletividade e uma comunidade que, ambas, partilham do mesmo
assombramento, do mesmo desespero e de uma mesma vontade
de redenção histórica, em tempos de ditadura e repressão.
Semelhante ideário se encontra na obra de José Cardoso Pires,
em particular em narrativas como Dinossauro Excelentíssimo
(1972), cujo alcance de fábula política não passou despercebido
no momento da sua publicação; O Delfim (1968); ou Balada da
Praia dos Cães (1982). Nestas obras, Cardoso Pires utiliza uma
sátira corrosiva, que o aproxima por exemplo da ironia sarcástica
do poeta Alexandre O’Neill, e de uma consciência alegórica do fim
do regime, que partilha aliás com uma série de outros autores de
perfil literário análogo, como o já mencionado Augusto Abelaira.
Por outro lado, as «investigações criminais» de Cardoso Pires
permitem manifestar o modo como o imobilismo aparente está a
ser esvaziado por dentro.
É pois do lado de dentro, e não do lado de fora, que a repressão
e o regime explodirão, também em Literatura, como na História. Na
verdade, esta certeza, que politicamente se viria a configurar na
revolução de 1974, é reiteradamente anunciada pela Literatura que
conhece a História. Deste ponto de vista, a obra talvez mais
simbolicamente expressiva é a de Carlos de Oliveira, Finisterra
(1978), cuja escolha da paisagem dunar e quase «lunar» da
Gândara como local de eleição dos seus romances reflete também
uma habitação histórica tornada impossível, a desmoronar-se na
figura das dunas.
Sensivelmente pela mesma altura, e antes de ter atingido o lugar
no cânone que a atribuição do Prémio Nobel veio reconhecer, José
Saramago tinha querido dar, em Levantado do Chão (1980), uma
saga do universo familiar e social ao longo dos primeiros setenta e
cinco anos do século  XX, localizada no Alentejo. Se por um lado
encontramos aqui aquele mesmo sopro heroico que muitas das
narrativas neorrealistas escolhiam ter, por outro lado será bom não
esquecer que, escolhendo acompanhar um período tão conturbado
da história de Portugal, Saramago escolhe também refletir sobre
as mudanças políticas que foram estruturando a vida do povo sem
que, por vezes, essa vida fosse realmente transformada. Ora, é
esta transformação real que ele pretende, de alguma forma,
antecipar.
Também o teatro oferece um palco fundamental para a
encenação do tempo parado e das condições para a repressão
dos direitos fundamentais, nomeadamente sob a influência
brechtiana. Luís Sttau Monteiro, Felizmente Há Luar! (1961) e
Bernardo Santareno, O Judeu (1966), procuram ambos em
episódios históricos (respetivamente os séculos  XIX  e  XVII) a
ilustração da vertente autoritária e repressiva que os segundo e
terceiro quartéis do século XX também experimentavam.
Mas, de um ponto de vista mais complexo, até pela
impressionante dimensão da sua obra romanesca, e pela
diversidade extraordinária da sua galeria de personagens e da sua
imaginação efabulatória, convirá enfatizar a forma como António
Lobo Antunes se perfila como o grande autor que, na segunda
metade do século  XX, e já no início do século  XXI, persegue uma
reflexão «de espécie complicada» (para usar uma expressão de
Pessoa) sobre Portugal, as suas fugidias e contraditórias formas
de identidade, a sua difícil relação com a História, quer mais antiga
(por exemplo, a Expansão) quer contemporânea, com particular
destaque para o momento da guerra colonial (Os Cus de Judas,
1979, Memória de Elefante, 1979, Fado Alexandrino, 1983) e para
o período que, depois do 25 de Abril de 1974, abre lugar à época
pós-colonial.
Toda a obra antuniana é uma longa reflexão que, integrando uma
extrema multiplicidade e diversidade de pontos de vista
efabulatórios, não pode nunca deixar de ser reconduzida àquilo a
que podemos chamar a condição histórica do Portugal pós-
imperial. Mas, enquanto em outros autores esta dimensão pós-
imperial era vivida (e sobretudo antecipada) como uma porta de
acesso ao lugar da pacificação, em Lobo Antunes o que sobressai
é a impossibilidade de regressar dessa condição. Quem teve o
«conhecimento do Inferno» (título de mais um dos seus romances),
quem conheceu a guerra de África, quem viveu como
representante da potência colonial e agente da sua opressão
bélica não pode, depois, voltar atrás. Quem acedeu ao Inferno não
pode regressar ao Paraíso: os tempos já não são nem de Orfeu
nem mesmo de Dante.
A experiência colonial e pós-colonial neste autor é, pois, decisiva,
e não se restringe à experiência da guerra nas então colónias,
embora esta constitua o núcleo do trauma que fica inscrito, a nível
individual e coletivo, na história do país que é Portugal. Na
verdade, é este mesmo país que, de uma forma ou de outra, ficará
para sempre preso de uma realidade histórica e política que, por
ficar no passado, não fica nele encerrada e muito menos resolvida.
Assim, e como exemplo, quer Manual dos Inquisidores (1998) quer
Esplendor de Portugal (1997), entre vários outros, se projetam
como lugares literários em que permanecem dois grandes vetores
históricos para interrogar Portugal e a sua história novecentista: a
ditadura salazarista, magistralmente representada em Manual; e a
guerra colonial incessantemente revisitada, nas suas várias e
complexas direções. Depois, a História resolve-se nas pessoas
comuns de um quotidiano que não cessa de mostrar a sua ferida:
os retornados; os que detinham pequenos e grandes poderes; os
que lutaram e nunca mais puderam viver sem que essa luta os
ferisse; as pequenas e grandes traições; os esquecidos da
História, os esquecidos da vida; as mães separadas dos filhos; as
famílias desfeitas; as antigas e as novas autoridades restauradas;
o dia a dia que não perdoa a quem é espezinhado pela História.
Todas estas personagens e todas estas situações se agitam no
romance de António Lobo Antunes, compondo uma impressionante
galeria de desafortunados da História, de um lado, e, do outro, dos
prepotentes que sempre souberam tirar partido dela. E, no meio,
aquele que narra esta complexa teia e que, tendo consciência
dela, tem ao mesmo tempo consciência da radical impossibilidade
de a resolver: a escrita já não é, aqui, um modo de agir sobre a
História, tão-só um modo de dar conta das suas perturbações e
das suas aporias. Maria Alzira Seixo162, que longamente estudou a
obra romanesca de Lobo Antunes, retrata fielmente a agónica
presença de um ponto de vista que, nas obras deste escritor, se
exprime sem poder resolver-se:

Estes três romances (Os Cus de Judas, Fado Alexandrino e


As Naus) partilham todos, portanto, da problemática da viagem
colonial, mas são escritos com o empenho e a veemência do
colonizador que, tendo vivido a experiência da guerra da
libertação do lado do opressor, não se reconhece
posteriormente em nenhum dos territórios, nem na colónia ou
ex-colónia, nem na metrópole ou ex-metrópole, e mistura por
isso os seus tempos de vivência concreta numa reconstrução
da identidade impossível, estilhaçada que ela foi pelo combate
onde se não morreu. Os estilhaços que permanecem são os
dos restos do desastre, os dos esgares soltos da gargalhada
da irrisão amarga, da cena da bebedeira brincalhona e
irresponsável onde se mata o oficial de transmissões,
sacrificando a todas as perdas e a todos os efeitos de
frustração. (p. 129)

Desta forma, se quisermos encontrar uma obra que, no


século  XX, manifeste de forma exemplar a condição agónica da
condição histórica do Portugal presente, não poderemos deixar de
a encontrar nesta particular e comovente consciência da condição
pós-colonial que é a nossa, que não acaba de ser a nossa.
Naturalmente, muitos outros escritores a manifestam, e convirá
entre eles mencionar, pelo alcance da reflexão literária e histórica
que produzem, autores como Lídia Jorge, por exemplo com Costa
dos Murmúrios (1988), ou Helder Macedo (Partes de África, 1991;
Pedro e Paula, 1998). Estes, com Lobo Antunes, elegeram esta
condição pós-colonial e pós-imperial como o lugar a partir do qual
tudo aquilo que é dito faz sentido — mesmo se esse sentido for
uma forma precária de reconhecer a dor histórica e a fragilidade
política. Ainda mais recentemente, deve ser mencionada a obra de
Dulce Maria Cardoso, em particular (mas não apenas) o romance
que, justamente intitulado O Retorno (2011), se centra no regresso
do protagonista Rui, um jovem de quinze anos que é apanhado
pela vaga da descolonização e do «retorno» a Portugal em 1975,
vindo de Luanda, e que retrata a sua difícil adaptação a uma nova
realidade histórica onde aqueles que regressam não encontram
necessariamente o pacífico acolhimento que talvez tivessem
esperado. Uma vez mais, e gradualmente, a Literatura olha para a
História e como que faz o seu processo de tomada de consciência,
através de um conjunto de ficções que não são de todo alheias à
História, antes a incorporam de forma complexa. Todas estas
obras são reflexões literárias sobre os desencontros produzidos
pelas perturbações da História no final do século  XX, e sobre a
forma como esses desencontros reconfiguram a ideia do Portugal
contemporâneo.
Mas, pela amplitude e qualidade que estas questões têm
também em toda a sua obra, retenhamos a reflexão produzida por
Maria Velho da Costa, em cuja obra encontramos da mesma forma
um mundo sacudido pelos ventos da História, e uma
representação agitada das permanentes instabilidades que nele se
manifestam. Reservemos para capítulo posterior uma análise mais
demorada do universo romanesco desta autora, cuja extraordinária
qualidade literária se conjuga com a consciência lutuosa de uma
História que inexoravelmente produz vencidos e deserdados. Mas
sublinhemos desde já que na sua obra encontramos também uma
das mais densas reflexões sobre a forma como Literatura e
História se encontram, no final do século  XX, bem como sobre os
modos agitados pelos quais se continua, hoje, a pensar Portugal.

74 Ver,
p. ex., Hélio J. S. Alves, Camões, Corte-Real e o Sistema da Epopeia Quinhentista,
Coimbra, Acta Universitatis Conimbrigensis/CIEC, 2001.

75 Ana Isabel Buescu, A Asia de João de Barros. Um Projecto de Celebração Imperial, op.
cit.

76 VítorAguiar e Silva, A Lira Dourada e a Tuba Canora. Novos Ensaios Camonianos,


Lisboa, Cotovia, 2008.

77 Jorge Borges de Macedo, Os Lusíadas e a História, Lisboa, Editorial Verbo, 1979.

78 Cleonice Berardinelli, Ensaios Camonianos, Rio de Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 2000.

79 José Augusto Cardoso Bernardes, Luís de Camões: (ainda) Um Ilustre Desconhecido, in


Luís de Camões, Os Lusíadas, Lisboa, Angelus Novus/Centro de Literatura Portuguesa, no
prelo. Agradecemos naturalmente ao autor a generosa disponibilização do texto ensaístico
com que prefacia esta nova edição de Os Lusíadas.
80 Cf. Hélio J. S. Alves, op. cit., especialmente, pp. 367-79.

81 Hélio Alves, Corte-Real, a Evolução da Sua Arte, Península. Revista de Estudos


Ibéricos, n.º 2, 2005, pp. 171-99.

82 Aeste respeito, é sempre útil a consulta da obra de José Maria Rodrigues, Fontes d’ Os
Lusíadas, Lisboa, Academia das Ciências, 1979.

83 Eduardo Lourenço, Garrett e a figura espectral, As Saias de Elvira, Lisboa, Gradiva,


2006.

84 CarlosReis, Intertextualidade e Ideologia: Uma Imagem Romântica de Camões,


Construção da Leitura. Ensaios de Metodologia e de Crítica Literária, Coimbra, INIC, 1982,
pp. 59-73.

85 Teresa
Almeida, Apresentação Crítica, Camões de Almeida Garrett, Lisboa, Editorial
Comunicação, 1986, pp. 11-39.

86 Remetemos aqui para a mais recente edição do poema Camões, publicada em 2018
pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda, em que encontramos o texto representando a
última vontade de Garrett, ao incorporar as anotações existentes no seu exemplar pessoal.

87 Helena Carvalhão Buescu, O «caleidoscópio garrettiano». Legitimação do «retrato de


artista», Chiaroscuro. Modernidade e Literatura, Porto, Campo das Letras, 2001, pp. 43-
105.

88 José-Augusto França, Camões e a Saudade, O Romantismo em Portugal, 1.º vol.,


Lisboa, Livros Horizonte, 1974, pp. 93-113.

89 Gabriel
Magalhães, De «Camões» ao «Romanceiro», Garrett e Rivas. O Romantismo
em Espanha e Portugal, vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2009, pp. 169-
207.

90 Onde divergimos claramente de Gabriel Magalhães é na sua tese de que Camões não
só não é a primeira obra romântica, como seria «a última obra clássica […] — um poema
pós-clássico» (p. 184). A divergência vem de uma simples (e interessante) constatação:
não é, nem nunca foi, preciso escolher entre Romantismo e Classicismo. Interpretá-los
como categorias disjuntivas foi uma posição historicamente compreensível, mas não
historicamente imutável. Podemos e devemos lê-la hoje à luz de uma maior complexidade
crítica.

91 Helena Carvalhão Buescu, Cristalizações. Fronteiras da Modernidade, Lisboa, Relógio


d’Água, 2005. A minha reflexão é sobretudo devedora das reflexões de William Marx, Les
Arrières-gardes au XXe. Siècle. L’autre face de la modernité esthétique, Paris, PUF, 2004.
Sensivelmente na mesma altura, pensadores como Antoine Compagnon e Marjorie Perloff
publicaram textos, de diferente extensão, no mesmo sentido: Marjorie Perloff, Writing as
Re-Writing: Concrete Poetry as Arrière-Garde, in Ciberletras. Revista de Crítica Literária y
de Cultura, 17, 2007, www.Lehman.edu/ciberletras/v17.html; Antoine Compagnon, L’arrière-
garde, de Péguy à Paulhan et Barthes, in William Marx, pp. 93-101.

92 Fernando Pessoa, inquérito de 7 de abril de 1914, Obras em Prosa, Nova Aguilar,


pp. 343-4.

93 Verpor exemplo António Manuel Caldeira Azevedo, Guerra Junqueiro: Modernidade e


Palinódia, Porto, Lello Ed., 2001.

94 Antero de Quental, Prosas Dispersas, org. de Ruy Belo, Lisboa, Presença, 1966.

95 Raul Brandão, in A Águia, III série, vol. III, jul.-ag. 1923, pp. 52-3.

96 Aobra de referência a este respeito é sem dúvida a de António Machado Pires, A Ideia
de Decadência na Geração de 70, Lisboa, Vega, 1992. Veja-se também o ensaio de
Fernando Guimarães, Poesia e Modernidade: o Caso de Junqueiro, in AAVV, Guerra
Junqueiro e a Modernidade, Porto, Lello Ed., 1998, pp. 9-12, que associa o Junqueiro de
Os Simples a Alberto de Oliveira por via de um nacionalismo literário que, no fundo,
reconheceria um carácter inovador que o próprio Junqueiro no posfácio do livro já lhe
mencionava.

97 Américo Lindeza Diogo, Junqueiro e a Modernidade, in ibidem, pp. 128-44.

98 «Os políticos consideram-me um poeta; os poetas, um político; os católicos julgam-me


um ímpio; os ateus, um crente» (Guerra Junqueiro a Luís Guimarães, Junqueiro e o Bric-à-
Brac, Lisboa, 1942). Cf. ainda, sobretudo no quadro da comemoração do centenário do seu
nascimento pelo regime de Salazar, Norberto Lopes, A Posição espiritual de Guerra
Junqueiro, Memórias da Academia das Ciências de Lisboa. Classe de Letras. Tomo XXI,
Lisboa, 1980, pp. 235-67.

99 «De um canto à luz tira Junqueiro uma das maiores poesias metafísicas do mundo,
poesia que se pode comparar só a ‘Ode on the Intimations of Immortality de Wordsworh’»
(A Águia, 2.ª série, n.os 9, 11 e 12, set., nov. e dez. de 1912, ou Fernando Pessoa,  Textos
de Crítica e de Intervenção, Lisboa, Ática, 1980, p. 56.

100 EduardoLourenço, De Junqueiro a Pessoa, Fernando, Rei da Nossa Baviera, Lisboa,


Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986, pp. 111-19.

101 Ver sobretudo, a este respeito, e respetivamente: Oscar Lopes. Entre Fialho e Nemésio,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987, 2 vols., passim; António Machado Pires,
op. cit., em particular o cap. 6, Decadência e Modo de Ser. Raça e História, Modo de Ser e
Modo de Agir, pp. 247-68; Helder Macedo, A Mensagem e as mensagens de Oliveira
Martins e de Guerra Junqueiro, Trinta Leituras, Lisboa, Presença, 2006, pp. 150-64.

102 José Carlos Seabra Pereira, Servanda Lusitania! (Ideia e Representação de Portugal
na Literatura dos Séculos XIX e XX), Revista de História das Ideias, 28, 2007, pp. 527-66.

103 Helder Macedo, op. cit., p. 157.

104 Guerra Junqueiro, Discurso, Horas de Combate, Porto, Lello e Irmãos, 1996, p. 15.

105 Helder Macedo, op. cit., p. 159.

106 Oliveira Martins, «Prólogo» [1880], Camões, Lisboa, Guimarães Eds., 1952 [1891],
p. 11. As citações de Oliveira Martins serão feitas a partir desta edição.

107 Assinalamos ainda o seguinte contributo para esta questão: António Cândido Franco, A
Epopeia Pós-Camoniana de Guerra Junqueiro (no Centenário da Publicação da Pátria),
Gazeta do Mundo da Língua Portuguesa, 1996, pp. 3-27. O contributo de Cândido Franco
permite sublinhar o quanto o rasurar desta dimensão impede que compreendamos as
sobrevivências póstumas e as reativações simbólicas da epopeia camoniana, que não se
ficam apenas pelo aproveitamento político da figura de Camões por ocasião do centenário
de 1880, mas que encontram ramificações decisivas para a compreensão daquilo que a
poesia da modernidade não poderia ser sem a épica de Camões, às vezes contra ou
mesmo apesar da épica de Camões.

108 Guerra Junqueiro, Discurso Republicano, Rio de Janeiro, Jacinto Ribeiro dos Santos
Editor, s/d (corresponde a um discurso pronunciado numa reunião do Clube Republicano
de Lisboa, a 27 de junho de 1897, e ao texto publicado na Vanguarda e nessa edição
inutilizado), p. 19.

109 Leia-se muita da receção crítica de Junqueiro, como disse fortemente paradoxal.

110 António Lobo Antunes, in Jornal Tempo, 29/1/87, p. 31.

111 Maria Alzira Seixo, Os Romances de António Lobo Antunes, Lisboa, Dom Quixote,
2002, p. 172.

112 António Lobo Antunes, in Ler, n.º 2, primavera 88, pp. 70-73.

113 Ernst Bloch, The Principle of Hope, Oxford, Balckwell, 1986 (1954-9).

114 FredricJameson, esp. Varieties of the Utopian, Archaeologies of the Futue. The desire
called utopia and other science fiction, London, Verso, 2002, pp. 1-9.
115 O impacto do pensamento de Bloch é imenso. Veja-se a forma como a sua obra é
pedra de toque na reflexão de Jameson, op. cit.; ou o número temático do Journal of
Contemporary Thought, intitulado Utopias Today!, editado por Patricia Vieira e Michael
Marder, 31, Summer 2010, esp. Os contributos de Alexandre Franco de Sá, From Modern
Utopias to Contemporay Uchronia, pp. 37-55; e Ruth Levitas, Secularism and Post-
Secularism in Roberto Unger and Ernst Bloch: Towards a Utopian Ontology, pp. 151-70. Cf.
ainda, de Levitas, o seu The Concept of Utopia, Syracuse UP, 1990.

116 Leodegário de Azevedo Filho, Camões, O Desconcerto do Mundo e a Estética da


Utopia, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1995.

117 Vítor
Aguiar e Silva, Imaginação e Pensamento Utópicos no Episódio da «Ilha dos
Amores», Camões, Labirintos e Fascínios, Lisboa, Cotovia, 1994, pp. 145-53.

118 Martimde Albuquerque, A Expressão do Poder em Luís de Camões Lisboa, Imprensa


Nacional-Casa da Moeda, 1988.

119 Louis Marin, Utopiques. Jeux d’Espaces, Paris, Minuit, 1973.

120 HelderMacedo, Eight Centuries of Portuguese Literature. An Overview, in Stephen


Parkinson, Cláudia Pazos Alonso, T. F. Earle (eds.), A Companion to Portuguese literature,
London, Tamesis, 2009, pp. 1-22.

121 Eduardo Lourenço, «Prefácio»: Uma Viagem no Coração do Caos, in Gonçalo


M. Tavares, Viagem à Índia, Lisboa, Ed. Caminho, 2010.

122 António Lobo Antunes, As Naus, edição Ne Varietur, Lisboa, edições Dom Quixote,
2006.

123 Joaquim José Moreira de Mendonça, História Universal dos Terremotos que tem Havido
no Mundo, de que há notícia, desde a sua criação até o século presente, Lisboa, Oficina de
António Vicente da Silva, 1756, pp. 113-4.

124 Goethe,
Dichtung und Warheit, I Parte, Livro I, cit. por Isabel Maria Barreira de Campos,
O Grande Terramoto (1755), Lisboa, Parceria, 1998, p. 525.

125 Gazeta de Lisboa, n.º 45. Quinta-feira, 6 de novembro de 1755, 360, cit. por Isabel
Maria Barreira de Campos, op. cit., pp. 44-5.

126 Gazeta de Lisboa, n.º 18, Quinta-feira, 6 de maio de 1756, p. 143.

127 Domingos dos Reis Quita, No Lamentável Terramoto do Primeiro de Novembro de


1755, em Lisboa, Obras Completas, vol. 1, ed. de Ana Cristina Fontes, Porto, Campo das
Letras, 1999.
128 Paraum desenvolvimento deste aspeto, remeto para a notável obra de Peter Brooks,
The Melodramatic Imagination, Yale UP, 1995.

129 João Xavier de Matos, Romance Heróico ao Terremoto do Primeiro de Novembro de


1755, Lisboa, Oficina de Manuel Soares, 1756.

130 Moreira de Mendonça, op. cit., pp. 116-7.

131 Cf. op. cit., especialmente Os Quatro Elementos. A ‘Vast Chain of Being’.

132 Miguel Tibério Pedegache, Nova e Fiel Relação do Terremoto, que experimentou
Lisboa, e todo Portugal no 1.º de Novembro de 1755, Lisboa, Oficina de Manuel Soares,
1756, pp. 4-5.

133 D.J.F.M.,Teatro Lamentável, Cena Funesta: Relação Verdadeira do Terremoto do


Primeiro de Novembro de 1755, Coimbra, Oficina de Francisco de Oliveira, 1756.

134 J.R. A. Piderit, Freye Betrachtung über das neuliche Erdbeben zu Lisabon, Marburg,
1756, 150-2, cit. por Isabel Maria Barreira de Campos, op. cit., p. 181

135 Paulino
António Cabral, Abade de Jazente, Ao Terremoto do Primeiro de Novembro de
1755. Romance Fúnebre, in Poesias, edição de Miguel Tamen, Lisboa, Imprensa Nacional-
Casa da Moeda, 1985, p. 428.

136 Idem, ibidem, p. 65.

137 Ensaios de Kant a propósito do Terramoto de 1755, trad. Luís Silveira, Câmara
Municipal de Lisboa, Lisboa, 1955, p. 23.

138 Op. cit., p. 66.

139 FranciscoPina e Melo, Ao Terramoto do Primeiro de Novembro de 1755, Lisboa,


Oficina de Manuel Soares, 1756; idem, Juízo sobre o Terremoto, Coimbra, Oficina de
António Simões Ferreira, 1756.

140 Gil Vicente, Tormenta; Carta que Gil Vicente mandou de Santarém a El-Rei Dom João,
o Terceiro de nome, estando Sua Alteza em Palmela, sobre o tremor de terra, que foi a
vinte e seis de janeiro de 1531, Todas as Obras, CD-Rom, Lisboa, Comissão Nacional para
as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2001.

141 Francisco Xavier de Oliveira, Cavaleiro de, Discurso Patético sobre as Calamidades
presentes sucedidas em Portugal. Seguimento do Discurso Patético, ou Resposta às
Objecções e aos Murmúrios que esse escrito sobre si atraiu em Lisboa (1755) (1756),
Lisboa, Ed. Frenesi, 2004.
142 GabrielMalagrida, Juízo da Verdadeira Causa do Terramoto que Padeceu a Corte de
Lisboa, no Primeiro de Novembro de 1755, Lisboa, Oficina de Manuel Soares, 1756, p. 7.

143 Cf.a proposta contida em Susan Neiman, Evil in Modern Thought. Na Alternative
History of Philosophy, Princeton UP, 2002.

144 Paul Ricoeur, La Mémoire, l’Histoire, et l’Oubli, Paris, Seuil, 2000.

145 CarlosReis, Diálogos com José Saramago, Lisboa, Ed. Caminho, 1998; Ana Paula
Arnaut, José Saramago, Lisboa, Ed. 70, 2008.

146 Elsa
Rita dos Santos, Teatro. História. Contexto — Identidade Nacional e Tempo de
Mediação no Drama Histórico Português (1898 a 1924), Lisboa, Ed. Colibri, 2011.

147 Fátima Marinho, O Romance Histórico em Portugal, Porto, Campo das Letras, 1999;
idem, Um Poço sem Fundo. Novas Reflexões sobre Literatura e História, Porto, Campo das
Letras, 2005.

148 «Pessoa’s
Unmodernity: Ricardo Reis», in Mariana Gray de Castro (ed.), Fernando
Pessoa’s Modernity Without Frontiers, Tamesis, Woordbridge, pp. 75-85.

149 Walter Benjamin, On the Concept of History, in Selected Writings, vol. 4, 1938-1940,
Howard Eiland e Michael W. Jennings (eds.). Boston: The Belknap Press at Harvard
Univerity Press, 2003, pp. 389-400.

150 Claudio Guillén, Cambio Literario y Múltiple Duración, in Homenaje a Julio Caro Baroja,
Madrid: ed. A. Carreira, 1978, pp. 533-49.

151 Aleida Assmann, Civilizing Societies: Recognition and Respect in a Global World, New
Literary History, 44 (1), 2013, pp. 69-91.

152 Gonçalo M. Tavares, Uma Menina Está Perdida no Seu Século à Procura do Pai, Porto,
Porto Ed., 2014.

153 Stephen Greenblatt, The Swerve. How the World Became Modern, New York/London,
Norton and Co., 2011.

154 Susan Neiman, op. cit.

155 Margaret Somers, The Narrative Constitution of Identity: a Relational and Network
Approach, Theory and Society, 23 (5), 1994, p. 613. Apud Winfried Fluck, Reading for
Recognition, New Literary History, 44 (1), 2013, pp. 45-67.
156 Fernando Pessoa, Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, Textos estabelecidos e
prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Ática, 1996, pp. 405-
9.

157 OsvaldoSilvestre, Vanguarda, in Fernando Cabral Martins (org.), Dicionário de


Fernando Pessoa e do Modernismo Português, Lisboa, Ed. Caminho, 2008, s/v, pp. 875-8.

158 Ver,entre várias outras obras desta autora, e dizendo diretamente respeito ao que aqui
nos ocupa, o ensaio intitulado O Memorialismo, in Clara Rocha, Helena Carvalhão Buescu
e Rosa Maria Goulart (org.), Literatura e Cidadania no Século XX, Lisboa, Imprensa
Nacional-Casa da Moeda, 2011, pp. 375-96. Ver ainda, a este respeito, Paula Morão, em
especial a obra O Secreto e o Real. Ensaios sobre Literatura Portuguesa, Lisboa, Campo
da Comunicação, 2011.

159 Miguel Torga, Diário XIII, Lisboa, D. Quixote/Leya, 2012.

160 Rosa Maria Goulart, A responsabilidade dos homens de letras: Vergílio Ferreira e
Miguel Torga, in Helena Carvalhão Buescu e Teresa Cristina Cerdeira (orgs.), Literatura
Portuguesa e a Construção do Passado e do Futuro, Lisboa, Caleidoscópio, 2011, pp. 243-
53.

161 Entre
outros estudos, ver Vítor Viçoso, A Narrativa no Movimento Neo-Realista. As
Vozes Sociais e os Universos da Ficção, Lisboa, Colibri, 2011.

162 Maria Alzira Seixo, Os Romances de António Lobo Antunes, Lisboa, Dom Quixote,
2002.
5. A HISTÓRIA DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS

5.1. REPRESENTAÇÃO DE TIPOS SOCIAIS E HISTÓRICOS

Uma das grandes inovações que o Romantismo faz


definitivamente introduzir no âmbito da produção literária é a
gradual afirmação de um olhar atento à atualidade, às suas
configurações e aos seus tipos sociais. A entrada deste conjunto
de características na Literatura fá-la-á transformar-se de modo
durável, abandonando-se uma produção orientada
predominantemente por modelos literários preexistentes, que se
trataria de emular, em favor da procura do que, grosso modo, pode
designar-se sob o termo genérico de originalidade. A  procura de
situações, histórias, personagens e tipos diversos, capazes de dar
conta de uma sociedade estratificada do ponto de vista histórico e
social, faz ascender ao palco literário muitas figuras e muitas
situações que até então não tinham nele encontrado qualquer
lugar, ou que, em alternativa, lá tinham entrado apenas de forma
caricatural. A representação séria de modelos que não
correspondiam ao padrão alto da poética de Aristóteles, mas a
modos mistos ou mesmo baixos, pode aliás considerar-se uma
metafórica (ou literal) contrapartida da democratização que a
queda do Antigo Regime inevitavelmente arrastaria. Trata-se de
ver os que antes não eram reconhecidos. Se a lei
progressivamente os aceita como sujeitos cidadãos, também a
Literatura gradualmente prepara a sua representação enquanto
sujeitos de afetos, de volições, de expectativas e erros. Entram
assim na cena literária personagens e tipos sociais, bem como
estruturas efabulatórias, cuja dimensão de inovação faz parte do
interesse que despertam.
Não é por acaso que surge, na narrativa, um autor como Camilo
Castelo Branco. Nas suas páginas, como veremos de forma mais
aproximada adiante, agitam-se histórias de interesses e poder, de
traições pessoais e sociais, de regras e leis aceites ou traídas, de
emigrantes regressados (os «brasileiros») que se tornam um
símbolo dos novos tempos, de caciques locais cujos micropoderes
se desdobram nas relações intrafamiliares e nas relações afetivas,
de estruturas políticas que dão conta das fragilidades do sistema
parlamentar (de que Garrett também se apercebera), das
complexas teias que se vão tecendo entre ruralidade e espaço
urbano, do poder do dinheiro na construção de uma sociedade que
se dizia ser nova. A narrativa de Camilo Castelo Branco é um dos
mais complexos e perturbadores painéis da sociedade portuguesa
no século  XIX, e um manancial literário que contém arquivados
casos e procedimentos de um Portugal que a Guerra Civil da
primeira parte do século e o regime parlamentar subsequente não
tinham podido totalmente emancipar do obscurantismo.
Dificilmente a queda do Antigo Regime e a entrada no Portugal
contemporâneo teriam podido encontrar melhor cronista do que
este escritor, encandeado pelas perturbações passionais,
históricas e sociais que se ocupa em descrever com intensidade.
Se a isto acrescentarmos o desenvolvimento da moda do
folhetim, e a forma como este género novo refletia as condições da
nova vida urbana que cada vez mais se acoplava à noção de
sociedade moderna, não será difícil encontrar, nos textos
folhetinescos de Júlio César Machado e de António Pedro Lopes
de Mendonça, uma galeria interessantíssima de procedimentos
típicos de uma sociedade que a História se encarregava de mudar,
de forma cada vez mais acelerada. Por outro lado, enfim, começa
a surgir em diferentes romances, e mesmo em poesia, a crítica
direta a situações como o tráfico de escravos, que podemos
considerar aliás como um dos tópicos históricos que mais impacto
tem dentro da representação narrativa: os navios negreiros e
aqueles que à custa do tráfico de escravos, entre África e o Brasil,
continuavam a enriquecer, apesar da abolição do tráfico em 1836,
constituem um dos marcos deste tipo de interesse, cujo alcance
histórico e também político deve ser sublinhado (lembremos a
abolição da escravatura em todo o império português, em 1869).
Lembremos que Maria de Monforte, no romance Os Maias, de Eça,
era filha de um negreiro — ninguém trai por acaso, afinal. E que,
no conto do mesmo autor, intitulado «Singularidades de Uma
Rapariga Loira», o protagonista por duas vezes faz fortuna, indo
para Cabo Verde. Ora, o que era Cabo Verde na primeira metade
do século XIX (momento em que a intriga é situada)? Naturalmente,
a maior plataforma de tráfico de escravos entre África e o Brasil.
Não é por ser dito que o cancro do tráfico de escravos deixa de lá
estar.
Mas o Romantismo descobre, também na poesia, o mesmo tipo
de interesse, embora com resultados no geral menos felizes
literariamente do que os conseguidos pela obra maior camiliana.
No entanto, devem ser notados os anseios humanitaristas que
encontram eco por exemplo na poesia do periódico O Trovador, e
em que começamos a encontrar a tónica colocada numa poesia de
atualidade, que olha à sua volta e reconhece os tipos sociais e os
vulneráveis que campo e cidade vão produzindo.
Três dos poetas em que tal interesse produz melhores obras
literárias são, sem dúvida, Gomes Leal, Cesário Verde e António
Nobre. Não que qualquer destes poetas tenha tido como objetivo
prioritário fazer unicamente uma poesia social. Mas em qualquer
deles, e com as naturais diferenças de dicção (aliás bastante
acentuadas), aquilo que encontramos é a consciência de que ao
poeta basta olhar para se aperceber de uma corte de desvalidos
que o humanitarismo poético não quer deixar rasurar. As galerias
de pedintes, pobres, doentes, ladrões, prostitutas, enfermos,
tísicas que, de uma forma ou de outra, encontram lugar de
cidadania na poesia em particular de Cesário e de Nobre provêm,
por um lado, do grande grito humanitário e social que Victor Hugo
tinha lançado, de França, a toda a Europa. E provêm, por outro
lado, da miséria social que a vivência urbana torna mais visível, e
que, de modos diversos entre si, tinha dado origem quer a séries
como os Mystères de Paris, de Eugène Sue, cuja fama vibrou por
toda a Europa (e inspirou a Camilo os seus Mistérios de Lisboa,
1854), quer à «poesia do mal» que Baudelaire tinha inaugurado.
Entre nós, o autor que de forma talvez mais vibrante assumiu essa
dimensão mais profeticamente humanitarista terá sido Antero de
Quental, cuja herança se prolongará, enquanto mentor da Geração
de 70, até aos nossos dias.

De Antero (que Fernando Pessoa considerava um dos seus


mestres) é também herdeiro Raul Brandão, que já atrás
mencionámos. A sua obra literária, quer narrativa, quer dramática,
quer de teor memorialista ou diarístico, corresponde a um dos mais
altos momentos em que a consciência da ferida social da injustiça
se torna visivelmente mais crua e difícil de ser ignorada. Quer na
sua obra-prima, o romance Húmus, quer em obras como Ilhas
Desconhecidas, 1926, que retrata uma sua viagem aos Açores, ou
Os Pescadores, 1923¸ em que, como o título indica, narra de
memória episódios, situações e acontecimentos relativos à sua
vivência nortenha entre os pescadores, Raul Brandão escolhe
como ele diz deter-se em «factos insignificantes», gente miúda, a
pequena-grande humanidade que faz a vida da História: os
galegos, os pobres, os pedintes, os doentes, os do hospício, os
miseráveis (à V. Hugo), numa palavra, os vulneráveis. São estes
os atores do drama brandoniano, e o narrador destas histórias é
aquele que pode por um lado olhar e ver e, por outro, contar a
outros aquilo que viu, insuflando a sua narrativa de uma
solidariedade empática que o transforma num outro irmão dos que
sofrem.
Mas o universo romanesco oitocentista e a sua inclusão de tipos
sociais diversos encontrara também em Eça de Queirós um dos
seus mais expressivos cultores. A obra romanesca e contística de
Eça baseia-se numa capacidade efabulatória de grande alcance e
diversidade, bem como no talento no delinear de personagens e
das suas características. Além das personagens principais e da
intriga nuclear, em que Eça dá conta da sua mestria, é talvez na
galeria de personagens secundárias que podemos detetar a
argúcia da análise histórica e pessoal de Eça, desdobrando-se em
diferentes meios da cena social portuguesa, da média burguesia
semirrural ou citadina (O Crime do Padre Amaro, 1875; O Primo
Basílio, 1878) aos casos de província (como no conto «No
Moinho», por exemplo) ou da alta burguesia urbana que em Lisboa
vive (Os Maias, 1888). A perspicácia com que Eça encontra e
caracteriza esses tipos sociais, do intelectual ao jornalista que não
fica incólume ao poder, dos figurantes que se agitam nas
pequenas e grandes cenas de corrupção social aos que
protagonizam as ambiguidades de que se constrói a política, das
personagens que ocupam esses lugares de sociabilidade urbana
que são já os cafés, os restaurantes, a ópera, os passeios a Sintra,
fará com que possamos dizer deste autor que nos deixa uma
crónica de costumes não já da transição entre Antigo e Novo
Regime (de que Camilo prioritariamente se ocupara, como
veremos adiante), mas da sociedade pretensamente moderna que
da Regeneração se erguera.
De outro ponto de vista, não poderemos deixar de enfatizar as
grandes transformações subjacentes à construção da sociedade
moderna e, em particular, do espaço da cidade como o lugar
geométrico do contemporâneo. Entre os diversos arautos deste
espaço e deste tempo novos avulta no século XX, claro está, Álvaro
de Campos, que grita a dimensão heroica da cidade cosmopolita e
das máquinas que «freneticamente» ela cria. A sua crença quase
mística numa ideia de Progresso imparável ver-se-á, no entanto,
carcomida pela consciência de que tal Progresso se encontra
afetado por limites que acabam por essencialmente o
desestruturar. Podemos encontrar em Álvaro de Campos um
paradigma quer da ideia heroica de futuro que parecia ser possível
criar pela rutura com os passados, quer afinal da perceção de que
também o contemporâneo é, fatalmente, antigo (como aliás
lembrava também Baudelaire e como o «mestre» Cesário Verde
tinha amplamente tematizado). Esta é uma diferente forma de
encarar a História: não como progressão linear que vem do
passado e se dirige ao futuro, mas como repetido balbuciar e
entrecruzar das categorias temporais que se tornam, assim,
impuras e heterogéneas. Foi esta uma das ansiedades históricas,
aliás, que terá levado Mário de Sá-Carneiro à encruzilhada do
suicídio, que podemos entender como gesto simultaneamente
individual e coletivo. A este respeito a leitura quer da sua obra quer
da correspondência trocada com Fernando Pessoa163, durante a
sua estadia em Paris, e até ao seu suicídio, é uma admirável
expressão das condições perturbadoras que um moderno encontra
na História que conhece e que, sobretudo, vive.

5.2. A REVOLUÇÃO DO QUOTIDIANO BURGUÊS E A


QUEDA DO ANTIGO REGIME: CAMILO CASTELO
BRANCO

Encaremos, entretanto, uma obra paradigmática do século  XX,


Amor de Perdição (1862), de Camilo Castelo Branco, olhando-a do
ponto de vista da crónica histórica e política que também é164. E
comecemos por duas citações, em jeito de epígrafe:

1) Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen165


Art. 1er. Les hommes naissent et demeurent libres et égaux
en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que
sur l’utilité commune.
Art. 2. Le but de toute association politique est la
conservation des droits naturels et imprescriptibles de
l’Homme. Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté et la
résistance à l’oppression.
Art. 3. Le principe de la Souveraineté réside essentiellement
dans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer
d’autorité qui n’en émane expressément.

2) Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição (1862)


Não sofras com paciência; luta com heroísmo. A submissão
é uma ignomínia, quando o poder paternal é uma afronta.
(carta de Simão a Teresa, cap. VIII, p. 275)

Amor de Perdição (como Viagens na Minha Terra, de Almeida


Garrett) é um romance — embora ambos o sejam por razões
diferentes. Interessando aqui Amor de Perdição, a tese (comum)
de que seria uma novela só faria (pouco) sentido se o leitor se
concentrasse apenas na intriga a que convencionalmente Amor de
Perdição é reduzido: uma história que se esgota no seu crescendo
melodramático, e num conceito também ele redutor (se nos
lembrarmos das discussões sobre o conceito filosófico de paixão,
que recrudescem nos séculos  XVII  e  XVIII e levam por exemplo
Descartes, o homem da razão, a escrever também um Traité des
Passions) de paixão como sendo apenas paixão amorosa. É certo
que há paixões amorosas, e este romance também delas trata. O
problema é que elas não são as únicas, longe disso166. Muitos
críticos vêm hoje insistindo neste alargamento hermenêutico do
romance: Paulo Motta Oliveira ou Flávia Corradin167 — como
veremos seguindo pistas que Cleonice Berardinelli deixou em
alguns dos seus textos críticos.
A questão é tão simplesmente esta: Amor de Perdição, contendo
embora uma pequena (se bem que intensa) história de uma paixão
amorosa, não se resume a ela. É a quantidade de fios narrativos
incongruentes e por vezes contraditórios (e ainda mais intensas
histórias de paixões de poder, ódio, vingança, misantropia e
opressão) que Camilo sabiamente faz convergir para o triângulo
Simão-Teresa-Mariana que me leva a considerar que ler esta obra
de acordo com o género romanesco lhe faz mais justiça, pela
riqueza, pelas contradições (às vezes irresolúveis), pela
sobreposição de planos de entre os quais se destaca aquilo a que
podemos chamar, de acordo com as duas citações com que
comecei, A REVOLUÇÃO. Existe algo de mais passional do que a
paixão revolucionária?
A Revolução Francesa teve início em 1789 (e do mesmo ano é a
sua Déclaration, que acima citei). A 1.ª edição de Amor de
Perdição é de 1862. Mas a história que o romance narra é a
história da transição do Antigo para o Novo Regime, uma média
duração, tal como vista a partir de uma pequena perspetiva de
uma família portuguesa — na verdade, três famílias portuguesas
de província, tradicionais, que se veem confrontadas com
poderosos ventos de mudança. Na verdade, a história familiar nela
nuclearmente contada (embora haja remissões para factos
anteriores, todos eles significativos) começa em 1779, dez anos
antes da Revolução Francesa, ano em que casam os pais de
Simão, Domingos Botelho e D. Rita Preciosa. E cinco anos antes
da Revolução, em 1784, nasce Simão, o segundo filho do casal e
protagonista do romance. A história vem assim das raízes do
Antigo Regime, antedatando 1789. Mas todo o resto vem depois:
em 1801, Domingos Botelho é corregedor em Viseu, e começa a
paixão de ódio e vingança, insuperável; o seu primeiro filho,
Manuel, tem vinte e dois anos (as datas nunca são certas em
Camilo, mas isso que importa?), enquanto Simão tem quinze, e
estuda humanidades em Coimbra. Eis como o irmão o descreve:

O filho mais velho escreveu a seu pai queixando-se de não


poder viver com seu irmão, temeroso do génio sanguinário
dele. Conta que a cada passo se vê ameaçado na vida, porque
Simão emprega em pistolas o dinheiro dos livros, convive com
os mais famosos perturbadores da academia, e corre de noite
as ruas insultando os habitantes e provocando-os à luta com
assuadas. […]. Os quinze anos de Simão têm aparências de
vinte. É forte de compleição; belo homem com as feições de
sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo avesso em génio.
Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e companheiros.
Se D. Rita lhe censura a indigna eleição que faz, Simão zomba
das genealogias, e mormente do general Caldeirão que morreu
frito. Isto bastou para granjear a malquerença de sua mãe. O
corregedor via as coisas pelos olhos de sua mulher, e tomou
parte no desgosto dela, e na aversão ao filho. (p. 161)

Resumindo: a Revolução chegou bem cedo a Portugal, e em


1801 já ela se fazia pressentir em Coimbra e Viseu, pela mão de
Simão (e outros como ele). «Zombar das genealogias» é
compreender que houve um mundo que acabou em 1789. Visto
desta perspetiva, Amor de Perdição é um romance (não uma
novela) sobre o modo como o pós-Revolução Francesa se introduz
em Portugal e inevitavelmente o altera, através do núcleo político
que a família é e daquilo que desde logo toma a forma de uma
guerra civil (que virá efetivamente a acontecer de forma alargada,
duas décadas mais tarde, mas tem as suas raízes no período em
que esta história se desenrola, como veremos).
Como atrás referi, Cleonice Berardinelli168 interrogou-se, a
propósito de outro romance de Camilo, sobre a validade da
afirmação de que este autor teria escrito apenas novelas, para dela
se distanciar a propósito de Anátema. Podemos dizer o mesmo de
Amor de Perdição? Talvez sim e talvez não (como gostaria de
responder o próprio Camilo). Como vimos, talvez não se
considerarmos o estrito plano que nos é apresentado à boca de
cena — a história amorosa passional, restrita, de desenlace único
e melodramático (a morte em espectáculo) para todas as
personagens principais. Parece ainda ser uma novela porque o
único tempo que nos é aparentemente contado é o que
rapidamente turbilha até ao desenlace; e ainda porque, embora o
espaço mude (Lamego, Viseu, Coimbra, Porto, Lisboa, casas,
conventos e prisões, para mencionar apenas alguns desses
lugares), nenhum parece ter suficiente solidez per se.
E no entanto.
No entanto, se lermos Amor de Perdição a partir de um ângulo
mais alargado, que não prescinda da intriga de paixão amorosa
mas a ela não se restrinja, como faz Cleonice Berardinelli para
Anátema, é defensável dizer que Amor de Perdição é também um
romance. Trata-se de uma intriga de família, sabendo-se que esta
é uma das mais condensadas células sociais, simbólicas e,
sempre, políticas: um microcosmos em que todo o mundo surge
refletido. Desenrola-se num espaço com pontos apenas
designados, um espaço em que é a própria abstração alegórica
que de alguma forma nos permite nele ler uma sinédoque (e
alegoria) do Estado-Nação chamado Portugal, na transição para as
convulsões da contemporaneidade. Põe em ação um tempo
sacudido e cavalgante que deixa ver, da perspetiva mais lata, não
apenas o que aconteceu, no início do século  XIX, ao tio de Camilo,
envolvido numa teia de amores, desamores e vinganças; mas
também (e sobretudo) o que está efetivamente a acontecer em
Portugal, no período cheio de turbulências sociais que é aquele em
que a intriga tem lugar. A Amor de Perdição se poderia aplicar a
irónica autodesignação que Camilo aplica a Anátema, recordada
por Cleonice Berardinelli (p. 234). Trata-se, diz o escritor, de «uma
espécie de caranguejo literário» que, para contar o presente, vai
também ele às arrecuas até meados do século anterior, momento
em que verdadeiramente «arranca» o presente da história (e
passado de Camilo, não esqueçamos, porque é isso também que
está em jogo).
Não só Amor de Perdição é um romance, pois, mas, como
veremos, ele pertence já a um género sedimentado por alturas de
1862, quando é escrito: o romance histórico, incorporando as suas
perplexidades. Não à maneira tradicional do grande Herculano e
todos os que se lhe seguiram (mesmo Garrett, embora com
diversões). Mas um romance histórico que se propõe já como uma
«revisão» e transformação daquilo que esse género oitocentista
modelar tinha sido.
Começo por isso por esta última designação: um romance
histórico encastoa uma intriga pessoal no seio de uma ação
historicamente reconhecível. Aparentemente, nada disto acontece
em Amor de Perdição. Nenhuma das personagens tem algum tipo
de papel direto e protagonista nas lutas e turbulências históricas do
seu tempo — e vale lembrar que elas foram muitas. No entanto, e
como vimos, o romance começa (se tivermos em conta a data do
casamento dos pais de Simão, mas há datas anteriores) em 1779.
Já apontámos a razão por que isto é significativo: trata-se de
assinalar que na verdade o romance começa ANTES da grande
comoção ocidental que foi a Revolução Francesa e a consequente
queda do Antigo Regime. Não são apenas duas gerações que se
afrontam, em duas famílias. Mas duas gerações que, em duas
famílias, a do Botelho e a do Albuquerque, representam dois
tempos historicamente opostos e incompatíveis. Mas também duas
gerações que, no caso da família popular, João da Cruz e Mariana,
encontram o único lugar possível de compatibilidade. Se há paixão
amorosa não contaminada pelo poder e pela política, é a de
Mariana. Nos casos de Simão e Teresa, a paixão pode ser, como
é, amorosa, mas é também uma paixão política e de autoridade e
opressão, no sentido estrito e lato da palavra. O tempo histórico de
Simão, Teresa e Mariana é já o período pós-revolucionário, em que
tudo muda, e em que sobretudo mudam as relações de poder que
governam todas as relações sociais, bem como todas as relações
interpessoais. Apenas em João da Cruz e Mariana encontramos,
em lugar da opressão, a solidariedade e a compreensão que
permitem uma solidez familiar que em mais lado nenhum
encontramos no romance.
O que vem depois do Antigo Regime? É este o cerne histórico de
Amor de Perdição. Ora, a consciência do que «vem depois» é,
como lembrou várias vezes Manuel Gusmão, uma das formas mais
densas do devir histórico. A revolução política não é apenas um
dado exterior à ação: esta não poderia ter acontecido, como vimos,
sem aquela. A ida da fidalga, aia do paço, para Viseu é um
vislumbre do que se passava em Portugal antes da Revolução
Francesa: uma sociedade oligárquica e de poder absoluto, em que
a aristocracia (ou os que assim se queriam afirmar, como no caso)
se comportavam com arrogância de classe, manifestando o seu
poder de forma aberta, ostensiva e impune.
Se nos ficarmos por Portugal (mas nunca é possível), o que
acontece pois durante o período em que decorre a intriga
passional entre Simão, Teresa e Mariana, ou seja, entre 1801
(Simão em Coimbra e seu posterior «amansamento» de regresso a
casa), 1804 (Simão é preso aos 18 anos na Relação do Porto) e
1807 (parte para o degredo na Índia, aonde evidentemente nunca
chega)? Várias coisas, e cada uma delas coincide, singularmente,
com cada uma das datas referidas: em 1801 têm início, através da
chamada Guerra das Laranjas, as Guerras Peninsulares, em que a
França tenta, por via da Espanha, efetivamente bloquear os portos
portugueses aos britânicos; em 1804 Napoleão torna-se imperador
(embora no ano seguinte perca a importante Batalha de Trafalgar);
e em 1807 dá-se a 1.ª invasão francesa a Portugal, que determina,
nesse mesmo ano, a fuga do rei D. João VI, a sua família e a sua
corte para o Brasil. 1807 representa assim o fim de uma história, o
fim de duas histórias: a do Portugal anterior à Revolução e a
Napoleão; e a que entrelaçou, por um breve período (mas todas as
revoluções são breves) as vidas de Simão, Teresa e Mariana. O
que se passa a seguir definirá a primeira metade do século  XIX
português como um enorme período de guerra civil. Mas essa
Guerra Civil histórica é por assim dizer contada, de forma
simbólica, por tudo quanto acontece em Amor de Perdição, até
pelas datas que para seu início e fim foram escolhidas.
Aparentemente, nada disto surge explícito no drama passional a
que assistimos. No entanto, a verdade é que tudo isto é glosado e
até mesmo alegorizado na trama romanesca, que contém os
germes das «terríveis» consequências que vêm de França; da
manifestação de um vazio de poder que atinge não apenas o
centro político do país, mas todas as células sociais que compõem
a coisa pública; e das raízes de uma verdadeira guerra civil que,
alguns anos mais tarde, atirará com violência portugueses contra
portugueses, famílias contra famílias, gerações contra gerações.
O que quer dizer as simples, tão simples frases com que Teresa
responde ao pai, quando ele lhe anuncia que aquele será o dia do
seu casamento? Que querem dizer «É escusada a violência,
porque eu não caso!… (p. 195), ou «Decerto não caso; morro, e
morro contente, mas não caso» (p. 249), quando com tanta
simplicidade responde ao pai com uma vontade férrea, sinal de
que, para utilizar os termos do art.º 2 da Déclaration, sabe que lhe
é legítimo «resistir à opressão»? Nenhum argumento é tentado,
porque não é já questão argumentável. Tornou-se «apenas»
legítima.
Embora adquira neste romance proporções de grande alcance,
tal não é novidade na obra de Camilo. Grandes leitores da sua
obra, como Cleonice Berardinelli, referiram já o modo como o
alargamento do espaço em romances como Anátema «passa […]
do físico ao social» (p. 235). A obra romanesca, novelística e
contista de Camilo Castelo Branco é, na verdade, um grande
fresco social do Portugal que entra, cheio de paradoxos e
contradições, na época contemporânea, assistindo ainda ao
desaparecimento, transformação ou mesmo paródia de alguns dos
procedimentos e características definidores do Antigo Regime. As
diversas formas de violência, vingança, abuso de poder,
humilhação, insulto social e pessoal de que a obra camiliana se faz
eco representam, assim, tantos outros modos de compor o fresco
político-social que só faz sentido porque é nele que as pessoas
figuradas se movem, vivem, lutam, amam e morrem.
Por outro lado, as constantes e explícitas intervenções do autor-
Camilo em Amor de Perdição, desde o subtítulo («Memórias duma
Família» — com certeza a dele, Camilo Castelo Branco), os
prefácios (das 2.ª e 5.ª edições) e a introdução da 1.ª edição até à
efabulação propriamente dita, mais não fazem do que repetir
aquilo que muitos leitores camilianos, de Jacinto do Prado Coelho
a Maria de Lourdes Ferraz ou Maria Alzira Seixo, de Cleonice
Berardinelli a Sérgio Nazar ou Paulo Motta Oliveira, têm detetado
como decisivo na produção camiliana. Do ponto de vista que aqui
me interessa, isto pode ser descrito da seguinte forma: a existência
de um autor «intrometido», que constantemente edita, ironiza,
comenta a intriga e o que nela se passa, constrói dentro do texto
uma posição de leitura que, pelo seu afastamento temporal, marca
a distância histórica entre quem conta e aquilo que é contado. Ora,
tal posição é essencial para o romance histórico: trata-se não
apenas de contar uma história, mas de a contar a partir de um
preciso ponto histórico, textualmente marcado pela presença de
um autor que a si mesmo se inclui dentro do contado (eu, Camilo,
prisioneiro e fatal sobrinho de Simão…). Esta imersão do sujeito de
observação é, sabemo-lo, tipicamente moderna: já não existe o
«ponto de vista de Deus», exterior ao mundo. Pelo contrário, a
ironia romântica, tão bem analisada por Ferraz169, marca dentro do
texto as cesuras e continuidades do processo histórico, através
das costuras abertas explicitadas pela existência de um autor que,
longe de se esconder, se mostra. O que temos, a este respeito, em
Amor de Perdição? Temos que não se trata apenas de uma
história sobre a passagem turbulenta do final do século  XVIII para o
século XIX. Porque se trata também do sentido que esta passagem
faz, da forma como é vista, no momento (1861, quando é escrito
na Cadeia da Relação do Porto, 1862, quando é publicado) em
que o romance é autorado por alguém que a si mesmo se inscreve
com o nome de Camilo Castelo Branco.
Ora, o sentido social que essa narrativa faz é também este:
Domingos Botelho é, para todos os efeitos, um fidalgo de
linhagem, proprietário de um dos mais antigos solares de Vila Real
de Trás-os-Montes. O seu casamento com D. Rita Preciosa, em
1779, filha de um capitão de cavalos e neta de outro, socialmente
alçada (assim o acha ela) por ser aia do paço, pode considerar-se
como parodicamente típico das alianças de interesses que o
século  XVIII vê multiplicarem-se entre o que se convencionou
chamar «noblesse de robe» e «noblesse de sang». Curiosamente,
esta última, embora seja a mais antiga, é já em Amor de Perdição
pejorativamente designada como «brocas», uma alcunha pouco
dignificante. E aquela é, também já de forma paradoxal, a que
sustenta a arrogância dos novos senhores da ascensão social —
veja-se a chegada de D. Rita Preciosa a Vila Real e as arrogantes
críticas que faz ao histórico solar do marido. No entanto, nada disto
perdurará, diz Camilo. Quer os que estavam em decadência quer
os que se julgavam em ascendência serão dentro em pouco
varridos da cena social (onde, na ótica de Garrett, que sobre tudo
isto segura e profundamente pensou, em breve restariam dois
grandes grupos, os barões e os deputados, ou seja, os
administrativos e burocratas da «democracia»). Outros tempos,
outros senhores.
Na verdade, a «heterodoxia» que Cleonice Berardinelli170
reconhece em Camilo e Garrett provém do facto de que eles não
podem ser lidos fora do grande cenário social que agitou o país na
primeira metade social do século  XIX. É essa a razão do
distanciamento entre sujeito e enunciação que Berardinelli
apontava como o grande fator da heterodoxia garrettiana e
camiliana (pp. 66-7); especificamente sobre Camilo e Amor de
Perdição, fala a mesma ensaísta da rutura romanesca que, entre
outras, caracteriza esta obra camiliana (p. 72): a «perfeita adesão
do narrador ao narrado [é], na novela de Camilo […], por vezes
rompida» (p. 75). E acrescenta estas luminosas palavras: «… o
desvio do código romântico em Camilo é quase sempre justificado
pelo respeito à verdade, que o autor diz cultivar como uma religião:
entre o que o leitor espera e o que o mundo transmite […] abre-se
uma brecha onde se instaura o questionamento do instituído» (p.
75). É em nome dessa verdade pessoal, passional, política e
social171 que ambos os autores criam as suas obras primas, entre
as quais Viagens na Minha Terra e Amor de Perdição.
Tal acontece aliás não apenas a eles — e é essa uma das
razões pelas quais o Romantismo português tem sido tão mal lido:
dever-se-ia sublinhar o caso particularíssimo de Júlio Dinis, cuja
vulgata hermenêutica condenou a ser a versão «amável» da
passionalidade camiliana, em que poucos se apercebem da densa
(e violenta) crónica social em que as suas favoráveis histórias
amorosas se movem, como num palco, numa totalmente diferente
tradição literária, a anglo-saxónica, que a predominância da
tradição romanesca francesa, em Portugal, impediu que fosse
reconhecida e lida. É claro que temos Carlos e Joaninha; é claro
que temos Simão, Teresa e Mariana. Mas nem o romance de
Garrett seria possível sem o exílio, as lutas entre liberais e
absolutistas, a Guerra Civil, tão longa, e a brutal ascensão
administrativa da burguesia ao baronato e ao poder social; nem o
de Camilo seria possível sem que a grande rutura da Revolução
Francesa, das invasões francesas e das mudanças estruturais do
novo regime (que se prolonga no nosso, aliás) tivesse ocorrido.
Nunca antes nenhuma menina de quinze anos diria ao pai, com
toda a simplicidade: «Não caso».
Também, acrescente-se, nenhuma jovem como Mariana poderia
assumir a posição de dona do seu próprio destino, amoroso,
pessoal e social. Uma jovem que não «devia» ter quaisquer
pensamentos de amor acima da sua classe, e no entanto tem. Mas
que não se limita a isso. Ao assumi-los, até perante o próprio pai,
João da Cruz, este uma das personagens mais densas de todo o
romance, Mariana anuncia um novo momento histórico, em que o
cruzamento entre as classes sociais de alguma forma faz
pressentir procedimentos democráticos, com todas as suas
consequências, por vezes contraditórias. Tortuosas, talvez mesmo.
Mas não foi Tocqueville quem pristinamente viu que a «democracia
na América», ao implicar a rasura das tradicionais divisões de
classe, faria erguer dois outros pilares de igualdade e
desigualdade social, chamados competitividade e dinheiro?
Mariana é a amante impossível de 1804. Mas muitas outras
Marianas reivindicarão, no futuro (literário e social), o inalienável
direito à expressão daquilo que forem. Até, por exemplo, em
Portugal, virem a tomar o nome das «três Marias».

5.3. MIGRAÇÕES, EMIGRAÇÕES, IMIGRAÇÕES: CAMPO


E CIDADE; FORA E DENTRO

A aceleração histórica dos últimos dois séculos é também ela


potenciada por uma verdadeira revolução nas formas e nos meios
de comunicação, com as enormes consequências que, em todos
os domínios, ela arrasta na forma como as pessoas e as
comunidades se relacionam com o seu lugar de origem e com
aqueles outros lugares para que se deslocam, transitória ou
permanentemente. O que atrás analisámos, a propósito do
romance de Lobo Antunes, As Naus, é aqui também procedente: é
a tradição de sedentarismo que por um lado determina a ligação
umbilicalmente histórica do homem ao lugar ao qual se sente
pertencer; e que ao mesmo tempo determina diferentes formas de
deslocação, de que aqui nos ocuparemos. Estas alterações não
são pacíficas nem isentas de instabilidades e mesmo violências
históricas: bastará recordar, a este respeito, a forma como o
romance de Júlio Dinis A  Morgadinha dos Canaviais (1868)
escolhe como um dos seus fios de ação simbólica e politicamente
mais decisiva o processo de expropriação de terras com vista à
construção de novas vias de comunicação, num período histórico
particularmente significativo, o fontismo.
Uma das tensões contemporâneas mais marcantes, então,
reside na forma como a deslocação passou a constituir uma
alternativa, voluntária ou não, desejada ou indesejada, escolhida
ou imposta, à mera pertença a um território em que se nasceu.
Estas tensões recebem, configurações diferentes entre si, mas que
ganham em ser consideradas como cabendo em categorias afins,
se não mesmo análogas: todas elas dizem respeito a um quadro
de migração, cujas razões são entre si diferenciadas, mas que
determinam, em última análise, a necessidade de deslocação.
Pode haver razões de ordem económica, e encontramos assim as
partidas para fora do território de origem que estão na base da
tentativa de fazer e encontrar uma vida melhor; razões de ordem
política, em que radicam diferentes formas de exílio ou autoexílio;
razões de ordem simbólica, que se associam às anteriores por
exemplo no caso das deslocações relativas à Expansão. O que
aqui nos interessa, em primeiro lugar, é compreender como os
movimentos migratórios podem ocorrer no interior do mesmo país,
Portugal, sem que por isso diminua a carga de expatriamento
simbólico de trabalhadores sazonais como os ratinhos, que autores
como Alves Redol analisaram por exemplo em Gaibéus e Avieiros;
ou entre Portugal e o exterior, quer em termos de ida de dentro
para fora (exílio político e emigração por fatores económicos) quer
no seu reverso, de fora para dentro, com formas de imigração que
sobretudo na transição do século  XX para o século  XXI
determinaram a irrupção, na Literatura, de um conjunto de obras
muito significativas. Seguiremos pois, no que se segue, algumas
das conformações acima enunciadas.
Uma das grandes revoluções dos tempos modernos consiste,
como não pode deixar de ser, no agudizar do confronto (cuja
tradição literária remonta já à Antiguidade Clássica) entre campo e
cidade, entre experiência rural e experiência urbana. A distinção
entre duas formas essencialmente alheias uma à outra, dando
origem a duas formas de vivência alternativas, e que cada vez
mais se distanciarão, avoluma-se ao longo dos séculos  XIX  e  XX.
Esta é uma distinção histórica, e que como tal deve ser analisada.
Trata-se naturalmente de uma incorporação simbólica dos efeitos
da Revolução Industrial e do entendimento de que também os
objetos naturais são objetos históricos, passíveis de serem
afetados pela ação humana e pelas transformações que da sua
História decorrem. As formas artísticas e, em particular, a literatura
não ficam alheias a esta tematização. Entre outras dimensões, o
desenvolvimento do tema da paisagem na literatura reflete a
consciência de que algo se está inexoravelmente a transformar, e
de que também o espaço e a paisagem se tornam objetos cuja
precariedade e cujo carácter volátil podem ser objeto de reflexão e
representação literárias. Em vários outros lugares analisámos
demoradamente esta questão172. Limitemo-nos pois agora a
sublinhar, tendo em conta o presente volume, que a paisagem
literária constitui uma das mais interessantes manifestações da
natureza histórica do lugar, bem assim da forma como este
configura as relações do humano com o que imagina enquanto
transcendente.
A paisagem é uma forma de evidência do lugar que está longe
de se confinar a uma visão idílica dos seus componentes. A sua
fundamentação estética (e por isso histórico-cultural), enquanto
conceito, faz parte da sua mesma natureza, resultando num
complexo feixe de relações que está bem longe daquilo que no
senso comum define o carácter da paisagem como o que apenas
«está aí». Uma paisagem nunca se limita a «estar aí». Ela
constitui-se como um acontecimento que o sujeito constrói na
história. Ora, um dos (vários) paradoxos da construção da
modernidade (lato sensu) reside na irrupção da prática sistemática
da paisagem como lugar-no-mundo, como hipótese de uma
imanência. Esta simultaneidade não é, no entanto, casual. Pelo
contrário, ela exprime que a paisagem literária, surgindo de forma
consistente na literatura sobretudo a partir do século XVIII, nasce do
confronto e da consciência de que também a paisagem se perde, e
de que a intervenção irreversível do humano na natureza, a que
chamamos o Antropoceno, começa a materializar-se.
A literatura alimenta-se da paisagem no momento em que, com a
Revolução Industrial, esta parece estar irremediavelmente ferida, e
por isso em brusco desaparecimento. Tal consciência do carácter
precário da natureza, da sua historicidade (afinal humana), faz
parte da noção de paisagem e acompanha, de uma forma ou de
outra, as suas variadíssimas manifestações. Sublinhemos desde já
que tal só pode acontecer porque a paisagem é sempre
humanizada, e porque através dela se interroga o lugar do
sujeito/homem: onde, a que pertencemos? Os nossos maiores
românticos, em particular Garrett, Herculano e Antero de Quental,
exprimem já um conjunto de tensões históricas, entre idealidade e
materialidade, que muito embora expressas de formas
diferenciadas, manifestam que para todos a paisagem se torna um
lugar visível em que tais tensões se corporizam. Conventos que
dão lugar a quartéis, lugares que a Guerra Civil consumiu,
património abandonado, paisagens ermas, pátrias atraiçoadas,
exílios políticos e simbólicos: a paisagem configura, nestes
autores, um lugar histórico que está em vias de rápida
transformação e em que a perda se inscreve na construção do
elemento simbólico que a paisagem constitui.
Vimos já algumas questões que podemos considerar conexas
destas que aqui levantamos, nomeadamente as relativas à
conformação do espaço como território de pertença ou de
exclusão. Centremo-nos agora na forma como a consciência de
que se está a operar um distanciamento da ruralidade está na
base da construção de vários paradoxos modernos. Na verdade, a
irrupção e a sistematização do tema da cidade na representação
literária, cujo crescendo pode ser seguido ao longo do século  XIX,
em particular da sua segunda metade, e do século  XX, determina,
em contraponto, que a dimensão rural, campestre e campesina vá
gradualmente sendo entendida como estando em perda histórica.
O movimento do campo para a cidade, que constitui certamente a
maior alteração demográfica, política e simbólica do Portugal
moderno, descentra as relações de poder e a autorrepresentação
que o país tem de si mesmo. As raízes feudais e rurais que, como
vimos no início deste volume, Eduardo Lourenço considera, com
razão, fazerem parte da construção identitária de Portugal, tornam-
se agora objeto de reflexão e ponderação que acabam por nelas
reconhecer formas evidentes de distanciamento. O  campo pode
ser olhado como lugar de apego a um passado antimoderno,
enquanto à cidade é cometido, de forma apressada, o monopólio
da construção do contemporâneo.
Esta dimensão vai também ela desaguar em muita da inspiração
dita regionalista e mesmo neorrealista, no século  XX, desde a obra
paradigmática de Aquilino Ribeiro até à atenção etnográfica com
que escritores como Alves Redol olham para a realidade humana
que lhes cabe interrogar; ou ainda à atenção com que regiões
como o Alentejo constituem espaço geopolítico de particular relevo
para que autores como Manuel da Fonseca ou mesmo José
Saramago (Levantado do Chão) o tornem espaço romanesco de
eleição.
Deste ponto de vista, poderemos tomar a obra de Agustina
Bessa-Luís como exemplo paradigmático. A sua vasta obra oscila
exemplarmente entre a reconstituição histórica (por exemplo, o
período em torno do 25 de Abril, em romances como As Pessoas
Felizes, 1975; Crónica do Cruzado Osb., 1976, e As Fúrias, 1977),
muitas vezes de base biográfica (Adivinhas de Pedro e Inês, 1983;
Florbela Espanca, 1979), por um lado; e por outro lado a reflexão,
de recorte amplamente aforístico, sobre as bases da identidade
portuguesa e das marcas que a sua ruralidade histórica e mítica foi
construindo. No tocante a estas questões, vários romances
poderiam ser referidos, mas fiquemo-nos por aquele que sem
dúvida representa, no interior da longa obra agustiniana, um caso
maior: o romance A Sibila (1954). Este romance, escrito e
publicado num momento (meados da década de 1950) em que a
cena literária portuguesa se encontrava sobretudo espartilhada
pelo debate entre os dois movimentos maiores do neorrealismo,
por um lado, e os escritores pertencentes à geração da Presença
(com particular destaque para José Régio), por outro, desloca a
predominância romanesca da inscrição da realidade social ou da
realidade psicológica para uma diferente dimensão, em que a
identidade de uma pátria rural e histórica é combinada com a
dimensão mítica que introduz uma diferente visão da História. O
campo configurado neste romance, e em outros da mesma autora,
surge como uma talvez derradeira instância de representações
provenientes daquela já longa tradição exemplarmente
manifestada por Camilo Castelo Branco, como atrás vimos. Trata-
se de uma representação eivada de demarcações de pequenos
territórios de poder que passam já, em Agustina, pela
diferenciação de géneros e pelos novos papéis que socialmente
começam a ser reconhecidos à mulher.
Mas podemos encontrar na sua linhagem também a tradição de
vários romances realistas e naturalistas, como entre outros de Eça
de Queirós (A Ilustra Casa de Ramires, 1900, A  Cidade e as
Serras, 1901) ou Teixeira de Queirós (a série que constitui a sua
Comédia do Campo é particularmente significativa, bem como o
volume de contos intitulado Os Arvoredos, 1895). Nestas
narrativas, o curioso é que é já projetado um campo que pode ser
entendido, na esteira do que tinha exemplarmente proposto Júlio
Dinis em meados do século  XIX (As  Pupilas do Senhor Reitor,
1869; A Morgadinha dos Canaviais; Os Fidalgos da Casa
Mourisca, 1871), como lugar de regeneração moral e social, lugar
onde os desvios civilizacionais manifestados em primeira instância
na cidade poderiam vir a ser corrigidos. Os protagonistas são,
assim, confrontados com opções entre campo e cidade que de
algum modo começam a reconhecer, nesta última, a forma como o
Progresso não constitui um processo de aquisições sem manchas
nem contrapartidas.
Em última instância, todos falam de um país que está a deixar de
haver, e de uma modernização urbana que não é necessariamente
em si mesmo emancipadora. O campo é projetado como uma
forma de tomar consciência das tensões que estão no cerne da
própria contemporaneidade: ora lugar de representação histórica,
ora sítio em que a paisagem e a sua desagregação se manifestam,
ora forma de representar as complexas opções que as vivências
campestres, por um lado, e as vivências urbanas, por outro,
determinam. O país moderno está a caminho: as formas que o
trazem não são entretanto pacíficas, nem o seu resultado
pacificador.
Relacionadas com esta dimensão, encontramos diferentes
formas de reflexão sobre o tema da emigração, do exílio e da
imigração. O exílio determinou no nosso Romantismo obras
maiores de escritores como Garrett e Herculano, que devido às
suas opções políticas em favor do Liberalismo sofreram ambos
períodos relativamente longos de exílio em França e Inglaterra, e
dele deram conta em obras decisivas (Camões de Garrett; «De
Jersey a Granville», de Herculano). E o mesmo exílio vai encontrar
no século  XX contrapartidas muito significativas, com particular
destaque para a obra do escritor Manuel Alegre (por exemplo
Praça da Canção, 1965, e O Canto e as Armas, 1967), que na sua
poesia tematizou de forma intensa a realidade e as consequências
políticas e simbólicas da expulsão do seu país por razões políticas,
de dissensão relativamente à ditadura e à realidade da guerra
colonial.
Já na primeira metade do século  XX, e no que diz respeito ao
tópico da emigração, talvez a obra mais imediatamente
representativa seja o romance de Ferreira de Castro, Emigrantes
(1928), que herda um legado oitocentista particularmente
representado na narrativa camiliana (a da emigração de
portugueses para o Brasil) para encontrar, já no século  XX, o ponto
de vista alternativo daquele que se viu forçado a partir; aqui, já não
é tanto a figura do «torna-viagem», percebida pelos que ficaram,
que conta mas, pelo contrário, os que partiram e foram encontrar,
longe, desafios e dificuldades muitas vezes inesperados. O  início
do romance pode ser considerado como uma síntese simbólica
daquilo que nele se joga: «Os  homens transitam do Norte para o
Sul, de Leste para Oeste, de país para país, em busca de pão e de
um futuro melhor». E este romance, que afinal pode considerar-se
peça fundamental na corrente que viria a ligar o realismo ao
neorrealismo, dá precisamente conta deste trânsito que
personagens como o protagonista, Manuel Bouça, têm
necessariamente de realizar, a fim de que o seu sonho de um
«futuro melhor» se torne possível. Este romance pode, ainda,
considerar-se como representação antecipatória da realidade de
emigração que as décadas de 1960 e 1970 viram surgir em
Portugal, país que até à entrada de Portugal na Comunidade
Europeia viu justamente na emigração talvez a forma mais
simples, se bem que dolorosa, de ascensão social.
Os fenómenos migratórios conhecem entretanto em Portugal, no
final do século  XX, uma curiosa inversão (ou complexificação), por
razões históricas e políticas que o transformam de país de
emigrantes em país também de imigrantes. Esta diferente
realidade migratória traz consigo questões identitárias, tanto a
nível individual como a nível social e de comunidade. Porque um
país que a si mesmo se continua a pensar a partir de realidades-
outras, dos que partem e dos que chegam, é um país que
permanentemente se configura a partir de uma representação de si
que integra, sobretudo, as noções de instabilidade e mesmo
perturbação. E se os que partiram o fizeram por perdas, lutas ou
fugas, também os que entraram trouxeram consigo idênticas
perturbações. Será esta questão que de seguida abordaremos.

5.3.1. A DINÂMICA HISTÓRICA COMO PERTURBAÇÃO:


MARIA VELHO DA COSTA. MÁRIO CLÁUDIO

Uma das obras que, a nosso ver, exemplarmente configura esta


realidade simultaneamente histórica e simbólica é a de Maria Velho
da Costa, atenta à construção de uma sociedade complexa e
internamente diferenciada, uma visão de Portugal não como uma
identidade homogénea mas como um conjunto de elementos entre
si diferentes e «esquinados». Trata-se também, e não é demais
sublinhá-lo, da construção de um reconhecimento cosmopolita do
país e das suas gentes, afastado dos estereótipos de uma tradição
única que descreveria igualmente todos os Portugueses. Maria
Velho da Costa pertence à família de escritores que sabem que,
debaixo da crosta aparentemente sólida e estável do mundo,
vibram forças que sacodem as vidas dos homens. Alguns destes
apercebem-se delas. Não serão certamente os mais felizes, mas
são entretanto aqueles que preferencialmente moram na ficção
desta escritora e cujas vozes nos vão falando, historicamente
inscritas. Este é um ponto que importa sublinhar desde o início: de
uma forma ou de outra, todas as obras de Maria Velho da Costa
ressoam num mundo histórico que se dá a ver, e fazem-no ressoar
através de perturbações que são simultaneamente ficcionais e
mais amplamente humanas.
Importa pois reconhecer para já que os contextos reconhecíveis
nas obras (do século XIX de Madame, 1999, criando o diálogo entre
as personagens femininas de Eça e Machado de Assis, até ao
início do século XXI, com «o meio» literário e cultural que se agita e
é percorrido em O Livro do Meio, 2006, escrito em colaboração
com Armando Silva Carvalho, passando pela Revolução dos
Cravos ou a invasão de Timor) fazem parte integrante daquilo que
é escrito. Mais do que cenários, são elementos centrais da obra. A
história é, assim, um elemento-chave da efabulação de Maria
Velho da Costa, vista através dos modos diferenciados como se
figura nas vidas dos humanos. Crianças, mulheres, mestiços,
famílias, noites/madrugadas, revoluções e invasões, infâncias e
sacrifícios, imigrantes — todos eles conhecerão um instante de
explosão na história, que a ficção inscreve e que a obra de Maria
Velho da Costa nos vai fazendo ler.
O mundo que se agita nesta obra, como vimos extensa e
multiforme, é um mundo dilacerado por movimentos de pendor
aparentemente contrário, que definem as relações das
personagens fundamentalmente como perturbadoras e instáveis,
várias vezes mesmo de uma ambiguidade que se caracteriza como
irresolúvel: dilacerado entre o que converge para um centro por
vezes obscuro de onde tudo parece dimanar (como Timor, em
Missa in Albis, 1988, ou o lado noturno da cidade, em Irene ou O
Contrato Social, 2000) e o que manifesta, de modo igualmente
intenso, uma força centrífuga e divergente; entre o que parece ser
fechado e o que surge animado de movimentos em direção a
aberturas e cruzamentos o mais das vezes inopinados e
imprevisíveis; entre algumas das esperanças que escrevem as
várias «madrugadas» (para citar o título de um dos capítulos de
Lucialima, 1983) que as cenas pessoais e sociais julgam poder
antever (como o Sul e o Sol desejados por Myra, no romance com
o mesmo título, Myra, 2008) e as também não menos evidentes
desesperanças e os refluxos que esses movimentos patenteiam.
Serão algumas destas agitações que, de forma necessariamente
breve, aqui seguiremos no universo efabulatório de Maria Velho da
Costa, embora acrescentemos desde já que elas se encontram
também no centro dessa obra inusual que é O Livro do Meio, livro
de memórias e reflexão pessoal em que Maria Velho da Costa e
Armando Silva Carvalho colaboram, voltando ao passado de
ambos e interrogando o dia do presente e as suas personagens,
por vezes cruamente dissecadas.
Uma das formas que essa agitação pode tomar é a que poderá
aqui ser entendida sob a designação genérica de clausura,
conceito que colocamos na esteira de algumas das tradições
romanescas mais fortes da literatura portuguesa, nomeadamente
de Almeida Garrett e Camilo Castelo Branco (ambos autores sobre
quem Maria Velho da Costa também aliás trabalhou, não
certamente por acaso). Na realidade, encontramo-nos de certa
forma sempre perante «mundos clausos», famílias (também elas
mutantes, mas não é a própria família tradicional que está em
mutação?), núcleos triádicos como o composto pelo universo
concentracionário de Irene, Lia e Raquel em Irene…, ou aquela
outra tríade composta pelas personagens femininas de Elisa, Mary
e Elvira, encontrada na «Terça Casa» do romance Casas Pardas
(1977). Trata-se de algum modo do reconhecimento de mistérios
normalmente nunca de facto completamente desvendados, como o
que caracteriza, paradigmaticamente, Missa in Albis, em torno da
personagem Sara, ou aqueloutro que junta, no romance Myra, a
personagem do mesmo nome, imigrante do Leste em Portugal, e o
seu cão de combate, Rambo, na peregrinação em direção ao Sul
que a ambos une.
Assim, estes mundos clausos são, já não os lugares estáveis
que uma certa ideologia neles tinha implantado, mas, pelo
contrário, o lugar da manifestação mais intensa de dúvidas e
incertezas, rede de vozes e versões contraditórias, diálogo feito
pela justaposição de aparentes monólogos que se somam mas
também colidem entre si.
Chegamos assim a um dos termos que consideramos centrais
para a obra de Maria Velho da Costa: o termo colisão, que
julgamos poder corresponder ao modo simultaneamente plural e
agitado pelo qual a forma «romance» é aqui praticada. Poderíamos
dizer o mesmo, aliás, de outras formas utilizadas por esta
escritora, com particular destaque para o conto (Os Amantes do
Crato, 2002, ou Dores, 1994) e para o teatro (Madame). Trata-se,
em todas elas, de assistir ao encontro e choque perturbador de
algumas cenas de vida, tocadas pelo desencanto do passado (a
infância, como em O Livro do Meio) ou do futuro (negado, como
em Irene ou O Contrato Social, ou em Myra). Trata-se pois de uma
colisão como quando se diz, em química, que as partículas
colidem entre si para simultaneamente se destruírem e criarem
algo de novo — mas também de obscuro, porque inquieto. E para
ela a imagem talvez mais intensa seja a da «Casa Branca» que no
romance Myra por alguns breves instantes faz viver em
comunidade um grupo de indivíduos das mais diferentes
nacionalidades, que a história fez aportar ao Alentejo, em Portugal:
uma comunidade cosmopolita, desse novo cosmopolitismo a que
um crítico brasileiro, Silviano Santiago, chamou «o cosmopolitismo
do pobre»173, e que coincide com todas as formas que os
movimentos migratórios por exemplo de refugiados, por razões de
ordem política, humanitária, ou ideológica, vieram tomando.
Esta dimensão caótica do que de novo surge parece ser o lado
pelo qual a efabulação é proposta, por Maria Velho da Costa, como
simultaneamente realista e visionária. É este um ponto a sublinhar:
no espaço de uma ficção que diríamos pertencer grosso modo ao
universo realista (e, como vimos, fortemente histórico), irrompem
de modos diversos balbuciamentos do imaginário, do inconsciente,
da fantasia ou do fantasma. Por isso, personagens como Irene e
Orlando, ou Elvira e Mary, Myra e Rambo, são faces diferentes da
mesma história que se escreve, encontram-se num mesmo
momento vindo de trajetórias diferentes, colidem com diversos
passados e desejos de futuro, e desses encontros nascem vozes
que, sendo realistas, assumem por vezes contornos fantásticos,
nomeadamente pelo intenso trabalho que em torno do discurso
pessoal e especificamente interior Maria Velho da Costa realiza.
Essa experiência de des-realização da linguagem, deixando-a
permeável às forças contraditórias e inexplicáveis do inconsciente,
atravessa muito especialmente livros como Casas Pardas e
Irene…, manifestando neles a forma como a matéria verbal ganha
densidade e se altera, no cruzamento de vozes diferentes, naquilo
que um verdadeiro diálogo é: não o encontro do semelhante, mas
a exposição do dissonante. A  polifonia que mora, como pulsão e
realidade, na obra desta escritora é o núcleo do que faz cruzar
mundos diferentes de que as personagens provêm.
Por outro lado, de tudo isto decorre uma outra questão: o
carácter singular e até várias vezes paradigmático da fábula
construída dentro do universo narrativo. No entanto, e
simultaneamente, porque é paradigmática, essa fábula encontra de
forma imediata modos de conivência com o carácter comum que
nela reconhecemos também — e que faz com que nela sejam
reconhecíveis uma estratégia social e uma imersão comunitária.
Em Das Áfricas (1991), Maria Velho da Costa sublinha, em
determinado momento, o duplo sentido do adjetivo «comum»,
como por um lado o que se enraíza no quotidiano e dele parte, e
por outro como o que pertence a uma comunidade. Esta
observação poderia dizer-se válida, precisamente, para o conjunto
da sua obra. Aquilo que acontece é duplamente «comum», em
ambos os sentidos que Maria Velho da Costa refere.
Entretanto, se as fábulas são sobre pessoas individuais, ditas
personagens, e não sobre alegorias desencarnadas, o certo é que
uma determinada forma de mediação alegórica, ao modo do que
Baudelaire inaugurou para a modernidade, me parece igualmente
visível em toda a ficção de Maria Velho da Costa. É por essa
mediação alegórica que tais fábulas pessoais ressoam, em
círculos concêntricos que se expandem, em direção a
procedimentos e problemas sociais: problemas de classe,
problemas políticos, problemas de discriminação, sobretudo
problemas de desamparo e de vulnerabilidade — reconhecimento
de margens e lugares periféricos como o da criança na sociedade
pensada pelos adultos (Lucialima); da imigrante que julgou poder
acreditar no futuro (Myra); do negro ou mulato num mundo de
brancos (Irene…); da mulher nas redes e vozes masculinas (Maina
Mendes, 1969; Novas Cartas Portuguesas, 1972; Casas Pardas);
da demência (Irene…). O sujeito vulnerável que atravessa a obra
desta autora, e que tão diversamente se configura nela, arrasta-se
na História, dela participa, nela tem um papel manifesto, como voz
pessoal dessa grande voz social de que todos participamos. E, no
entanto, essa voz pessoal é uma espécie de combate na História
porque, no palco dos grandes acontecimentos sociais que se
agitam (a Revolução de 1974, a invasão de Timor, a descoberta de
Portugal como país de imigração infeliz), as personagens que
falam dizem, também, a sua própria história pessoal, de
incompreensão e abandono.
Uma outra forma de «perturbar» a História, de forma consistente
e duradoura, é a constante revisão e reescrita levada a cabo por
Mário Cláudio ao longo da sua obra. Referimos já o romance Os
Naufrágios de Camões, ousada efabulação paralela à que afeta a
história/o mito shakespeariano, ao pretender transpor para o
contexto d’Os Lusíadas a dúvida (metódica) sobre a autoria
camoniana do Poema. Mas este romance é apenas um dos vários
que, de forma mais ou menos perturbadora da História, preside às
suas muitas biografias ficcionadas, fazendo com que da leitura de
algumas fique a dúvida, expressa por alguma crítica, sobre a
efetiva existência ou não daquele que é apresentado como seu
autor (naturalmente, ponto de chegada do topos do manuscrito
encontrado, embora levado até às suas últimas consequências,
isto é, à proposta de que mais de um terço da epopeia é de um
autor-outro que não Camões, sendo por isso apócrifa).
Não é este o caso de biografias ficcionadas como as de
Guilhermina Suggia, Amadeo, Rosa Ramalho ou Goya, que no
entanto assumem de forma direta o seu carácter biográfico e os
contextos temporais e históricos que são uma das suas
características. Porém, além das biografias ficcionadas de
indivíduos, como os atrás mencionados, Mário Cláudio leva a
ficção biográfica à sua própria história familiar, com a trilogia
composta por A Quinta das Virtudes, Tocata para Dois Clarins e O
Pórtico da Glória, poderoso documento sobre uma história familiar
num Portugal sempre em busca de raízes e características muitas
vezes justamente ficcionadas. Trata-se do «sangue da tribo», uma
«tribo» nortenha que pode ser considerada como um microcosmo
da história da nação. E um mundo que, no seu enclausuramento,
reflete todas as transformações a dar-se, em ponto grande, na
história de Portugal e do mundo.
O peculiar e sempre autorreflexivo (e irónico) cruzamento entre
ficção e História faz da obra deste escritor maior um painel da
cidade do Porto e das suas personagens e elementos
característicos, com a entrada em cena de emigrantes, dos passos
dados em direção à industrialização, da mescla entre classes
diferentes — da qual surgiria o «cronista» familiar Mário Cláudio.
De alguma forma, poderíamos fazer um paralelo entre Mário
Cláudio e Camilo Castelo Branco — pela atenção de ambos às
peculiaridades do micropoder e dos universos miniaturais em que
podemos sentir os movimentos transformadores da dinâmica
histórica mais lata. Da sua inspiração romanesca da Expansão
(que não se resume a Os Naufrágios de Camões) até às suas
efabulações entre ficção e realidade, crónica histórica e invenção,
fica-nos um universo de enorme consistência e interesse, uma
leitura que dá conta de um processo de procura de identidades,
pessoais e históricas que, apesar de se anteverem já como
perdidas, não deixam de fazer sentido como «inquérito» que o
escritor pode conduzir. E esse escritor recebe nomes (ficcionais ou
quase não) diversos, outras tantas formas de ironizar com a
História e a forma como um escritor o é sempre no seu tempo e no
tempo dos outros: Miguel Veiga, Timothy Rasmussen, Robert
Burton, Ruy. Outros tantos nomes para dar a ver a forma como
História e ficção se cruzam, embora de forma desassossegadora.
Em Mário Cláudio, como em Lobo Antunes ou Maria Velho da
Costa, Portugal enquanto identidade autoevidente desaparece
dentro dos buracos da História. Pode-se interrogá-lo — é também
esse o efeito da ficção, comum ao efeito da História.

5.4. A EMANCIPAÇÃO FEMININA E OUTRAS FORMAS DE


CIDADANIA. O POETA NA CIDADE

Uma das transformações históricas mais poderosas da


contemporaneidade é a que consiste na progressiva construção do
acesso da mulher à cena social, aos direitos individuais e à voz
pessoal e coletiva. Sabemos que, do ponto de vista político e
social, tal construção foi gradual e pontuada por etapas penosas e
difíceis, até à afirmação da mulher como cidadã de pleno direito.
Embora tal ocorra apenas no decurso do século  XX, e no caso
português bem tarde no século, já depois da revolução de 1974, o
certo é que não é possível ignorar o quanto tal caminho foi
longamente preparado já a partir do século XIX.
A Literatura dá conta desse processo, quando descreve as
malhas que prendem a mulher em teias que a coartam, quando de
uma forma ou de outra dá conta da desigualdade de direitos e da
injustiça que a afetam, e ainda quando ativamente toma posição a
favor da aquisição desses direitos que lhe eram negados, e que
podem ir desde o direito dos afetos até ao direito ao trabalho,
passando pelo direito de exercer livremente e de forma plena a sua
cidadania.
Como dissemos, é no século  XIX que podemos encontrar a
expressão clara das primeiras formas de consciência do quanto
tudo está a mudar no tocante à representação da figura feminina e
na progressiva obtenção de uma voz pessoal que lhe pertence e
que ela assume. Consideremos por exemplo o que acontece numa
obra tão paradigmática como Amor de Perdição (1862), de Camilo
Castelo Branco. Como vimos, a obra camiliana em geral pode ser
considerada como um vasto políptico das profundas alterações
sociais e individuais que ocorrem na sociedade portuguesa, depois
da queda do Antigo Regime e à entrada na sociedade
contemporânea. Deste ponto de vista, poderíamos dizer que toda a
obra camiliana é intensamente política, além de intrinsecamente
histórica. Mas uma obra como Amor de Perdição, que é lida, e
bem, como uma novela passional, pode iluminar aspetos decisivos
a este respeito, como atrás vimos. Trata-se de uma novela sobre
os direitos do amor, situada numa época histórica (final do
século  XVIII e início do XIX, convém lembrar) em que a afirmação
política do indivíduo e dos seus direitos era tudo menos evidente.
A narrativa tem início em 1779: dez anos antes da Revolução
Francesa, a que aliás se não alude diretamente, mas cuja
presença enforma toda a efabulação. A dimensão de revolta, que é
desde logo uma instância exemplar daquilo a que viria a chamar-
se o conflito de gerações, não fica todavia restrita a Simão. As
duas personagens femininas principais que com ele formam par
(na verdade trio), Teresa e Mariana, participam ambas de um ethos
de afirmação individual que se exprime igualmente para homens
(Simão) e mulheres (Teresa e Mariana). A revolta contra os pais,
que é como quem diz a revolta contra a prepotência e o
autoritarismo, é partilhada por Simão e por Teresa nas suas
relações com os pais respetivos. A afirmação de uma identidade e
de uma vontade próprias, no tocante às opções amorosas e, de
forma mais lata, às opções de vida, é vivida igualmente por ambos,
sem distinção entre protagonismos (se os houvesse, deveríamos
aliás dizer que, no par central, é Teresa quem se distingue, mais
do que Simão). Mas talvez a figura feminina que do conjunto se
destaque, nesta novela, seja Mariana, que aliás protagoniza não
apenas uma relação amorosa total com Simão (não precisa de
haver relação física para que se perceba que ela faz parte
integrante do amor de Mariana por Simão), mas também uma
relação filial alternativa à que os dois outros protagonistas
exemplificam. É tocante a forma como João da Cruz percebe tudo
o que não diz, mas aceita, até ao limite: a ideia de que pertence à
filha decidir o seu destino e viver a vida de acordo com as opções
que entender fazer. Quer Teresa quer Mariana, nesta novela,
representam literariamente o reconhecimento de que muito estava
efetivamente a mudar e que, de forma pacífica ou não, a mulher
começava a emergir de um longo período de apagamento
individual, social e histórico.
Não espanta por isso perceber que, sobretudo a partir da
segunda metade do século  XIX, comece a aceder à representação
literária um conjunto de personagens femininas que até aí dela
tinham estado completamente arredadas. Um dos modos pelos
quais essa dimensão surge é através da representação do
universo do trabalho feminino, que dá conta de quanto a
construção da sociedade contemporânea depende da alteração
das relações de trabalho tradicionais e do acesso a muitas
profissões por parte de mulheres, naturalmente de classes baixas
(pressupondo-se que a afirmação da burguesia assentaria na
manutenção da mulher no espaço privado da família e na
consequente reserva do espaço público ao homem). Aparecem
assim as costureiras e as «mulheres mantidas» camilianas; as
criadas, as prostitutas e as «demi-mondaines» de Eça; as
engomadeiras, as vendedoras de hortaliça, as peixeiras e as
varinas de Cesário; as vendedoras de flores, de Gomes Leal. Toda
uma população feminina ligada já preferencialmente ao espaço
urbano e às relações de trabalho que ele potencia, e que mais
tarde encontrarão novas conformações em torno por exemplo de
figuras como as mulheres operárias ou as laboralmente ativas na
parceria com os seus maridos, como acontece frequentemente na
narrativa neorrealista (em particular Alves Redol e Manuel da
Fonseca).
Por outro lado, multiplicam-se as representações femininas em
que a mulher, além de ser objeto amoroso e erótico, passa a ser
sujeito dos seus próprios afetos, desejos e pulsões. Esta
afirmação, que na poesia muito deve à epifania das passantes
citadinas, gloriosas mas distantes e frias, que Baudelaire tinha
definitivamente importado para o centro da representação poética,
conhece na lírica do último quartel do século  XIX dois lugares de
eleição, com os nomes de Gomes Leal e de Cesário Verde. As
«lúbricas», «esplêndidas» e sensuais mulheres, que
constantemente atravessam o imaginário erótico destes dois
poetas, vêm acima de tudo significar que a elas não é apenas
cometido o papel de se guardarem passivamente ao olhar
masculino. Pelo contrário, a afirmação física que elas
protagonizam manifesta já o modo como se apresentam enquanto
sujeito ativo na relação amorosa, que aliás acaba por levar a
configurar, em ambos os poetas, o sujeito masculino como um
sujeito potencialmente fragilizado. É esse o sentido de um poema
como «A Débil», de Cesário Verde, em que todo o poema
contradiz a inferência passível de ser lida a partir do título: se
alguém é débil, nesse poema, é o homem que, refugiado dentro de
um café, e bebendo cálices de absinto, observa a jovem mulher
que atravessa a praça e ousa confrontar-se com o que de vida
nessa praça se agita. Um passo mais e teremos uma
representação literária da figura feminina que, na esteira do
Decadentismo, insiste num imaginário erótico muitas vezes
baseado na perversão protagonizada pela figura da mulher. Paula
Morão174 tem a este respeito um interessante estudo, centrado em
torno da figura de Salomé e da sua fortuna poética, mostrando
como aquilo a que chama «o feminino perverso» ocupa, na poesia
finissecular e até à eclosão dos modernismos, um lugar central.
Isto não acontece por acaso. A «perversidade feminina»
representa, afinal, as ansiedades masculinas em torno da
revolução no tocante aos papéis tradicionais aceites para a mulher
e para o homem. Trata-se, assim, de uma perversidade histórica,
afim de outras representações que enviesadamente manifestam
algumas das principais transformações sociais e individuais.
No final do primeiro quartel do século  XX, começamos entretanto
a encontrar o acesso mais direto da voz feminina, e de uma voz
feminina que assume a sua afirmação de género, à expressão
literária. Várias autoras dão passos importantes na conformação
de uma voz autoral que explicita a sua condição feminina. Mas
talvez poucas tenham, na altura, assumido a sua condição de uma
forma levada tão ao limite como Florbela Espanca, com o
aparecimento meteórico e intenso que, afinal, lhe garantiu um lugar
não apenas enquanto poeta mas também como figura
paradigmática de um certo imaginário (por vezes quase mítico)
feminino levado até ao impossível. A interpretação de Florbela
enquanto sujeito agente na cena literária portuguesa das primeiras
décadas do século  XX, e ainda enquanto autora de poesia vibrante
(Livro de Sóror Saudade, 1923¸Charneca em Flor, 1931) tem sido
sujeita a avaliações muito diversas. Mas hoje, praticamente cem
anos depois da sua aparição literária (em 1919, com Livro de
Mágoas), estaremos em condições de compreender que algumas
razões do mal-estar contemporâneo na perceção do seu valor
literário derivam fundamentalmente de duas diferentes questões:
por um lado, a mulher-Florbela incomoda os seus pares, numa
sociedade ainda fortemente masculinizada, porque justamente
expõe, vive e tematiza todas as tensões derivadas da assunção de
um protagonismo afetivo e erótico; por outro lado, a escritora-
Florbela escreve a contra-corrente relativamente aos grandes
princípios da vulgata modernista, que se reconhece sobretudo em
processos de des-realização que são, afinal, processos de
despersonalização. Ora, a persona de Florbela está toda ela
integralmente nos versos que escreve, sem mitigar a sua condição.
Dir-se-ia que Florbela encontra uma voz feminina que, por muito
poucas vezes antes ter podido exprimir-se como pessoa,
dificilmente poderia encontrar no processo de despersonalização
um procedimento de referência.
Deste modo, a distância que ela parece exprimir relativamente
aos processos canónicos do Modernismo pode então ser lida como
o resultado de uma diferente inscrição histórica da voz feminina na
cadeia dos discursos, nomeadamente os literários. Podemos,
entretanto, acrescentar a isto uma outra dimensão, que julgamos
ter como efeito a possibilidade de reler e reavaliar o contributo
literário de Florbela no quadro das representações literárias da
primeira parte do século  XX. Na realidade, a extremosidade (que o
grande estudioso do Barroco, José Augusto Maravall175,
considerava ser a característica decisiva desse período literário e
artístico), a escassez ou a exuberância levadas ao limite, e
exprimindo-se respetivamente quer pela depuração quer pela
acumulação, parece-nos poder ser encontrada na posição afinal
modernista que Florbela adota: a criação e sobre-exposição de
uma máscara modernista, à la Álvaro de Campos, baseada na
intensidade e na autoironia; a reflexão sobre o lugar e o papel da
mulher numa sociedade fortemente agarrada a estereótipos
sexuais; em suma, a manifestação de uma persona que, de tão
intensa, acaba por se resolver em figurações derrisórias de um
sujeito bem próximo afinal de outras manifestações masculinas
suas aparentadas, como as de António Nobre e, muito em
especial, Mário de Sá-Carneiro. A poesia de Florbela Espanca é
um lugar-chave para entendermos as tensões históricas que se
revelam em torno das profundas alterações na representação e na
expressão da figura feminina, nos alvores do século  XX. Nela não
figuram menos «máscaras» de si do que em autores como Sá-
Carneiro. Simplesmente, a leitura histórica de autoras femininas
torna mais difícil encontrar na poesia de Florbela o circo do eu que
o Modernismo de várias formas encenou.
Outras figuras, ao longo do século  XX, colaboram no sentido de
oferecer uma entrada das vozes, interesses e expressões do
feminino ao universo literário. Recordemos, neste contexto,
aproximações entre si tão diferenciadas como as de Irene Lisboa
(com o sustentado reforço da autonomia pessoal; com a ação
empenhada, como professora e sobretudo como cidadã); de
Natália Correia (o desafio ao modo florbeliano de uma sociedade
fechada; a intervenção política; a assunção de um ponto de vista
feminino sobre a vida e sobre os acontecimentos pessoais e
sociais); e, já na parte final do século, de Maria Velho da Costa,
Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno, com o decisivo título
Novas Cartas Portuguesas (1972). Neste volume, a vários títulos
disruptor, encontramos a declarada revolta contra os códigos e a
moralidade considerada «legal», que desencadeou um polémico
processo em tribunal. Nele acabou por dar-se a súbita e explícita
manifestação de uma consciência feminina e de um corpo
feminino: uma nova sexualidade e uma nova vivência a dois. E
essa manifestação exprimia, afinal, o papel mobilizador da
consciência e da intervenção femininas na próxima queda do
regime.
Mais perto de nós, reforcemos a importância que a centralidade
na figura feminina veio progressivamente ganhando, em obras de
algumas das maiores escritoras da nossa literatura, que de forma
sustentada se ocupam em dar protagonismo e voz às tensões
históricas conformadas em torno da mulher e dos seus papéis
diferentes na sociedade contemporânea. Em forma de desengano,
falando da mulher num tempo parado de que parece não haver
saída, sublinhemos a narrativa da escritora maior que é Maria
Judite de Carvalho (Tanta Gente, Mariana¸1959, Palavras
Poupadas, 1961, ou Seta Despedida, 1995), com os seus
romances e contos de figuras desamparadas. Em forma de
intensidade, sobressai a obra de Hélia Correia, que em todos os
seus romances (por exemplo Montedemo, 1983, Lilias Fraser,
2001, ou Insânia, 1996) e também na sua obra dramática (por
exemplo Rancor, 2000, ou Florbela, 1991) escolhe figuras
femininas espessas (como Lilias Fraser, Helena de Tróia, ou
Medeia) para em torno delas construir a efabulação. A este
respeito poderemos dar destaque à forma como a figura e a voz de
Florbela são por ela aproveitadas para encenar as tensões e as
aporias da figura feminina no quadro da História, encontrando aliás
nesta escolha uma sua outra parente, Agustina Bessa-Luís, que
igualmente recupera a figura de Florbela na biografia do mesmo
nome, publicada em 1979. Entretanto, da mesma Agustina
recordemos a densidade de algumas das protagonistas da sua
vasta obra romanesca, com particular destaque para as figuras de
Quina e Germa do seu romance, já atrás mencionado, A Sibila,
mas igualmente Fanny Owen (romance do mesmo título, 1979) ou
Eugénia e Silvina (1989). Finalmente, refira-se a decisiva
importância, neste contexto, da obra narrativa e dramática de
Maria Velho da Costa, que atrás analisámos já, e ainda da poesia
empenhada e assumida de Maria Teresa Horta. Todas estas vozes
se podem considerar como as construtoras de uma forte tradição
da poesia feminina e feminista, em Portugal, de que hoje em dia se
destacam os nomes de Adília Lopes e, em especial, Ana Luísa
Amaral.
Finalmente, recordemos a forma como a assunção da voz
feminina se encontra imediatamente associada, em numerosas
escritoras, com a possibilidade de escrever ou de pensar sobre a
Revolução. O 25 de Abril de 1974 representou para todas elas,
afinal, um momento de decisiva transformação histórica, não
apenas por abrir as portas a uma participação cívica democrática
mas porque inapelavelmente implicou o fim de discriminações
insustentáveis no exercício mais amplo da cidadania. Não espanta
por isso que a forma como a Revolução ecoou na poesia (Sophia
de Mello Breyner Andresen, Natália Correia, Luiza Neto Jorge,
Fiama Hasse Pais Brandão) e na narrativa (Maria Velho da Costa,
Eduarda Dionísio, Agustina Bessa-Luís, Lídia Jorge) de autoria
feminina tenha sido determinante para configurar uma diferente
expressão da perspetiva da mulher sobre a História que lhe foi
dado viver. A este respeito, são extremamente interessantes as
reflexões expendidas por Isabel Pires de Lima176, mostrando como
o acesso a uma voz mais densa e sustentada constituiu uma forma
de responder à «perspetiva falocêntrica […] forte e
esmagadoramente dominante nos discursos» (p. 325), cuja
manifestação não pode passar desconhecida.
De um certo ponto de vista, pois, esta reflexão feminina pode
dizer-se responder, de forma muito ativa, àquela outra interrogação
que coloca o poeta dentro da sua cidade, e o implica nela de forma
inalienável. A literatura continua a surgir, no século  XX, como uma
habitação do mundo — uma habitação decididamente histórica, em
que se trata de interrogar as condições dessa vida (histórica,
simbólica e imaginária). Basta pensarmos em poetas como Jorge
de Sena (entre muitos outros poemas, a sua extraordinária «Carta
a Meus Filhos sobre os Fuzilamentos de Goya»), Sophia (o
«tempo dividido» anterior à Revolução, ou o poema anunciando o
«dia inicial, inteiro e limpo» depois do 25 de Abril), José Gomes
Ferreira, Manuel Gusmão ou Carlos de Oliveira ou, de outro ponto
de vista, não menos reflexivo, António Gedeão, para nos darmos
conta da dimensão e da preocupação éticas, das grandes
clivagens e dos grandes momentos e opções. A solidariedade; a
consciência da vida como almejo de algo mais do que o cansaço
que mina os «funcionários cansados» (como dirá o poeta António
Ramos Rosa), a intransigência com os princípios ou a crítica à sua
derrisão, assumindo uma faceta satírica e corrosiva (Alexandre
O’Neill) são tantas outras facetas pelas quais os poetas olham
para a cidade em que vivem, se interrogam sobre o Portugal que
foi e o Portugal que é, pensando no país que pode ser. Deste
ponto de vista, destaque ainda para um poeta como Ruy Belo, cuja
atração pelo poema longo sustenta uma prolongada conversação e
reflexão sobre o seu país, em esplendorosos poemas que
continuam por exemplo sempre a responder, entre outros, a
Camões («Morte ao Meio-Dia»). Além de Alexandre O’Neill, a
aguda consciência das limitações da vida portuguesa,
nomeadamente em termos de discursos vigentes e padrões de
vida e sexualidade, está patente em Mário Cesariny de
Vasconcelos, em cuja poesia as disrupções surrealistas
manifestam uma preocupação de ligar de forma indissolúvel ética e
cidadania.
Na feitura do Portugal contemporâneo, a reflexão sobre a
tessitura histórica do presente e do passado, longa e por isso de
difícil subsunção, implica a ideia de um país possível que se trata
de considerar e sobre o qual se erguem memórias, receios,
anseios, contradições. Foram eles que este volume pretendeu
seguir: é na convicção de que, como dizia Ruy Belo no poema
«Aquele Grande Rio Eufrates», é preciso ter «cuidado com o poeta
na cidade» que radica, afinal, a diversa consideração histórica dos
modos por que a Literatura integrou uma continuada e multímoda
conversa entre a História de Portugal e a Literatura feita em
Portugal. Um poeta na cidade não traz só a cidade à poesia, e a
poesia à cidade. Também mostra como ambas permitem aceder ao
discurso como lugar de consciência simultaneamente histórica e
artística. Se não necessariamente feliz, esta abre, pelo menos, as
portas à condição de um pensamento que, sendo literário, é
sempre de inúmeros modos histórico.

163 Máriode Sá-Carneiro, Em Ouro e Alma. Correspondência com Fernando Pessoa,


edição de Ricardo Vasconcelos e Jerónimo Pizarro, Lisboa, edições Tinta-da-China, 2015.

164 Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, edição genética e crítica de Ivo Castro,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2007.

165 www.legifrance.gouv.fr, consultado em 13 de agosto de 2015.

166 Cf.Helena Carvalhão Buescu, O Trágico mas o Cómico: o Exemplo de Le Bourgeois —


Gentilhomme, Revista da Faculdade de Letras, 9, 5.ª série, 1988, pp. 29-32.

167 Cf. as observações de Flávia Corradin em Camilo Castelo Branco Revisitado pela
Moderna Dramaturgia Portuguesa, in Paulo Motta Oliveira (org.), Figurações de Oitocentos,
Ateliê Editorial, São Paulo, 2008, pp. 71-93: «A obra camiliana está marcada, muito mais
do que pela historinha, às vezes melodramática que as enreda, pelo menos se pensarmos
nas novelas passionais ou nos (melo)dramas burgueses, por uma visão do mundo a
revelar o Oitocentos português» (p. 91).
168 Cleonice Berardinelli, Anátema: Um Romance onde se «prova que o autor não tem jeito
para escrever romances», in Camilo Castelo Branco. International Colloquium, Santa
Barbara, U. California Pr., 1995 [1991], pp. 232-40.

169 Maria de Lourdes Ferraz, A Ironia Romântica. Estudo de Um Processo Comunicativo,


Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1987.

170 Garrett e Camilo. Românticos Heterodoxos?, Convergência, RJ, 1, 1976, pp. 63-78.

171 Cf.
Helena Carvalhão Buescu, O Cívico, o Romântico e o Afetivo, Grande Angular.
Comparatismo e Práticas de Comparação, Fund. C. Gulbenkian, Lisboa, 2001, pp. 105-30.

172 Ver,
entre outros: Helena Carvalhão Buescu, Incidências do Olhar: Percepção e
Representação, Lisboa, Ed. Caminho, 1990; Idem, Paisagem Literária: Imanência e
Transcendência, in Colóquio-Letras, 2012, pp. 9-17.

173 Silviano Santiago, O Cosmopolitismo do Pobre, UFMG, Belo Horizonte, 2004.

174 Paula Morão, Salomé e Outros Mitos. O Feminino Perverso em Poetas Portugueses
entre o Fim-de-Século e Orpheu, Lisboa, Edições Cosmos, 2001. Da mesma autora, e para
uma visão diacrónica, veja-se também Imagens do Feminino: Fantasias e Fantasmas, in
O Secreto e o Real. Ensaios sobre Literatura Portuguesa, Porto, Campo da Comunicação,
2011, pp. 237-50.

175 José Augusto Maravall, La Cultura del Barroco, Barcelona, Ariel, 1986.

176 Isabel Pires de Lima, Como as Mulheres Disseram a Revolução (o 25 de Abril na


Literatura de Autoria Feminina, in Clara Rocha, Helena Carvalhão Buescu, Rosa Maria
Goulart (org.), Literatura e Cidadania no Século XX, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 2011, pp. 321-33.

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