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Ke BIBLIOTECA Dicirat O AMIGO E O BENFEITOR Reflexées sobre a gua do ponto de vista de Aristételes(*) José Arthur Giannotti USP-CEBRAP Nao ignoro os riscos que assurso ao tentar refletir de modo global sob o tema aristotélico da amizade. Desde logo porque os textos, como acontece muitas vezes ‘com aqueles que herdamos da Antiguidade, dificiimente podem ser estabelecidos © alinhavados de uma tinica maneira, Qualquer escolha implica uma discussto filologica que foge de minha competéncia. Além do mais, depois que Fraiss sali- fentou muito apropriadamente a abrangéncia do termo grego oxhia, cetomar 0 as unto coloca desafios que extravasam o campo da discussao sobre as virtudes. (Obriga-nos a pensar as precariedades da intersubjetividade em geral, em particu- lar, certas formas de sociabilidade, cujas matrizes estao carregadas de uma desi- gualdade originéria, muito diferente, portanto, do pressuposto igualitario © contratualista do mundo burgués. “Ima ética da honra e do aperfeigoamento ests ‘muito distante de nossos horizontes atuais. Dificilmente pode ser compreendida por herdeiros do igualitarismo cristéo, todos igualmente filhos de Deus, e por Aqueles que ligam justica com o equilibrio do mercado. Nessas condigées, nao convém procurar neste pequenc texto um inventério geral dos problemas (1 Por um prato de macarri, Oswalklo Porch Pereira traduziveme os textos do grego para © portugues, mas no havi asticia nesta tra, pois ambos sablamos que, no que respeit 90 Felenismo, a primogenitura e sempre dele e, no que respeta& amizade, foi ele que hi muito tem- po conguistu os loures. Agradece ainda 40 Grupo de Filosofia do CEBRAP com o qual lie dsc Tia Etin@ Nimace 10) Frasse, Jean-Claude, PHILIA. fa notin smi dans a piosopie Amtqu, Vin, 1984, 165 © AMIGO F O BENFEITOR analtfnca tevanndos ples andes de Ariss, mas to uma achega a ums de suas 166 peculiaridades, iquela que de smediato diz respeito a uma solugio sui generis de Feciprocidade social: o benfeitor como tipo da amizade. Mas tamiém m0 ignoro 0 aleance dessa tese: a0 salientar a probiemstica do tipo estou me afastando da mai ria das interpretages correntes da ica aristotlica, porquanto pretendo subli- "har a importaneia do juizo moral na definigia da esséncia da amizade. Acredito amigo é um outro ele proprio” an tp 0 gidas akan, en, 1166a31), 4 escotha, medida da amizade, é antes de tudo escalher aqueles de que se quer a existéncia e o evergeta é o exemplar que encacna a regra, Mas se todo JOSE ARTHUR GIANNOTTI es de amizade ote como tp aa mide en gue a marie ¢ posta «ANAL YC» Servigo do querer que 0 outro exista como outo ea mesmo, fo & por 880 que Se Geve ter umm numero indefisido de amigos, O everget nao & 0 melhor amigo, mas Sua atividade socal realiza aquela dimensio da aszade (querer que o outro ei ta como um outro eu) da forma mais atual, porate por ses intermedi ela passa 2 Spectre mtg Em corapar,o gene prea eeclonar lpi Bons ara que este querer nao se cisperse no cofiiano, e nesta selegia pode ste mesmo txtrapolar os limites da cidade e master uma amizade comm esravo. Mas todo smigo, na sua ativicade esolhia, tem no evergeta 0 tpo em que enterga a Forma thas lena, magnanima, dum reagio social © senso comm reconhece 1a iia um dos sepuintes tragoscarctristicos, enumerados por Arstteles amigo 1) desea e faz bens reas ou imagindios pata outro por ele mesmo, 2) desea 0 er 2 vida do outro por ele mesmo; 3) partiha tempo dessa existencia; 4 faz a6 mesinasescolhas 3) pata 38 mes fnas alegeias ¢ 08 mesmos sfrimentos (EN IX # 1166326) A especulagio de ‘Anitteles pretende apenas salintar como a escola de existéncia precedes todos GS outros ragoo, na edida em que desejar a existénca do outro implica nama tmagnaninidade, numa vitude ea excelenca des bons, que padronisa 3s formas menos stualizadas da amizade Dado tudo iss, tomarse possivelcompreender 0 sentido que Aristtelesem- presta a0 amor de si mesmo e 8 amizade ene 0s figsofos. Vimos que @ esa fia implica reconhecimento da recprocidade. Mas na medida em que o amigo € tim out eu, ee se torna elemento essencal par 0 préprio auto-conhecimento John M. Cooper sublinka um testo da Magna Moran, covrespondente & tic @ Niconaco IX em que esse papel eveladorniotraz apenas autorconsiénca mas Sobretudo auto-conhecimento. Reprdura a parte final do texto: (6. Assi como, quando queens ver sss pripmn msto, ns ocemas liao no epee, se moo semeliante tem, quando ques combscennos i sna. perenne ter-iosalhando pare o amigo. Pois omg ¢, come dizemos, um outro ex. Se & eno om 175 analiucn 176 © AMIGO E 0 BENFEITOR agra conhecersea si mesmo e do & posi ter ese conkecimento sem um outro como lio, o ausufciente precisa da amtzade par asi mesmo canhecerse (et obv #80 pty 2 ay eft, oi & oie tony lit Sev didov oldou, Sear Gv 6 ean, thing npg arts asin yi, MM ITS 1213320-26, A axroqiiia nto é mero egofsmo. Exprime a capacidade do eu julgar-se dig- ‘no de si mesmo, querer sta propria existéncia, Mas, ao querer uma existencia dig- ra e virtuosa, esta também exigindo de si mesmo que se reconheca na perfeicdo de seu género. Deus € um ser absolutamente perfeito, cujo pensamento s6 pode ter como objeto ele mesmo como ser perfeito, o homem finito, porém, para conhecer € reconhecer 0 lado de sua finitude, aproximando-se assim da perfeigao que seu ser encerra, necessita do espethamento do outro. Como nota Aubengue", a amizade ppossui um destino trégico, deseja-se ao amigo um bem tanto maior quanto a ami- zade for mais pura, mas a0 mesmo tempo, esperando que 0 amigo permaneca aquele que é, nem Deus nem sibio, mas simplesmente um homem. A amizade tende a se esgotar na transcendéncia desejada, no limite, a amizade perfeita se destroi a si mesma. Este movimento de se identificar com o outro € contrabalanga: do pela reciprocidade que se faz segundo a regra, isto é, a justga, que quer ¢ ama a existéncia do outro como ele é, no melhor de seu ser particular, 0 senhior como se- shor, o escravo como escravo. A amizade grega nao leva a emancipacio. Fora da ‘Olt, este escravo no pode dar nem receber amizade, pois néo pode ser querido como cidadao. Sendo, porém, um ser humano, ¢ capaz de reciprocar na justa me- ida, inclusive querer 0 senhor como senhor, ¢ neste ponto vem a ser amigo. E pela justica que a amizade se tece,salienta Arist6teles: “pois parece haver alguma justiga entre todo homem e qualquer outro capaz de compartilhar da lei e de um acordo (EN VIII 11 1161b6). Gragas a esta capacidade humana de seguir regeas so- ciais definidas, gragas por conseguinte a este senso de justica, é que o senhor pode vir a ser amigo do escravo e vice-versa. E como a amizade mobiliza as melhores (10) Aubenque. Pitre, Sur mitch Arco, ems La prudence hee Aisoe, .180, PU, 19, JOSE ARTHUR GIANNOTTI Endereso do Autor: Ra Davi Pimentel, 186 (05657 -Sio Paulo, SP anal nc 177 lava (Yrica | a ética de Aristételes e o destino da ontologia (Org: Marco Zingano , BIBLIOTECA IGITAL

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