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we HABITUS EDITORA TT TTT FFCOOORROOSESTOONL ELE. Luis Alberto Warat Presidente da Associagao Latinoamericana de Mediag&o. Co- ordenador do Mestrado em Direito da UNISUL. Professor da Pés-graduagao do Direito - CPGD/UFSC. Autor de mais de 35 livros, entre eles: “A ciéncia juridica e seus dois maridos”, “O manifesto do surrealismo juridico”, “Por quem cantam as sereias”. O Oficio do Mediador HABITUS EDITORA Fone (48) 223.3363 Email: habitus@brasilnet.com.br Florianépolis-SC ~-nnanncnoaeaeaeabe Copyright ©2001: Luis Alberto Warat Editor Responsdvel: : Israel Vilela . Capa ¢ Editoragdo Eletrénica: Isabella Barbosa Revisdo de texto: Ana Catarina Benfica B. Silva ISBN: 85-88283-06-9 W2530 — WARAT, Luis Alberto a O oficio do mediador / Luis Alberto Warat. - Florianépolis: Habitus, 2001-279 p. Inclui bibliografia 1. Mediagao e conciliacao. 2. Direito - Filosofia. I. Titulo CDU: 34 iio net fonte por Ondlia Silva Guimaries ~ CRB-14/071 Catalage TODOS OS DIREITOS RESERVADOS - Proibida a reprodugao total ou par- cial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gréficos, microfilme, fotogréficos, reprogréficos. videograficos. Vedada a memorizagao e/ou recuperagéo total ou parcial, bern como a inclusdo de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibi- ¢6es aplican-se também as caaracteriticas gréficas da obra e a sua ediitoragao. A violacao dos direitos autorais é punivel como crime (art. 184 e 101 a 110 da Lei 9.610 cle 19.02.1988, Lei dos Direitos Autorais. Impresso no Brasil Printed in Brazil SSOSTSSSSSELELET Sumario Prefacio, 7 PARTE I 1. Introdugéo, 13 1.2 Esse nao é um livro de filosofia, 19 13 Axfcara de cha tem uma enorme importéncia para um mestre Zen, 22 1.4 Quando existe um sofrimento, finalmente, vem o medo, 27 15 Para ficar mediado, é necessario ser auténtico, 28 ‘6 Tentemos sentir 0 conflito, 30 7 Osentimento do outro, 33 8 O tempo da mediagéo, 37 9 Mediacao e sensibilidade, 38 10 Como se forma um mediador, 41 11 A postura corporal, 49 2 O reencontro amoroso, 49 3 O amor. Que é amor?, 52 4 Situagao limite, 61 5 O que é a imagem do outro?, 63 6 Asensibilidade é um des grandes temas do Direito na virada do milénio, 66 1.17 Provocando e refletindo, 66 1.18 Autonomia e ética, 68 2. Mediar com advogados: mediar as oportunidades vitais, 75 2.1 Os significados da mediagao, 75 2.2 Sentido, fungdes e destino da mediagao, 79 2.3 Olitigio, 81 2.4 Em nome do acordo, 83 2.5 Imparcialidade, 86 2.6 Mediag&o dentro dos conflitos, 87 3. Mediar a partir da psicoterapia do reencontro ou do amor mediado, 91 3.1 Mediagdo é/ Nao é, 91 3.2 Amor / Desamor, 102 3.3 Reencontro com o bem estar, 105 3.4 Aprender @ transformar, 116 3.5 Relacionamentos e afetos, 120 3.6 Oconflito como catalisador, 124 3.7. O amor desmedido, 131 3.8 O desamor, 132 3.9 O papel da psicoterapia no novo milénio, 134 3.10 A ética da cidadania, 142 4- Referéncias bibliogrdficas, 151 PARTE II - Cidadania e Direitos Humanos da Outridade, 153 - Prehidio insatisfeito, 155 1.1 Cidadao e Direitos Humanos, 155 1.2 Agora as coisas podem mudar, 163 1.3 O sujeito kitsch, 177 1.4 Receita da modernidade, 181 15 Desconstrugo, 183 1.6 Uma estratégia, 188 1.6.1 A transciéncia, 189 1.6.2 Subjetividades renovadoras, 191 _-~--=-_en_ea.aa0aaneaeé 1.7 O Direito e a modernidade, 191° 18 0 espaco simbélico. da cidadania, 193 2. A construgdo ética da outridade, 195 2.1 A outridade, 195 22 A ética como alteridade, 199 2.3 Quem é 0 outro?, 205 3. O juiz cidadao, 217 3.1 O direito de cidadania e a justia cidada, 217 3.1.1 Voz a cidadania, 217 3.2 Projeto de humanizagao da Magistratura Catarinense, 218 3.2.1 “Fazer sua propria cabeca”, 221 3.2.2 O cuidado com a vida, 227 3.2.3 O pensamento complexo, 228 3.2.4 Cidadania surrealista, 233 3.2.5 Repensar o pensamento, 236 3.3 A espiritualidade do Magistrado, 237 3.4 dulzados de cidadania, 238 4, Referéncias Biblicgrdficas, 243 PARTE Hi - O Pensamento Comptexo e a Qualidade de Vida, 245 . O sentido da vida, 247 -1 A complexidade da subjetividade e do real, 247 2 Vazio existencial, 249 3 Uma politica de civilizagao, 251 Repensando a construgdo da realidade, 255 Ambivaléncia como desordem, 255 Novos espagos do pensamento, 256 Flexibilidade, 258 Epistemologia da complexidade, 269 Desaprender quase tudo, 269 Compreender @ contradicao e 0 imprevisivel, 273 Ponto de sensibilidade, 275 Aprender a tornar-se cidadao, 278 Referéncias bibliogréficas, 279 @rMH’ BOWWWH NNN Hae “ pwWNE ywwerw~e ere ~ e ~ = ~aamnanmnaneaeaeaeaee Prefécio “...Temos tantos mativos para nos queixar daqueles que nos ensinam a conhecer-nos a nds mesmos quanto teve o louco de Atenas de se queixar do médico que o tinha curado da fixagao em ser rico...” Roland Barthes Somer tive muita curiosicade sobre como fazer nascer um prefacio. Pensava e repensava, deixando minha curiosida- de agugar as paixées..... De inopino, todavia, surge o convite formulado pelo Prof. Dr. Luis Alberto Warat para prefaciur seu livro sobre mediagdo. Quais as motivagées internas que o le- varam a isso? Nao descobri. Lembrei-me de Barthes em sua célebre Aula no Colégio de Franga e percebi que este fato é mais uma alegria do que uma honra; pois a honra pode ser imerecida, a alegria nunca o é. A ale gria de poder comparti- thar com o Luis, o Alberto eo Warat (como deixou evidente no final da “Ciéncia Juridica e seus dois maridos”) mais esse momento de sua extensa vida dedicada G felicidade comparti- !hada: 0 langamento de um livro sobre aquilo que se mostra como a convergéncia social contemporénea: a mediagao. Essa aalegria. Talvez a mediagdo de muitos anseios, compulsées, buscas, idas e vindas de sua trajet6ria talhada pelo fantéstico, pelo novo e pela mudanga, Naéo uma mudanga por mudar, mas uma mudang¢a pelo melhor, pelo crescer, pelo devir auté- nomo, Vinculado a semidtica, sempre imaginei Warat (um ver- dadeiro Cronépio) como o autor de um jardim suspenso do vw wre ww » sentido, no qual as pontes propiciam a escolha (democratica) de diversos caminhos, Caminhos ocultos, particulares, frag- mentados, decifrados/escolhidos pelas préprias pessoas, no mais lidimo ato de liberdade, Esses caminhos sdo apresenta- dos pela mediagao, Com a visdo da mediagdo proposta por Warat nés pode- mos garantir o desenvolvimento do conflito. O° conflito no modelo estatal 6 manifestado pelo litigio, forma legalmente convencionada, segundo a qual o Estado-Juiz aponta a deci- Sao correta: a lei no caso particular. Entretanto, com essa vi- sG0, 0 conflito é desqualificado e varrido Para debaixo desse remédio-simulacro chamado processo. Na condigao de Juiz Estadual tenho verificado que o conflito, as pessoas (Paulo, Maria, Jodo), os verdadeiros atores da vida, sGo esquecidos em nome de autor/réu, prazos, preclusdes. Os protagonistas (advogados, promotores e juizes) contentam-se com a resolu- ¢ao na forma da lei sem qualquer ponte para o futuro: quais as conseqtiéncias da deciséo? Resolveu o canflito?, Sempre me indago que tipo de funcdo social acaba se manifestando com © meu papel. Serd que realmente as fungdes manifestas sao as prometidas? As fungdes prometidas sdo maquiadas belo liti- gio e resolvidas (!?) sem que as partes entendam absoluta- mente nada.... ds vezes nem eu, Percebo, entdo, na mediacdo wu dessa promessa, do amor, do cuidad. Thes do outro qualquer, De recuperar humano e de assumirmos a respon que co-produzimos com nossas prati teoria inconcludente das Paixées pe pacidade/coragem cle abjurar o ades: tumar ao véo as novas asas.., investidas e carinhos... Tenho consciéncia cle que toda mudanga é dificultosa. Deixa-se um estado para o outro; onavo é desconhecido: gera © medo. Significa crer na autonomia das pessoas, quando se 1ém (ainda) medo de se acreditar em si mesmo, Pressupde um ma proposta de resgate (0 com os minimos deta- a dimenséo do problema sabilidade pela realidade rmeada pelo amor. Ter ca- tramento de ontem e acos- » Sempre abertas para novas 19@aheheonnneneee2e202eaheeneeeeeeeadaadd PITTI TILT TTCSTTSSTTSTFTSSTCSCOVSVOSESODEEE auto-conhecimento ameagador, Colocar, diz Warat, entre o eu eoele um entre nds. Servir para ser instrumento de felici- dade alheia. Amando e se arriscando; 0 risco de receber amor! Crescer ou se reencontrar: se descobrir como individualida- de. Dtivida/paradoxo angustiante e gostoso, apesar de incé- modo. Saber-se como se é ou se pensa ser: a ilusdo do ser. Nao ter a certeza (cartesiana) da normalidade de antes. Rom- per com a vida tacanha, etiquetada; assumir a complexidade. Procurar o amor nos olhos vazios das ruas, dos bosques, das nuvens, dos pdssaros, do outro. Perceber a voligao/interesse pelas pequenas coisas: contemplar a beleza, Tomar coragem para tirar a vida para dangar: néo uma danga do prazer pela repeticao, mas uma danga do inesperado, do devir, do salto para © desconhecido. A novidade compartilhada: o salto de mdos dadas (com o outro) nessa louca arremetida em pleno véo. Acreditar que é possivel! Perder os sentidos para enconird- los aqui e ali: onde? O texto de Warat me lembra Barthes, com o qual “corro, salto, ergo a cabega, torno a mergulhar...” sor- rindo de alegria... Essa é a tarefa... Alexandre Rosa Juiz de Direito/SC, Mestrando/UFSC e Professor Universitario/SC Floriandpolis, Inverno 2001 PObdvedvvevererey ~~~" - Parte I 198 BOOB BAA ew -2.2.2.2 22 ~ ~ A xicara vazia, primeira tentativa. Quando a mente sabe, chamamos Isso de conhecimento. Quando 0 coragao sabe, chamamos isso de amor. E quando o ser sabe, chamamos isso de meditacao. Osho 1 - Introdugdo Este livro deveria comegar com um abrago, uma danga, a aproximagao de um olhar, um gesto de ternura ou um senti- mento que mexesse. A experiéncia que encontraras nestas paginas foge dos conceitos, das palavras que simulam ensi- nar a vida. Estamos propondo uma viagem a tua prépria vi- talidade interior. Uma viagem ao amor. Um momento de criatividade. Um estimulo para mostrar o que sempre esteve oculto em ti. Este livro n&o vai te dar nada. Nao te pode dar porque no ha nada para dar. Tudo o que se pode dar carece de valor porque é material. E valioso 0 que nao se pode dar, unica- mente provocar, para que vocé possa aprender com tua pré- pria experiéncia, com o mundo e com os outros. Provocar-te, estimular-te, para te ajudar a chegar ao lu- gar onde possas reconhecer algo que ja estava ali (ou em ti). Esse é 0 papel do mestre, e também o papel do mediador. Como em todos os ensinamentos profundos, nos da au- tonomia interior, pouco a pouco, a chave da porta é perdida, para permitir-nos ir mais fundo no mistério da vida, que é algo que deve ser vivido e nao procurado como um problema a ser resolvido. Assim, vocé descobre que é a porta, descobre que esté em condigées de abandonar o mestre, deixando de procurar os mapas que orientem seu caminho. E o momento em que vocé descobre que é seu préprio mestre. Teu outro 14 Luis Alberto Warat interior esta ocupands, sem outras companhias, o lugar do mestre, E 0 encontro com vocé mesmo. Aprende-se com a nossa experiéncia, com a das outras pessoas, com a dos outros sentidos como pessoas, de nosso outro interior (a nossa reserva de sensibilidade), nunca das palavras mortas e instaladas como convicgées do intelecto (convertido culturalmente em uma razdo teorizadla). Apren- de-se, quando ocome o reconhecimento repentino do que se vai escutando como ligao de nossa prépria voz (nosso pré- prio outro interior que nos fala e seduz-nos para a transfor- macao, para nos tirar de onde estamos paralisados e levar- nos aonde podemos estar como devir de autonomia). Temos que aprender a escutar a voz de nosso outro inte- rior, ele nos diz a verdade que nos 6 prépria. A menos quea encontremos, ela jamais se tornara a verdade para nés. Se ela é a verdade de outra pessoa, da filosofia ou da ciéncia, (incluindo a verdade de seu préprio mestre), ela torna-se um simulacro para nés. Unicamente escutando a verdade dita por nossa propria reserva de sensibilidade, desabrocharemos, e, nesse desabrochar, a sabedoria acontece para vocé... Quan- do o coragao sabe, chamamos isso de sabedoria. Aprende o intelecto teorizado, o ego, provecando o con- fronto com os préprios preconceitos, convicgées e nossas pré- Prias cegueiras e vaidade, levando todas suas idealizagées racionais ao limite do absurdo, Aprende-se a verdade que nos € prépria colocando, surrealisticamente, o intelecto teorizado no limiar de seus absurdos. Aprende-se levando ao extremo do absurdo tudo 0 que nés estamos dispostos a con- cordar em nossas manifestacées sem exageros, Nés podemos aceitar bem um sentimento desenvolvido nas moderagées de nossas manifestagdes, porém pode-nos tesultar intoleravel, quando é manifesto em nossas desmesuras. Junto com a intolerancia, a desmesura permite mostrar, em muitos casos, um caminho de transformagao do sentimento e ainda o abandono do mesmo. 20000000000000009046000099099999898) © Oficio do Mediador 18 Um mestre, muitas vezes, apelaré ao absurdo, pedira uma entrega total, gestos de rendigéo condicional & sua pes- soa, para ajudar o discipulo a abandona-lo como mestre. Ado- rando ao mestre, o discipulo tera que compreender o absurdo, da adorag&o. Essa é a técnica (muitos nao compreendem esse recurso € Vao a mestres autoritarios). Nenhum livro é precioso, unicamente a natureza, a ex- periéncia, a tua reserva de sensibilidade e as pessoas podem ser preciosas. Quando vocé nao conhece o seu valor, pensa que 0S livros, as verdades da ciéncia sdo valiosas. Na medida em que vocé nao conhece o valor precioso de teu ser interior, ent&o, qualquer tipo de teoria torna-se valiosa. Um mestre, & diferenga de um professor, n&o esta inte- ressado em lhe dar o livro certo, pois sabe que esse livro nao existe. Ele est4 interessado em mudar vocé, a pessoa, colo- cando-o de cabega para baixo, mexendo com a totalidade de seu ser. As palavras unicamente sao valiosas, quando vocé nao conhece o valor de ser. © verclacleiro mestre é aquele que lhe coloca em situagdes de aprendizagem e n&o o que lhe indica um “bom” livro, Quando penso em um mestre, me situo em um relacio- namento de intensa lealdade e confianga; enfim, de profundo amor (n&o existe amor sem lealdade e confianga). Vejo um homem sdbio no que emprega técnicas para empurrar seus discipulos para além do ego e do intelecto teorizado, que usa técnicas para que possamos sentir nosso coragao, reconhe- cer e aprender com nossa reserva de sensibilidade. Um mes- tre é tal, quando consegue nos ajudar a produzir sua prdpria morte, sua substituigao pelo nosso préprio outro interior. Um mestre tem que ajudar os seus discfpulos a abandoné-lo. Este livro tampouco é precioso, o que importa é vocé. Importa que vocé n&o se perca, n&o precise de mapas. Co- nhecimento, livros: se vocé atingiu sua meta nao precisa de- les. Sua meta é seu outro interior. Vocé nao precisa de mapas para encontra-lo. PCH HOTATTSSTHETELETLLETULLUAVAALARD TTT Pw TOUR ECOEg o 16 Luis Alberto Warat @ @ Ja se entendeu 0 estudo tedrico como um fornecedorde @ sentido na vida dos.que a ele se dedicam. Também se propa- @ ga a idéia de que os teéricos, cientistas e intelectuais sao pes- soas com sensibilidade e QI elevados. Mas, poucos perceberm que a teoria e a ciéncia podem ser espagos negativos de fuga 4 para quem a elas se dedicam. Mais do que fuga das coisas que o cercam, a ciéncia e a teoria servem como fugado outro @ interior (espago positivo de fuga), é um porto seguro para @ ignorar a prépria reserva de sensibilidade. A autonomia pode ser pensada como uma possibilidade de escapar do mundo das palavras e dos rnitos que nos exi- lam do real. A vontade persistente de toda Republica (enten- dida aqui como cultura organizada pela alienag&o, a ciéncia ea filosofia) é a de manter os cidadaos felizes como depen- dentes incurdveis das palavras e dos mitos. O cidadao que nao pensa, porém, acredita que pensa, repetindo chavées. Escuta falar que é livre e acredita nas palavras, enquanto a vida lhe grita, e ele nao escuta. que é um prisioneiro de sua prépria imbecilidade energizada pelas palavras e pelos mitos. A ciéncia, a filosofia, as palavras e os mitos estabelecem entre nds e os outros uma comunicag&o indigna, é uma co- municagéo entre egos. Eles se comunicam a partir do que conseguimos acumular através da educagao, costumes, colé- gios, universidades, familias. Sao falas para pessoas construidas como simulacros. Toda pessoa é um artificio. Somos um devir sem centro. A pessoa pressup6e o artificio de centro. Esse centro simula- do e assumido é 0 ego. Quanto mais fundo se vai em nossas viagens ao interior de nds mesmos, 0 ego é. E, quando al- guém alcanga.o A4mago supremo de seu outro interior, nao existe nenhum eu, o ego desaparece. O outro interior transcende o eu, e 0 existir é a propria existéncia. Quando se mergulha fundo em uma tnica gota de Agua. encontra-se o oceano. A natureza, Ultima de uma gota ~~~ www wwe” O Officio do Mediador 17 de Agua, é a mesma do oceano, é oceanica. A natureza ulti- ma de meu outro interior é a mesma de todos os outros interi- ores, 6 amesma de tudo 0 que existe. Se alguém percebe apenas a superficie, enxerga matéria, que é a superficie da existéncia. Penetrando a fundo na matéria, nao achamos matéria, mas, sim, energia. Até & modemidade, a ciéncia pesquisou unicamente a matéria, pesquisou a superficie, pois acreditava-se que unicamente a matéria era real. Agora a ciéncia comega a dar um passo & frente, afirmando que nao ha matéria; mas, unicamente, energia. A ciéncia afasta-nos de nosso auténtico ser, na medida em que nos impede de duvidar. Tudo é certo, verdadeiro, objetivo. Pretende impor verdades como se fossem de todos e termina, por certo, impossibilitando-as de serem verdades de alguém. As verdades de alguém sao fruto de comunicagées dig- nas, de ser a ser, entre pessoas despidas. Quando nds nos encontramos despidos, apresentamo-nos como realmente so- mos, nao como desejamos aparentar ser. Termina 0 jogo das _ aparéncias. As mascaras sao entreques 4 mesma fogueira onde se pretende queimar o ego. As verdades da ciéncia impossibilitam indagar, correr o risco, movimentar-nos no desconhecido. Sao fugas da dtivida existencial (D.E.), aquela dtivida que permitira que cortemos todo o lixo que acumulamos. A D.E. é um complemento da meditagao. A D.E. afasta-nos das amarras e armaduras do ego. A meditagdo serve para despertar nosso ser. Convém distinguir 0 ego do ser auténtico, um é a reserva de sensibilidade, 0 outro é o interior. Do ldgico a uma viagem além do intelecto teorizado, o livro convida a uma compreensao do coragaéo, uma compre- enso que permitira chegar aos niveis mais profundos do ou- tro interior, nao da mente. Em todos os ensinamentos, a chave nao pode ser dada através da comunicagao, das palavras escritas ou da expres- 18 Luis Alberto Worat so verbal. Ela nao pode ser entregue por discursos, pela men- te, pelos pensamentos ou pelos raciocinios que excluem os sentimentos. Na realidade, nenhuma chave pode ser entre- gue. Nao existem chaves para abrir a porta, quando o que se pede é a prdpria porta. O que lhe dou nesse livro nao é um sistema fechado, mas um experimento aberto. Embarcaremos em uma viagem de descoberta, revelando para vocé mesmo, o quao penetran- te e inconsciente é o condicionamento imposto pela familia e a sociedade. Pretendo trazer para as palavras a fragrancia do espaco do siléncio. A palavra do outro interior, que s6 se es- cuta no siléncio, é feita de siléncios. O que lhe dou nesse livro é uma possibilidade para saltar dentro de si mesmo, e com isso, a sua chance de mergulhar na existéncia. . Em nenhum momento, pretendo instalar em sua mente um novo sistema de crengas. Nossa proposta é destrutiva, um modo de desaprender o aprendido de forma imposta, destruir 0 imposto em vocé, para dessa maneira ativar um espago vazio para a sua criatividade. As descobertas s&o feitas por vocé, 0 que o torna um ser diferente, por pequenas e simples que essas descobertas sejarn. O lugar tornado vazi 49999999.33! , como uma folha em branco, é 0 que permite descobrir as suas verdades, as verdades de vocé e para vocé. Todo o esforgo desse livro é uma tentativa para entregar-lhe de volta a vocé mesmo. Vocé foi roubado, condi- cionado, manipulado, argumentado, persuadido, trabalhado de todas as formas possiveis para que ndo pudesse chegar a vocé mesmo. Isso é 0 que a cultura chama de socializagao. Para saltarmos para dentro de nés mesmos, é preciso aprendermos a indagar a existéncia. Correr o risco da inda- gagao como a forma de mover-nos no desconhecido. A nica epistemologia libertaria é a da experiéncia recalcada. O que eu chamo de epistemologia inconsciente. errr rTyTyTrTrriik & | , ) » U y , © Offcio do Mediador “Nascemos principes, e a educagdo faz de nés sapos”. 1.2 - Esse nao é um livro de filosofia Aqui, renuncio a essa minha velha pretensdo. Com o correr da vida, descobri que a filosofia é argumento, mente persuasiva, raciocinio e pensamento légico que desqualificam a racionalidade inscrita na sensibilidade, a raz&o dos senti- mentos. E um caminho errado, na medida em que nao é pos- sivel amar a existéncia, se gostamos de argumentar, buscar perguntas e respostas que procuram a dominagao. Se argumentamos, discutimos, estamos fechados, entao a existéncia nao se abre para nds, para a consciéncia de nos- so préprio ser (algo importante para lembrar nos processos de mediag&o), Argumentando, procura-se vencer na luta. O argumento é uma ldégica guerreira. Quando se argumenta, s rma @, quando se afirma, se esta produzindo violenta agressao. A verdade nao pode ser conhecida por uma mente agressiva; tampouco pode ser des- coberta pela violéncia. Parece que existe algum problema ai. Primeiro, eu quero advertir que a procura da verdade, nos termos que a ciéncia mecanicista coloca, é por si mesma violenta. E uma forma de manipulagao do mundo e dos ou- tros. Endo importa que tentemos distinguir entre verdade como correspondéncia fatica e verdade como interpretaga&o, ambas sao manipuladoras. Segundo, quero dizer que o Unico sentido de verdade que importa é a que provém do ser como consciéncia, e a consciéncia do ser é a que vem através da sensibilidade. As verdades da ciéncia sao planejadas, e qualquer coisa que se planeja, foge do real, seré uma realidade construfda como simulacro, O mundo é um dizer sustenido por mitos, sob o mito energético da objetividade. Os sentidos do real nao po- dem ser encontrados construindo discursos, pois o real é um fluxo constante, ninguém sabe o que vai acontecer. Ninguém pode predizer o real, ele é imprevisivel. As verdades, como 20 Luis Alberto Worat momentos prediziveis do saber da ciéncia, s&o uma ficgéo, mito destinado a satisfazer nossa crianga insatisfeita e os lu- gares de medo; e com as quais pretendemos dotar de sentido © sem sentido da existéncia. Curioso destino da espécie que precisa correr atras do sentido da vida, intuindo que ela nao tem, e que a luta contra o sem sentido da existéncia é o que lhe da, finalmente sentido. Todos temos que ser mit6manos da transcendéncia, para acreditar em procuras impossiveis, que dao sentido a nossa existéncia. Procuramos fazer com que as impossibilidades existenciais da espécie tornem possi- vel ao homem encontrar, nessas lutas, o sentido da existén- cia. E impossivel amar, governar, educar, decidir os conflitos dos outros com justiga, porém nas lutas por realizar esses im- possiveis, encontramos o Unico sentido possivel da existén- cia. Nossas pessoais e tnicas formas de tentar.realizar os im- possiveis sao as Unicas verdades que podemos atingir. Terceiro, é importante que possamos distinguir entre os homens da ciéncia (e da filosofia) e os homens de sabedoria. Os homens da ciéncia tém verdades, respostas prontas. Vocé é irrelevante, sua pergunta no interessa; ele também é irrelevante. As respostas prontas estao na relagao entre o real e os discursos. Os homens de sabedoria nao tém respostas prontas para nds. As respostas que dao, provém do seu ser, nao do discurso, das teorias. Os homens da ciéncia geralmente se escondem detras dos discursos de verdade para desperdigar suas vidas. Sao verdades que tém cheiro de morte. Os homens sébios procu- ram que nés encontremos as respostas na vida, que‘a vida responda para nds. Os homens da ciéncia estéo em busca de teorias; os homens sabios estéo em busca da experiéncia da existéncia. Os homens da ciéncia precisam das instituigdes para pensar. Todos os homens da ciéncia vivem nas institui- goes, nao na vida. Muitos outros os imitam, confundem suas fung6es com sua prdépria pessoa (exemplos: juizes, promoto- res, professores). Le@eeeaeeeagags © Offcio do Mediador 21 Os homens sabios sdo os que ajudam os outros a rom- perem com as instituigdes e que entendem que todas as per- guntas que vém das instituigées, da cultura instituida sao to- las e as respostas. sao falsas. Quando nos tornamos sabios, nao existem perguntas, nao interessam as respostas que ve- nham de fora da totalidade de nosso ser. Unicamente vocé, eu, todos, conhecemos a verdade, quando amamos. O amor nunca argumenta. Nao ha argumentag&o no amor, pois nao ha agressdo. Quando se agride nao se ama. E tolice preocupar-se com perguntas e respostas. Todas as perguntas e respostas, culturalmente instituidas, sao ind- teis quando se procura uma nova existéncia. Neste ultimo caso, fala-se de uma busca que nos ensina o sentido profun- do do vazio erdtico (a reserva selvagem do espirito). Esse € 0 caminho que ensina a nos esvaziar de tudo 0 que nao deixa penetrar em nds 0 amor, os sentimentos, a vitalidade primor- . dial. Temos que nos esvaziar, neutralizar nosso ego, para per- mitir ao amor se tornar héspede dentro de nés. Para procurar uma nova existéncia, temos que erradicar tudo o que nos esta transbordando. Vivemos transbordados de opiniées, filosofias, doutrinas, saberes de mais, saberes que nos deixam tao cheios de nés mesmos, de lixo acumula- do em todos os anos de vida que nem mesmo conseguimos entrar dentro do préprio corpo. Ficamos fora do nosso pré- prio ser, todo bloqueado, sem ter consciéncia de nosso ser. A nova existéncia busca deslocar-nos, esvaziar nossa xi- cara existencial na procura de um pouco mais‘de consciéncia do préprio ser. A grande indagagaéo para uma nova existén- cia é quem nés somos. Estamos cheios de verdades comple- tas, respostas prontas, ansiedades, medos, angtistias que nos impedem de saber quem nés somos. Temos que nos esvaziar de tudo isso. Esvaziar-nos do ego. Uma indagagao que exige uma destruigéo de tudo o que nos impede de saber quem somos. 22 luis Alberto Worat O que se indaga é a existéncia, o que se interpreta é a matéria. Indaga-se 0 profurido, se interpreta a superficie. As perguntas e as respostas séo sempre de superficie. Nao é pos- sivel falar de verdades indagando a existéncia, indagando me- lhores condigées de existéncia. Aexisténcia da espécie melhora, quando a vivemos como uma brincadeira que transborda energia. As brincadeiras nao tém objetivos. O ego alimenta-se de objetivos para inscrever- se nas superficies que constituem o real como sociedade. Na superficie sempre é preciso fazer algo. Os objetivos impdem a necessidade de nossos porqués. Se o ego nao sabe, 6 por que nao tem objetivo. A existéncia nao tem objetivos e por isso nao precisa de porqués. 1.3 A xicara de cha tem uma enorme importaén- cia para um mestre Zen Quando se chega a um mesire Zen, carregado de per- . guntas ansiosas de respostas que brindem seguranga, carre- gados de nossa pequena cobic¢a ce poder e vaidades mil, por- tadores de um ego sem limites, de um ego contaminado de pequenos excessos (um ego que contém o que chamaria de buraco negro narciso: um desejo incontrolado que nos de- manda nos sentir a tiltima bolachinha do pacote), ele perma- nece em siléncio por um tempo e logo diz: “tome uma xicara de cha”. Quando um mestre Zen nos convida a tomar uma xicara de cha, o que ele esta dizendo é: “tudo isto que vocé esta perguntando e falando é bobagem. Seria melhor que vocé ficasse mais alerta em vocé mesmo e no mundo.” O convite a tornar cha de um mestre Zen significa: “tenha um pouco de meditag&o, um pouco mais de consciéncia”. E um convite para que vocé se desprenda de seu ego e comece a ligar-se com a esséncia de seu ser. E um convite para que possamos voltar para dentro, afinemo-nos e esperemos pela entrega, pelo Leama nae 2020200008 A082H8O400400040808 F © Oficio do Mediador 23 elixir da vida, pela transmutagao (que é algo muito maior que uma simples mudanga). Tomar uma xicara de cha é um con- vite a encontrar o amor, o éxtase, a unidade, a inocéncia ea simplicidade. E sintonizar com todos esses elementos para simplesmente ser; é também uma forma de evitar tomar o caminho das mil e uma formas de destruicgdo: status social, um nome prestigioso, ganhos pessoais, espirito de luta, a idéia de que sempre se ganha ou se perde, e a riqueza, que com freqiéncia ocultam, hegam, o auténtico ser interior, fazendo- nos sentir como um viageiro que nao encontra o caminho de casa. Contam que uma vez um filésofo procurou um mestre Zen para que ensinasse-lhe os segredos de sua sabedoria. O mestre primeiro ficou em siléncio e lego 0 convidou a beber uma xicara de cha. Ao servir o cha, o mestre encheu a xicara do filésofo, mas continuou despejando sem parar. O fildésofo ficou por um tempo observando o transbordamento até nao poder se conter, entdo pediu ao mestre que parasse de encher a xicara. E o mestre respondeu com estranheza: “como essa xicara, vocé esié cheio de opinides alheias, idéias, modas intelectuais, filosdficas, doutrinas, discursos, vaidades, Vocé esta cheio de perguntas. Como posso lhe mostrar 0 Zen antes que vocé esvazie sua xicara?”, Nao é possivel saber alguma coisa, quando se tem excesso de conhecimento. O excesso de informagao impede 0 acesso & sabedoria. A existéncia fecha- se as idéias. Um espirito carregado dle conceitos perde as asas Para voar e as raizes que possam lhe outorgar identidade. Para encontrar nosso auténtico ser, temos que esvaziar nosso interior, quebrar a xicara ou impedir que a xicara vazia Possa ser cheia novamente. A xicara nao pode ser cheia com nada que venha do exterior. E dificil crescer, viver, amar, vin- cular-se porque Carregamos toneladas de saberes que temos medo de abandonar, na incerteza, das formas de sua substi- tuigéo, medo do encontro com o novo, que é 0 modo de en- ‘ ee mame mn OOGOSeeeseeeeey 24 Luis Alberto Worot contrar consigo mesmo. O encontro consigo é 0 encontro com © novo que nos habita sem sabermos (nossa reserva selva- gem de sensibilidade). Existe muita estupidez imobilizadora em nossa cultura de frases feitas, conceitos rotinizados e verdades fatigadas. Uma estupidez que todas as gerag6es herdaram. No caminho da cultura institufda, diferente do que fazer os peregrinos de Santiago de Compostela, nenhuma ligdo é percebida, revela- da. A cultura instituida obriga a todos a transitar por um mes- mo caminho mil vezes trilhado. Fago sempre minhas rotinas culturais e sobrevivo no éxito do repetivel: visito a Alhambra e obrigo-me a maravilhar-me na fonte dos Leones, percorro 0 Museu do Prado, e faco minha rotina, vejo as meninas de Velazquez e nao enxergo nada do que olho. Vejo sem enxer- gar, visito o Museu de Dali e deslumbro-me onde fui culiural- mente mandado a deslumbrar-me. Nao me emociona a Gioconda, mas cuido-me em confessa-lo. Procurar uma nova existéncia é um trabalho de destrui- cao, uma morte. Se estamos preparados para essa morte, algo novo acontecera, viré um nascimento criativo. Se nés estamos prontos para morrer, podemos ter uma nova existéncia. Para isso, nado ha perguntas, nao ha respostas, s6 o caminho de esvaziar-nos de todas as perguntas e respostas acumuladas de modo a constituir o buraco negro narcisico. De tanto saber, o homem se esquece de viver. A gente precisa entender que tem que aprender todos os dias a deixar de saber e a fruir o sabor que nao se engarrafa, que nao leva etiquetas e que nao tem registro nos diciondrios. O tnico sa- ber valido, diz Barthes, é aquele que se identifica com sabor: um momento de luz irrepetivel que as palavras nao poderao aprisionar. Um livro como esse, um mestre, um mediador, unica- mente e apenas, podem servir de parteiras, ajudar, proteger, guiar. O fenémeno real da transformagao para uma nova exis- meme meeeaeeeeee he e2eeeheeeeaaaagas © Oficio do Mediador 25 téncia unicamente acontecerA em nés. Uma transformagao que necessitamos encarar fugindo das bibliotecas, caindo ern alguns bragos, construindo a vida, imprevisiveis e aventurei- ros, em um corpo, no encontro de labios, no aroma da pele. O resto de nossa histéria ja nao existe, Escapemos das palavras, dos filésofos que fazem o show da profundidade. Os surrealistas equivocaram-se quando ten- taram fazer filosofia mediante 0 escAndalo. Mataram o silén- cio que tira o véu do concedido. Isso 6, para mim, o real ma- ravilhoso: olhar o que geralmente nao se enxerga, escutar a voz que nao se capta. Os tinicos milagres possiveis estao em nossa propria sensibilidade. Ela é a que constitui o real mara- vilhoso. O real maravilhoso ensina que é preciso sair das prisoes das palavras para encontrar-se consigo e com os outros. As palavras excluem os sentimentos. Eles estao, mas nao pode- mos percebé-los, permitir que nossa sensibilidade os descu- bra. Que fazer para tirar-lhes o véu da auséncia? Os senti- mentos existem ausentes. Como fazer para recuperar sua pre- ‘senga? Acredito que a resposta é: encontrando-se consigo mesmo. Kairos, em grego, quer dizer “o momento certo”, um acon- tecimento tinico onde a vida e a oportunidade encontram-se e produzem um acontecimento irrepetivel, produz 0 novo, a diferenga, a revelagdo, um véu que cai, algum sentimento recalcado, que nos negamos a saber que saibamos. Vem a luz. Kairos, 0 modo de encontrar-se consigo mesmo. Haverd sofrimento, nenhum nascimento é possivel sem sofrimento, por isso nao tentemos fugir do sofrimento. Esse é o ponto onde nés podemos pér tudo a perder. Nao tenhamos medo. Osofrimento existe, é parte da vida, do crescimento. Nao ha nada de mal nisso. Ele torna-se um mal, quando é simples- mente destrutivo e nada criativo, Torna-se um mal, quando Luis Alberto Warat sofremos e nao ganhamos nada com isso. O sofrimento quei- mara, destruiré em nés 0 lixo qué nds acumulamos. A nova existéncia nos espera. Nunca reprimamos 0 sofrimento, liberemo-lo. Se nés per- dermos essa oportunidade seremos os unicos responsaveis. O rio esta fluindo, porém, se nds nao pudermos inclinarmo- nos para beber, ndo podemos renunciar as nossas atitudes egoistas, e é provavel que continuemos com sede. Nao culpe- mos 0 rio, Nés estavamos paralisados por nossa mente e nos- so ego transbordando, Quando 0 ego ea mente estao trans- bordando, nada pode ser feito, a existéncia inteira estA ao nosso redor, paralisando-nos. Quando 0 coragao fica leve, 0 corpo fica sempre solto, entao nés ficamos prontos para dar um salto no desconhecido. . A sabedoria vem através da aceitagao do que acontece, seja o que for. O sofrimento sera um aprendizado, entéo nos tornamos criativos. A sabedoria vern da experiéncia feita, do conflito vivido por uma consciéncia alerta, como experiéncia. feita. E qualquer coisa que aconteca, deixemos que ela acon- teca e passemos por ela. Breve o sofrimento sera um aprendi zado, tornar-se-a criativo. Isso é 0 que a sabedoria tem que ensinar. Quando nos submetemos, criativamente, & experiéncia podermos sentir como o medo nos dara destemor; como da raiva surgiré a compaixao; do édio compreendido surgira o amor. Porém, tudo isso nao acontece no conflito, mas, sim, na experiéncia vivida, com uma consciéncia alerta e criativa,. no conflito mediado. Qualquer coisa que acontega, deixemos que ela aconte- ca e passemos por ela. Um problema desaparece, se nds 0 aceitamos, mas torna-se cada vez mais insustentavel, se nés criamos condig6es para multiplica-lo, criamos condig6es para amplid-lo, e nos negarmos a vivé-lo como experiéncia criati- va. Se nés temos um problema, nao criemos outro dentro dele. O Offcio do Mediador 27 Nao lutemos, nao tenhamos medo, nossos meds, pois assim estaremo: blema. E mais facil resolver um pro! plos. Unicamente, o primeiro esta mais perto da origem. Quan- to mais distante da origem do problema, mais dificil se torna resolvé-lo. Um problema torna-se cada vez mais complexo, se criarmos qualquer contflito com ele, n&o nos escondamos em s criando um outro pro- blema de que seus milti- 1.4 - Quando existe um si vem o medo E bom nao estimula-lo, tina, num circulo vicioso, Oo medo multiplica o sofrimento, impede que passemos criativamente Por ele, determina-nos, inconscientemente, a nos esconder. Os medos criam mil formas de esconder-nos, de impedir-nos de Passar pela vida, de enfrenta-la, que 6 a Unica forma de vivé-ia, Os covardes constituem-se como tais, nao por terem medo, mes por usar o medo para esconder-se da vida, mas por evi tar colocar seu corpo no mundo. O medo é tao traigoeiro que pode criar uma bravura ao tedor de si; uma bravura indeterminada contra © mundo que é um simulacro de enfrentamento do conflito, Uma bravura bravura que, unicamente ‘ofrimento, geralmente, Para que nao continue numa ro- raizes, um Peso q possibilidade de riatividade, toda possibilida. zado, de de aprendi- Nossa mente cria medos, ddios, citimes, Temos que im- ir que esses sentimentos (que nos fazem sofrer) criem con- flitos. Eles tem que ser vividos, temos que passar Por eles sem ( 4 ame eee eHe ESE EUETETCUUATLL “oT www www ee eB ODOUUULUGEEEEL 28 Luis Alberlo Warat criar problemas. Os sofrimentos devem ficar sempre na peri- feria de nosso ser, assim evitamos fazer do sofrimento uma tortura continua para nossa alma. O recomendavel é sofrer sem interpretar, sem criar teorias em torno do nosso sofrimen- to. As teorias servem para esconder-nos do sofrimento e fugir da vida. Para nao nos escondermos é preciso comegarmos por ser auténticos, interior na raiva, na dor e no amor. As pessoas aprendem a simular tudo. Quando entram na raiva, sorriem. Sdo falsas, mesmo com raiva, mentem. Toda a vida é uma mentira continua. Seu amor nao merece crédi- to, pois sua raiva também nao merece. Esta sempre mostran- do uma outra cara. Se nds formos fntegros em nossa raiva, seremos {ntegros quando a raiva desaparecer. Nés estaremos mediados. Se formos falsos em nossa raiva, néo poderemos ser re- ais em nosso siléncio. Toda tentativa de mediagao estara fa- dada ao fracasso. As mascaras, muitas vezes, permitem en- ganar. De fora, parecer o céu, mas dentro serd o inferno. Estaremos fragmentades, tudo tera sido inttil. As coisas frag- mentadas nao podem desaparecer. A raiva fragmentada nao desaparece integralmenie. Na integridade, na totalidade, elas’ desaparecem. Na maxima autenticidade da raiva ou do amor, nesses picos, as coisas podem ser compreendidas. Elas se tornam penetrantes, e a pessoa entao pode ser alertada, mediada. 1.5 - Para ficar mediado, é necessdrio ser auténtico Nao tentar aparéncias do contrario (o pecador que apa- renta santidade). Unicamente com o tempo, se atinge o esta- do contrario na autenticidade (um pecador auténtico pode tornar-se santo). O segredo é a autenticidade (que pode nos levar ao estado contrario). O pecado, a raiva, os citimes nao so o problema; o problema é a autenticidade. 2 Oe OO 6 26.0.0.0:6:6 8 FO REE O Oficio do Mediador 29 Para comegar a ser auténtico é preciso estar consciente que nao ha ninguém para ser enganado. Vocé esta enganan- do a si mesmo ao tentar fingir, ao tentar esconder, Quando vocé esconde esta se escondendo de si mesmo. Ser integro é uma coisa basica. Da maturidade, haveré sofrimento, indo ao fundo, mas nés podemos compreender- nos. Sé uma mente integra pode compreender-se. Assumamos as conseqiléncias, mas nado enganemos a ndés mesmos. Por causa das conseqtiéncias, tentamos enga- nar. Por causa das conseqtiéncias, nunca ficamos com taiva, com édio. Aquele que é incapaz de abrir, completamente, a porta do inferno, sera incapaz de abrir, completamente, a porta do céu, que passa pelo inferno. O inferno tem que ser criado primeiro. A fungao do mediador comega por af. Ninguém pode ~criar_ 9 céu_primeiro, Os mediadores que apostam no céu se -equivocam. Ninguém pode criar 0 céu para ouitu, unicamen- te, pode estimular 0 inferno, para que o outro possa chegar ao céu. Quem n&o passa pela raiva, 0 citime, a dor, nao pode _alcangar o amor. Nés temos que estar fervendo, s6 ent&o po- demos, evaporar. O mediador deve usar toda a sua sabedoria para conse- -guir deixar o problema fervendo. Se deixar as partes mornas, sera inttil o trabalho, pois elas ficarao novamente frias. Para ficar mediado é necessdrio chegar ao ponto de ebuligao, A transformagao alquimica A mente é a criadora dos conflitos quando nao est4 em sintonia com o sutil e com o invisivel. O invisivel é o que ndo pode ser visto no comum das coisas, pois se precisa de olhos mais refinados. Os olhos refinados precisam de harmonia e do siléncio, Eles néo precisam de perguntas. Se nao pergun- tamos o que é, e tornamo-nas silenciosos, sem mente, aquilo que é se revela. Entender o sofrimento, no siléncio, é uma forma de meditar. 30 Luis Alberto Worat O visivel esconde o invisivel. A consciéncia mediadora vem através da sensibilidade Que é uma percepgao sutil do invisivel, uma percepgao sutil que unicamente se ganha pela .gspontaneidade. Temos que ficar mais sensiveis em qualquer coisa que fagamos, mesmo em uma coisa que parega tao trivial como beber uma xicara de cha, . As instituigdes matam a espontaneidade. As pessoas vi- vem nas instituig6es, ndo na vida. A vida toda tornou-se uma instituigdo, onde os deveres tém que ser cumpridos, onde um. modelo tem que ser sequido. Nao ha exuberancia de energia. A energia é roubada. A mente e a ciéncia realizam-se nas instituigdes, sao interdependentes. O ser auténtico, como ser harmonizado {ou mediado, d& no mesmo), é aquele que rompe com as institui- gdes e vive espontaneamente, sem ser prisioneiro de uma mente que acredita assegurar os acontecimentos. Ser harmonizado é renunciar a tudo o que é falso, mas nao renunciar ao mundo. Renunciar a todas as respostas, mas ser sensivel, espontaneamente sensivel,; nao pensar nas raz6es, mas ser real. Isso n&o é facil, HA muito investimento de energia nas falsidades, nas teatralizagdes (que sao sempre formas sutis do simulacro, nas mascaras, nos jogos periféri- cos, que nao sao outra coisa que armadilhas do ego). Ser harmonizado significa que agora tentaremos viver no presen- te, vamos sacrificar 0 futuro pelo presente, mos o presente pelo futuro. O centro é sempre um lugar vazio para o éxtase. Preser- vemos 0 centro vazio, evitando que o sofrimento chegue a ele.” Para isso é preciso quebrar a periferia; 0 que no Zen chama- se quebrar a xicara. aacagese ees nunca sacrificare- 1.6 - Tentemos sentir o conflito O grande segredo, a meu ver, da mediag&o, como todo segredo, é muito simples, tao simples que passa despercebi- aan eee eaeeeeeeeee © Officio do Mediador 31 do. Nao digo tentemos entendé-lo, pois nao podemos entendé- lo. Muitas coisas em um conflito estao ocultas, mas podemos senti-las. Se tentarmos entendé-las, nado encontraremos nada, corremos 0 risco de agravar o problema. Para mediar, como para viver, é preciso sentir o senti- mento. O mediador nao pode se preocupar por intervir no contflito, transformé-lo. Ele tem que intervir sobre os sentimen- tos das pessoas, ajudé-las a sentir seus sentimentos, renunci- ando & interpretacao. Os conflitos nunca desaparecem, se transformam; isso porque, geralmente, tentamos intervir sobre 0 conflito e nado sobre o sentimento das pessoas. Por isso, 6 recomendavel, na presenga de um conflito pessoal, intervir sobre si mesmo, trans- formar-se internamente, ent&o, o conflito se dissolverA (se to- das as partes comprometidas fizeram a mesma coisa). O mediador deve entender a diferenga entre intervir no conflito e nos sentimentos das partes. O mediador deve aju- dar as partes, fazer com que olhem_a si mesmas.e nao ao conflito, como se ele fosse alguma coisa absolutamente exteri- or a elas. mesmas. Quando as pessoas interpretam, escondem-se ou tentam dominar (ou ambas as coisas). Quando as pessoas sentem sem interpretar, crescem. Os sentimentos sente-se em siléncio, nos corpos vazios de pensamentos. As pessoas, em geral, fogem do siléncio. Es- condem-se no escandalo das palavras. Teatralizam os senti- mentos, para nao senti-los. O sentimento sentido é sempre aristocratico, precisa da elegAncia do siléncio, As coisas sim- ples e vitais como o amor entende-se pelo siléncio que as ex- pressam. A energia que esta sendo dirigida ao citime, a raiva, a dor tem que se tornar siléncio. A pessoa, quando fica silen- ciosa, serena, atinge a paz interior, a nao violéncia, a amorosidade, Estamos & caminho de tornarmo-nos liberda- de, Essa é a meta da mediacao, Para nao nos escondermos é preciso comegarmos por Ser auténticos, integros na raiva, na dor, no amor, Quando ¢ he wo OOOSEEEE EEE LVOVIVIVVVIs dA sdsI Psd SISSHECLE AIT 32 Luis Alberio Wort nos escondemos, estamos nos negando a ver a cara do pré- prio desamparo, que é algo dificil de administrar. E um vincu- lo desesperado com a prépria morte. -Quero falar da mediag&o indo ao fundo de nossos mal- estares, encontrar a raiz que gera um permanente estado de Conflito conosco e com os outros de nosso convivio..O reen- * “contro com o manancial que transforma. O ocidente e sua condig&éo moderna cegou-nos para o amor e para nossa prépria natureza interior. Nossa reserva selvagem (nosso inconsciente amoroso) ficou impenetravel, longe de nés mesmos, rodeada de verdades e palavras que nos armaram contra nossa prépria alma. O mundo esta con- vertido no lugar dos grandes simulacros onde se multiplicam ao infinito as frustragGes, as dores, onde a violéncia e o édio fervem, devagarinho, por trds de uma aparéncia de conformi- dade. e Vivernos em sociedades onde os resultados, o éxito pes- soal, as armaduras com as quais construfmos nossa imagem, os simulacros que realizam a vida, a adaptagao conformista faz que nos afastemos radicalmente do que autenticamente sentimos, de todos os nossos sentimentos, Nascemos em uma cultura neurdtica que esté sofrendo um Processo de mutag&o rumo a psicose. O contagio é quase inevitavel, se nado. recupe- ramos as necessidades do coragao. Perdemos, ao longo dos séculos, as necessidades do inconsciente amoroso (o imagi- nario radical dos sentimentos) que se forgou, transformado em falsas necessidades simbélicas. Sentimentos e pensamen- tos separam-se na bifurcagéo de algum caminho. Terminamos identificando-nos com as idéias e os pensa- mentos, deixando de ir aos sentimentos. E mais, quando di- zemos 0 que sentimos, no fundo, pensamos o sentimento. Nossa mente resolve se amamos ou odiamos. Nossa mente situa-nos nos conflitos. Perdemos as possibilidades de escutar © préprio corpo quando sente. Nossas camadas superficiais, SSOOSSFSSBECUY (j\PesesEe, 4 O Oficio do Mediador 33 periféricas estao armadas de pensamentos, comandadas por nossa mente e afastadas de nossos sentimentos, geralmente, recalcados na reserva selvagem. O certo é que nada nos ajuda a aprender a sentir. Aju- daram-nos a aprender a valorizar, a teorizar, a pensar sobre os sentimentos, porém n&o sabemos sentir 0 que sentimos. Em cada oportunidade em que pergunto a meus alunos 0 que estao sentindo, quase todos nao conseguem se expressar, li- mitando-se a fazer alguma construgao teérica sobre os senti- mentos, pois nado sabem 0 que est&o sentindo. Podemos veri- ficar que nenhum deles foi ensinado a aprender a sentir, e mais, diria que tiveram na infancia influéncia de maiores que os castigavam, nas vezes em que queriam expressar senti- mentos diferentes dos adultos. Um homem nao chora, nado pode ter medo das ondas do mar. Geralmente, essas afirma- g6es eram acompanhadas por ameagcas de castigos. O resul- tado sdo adultos que pensam ou valorizam seus afetos, sem saber senti-los. O pior é que o que sentem os assustam e se culpam. Nés néo podemos sentir nada por esse homem, é muito mais garoto que nds. Nao devemos, pouco importa o que ele sente. 1.7 - O sentimento do outro . Os caminhos da mediagdo podem ajudar a recuperar os sentirmentos que fazem o que somos; a desfazer-nos das ca- madas superficiais para sermos muito mais integros nos con- frontos com o outro. Essa é uma forma de poder sentirmo-nos desde o sentimento do outro, integrando-nos ao sentimento do outro, A mediagéo, em uma primeira aproximagao, nao seria outra coisa do que a realizacao com o outro dos préprios sentimentos. Fazer mediagéo nada mais é que viver, viver em harmonia com a pr6pria interioridade e com os outros, viver em harmonia com a prépria reserva selvagem. 34 . Luis Alberto Warot dJuntando todos esses sentidos, poderfamos afirmar tam- bém que a mediagdo é uma possibilidade de poder ter o direi- to.adizer o que nos Passa, ou uma procura do préprio ponto de equilforio e do ponto de equilibrio com os outros. Seria um ponto de equilibrio entre os sentimentos e as razées para evi- tar os excessos dos sentimentos, os sentimentos desmedidos. A mediag&o como um encontro consigo mesmo é uma possi- bilidade de sentir com o outro, produzir com 0 outro a sensi- bilidade de cada um: o.entre-nés da sensibilidade. A sociedade e suas condigées impdem a censura aos corpos que sentem. So as idéias que determinam as condi- g6es para que os outros nos amem, sejam indiferentes ou nos tenham édio. As idéias sempre mostram, falsificadamente, os sentimen- tos. Quando pensamos estabelecemos necessidades simbdli- cas que sao, em muitos casos, falsas em telagao ao nosso corag&o. Sao palavras exiladas do coragao. Esse desdobra- mento da personalidade é para a Perspectiva tantrica dos sen- timentos, neurose. . Nés homens necessitamos, para viver, do poético e do metaforico. A ciéncia nao pode dar significado a vida. A vida 86 tem sentido, para nés, por meio do coragao, sendo impos- sivel viver unicamente pela mente, pela razo ldgica. A mente pode tornar-se perigosa quando pretende se converter no mes- tre de nossos sentimentos, Existe a linguagem da ci ncia, dos fatos objetives; uma linguagem que serve para definir e prescrever limites, que tira esplendor as coisas e quita o sentido da vida. Eo amor redu- zido a um acontecimento bioldgico. A linguagem da ciéncia tem grandes méritos, o mundo Nao pode ficar sem ela, porém, é uma linguagem que nao pode ser 0 objetivo da vida, é impossivel usa-la, quando pre- tendemos abrir nossos Coragoes e dizer o que esta dentro de NOs, oculto e quase impossivel de nomear. 2.O.O.0.0-00006400004 2202985 = » . ® D» > D » Dd » » » » » » » » » b O Officio do Mediador 35 A linguagem da ciéncia e da comunicagao ou da razao ordinaria é inadequada para exprimir os mistérios da vida e do coragdo, sendo, portanto, inadequada para trabalhar os conflitos nos processos de mediag&o. Os que tentaram com- preender logicamente um conflito medieval ficaram desnorte- ados. Eles somente puderam ser assimilados sensivelmente, poeticamente e unicamente poderao ser abordados com pro- fundo sentimento e amor. Nao é possivel abordar um proces- so de mediag&o por meio de conceitos empfricos, empregan- do a linguagem da racionalidade légica. A mediagao é um A processo do corag&o; o conflito, precisamos senti-lo ao invés de pensar nele; precisamos, em termos de conflito, sé-lo para conhecé-lo. Ser e conhecer, nao ha outro conhecimento. _ _Os coniflitos reais, profundos, vitais, encontram-se no co- ragao, no interior das pessoas. Por isto é preciso procurar acordos interiorizados. E por isso que a mediagao precisa escolher outro tipo de linguagem. Ela precisa da linguagem poética, da linguagem dos afetos, que insinue, a verdade e nao a aponte diretamente; simplesmente sussurre, e nao grite. Um sentido vem a nés quando ha uma conexao profunda. Uma linguagem. usada como estratégia, de tal modo que os coragdes em conflito possam ser tocados. Estamos falando de uma linguagem poética sem nenhuma pretensao estética ou literaria. E uma poesia, as vezes, rustica, sempre exaltada por sua maneira indireta, ferninina de insinuar coisas. A lin- guagem que nos permite vincular, recebermos, como uma melodia, o sentido do amor. Semioticamente falando existem duas linguagem na lin- guagem, duas intengées de expressdo, uma dupla fung&éo: uma é prosa fatica, a linguagem dos conceitos, dos pensamentos, do ego, da mente e das verdades determinadas pela’ razao conceitual; a outra é a poesia, a linguagem que nos comunica com as reservas selvagens que, de repente, irrompe para re- velar a fragrancia das coisas do inconsciente amoroso, o que @2Gee 244 2 @ @ 4 4.i om. a FRPPOFPPSSSSOCEELLLLLLETET » » » , wwe 36 Luis Alberto Worat unicamente pode chegar pela experiéncia melédica dos senti- mentos. A linguagem que estou chamando do coragao transmite aquilo que nado pode ser transmitido pela linguagem fatica (entendida intelectualmente), deseja dizer aquilo que nao pode ser dito pela linguagem da comunicag&o ordinaria. E ela é capaz de transmiti-lo, quando, as vezes, ndo tentamos entendé- lo intelectualmente e passamos brinear com ela com profun- do amor, simpatia e conexao. Lentamente, como uma melo- dia, algo manifestar-se-A, e néds seremos capaz de perceber o que o outro sente e deseja expressar através do conflito. O mediador deve ajudar para que as partes do conflito possam ouvir essa melodia que chega da camada oculta da segunda linguagem como a possibilidade de conversao do conflito. A segunda linguagem é um fogo de amor, que contém uma for- ¢a magica, é uma linguagem que, como em toda poesia trans- mite uma significagao magica. A mistica, como poesia, nao tolera as definig6es estati- cas e redutoras. Fala de experiéncias espirituais e do secreto da existéncia Para adentrarmos positivamente nos conflitos com os outros devemos deixar de ser uma mente social, retornar ao nosso centro que sente (a reserva selvagem, o imaginario -ra- dical dos sentimentos). Um sentimento é total quando implica o corpo, a mente e tudo o que 6, Um pensamento sempre é fragmentario. Ao pensar somente nossa mente est comprometida, porém, nao de um modo total, somente um fragmento, um pensamento que passa, que pode nAo existir no préximo instante, e isso cria muitas dificuldades, muitos sofrimentos, porque um pen- samento fragmentado pode prometer muitas coisas que po- dem nao se cumprir. As promessas que provém de um pensa- mento fragmentado, fracionado, séo, em linhas gerais, acor- dos que podem nao se cumprir, pois a totalidade do ser nao mn mmmmnnnceaceeee ee ees ssssassssd © Oficio do Mediador 37 esta implicada, involucrada. Que podemos fazer amanha, quando o fragmento ja nao esta instalado em nossa mente? Nesse momento, a promessa se converte em uma escravidao. O que tentamos fazer é fugir, pois o acordo no sera cumpri- do. Quando o acordo é de palavras, seu cumprimento sempre sera altamente duvidoso como as promessas de amor feitas em nome do futuro. Nos processos de mediagao, como negociagao transformadora, em regra geral, se procura chegar a um acor- do de palavras, a um acordo que se celebra desde a mente. Esses acordos s&o fracos, falsos, correm o risco de agravar o conflito. Oo iad _celebrar acordos do coragao, promessas assinadas desde os sentimentos, sentidas, totais. Ele deve evitar que as partes pro- metam unicamente com a sua parte mental ou algum tipo de. interesse, que fagam um acordo de pensamentos, pois esse compromisso faz nascer a hipocrisia. a E provavel que as partes tentem cumprir o compromisso, fagam um esforco, fazendo de conta que cumprem o acorda- do. Pretenderam cumprir, mas o conflito permaneceré além do acordo. Os conflitos nao se transformam, perdem seu ma- nancial criativo com acordos que cumprem a fungao de uma descarga para nossa energia em conflito. 1.8 - O tempo da mediagao A mediagao é um processo de sensibilidade que institui um novo tipo de temporalidade, de fazer do tempo um modo especifico da auto-alteragao. O tempo instituido come tempo da significagao, da alteridade que me reconstitui como singu- laridade em devir. Falo do tempo do devir fazer da singulari- dade, do tempo que nos aproxima do que realmente senti- mos, qué nos conduz rumo a nossa reserva selvagem, ao cen- tro recalcado dos préprios afetos. tem que ajudar as partes para que possam_ 38 luis Alberto Warat O tempo da mediag&o, que aponta a sensibilidade como o tempo do amor, 60 tempo em que existe Kairos: o momento certo, o instante Propicio para agir, lapso de crise, ocasiao para a decisao, Ha pouco tempo, em uma aula de mediagao, um juiz Perguntou-me como se Pode executar um acordo obtido me- diante um processo de mediacao. Ficou abalado com a mi- nha resposta: “os afetos nunca podem ser executados.” Mi- nha resposta o Surpreendeu porque estava raciocinando com Os mitos, as crengas, o senso comum dogmatico que organiza a cabega dos juristas em geral. A mediagéo precisa ser enten- dida, vivida, acionada com outra cabega, a partir de outra sensibilidade, refinada e ligada com todas as circunstancias, no s6 do conflito, mas do cotidiano de qualquer existéncia. Quem vai mediar, precisa estar lig: lo com a vida. 1.9 - Mediagao e sensibilidade A mediag&o como -precesso que recupera a sensibilida- de, ainda que leve ao crescimento interior na transformagao dos conflitos e Pretenda suprimir as neuroses da bifurcagéo entre a mente e os sentimentos, nao pode ser Ppercebida como uma mediagao tantrica. Existem diferengas consideraveis, O Tantra, no que aqui unicamente me interessa ressal- tar, nega todo valor positivo aos conflitos, recomenda nao estar contra nada, eliminar todo tipo de diferenga, na medida em que o conflito seria algo destrutivo para atingir nossa uni- dade essencial (o que eu chamo de reserva selvagem).A me- diagdo que realiza a sensibilidade, ainda que muito préxima do Tantra, tem uma atitude diferente diante da vida e dos conflitos. A mediacao que realiza a sensibilidade 6 uma forma de atingir a simplicidade do conflito. Tenta que as Partes do confli- to se transformem descobrindo a simplicidade da realidade. A mediagao com sensibilidade é uma procura da simplicidade, 4 O Offcio do Mediador 39 Contudo, a mediagao, comprometida com a sensibilida- de, rejeita o valor da conflitividade interior. Nao descarta o valor positivo do conflito com 0 outro, porém nao aceita como boa uma atitude interna conflitiva. As pessoas tém que estar com seus conflitos internos resolvides. Quem nao resolve seus conflitos internos, nao pode ficar aberto para o amor, n&o pode amar, nao pode inscrever o amor no meio do conflito. O que podemos afirmar é que a mediag&o com sensibi- lidade, em suas varias filosofias, toma do Tantra muitos ele- mentos para redefinir seus métodos, técnicas e objetivos. A reintrodug&o dos sentimnentos no coniflito é tantrica, por exce- léncia. A mediagao que nos ocupa procura rever os conflitos a partir de sentimentos que nao tentem acalmar o ego. O processo de mediagao com sensibilidade é um estado de amor. Os estados de amor nao tém nada a ver com 0 ego. Nesse sentido se trataria de um amor tantrico. Quando se fortalece 0 ego, nao se ama. O ego faz nascer estadas de conflitividade interior que impedem nossa reserva selvagem de conhecer aredes clo amor, A mediagao que aponta a sensibilidade, com a ajuda do mediador, procura que as partes deixem de sentir 0 conflito a partir de seus egos. Tenta que as partes sintam o conflito ten- do por referéncia os sentimentos que guardam em suas reser- vas selvagens. O ego e amente tornam amargurados e violen- tos os conilitos. A ira provém da mente e do ego, O egoea mente s&o geradores dos conflitos interiores, instalando-os em nossa alma. . Quando um outro gera conflitos, nos agride, Instala tam- bém, em nosso interior, conflitividade que a mente e o ego, egoicamente, melodramaticamente multiplica. A mente intro- duz pensamentos que poluem o que sentimos, daf nasce o conflito interior. A simplicidade consiste em afastar os pensa- mentos para recuperar o sentimento. Vou dar um exemplo. Estamos tendo um sentimento de amor por uma pessoa. De ® - ® > » > > > > > » » ’ ) » ’ y ) ’ , mmc ce eaeeeerHEretrryt BUEVVSSCUeSeVsIIIISISIISSSEEGbbles sessed 40 Luts Alberto Worat repente, nosso ego instala uma semente de citimes, um pen- samento de que o outro pode estar interessado em alguém diferente de nés. Esse pensamento, que nos faz sentir instala um conflito que nos impede de desfrutar osentimento de amor. A simplicidade consiste em nos afastarmos do peénsamento que envenena para recuperar a pureza de nosso sentimento de amor, para sentirmos o amor, sendo nosso corpo 0 Laila O ego-mente introduz sempre a segunda intengdo, ama intengdo, a intengao hipécrita, que é, sempre um sentimento simulado, mentalizado, que usa o sentimento como 4libi para conseguir resultados lucrativos, como quando se diz a uma mulher que se quer, quando é apenas para usd-la como obje- to sexual. Os sentimentos de segundas intengdes_instalam conflitos interiores, As segundas intengdes geram sentimentos negativos, que nos impedem de vivenciar Os sentimentos po- sitivos. Sentimentos negativos como a vinganga, os medos, a ansiedade, o citime e as magoas que tendem a agigantarem- se e a preencherem os espacos disponiveis para o amor. Por isto, é fundamental trabalhar a sensibilidade na mediacao para podermos esvaziar os espacos negativos, fazermos com quea energia circule, brote e transforme, Saopoucas as pessoas que expressam sentimentos ser segundas intengdes, Para os homens de segundas intengées é dificil suportar os homens unisentimentais, Ihes dao medo, e geralmente, fogem, Pois esses os irritam. As espontaneidades afetivas as: Quando se fala em a rendo dizer: ter a capaci iproveitar os momentos, se est4 que- dade de torna-los simples, Os mo- 990000949 OHO Heaeeaeceoaceseseeced SESCCVVGUVUS © Offcio do Mediador 4y mentos aproveita-se deixando fluir os sentimentos, e nao 0 descontrole do egocentrismo. Cortazar falava dos cronépios e, com essa idéia, queria expressar a energia vital, que um homem pode adquirir um homem para poder tornar simples até os momentos mais dra- maticos. E a energia que consegue desdramatizar os aconte- cimentos para poder salvar a vida. O programa de mediagao e sensibilidade pretende que 0 mediador ajude as partes a desdramatizar seus conflitos, que os transformem para que s6 restem os sentimentos que acres- centem algo de bom 4 sua vitalidade interior. Esse programa nao é uma técnica, nem uma filosofia ao modo tradicional; ele é uma forma de ver a vida que encontra o sentido da mes- ma, unicamente, vivendo-a. Falo da mediag&o como uma for- ma de cultura, um determinante de uma forma de vida. A mediagao com sensibilidade introduz 0 amor como condigao de vida, como uma forma de sentir e encontrar sen- tido para a vida. Isto é, o amor como dom supremo do senti do da existéncia. Por intermédio da mediagao com sensibili- dade se tentaria reintroduzir no conflito o amor. 1.10 - Como se forma um mediador? Formulo essa pergunta porque creio que as escolas de mediagao, em sua grande maioria, estao fracassando como formadoras de mediadores, Elas se ocupam em proporcionar técnicas e rituais, um guia de formalidades, um receituario de boas recomendagées, um planejamento para conseguir que as partes possam chegar a um acordo. Formam conciliado- res, negociadores, nao mediadores. A grande maioria das escolas de mediagao preocupam- se emr produzir um profissional, introduzindo técnicas perifé- ticas e estereotipadas de comunicagao. Algumas falam em planejar o jogo, como se fosse uma partida de xadrez, que deve ser preparada para que os rivais possam prop6r-se tablas. 42 Luis Alberto Warat -A mediacao nao é uma ciéncia que pode ser explicada, ela é.uma arte. que tem que ser experimentada. Muitas escolas de mediagao acreditam formar mediadores como-se. fossem magos que poderiam acalmar as partes, com seus truques. A- magia é outra, consiste em entender de gente. Para ser mediador é preciso ascender a um mistério que esta além das técnicas de comunicagao e assisténcia a tercei" ros. Os conflitos, como parte da vida, nao podem ser compre- endidos, Um enigma pode ser resolvido, Um mistério é inso- lGvel por sua prdépria natureza. Néo se trata de ensinamentos. Um mestre de mediaga&o forma discipulos, estando disponivel. Eo discipulo desfrutan- do do mestre, celebrando-o. Um mestre, como homem sabio, esta dangando interiormente. O discipulo é aquele que se tor- na parceiro nessa danga. Diante de um mestre, o discipulo deve ficar sempre A vontade, pois, quando poderosa. Quando se esta tenso, fica-se fechado, e entdo o mestre nao pode chegar ao seu corag&o. O encontro com um mestre € sempre um momento de intimidade. Quando se ten- ta ensinar técnicas, teorias, doutrinas quebra-se a possibili- dade de um momento de intimidade. As técnicas criam dis- tancia, geram frieza. As teorias e as técnicas nunca nos dei- xam sentir em casa. Quando a razdo interroga a raz&o, so- mente, produz 0 vazio. A magia na formagaéo de um discipulo provém da sensi- bilidade. SAo dimensées do sentimento, da sensagao, Nao podemos compreender o mestre, porém, podemos senti-lo. O sentimento é sempre uma compreens&o mais alta. Isso por- que 0 coragao é 0 centro supremo do conhecimento, da sabe- doria. A mente é secundaria, tem utilidade, permite conhecer © superficial, a periferia. Um verdadeiro discipulo aprende dos siléncios do mestre, assim como de seus proprios silénci- os. O encontro de um mestre com seus discipulos é uma esta & vontade, a pessoa torna-se * meee eAAAAAAAAATLATERATARARADERDDDS O Officio do Mediador 43 sintonia com o sutil, com o invisfvel das coisas. Um acordo de invisiveis. Um entendimento de simplicidades. O mais sim- ples sempre foge & compreensao. Para entender é preciso uma coisa complexa, que precisa ser dividida e analisada. Quan- do se pergunta pelas coisas simples, nao ha respostas. Diante das coisas simples, a Unica possibilidade é tentar senti-las, nao digo tentar entendé-las. Muitas coisas estao ocultas na simplicidade, e podemos tentar senti-las. Se tentarmos enten- der, nao encontraremos nada. O mestre encontra-se com seus discipulos para produzir o novo na sensibilidade, para produzir com o outro uma dife- renga na sensibilidade. Equivocam-se os que pensam que a diferenga se produz na linguagem, no simbdlico. A diferenga é sempre de sensibilidade, de sentimentos. A produgao do novo tem a ver com a existéncia, nunca com as palavras, pois nao existe novidade nas palavras. Tratar-se-ia de tentar viver no que € novo, . Tudo esta sendo cri @ cada momento; a vida é um fluxo continuo de criatividade. Toda a existéncia est4 sempre nascendo; é tao fresca como uma gota de orvalho, Essa é a primeira coisa a ser sentida, Se olha-se para o mundo e sen- te-se que tudo esté velho, entao, devemos pensar que temos uma mente velha. Se as coisas ficarem velhas, viveremos entediados, irritados, mortalmente entediados, carregaremos a vida como um peso, nao poderemos entender o sentido da felicidade como harmonia. Para que nada fique velho, princi- palmente, para que nés nao fiquemos velhos temos que tentar renascer, constantemente, no novo. Assim, a existéncia fica uma danga, um fluir de uma misica interior que nos mantém Jovens. Quando se é jovem, sem o peso da meméria, tudo é joven, novo, estranho... Quando se é saudavel, a existéncia inteira corresponde, Quando nosso ser é fresco, a existéncia toda torna-se uma melodia. O encontro de um mestre com seus discfpulos sempre permite que a mtsica flua. Com um mestre, sempre se desco- PIVBIVVIVIITITTICCRCE te , ) , , > , , _ 44 Luis Alberto Worat bre que é cada um de nés que deve mudar o ambiente, nunca se deixar mudar pelas circunstancias.’Entendemos 0 valor de ficar desarmados, ou sem mascaras, Vivemos trocando mas- caras conforme as circunstancias para que elas se tornem familiares e proporcionem-nos seguranga. Vivemos, perma- nentemente, trocando mascaras. Se vemos alguma mudanga fa situagdo, imediatamente trocamos de mascara. Isso por- que nao temos um alma integrada. ; Com espanto, pode-se notar como as pessoas riem entediadas, como seus risos contém tédio. Riem com esforgo, apenas uma etiqueta, um exercicio do rosto. Vocé notou como as pessoas se entediam entre si, pensou na razao? Para mim, © motivo esta no fato de que tudo é morto, emprestado, gasto, tudo cheira a morte, nada é espontaneo, As ieorias, as técnicas estao carregadas de ontem, sao Perfeitas, porém, matam a espontaneidade anarquica da vida. Nao diria que as téciticas nao-servem, mas ficar prisioneiro delas impede-nos de viver no continuo de novidades que éa vida. As regras sao Para pessoas medifocres, nao sdo para nos. As regras e as técnicas servem para esconder-nos. Para formar mediadores é preciso de mestres, nunca de professores ou adestradores. O mediador tem que ser disci- pulo de um mestre. Um mestre de verdade, que ensine-lhe como desaprender o aprendido, nunca a aprender. Estar perto de um mestre é morrer. Nosso ego teré que morrer. Teremos que renunciar as mascaras, A memoria que nos assegura no velho. Quando se dé o encontro com um mestre, n&o se pode fazer politica, nado se pode lutar com ele. Ora, nenhum mestre chama seus discipulos, nado ha re- térica em um auténtico mestre, O discipulo o procura, entéo 9 caminho nao tem volta. Existe o medo, mas é inevitavel dar © salto, Nenhum rio pode escapar do oceano, O medo impe- de ver que detras da morte, que assusta, existe o renascimento, E impossivel renascer antes de morrer. O velho desaparecera @ 0 novo tomara conta do discfpulo. ~w~wrwwrwwewewweve”ds VTISTTSCTCCSCOTOSOSSOSCU! O Offcio do Mediador 45 Deixe o rio correr sem medo para 0 desconhecido, para onde nao existem mapas. Com certeza, nés nao nos perdere- mos. Porém, para nos encontrarmos interiormente é preciso perder-nos, unicamente perdendo-nos dentro de nds, pode- mos nos encontrar. No aeroporto de Atenas, existe uma frase que sempre me impressiona: “para conhecer Atenas, é preci- SO perder-se em suas ruas”. . Com um mestre, nos transformamos em peregrinos.Com ele podemos perceber que a existéncia tem que ser revelada através da ag&o, nao do pensamento. Quando agimos, tornamo-nos parte da existéncia, Temos que aprender a partir desse agir. Quando agimos, somos integros, quando pensa- mos, fragmentamos. O pensamento pode prosseguir como um processo automatico, sem nés. A mente é sempre ambiciosa, depende do ego (0 ego nunca aceita ser discfpulo). A mente nunca é espontanea. A realidade unicamente pode ser encon- trada na espontaneidade. Uma pessoa que nao esté prepara- da, que nada planeja, atinge o cerne da realidade, que é, sem- pre, imprevisivel, um fluxo constante de novidades. Planejar é ter respostas prontas, produzir técnicas, teorias. Planejar, pro- duzir técnicas é esquecer que a vida é sempre incerta. As téc- nicas pretendem dar-nos seguranga, fazer-nos esquecer que quando nos tornamos mais seguros, mais estaremos perden- do a vida. A maioria das escolas de mediagdo estéo preocupadas em produzir respostas prontas; formam um mediador ensi- nando-lhe a planejar como ajudar as partes a chegar a um acordo. Assim, as partes sempre surpreenderam a esses me- diadores adestrados na multiplicago de seu prdprio ego. As técnicas, as teorias e os conceitos néo sao outra coi- sa que uma pobreza premeditada. O pensamento planeja porque esta preocupado em dominar. O que um mestre ensina deve ser recalcado, com sorte, sera no inconsciente o seu olvido, porém o inconsciente 46 Luis Alberto Worat epistemolégico do discfpulo tentara matar o mestre, fugindo de simesmo. O que todo bom discipulo nunca deve deixar de levar em consideragao é seu esforgo para nao confundir o que é olvidar o mestre eo que é tentar mata-lo. O bom disci- . pulo recalca seu mestre, mas nao precisa competir com ele a ponto de necessitar mata-lo, Um mestre nunca esta preocupado em comunicar (é ab- surda a énfase que as escolas de mediagao colocam na co- municagéo). O mesire esta interessado em comunhao. Co- municag&o significa o encontro, em palavras, de dois egos. Comunhao significa que apenas os coragdes se encontram sem palavras; © entre-nés silencioso do sentir. Com um mes- tre a Unica coisa a ser feita é entrar em sintonia. O mestre forma mediadores mostrando-lhes 0 valor de ser simples, ho- mens comuns, que é uma coisa nada facil de conseguir. O ego esta sempre Avido de grandeza. Precisamos entender o valor da simplicidade para atingirmos a sabedoria que pro- vém do esvaziamento do ego. Um mestre permite-nos ascen- der a um vinculo com 0 mistério da existéncia, ajudando-nos a entender que 0 segredo esta em deixar que a natureza sigao seu prdprio curso, sem interferir, O ego existe através da resis- téncia. Inclusive n&éo podemos tentar abandonar 0 préprio ego, porque dessa forma 0 ego vencera. Se nés proclamamos que abandonamos nosso ego, quem proclama é sempre 0 ego. Lembremo-nos também de que o ego mais sutil sempre tenta aparentar uma auséncia de ego, Nao caiamos na armadilha. Nao lutemos contra 0 ego, que ele sempre vence as lutas, Per- mitamos que as coisas acontegam sem tentarmos interferir. O ego sempre salta adiante, tem pressa; é 0 que chamamos an- siedade: uma tentativa egoista de dominar os acontecimen- tos. Deixemos que a existéncia aconteca, tentemos unicamente mudar a nds mesmos: uma mudanga que deve vir de nosso ser mais profundo, nao da periferia. No centro, nao existe tumulto, Isso esta na periferia de nosso ser, dominada pelo ego. Somos como a mar: as ondas, O Oficio do Mediador 47 todo o tumulto do mar esta na superficie, no fundo tudo é calmo. Vamos fundo em nosso mar, quanto mais funde mais calmo o encontraremos. Fiquemos 4, que desse ponto virao todas as mudangas. Quando nds estamos 14 deixamos de ser um discfpulo e tornamo-nos um mestre. Deixando 0 tumulto, as tensdes, tudo fica relaxado, sereno, e os conflitos desvane- cem-se. Ficamos mediados, harmonizados. Essa é a meta a ser atingida na formagao de um mediador por seu mestre. A verdade da experiéncia é incomunicdvel, é uma tre- menda energia que se tornou silenciosa. As palavras de um mestre nao traem essa verdade, porém elas carregam a melo- dia, uma parte pequena que vem da fonte inacessivel. As coisas da existéncia sao inacessiveis. A sensibilidade € 0 que nos aproxima o mais perto possivel, do que esta veda- do. O mestre pade ajucar para que descubramos a presenga que aproxima. Quem se importa com teorias, com palavras, com escrituras, quando a coisa real aconteceu-lhe por den- tro? Quem se importa com explicagdes, quando existe a ex- periéncia? As pessoas s&o excessivamente verbais para se escon- der e fugir da experiéncia auténtica. Nunca se pode viver de empréstimos. As questdes livrescas sao empréstimos que nao vem do ser: Nunca se pode ser auténtico, buscando respostas livrescas. Elas unicamente satisfazem nossa parte morta, isto é, nossa mente. As verdades auténticas nao podem ser trans- mitidas, traduzidas em palavras, apenas alguns gestos podem ser feitos de forma que o outro fique pronto para dar o salto. Para formar um mediador é preciso leva-lo a um estado de mediagao, ele deve estar mediado, ser a mediagao. Estar mediado é entender o valor de nao resistir, de deixar de estar manipular em seu bene- permanentemente em luta, tentai ficio, a energia dos S. Quando alguém nos agride, observemo-lo, A agressio tornar-se-4 uma flor. Absorveremos a energia dela, deixando- 97 ?

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