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Educação de antigamente e de hoje

Raymundo de Lima*

Os pais de antigamente levaram os filhos Embora existam casados com pacto de


para trabalhar, para adquirir um ofício, não ter filhos, mas o esperado é que eles
ainda crianças. O estudo ficava em venham para dar trabalho e preocupação.
segundo plano, ou, de acordo com a Ainda que tenham avós para cuidar deles,
mentalidade da época, era ignorado. Os por algumas horas, dias, meses ou anos, a
pais de hoje preferem ver os filhos só responsabilidade recai sempre sobre os
estudando, [e se divertindo] porque pais.
trabalhar é assunto para só depois da
Pra que casar logo os filhos se eles
faculdade – se tiver emprego, é claro.
podem viver livremente a existência.
Obviamente, essa cultura atual é
Eles podem namorar até no quarto de
reforçada pela lei que proíbe o trabalho
dormir... dos pais; podem chegar a hora
de menores de idade.
que quiserem de madrugada, e também
Os pais de antigamente achavam que os podem sair a qualquer hora, que pai ou
filhos tinham que crescer logo para se mãe não terão coragem de regrar. Em
virar na vida, ir à luta, que era casa, eles têm comidinha feita como
considerada dura e cheia de desafios. Os amor da mamãe, roupinha lavada,
pais de hoje, no fundo, gostariam que os colinho da mamãe ou da empregada paga
filhos não crescessem. Crescer pra quê? pelos pais. Em casa os babies nem
Para morar sozinho, correr riscos fora da precisarão arrumar o quarto, ou recolocar
família, trabalhar, ‘contribuir’ para o as coisas no lugar, ou ainda ajudar os
Imposto de Renda, pagar contas todo pais a descarregar as compras. Mães à
mês, fazer compras no supermercado, moda antiga hoje não ousam pedir para
contratar alguém para lavar a roupa, os babies darem uma mãozinha na
cozinhar, arrumar a casa! cozinha. Então, por que virar adulto?

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Para ser responsável e ter que encarar a interpretados pelos especialistas e
vida tão perigosa e incerta lá fora? vizinhos de plantão, e não sabem como
agir diferente.
Autoridade em declínio
Tradicionalmente, o pai era a Lei da casa
Os pais de antigamente exerciam ao
máximo sua autoridade sobre os filhos. e comando da família e as coisas do lar
(Pater famílias). Hoje a autoridade do pai
Eram autoritários e reprimiam os seus
desejos. Os pais de hoje se acovardam está em declínio2 e a mãe não o substitui,
mesmo a mulher considerada ‘alfa’
diante do poder pulsional dos filhos.
Uma pesquisa revela que cresce o (poderosa na carreira profissional, com
número de pais negligentes e salário superior ao do marido), esse casal
permissivos1. O noticiário diz que se sente impotente e despreparado para
existem crianças que batem de verdade educar filhos. Daí eles cobrarem uma
nos pais e eles não sabem como reagir. escola em tempo integral, que eduque
Faz sucesso um programa da TV inglesa, seus filhos também integralmente. Mas,
me pergunto: a função da escola é de
“Super Nany” (adaptado pelo SBT, no
Brasil) que ensina aos pais como lidar ‘educar’ ou ‘ensinar’? Que pode
com os filhos mandões, birrentos, ‘ensinar’ uma professora à alunos que
desrespeitosos, alguns parecem caminhar vem de casa sem um mínimo de
para a delinquência. São pais civilidade, só adquirida na socialização
acovardados, vítimas dos próprios familiar? Caberá a escola ser prótese dos
pontos-cegos educativos e sem pais ou ela deve dedicar a ensinar bem os
autoridade cultural sobre os filhos. conteúdos de currículo?

Atualmente alguns justificam sua Preocupações ontem e hoje


covardia educativa porque temem que o Conversas sobre a sexualidade
baby adolescente fuja de casa, como antigamente não aconteciam. Embora
aconteceu com duas mocinhas de classe hoje exista alguma abertura para trocar
média que resolveram viajar sem avisar idéias sobre esse assunto tabu, muitos
os responsáveis e terminaram virando deles ainda resistem conversar sobre a
notícia na imprensa nacional. Os pais de psicossexualidade. Uma pesquisa revela
hoje também temem ver a explosão que os pais atualmente estão mais
emocional dos filhos que não aprenderam preocupados com as drogas e as doenças
suportar a mínima frustração. Por isso transmissíveis do que em prevenir o
lhes dão tudo que eles desejam. Com amento do número de gravidez precoce
esse gesto esses pais só conseguem entre adolescentes. Portanto, “Não houve
amenizar sua culpa ou compensam suas grandes mudanças nas relações dos pais
próprias carências que eles próprios quanto eles eram adolescentes se
tiveram quando crianças e jovens. (“por comparado aos tipos de relação que
que hoje eu não posso dar tudo o que estabelecem com seus filhos atualmente”,
meus pais não puderam me dar?”). observa as pesquisadoras Luciane Cristo
Outros acham que se posicionando como e Josiane P. Ferreira – Cascavel/PR
covardes evitam a angústia e culpa diante <www.psicopedagogiaonline.
da possibilidade de reação vingativa dos Nas décadas de 1960 e 70, os jovens
filhos. Também temem serem mal entravam em conflito sobre valores
1 sociais, políticos, econômicos, religiosos,
Pesquisa coordenada pela profa. Lydia Weber,
da Universidade Federal do Paraná, aponta 45%
2
de pais negligentes, 12% de permissivos, 33% de Ler, aqui, LIMA, R. “Sobre o declínio da
pais participativos e apenas 10% de pais autoridade...” Também: CASTELS (1999),
autoritários. HURSTEL (1999), JULIEN (1997).

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estéticos e comportamentais (brigavam estetismo e pela diversão sem limites e a
pelo direito de usar os cabelos compridos qualquer custo. Ainda que possam
e vestir uma calça velha-azul-e- reclamar da falta de ética dos políticos, a
desbotada). Nessa época, “nós, que nova geração não é comprometida com a
amávamos tanto a revolução” também política, embora alguns se sintam
éramos embalados pelo sonho de uma sensibilizados com as causas ambientais.
sociedade alternativa, libertária, Mas seus hábitos ou vícios burgueses
solidária, igualitária, justa, democrática e parecem não enxergar seu consumismo,
socialista, provavelmente com fundo seus desperdícios, sua preferência por
musical de rock progressivo, MPB, só comida industrializada. Ao contrário da
depois veio a new age. geração 1970, eles estão mais propensos
às discussões sobre assuntos menores do
Nesse período, os pais temiam a chamada
cotidiano, como os games, amigos,
‘juventude transviada’, adepta do cigarro,
namoro-“ficar”, festas-baladas, futebol,
do álcool e dos costumes importados
aparência corporal, portanto, fogem
vistos nos filmes norte-americanos. A
quando a conversa se encaminha para os
direita demonizava a televisão cujos
“grandes temas” políticos, sociológicos,
valores corrompiam a nova geração. A
psicológicos. O interesse com os temas
esquerda brasileira demonizava
mais ou menos relevantes vem associado
principalmente a TV Globo, considerada
ao ideário político-sociológico. Por isso,
um veículo à serviço da burguesia
Contardo Calligaris observa que “os
emergente e dos valores do capitalismo
jovens de hoje sonham pequeno”.
yanque.
Os pais mais à esquerda hoje já não
Dos interesses sólidos aos interesses
conseguem conversar com os filhos os
líquidos
assuntos que eles, na sua época,
Com a disseminação da televisão, o consideravam importantes ou
advento da Internet e o surgimento do “imprescindíveis”, como dizia Brecht.
celular vivemos numa época cujos pais Também, não conseguem desaliená-los
não conseguem regrar o tempo de incentivando-os à leitura de jornais,
exposição dos filhos a tais aparelhos. revistas, bons livros, escolher melhor os
Não se trata mais de acovardamento, mas filmes, diminuir o tempo gasto nos
de impotência e de evitar chateação. Eles games, se interessar pelas coisas da
próprios se sentem cooptados e natureza...
fascinados pelas telas e possibilidades. É
como se dissessem: “ok, eles venceram”, Ainda sobre o “educar” e o “ensinar”
“Não tem jeito, estou sozinho e eles estão Antigamente, os pais ricos simplesmente
coligados em rede”. criavam os filhos. O ensino preceptorial
se encarregava de dar uma “boa
Na “modernidade líquida”, expressão de
educação” aos economicamente
Bauman, as crianças e os jovens do início
privilegiados. Com o advento da “escola
do terceiro milênio não sonham mais
de massa”, no Brasil, a partir das décadas
com uma mudança social, como os
de 1970 e 80, foi anunciado para todos
jovens da geração 1960 e 70, eles atuam
que a escola era quem devia “educar”.
(acting out) possibilitados pelas telas.
Com a LDB 5692/71 se pretendia
Eles não gostam de noticiário, nem ler
‘democratizar o acesso à escola pública’.
obras da literatura, ainda que os pais
Muitos filósofos da educação
intelectualizados os tenham disponíveis
discursavam que os professores deveriam
na sua biblioteca particular. A nova
ser educadores, porque ‘agora’ os pais
geração é tribal, virtual, prima pelo
poderiam se dedicar mais aos estudos,

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trabalho e/ou à carreira profissional. Era reforçado ainda pelos mesmos modismos
considerado “moderno” deixar que a das pesquisas em educação que não
escola se encarregasse totalmente de causam impacto na cultura escolar
formar as novas gerações. (ALVES-MAZZOTTI, 2003). Mas, será
que cabe a escola também educar pais?
Na década de 1980, os professores foram
humilhados por serem somente Ouso dizer que hoje não existe educação
“professores” (comparados aos proporcionada pelos pais nas grandes
eucaliptos – “essa árvore sem vergonha, cidades, porque eles estão despreparados
plantadas em série industrial”3), e foram para tal tarefa. Nas cidades menores e
cobrados para serem “educadores”, comunidades, talvez estejam mais
metaforizados como os jequitibás. preparados, no sentido da tradição.5 Nas
grandes cidades, provavelmente, a nova
O resultado daquele discurso educacional
influenciado pelo psicologismo geração de pais ausentes está sendo
educada – ou deseducada - pelos seus
humanista-existencial e de fundo
teológico-libertário, a sociedade paga até
hoje, com professores que nem ensinam 5
“Tradição”, aqui, é usada no sentido de Hannah
bem e nem educam. Hoje cresce o Arendt. Ou seja, a autoridade está em crise na
número de pais desresponsabilizados de época contemporânea em conseqüência dos
“educar” os filhos. São os pais graves acontecimentos do século 20, e também da
‘ruptura da tradição’, que teve lugar no século 19.
‘negligentes’ e ‘permissivos’, apontados A partir desse período houve uma ruptura entre as
na pesquisa de Lydia Weber. É a geração gerações do passado e a emergente, para quem a
de pais-banana e mães sem vocação para memória do passado deveria ser sepultada ou
a maternagem, que deixam os filhos desprezada, as experiências, valores conquistados
entregues à creche, babás, vizinha, avós, da civilização agora deveriam ser menosprezadas
ou esquecidos. Nesse sentido, ficou prejudicada a
a si próprios. O mito do instinto materno tarefa da educação que é justamente a de
foi desmontado no estudo de Batinter apresentar o mundo às novas gerações do
(1985), e as novas formas de paternidade presente, tentando fazê-las conscientes de que
são estudadas por Hurstel (1999). comparecem a um mundo que é o lar comum de
Atualmente, esses pais (negligentes e múltiplas gerações humanas. Ao conscientizá-las
do mundo a que vieram, estas deverão
permissivos) se sentem no direito de compreender a importância de sua relação e
cobrar da escola “educação de qualidade ligação com as outras gerações, passadas e
dos filhos” e escondem sua inveja ou vindouras. Tal relação se dará, primeiro, no
racionalizam seu ódio para com uns sentido de preservar o tesouro das gerações
poucos determinados a educar os filhos passadas, isto é, no sentido de a geração do
presente tomar o cuidado de trazer a esse mundo
em casa4. sua novidade sem que isso implique a alteração,
Ora, os professores não devem sentir até ao irreconhecimento, do próprio mundo, da
construção coletiva do passado. O educador
culpa pela parte que não lhes cabe. [pais, professores, responsáveis pela educação]
Obviamente, a escola atual está confusa, deve ter em relação ao mundo uma atitude de
desnorteada: ela faz o que pode amor mundi. Ou seja, de admiração pela obra
influenciada pelos modismos teórico- das gerações humanas passadas e de desejo que
metodológicos de cada governo, tal obra seja “preservada” para as gerações que
ainda virão. Essa atitude de preservar o mundo
em relação à nova geração e preservar a nova
3
Ler: ALVES, R. Conversas com que gosta de geração em relação ao mundo. Portanto, em nossa
ensinar. São Paulo: Cortez, 1984. Atualmente, o opinião, os atos educativos precisam sustentar a
eucalipto é considerada uma “árvore neoliberal” ‘tradição’ das conquistas da civilização, sem o
pelo MST. ranço tradicionalista. (ARENDT, 1974. Também
4
Refiro-me a matéria publicada no jornal Folha FRANCISCO, M. F. S. Preservar e renovar o
de S. Paulo e Folha On Line, de 06/03/2010: mundo. Revista Educação, número especial, 4,
“Juiz condena pais por educar filhos em casa”. sobre H. Arendt).

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coleguinhas e pela mídia. Por isso que a Referências
psicóloga norte-americana, Judith Harris, ALVES, R. Conversas com quem gosta de
nos pergunta: O pai hoje ainda tem ensinar. São Paulo: Cortez, 1984.
importância? ALVEZ-MAZZOTTI, A. J. Impacto da pesquisa
educacional sobre as práticas escolares. In:
Itinerários de pesquisa: perspectivas
Obs.: esse “antigamente” refere-se a não qualitativas em sociologia da educação. Rio de
mais que trinta quarenta anos. Ou seja, Janeiro: DP&A, 2003.
antigamente não é tão antigamente. ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São
Paulo: Perspectiva, 1972, p.
BATINTER, E. Um amor conquistado. O mito
do amor materno. Rio: Nova Fronteira, 1985.
BAUMAN, Z. O amor líquido: Sobre a
Fragilidade dos Laços Humanos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-
modernidade. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
CASTELS, M. O fim do patriarcalismo:
movimentos sociais, família e sexualidade na era
da informação. In: Poder e identidade. v. 2. São
Paulo: Paz e Terra, 1999.
HARRIS, J. H. Diga-me com quem anda... Rio:
Objetiva, 1998. Também “Os pais têm
importância?”- documentário exibido pelo
GNT, 1999.
HURSTEL, F. As novas fronteiras da
paternidade. Campinas: Papirus, 1999.
JULIEN, P. A feminilidade velada: aliança
conjugal e modernidade. Rio de Janeiro, 1997.
LIMA, R. O declínio da autoridade: efeitos na
família e na escola. Educação no séc.21:
múltiplos desafios. Maringá: Eduem, 2009. p.
119-128. Também in.:
http://www.periodicos.uem.br/ojs/index.php/Espa
coAcademico/article/view/8660/4812.
WEBER, L. Disponível em:
http://lidiaw.sites.uol.com.br/

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RAYMUNDO DE LIMA é docente na Universidade Estadual de Maringá,
Departamento de Fundamentos da Educação, e Doutor em Educação pela Universidade de
São Paulo (USP).

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