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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL.

#01

[In.CoRpo.Ro] Magazine
Index
Em Busca da Performance ................................................................................................
....................4
Reflexões de um transeunte em busca de sentido............................................................................... ...8
Performance Como Campo de Investigação...................................................................................... ..19
Flávio de Carvalho – O Engenheiro Corporal....................................................................

[In.CoRpo.Ro] Magazine
.................40
A Importância da Primeira Imagem na Construção da Cena Performática........................................59
A cidade como corpo, o corpo na cidade............................................................................... ..............66
REVERÊNCIAS E ANDRAJOS / REDES E LIMINARIDADES..................................................104

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VOL.#01CARLAMEDIANEIRODIOGODEM
ORAESJOSERENATOPAULADARRIBASA
NDRAPARRATATIMADEFATIMAFABIANE
BORGESMONICARIZZOLLI2007PERFOR1
MANDO
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

O projeto [In.CoRpo.Ro] nasceu em 2004 com o intuito de agrupar artistas e


pesquisadores de performance.
Foram realizados três eventos: [In.CoRpo.Ro] ações performáticas (2004 - Galeria do
Instituto de Artes da UNESP), [In.CoRpo.Ro] ações coletivas (2004 - SESC Vila Mariana
/ Projeto REVERBERAÇÕES) e [In.CoRpo.Ro] ações performáticas vol. #02 (2005 -
Galeria do instituto de Artes da UNESP). (Todos estão documentados no meu trabalho
de Conclusão de Curso que encontra-se disponível no site www.corocoletivo.org)
O encontro de diferentes pontos de vista e manifestações tem sido a principal
característica do projeto. Ele encontra-se no limiar de diversas linguagens e continuará
priorizando a multiplicidade de idéias que rodeiam a palavra performance.
Queremos reunir, dividir, multiplicar, transformar, somar e nunca definir.
Em 2007 (com pequeno atraso, mas enfim ...) o [In.CoRpo.Ro] magazine apresenta
uma série de artigos relacionadas a temática e espera ser a primeira de uma longa
série.
Afinal, sabemos quão poucas são as publicações nacionais sobre o tema!!!
Gostaria de aproveitar para agradecer pessoas fundamentais para a realização desse
projeto: O professor Milton Sogabe do Instituto de Artes da UNESP, Flávia Vivacqua,
Priscilla Davanzo e Ivan Korkischko.
Gostaria de agradecer principalmente aos autores que disponibilizaram suas
pesquisas, "por amor à arte", pois se conseguimos muito para a performance, pouco foi
para os nossos bolsos.
O material reunido nessa revista é digno de uma publicação, de um livro na realidade.
Afinal, são mais de 100 páginas, e tenho certeza que cada linha será referência para a
pesquisa no Brasil.
Sem exageros, afinal o mérito é dos artistas/pesquisadores!!!!

Boa Leitura
Monica Rizzolli

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Index
Em Busca da Performance ................................................................................................
....................4
Reflexões de um transeunte em busca de sentido............................................................................... ...8
Performance Como Campo de Investigação...................................................................................... ..19
Flávio de Carvalho – O Engenheiro Corporal.................................................................... .................40
A Importância da Primeira Imagem na Construção da Cena Performática........................................59
A cidade como corpo, o corpo na cidade............................................................................... ..............66
REVERÊNCIAS E ANDRAJOS / REDES E LIMINARIDADES..................................................104

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Em Busca da Performance
Carla Medianeira Antonello
Professora Departamento de Artes Cênicas – UnB / Decanato de Extensão – DEX –
UnB.

Resumo
Trata-se de um artigo que descreve o trabalho do Grupo de extensão - O Teatro
Como Acontecimento em Artaud / Teatro Grave. Situando a pesquisa e seu
desenvolvimento a partir dos estudos de Antonin Artaud e a linguagem da performance.
Como se correleciona o fazer artístico contemporâneo embasados neste referencial
bibliográfico.

Em Busca da Performance
O grupo de Extensão o Teatro Como Acontecimento em Artaud do Departamento de
Artes Cênicas na Universidade de Brasília – DF, coordenado por Carla Antonello, inicío
sua pesquisa em 2005. Assim, além da intitulação do projeto, sentiu-se a necessidade
de uma outra nomeação para uma maior proposição junto a comunidade cultural.
Encontrou-se então o Grupo Grave que foi extraído do texto O Teatro e seu Duplo de
Antonin Artaud (1999, p. 96) “ O Longo hábito dos espetáculos de distração nos fez
esquecer a idéia de um teatro grave que, abalando todas as nossas representações,
insufle-nos o magnetismo ardente das imagens e acabe por agir sobre nós a exemplo
de uma terapia da alma cuja passagem não se deixará mais esquecer”. mais esquecer.”
Diante da citação encontrou-se uma identidade com a concepção estética que
permeia a pesquisa e os desdobramentos dos processos criativos da atuação do grupo.
A palavra grave, poderia remeter ao significado de imprimir algo. Poder-se- ia adentrar-
se ao mundo do sensível tecendo poéticas imaginárias e devires em constante
transformações.
Nessa direção, buscou-se na linguagem da performance um caminho, com
possibilidades para dilatar as inquietações, justamente por ela se colocar num campo

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suspenso, de incertezas. De acordo com Roselee Goldberg (1996, p. 9), a performance


permite-se aberta, a misturar-se, mantendo-se como uma arte impura, não aceitando
classificações e rótulos. Por mais que tentemos uma definição, ela escapa, e a incógnita
segue persistindo. Entre os vários artistas responsáveis por essa ruptura, citamos
Antonin Artaud, por reconhecer em sua obra O Teatro e seu duplo ( 1999), aspectos
propulsores da linguagem performática e instaurador das transformações da linguagem
cênica. Ele questionará os teatros denominados tradicional, convencionais ou
burgueses1, rejeitando o texto como o aspecto principal da encenação, abandonando o
edifício teatral, negando as barreiras entre atores e espectadores.
De acordo as idéias artaudianas, o teatro deve ir além do convencional, deve
desmascarar a hipocrisia a que todos estamos submetidos e expor tanto atuantes como
platéia. E assim, o teatro artaudiano é renovador, pois propõe duas diretrizes: primeiro,
o teatro como instrumento de libertação social dos homens, segundo, a entrega dos
sujeitos envolvidos na ação cênica. A proposta de ruptura entre platéias, intérpretes e a
liberação do atuante das restrições colocadas pelo teatro tradicional, também é uma das
teorias que influência de maneira decisiva os artistas contemporâneos que passam a
trabalhar em cima de critérios diversos dos cânones fixados pela cultura ocidental.
Retomando-se a linguagem performática como a conhecemos hoje, onde a
apresentação do ator-performático em alguns momentos se permite dialogar com o
espectador, em atitude algumas vezes de incômodo. Percebe-se, que apesar das
diversidades artísticas e as várias nomeações referentes as produções
contemporânaeas como: teatro pós-dramático, teatro de grupo, teatro cidade, teatro do
real, teatro-oficina ( 2006, p 7). O Público em geral, ainda se “espanta” frente as
possíveis intervenções artísticas, pelas características que é a de estabelecer outros
parâmetros, que não determinam um sequência lógica de entendimento.
Segundo Matteo Bonfitto ( 2006, p. 49), que reflete sobre a atuação contemporânea “
o ator pós-dramático não deve necessariamente contar histórias e rearticular códigos e
convenções culturais; as suas partituras conterão materiais caracterizados por
diferentes graus de abstração e subjetividade. Ou seja, ele não poderá apoiar seu
trabalho em objetivos concretos, como o de expressar um significado preestabelecido”.
1
PAVIS.p.376. Expressão freqüente para designar, de maneira pejorativa, um teatro e um repertório
produzido dentro de uma estrutura econômica de rentabilidade máxima e destinado, por seus temas e
valores, a um público “pequeno-burguês”.

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Assim a este interesse de trabalhar as ações performáticas dentre ao conceito de


ator pós-dramático. Propondo-se a desconstrução do corpo, com objetivo de aflorar a
sua subjetividade, a não-narratividade, e estabelecer outros códigos ainda em
processos de armazenamento para o corpo do ator-performático. Pode-se dizer um
tanto massificado pelas influências e informações de obviedades que circulam os meios
de comunicação, mesmo não concordando com o modelo vigente.
Para tal iniciativa, estabeceu-se um diálogo entre diferentes práticas, tais como a
exaustão, a dança pessoal ( extraídas do grupo de Teatro Lume – de Campinas). Nessa
busca, o conceito de corpo-sem- orgãos, cunhada por Artaud em sua peça radiofônica
Para Acabar com o julgamento de deus (1948). É inspirador, Gilles Deleuze e Félix
Guattari nos fala do CsO: “é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado
por intensidades. Somente as intensidades passam e circulam.” (1996, p. 12).
Essa necessidade de compreensão do corpo-sem orgãos, e de conseguir imprimir as
intensidades sugeridas pelos autores nos fez mergulhar em trabalhos corporais, que
pudessem se aproximar desta pretensão.
Um dos processos foi a realizações de atividades corporais, que convergeu em
estimular os sentidos, na tentativa de aguçar, por entender um atrofiamento do que seria
primordial para a pulsão de vida, exposta por Artaud (1999), em sua poética ao
correlacionar a vida intrínseca a cultura.
E que a separação entre arte e cultura um dos pontos que o incômoda, cabe ressaltar
a crítica ferrenha que ele manifesta referente a cultura ocidental. Por entender que
ambas coexistem e que seria falso a separação. Neste aspecto, de forma peculiar a sua
obra converge com a linguagem da performance, e pode-se dizer que colaborou em
suas características, porque evidencia-se na ação performática uma relação imbricada
com o espaço artístico, cultural- social que está inserido.
A trajetória do grupo Grave, alimenta-se da poética artaudiana e dos estudos da
performance. Para adentrar e identificar aspectos que confluem para ressignificar os
processos critaivos na busca da performance que vem a instigar ainda mais, e se
permitir entrar neste terreno movediço da arte contemporânea.

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Referências bibiográficas
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad,1984.
______________. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 1995.
ASLAN, Odete. O Ator no Século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994.
ARANTES. Urias Corrêa. Artaud. Teatro e Cultura. São Paulo: Unicamp, 1992.

COHEN, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2002.

DELEUSE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia.


Tradução de Aurélio Guerra e Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed.34, vol.3, 1995.
GOLDBERG. Roselee. Performance Art. Barcelona: Destino, 1988.
Jornal Folha de São Paulo. “Teatro”, Sílvia Fernandes. Dezembro de 2006.
Revista Humanidades, “ Do texto ao contexto”, Matteo Bonfitto, vol.

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REFLEXÕES DE UM TRANSEUNTE EM BUSCA DE


SENTIDO
Diogo de Moraes

Reflexões de um transeunte em busca de sentido


Toda manhã, o dia está sobre a nossa cama como uma camisa nova;
esse tecido incomparavelmente fino, incomparavelmente denso, de limpa
profecia nos cobre como uma segunda pele. A felicidade das próximas vinte e
quatro horas depende de que nós, ao acordar, saibamos como apanhá-la.
Walter Benjamin, Rua de mão única, 1928

Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem


incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se
encontram no vaivém, para pensar que partindo dali construirei pedaço por
pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto...
Ítalo Calvino, As cidades invisíveis, 1972.

É possível encontrar outro(s) sentido(s) para os percursos diários, que transcende(m)


o simples e automático ato de se deslocar de um ponto para o outro na malha urbana?
Tal questão, levantada numa época em que se busca principalmente a supressão das
distâncias, pareceria irrelevante, não fosse o fato de que o cidadão, ainda hoje, tem
algumas horas do seu dia consumidas em função da necessidade de atravessar o
território urbano para chegar aos seus destinos.
Esta circunstância é destacada pelo crítico Paulo Sérgio Duarte, quando este, ao
refletir sobre o trabalho da artista Carmela Gross (que tem sua pesquisa atual
direcionada para a questão da transitoriedade característica do universo
contemporâneo), observa que “a humanidade urbana tem parte da sua vida consumida
no interregno (intervalo) do deslocamento casa-trabalho/trabalho-casa”. Neste sentido, o
crítico cria uma expressão capaz de definir com precisão a condição do homem que
vive nos grandes centros urbanos, ou seja, a de um “nômade compulsório da jornada de
trabalho”. (DUARTE, 2003)

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Com base nesta expressão categórica, é possível afirmar que a experiência do


trânsito (no sentido do deslocamento) vivida diariamente pelo cidadão caracteriza-se
como algo mecânico e enfadonho, justamente porque é comandada por fatores
externos ao sujeito, como, por exemplo, a obrigatoriedade em se apresentar
pontualmente no local de trabalho.
Paradoxalmente, este trajeto que conduz da casa ao local de trabalho e do local de
trabalho à casa corresponde ao único momento que ainda resta para o cidadão,
submetido à rotina de trabalho, entrar em contato e estabelecer relação (não apenas
física, mas também intelectual ) com os elementos que compõe o meio ambiente no
qual esta inserido: a metrópole.
Esta constatação leva a uma outra questão de fundamental importância para o
desenvolvimento da presente discussão: existe a possibilidade deste “nômade
compulsório da jornada de trabalho” tirar proveito da situação na qual se encontra,
transformando-a em oportunidade de conhecer e explorar o seu próprio hábitat, já que é
obrigado a atravessá-lo diariamente?
Evidentemente, não há uma resposta que dê conta de esgotar uma questão
complexa como esta, além do que seria um tanto ingênuo desconsiderar os obstáculos
que se impõe diante desta tentativa de reversão. Portanto, antes de qualquer
prognóstico com relação à possibilidade de um “melhor” aproveitamento dos percursos
diários, deve ser destacada e examinada a atividade que assume a posição central no
cotidiano do cidadão e que, por isso, o influencia diretamente: a prática do trabalho.
A análise desta atividade é aqui realizada de forma breve e pontual por intermédio de
algumas idéias formuladas pelo filósofo brasileiro Leandro Konder (A questão da
ideologia), que há mais de cinqüenta anos dedica-se ao estudo dos textos do filósofo e
socialista alemão Karl Marx (1818-1883).
Baseando-se na “filosofia do trabalho”, desenvolvida por Marx, Konder apresenta
algumas noções básicas para a compreensão da distorção e degradação sofrida por
esta atividade – pela qual o homem seria capaz de “transformar o mundo e se
transformar” - , provocada sobretudo pelo modo de produção capitalista, que “reduz a
força de trabalho dos seres humanos à condição de mera mercadoria”. (KONDER,

Segundo o Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, na tradição aristotélicotomista o intelecto


corresponde a faculdade cognitiva pela qual as impressões recebidas pelos sentidos se tornam
inteligíveis.

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2002: 35-36)
A fim de promover uma reflexão sobre o estado de deteriorização no qual se encontra
esta atividade, Konder apresenta algumas das questões que inquietavam Marx:

Por que o trabalho se transformou numa atividade tão desagradável, tão sofrida, para os
trabalhadores? Por que, no trabalho, a força vira impotência, a criação se torna castração, a
humanização resulta em desumanização?. (KONDER, 2002: 35)

É importante ressaltar que a “atividade tão desagradável” referida acima corresponde


principalmente à prática do trabalho na sociedade industrial, mais especificamente nas
linhas de produção de fábricas. Isto significa dizer que as indagações de Marx não são
apropriadas para a reflexão sobre o trabalho na sociedade pós-industrial, dentro da qual
se encontra o habitante da metrópole contemporânea. Porém, a prática do trabalho na
atual sociedade, apesar das significativas diferenças, conserva algumas características
da era industrial, como, por exemplo, a divisão de tarefas – na qual o homem deve
exercer uma função específica – e a monotonia própria das atividades repetitivas e não
criativas.
Desta forma, as observações de Marx aqui apresentadas ainda se mostram válidas,
pois evidenciam sobretudo o caráter tedioso da prática do trabalho (de maneira geral)
tanto na sociedade industrial como na sociedade pós-industrial – apesar do desgaste
provocado pelo exercito do trabalho nesta última não ser tanto de ordem física, mas
psicológica, o que também contribui para o bloqueio da capacidade do cidadão de
perceber e refletir sobre os elementos que pontuam a sua passagem pelo território
urbano.
Este breve quadro, que procuro mostrar, mesmo que superficialmente, a situação de
grande parte da população urbana, antes de fornecer qualquer resposta às questões até
aqui levantadas com relação à exploração dos percursos urbanos, sugere uma nova e
decisiva pergunta: é coerente propor que este cidadão, “impotente”, “castrado”,
“desumanizado”, entediado e desgastado graças, entre outras coisas, às circunstâncias
impostas pelo serviço que presta diariamente para sobreviver, dedique sua atenção e
reflita sobre aquilo que se apresenta durante os seus deslocamentos da casa para o
trabalho e do trabalho para casa?

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Não.
Tal resposta explicita a enorme contradição vivida pelo cidadão, ou seja, habitar um
lugar que não lhe transmite sentido(s) para além da funcionalidade da rotina, justamente
porque este(s) deve(m) ser construído(s) na relação com o lugar. Logo, se o cidadão
deixa de estabelecer relação com os elementos que compõem seus percursos diários
(único momento que resta para o contato com o meio ambiente da metrópole), ele não
consegue se identificar com o próprio habitat, o que significa que não pode se
reconhecer ali.
Esta “impossibilidade” de encontrar um motivo para a experiência do trânsito na
metrópole que vá além da busca pela sobrevivência, representa para mim, enquanto
cidadão e artista consciente dos riscos desta circunstância, um grande desafio, o qual
procuro encarar com a elaboração de uma estratégia artística. Neste caso, coloco-me
na posição de cidadão/artista, adotando uma postura ativa frente às dinâmicas da
metrópole, de modo a cultivar minha capacidade de perceber, refletir e estabelecer
relação com os elementos que povoam os meus itinerários.
Parece óbvio que esta posição só pode ser tomada a partir do exercício de
distanciamento da insípida e alienante rotina imposta pela metrópole, o que não
significa a sua negação, mesmo porque isto seria inviável. Este distanciamento, através
do qual procuro ponderar e transformar o meu cotidiano de cidadão, é fomentado pela
pesquisa nos campos da arte, da filosofia e das ciências sociais (entendendo que estes
campos do conhecimento entrecuzam-se), nos quais busco os recursos necessários
para enfrentar os obstáculos que impedem o desenvolvimento de um olhar sensível,
fundado no meu repertório de experiências (memória afetiva) e, consequentemente, na
minha imaginação – o qual procuro lançar sobre alguns dos elementos que se
apresentam durante os meus percursos.
Ao longo do processo de pesquisa, descobri a existência de uma tradição artística e
teórica cujo tema central é a exploração do território urbano por meio da prática de
caminhar – o espaço da metrópole passa a ser encarado por alguns artistas e por
alguns teóricos como um privilegiado campo de experiência estética. Entre os nomes
mais significativos que configuram esta tradição encontram-se: o flâneur (personagem
urbano encarnado, entre outros, por Charles Baudelaire), Edgar Allan Poe, Walter
Benjamin, Mário de Andrade, o grupo dadaísta de Paris (destaque para Louis Aragon,

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André Breton, Francis Picabia e Tristan Tzara), Kurt Scwitters, os surrealistas (destaque
para André Breton), a Internacional Situacionista (destaque para Guy Debord, Constant,
Asger Jorn e Raoul Vaneigem), o grupo Fluxus (destaque para George Maciunas,
Patterson e Yoko Ono), Robert Smithson, Hélio Oiticica, Artur Barrio, entre outros.
O resgate de parte desta tradição será aqui realizado por meio da exposição das
práticas do flâneur e dos situacionistas, que se desenvolvem respectivamente durante
as décadas de 1830-1840 e 1950-1960. A intenção é que tal análise sirva de
fundamento para a minha estratégia artística, que se apresenta como uma possibilidade
de recontextualização e, portanto, de reformulação destas práticas de exploração
urbana.
O flâneur é um caráter típico da Paris do século XIX e também uma alegoria do
literato parisiense deste período. O contato com esta figura é garantida pelos textos do
filósofo e cientista social alemão Walter Benjamin (1892-1940), que apresentam a
postura do flâneur frente às significativas mudanças ocorridas no modo de vida do
habitante da metrópole durante o período pós-revolução industrial. O acesso aos textos
e, consequentemente, às idéias de Benjamin em relação ao flâneur será aqui mediado
pelo pesquisador e professor de literatura Wili Bolle, através do seu estudo intitulado
Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin.
Reprsentante da mentalidade pequeno-burguesa (classes médias), o flâneur é um
personagem urbano que, num primeiro momento, recusa adequar-se às novas
circunstâncias impostas pela sociedade industrial, como, por exemplo, “a divisão do
trabalho que transforma as pessoas em especialistas”, segundo definição de Benjamin.
(BENJAMIN, 1989: 50) “Contrário ao espírito do seu tempo”, ou seja , ao mundo
burguês do negócio, o flâneur dedica seu tempo à prática do ócio, por meio da qual
desenvolve um olhar contemplativo para os elementos que se apresentam durante os
seus vagabundeos pelo território urbano. Sem paradeiro certo, “se deleita com o
espetáculo da metrópole, contracenando com a multidão erotizada em meio à paisagem
do consumo”. (BOLLE, 1994: 375-20).
De acordo com o exame do escritor inglês Edgar Allan Poe – nomeado por Bolle
como um dos grandes fisiognomistas urbanos ao lado de Baudelaire e Benjamin -, o
flâneur sente-se inseguro em sua própria sociedade, por isso busca na multidão de
transeuntes o seu esconderijo, onde procura se proteger da “atmosfera de inquietação,

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ameaça, violência” característica da metrópole. (BENJAMIN, 1989:?)


Já Baudelaire, que, segundo a pesquisadora Cristina Freire, “teve na figura do
flâneur sua mais completa tradução”, enxerga o caráter ilusório desta multidão enquanto
abrigo. (FREIRE, 1997:62). Apesar de atraído pela massa, dentro da qual sente-se
“como num imenso reservatório de eletricidade”, o poeta não deixa de perceber “a
natureza inumana da multidão”. (BOLLE, 1994: 375-72) Benjamin comenta esta
“natureza inumana” numa passagem do seu livro Charles Baudelaire, um lírico no auge
do capitalismo:

“[Estas reuniões são] aglomerações concretas, mas socialmente permanecem abstratas [...].
Seu modelo são os fregueses que, cada qual em seu interesse privado, se reúnem na feira em
torno da ‘coisa comum’. Muitas vezes, essas aglomerações possuem apenas existência
estatística. Ocultam aquilo que perfaz sua real monstruosidade, ou seja, a massificação dos
indivíduos por meio do acaso de seus interesses privados”. (BENJAMIN, 1989:?).

Ignorante em relação a esta “massificação”, “o flâneur continua preso ao encanto da


multidão e das mercadorias”, tomando inclusive a rua (a esfera pública) – lugar de
confluência das massas – como parte de sua casa, onde passa grande parte do dia
vagando “em busca de sensações sempre novas”. Entendendo “o mundo como um
espetáculo a ser assistido”, o flâneur concebe a rua com “uma agradável extensão do
apartamento”, onde sente-se à vontade para registrar as sensações urbanas. (BOLLE,
1994: 72-367-378-98).
Benjamin enxerga em tal atitude a criação de uma “fantasmagoria”, ou seja, a ilusão
de que é possível “uma coexistência harmoniosa entre a esfera particular burguesa e o
mundo da rua”. Neste sentido, o filósofo procura “desmontar o sonho” vivido pelo
flâneur, considerando a rua não como “uma agradável extensão do apartamento para
passear e desfrutar do espetáculo da cidade”, mas a partir da visão daqueles que,
colocados à margem da sociedade, são obrigados a morar na rua, porque não têm outra
saída. (BOLLE, 1994: 79-98).
Assim, o fato de uma considerável fatia da população urbana se encontra nesta
condição – devido principalmente à falta de recursos financeiros – demonstra o caráter
ingênuo da postura do flâneur, que, apesar de inserido numa sociedade em que
prevalecem as leis de mercado e a dinâmica dos negócios, insiste em optar pelo cultivo

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do ócio e pela apropriação da rua como parte de sua moradia.


Como resposta a esta postura, os elementos do mundo burguês tendem a se
sobrepor ao desejo do flâneur de permanecer livre do trabalho. Desta forma, “se fazem
sentir os sinais de desencantamento do ócio”, que se mostra incompatível às exigências
da economia capitalista. (BOLLE, 1994: 375). Com o tempo, o flâneur começa a se
sentir pressionado. Sem dinheiro, percebe o perigo de sua degradação, o que resulatará
na sua adessão, apesar de tardia, às condições impostas pela sociedade burguesa.
Apesar de sua predisposição em explorar o território urbano por meio do caminhar –
procedimento que será resgatado e colocado em prática por artistas tanto do período
moderno quanto do contemporâneo -, o flâneur representa para os situacionistas “o
protótipo do burguês entediado e sem propostas”, justamente por não ser capaz de
interferir de forma significativa na realidade da metrópole. (BERENSTEIN, 2003: 34)
Parte do pensamento situacionista, que essencialmente se orienta numa direção
contrária “ao espetáculo, à cultura espetacular, à não-participação, à alienação e a
passividade da sociedade”, será aqui abordado através dos estudos de três
pesquisadores, são eles: Cristina Freire, docente do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo (Além dos mapas: os monumentos do imaginário urbano);
Fracesco Careri, membro do Laboratório de Arte Urbana Stalker (Itália) (Walkscapes, El
andar como prática estética); e Paola Berenstein Jacques, docente da Faculdade de
Arquitetura da Universidade Federal da Bahia (Apologia da deriva). Além destes
estudos, que se preocupam mais com questões relacionadas ao universo artístico, outro
livro serve de base para a presente análise: A sociedade do espetáculo, de Guy Debord
(1931-1994), que tem um caráter mais político.
Fundada em 1957 pelo artista/teórico Guy Debord durante uma conferência –
realizada por artistas e teóricos preocupados com questões de natureza urbana – na
cidade de Cosio d´Arroscia (Itália), a Internacional Situacionista surge “no bojo dos
movimentos contestatórios do pós-guerra”, num contexto marcado sobretudo pela
explosão dos veículos de comunicação de massa e, consequentemente, pela crescente
homogeneização do espaço urbano, que passa a se caracterizar por uma única
informação, a qual “ parece emergir de uma lógica própria, aliada que está à sociedade
de consumo”. (FREIRE, 1997: 66-67).
De acordo com a análise de Debord, tal homogeneização resulta na “dissolução da

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autonomia e da qualidade dos lugares”, pois suas particularidades (elementos que


caracterizam o lugar e que, por isso, lhe conferem uma identidade) são suprimidas em
virtude das exigências do mercado, que visam transformar o espaço da metrópole em
mero cenário das estratégias capitalistas. (DEBORD, 1997:111).
Esta é uma das questões levantadas e enfrentadas pelos situacionistas – Guy
Debord, Raul Vaneigem, Asger Jorn, Constant, Michele Bernstein, Jacques Fillon, Gil
Wolman, Mohamed Dahou, entre outros -, que enxergam “o meio urbano como terreno
de ação”, onde é possível “lutar contra a monotonia, ou ausência de paixão, da vida
cotidiana moderna”. (BERENSTEIN, 2003: 13) Neste sentido, consideram o território
urbano “um espaço no qual é possível perder tempo útil [de produção] a fim de
transformá-lo em um tempo lúdico construtivo”, o que demonstra a aversão do grupo à
prática do trabalho em benefício do tempo livre. (CARERI, 2002:114).
Afim de “materializar um modo alternativo de habitar a cidade”, ou seja, “um estilo de
vida que se situa fora e contra as regras da sociedade burguesa”, os situacionistas
dedicam-se principalmente à “construção de situações”, as quais levam a cabo durante
suas deambulações pela cidade de Paris, entre outras. (CARERI, 2002: 92). Por meio
destas, procuram apreender o território urbano de maneira subjetiva, valorizando os
aspectos sentimentais, psicológicos e intuitivos, surgidos a partir da relação com os
lugares, o que lhes permite desmascarar a homogeneidade da paisagem, posto que
conseguem “reconhecer as diferentes cargas afetivas que distinguem os diversos
pontos da cidade”. (FREIRE, 1997:70).
Os situacionistas acreditam que somente através destas “situações construídas” se
torna possível a “transformação revolucionária da vida cotidiana”, visto que esta
representa a “fronteira onde nasce a alienação mas também pode crescer a
participação”, ou seja, a rejeição do posto de espectador em favor da posição de
construtor da própria existência. (BERENSTEIN, 2003:21).
A proposta situacionista de “construir situações”manifesta-se principalmente sob a
forma de uma “atividade lúdica coletiva”, baseada na “prática do errabundeo urbano”, a
qual recebe o nome de deriva. (CARERI, 2002: 90). Por meio da deriva, o grupo de
artistas/pedestres busca “uma nova maneira de aprender o espaço urbano” através da
experiência afetiva de seus lugares, dedicando-se a perceber os efeitos do meio
geográfico que agem diretamente sobre o comportamento afetivo do homem.

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(BERENSTEIN, 2003: 22).


Dispostos a caminhar durante longos períodos pelo espaço urbano, o que permite
sentir os estímulos oferecidos por cada zona percorrida, os situacionistas tornam-se
capazes de fragmentar o homogêneo território da metrópole, dividindo-o de acordo com
o sentimento despertado por cada um de seus lugares.
A partir deste reconhecimento das diferentes cargas afetivas (sentimentos, emoções,
paixões) de cada uma das zonas investigadas, elaboram uma “nova” geografia da
metrópole, representada por meio de mapas psicogeográficos, os quais evidenciam “a
divisão de uma cidade em zonas de climas psíquicos definidos”, conforme definição de
Debord. (BERENSTEIN, 2003: 22).
Apesar do cunho político já estar presente nas práticas artísticas e nos textos da
Internacional Situacionista, num momento posterior, o foco de interesse do grupo passa
a ser puramente político. Suas idéias e propostas inclusive assumem um papel
fundamental no maio de 68, quando estudantes universitários franceses se rebelam em
prol da revolução.
Esta breve descrição das práticas do flâneur e dos situacionistas sugere a discussão
de inúmeras questões relacionadas ao modo de vida na metrópole. Porém, a questão
que mais interessa aqui, além da exploração do território urbano através da prática do
caminhar, é o fato de tanto o flâneur como os situacionistas não se adequarem à
categoria de “cidadão comum”, optando, ao contrário disso, por assumir a posição do
“cidadão comum”, optando, ao contrário disso, por assumir a posição do “artista
marginal”, ou seja, daquele que recusa adaptar-se às circunstâncias impostas pelo
sistema (o termo “artista marginal” foi atribuído por mim).
Dentre as diversas circunstâncias negadas por estes, destaca-se o exercício do
trabalho e, consequentemente, sua rotina. Antes de qualquer comentário a respeito
dessa negação, é necessário lembrar que a postura de resistência assumida por ambos
é pertinente ao período histórico vivido por cada um: no caso do flâneur, o acelerado e
contraditório processo de crescimento e modernização da cidade, comandado pela
cultura burguesa; no caso dos situacionistas, a consolidação da sociedade de consumo
(a “sociedade do espetáculo”), promovida principalmente pelo impulso dos veículos de
comunicação de massa no período pós-II guerra. Assim, pode-se perceber que a atitude
de negação destes “artistas marginais” representa o rechaço das condições limitadoras

16
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

que moldam a vida cotidiana do “cidadão comum”, passivo às regras estipuladas pela
sociedade burguesa.
A negação das regras do sistema capitalista permitiu que estes “artistas marginais”
desenvolvessem um procedimento de exploração urbana baseado no uso do tempo
livre – um tempo que não é regulado pela rotina de trabalho, pois se situa fora dela.
Apontado isto, é necessário que se faça a seguinte pergunta: no atual contexto –
marcado pela globalização e, consequentemente, pelo super-capitalismo – é possível se
opor às regras do sistema, negando, por exemplo, a rotina de trabalho que este nos
impõe? Penso que não.
Portanto, se sinto necessidade de explorar o território urbano, isto deve acontecer
durante os meus deslocamentos diários da casa para o trabalho e do trabalho para casa
– único momento que me resta. Por isso, desenvolvo uma estratégia artística de
exploração apoiada sobretudo na procura de brechas na minha rotina de trabalho, mais
especificamente nos meus itinerários. Estas brechas correspondem basicamente a
instantes de observação e reflexão sobre elementos que se apresentam durante os
meus percursos: objetos, pessoas, animais, situações, arquiteturas, fenômenos
naturais, etc.
Além da atitude, que considero como parte essencial do processo, outros elementos
compõe a minha estratégia, são eles: caderno de bordo (onde escrevo e desenho
minhas impressões; tamanho reduzido: 5,5 X 8,4 cm), caneta (cor preta), camisas
adaptadas (contendo bolsos para o caderno de bordo, os passes de metrô e trem, o
lenço de nariz e a caneta), relógio de pulso (para evitar atrasos), casacos apropriados
(com abertura na região do peito para facilitar o acesso ao bolso da camisa em dias
frios), mochila (para garantir as mãos livres) e o crachá (através do qual procuro
evidenciar a minha “função”, ou seja, de um “procurador de sentido”).
Gostaria de deixar claro que o presente texto não teve a intenção de mostrar de
maneira detalhada o modo como procedo durante os meus percursos e como um olhar
sensível pode encontrar significados preciosos para coisas aparentemente irrelevantes
(talvez as imagens – desenhos e registros fotográficos – dêem conta de evidenciar
estes aspectos), e sim de apresentar algumas das minhas referências e a forma como
respondo à realidade urbana.

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Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse.


Acuse a si mesmo, diga consigo que não é o bastante poeta para extrair as suas riquezas.
Raines Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta, 1903.

Referências Bibliográficas

______, Apologia da deriva: escritos situacionistas sobre a cidade / Internacional


Situacionista; Paola Berenstein Jacques, organização; Estela dos Santos Abreu,
tradução. – Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo: Obras
Escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1989.
BENJAMIN, Walter. Rua de Mão Única: Obras Escolhidas. São Paulo: Brasiliense,
1987.
BOLLE, Willi. Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em
Walter Benjamin. São Paulo: EDUSP (Editora da Universidade de São Paulo), 1994.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CARERI, Francesco. Lan & Scape Series: Walkscapes, El andar como prática
estética. Barcelona: Gustavo e Gili, 2002.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FREIRE, Cristina. Além dos mapas: os monumentos no imaginário urbano
Contemporânea. São Paulo: SESC; Annablume, 1997.
KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta e A canção de amor e morte do porta
Estandarte Cristóvão Rilke. São paulo: Globo, 2003.
______, Situacionista: teoria e prática da revolução / Internacional Situacionista. São
Paulo: CONRAD, 2002.
Texto de exposição
DUARTE, Paulo Sérgio. Três Passagens em torno de uma instalação. São Paulo:
Gabinete de Arte Raquel Aunaud, 2003.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

PERFORMANCE COMO CAMPO DE INVESTIGAÇÃO2


José Renato Fonseca de Almeida
É ator, performer e produtor cultural. Mestre em Comunicação e Semiótica e
Graduado em Comunicação das Artes do Corpo – Habilitação Performance e Dança –
pela PUC-SP. Realizou oficinas de performance e cidadania na favela Real Parque em
São Paulo, de agosto de 2005 a dezembro de 2006. Produtor cultural, recebeu, entre
outros, os prêmios Caravana Funarte de Circulação Nacional, Klauss Vianna de
produção de dança, 11º Cultura Inglesa Festival, modalidade dança, e o premio do
Edital do Fomento a Dança para a Cidade de São Paulo. (joserfda@yahoo.com.br)

Resumo
Este artigo nasce de uma inquietação: a predominante sensação de que o “poder”
cada vez mais assola e tenta manipula a vida das pessoas no momento
contemporâneo, de forma cada vez mais diluída e mais sutil, quase que imperceptível.
As questões levantadas pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984),
principalmente sob o aspecto do investimento de saberes e poderes que se dirigem aos
corpos e às subjetividades nos ajudam a problematizar estas questões. O autor traça os
caminhos pelos quais os mecanismos de poder vão se virtualizando e passam a se
exercer sobre o desejo, sobre os impulsos, sobre o corpo. Poder que passa a ser
entendido como relação de forças, como exercício, não mais apenas como relações
judiciais, mas que se espalha à toda a malha social, incluindo a arte. Poder que se
transforma em Biopoder. A partir desses argumentos, articulo algumas reflexões entre a
arte da performance e os mecanismos de poder.
Palavras-chave: Performance, Poder, Corpo, Comunicação

2
Este artigo é extraído do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) realizado na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP, orientado pela Professora Doutora Naira Ciotti, como parte integrante
da conclusão do curso de Comunicação das Artes do Corpo. Agradecimentos: Naira Ciotti, Lucio Agra e
a todos os professores do curso de Artes do Corpo da PUC-SP, que de um modo ou de outro fazem
parte desta pesquisa.

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Performance Como Campo de Investigação


Introdução
Este trabalho pretende cartografar algumas motivações que norteiam a prática da
Performance Art, a partir das experiências colhidas ao longo do percurso de minha
graduação nas Artes do Corpo, através de uma discussão com aporte artístico, filosófico
e político.
Considerem-se as seguintes situações:
- A pessoa entra em um shoping center com uma câmera de vídeo e começa a fazer
registros. Um segurança se aproxima e diz que aquilo não é permitido, pedindo à
pessoa que encerre a gravação e se retire dali. Em resposta, essa pessoa pergunta ao
guarda por que, então, o shopping tem o direito de colocar câmeras de vigilância e ficar
filmando as pessoas sem autorização? O segurança não soube responder e permitiu
que a pessoa continuasse filmando.
- Performance que aconteceu nos EUA, em um evento de tecnologia. No restaurante
do evento, uma artista3 ficou com o encargo de cuidar do bar, onde ela faria sua performance e
depois esclareceria o que estava pesquisando. As pessoas que faziam compras no bar
pagavam com seu cartão de crédito real. Ao passarem seus cartões, a máquina
processava e emitia um extrato, com os dizeres: dia tal esteve em viagem do país “y”
para o país “z”; hospedou-se no hotel “x” dias tais e tais, gastando tanto; e coisas desse
tipo. A ação mais marcante era a do dono do cartão, no momento em que recebia seu
extrato e constatava o controle de informações existentes na vida cotidiana.
- Assisto ao programa Roda Viva da TV Cultura com o filósofo italiano Toni Negri.4
Entre diversas questões, levanta-se a dos dois grandes blocos hegemônicos que
dominaram a maior parte do século passado. Um dos argüidores pergunta ao filósofo o
que fazer no momento atual se, por um lado, o modelo comunista vivenciado faliu, ruiu,
demonstrou-se ineficaz em termos de sobrevivência; e, por outro, um capitalismo cada
vez mais selvagem se impõe como único modelo vigente e, aparentemente, como único
modelo possível, apesar de todas as críticas apontando que a globalização não será
distribuidora de renda nem de melhores condições sociais. Haveria algum modelo a
3
http://www.subtletechnologies.com/2003/schedule.html#nisbet
4
Filósofo italiano, autor de “Império”. HARDT, MICHAEL E NEGRI, ANTONIO. Império.
São Paulo: Record, 2003.

20
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

seguir?
Negri apontou para um momento contemporâneo em que, na medida da falência de
um modelo (comunista) e na inevitável falência predatória do outro (capitalista), a
melhor alternativa talvez fosse uma espécie de apontamento para o vazio, um não
posicionamento ou uma não opção, o que não significaria nem apatia, nem niilismo.
Segundo seu ponto de vista, a melhor atitude talvez fosse enfrentar esse vazio,
aceitando que todos os modelos pré-existentes não dão conta da complexidade das
relações atuais, acrescentando inclusive que o Capital é um conceito do período
moderno que morreu juntamente com todos os outros conceitos que mantêm-se
atrelados ao período e que, com um ato de coragem, devemos aceitar esse momento
de vazio, na busca de um novo modo de relação.
- O jornal Folha de S. Paulo publicou que havia sido preso um integrante da rede Al
Qaeda, em função de uma ligação telefônica que havia sido rastreada, num universo de
3 bilhões de ligações que diariamente são rastreadas pelos EUA. É uma informação que
pode passar desapercebida, mas uma coisa chama a atenção: 3 bilhões de ligações
rastreadas por dia significa que, em média, cada um dos 6 bilhões de habitantes do
planeta Terra tem uma ligação rastreada por dia, já que uma ligação prevê duas
pessoas conversando; isso sem pensarmos que, provavelmente, nem metade da
população mundial tem telefone.
Os exemplos acima mencionados nos levam às discussões de Foucault. Como disse
Negri, a obra de Foucault nos permite perceber uma transformação histórica nas formas
sociais, passando da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, onde um novo
paradigma de poder é realizado, o biopoder. São criadas as instituições disciplinadoras,
que vão das instituições carcerárias, manicômios, escolas, exércitos a todas as
instituições totais, e estabelece-se o panóptico como modelo máximo, mecanismo que
faz da possibilidade de estar sendo vigiado o principal meio de controle das diferenças e
desvios, isolando-se aquilo que é considerado anormalidade e investindo na construção
de um corpo dócil e domesticado.
Podemos perceber a atualidade de suas concepções apresentadas por Paula Sibilia
em O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais. A autora
retoma alguns destes conceitos, e nos interessa especialmente o do biopoder, nas
condições sociais, políticas e tecnológicas do momento contemporâneo, principalmente

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naquilo que as mídias digitais ofereceram como possibilidades de atuação, além das
nanotecnologias que propõem a modificação dos corpos e das informações genéticas
do corpo. Como exemplo dos paradoxos que se apresentam, está sendo autorizado que
se faça copyright de moléculas, bactérias e organismos geneticamente modificados. Em
última instância, estabelecem-se direitos de propriedade sobre a vida, tais como nos
projetos Genoma e Transgênicos, como no caso da Monsanto.
Neste trabalho, busco relações que permitam perceber como muitos dos
questionamentos feitos pelos artistas da performance são questionamentos de relações
de poder. Uma postura de tensionamento com algo não pragmático e desconhecido é o
que encontramos nos estudos de performance. Postura que é efetivamente o
enfrentamento de algo que não se define previamente, pois são tantos os modos de
atuação artística que podem ser abarcados na arte nomeada como performance que se
torna impossível estabelecer uma definição cartesiana ou binária do que seja essa
manifestação artística. O convite que faço é que entendamos a performance, neste
trajeto, como um campo de investigação.

Percursos

A performance é antes de tudo uma expressão


cênica: um quadro sendo exibido para uma
platéia não caracteriza uma performance;
alguém pintando esse quadro, ao vivo, já
poderia caracterizá-la.5
Para caracterizar uma performance, algo
precisa estar acontecendo naquele instante,
naquele local.6

Os procedimentos performáticos se referem, antes de tudo, ao corpo. Estes


procedimentos, adotados por toda uma geração de artistas e que vieram a desembocar
naquilo que a partir dos anos 70 veio a se chamar arte da performance, sempre se
5
COHEN, RENATO. Performance Como Linguagem: Criação de um Tempo-Espaço de Experimentação.
São Paulo: Perspectiva. Edusp, 1989. p.28
6
Idem.

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referem ao corpo. Um dos pontos cruciais para uma genealogia da performance refere-
se à colocação do corpo na cena, efetuada em muitos casos por artistas que não eram
necessariamente bailarinos ou atores, e no caso de serem, não se encontravam mais
satisfeitos com os modos de fazer que a dança e o teatro propunham. Eram artistas
plásticos, escultores, pintores, poetas, escritores, músicos e fotógrafos, questionando os
limites impostos pelos suportes habituais de suas respectivas áreas de atuação e
desejando colocar o corpo em questão, o próprio corpo.
Podemos levantar alguns procedimentos e eventos que fazem parte de uma possível
história da performance. Falamos de uma possível história porque a performance não
tem uma data de nascimento, que segundo Jorge Glusberg, é possível remontar aos
primeiros rituais da tradição judaico-cristã, aos rituais tribais, aos mistérios medievais,
no que tange a esse modo de uso do corpo. Os trabalhos de performance atuais se
utilizam de uma gama variada de inspirações, acolhendo desde elementos de
manifestações populares até recursos das mais altas esferas da tecnologia.
Toda uma série de movimentos ligados às vanguardas artísticas apontam nessa
direção. Como não pretendo tratar desses movimentos especificamente, e visto
encontrar-se disponível uma vasta bibliografia sobre cada um deles, farei um breve
apanhado dos mesmos. Um pouco antes da virada do século, em 1896, acontece a
estréia de Ubu Rei, de Alfred Jarry, espetáculo que tanto dramatúrgica quanto
cenicamente quebrava uma série de convenções de época. Em 1910, têm início as
“Noites Futuristas”, ligadas ao Futurismo de Marinetti. Em 1912, um grupo de pintores e
poetas ligados a Maiakovski e Klébnikov começam a se organizar em torno do
Futurismo Russo. Em 1913, Franz Kafka (1883-1924) publica seu primeiro livro. Judeu
theco, residente em Praga, morto em 1924 num sanatório onde estava internado para
tratar de tuberculose. Em 1916, Hugo Ball e Emmy Hennings inauguram em Zurique o
Cabaré Voltaire. Tristan Tzara, Hans Arp e Marcel Janko fundam o Movimento Dadaísta.
Serge Diaghilev, na dança, é considerado um grande reformador. Empresário, seu
trabalho serve de síntese entre a dança, a música e artes visuais. Sobre muitos
aspectos, Marcel Duchamp será considerado um dos fundadores da arte
contemporânea. Seja por seus ready-mades, por suas intervenções, seu trabalho de
gênero sobre a persona de Rose Sélavy, é pedra fundamental em qualquer
questionamento da arte feita a partir dele. Sua influência se reflete até os dias de hoje.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Em 1918, Tzara lança o manifesto dadaísta, que chama a atenção de vários poetas
parisienses, entre eles André Breton. Aos poucos o movimento começa a se espalhar
pela Europa e ganha força em Berlim e Colônia, na Alemanha.
Kurt Schwitters começa a sua Merz-Bau em 1923, uma espécie de colagem gigante
em seu apartamento, em que ia anexando objetos, em geral encontrados na rua, sobre
a construção. Em 1937 exila-se na Noruega e um bombardeio destrói sua casa em
1943. Max Ernst realiza Collages. Em 1932, Antonin Artaud (1896-1948), ator e grande
pensador do teatro, lança seu Manifesto do Teatro da Crueldade. Foi um dos principais
precursores das inquietações que vão ser retomadas pela performance na década de
60. Capaz de escrever que não havia nada mais inútil do que as palavras, que as
palavras não davam conta das inquietações do espírito, deixou uma vasta obra que hoje
remonta a algo em torno de 26 volumes, apenas de escritos. Questionando sempre os
conceitos que ele próprio estabelecia, tinha por método um eterno retorno ao que já
havia dito ou questionado, como se não quisesse deixar que um conceito se
estabelecesse como lei e se cristalizasse. Em 1933, entra em funcionamento o Black
Mountain College (BMC), nos EUA, sob direção de Josef Albers. A partir dos anos 50,
John Cage trabalha no BMC, e sua parceria com Merce Cunningham é de fundamental
importância para uma nova visão da dança moderna, pelo uso do acaso e pela
separação entre as partes – música, cenário e coreografia – como unidades autônomas
em seus trabalhos.
Dá-se o início dos Happenings. Pollock realiza suas Action Paintings. Aparece a Por
Art. No final da década, Judith Malina e Julian Beck fundam o Living Theater. No Japão
desenvolvem-se propostas de Live Art, com o grupo Gutai, de Osaka. Alan Kaprow, a
partir das idéias das colagens, cria os Environments. Em 1959, Grotowski busca seu
Teatro Pobre. Em 1962, Yves Klein realiza o seu Salto no Vazio e chegamos a um
momento fundamental:

Em uma manhã de 1962, em Nice, cidade onde havia nascido trinta e quatro anos antes, Yves
Klein realizou um de seus trabalhos mais conhecidos: Salto no Vazio. Ele mesmo – fotografado
no instante que saltava para a rua, de um edifício – era o protagonista de sua obra, e, nesse
sentido, a obra em si. 7

7
GLUSBERG, JORGE. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2003.Idem. p.11

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Segundo Glusberg, este evento pode ter sido o início do que chamamos hoje de
Performance Art. Também em 1962 surge o Judson Dance Group na Judson Church em
NY, que vai agregar vários bailarinos e coreógrafos que queriam romper inclusive com a
dança moderna. Fazem parte Steve Paxton, Forty, Rainer, Brown, Deborah Hay,
Lucinda Childs e Philip Córner. George Maciunas funda o Movimento Fluxus. Joseph
Beuys organiza o Festival Fluxus de 1963 em Dusseldorf, na Alemanha. Este é outro
nome de primeira grandeza em qualquer discussão da performance. Em sua obra
Coyote: I Like America and America Likes Me8 seu posicionamento fica muito claro.
Joseph Beuys, vindo da Alemanha, não pisa no solo americano. Uma ambulância o leva
para a galeria de arte onde ele vai conviver durante uma semana com um coiote, sem
contato com as pessoas americanas. O diário Wall Street Journal é entregue
diariamente para servir de mictório ao coiote. O ano é 1974, período próximo à Guerra
do Vietnã e época da contracultura, do Faça paz, não faça guerra. Por volta dessa
mesma época, começa o movimento da Body Art, que se realiza na direção de utilizar o
próprio corpo, fazendo transformações algumas vezes definitivas e trabalhando muitas
vezes no limite da dor.
Só no início dos anos setenta é que estes vários movimentos e influências, tendo ou
não realizado ações performáticas em suas manifestações, vão migrar para um certo
modo de organização que vai ser nomeado Arte da Performance, ou Performance Art,
com muitos dos artistas anteriormente citados fazendo parte das mesmas, mas com
algumas diferenças. Cohen mapeia algumas mudanças que ocorrem na passagem do
Happening à Performance:9

8
Discutida mais longamente em COHEN, RENATO. Performance Como Linguagem: Criação de um
Tempo-Espaço de Experimentação. São Paulo: Perspectiva.Edusp, 1989. p.51 e ss.
9
COHEN, RENATO. Idem. p.136

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Happening (1960- Performance (1970-


1970) 1980)
Sustentação Ritual Ritual - Conceitual
Colagem - Sketches
Sketches (algum
Fio Condutor (aumento de
controle)
controle)
Forma de Individual
Grupal
Estruturação (colaboração)
Individual , Utopia
Ênfase Social Integrativa
Pessoal
Terapêutico,
Objetivo Estético, Conceitual
Anárquico
Material Plástico Eletrônico
Tempo de Evento (sem Evento (alguma
Apresentação repetição) repetição)

Ocorre um aumento de esteticidade e de controle na Performance, em detrimento de


uma forma mais improvisada de atuação no Happening. Todo esse percurso histórico
traça algumas linhas mestras para esses questionamentos realizados pela arte a partir
das vanguardas e que desembocam na performance. Como dissemos no início tratar-
se-ia do corpo, mas que corpo?

Talvez o exemplo mais claro dessa ruptura com a representação seja o do circo (que também
pode ser entendido como um tipo de performance). Quando o atirador de facas atua, ele não
está “representando”, não está fazendo nenhuma personagem. Ele está praticamente atuando
no real time. Talvez o risco nesse caso é que esteja trazendo mais “realidade”, mais “vida”,
para esta cena (na medida em que se trabalha com o imprevisto).10

Diferentemente do que acontece em maneiras mais tradicionais de dança ou teatro


onde, por um lado, o corpo do intérprete é o elemento máximo da ação cênica e por
outro, refere-se a algo externo à ele (seja uma dramaturgia textual ou a uma concepção
coreográfica), o corpo na performance também passa por uma ambivalência, que se dá
de outro modo: por um lado é auto-referente, pois o que existe de representação é
10
Idem. p.67

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diminuído; e de outro, não se coloca como ponto máximo da ação, existindo em


equivalência de importância com os outros elementos do trabalho. Assim, uma postura
de abertura, uma expectativa diferente da que se tem quando se assiste formas mais
tradicionais de organização cênica torna-se fundamental ao se analisar, assistir ou
participar de uma performance:

... a Performance vai ter em comum com outros exemplos da arte contemporânea a
necessidade de ser interpretada e julgada à luz de um enriquecimento cultural do receptor,
sem o qual o transgressivo se converte simplesmente em algo aborrecedor ou também num
total nonsesnse.11

No Brasil, como em todas as épocas, o movimento demora um pouco mais a chegar


e vai agregar algumas tendências muito particulares. São de fundamental importância
na nossa história os trabalhos de Lygia Clark com seus Bichos e Objetos Relacionais,
Hélio Oiticica com seus Parangolés e Penetráveis, a poesia concreta dos irmãos
Campos e de Décio Pignatari, as Vídeo Criaturas de Otávio Donasci, as pesquisas
teórico-práticas de Renato Cohen, o trabalho de Guto Lacaz e várias influências do
movimento underground. Cohen afirma que em determinado momento

...o movimento que existia apenas no circuito underground já está absorvido pela mídia e pela
“indústria cultural” (indústrias de moda e fonográfica principalmente). Inicia-se a fase daquilo que
se chamou “guerra de estilos”, que vem a ser a multiplicação de tendências a partir do punk e do
new wave – gótico, tecno-pop, ska, ôi, rockabillity, para dar alguns exemplos – surgindo com
essas novas correntes dezenas de grupos.12

Apesar disso, o público brasileiro ficou com a noção de que a performance é, na


maioria das vezes, conjuntos de cenas improvisadas, sem organização, e que era
apresentada em locais alternativos. Se o caminho da linguagem já é difuso, o trabalho
do performer não vai ser menos. Como agrega artistas oriundos de diversas escolas e
formações diferentes, suas práticas daquilo que seria um “treinamento” para o
performer são muito heterogêneas:

11
GLUSBERG, JORGE. Idem. p.64
12
COHEN, RENATO. Idem. p.148

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Essa prática, que envolve trabalhos de câmera lenta, exercícios de atenção, danças extáticas,
movimentos iogues, está incorporada ao repertório de inúmeros grupos contemporâneos: dos
trabalhos de Bob Wilson com dilatação de tempo e deformações de percepção ao stacatto e
interlúdios de Pina Bausch, da exacerbação física à exaustão do butô, aos trabalhos de
superposição propostos pelo Wooster Group.13

Cartografia

Eu sou um cartógrafo.
Michel Foucault

O poder sempre se dirige ao corpo. Michel Foucault, grande expoente da filosofia do


século passado, nos mostra como é ao corpo que se dirigem as relações de poder. Que
o “poder”, ao invés de algo que se tenha, se possua ou se conquiste, é sempre relação
de forças. O poder, antes de tudo, se exerce. Em Foucault:

o poder é menos uma propriedade que uma estratégia, e seus efeitos não são atribuíveis a
uma apropriação, mas a disposições, a manobras, táticas, técnicas, funcionamentos; ele se

exerce mais do que se possui. (...) Em suma, o poder não tem homogeneidade; define-se por
singularidade, pelos pontos singulares por onde passa.14

Um de seus grandes méritos é ter mapeado, cartografado, as relações de poder que


constituem cada período histórico por ele analisados. Evidentemente que seu legado é
bastante difícil e sofisticado e, mais que tudo, deslocado das funções normalmente
atribuídas à filosofia:

O deslocamento filosófico operado por Foucault implicava justamente o desregramento das


relações entre saber positivista, consciência filosófica e ação. Ao mergulhar no exame dos
funcionamentos reais pelos quais o pensamento efetivo age sobre os corpos, a filosofia abdica
de sua posição central. Mas o saber que ela então produz não define nenhuma arma das
massas à maneira marxista. É simplesmente um novo mapa no terreno desse pensamento
efetivo e descentrado.15
13
COHEN, RENATO. Work In Progress na Cena Contemporânea. São Paulo: Perspectiva, 1994. p.69.
14
DELEUZE, GILLES. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988. p.35.
15
RANCIÈRE, JACQUES. A Herança Difícil de Foucault. Folha de São Paulo. Suplemento Mais!.

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É justamente esse pensamento desterritorializado, descentrado, ou como diria o filósofo


francês Jacques Rancière, um sentimento do intolerável, que interessa aqui. E sobre
esse prisma nos colocaremos em contato com a obra de Foucault, mais
especificamente o livro Vigiar e Punir.16 Logo no começo do livro, o autor faz notar o
desaparecimento do suplício diretamente físico, como forma de aplicação da pena, para
um novo modo de tratamento dado ao criminoso. Essa mudança se dá no período das
grandes reformas do sistema jurídico e penal ocorrido em toda a Europa, entre fins do
século XVIII e início do século XIX. Entre uma forma e outra, menos de cem anos se
passam. É o registro inicial de uma nova era que se inicia. A passagem para o sistema
disciplinar e de controle. A passagem de um modelo punitivo para um modelo corretivo
de pena, que se acentua cada vez mais ao longo do século XIX.

Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, uma arranjo
de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação (...) No entanto, um fato é
certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado,
amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como
espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.17

O sistema penal passa então a ser dirigido ao comportamento dos indivíduos e da


sociedade. Com o objetivo de não mais se fazer o espetáculo penal, em decorrência de
uma necessidade, ou imposição, de uma certa humanização da pena, entram em cena
os mecanismos carcerários que, mais que punir eventuais condenados, visam a
adestrar e a domesticar o comportamento. Mais que dar garantias de segurança à
sociedade, servem como mecanismo de visibilidade de uma ordem social dada. Esse
modelo não se conforma em ficar restrito ao condenado, espalhando-se em diversas
direções na malha social. Na análise de Foucault, um mesmo programa pode ser
encontrado em diversas configurações sociais: na escola, no exército, no hospício, no
hospital. Programa que vai gerir uma certa relação de docilidade-utilidade a ser
manifesta na forma da disciplina, anatomia política do detalhe, segundo suas palavras,
e que implica em fiscalizar e esquadrinhar cada passo, cada atitude, cada movimento:

27.06.2004.
16
FOUCAULT, MICHEL. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
17
Idem. p.14.

29
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas
parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou
da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo
místico do ínfimo e do infinito.18

Junto com o adestramento e a disciplina dos corpos, aparece o controle das


atividades. Em todos esses locais de aplicação, o poder vai aparecer nas relações entre
sujeitos e objetos. O controle será exercido através dos mecanismos de vigilância. Uma
vigilância que será tanto mais efetiva quanto menos precisar se apresentar
efetivamente, quanto mais for transferida ao próprio corpo que é seu objeto de atuação.
A disciplina, segundo Foucault...

faz “funcionar” um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e
substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às
técnicas de vigilância, a “física” do poder, o domínio sobre o corpo se efetuam segundo as leis
da ótica e da mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas , de telas, de feixes, de graus,
e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em
aparência ainda menos “corporal” por ser mais sabiamente “físico”.19

Na sociedade, esse poder vai extrapolar as condições de uma culpa. Não será mais
necessário ter cometido algum delito para se transformar em ponto de exercício do
poder disciplinar. Alternativas médicas são dadas de maneira diferente, passando de um
sintoma anterior – modelo da lepra – para um sintoma novo, típico da postura
inquisidora, o modelo da peste. Contra a lepra, a separação, o isolamento, a clausura,
em nome de uma raça “pura”, de uma raça “limpa”. Na peste, ao contrário, tudo será
rastreado, solicitado, diagnosticado. Esse novo espaço...

... recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar
fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são
registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é
exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é
constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos –

18
Idem. p.129.
19
Idem. p.159.

30
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

isso tudo constitui um modelo compacto de dispositivo disciplinar.20

Esse desejo tecno-científico exige novos modos de exercício. E o panóptico de


Bentham é a figura arquitetural que melhor responde por esta necessidade. Ver sem ser
visto. Saber-se objeto de uma possível visualização, sem a certeza de estar sendo visto.
Seu mérito maior talvez seja tornar aquele que é vigiado em objeto, do qual se pode
extrair as informações desejadas, e não um sujeito de um comunicação. O panóptico é
a concretização dos maiores sonhos de vigilância possível. Um dispositivo que pela
simples existência constitua, no corpo que é objeto de sua sujeição, um poder que não
precisa nem da força e nem da presença do vigilante. Para tanto é necessário que o
panóptico possua duas qualidades indispensáveis ao seu bom funcionamento: ser
visível e inverificável. Ele torna-se o modelo ideal, porque não precisa da violência, não
precisa usar a força. Segundo seus idealizadores, é econômico, eficiente, limpo. Não há
o que contestar. Aquele que se encontra sob uma possível vigilância, e sabe disso,
assume por si e sob si mesmo o papel de vigilante. É o ponto máximo a que o poder
chega, podendo entrar, penetrar e produzir um efeito no corpo. A vigilância é
ininterrupta. O poder é máximo pois se exerce de maneira contínua, mesmo que na
solidão, e tem extensão infinita. Estrutura arquitetônica que age simultaneamente de
modo concreto e abstrato. Segundo o filósofo francês Gilles Deleuze:

A fórmula abstrata do Panoptismo não é mais, então, “ver sem ser visto”, mas impor uma
conduta qualquer a uma multiplicidade humana qualquer. Especifica-se apenas que a
multiplicidade considerada deve ser reduzida, tomada num espaço restrito, e que a imposição
de uma conduta se faz através da repartição no espaço-tempo.21

Esse diagrama se torna extensivo à toda sociedade. As técnicas disciplinares


encontram na prisão sua forma ideal de funcionamento e sinalização. Além de ser um
local ideal de aplicação do dispositivo panóptico sobre aquele que se encontra vigiado –
do lado de dentro – serve também de simbolização de perigo e, em certa medida, de
sinalização de um risco, caso o cidadão não encarcerado ultrapasse a linha da
legalidade – do lado de fora.

20
Idem. p.175.
21
DELEUZE, GILLES. Idem. p.43.

31
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Relações entre arte e poder


Cabe agora investigar como se dão os agenciamentos entre os assuntos até aqui
esboçados e, a partir de alguns artistas já citados, perceber um tensionamento entre a
arte e os mecanismos de poder. No livro de Franz Kafka, Um Artista da Fome, seu
personagem jejuador, artista da fome, em seu último suspiro nos responde o porque de
seu ato, talvez suicida, que na verdade ele não podia evitar:

Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode
acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo.22

Não podia aceitar. Não era do alimento que lhe davam que o personagem
necessitava. E era em seu corpo que esse ponto de tensão entre a arte e a vida
acontecia. Não pela via do discurso, pela via da discussão racional ou intelectual, mas
pelo corpo. O mesmo lugar onde se investe o poder e que não se pode suportar mais é
o lugar da resistência. Kakfa é retrato de uma época em que este sentimento do
intolerável se fazia muito presente, que vai ser, sob muitos aspectos, o discurso da
performance:

O discurso da performance é o discurso radical. O discurso do combate (que não se dá


verbalmente, como no teatro engagée, mas visualmente, com as metáforas criadas pelo
próprio sistema) da militância, do underground. Artistas como Beyus e o grupo Fluxus fazem
parte da corrente que trouxe os dadaístas, os surrealistas e a contracultura entre outros
movimentos que se insurgem contra uma sociedade inconseqüente (e decadente) nos seus
valores e também contra uma arte que de uma forma ou outra compactua com esta
sociedade.23

O Cabaret Voltaire se estabelece numa Zurique neutra em relação à guerra. O artista


Joseph Beuys fora piloto de guerra na Alemanha nazista e sua “conversão” acontece
após uma queda de seu avião, na região do tártaro, durante a guerra. Muitos dos
elementos de seus trabalhos artísticos foram utilizados em sua cura. Eminentemente
um agente que buscava uma transformação, Beuys carrega em sua obra sempre estes
22
KAFKA, FRANZ. Um Artista de Fome e A Construçâo. São Paulo: Brasiliense, 1995. p.35.
23
COHEN, RENATO. Performance Como Linguagem: Criação de um Tempo-Espaço de Experimentação.
São Paulo: Perspectiva.Edusp, 1989. p.88

32
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

questionamentos, mesmo de forma não declarada. Integrante e fundador do Movimento


Verde – precursor dos movimentos e partidos ecológicos – foi, certa vez, questionado
sobre como atingir a massa com sua obra ou suas manifestações. Respondeu que:

São os líderes políticos que desejam atrair as massas; nós, que trabalhamos a longo prazo,
nos conformamos em ir conversando com a maior quantidade de pessoas possível, gente que
por seu turno conversará com outros grupos e assim por diante, em uma espécie de cadeia
incessante.24

Vários eventos Dadaístas acabaram em confusão e tumulto, devido às provocações


que faziam e às posturas que tomavam perante o quadro social. A Bauhaus é fechada
em 1933, quando o governo da Alemanha vai para as mãos de Adolf Hitler. Por outro
lado, não devemos esquecer que, pelo menos os Futuristas Italianos, liderados por
Marinetti, eram profundos admiradores das máquinas, das armas de guerra. A primeira
metade do século XX viveu um dos período de maior agitação conhecido até então.
Duas guerras mundiais, transformação técnica e tecnológica aceleradíssima, discursos
desencontrados, luto, apatia, vontade de luta, engajamento, desilusões e esperanças.
Ao apontar os caminhos seguidos pela arte nos EUA durante a década de 50, Glusberg
afirma que:

Todos esses caminhos, aparentemente divergentes, apontavam para uma única direção,
reexaminar os objetivos da arte – de todas as artes – abrindo novas possibilidades para aquela
que é a mais sublime parte do homem, marcado por um mundo recém-saído da guerra e do
holocausto atômico.25

Não é que haja, entre estes procedimentos da performance e esta leitura do poder,
uma relação direta de causalidade, um estímulo-resposta, nem que a arte tenha uma
função pré-determinada à qual ela deva obedecer, mas o fato é que em um mesmo
período histórico temos a revolução russa e as duas guerras mundiais; um
desenvolvimento tecnológico numa velocidade inimaginável e um certo desconsolo do
mundo. Arte e tecnologia se imbricam pela fotografia e pelo cinema, criando uma
necessidade de questionamento de um certo realismo proposto por formas anteriores
24
GLUSBERG, JORGE. Idem. p.132
25
Idem. p.27.

33
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

de arte, já que estas fazem isso muito melhor. Gerações de artistas vão questionar toda
essa situação, incluindo os modos de fazer e as expectativas em relação às linguagens
e à vida
O que podemos encontrar aqui é que, na quebra das tradições, na liberdade de
atuação e do uso das linguagens, o que se encontra são os diagramas, que não se
referem a algo externo ou interno, mas que a partir de impulsos e como respostas à
aspectos tanto internos (do artista) quanto externos (do meio, do social), emergem
como indicadores apenas de si mesmos, sem pontos de apoio:

É que o diagrama é altamente instável ou fluído, não pára de misturar matérias e funções de
modo a constituir mutações. Finalmente, todo diagrama é intersocial, e em devir. Ele nunca
age para representar um mundo preexistente, ele produz um novo tipo de realidade, um novo
modelo de verdade. Não é sujeito da história nem a supera. Faz a história desfazendo as
realidades e as significações anteriores, formando um número equivalente de pontos de
emergência ou de criatividade, de conjunções inesperadas, de improváveis continuuns. Ele
duplica a história com um devir.26

A partir dos diagramas, percebemos que a cena na performance vai se formar


através de um agenciamento em devir. Partindo de pontos que podem ser os mais
difusos possíveis, constrói não uma narrativa no sentido clássico, mas mapeamentos
em storyboards, fluxos de acontecimentos, abrindo-se ao momento da cena, às gestalts
a posteriori. Isso não representa um descaso, ou uma aleatoriedade inconseqüente
mas, pelo contrário, estrutura-se de maneira hipertextual, em rede, em rizoma, sem
necessariamente ter um começo ou um fim, mas que não elimina, porém, a
necessidade de a performance ser construída com rigor. Trata-se de um agenciamento
de forças, tanto em Artaud quanto em Foucault. Nos dois autores encontramos a
imagem da peste como ponto de confluência. Em Foucault, a peste apresentada como
representação do controle, da vigilância, do diagnóstico. O espaço do biopoder, do
controle da diferença, do desejo, do corpo. Em Artaud, a busca de uma arte que, como
a peste, faça cair as máscaras do comportamento e mostre a potência criativa da vida.
Uma espécie de biopotência:

26
DELEUZE, GILLES. Idem. p.44-5.

34
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

O estado do pestífero que morre sem destruição da matéria, tendo em si todos os estigmas de
um mal absoluto e quase abstrato, é idêntico ao estado do ator integralmente penetrado e
transtornado por seus sentimentos, sem nenhum proveito para a realidade. Tudo no aspecto
físico do ator, assim como no do pestífero, mostra que a vida reagiu ao paroxismo e, no
entanto, nada aconteceu.27

Fica claro na obra de Artaud a busca pela potência intrínseca dos elementos na cena,
que nos interessa aqui. Algo de linhas de forças, de atributos de linguagem e de modos
de organização. E é muito presente na cena da performance o questionamento dos
lugares habituais das forças envolvidas, um questionamento de suas qualidades como
elementos de representação de outra realidade. Conforme já salientado, Artaud vai ser
autor fundamental no desenvolvimento da performance, por exemplo, no sentido de um
certo imediatismo em relação aos elementos colocados em cena, que são o que são em
si mesmos, não querendo representar um terceiro. Trata-se da busca de um signo mais
próximo do icônico. Claro que sempre haverá algo de representação na utilização de um
elemento em cena, e que a presença do público trará inevitavelmente as associações
que este fará, em função da sua aproximação com a obra. Mas essa busca de
elementos próximos de suas qualidades intrínsecas é um dos mecanismos de busca da
potência do elemento em si, de uma certa assimetria cênica proposta, do
desmantelamento da uma certa dramaturgia.
Trará para os elementos em questão – cenários, figurinos, corpo, música – um modo
de utilização e de organização que não será mais o espaço da dramaturgia como texto,
diminuindo a importância do mesmo. A cena não se refere mais a um texto escrito, ou a
uma história a ser contada, ou a um conjunto de passos a ser realizado na dança. O
choque entre os elementos é que será de extrema importância. Não entre o que eles
têm de representativo, mas pelo que eles têm de materialidade e que vai se apresentar
para um público que será convidado a participar desse momento, com menos
conhecimento prévio do que vai acontecer e participante do contexto para a criação de
significados.
Quando os elementos não mais se colocam como suportes para a transmissão de um
texto (seja ele o texto teatral ou os conjuntos de passos na dança) que seja externo a

27
ARTAUD, ANTONIN. O Teatro e a Peste. In: O Teatro e Seu Duplo. São Paulo:
Martins Fontes. 1999. p.20.

35
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

eles ou pré-dados, encontramos potências não estratificadas das coisas e das formas,
ou seja, forças mais próximas da própria fonte de emissão, que tentam encontrar
caminhos para escoar. Ao entrar em contato com os elementos da materialidade a que
estão circunscritas, descobrem outros pontos de apoio, desconhecidos até então,
algumas vezes tanto para o performer – nesse sentido propositor da experiência –
quanto para o “espectador”, que nesse caso deixa de ser apenas um receptor passivo
da experiência e pode colocar-se como colaborador da cena, no momento presente, em
maior ou menor grau de intensidade, de acordo com as possibilidade que, por um lado,
a cena lhe dê, e por outro, de sua disposição e abertura para que isto aconteça.

Considerações Finais
O que desejei apontar com esta cartografia e com os apontamentos históricos que
realizei é que, em primeiro lugar, não há como delinear um território onde a performance
se realiza ou de onde ela parta. A construção passa sempre por uma
desterritorialização. Se partimos de um ponto de vista em que há a colocação do corpo
do artista como início da pesquisa, temos que considerar que aspectos identitários
sempre estarão presente. É freqüente uma certa característica “obsessiva” em relação a
alguns assuntos ou temas. Essa característica permite ao performer conversar com as
áreas de interesse para cada realização, estabelecer diálogo com outros artistas, com
outras disciplinas, colaborações técnicas, articulando um fluxo de diálogo e contato em
que não é suficiente ser o especialista de uma área para poder interagir com ela, pois
existe a liberdade e a abertura para apropriar-se de fragmentos de experiências.
Considerando que essas possibilidades de diálogo com outras áreas constituem um
campo de investigação multidisciplinar, podemos apontar uma característica
transdisciplinar da performance, via Teoria Geral dos Sistemas, apontando futuros
estudos nessa área. Segundo a fórmula de sistemas proposta por Avanir Uyemov28:

(m) S = df [ R (m) ] P ; onde

“dado um agregado qualquer de coisas (m), isto será um sistema (S) quando,
28
VIEIRA, JORGE DE ALBUQUERQUE. Intersemiose e Arte. São Paulo: Anais do VIII Congresso
Nacional da Federação de Arte-Educadores do Brasil, 1995. p.01.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

por definição, houver um conjunto de relações (R) agindo sobre as coisas do


agregado (m), de modo a emergir destas relações uma propriedade
partilhada P.”

Uma conseqüência desta pesquisa é que a performance art pode ser vista como essa
propriedade partilhada P. A partir do diálogo com as áreas de interesse (que constituem
as linhas de força), dos diagramas, das forças que atuam sobre o corpo, pela
característica autoral e biográfica do performer, a relação com outras “disciplinas” –
dança, teatro, artes plásticas, música etc. – possibilita uma interação interdisciplinar, e
promove a emergência de um transdisciplinar, a propriedade partilhada P, a
performance art, que não está em nenhuma das partes anteriores, mas que emerge e
dá sentido às partes. Isto não a isenta de rigor nem a torna uma espécie de “salada”, de
mistura de qualquer coisa, pois esse todo, esse emergente, por mais que seja criado a
partir de fragmentações, de diálogos com outras disciplinas, com outras áreas, precisa
apresentar coerência.
Mas como descobrir essa coerência? Só no momento em que a performance se
realiza é possível descobrir isso. Haverá sempre um risco envolvido. O que o
pesquisador tem como possibilidade é descobrir quais são os atratores que ele pode
utilizar, que serão percebidos ao longo do trabalho, para criar índices de
gramaticalidade que possibilitem ao outro a leitura de sua obra, em participação com
ele. Os atratores são os pontos de confluência, de tendências, para onde o trabalho vai
se encaminhando na sua elaboração. Assim, por mais que se tenha a liberdade de
pesquisar as bordas e fronteiras com as áreas de saber que se tenha vontade, e com
isso chegamos à noção disso que estou chamando de campo de investigação, o
trabalho da performance traz elementos que, quando aparecem, permanecem durante
todo o processo. Tomamos de empréstimo uma citação de Paula Sibilia que, na
introdução de seu livro, pede um novo olhar para as discussões que fará. Para a autora:

As artes, as ciências e a filosofia devem assumir essa tarefa esquiva, pois esses três tipos de
saberes nos intimam a mergulhar no caos. Em vez de desfrutar a tranqüilidade que oferecem
as certezas absolutas, o desafio consiste em enfrentar o abismo desconhecido. (...) A verdade,
afinal, é apenas “uma espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada
porque o longo cozimento da história a tornou inalterável”, como apontou Michel Foucault em

37
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Microfísica do Poder. (...) a proposta é abrir uma fenda na segurança do já pensado para
deixar passar a riqueza do ainda não pensado, como um raio impetuoso capaz de alterar
aquilo que é29.

O campo de investigação pelo qual adentramos, os elementos que foram sendo


elaborados na pesquisa, as forças que se agenciaram, fizeram emergir algo, que não
está em nenhum dos elementos constitutivos da cena, e que no momento singular da
apresentação, cria coerência, juntamente com o ambiente e o contexto, platéia
inclusive, fazendo acontecer a performance.

Referências Bibliográficas
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BERTALANFFY, LUDWIG VON. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes,
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GUINSBURG, J., TELESI, SILVIA FERNANDES e NETO, ANTONIO MERCADO
(orgs.). Linguagem e Vida. Antonin Artaud. São Paulo: Perspectiva.1995
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1995.
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Formação do Ator (Stanislavski, Artaud, Grotowski, Barba, Antunes Filho). Tese de
29
SIBILIA, PAULA. O Homem Pós-Orgânico. Corpo, Subjetividades e Tecnologias
Digitais. Rio de Janeiro. Relume Dumara:2003. p.20-1.

38
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Mestrado em Comunicação e Semiótica PUC-SP. São Paulo, 1998.


PASSETTI, EDSON (org.). Kafka ,Foucault : Sem Medos. Cotia,SP: Ateliê
Editorial, 2004.
PELBART, PETER PAL. Vida Capital. Ensaios de Biopolítica. São Paulo:
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SIBILIA, PAULA. O Homem Pós-Orgânico. Corpo, Subjetividade e Tecnologias
Digitais Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
VIRMAUX, ALAIN. Artaud e o Teatro. São Paulo: Perspectiva. 2000.
Artigos
VIEIRA, JORGE DE ALBUQUERQUE. Intersemiose e Arte. São Paulo: Anais do
VIII Congresso Nacional da Federação de Arte-Educadores do Brasil, 1995.
Sites
http://www.cisc.org.br/portal/index.php
UHLMANN, GÜNTER WILHELM. Teoria Geral dos Sistemas. Do Atomismo ao
Sistemismo (Uma abordagem sintética das principais vertentes contemporâneas desta
Proto-Teoria). São Paulo: CISC, 2002.
http://www.subtletechnologies.com
http://www.webmuseum.hpg.ig.com.br/
Artigos de Jornal
RANCIÈRE, JACQUES. A Herança Difícil de Foucault. Folha de São Paulo.
Suplemento Mais!. 27.06.2004
Vídeo
TV CULTURA. Programa Roda Vida. Entrevista com Toni Negri.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

FLÁVIO DE CARVALHO – O ENGENHEIRO CORPORAL


Paula Darriba

Flávio de Carvalho – O Engenheiro Corporal


INTRODUÇÃO
Louco, excêntrico, lunático, arrogante, oportunista, dramático, audacioso,
exibicionista, gênio brilhante. Curioso notar como os adjetivos perseguem
exageradamente Flávio de Carvalho (1899 - 1973) nas diversas biografias e artigos a
ele dedicados. Difícil e bastante compreensível, creio para os autores, é não transportar
a aura romântica e lendária que envolveu o artista, sobretudo entre os anos 30 e 60
num cenário artístico que procurava se firmar na tão discutida modernidade e dava, aos
poucos, os primeiros sinais de sua inserção na pós-modernidade.
A obra de Flávio de Carvalho, caracterizada principalmente pela pluralidade, abrange
uma vasta produção em arquitetura, artes plásticas, teatro, cenografia, figurino e
performance além da atuação como produtor cultural, jornalista e escritor, atividades
que exerceu paralelamente ao longo de quase toda sua vida. E como olhar então, para
um artista cuja produção contempla tão complexa diversidade de características e que
se apresenta sempre de forma tão incisiva e questionadora diante da realidade social e
política de seu país?
Nosso objetivo diante de tal questão é propor um breve ensaio sobre a vida e a obra
de Flávio de Carvalho, no sentido de ampliar a arena de debates da História e Crítica da
Arte sob a luz das propostas dos estudos históricos e antropológicos. Ao longo deste
exercício, iremos nos fundamentar em obras que buscam recolocar a antropologia
diante das novas expectativas que a cercam e cujos autores contribuem no
entendimento da qualidade da pesquisa histórica bem como das articulações entre
essas ciências – as proposições que mais nos interessam serão citadas no decorrer do
trabalho.
Diante dessas intenções preliminares, resgatamos a proposição geral de Monteiro

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

(1991, pg.119) no sentido de que apesar das observações antropológicas das


sociedades complexas não estarem totalmente ordenadas no que diz respeito às
conseqüências teóricas, o fato de a cultura manter-se com “extraordinária atualidade” no
discurso social contemporâneo faz da Antropologia importante instrumento para a
compreensão dos processos sociais de forma geral.
Talvez o que torne esta tarefa ainda mais curiosa, é o fato de que o próprio Flávio
adotava mecanismos semelhantes para a elaboração de seus trabalhos. Em estreita
sintonia com os intelectuais de sua época, devoto das teorias de Sigmund Freud, leitor
assíduo dos antropólogos da época, James Frazer e Bronislaw Malinowski, dos
psicólogos sociais Gustave Le Bon e Wilfred Trotter bem como da filosofia de Nietzsche,
era pautado nessa simbiose dos saberes que o artista agia em suas criações.
Procurava somar seus conhecimentos teóricos e científicos às suas atividades práticas
e reflexões de artista ampliando assim suas possibilidades expressivas e tecendo com o
meio social e político profunda relação de cumplicidade.
Além das diversas biografias e obras de autores que tratam da obra de Flávio de
Carvalho, foram consultados vários artigos em jornais da época, escritos pelo artista,
bem como artigos publicados em catálogos impressos e em formato eletrônico onde
características mais específicas da sua produção foram contempladas a partir do ponto
de vista de especialistas em cada uma das áreas de atuação do artista. A observação
das imagens (fotografias e ilustrações do artista) reproduzidas nos periódicos também
foi útil no sentido de confrontar suas intenções plástico-pictóricas com suas proposições
teóricas. Apesar de não ser nossa intenção a etnografia da imagem, a justaposição das
ilustrações feitas por Flávio de Carvalho com as imagens publicitárias divulgadas na
mesma época nos permite ainda supor uma relação de incorporação desses modelos
publicitários vigentes através do tipo da linha empregada, dos contrastes elaborados
para a impressão, da disposição das figuras nos artigos, etc. Veremos que esta sintonia
com o discurso e formas de expressão da mídia será uma constante presente na vida e
na obra do artista.

A partir desses aspectos preliminares, concordamos com Dias (1990, pg. 132) no
sentido de que uma abordagem antropológica possa ser útil para “o entendimento das
práticas artísticas de nossa modernidade e pós-modernidade” através das suas
manifestações concretas e cotidianas. E, apesar de não estarmos fazendo aqui um

41
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

“trabalho de campo” antropológico no sentido exato da expressão nem tampouco


estarmos lidando com informantes, tomamos como úteis também as proposições de
Geertz (2001) sobre os conflitos que podem surgir no sentido de possíveis
manipulações das informações. A aura nostálgica e romântica que envolve Flávio de
Carvalho pressupõe muitas vezes algumas considerações distorcidas e/ou exageradas
dos fatos, principalmente dos “fatos escandalosos”. A pesquisa realizada nos periódicos
de época foi fundamental no sentido de nos ajudar a manter o “distanciamento” sugerido
pelo autor e não nos envolver com as informações, muitas vezes contraditórias
presentes nas diferentes biografias sobre o artista.

O ENGENHEIRO “CORPORAL”
Flávio de Carvalho, depois de onze anos de estudos na França e na Inglaterra,
retorna ao Brasil em 1922, reinstalando-se na híbrida cidade de São Paulo que dava
passos largos em função da crescente industrialização, mas ao mesmo tempo
mantinha-se culturalmente presa ao tradicionalismo e ao preconceito provinciano.
Engenheiro civil, portando um diploma da Universidade de Durham, Newcastle, logo
é contratado por um dos mais conceituados escritórios da cidade exercendo a função de
calculista por alguns anos junto a equipe de Ramos de Azevedo, responsável pelas
principais obras de engenharia e arquitetura da época.
O austero engenheiro calculista atua, no entanto, sob o domínio do artista que
freqüentou o departamento de Belas Artes da mesma universidade – King Edward VII
School of Art e tendo uma cidade ambiciosamente “modernista” como palco do embate
entre a tradição e a vanguarda, foi uma questão de tempo despontarem suas vivências
junto às vanguardas artísticas européias, impregnadas das idéias futuristas, surrealistas
e expressionistas.
O projeto apresentado em 1927 para o Palácio do Governo de São Paulo logo
desperta a crítica dos olhares “conservadores” de plantão e a simpatia dos modernistas.
Flávio de Carvalho envia para os jornais um novo desenho desse projeto,
propositadamente menos técnico e pleno de contrastes em preto e branco. O impacto
visual adquirido por esse novo esboço é perfeito para a reprodução nos jornais e Flávio
inicia assim a sua própria “tradição” no que diz respeito a tomar partido - sempre e o
máximo possível - de qualquer meio de comunicação que se fizesse disponível (Leite,

42
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

2004).
Naquela época a arquitetura brasileira ainda se consolidava através dos “neo-isto” ou
“neo-aquilo”, convenientemente importados da Europa e que delegavam aos prédios,
sobretudos aos públicos o caráter de sobriedade pretendido pela “metrópole em
desenvolvimento industrial” e que procurava driblar, a todo custo e com intervenção
federal, os problemas oriundos da crise do café e do crack da Bolsa de Nova York em
1929.
O escritório de engenharia onde Flávio de Carvalho prestava serviços foi
responsável, por exemplo, pela construção da Escola Politécnica, dos Correios e do
Teatro Municipal de São Paulo. As escolhas do universo clássico na maioria das
construções dessa época traduziam, portanto, valores que estabeleciam “uma
continuidade em relação a um passado” conveniente (HOBSBAWN, 1984, pg. 09) e
que pudesse refletir a aura ao mesmo tempo de progresso e poder, inventando
tradições convenientes a manutenção do status quo vigente.
Segundo Newton Freitas (1983, pg. 69), São Paulo nos anos 20 era a autêntica
“tradução européia” de costumes e tradições, submetida à penetração das correntes
migratórias e do desenvolvimento urbano e industrial e não foi mera coincidência ter
sido, em contrapartida, o palco da vanguarda brasileira a partir da Semana da Arte
Moderna .No entanto, apesar dos gritos modernistas terem projetado alguma luz diante
das artes plásticas e literárias, as influências modernistas na arquitetura eram até então
desconhecidas.A funcionalidade, o despojamento e o caráter geométrico dos projetos
que o engenheiro começa a difundir em sucessivos concursos, sempre através de um
pseudônimo, Efficacia, gera estranhamento e discussão ainda no final da década.
Os primeiros projetos modernistas vieram a ser executados na cidade de São Paulo a
partir dos anos subseqüentes e é claro, preferencialmente importados de arquitetos
estrangeiros (ainda assim, estes também geraram polêmica). Foi o caso da primeira
casa modernista construída na cidade de autoria do arquiteto russo Gregori
Warchavchik em 1928.
O que nos parece mais interessante aqui é o fato de Flávio de Carvalho ter utilizado
conscientemente a imprensa no sentido de difundir as propostas modernistas de seus
projetos arquitetônicos, fato que vai se repetir sucessivamente durante o ano de 1928 e
1929. São exemplos os projetos para a Embaixada Argentina no Rio de Janeiro,

43
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Universidade de Minas Gerais e Palácio do Congresso de São Paulo. Tais propostas


têm em comum a simetria, a construção em planos, e o caráter racionalista, permeados
com o expressionismo alemão e o futurismo italiano conforme aponta Leite (1983, pg.
47).
Por essa época, Flávio já experimentara a publicação de vários de seus artigos -
sobre arquitetura, artes plásticas e teatro - e entrevistas na imprensa paulistana, o que o
tornara, por sua vez, íntimo desta forma de comunicação com o público.
A intenção de disseminar suas idéias passa aos poucos a tomar um lugar muito mais
importante na vida do artista do que propriamente sua carreira como engenheiro
calculista que é sumariamente abandonada.
A polêmica surgida em torno de seus projetos arquitetônicos acaba por sintonizá-lo
com a comunidade modernista paulistana, e em 1930 incorpora o discurso
antropofágico em suas palestras “A Cidade do Homem Nu” e “Antropofagia no Século
XX” ambos apresentados no Congresso Pan-Americano de Arquitetura e Urbanismo
realizado no Rio de Janeiro e publicados no Diário da Noite, em 01 de julho do mesmo
ano. Essas palestras refletem as intenções paradigmáticas de Flávio de Carvalho que
exalta “o homem do futuro, sem deus”, avesso às concepções cristãs, apto a criar e a
habitar uma cidade estética e cientificamente idealizada. Essa cidade, elaborada na
forma de anéis concêntricos é a “casa do verdadeiro homem antropofágico”, das
Américas, livre do peso das tradições e preconceitos. É a cidade geográfica que
privilegia a coletividade e espelha o homem biológico de Nietzsche cuja religião localiza-
se na “zona erótica” conforme os estudos de Freud.
Osorio (2000 p. 18) refere-se a essa conferência como se fosse um manifesto
particular do artista onde este confirmaria o “lugar específico de sua atuação criativa: o
corpo”. Corpo esse que fala, sente, pensa e que traz o estético e o ético irmanados.
Essa preocupação com o homem, seu corpo físico e espiritual, questionado em suas
relações com o espaço e com a sociedade, se faz transparecer em toda a sua produção
artística, desde seus projetos arquitetônicos, suas pinturas, desenhos e esculturas,
cenários e figurinos até suas performances:

“seja na casa ou na roupa é o corpo que orienta a experimentação e determina o processo de


formalização. É a especificidade de uma linguagem plástica, que se desenvolve atrelada ao

44
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corpo, que está em questão” (idem, p.43).

A importância específica dada ao corpo sugere a forma como Flávio de Carvalho


antecipa questões pertinentes a arte contemporânea, sobretudo na linguagem do teatro
– que tangencia algumas propostas que serão trabalhadas posteriormente
30
principalmente por Grotowsky e Stanislavski - e da performance. Esta, por sua vez,
cristaliza e define um vocabulário autônomo nos anos posteriores, mais precisamente
nas décadas de 70 e 80 . Nesse contexto, ou seja, antecipando questões notadamente
pós-modernas, vale a pena conduzir nossas observações em função dessas tão
polêmicas inserções do artista e suas contribuições para a História e Crítica da Arte.

O ARTISTA “CALCULISTA”
As inovadoras propostas de Flávio de Carvalho para o teatro assim como suas
performances, aconteceram na ainda provinciana São Paulo da década de 30 e 40
agitando a imprensa e o público conservador da cidade e posteriormente, de forma mais
branda, nos anos 50. Consideradas na época como atitudes escandalosas e de auto
promoção, por muitos anos abordadas de forma especulativa, até mesmo romântica,
são hoje consideradas como pioneiras da linguagem performática e de intervenção
urbana-social no Brasil tendo inclusive, segundo Cohen (2002, p.44) influenciado as
futuras gerações de performers. 31
Diante desses fatos, levantamos a posição de Sahlins no que se refere às questões
históricas, não sendo estas, “nem longinquamente, tão exóticas quanto tais ocorrências
possam sugerir”. Com certeza, o caráter transgressor e ousado, por vezes incoerente
das primeiras ações propostas por Flávio de Carvalho, gerou conflitos de interpretação
diante não só do público em geral como também diante dos mecanismos culturais de
elite dominantes na época, avesso a tais concepções. Suas “atitudes escandalosas” da
30
O artista propõe a fusão dos vários elementos teatrais na busca de reação sensorial na assistência. In:
Theatro Antigo e Moderno, O Homem do Povo (3), São Paulo, 31/03/1931.
31
São, entre outras: “Experiência nº 2” - caminhada na contramão de uma procissão religiosa; a “soneca”
com amigos em uma cama de casal na exposição de móveis organizada no Saguão do Cine Odeon; as
apresentações performáticas da banda “Lira Musical Flor dos Jabaquaras” que se sucederam na então
Rádio Cultura (executadas sem a utilização de instrumentos musicais); o banho na Fonte das Lagostas
situada na Praça Júlio de Mesquita; a “Experiência nº 3” - lançamento de seu traje de verão masculino – o
New Look - em desfile solo pelas ruas da capital paulista; a Experiência nº 4 – uma expedição à Amazônia
com o propósito de investigar a evolução social e humana no continente americano.

45
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primeira metade do século passado serão interpretadas como “experimentações


artísticas” nas décadas posteriores quando se inicia a consolidação do cenário pós-
moderno brasileiro. Dessa forma, tais eventos vão adquirir “significância” histórica (no
que se refere à história e crítica da arte) quando devidamente apropriados e
interpretados pelos novos esquemas culturais posteriores a eles (SAHLINS, 1994, pg.
15).
A “Experiência nº 2”, e sem dúvida a atitude (como o próprio artista denominou
posteriormente no livro de mesmo nome) que gerou maior controvérsia, ocorreu durante
uma procissão de Corpus Christi no centro da cidade de São Paulo no ano de 1931,
quando o artista caminha com postura provocativa e arrogante em meio a multidão
religiosa, trazendo ainda um boné a cabeça, um ato de desrespeito e pouco
recomendável dentro do contexto religioso. A essa altura, vale lembrar, Flávio de
Carvalho já havia tornado pública sua postura diante do clero e da religião.
Na ocasião, foi tomada pela maioria do público a até da classe artística como uma
atitude ocasional, aleatória, mas na concepção de tal proposta Flávio de Carvalho
baseou-se num episódio (ocorrido meses antes) que envolveu Oswald de Andrade e
Patrícia Galvão logo após a publicação de algumas observações sobre a Faculdade de
Direito no Jornal “O Homem do Povo”. Os estudantes da instituição, furiosos com os
comentários, perseguiram e quase lincharam os dois responsáveis. Indignado diante do
inusitado acontecimento, Flávio de Carvalho articula conexões com suas recentes
leituras sobre o comportamento das multidões e vai experimentar empiricamente as
teorias adquiridas no dia 7 de junho do referido ano. Ao interferir na procissão de
Corpus Christi – comparando-a a uma “parada militar” (CARVALHO, 2001, pág. 10) - de
forma desrespeitosa, provocando acintosamente os fiéis, sobretudo as mulheres, o
artista já esperava a reação de hostilidade que sofreu em represália: um quase
linchamento, evitado apenas por ter se retirado em fuga atravessando a procissão em
seu sentido contrário.

O resultado imediato de sua ação foi um depoimento na delegacia e a publicação,


alguns meses depois, do livro “Experiência nº 2 – Realizada sobre uma Procissão de
Corpus Christi - Uma Possível Teoria e Uma Experiência”, dedicado a S. Santidade o
Papa Pio XI e a S. Eminência D. Duarte Leopoldo. Nessa publicação ele descreve a
intenção e o procedimento de suas atitudes e faz uma avaliação sobre o

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comportamento agressivo da multidão religiosa que enfrentou pautado nas obras de


Freud bem como dos autores Gustave Le Bon - “The Conflict of Peoples and Classes”,
“A Study of The Popular Mind” e de Wilfred Trotter – “Instintos de Rebanho na Paz e na
Guerra”.

Hobsbawm (1984, pg. 276) cita o trabalho desses dois psicólogos sociais como parte
dos estudos promovidos pelos governos europeus da época para a manutenção da
estrutura e da ordem social a partir do final do século XIX. A política das massas
percebia e tirava partido exatamente da irracionalidade inerente as multidões e é a partir
dessas teorias de manutenção da ordem social que Flávio de Carvalho vai questionar
essas mesmas estruturas e gerar o desconforto nas elites poderosas de São Paulo.

Ainda no início dos anos 30, Flávio de Carvalho dedica-se a organização do Teatro
da Experiência, que seria segundo ele um laboratório experimental com a intenção de
criar um teatro novo, com novas estruturas de cenário, encenação, iluminação 32.
Influenciado pelas pesquisas dos antropólogos Frazer (O Ramo Dourado) e Malinowiski
(O Papel do Mito na Vida) e impregnado de Nietszche, o artista decide que a peça
inaugural do teatro seria “O Bailado do Deus Morto”, texto de sua autoria:

“ O primeiro ato, trata da origem animal de Deus, o aspecto e a emotividade do monstro


mitológico (...). Mostrava a vida do Deus pastando entre as feras do mato e os laços afetivos
que mantinha com estas.É o Deus peludo, de cabelo ondulado a comprido como o da mulher e
que pratica a grande traição. A traição do sangue, matando os seus amigos, as feras,
abandonando os seus companheiros de pasto, para o amor de uma mulher inferior, um ser de
outra espécie. No segundo ato, a Mulher Inferior explica ao mundo porque ela seduziu o
monstro mitológico e pacato de entre os animais e colocou-o como deus entre os homens.(...)
Os homens do mundo imploram em vão um deus calado e desaparecido.Perplexos, eles
decidem e controlam os destinos do pensamento e especificam o fim do deus e o modo de
usar os seus resíduos no novo mundo” (CARVALHO, 1939).

Terceiro ato: tal foi o impacto e o escândalo causado pela peça na época que a
delegacia de costumes de São Paulo censura o texto e decide fechar o Teatro da

32
Consultar: “Flávio de Carvalho - cenógrafo” - artigo publicado no Catálogo da Exposição na XVII Bienal de
São Paulo, São Paulo, 1983, pg. 61 de autoria de Nicanor Miranda.

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Experiência. E mais uma vez temos os ataques mútuos entre Flávio de Carvalho e os
conservadores através dos infindáveis artigos publicados nos periódicos sobre o “novo
incidente” envolvendo o “artista maldito”.

Nos anos seguintes não faltam novos escândalos, envolvimentos com a polícia e
embates intelectuais através da imprensa. Exemplo disso é “A Máquina e o Asceta
Sinistro” publicado no Diário de São Paulo em 01 de Maio de 1932. O artigo não só
escandaliza os religiosos e leitores de uma forma geral como quase garante ao autor
tratamento psiquiátrico no exterior patrocinado pela família. São décadas intensas, onde
o artista dá ênfase a seus trabalhos como artista plástico e produtor cultural. Passa a
organizar o Salão de Maio, funda o Clube dos Artistas Modernos onde ocorrem
reuniões, exposições e palestras com nomes de ponta no cenário artístico nacional e
internacional 33 e faz diversas exposições individuais de suas pinturas e desenhos.

Sua produção como artista plástico ilustra bem sua preocupação com “a percepção
psicológica e mentalista” e buscava ao mesmo tempo a “compreensão mental e
sensibilidade emotiva” citados pelo artista no Manifesto do III Salão de Maio, final dos
anos 30. De forma geral, suas obras apresentam indiscutível unidade no conjunto sendo
a maioria de retratos e nus de forte tendência expressionista e esse caráter vai se
manter ao longo dos anos, inclusive durante a década de 50. A partir dessa época, o
artista passa a inserir planos geométricos no fundo de suas telas mas apesar desta sutil
influência, segue no entanto,combatendo as correntes concretas brasileiras.

Zanini (1983, pg. 6) aponta a forma aguda como o artista penetra no estado psíquico
dos modelos bem como na apreensão do caráter erótico das mulheres retratadas.
Célebre é a frase de Mario de Andrade sobre a impressão psicológica de seu retrato
feito por Flávio de Carvalho: “Quando defronto o quadro feito pelo Flávio, sinto-me
assustado, pois vejo nele o lado tenebroso de minha pessoa, o lado que escondo dos
outros”.

Uma das séries mais notáveis (e que na época foi alvo de críticas em função do
tema) executadas durante os anos 40 foi a denominada “Trágica”, onde retrata os
últimos momentos da mãe no leito de morte. Figura muito importante na vida do artista
já que era ela quem garantia, a revelia da família, o dinheiro necessário a Flávio de
33
Käthe Kollwitz, David Alfaro Siqueiros, Edmundo Haas, entre outros.

48
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Carvalho sempre que este se encontrava embaraçado diante de dificuldades


financeiras. Lembramos que ao abandonar a engenharia e abraçar o jornalismo e a vida
artística foi renegado pelo pai que nunca lhe concedeu, a partir de então, as facilidades
que tinha durante os anos de formação na Inglaterra. Moraes (1986, pg. 63) coloca a
produção destes desenhos como “um lamento edipiano” e ao mesmo tempo de
superação diante da morte. Vida e obra mais uma vez se confrontam.

As décadas de 30 e 40 ficam assim, marcadas pela intensa produção em todas as


áreas: alguns projetos arquitetônicos finalmente se concretizam – é o caso da sede de
sua fazenda de Valinhos e das célebres casas da Alameda Lorena em São Paulo, um
conjunto de residências com arquitetura moderna, privilegiando a funcionalidade e bem-
estar dos moradores e que eram oferecidas (bem ao perfil do arquiteto) com um
panfleto que divulgava os pormenores do “modo de usar” as habitações.

Além disso, praticamente toda a sua produção escrita, a maioria relativa as sua
impressões de viagens, são adquiridas pela imprensa, e uma delas é publicada pela
editora Ariel em 1936 sob o nome de “Os Ossos do Mundo”. “Rumo ao Paraguai”,
encomendada antecipadamente, é publicada no Diário de São Paulo em 1943.

Graças ao livro “Experiência nº. 2”, participa do Congresso de Filosofia e


Psicotécnica em Praga no ano de 1934 e seus projetos modernistas em arquitetura
acabam por conduzi-lo ao V Congresso Pan-americano de Arquitetos em Montevidéu no
ano de 1940. Ao lado dessas atividades, ministra várias palestras em rádio e instituições
versando sobre os diversos assuntos que lhe interessam – das artes à antropologia e
psicologia. Essa postura didática acaba por garantir não só certa expectativa diante de
suas propostas como também contribui para minimizar o impacto no público. Em outras
palavras, caminha no sentido de “educar artisticamente” seu público.

As idéias vão prevalecendo, tomando corpo plástico e literário, são incessantemente


divulgadas. Flávio vai contemplando várias áreas de pesquisa e depara-se com aquela
que por um longo tempo será fonte de estudos, inspiração para seus artigos e base
para uma de suas performances : a moda e sua relação com o homem.34 O resultado,

34
Já nos anos 30 projeta a “vestimenta adequada aos trabalhos de expedição”, traje que seria utilizado na
pesquisa de campo que estudaria o berço dos gafanhotos, nunca realizada.

49
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entre outros: a “Experiência nº. 3”, de 18 de outubro de 1956, que também teve como
local de realização as ruas do centro da cidade de São Paulo. Desta vez Flávio de
Carvalho desfilou um traje masculino por ele idealizado, o New Look – ou segundo a
perspectiva de Moraes (1986, p. 66), “a roupa nova do homem nu”. Consistia de
sandálias, meias femininas, saia, blusa bufante e chapéu.

O projeto desse traje foi apresentado pela primeira vez em 1952 durante uma
entrevista com o jornalista e crítico de arte Luis Martins e na ocasião, foram exaltadas
suas qualidades no que diz respeito a adequação ao clima dos trópicos e o abandono
aos padrões internacionais. Na verdade, esta performance ilustrou os artigos da série “A
Moda e o Novo Homem” que o artista publicara durante oito meses em sua coluna no
Diário de São Paulo durante o ano de 1956 e que foram resultantes de pesquisas
iniciadas no início dos anos 30 sobre a história do vestuário. Entre esses artigos: “O
Defeito – o Aspecto”, “O Valor do Corpo”, “O Homem Nu e o Homem Vestido”, “A Magia
da História – o Pudor” e “A Grande Imaginação do Limite Vagando pela Rua”. Neles, o
autor aborda questões pertinentes a relação corpo-traje-homem e suas modificações e
adaptações sofridas ao longo da história frente aos aspectos sócio-culturais.

Durante a performance, Flávio de Carvalho caminhou despretenciosamente pelas


ruas da cidade, concedeu entrevista coletiva na sede dos Diários Associados e tentou
ingressar em um cinema (na época era exigido o uso de terno e gravata). A imprensa
divulgou a ação de Flávio em diversos jornais e revistas e a repercussão garantiu
inclusive entrevistas na televisão onde o artista continuava promovendo seu
modelo de roupa masculina na primeira “performance televisiva” do Brasil segundo
Leite (2004).
Não satisfeito, em 1958 desenhou e produziu cartões publicitários onde, através de
esboços e diagramas exaltava as qualidades do traje. Em 1967, permanecia o debate
sobre a idealização do New Look e Flávio de Carvalho foi convidado por Gilberto Freyre
para participar do Seminário Trópico & Sociologia em Recife onde proferiu a palestra
“Mutação da Moda Através da História” e durante os debates levantou novamente,
assim como nos antigos artigos, aspectos pertinentes ao caráter estético-social oriundo
das massas. Nessa palestra, o artista refere-se “a necessidade de se criar um traje que
seja adequado aos trópicos” enaltecendo as modificações necessárias na tradição do

50
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vestir do homem brasileiro que mais uma vez importou e incorporou o modelo europeu
ao longo dos anos.
Nas “performances caminhantes” (LIGIÉRO, 1999), assim como nas demais ações,
Flávio de Carvalho centrou as expectativas de criação no seu próprio corpo e nas
relações que o mesmo estabelece com o público, com o espaço e com a cultura. A
síntese da sua produção teórica referente aos trabalhos abordados aliada ao processo
performático em sí, ou seja, o confronto de seu próprio corpo com uma audiência
totalmente aleatória, sugerem a ampla percepção desse corpo e das relações que este
estabelece com o espaço físico e temporal assim como das possibilidades do mesmo
como mais um caminho de expressão para o artista já a partir da década de 30.
Tais aspectos serão levados ao extremo com a “Experiência nº. 4”, realizada em
1958, na verdade, mais do que uma viagem, uma proposta experimental de intervenção
social e pesquisa antropológica. O artista incorpora uma expedição de pesquisa ao alto
Rio Negro, organizada pelo Serviço de Proteção ao Índio. A intenção dele era a de
produzir um filme sobre a lenda da “deusa branca” junto a tribo dos Xiriana. Os
preparativos para tal incursão foram exaustivamente divulgados por Flávio de Carvalho
e claro que os jornais aproveitaram a repercussão de tal expectativa. O filme, conforme
o planejado, nunca foi concretizado mas, no entanto, aspectos interessantes sobre a
tribo foram documentados e relatados por ele.
Tendo em vista a importância específica dada ao corpo, incluindo-se aí suas relações
com o espaço, tempo e sociedade, presentes em toda a produção de Flávio de
Carvalho (OSORIO, 2000), percebe-se a antecipação de propostas e mecanismos de
questionamento em relação a esse corpo que só viriam a se consolidar nos anos
subseqüentes aos de sua produção e que se mantêm presentes na arena de discussão
da arte contemporânea, sobretudo como já assinalado, do teatro, vídeo, cinema e
performance.
Cumpre lembrar que o corpo enquanto ação artística e/ou objeto de arte vai ser
interpretado dessa forma nos anos 60 frente as novas concepções da cultura dita
performativa que delega ao corpo desfetichizado o poder de existir como matéria-prima
dos happenings , da body-art e das performances em sua maioria. Além disso, um dos
focos primordiais de interesse atualmente, a despeito das inúmeras possibilidades de
apreciação por parte dos estudiosos e críticos gira em torno do processo de trabalho,

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dos elementos que constituem a performance bem como da seqüência de sua


realização.
A preocupação com o processo do trabalho, característica essencialmente
contemporânea (HARVEY, 2004) pode ser apreciada nas Experiências de Flávio de
Carvalho, a partir da concepção de suas ações, da sua execução propriamente dita e
dos resultados teóricos oriundos das experimentações. Particularizado no contexto
desse processo, o corpo, adquire interesse como agente de discurso, elemento
fundamental carregado de significação no amplo cenário de uma cultura essencialmente
performativa (FISCHER – LICHTE, 1998) que no cenário internacional começa a se
definir justamente nos anos 50 tendo como marco as experiências híbridas de John
Cage.

Nesse sentido, Leite, no artigo “Flávio de Carvalho: Media Artist Avant la Lettre”,
publicado em formato eletrônico na revista Leonardo em 2004 enfatiza os processos de
criação, execução e recepção das Experiências desenvolvidas por Flávio de Carvalho e,
sobretudo, chama a atenção para a repercussão que tais atitudes tiveram em seu
ambiente cultural.

Um dos pontos que mais nos interessa destacado pelo autor é o fato de a
“Experiência nº. 3” e a “Experiência nº. 4” terem sido anunciadas com meses de
antecedência bem como a “Experiência nº. 3” ter sido uma das primeiras ações
artísticas a fazer uso e se difundir através da televisão, veículo de comunicação de
massa em consolidação durante a década de 50. Leite destaca ainda a incorporação
dos conceitos da psicologia, antropologia e sociologia no trabalho artístico de Flávio de
Carvalho, a forma como antecipou questões relativas ao vestuário de forma geral e a
utilização dos meios de comunicação (jornal, rádio, televisão, cinema) de forma a dar o
máximo possível de visibilidade aos seus projetos, trabalhos e idéias de uma forma
geral, contribuindo para a difusão e popularização destes.

O ARTISTA “ARTISTA”
Os anos 50 marcam para Flávio de Carvalho o início do reconhecimento de sua
trajetória enquanto artista. Suas ações – ou atitudes - já não causam o escândalo e as
críticas acirradas que caracterizaram as décadas anteriores. Garantem sim, uma

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polêmica muito favorável para a imprensa, e fornecem a distração e o entretenimento


dos leitores assíduos dos artigos escritos pelo artista.
A crescente industrialização e a rápida propagação dos novos meios de comunicação
fazem “o Brasil se aproximar de Flávio de Carvalho” (MORAES, p. 67). O processo de
transformação das relações entre o modernismo cultural e a modernização social do
país gerou a ampliação do mercado cultural e conseqüentemente o cultivo experimental
de novas linguagens artísticas e maior sincronia com as vanguardas internacionais
(CANCLINI, 1990, p. 223) já não poderiam ser tomadas como atitudes extravagantes de
um artista excêntrico. Passaram a incorporar o ambiente artístico assim como a guerra
fria, o “american way of life” e a potencialidade da publicidade invadiram o cotidiano dos
brasileiros.
Durante a década de 50 percebe-se uma “acomodação” de Flávio de Carvalho ao
cenário cultural e artístico de São Paulo (ou vice-versa). Sua produção enquanto artista
plástico passa a ser requisitada inclusive internacionalmente. Depois de uma exposição
em Buenos Aires, é um dos artistas selecionados para representar o Brasil na XXV
Bienal de Veneza em 1950 e no ano seguinte participa da I Bienal de São Paulo e do I
Salão Paulista de Arte Moderna.
Serão assim as próximas décadas: Individual de Desenhos no Museu de Arte
Moderna de São Paulo, participação na II Bienal de São Paulo, Membro do Júri do III
Salão Paulista de Arte Moderna, diversas coletivas no Brasil e no exterior, projetos
arquitetônicos, cenários e figurinos para o balé e teatro, medalha de ouro no XIV Salão
Paulista de Arte Moderna de São Paulo e prêmio internacional na IX Bienal de São
Paulo.
O reconhecimento no cenário artístico faz com que Flávio de Carvalho seja cada vez
mais solicitado e vai dividindo seu tempo entre inúmeras tarefas a exemplo de sua
juventude. O final da década de 60 indica também final de década para o artista, que
com quase setenta anos mantém plena atividade artística e política.
Os poucos anos em que viveu durante o período da ditadura brasileira não foram
suficientes para um exílio nem tampouco insuficientes para que o artista deixasse de
manifestar sua posição diante do autoritarismo que aos poucos abraçava todos os
espaços institucionais. Em 1967 concorre a chapa do Instituto de Arquitetos do Brasil na
seção São Paulo pela oposição e no ano seguinte projeta e executa o Monumento a

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Garcia Lorca, encomendado por exilados espanhóis e que foi destruído por um grupo
intitulado “Comando de Caça aos Comunistas”.
Essa estreita relação que Flávio de Carvalho mantém até o final da vida, sobretudo
com o seu entorno político e moral, servem de modelo para que tentemos visualizar e
entender sua produção frente às “demais expressões dos objetivos humanos” (Geertz,
1997). A obra teórica e prática do artista expressam-se a partir - e em consequência de -
um modelo cultural em mutação submetido, sobretudo às intempéries das ações
políticas e econômicas. Consciente disso, uma de suas últimas “atitudes” diante do
momento repressivo foi concorrer, em 1972, com Alfredo Buzaid, então Ministro da
Justiça do General Médici a uma vaga na Academia Paulista de Letras sendo apoiado
por Sérgio Buarque de Holanda e Luís Martins ao mesmo tempo em que mantinha um
projeto com o Teatro de Arena, reduto da resistência paulistana à repressão militar, de
executar finalmente o Bailado do Deus Morto. Mais uma vez isso não acontece.
Com sua morte, em 1973, alguns outros projetos também ficam em aberto, um deles,
é a sala de Maria Martins e Tarsila do Amaral que organizava na XII Bienal de São Paulo
e o filme produzido por J. Toledo, “O Comedor de Emoções”.
Vida e obra do artista fundem-se o tempo todo desde o começo de sua carreira assim
como sempre se fundiram suas propostas de intervenção artísticas com os fenômenos
sociais e culturais que percebia e estudava. O artista plástico, sobretudo o pintor
moderno, funde-se com o performer e com o action-artist pós-moderno. A fantasia e a
realidade se misturam em sua vida pessoal e profissional e o artista, mais do que
atento, sempre tira partido de qualquer possibilidade de “escândalo” para usufruir de
seu espaço na mídia.
Publica panfletos para divulgar suas casas modernistas nos anos 30 e seu traje de
verão nos anos 50 da mesma forma que mandou imprimir cartões explicativos sobre o
atropelamento que sofreu por volta dos anos 40 e o problema que resultou em um dos
seus pés. Redigidos e explicados todos eles com a mesma maestria presente, por
exemplo, na “Cidade do Homem Nu”. E com a mesma seriedade que apresentava suas
palestras nos congressos internacionais, comparecia todas as semanas na sede da
recém fundada Rádio Cultura, num quintal do subúrbio paulistano para performar um
35
instrumento musical “virtual” . E é com essa habilidade que vai multiplicando

35
Consultar: “Flávio 1, 2, 3 – Louco, Lunático, Infantil”, Sangirardi Jr., artigo publicado no Catálogo da

54
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incessantemente os “seus quinze minutos de fama” ao longo de toda a sua trajetória


artística.
O mais curioso é que a disparidade de suas atitudes na vida e na obra de forma
geral, não chegam a confrontar-se. Elas sim, complementam-se da mesma forma que
se complementam suas concepções modernas na pintura e no desenho e nos projetos
arquitetônicos e suas atitudes pós-modernas em relação ao teatro e as performances
ilustrando essa transição (ou complementariedade) no cenário artístico brasileiro. Nesse
sentido, sua atuação nos remete a Barth (2000, pg. 123) quando este se refere ao
professor-feiticeiro de Bali em todas as suas diversidades:

“As pessoas participam de universos de discursos múltiplos, mais ou menos discrepantes;


constroem mundos diferentes, parciais e simultâneos, nos quais se movimentam. A construção
cultural que fazem da realidade não surge de uma única fonte e não é monolítica”.

Referências Bibliográficas
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2000.
CANCLINI, Néstor Garcia. La Modernidad después de la posmodernidad. In:
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes (org.). Modernidade, Vanguardas Artísticas na
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CARVALHO, Flavio de Resende. Experiência n 2 – Realizada sobre uma


procissão de Corpus Christi: uma possível teoria e uma experiência. Rio de
Janeiro: Nau, 2001.
__________ A Origem Animal de Deus e o Bailado do Deus Morto, São Paulo:
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__________ A Mutação da Moda Através da História. In: FREYRE, Gilberto. Trópico
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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

A IMPORTÂNCIA DA PRIMEIRA IMAGEM NA


CONSTRUÇÃO DA CENA PERFORMÁTICA
Sandra Parra

Atriz desde 1989, foi pesquisadora de Teatro Físico (a partir do trabalho de Yves
Lebreton) de 1997 a 2003, quando conheceu a performance art e o seitai-ho (técnica
japonesa trazida para o Brasil pelo performer fu-gaku Toshi Tanaka). Atualmente, além
de realizar pesquisa de criação cênica a partir do seitai-ho, leciona na Universidade
Federal de Ouro Preto, onde desenvolve, junto ao corpo discente, trabalho prático sobre
o papel da respiração na criação cênica. Como derivação desse trabalho, desenvolve
pesquisa de mestrado na UFMG sobre possibilidades de trabalho integrado de voz e
movimento corporal para artistas cênicos.

Resumo

Relato de experiência pedagógica na qual estudantes de teatro foram introduzidos ao


universo da performance: conceitualmente, a partir dos paradigmas das artes plásticas,
e na prática da criação, a partir da exploração ampla e exaustiva da primeira imagem
suscitada por um tema dado.

Palavras-chave: performance art, imagem, criação, formação de performers, fronteira


teatro/ performance.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

A Importância da Primeira Imagem na Construção da Cena


Performática

O presente relato refere-se a disciplina ministrada no curso de Artes Cênicas da


Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP, no primeiro semestre de 2006. A disciplina
em questão nomeia-se Interpretação III, e é obrigatória para os bacharelados em
Direção Teatral e em Interpretação. A ementa da disciplina propõe o estudo da
performance art e seu diálogo com o teatro contemporâneo, sempre do ponto de vista
de um “ator-performer”.

Ministrar essa disciplina mostrou-se um desafio, logo de início, por uma série de
questões: 1. o curso não tem linha de trabalho voltada para as linguagens cênicas
contemporâneas, a matéria em questão seria apenas uma “rápida passagem/
experimentação” por um viés mais contemporâneo das artes cênicas; 2. a disciplina é
obrigatória, o que significa que todos os alunos, interessados ou não pelo assunto,
deveriam cursá-la; 3. são raríssimas as intervenções performáticas na cidade de Ouro
Preto, e os alunos, na sua maioria vindos de cidades do interior de São Paulo e Minas
Gerais, praticamente nunca tiveram contato com esse tipo de arte – conheciam-na
principalmente por terem “ouvido falar” sobre.

Assim, o primeiro desafio apresentado foi tentar eliminar, de pronto, uma série de
preconceitos já formados sobre a performance art nesses alunos. A frase inaugural, e
que se estabeleceu como o mote de todo o nosso curso, foi: “Performance Não É
Teatro”; ela é uma das artes cênicas, sim, como a dança, o circo, o próprio teatro, mas
não é teatro – embora dialogue, troque influências, misture fronteiras, a performance art
configura-se como uma arte autônoma, diferente em princípios e fundamentos, do
teatro. Isso nos serviu principalmente para minar o preconceito, já arraigado em muitos
deles, de que Performance seria “um tipo de teatro esquisito” que “ninguém entende”
(palavras deles).

Partindo do princípio de que Performance é uma arte diferente e autônoma do teatro,


pudemos introduzir a questão de que, então, ela possui outros paradigmas de
construção, de entendimento, e também de fruição. Pois alguns formadores e criadores
da área teatral ainda cultivam o mito da “Arte Universal” – que seria compreendida por

60
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

todos, indistinta e independentemente de sua formação cultural; ou, em outras palavras,


“se a peça/ obra de arte for realmente boa, todos a compreenderão/ gostarão dela”.
Assim, abriu-se a discussão para a questão de que toda fruição artística depende de
domínio do código: as pessoas, de maneira geral, apreciam a arte renascentista, a
música tonal, o balé ou o teatro de cunho realista porque recebem, na escola e na sua
formação geral, as noções do que são os elementos fundamentais dessas artes, o que
é considerado “bom” ou “ruim” em cada uma delas, de acordo com padrões previamente
estabelecidos – o que não acontece com os paradigmas da arte contemporânea. Assim,
para que um espectador possa fruir a performance art, ele deverá, se não conhecer
formalmente seus princípios, estar aberto a não tentar “julgar” o que está vendo pelos
paradigmas e padrões de outras artes – no nosso caso em específico, o teatro.

Dessa forma, dentre as diversas linhas de trabalho e pensamento que fazem parte do
universo da performance, para dar aos alunos uma visão o mais clara possível sobre o
que seria realmente a performance art como arte “não-teatral”, embora cênica, optamos
por manter nossa abordagem totalmente dentro das questões plásticas da performance:
não só sua origem nas artes plásticas, como principalmente os modos de trabalho e
conceituação das artes plásticas, que afetam (e, muitas vezes, determinam) os modus
operandi das performances (sem contar com as discussões sobre arte moderna e pós-
moderna, e sobre o papel do artista e o status da arte na pós-modernidade, discussões
muito mais elaboradas no âmbito das artes plásticas que nos das artes cênicas). Isso
trouxe a possibilidade de discutirmos concretamente, a partir da oposição radical com o
universo teatral, as questões da não-narratividade, da ausência da personagem (em
favor da persona), da questão do tempo distendido, da utilização expandida do espaço
e, principalmente, da relação com o espectador.

Após a discussão conceitual das questões citadas acima, como passo inicial do
trabalho prático pedimos aos alunos que se juntassem em duplas ou trios36 e criassem
uma cena performática a partir do tema linha. O tema foi dado sem nenhuma explicação
ou direcionamento de nossa parte. Pretendíamos, com isso, que os alunos tivessem o
máximo possível de liberdade no desenvolvimento do tema, a partir de imagens,
36
Evitamos o trabalho solo para que os alunos pudessem passar pela experiência da criação em conjunto:
apesar de cada um deles ser considerado, nesse trabalho, como um criador independente, eles
deveriam também encontrar pontos de diálogo entre suas criações, dentro de um mesmo “grupo” – tal
como acontece em performances elaboradas por artistas diversos.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

materiais e meios que fossem absolutamente pessoais a eles, dentro do seu próprio
universo de possibilidades, idéias, técnicas, desejos. Isso gerou, a princípio, uma
perplexidade que chegou em alguns casos a beirar o pânico ou a fuga: dentro da
formação tradicional em teatro, somos sempre convidados a nos filiarmos a alguma
corrente estética, a algum pensamento já instituído ou, no caso de atores, a seguirmos
as ordens ou idéias trazidas por um diretor, “chefe” do trabalho de criação e das
escolhas estéticas.37

Os primeiros resultados apresentados foram bastante tímidos; os alunos hesitavam


muito em construir algo que eles não tivessem dominado racionalmente a priori, que
eles não soubessem “para que servia”: eles queriam saber porque estávamos falando
de linhas, de que tipo de linha se deveria falar, qual seria o modo “apropriado” de falar
dessas linhas e, principalmente, “por que o tema linha?”. Evidentemente, nenhuma
dessas perguntas tinha uma resposta – não uma resposta única, uniformizadora, mas
apenas aquelas que os próprios alunos gerassem com os seus trabalhos. Pedimos a
eles que encarassem esse tema como um “provocador” de imagens, de ações, de
idéias que funcionaria, principalmente, como um detonador de ações cênicas fora do
lugar-comum da “cena bem-feita”, no qual eles já estavam amestrados e ao qual já
estavam viciados.

Escolhemos o tema linha pelas infinitas possibilidades de concretização que ele


poderia gerar: trabalhar com o objeto linha ou explorá-lo de maneira simbólica ou mítica,
ou todas as combinações possíveis dentre essas. Explicamos aos alunos que o que nos
interessava era a primeira imagem que a proposição desse tema gerara: quando se diz
“linha”, uma imagem nos vem à mente, composta por formas, cores, ações, situações,
movimentos. O fundamental – e aquilo que exigimos sempre dos alunos, como
execução – é ser “fiel” a essa imagem, reproduzi-la com o máximo de fidelidade,
exatidão, precisão, pois só a partir daí poderemos saber o que mais essa imagem
poderá nos trazer. Seja pelo embate daquilo que foi imaginado com a sua concretização
efetiva (que muitas vezes não se correspondem), seja porque a efetivação da imagem
em ação nos gera outras imagens, instigamos os alunos na direção de que é muito mais
potente construir na ação do que tentar dominar todo o percurso, todas as
37
Isso deu ensejo a que, ao longo do semestre, pudéssemos discutir a partir da prática e da confrontação
com o universo da performance a idéia do ator-criador.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

possibilidades e desenvolvimentos “dentro da cabeça”, para daí apresentar um produto


pronto, “correto”, “bom”.

Isto posto, passamos a desenvolver as cenas performáticas (denominadas com esse


nome, e não com a designação de performances, pelo estado embrionário em que
essas criações ainda se encontravam) a partir da noção de work in progress. Após as
apresentações, era feita uma roda de discussões para que o “grupo” apresentasse o
conceito que guiara suas escolhas na performatização, e para que todos nós, que
participáramos como espectadores, pudéssemos comentar, discutir, opinar sobre cada
trabalho – se e como as opiniões seriam acatadas, era deixado à escolha dos próprios
alunos-performers, de acordo com aquilo que eles pretendiam com seu próprio trabalho;
não faria sentido, em um trabalho como esse, usarmos de nossa posição de autoridade
para servir como árbitro das trocas entre os colegas. Principalmente porque um de
nossos principais objetivos, com essas discusões, era o de desenvolver nos alunos
senso de julgamento e discernimento crítico sobre o próprio trabalho; eles deveriam
aprender a conviver com todo tipo de crítica, mal-entendimento e comentários, sabendo
filtrar para si aquilo que seja mais pertinente e/ou interessante à concepção do seu
trabalho.

O ambiente de criação das cenas foi bastante rico, pois os grupos trouxeram
concepções bastante diversas, com execuções mais diversas ainda, sobre o tema
genérico linha: linha da vida, linha como caminho, linha como imagem da ascese
(ascensão vertical), linhas como marcas de tiro ao alvo (na violência urbana), linha
como fronteira, ou como obstáculo, ou como proteção, ou como ligamen entre as
pessoas e das pessoas com o mundo, linhas como estrutura de jogos (jogo da velha,
caça ao tesouro). Após a primeira apresentação das cenas, questionamos cada grupo
sobre o conceito que eles queriam desenvolver em suas performances; pusemos em
discussão e fizemos sugestões para que esse conceito ficasse cada vez mais claro e,
ao mesmo tempo, cada vez mais complexo e mais amplo. O segundo passo foi exigir
dos alunos o máximo de rigor e precisão na construção da cena: eles não poderiam “se
dar ao luxo” de executar ou construir a cena performática de maneira “aproximada” ou
improvisada; eles deveriam ter o máximo de fidelidade possível àquilo que eles
imaginaram, àquilo que eles desejaram na sua criação. Com isso, pudemos abrir a

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

discussão sobre o fato de que eles deveriam ter sempre o máximo de respeito por seus
impulsos e desejos criativos, pois embora costumem ser tratados, no âmbito teatral,
como coisas secundárias, imagens, desejos, improvisações são o próprio material de
trabalho de um criador cênico – são aquilo que ele produz, como artista.38

Naturalmente, com o decorrer das performatizações e discussões em grupo, as


cenas performáticas foram tomando caminhos que deixaram o tema inicial linha apenas
como substrato; outras questões de ordem estética ou de mitologia pessoal foram
surgindo, instigadas pelas novas imagens surgidas nas performatizações ou pela
contaminação dos trabalhos dos colegas. Ficou bastante evidente, para o grupo todo,
que aqueles que ousaram se lançar na primeira imagem, quando ainda não detinham o
domínio total da situação e apesar de suas perplexidades, chegaram em um nível de
complexidade conceitual e elaboração estética muito maiores do que aqueles que
“esperaram para ver”, para daí então se colocarem. Nas palavras dos próprios alunos,
aqueles que “pagaram o mico de fazer aquela primeira cena chocha” ganharam
autoridade moral diante de si mesmos; depois que se sobrevive ao primeiro mergulho
no escuro, a confiança que se ganha, o entendimento e o respeito à própria criação
ficam muito mais fortes. Ou, como foi dito aos alunos em nossa aula de encerramento,
“é preciso ter fé na primeira imagem porque, ainda que você não saiba onde ela vai dar,
ou o que é que ela quer dizer, ela é sua, vem de você, da sua criação; então, ela não
pode estar errada! Às vezes, o que é preciso é ter a coragem de fazer primeiro, pra
entender depois, porque a cabeça [a construção racional] nem sempre dá conta de
tudo”.

A questão da primeira imagem foi um dos aspectos principais da disciplina ministrada


por nós, embora tenha sido também atravessada e modificada por uma série de outras
questões, não abordadas neste artigo. Evidentemente, não tínhamos nenhuma
pretensão de, no espaço de um semestre, formar performers; no entanto, alcançamos
nossos dois objetivos principais: primeiro o de, a partir da oposição com a performance,
deixar mais claro para os alunos quais são os paradigmas da criação teatral, e onde
esses paradigmas começam a se borrar, a misturar suas fronteiras pela influência da
38
Essa discussão também alimentou e foi alimentada, ao mesmo tempo, pela questão do work in
progress: não há “ensaio”, nem “apresentação preparatória”; a cada vez que se apresenta, a cena deve
ser perfomada no seu máximo, no seu melhor – cada performance é uma experiência, uma vivência em
si. Daí emergiu também a questão da presentação, e não representação.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

performance art.39 Em segundo lugar, mas não menos importante, o de instrumentalizar


os alunos para que eles possam, a partir de agora, dialogar com o universo da
performance – ainda que não gostem, ainda que não queiram participar desse universo,
isso será por uma escolha consciente, e não por pura negação do desconhecido. (Além,
é claro, dos casos de alunos que encontraram na performance um caminho de criação
autêntico para suas questões artísticas.)

À parte as questões puramente didáticas que nos nortearam, nossas escolhas foram
feitas primeiramente a partir do nosso próprio percurso de formação (já que iniciamos
nossa carreira também no teatro, e portanto conhecíamos bastante bem, por
experiência própria, a maior parte da hesitações e estranhamentos dos alunos), mas
principalmente pela nossa convicção pessoal, como artista, que a fé na primeira
imagem, com tudo o que ela acarreta, é fundamental para a construção do caminho
criativo do performer.

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Cohen, Renato. Work in progress na cena contemporânea. São Paulo: Perspectiva,


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Glusberg, Jorge. A arte da performance. São Paulo: Perspectiva, 1996.

39
De fato, uma das alunas declarou textualmente que “ela podia não saber direito o que era mesmo essa
tal performance, mas que ela tinha acabado o curso sabendo muito melhor o que era teatro”.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

A CIDADE COMO CORPO, O CORPO NA CIDADE


Tatiana de Fátima da Silva
Tatiana de Fátima da Silva é Publicitária formada pela Universidade de Fortaleza
(Ceará-Brasil). Tem experiência profissional em Relações Públicas, Marketing e atua na
área editorial. Foi professora na Universidade Vale do Acaraú e, atualmente, cursa
Mestrado em Comunicação e Semiótica na Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, desenvolvendo pesquisa sobre corpo e espaço através das narrativas urbanas.

Resumo
Diante das tecnologias presentes em nossa vida cotidiana, se fazendo não apenas
instrumento ou extensão dos sentidos, mas também paisagem e componente quase
orgânico, algumas questões acerca do corpo e da cidade se tornam pertinentes.
Sobre a cidade podemos pensar em suas transformações e nas implicações daí
decorrentes para o imaginário deste homem urbano que passa a re-significar, entre
outras coisas, conceitos como espaço e tempo, especialmente quando falamos de
cibercidades.
E não apenas o imaginário sofre modificações; as formas de sociabilidade e o contato
com o outro se alteram e a própria noção de corpo é colocada em xeque.
A proposta deste trabalho é discutir acerca dos desdobramentos possíveis a este
corpo e quais relações estabelece com a cidade, aqui também vista como um corpo, e
que é o seu lugar de habitar, fazendo uso de alguns pensadores destas questões, tais
como: Walter Benjamin, Georg Simmel, Edgar Allan Poe, Michel Foucault, Paul Virilio,
Lúcia Santaella, Paula Sibilia entre outros.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

A CIDADE COMO CORPO, O CORPO NA CIDADE


Introdução
A cidade e, por conseqüência, o fenômeno urbano têm um registro a partir de
inúmeras imagens que a caracterizam – o comércio, a indústria, a mercadoria, os
prédios, a eletricidade, a publicidade, as fachadas de neon, a tecnologia. Tudo
construído culturalmente constituindo uma malha de signos que a representam e nos
dão a perceber alguma perspectiva de linguagem e de imaginários urbanos.
Assim sendo, as transformações provocadas pelas chamadas novas tecnologias
tornam possível a incorporação à paisagem urbana de elementos como painéis
eletrônicos, televisores, microcâmeras e diversos aparatos midiáticos ou de controle.
Além disso, outras modificações como a construção de shoppings centers, por exemplo,
reconfiguram e se tornam novos espaços coletivos mudando também a forma de
contato entre os sujeitos habitantes desses centros de aglomeração, as cidades.
A presença desses aparatos eletrônicos torna a paisagem urbana um emaranhado de
imagens que acontecem em tempo real, pautado pelo tempo das NTIC´s (Novas
Tecnologias da Informação e da Comunicação), de forma acelerada e que, numa
contraposição velocidade/qualidade, comprometem a qualidade do olhar do sujeito que
nela vive.
Da mesma forma o que se constituía como espaço passa a estar modificado,
principalmente quando passamos a falar do ciberespaço. E é sobre este assunto que
vamos tratar neste ensaio que, longe de ser um debate de caráter técnico sobre as
constantes inovações das chamadas novas tecnologias, pretende traçar um paralelo
entre o que denominamos de cidade “real” e as cidades digitais, que surgem no
ambiente da World Wide Web (www) da Internet de forma a refletir sobre as implicações
dessas transformações para o corpo40.
Considerando que técnica é tudo aquilo que é criado pelo homem para facilitar seu
modus operandi, não podemos considerar que é de agora que elas modificam nossa
vida cotidiana dado que toda inovação transforma nossa relação com a experiência.
Entretanto, o surgimento da internet e das inúmeras possibilidades que ela proporciona,
40
Uma idéia de corpo que se desdobra, filosoficamente, sugere inúmeras leituras – fisiológica, biológica,
psicológica, sensória, etérea, entre outras. Um corpo visto como possibilidades de significação e
multiplicidade que vai além do orgânico. Procuro, aqui, compor algumas dessas leituras, neste caso, da
cidade como um corpo que acompanha ou que rege esse desdobramento às cidades virtuais também
como um corpo, tentando seguir um percurso do que é possível pensar a partir disso.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

amplia ainda mais as questões citadas anteriormente da reconfiguração desta


experiência com o tempo, a memória e o espaço, fazendo surgir, inclusive, uma nova
geografia que se constitui, segundo Paul Virilio, pela ausência do topos. Ele afirma:

“fim do prazo, fim do relevo, o volume não é mais a realidade das coisas, esta se dissimula na
banalidade das figuras. A partir de agora o tamanho natural não é mais parâmetro do real, pois
este último se esconde na redução das imagens na tela (...) a realidade parece se desculpar
por possuir um relevo, uma espessura qualquer.” (Virilio, 1993:109)

Assim as cibercidades se constituem como propostas para um novo espaço urbano


que é criado a partir da cidade que chamarei de real e que sobre ela também exerce
sua influência. Essa nova concepção de espaço corrobora com o que já se falou sobre a
superlotação das cidades, tempo acelerado e o confinamento do sujeito.
As cibercidades foram criadas como uma nova ferramenta da própria cidade e, por
isso mesmo, não anulam o espaço citadino a que chamamos de real, mas ambos se
complementam. Nesses espaços virtuais, em muitos casos, são criados links que dão
acesso a serviços e lugares (note-se uma nova concepção de lugar) que, na cidade real
podem ser disponibilizados: Secretarias Municipais, programas de rádio e tv, jornais,
telefones úteis, informações turísticas, fóruns de discussões e as próprias ruas através
de web cams que mostram imagens específicas da cidade ou como está o trânsito no
momento. Além disso, empresas, ONG’s, bancos e outras instituições formam e servem-
se mutuamente desse ambiente múltiplo de informação.
Entretanto, mais do que se tornar um espaço democrático e participativo, as cidades
digitais levantam questões que, num país subdesenvolvido e excludente como o Brasil,
tornam-se ainda mais pertinentes. Em primeiro lugar, neste caso estamos tratando de
problemas estruturais – econômicos, políticos e sociais - em que, além de tantos
outros, o analfabetismo apresenta índices ainda muito elevados. O analfabetismo aqui
entendido não apenas como a incapacidade de ler ou escrever o próprio nome, mas
como a impossibilidade de estabelecer significação e conexões com o que se sabe e
que é o que nos possibilita estar no mundo. Assim, soma-se à falta de conhecimento e
familiaridade com esse tipo de tecnologia (“analfabetismo digital”) a falta de acesso aos
recursos da rede para poder estar inserido neste ambiente digital, e temos mais uma
forma de exclusão.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Além disso, esse espaço configura uma nova forma de sociabilidade cada vez mais
fragmentada e segmentada por interesses de seus participantes com uma nova
linguagem e novas formas de interação através de um outro corpo que passa a estar
configurado a partir dessas tecnologias. Como afirma Roy Ascott, representante da
tecno-arte,

“à medida que interajo com a Rede, reconfiguro à mim mesmo; minha extensão-rede me
define exatamente como meu corpo material me definiu na velha cultura biológica; não tenho
nem peso, nem dimensão em qualquer sentido exato, sou medido pela minha conectividade”
(Ascott in Sibilia, 2002:57)

O corpo, desde o Quatrocento, representou para o homem a sua centralidade na


perspectiva em relação ao mundo. A partir da idéia de virtualidade que, como já foi dito,
o espaço e, principalmente, o conceito de centro são redefinidos, o sujeito perde a
referência modificando também sua percepção sobre seu próprio corpo. Temos, então,
que o corpo era a própria interface do sujeito com o espaço ao seu redor. Agora, essa
mediação se faz a partir não apenas dos computadores, mas de próteses e artefatos
técnicos que se tornam extensões das capacidades e sentidos humanos. Desta forma a
sociabilidade, como a experiência, toma um novo formato, mediado por esses aparatos
tecnológicos e por construções imagéticas de sua própria subjetividade, o que não
anula a necessidade do contato físico (ao menos no caso do Brasil).
Aqui um duplo virtualizado surge e passa a se sociabilizar com outros duplos nessa
rede. O que tomo como questão é que a partir da modernidade, os espaços de
convivência como as praças e parques são transformados em lugares de passagem, de
trânsito, modificando as relações entre as pessoas, e com as cibercidades essa relação
mais uma vez se modifica levando à exacerbação do confinamento do sujeito e a
convivência com um outro inexistente, pois o que se mostra é seu duplo. Esse duplo
definido aqui como uma projeção, uma possibilidade de se mostrar de formas diferentes
com características e traços que normalmente não se revela. Um outro que habita o
corpo e que, ao mesmo em tempo em que causa estranhamento, serve como apoio e
espelho. Como no conto William Wilson de Edgar Allan Poe em que Wilson, tomado
por um sentimento de cólera, alegoricamente crava uma espada no peito daquele que
parece ser sua cópia e que no momento da morte diz: “Venceste e eu me rendo.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Contudo, de agora por diante, tu também estás morto... Em mim tu vivias... e, na minha
morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente
assassinaste a ti mesmo!”
Neste sentido, tendo em vista que as cidades surgiram para aproximar os homens, as
cibercidades, e a rede de um modo geral, tornam-se um paradoxo na medida em que
unem à distância (Virílio in Salles, 1989:135), no sentido de que o contato, via
tecnologia, pode se tornar mais constante e sem barreiras geográficas, e em que o
sujeito, ao mesmo tempo em que desaparece, se torna hiperpresente..
Este trabalho tem como objetivo discutir de que forma o corpo passa a ser percebido
a partir das modificações trazidas com os avanços da medicina e biologia, com a
possibilidade de ser reconstruído e até prolongar a vida e, como esse novo corpo,
híbrido, passa a se sociabilizar na rede através de uma duplicidade imagética de si.
Tudo isso perpassando pela cidade, e agora cibercidade, que é o lugar onde esse corpo
está imerso.
Para a realização deste trabalho foi desenvolvida uma pesquisa do tipo bibliográfica,
através da leitura analítica e interpretativa de textos: livros, artigos de jornal, revistas,
sites especializados etc. Assim, o primeiro capítulo do trabalho traz um breve histórico
da cidade desde a modernidade até as cibercidades; o segundo traz a discussão sobre
as novas configurações do tempo a partir das novas tecnologias da informação e da
comunicação, bem como sobre realidade e virtualidade. Já o terceiro capítulo trata
especificamente sobre o corpo, sua nova configuração e possibilidades de
desdobramento a partir dos avanços tecnológicos, mas cuja mediação continua se
dando através da linguagem desde as artes até a sociabilidade através da internet.

1. coração – a cidade pulsa


Arranha-céus, viadutos, ruas estreitas, grandes avenidas, gente muita, reunida, em
trânsito, sozinha, perdida entre placas de outdoor, luzes de neón, faróis de carros
também muitos e em constante movimento. Um aglomerado de pessoas, coisas,
imagens e, ao mesmo tempo, alguns confinamentos, próprio dos que temem serem
engolidos ou que, de alguma forma, contemplam esse organismo em constante
mutação – a cidade.
Falar da cidade é assim, um constante vai-e-vem entre paradoxos que vão do público

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

ao privado, do olhar de passagem àquele de contemplação, do constante up grade de


informação à completa exclusão, da memória à efemeridade, do “real” ao virtual.
Imagens utilizadas e mostradas à exaustão pelos media e que pelo nos deixam escapar
pequenas sutilezas que entre o cinza se escondem ou se exibem – mais uma vez um
jogo de contrários.
Podemos falar da cidade como de uma narrativa que se dá através de sugestões e
solicitações de um certo caráter de representação que contam a sua própria história.
Signos que ao longo do tempo foram se modificando e transformando o espaço e o
imaginário dos que nela habitam, constituindo-se como uma mediação necessária para
a percepção e apropriação material e simbólica do que se nomeia como fenômeno
urbano.
Essa narrativa se dá tanto no plano social como cultural, sendo construída e
percebida pelo homem na sua vida cotidiana. Cada elemento entendido como urbano, é
assim considerado por fazer parte do dia-a-dia de alguma forma (pela mídia ou pelo
contato) e se torna parte do imaginário por esse mesmo motivo. Vale ressaltar, citando
Lucrécia Ferrara, a diferença entre imagem e imaginário. Ela afirma:

“A imagem é um dado e corresponde a uma concreta intervenção construída na cidade; o


imaginário é um processo que acumula imagens e é estimulado ou desencadeado por um
elemento construído ou não, porém claramente identificado com o meio e o cotidiano urbanos”
(Ferrara in Weyrauch, 2000:39).

Podemos, por exemplo, considerar a cidade como memória, pois em seu espaço são
acumulados alguns elementos que contam e guardam sua história. São as construções
arquitetônicas e monumentos que, como afirma Marc Augé pretendem “ser a expressão
tangível da permanência ou pelo menos da duração” (Augé, 1994:58) e que falam de
um momento vivido e uma cultura que ali passam a estar representados. Mas não
apenas grandes feitos nos conta a cidade: tampinhas de garrafa cobertas pelo asfalto, a
ferrugem que corrói, o lixo (restos de ontem), e as marcas da interação humana que se
fazem presentes e nos falam do passado.
A cidade pode ser vista também como a imagem de um grande mosaico: imagens
diversas e de todos os tipos – publicitárias, eletrônicas, além de ser palco para a vida de
diversas raças com suas muitas linguagens. Pode ser ainda a cidade da multidão em

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

que milhares de pessoas convivem e se esbarram num movimento frenético - o vai-e-


vem. Ou pode ser confinamento, uma possibilidade cada vez mais constante, dada a
“escassez” de tempo que se alega. Entretanto, mais que todas essas imagens, ou todas
elas juntas, mostram a cidade como corpo, com seu fluxo contínuo, sua própria
respiração, seu movimento, seu crescimento e seu pulsar que não pára.

1.1 Primeiros batimentos - a cidade moderna

A partir do século XIX grandes transformações se dão tanto no plano


físico/arquitetônico da cidade como na construção de um novo imaginário que começa a
ser configurado. O crescimento industrial, que foi movido pelas descobertas
tecnológicas aliado ao capitalismo crescente, propicia a construção de fábricas e o
estabelecimento de um novo regime de trabalho que pode ser considerado cíclico: a
produção confere um salário que confere a possibilidade de consumo que leva à
necessidade de produção. Desta forma surgem em torno dessas fábricas pequenas
aglomerações que irão constituir as cidades.
O desenvolvimento de técnicas e a descoberta do uso de novos materiais
possibilitam também uma mudança na organização do espaço: a luz elétrica aliada ao
uso do ferro e do vidro, principalmente como materiais de construção artificiais, traz de
novo não apenas a edificação de galerias, trilhos e bondes, mas também uma
transformação na forma de sociabilidade estabelecida por esses novos espaços de
convivência: “o maior problema da ‘vida moderna’ está circunscrito no conflito entre
indivíduo e sociedade”41. Em Berlim, por exemplo, essa incorporação do novo na
arquitetura é levada ao extremo quando todas as construções antigas são derrubadas,
não havendo mais partes antigas na cidade, a exemplo de Paris e Londres (Waizbort, p.
313 – 316).
Esse novo desenho da cidade, com seus locais de passagem, boulevares e galerias,
bem como essa nova forma de viver e interpretar o mundo, encontra na figura do
“homem da multidão” de Edgar Allan Poe ou no flâneur de Baudelaire, o exemplo mais
característico. Essa personagem passa a ser um voyeur que caminha pela cidade

41

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

tentando apreender algo dessa experiência efêmera.


Ao mesmo tempo em que no ambiente urbano passa a existir a figura do andarilho,
do que caminha e procura reter algo desse campo de experiência, há o favorecimento
também de uma interioridade. Para Simmel, a cidade grande é vista como um ambiente
ameaçador em contraposição à cidade pequena. Por isso, como forma de preservar sua
subjetividade, o homem moderno irá buscar a racionalidade, o entendimento. Neste
aspecto cabe um parêntese, pois devemos considerar que estamos falando de cidades
européias. Aqui no Brasil, por diversas razões, incluindo a variedade de raças e
costumes que se misturaram para a formação do país, conservamos (ainda) hábitos
muito diferentes. Cultivamos o contato pessoal e, mais que isso, o contato físico,
facilmente constatado na simples forma como nos cumprimentamos.
A mudança principal em relação ao convívio na cidade diz respeito ao afastamento
das relações fundadas na individualidade, passando a estabelecerem-se de forma
racional e objetiva, quase indiferente. Esse recolhimento à interioridade, leva a um dos
traços principais da sociabilidade na modernidade: a impessoalização e o anonimato
bem como à reserva de que fala Simmel que passa não apenas pela indiferença, mas
por uma estranheza e certa repulsa em relação ao outro. Ou ainda ao que Baudelaire
vai chamar de multidão atarefada (multitude) e solidão povoada (solitude). O homem
citadino se torna preso a seus afazeres, a seu trabalho, também cada vez mais
acelerados, e acaba se enclausurando na sua subjetividade, como afirma Walter
Benjamin

“Pela primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho.
Organiza-se no interior da moradia. O escritório é seu complemento. O homem privado,
realista no escritório quer que o interieur sustente as suas ilusões” (Benjamin, 1991:37).

A cidade, além disso, se torna espaço de velocidade modificando a experiência


espaço-temporal. Essa velocidade passa a estar presente no ritmo que a própria vida
adquire, pautada pelo tempo maquínico industrial. Essas mudanças rápidas estimulam o
sistema nervoso até que este não consiga mais reagir a novas sensações a ponto de
tornarem-se perceptíveis, o que Simmel chamou de “atitude blasé”.
Da mesma forma, a criação da máquina fotográfica possibilita uma mudança na
forma de percepção do tempo que, agora, passa a estar retido num pedaço de papel.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Sobre isso escreveu Beatriz Furtado:

“Entendemos, então, que a grande crise provocada pelo surgimento da fotografia aconteceu
por uma disputa no campo simbólico da apreensão do tempo, pela idéia de fixação do tempo.
Mais do que imagens, é a revelação de instantes imperceptíveis do tempo que surpreende o
homem moderno. É como se, ao apreender uma imagem com qualidades de verossimilhança,
a fotografia tivesse causado um efeito de prolongamento temporal que afetou a subjetividade
humana moderna” (Furtado, 2002:44)

Posteriormente, o cinema veio mostrar a simultaneidade de ações promovendo uma


dilatação do tempo, ou seja, “no cinema o tempo, que é invisível, é preenchido com o
espaço ocupado por uma seqüência de imagens visíveis (...). Desse modo, ele
condensa o curso das coisas, pois contém o antes que se prolonga no durante e no
depois (...)” (Pellegrini, 2003:18). Aqui ocorrem, mais uma vez, alterações no modo do
homem perceber a realidade, pois agora o que se vê é a realidade em movimento na
tela e não mais estática como na fotografia. Pelo menos esta é a ilusão criada. Além
disso, o cinema propicia uma quebra na linearidade temporal no momento em que
possibilita que, por exemplo, vários dias se passem em apenas duas horas de filme.
Nesta mesma época Walter Benjamin já problematiza a questão do desaparecimento
do que chamou “experiências comunicáveis”, ou seja, a experiência que pode ser
narrada, transmitida a outras pessoas e outras gerações. “É como se estivéssemos
privados de uma faculdade que nos parecia inalienável: a faculdade de intercambiar
experiências” (Benjamin, 1994:198).
Em seu texto “O Narrador”, Benjamin considera que a crise da narrativa é decorrente
da incapacidade de fazer com que a experiência seja transmissão e não apenas
comunicação, como também apontou Régis Debray. Dentre os fatores responsáveis por
essa crise destaca-se a nova forma de comunicação trazida pela imprensa: a
informação, cujo caráter de proximidade, verificação imediata e de ser acompanhada de
explicações a torna mais próxima da grande maioria das pessoas.“Cada manhã
recebemos notícias de todo o mundo. E, no entanto, somos pobres em histórias
surpreendentes (...). Metade da arte da narrativa está em evitar explicações” (Benjamin,
1994:203).
Desta forma, a experiência pode deixar de ser transmitida por sua intensidade, uma

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que talvez a linguagem não dê conta de expressar e cujo exemplo citado por Benjamin
é a experiência da guerra de trincheiras; ou porque são tantas e/ou tão efêmeras que
delas pouco se guarda para narrar. Neste caso guarda uma ligação com o tempo,
especialmente o tempo acelerado que hoje vivemos. Nas palavras de Paul Virilio, “a
energia da informação alimenta uma corrente de transformação descontínua, alternativa
e de curtíssima duração, na qual o que domina não é mais tanto o espaço (...), mas
antes a temporalidade” (Virilio, 1993:75/76).
Como vemos, as transformações são inúmeras e se dão para o sujeito,
principalmente, na forma de apreensão da realidade. Assim, essas características do
enclausuramento, da distinção do público e privado, bem como da questão da
experiência e das mudanças espaço-temporais, ficam cada vez mais acentuadas à
medida que novos elementos tecnológicos, não apenas passam a se constituir como
aparatos de uso doméstico, como passam a estar inseridos na paisagem urbana.

1.2 Movimentos ininterruptos: a cidade contemporânea

Se a cidade moderna foi marcada pelas inovações tecnológicas e pela velocidade


que causaram modificações na percepção espaço-temporal bem como na experiência
da vida cotidiana, a cidade contemporânea será marcada por novas configurações de
espaço e pela hiperaceleração do tempo que têm relação com novos elementos
inseridos em sua paisagem como televisores, painéis eletrônicos, microcâmeras, como
afirmou Eduardo Subirats:

“Telas nos informam e nos formam; telas nos colocam em contato com o mundo; telas nos
controlam; telas expressam nossos desejos e ampliam nossos sentidos; telas registram,
reproduzem, produzem, criam; telas descobrem nossa consciência e nosso corpo; telas dão
conta de nossa felicidade e de nossa doença... É como se tudo, desde nossos sonhos até as
grandes decisões que afetam o futuro da humanidade, se tivesse convertido num prodigioso e
monumental efeito de telas” (Subirats, 1993: 45)

Na cidade contemporânea diversos fatores contribuem para que sua característica


seja marcadamente a velocidade. Hoje, a noção que temos de tempo, a experiência
com ele, está completamente transformada, daí decorrendo crises como a da narrativa

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

sobre a qual falamos anteriormente. E não apenas o programático do cotidiano e o


esvaziamento deste homem urbano contribuem para esta outra relação com o tempo,
mas também o fato de vivermos na era da simultaneidade, cuja percepção se dá, entre
outras coisas, pelo desenvolvimento de sofisticadas tecnologias de comunicação.
Como exemplo podemos citar a criação de imagens eletrônicas ou imagens de
síntese, como as que vemos em telões publicitários nas avenidas das grandes cidades.
Estas são simulações que podem ou não ter referência na realidade e têm como
formulação original códigos binários, combinações numéricas, não sendo, portanto,
imagens e não tendo tempo algum. São imagens de um tempo exposto, como nos diz
Paul Virilio. Essas imagens passam a fazer parte da paisagem urbana conferindo a esta
um caráter de mosaico, fragmentado e entrecortado.
Outras imagens eletrônicas são aquelas captadas por câmeras de vigilância; imagens
efêmeras, descartáveis. A questão das câmeras nos leva a pensar novamente sobre a
diferenciação entre espaços públicos e espaços privados.
Na cidade moderna as praças e galerias se apresentavam como espaços públicos de
convivência e sociabilidade. Hoje, vemos estes espaços se transformando em locais de
passagem e serem substituídos por espaços privados, de encontro, como os shoppings
centers. A própria forma de morar, a residência, se torna ao mesmo tempo pública e
privada. Pública no sentido de resgatar os panópticos de Michel Foucault42 e privada
não apenas no sentido da intimidade e privacidade, mas de se construir pequenas
cidades dentro das cidades - os condomínios fechados.
O princípio do panóptico se pauta na constante observação dos detentos como forma
de disciplinar seu comportamento e ao mesmo tempo exercer poder. A sociedade
disciplinar dos panópticos se torna, hoje, a sociedade de controle; e não apenas através
dessas câmeras instaladas em bancos, ruas, aeroportos, lojas, mas também através de
cartões de crédito e toda espécie de mecanismos que se ligam a um banco de dados
que contém referências sobre o sujeito – seu endereço, suas preferências, hobbies etc.
Mas o panóptico de Foucault também passa a estar invertido no momento em que o
homem pode vigiar o mundo que o rodeia, seja através da televisão, internet ou outros
meios das tecnologias da informação onde “a observação direta dos fenômenos visíveis
é substituída por uma teleobservação” (Virilio, 1993:23) e que passam a estabelecer

42

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

para ele uma nova relação temporal que pauta a vida cotidiana: o tempo real.

“Não se trata mais aqui da supremacia de um meio de informação sobre a imprensa, o rádio ou
o cinema, é a casa que se transforma em uma ‘casa-imprensa’, uma arquitetura em que a
dimensão-informação se acumula e se comprime, em concorrência direta com as dimensões
do espaço das atividades diárias” (Foucault, 1987: 173)

Para Virilio, as tecnologias, sobretudo de recepção instantânea dos sinais de áudio e


vídeo, transformam a nossa percepção do tempo. Passamos a agir de forma mais
acelerada, nossa necessidade de informação é constante e nosso dia é pautado pelos
programas de TV. Ele afirma ainda que a perspectiva do ponto de fuga da Renascença
foi substituída pela perspectiva do tempo real.
Da mesma forma como modificou nossa relação e percepção do tempo, as NTIC´s
possibilitaram uma nova configuração de espaço. Hoje, não existem mais limitações
geográficas. Podemos viajar por outros países e estarmos em outros ambientes sem
sairmos do lugar. Esse encurtamento das distâncias provoca, para Virilio, uma “poluição
dromosférica” que atinge a mobilidade do sujeito “resultando ao mesmo tempo na perda
do corpo locomotor do passageiro, do telespectador e na perda desta terra firme, deste
grande solo, terreno de aventura e de identidade do ser no mundo” (Virilio, 1993:115).
Obviamente devemos pensar esse “fim da geografia” de que fala Paul Virilio com
certa cautela, e sempre retomando o exemplo das cidades brasileiras. É certo que a
tecnologia e todo tipo de serviço que hoje existem, como as tele-entregas ou os home
bankings por exemplo, causam uma certa imobilidade do sujeito em nome da
comodidade. Entretanto, como já foi dito anteriormente, no Brasil não só diversos
serviços não estão acessíveis a todos como também não substituem o contato pessoal.
Da mesma forma devemos pensar que na cidade contemporânea se perde a
dimensão da ruína que existia na modernidade através de uma tentativa de
racionalização e ordenação da cidade. Agora a casa, que antes representava o espaço
resguardado, se torna uma extensão da rua, como também a rua passa a ser o lugar do
habitar. A cidade contemporânea é, antes, o espaço do contágio, da contaminação –
uma cidade virótica.
Com o desenvolvimento das chamadas cibercidades essas questões se colocam com
mais propriedade alterando ainda mais a forma de sociabilidade entre as pessoas e a

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forma como se pode ainda pensar o corpo. A experiência do choque, do corpo que se
encontra no embate com o outro, é sucedida pela experiência do transitório como uma
tentativa de evitar o padecimento do corpo, ou mesmo o seu morrer.

1.3 Fluxos contínuos : as cibercidades

As chamadas cibercidades surgem a partir das possibilidades criadas pelas novas


tecnologias e estabelecem, mais uma vez, a redefinição ou uma nova concepção dos
conceitos de tempo, espaço, memória e a noção de corpo. Obviamente esses conceitos
já vêm sendo pensados antes do desenvolvimento dessa nova estrutura, e fica claro
também que não apenas as tecnologias da comunicação participam desse percurso. Na
realidade a tecnologia serve como um outro tipo de conformação cuja mediação se dá
pela linguagem.
O conceito de cibercidade é bastante recente e, justamente por isso, encontramos
debates que vão da apologia ao apocalipse. Longe de tomar um lado ou outro, a
proposta aqui é verificar as diversas visões de forma a contribuir com as discussões
acerca do assunto. De qualquer forma, uma coisa é notável: elas não substituem as
cidades reais. São, na verdade sua representação.
Essa simulação pode ter como base a estrutura real da cidade, através de links para
serviços públicos ou através de web cams que permitem ver o trânsito nas ruas, ou
pode ser um complemento em termos de oportunidades de lazer, compras, encontros,
fazendo parte da vida cotidiana.
Pesquisando em portais de busca nota-se uma certa dificuldade para se encontrar
textos sobre cibercidades ou elas mesmas. O que acontece, muitas vezes, é que estas
servem de nome para páginas turísticas que têm como objetivo “vender” a imagem da
cidade real. E neste caso, passam a ser apenas um retrato na internet de uma cidade
existente e não uma complementação ou uma outra estrutura que tenha apenas
semelhança com uma cidade.
Assim, as cibercidades que tratamos aqui são essas estruturas que visam a novas
formas de trocas simbólicas ou materiais se configurando assim como uma
reapropriação do espaço de fluxos que já se dá na cidade real. A diferença é que nas
cidades virtuais esses fluxos acontecem por via da conexão em rede, ou seja, de forma

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

que diversas instituições e/ou modalidades de serviços estejam ligados e colaborando


para um determinado fim em comum.
Para André Lemos, professor da Universidade Federal da Bahia e estudioso do
assunto, o objetivo do desenvolvimento de cibercidades “deve ser o de criar formas
efetivas de comunicação e de reapropriação do espaço público, favorecer a apropriação
social das novas tecnologias (...) e favorecer a democracia contemporânea” (Lemos,
2004:21). Exemplo dessa tentativa é a cibercidade de Aveiro em Portugal que consiste
num projeto de conexão entre a cidade real e a virtual com quiosques para acesso à
rede em pontos da cidade, incentivo à movimentação de trocas comerciais, entre outras
propostas.
Entretanto, se pensarmos no Brasil mais uma vez, é importante lembrar que
apresentamos (ainda) altos índices de analfabetismo, além de todos os problemas
econômicos e sociais que não vamos enumerar aqui, mas que contribuem para uma
completa exclusão social e, principalmente, digital, como citei na introdução deste
trabalho. A discussão é longa e envolve políticas públicas como forma de, senão
solucionar, ao menos minimizar o problema.
Os índices são alarmantes. De toda a população mundial (305 milhões de pessoas)
apenas 5% têm acesso à internet com índices assim distribuídos: EUA 44,9%; América
Latina com 3,5%; Europa 27,4; Ásia 22,6% e África com apenas 0,6% 43. No Brasil, dos
170 milhões de habitantes, apenas 8%, ou seja, cerca de 13,6 milhões de pessoas, têm
acesso à internet e possuem o seguinte perfil: 17,58% são pós-graduados; 32,58%
possuem curso de ensino superior completo; 9,59 possuem curso de nível superior
incompleto; 20,51 concluíram apenas o ensino médio; 5,46% possuem ensino médio
incompleto; 7,36 possuem o ensino básico e outros somam 6,89% (Fonte:
http://www.abt-br.org.br ).
Não precisa muito para entender que a inclusão digital também está atrelada à
educação e, conseqüentemente, à conquista de um lugar no mercado de trabalho. Na
iniciativa pública existem algumas tentativas de se levar o acesso à parte da população
como o projeto “ComUnidade Brasil” (www.comunidade-brasil.net) cujo objetivo é
disponibilizar na Internet os serviços do Governo Federal e incentivar a formação de
uma grande rede comunitária através de centros de informática para comunidades

43

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carentes. Entretanto, nos dias 22 e 23/11/04 o site estava fora do ar. Outros projetos
como o “Clicar” da Universidade de São Paulo disponibilizam computadores com acesso
à internet para a comunidade. Já na iniciativa privada, um exemplo de perseverança em
busca da inclusão digital é o CDI (Comitê para a Democratização da Informática) que já
beneficiou cerca de 263 mil pessoas (em 10 países) dos quais 92% são brasileiros.

“O objetivo, segundo o criador do CDI, é realizar microrrevoluções em cada comunidade. Em


termos pessoais, 87% dos alunos afirmam que tiveram sua vida mudada para melhor em três
aspectos: deixaram a criminalidade ou se afastaram da possibilidade de entrar nela;
conseguiram emprego; voltaram para a escola pública”
(Fonte:http://observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos/eno260320031.htm ).

É importante frisar que não basta dar acesso à internet. É preciso que as pessoas
aprendam e se familiarizem com o computador e que as escolas, em especial as
públicas, possam ter mais equipamentos disponíveis. Justamente por isso a discussão
passa antes por uma questão, provavelmente, governamental, ou seja, de políticas
públicas.
André Lemos pensa a cibercidade também como

“um conceito que visa colocar o acento sobre as formas de impacto das novas redes
telemáticas no espaço urbano. Redes de cabos, fibras, antenas de celulares, espectro de
ondas de rádio permitindo uma conexão wi-fi, entre outras, estão modificando a nossa vivência
no espaço urbano através do teletrabalho, da escola on-line, das comunidades virtuais, dos
fóruns temáticos planetários. (...) A cibercidade é a cidade contemporânea e todas as cidades
contemporâneas estão se transformando em cibercidades” (Lemos, 2004:20).

Esta definição nos dá apenas uma dimensão do que as tecnologias podem promover
no que diz respeito às trocas efetuadas pelo sujeito habitante da cidade no ambiente da
rede e através da qual se pode fazer compras, realizar transações bancárias, visitar
outros lugares, conversar com as pessoas, estudar, trabalhar e muitas outras coisas que
são feitas no espaço a que chamamos real. Por outro lado, neste último encontram-se
formas tecnológicas como os aparelhos celulares, citados por Lemos, caixas
automáticos de banco, câmeras e diversos outros meios que nos ligam por meio da
conexão. Isso não quer dizer, a meu ver, que as cidades estejam se tornando

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

cibercidades apenas por que fazem uso de suportes tecnológicos. Esta visão seria
reducionista levando em consideração apenas as máquinas e desprezando, por
exemplo, que o corpo habita um e outro espaço e que habitar esses espaços diferentes
implica diferentes formas de significação.
Podemos pensar, então, na cibercidade como um não-lugar, no sentido antropológico
de que fala Marc Augé. Para ele os lugares têm algumas das seguintes características:
são identitários, relacionais e históricos. Identitários no sentido de que os lugares
habitados pelo homem são referência para sua identidade individual. Da mesma forma,
os elementos que constituem e fazem parte de um lugar estabelecem entre si algum
tipo de relação. O lugar é histórico por ser um território em que se estabelecem relações
e acontecimentos que passam a se configurar como memória. Também para o autor as
dimensões geométricas são características de um lugar; basta pensarmos em uma
cidade com suas ruas, subsolos e itinerários que se cruzam e conduzem o trajeto de
quem a ocupa.
Ao contrário, qualquer espaço que não possua essas características – relacional,
identitária, histórica – se definirá como não-lugar. Esse conceito, que caracteriza
espaços da cidade contemporânea, diz respeito àqueles de passagem, provisórios e
dos quais Augé cita como exemplo as redes de hotéis, aeroportos, estações rodoviárias
e porque não as cibercidades - locais que se dão ao transitório, ao efêmero.
Marc Augé deixa claro também que “existe evidentemente o não-lugar como lugar:
ele nunca existe sob uma forma pura: lugares se recompõem nele; relações se
reconstituem nele (...)” (Augé, 1994: 74), inclusive porque a definição de não-lugar
depende do ponto de onde se lança o olhar – uma pessoa que exerce suas atividades
profissionais em um aeroporto o tem como lugar de trabalho. Além disso, e continuando
com o mesmo exemplo, ali ainda há espaço para a lágrima, a espera, o abraço, a perda,
o embaraço, alguma dor.
No entanto, não vou me deter na definição do que vem a ser a cibercidade, mas sim
pensar de que forma ela afeta nossa experiência. E a conexão é apenas uma delas.
Já afirmei que a incorporação à paisagem urbana de meios ligados à tecnologia
modifica a noção que temos de espaço e pensá-los como não-lugares já é uma
desconstrução ou uma nova construção do pensamento sobre lugar, sobretudo quando
pensamos no ambiente da rede propriamente dito. Neste caso, quando nos

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

conectamos, passamos a ocupar, no mínimo, dois lugares ao mesmo tempo – o lugar


do espaço físico em que estamos e o lugar onde nos encontramos simbolicamente (a
discussão sobre realidade e virtualidade será feita mais adiante).
Como exemplo é possível citar as salas de bate-papo e sistemas como MSN
Messenger que se constituem como lugar de encontro entre pessoas (ou sua
simulação) que possuem interesses em comum. Assim, a própria linguagem que
usamos para nos referir a esses ambientes não dá conta dessa nova estrutura e, desta
forma, dizemos que estamos “saindo” de uma sala e “entrando” em uma outra,
referências estas que usamos para nos situar no espaço físico.
André Parente diz o seguinte: “Chegaremos ao tempo em que não haverá mais
espaço real, mas apenas espaços virtuais, e o momento de inércia sucederá ao
deslocamento contínuo, assim como a interface substituirá o intervalo” (Parente,
1993:17). Essa idéia de supressão do espaço tem relação com um outro ponto que,
quando tratamos de cidade e mais especificamente de interatividade, não podemos
deixar de mencionar – o tempo.
Neste aspecto devemos ponderar ao pensar o fim das distâncias. Em termos de
encurtamento de tempo de conexão parece fazer todo um sentido. Embora o sistema de
transporte desenvolvido em nossos dias tenda a ser cada vez mais rápido, modificando
a noção de paisagem, mesmo assim ainda não se conseguiu anular o trajeto (a menos
que algum dia consigamos nos tele-transportar).

2 . Consciência - o abrigo do tempo


Até aqui, no trabalho, a pauta é a das cidades e das transformações de sua
paisagem decorrentes da incorporação da tecnologia da informação e mediática e,
sobretudo, das modificações em termos de percepção da realidade e de significação
estabelecidos pelo homem. Neste aspecto, o tempo tem papel fundamental – esse
tempo que é histórico e que agora se configura como eterno presente.
Para falar desse tempo histórico podemos nos referir ao pensamento grego,
considerado fundador do pensamento ocidental, no qual se encontra representada de
diversas formas sua concepção, seja através de seus estudos de astronomia, da
elaboração do calendário e da submissão de suas práticas de sobrevivência
(plantio/colheita) aos ciclos da natureza, seja na religiosidade na qual podemos

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

encontrar referência de três deuses para representá-lo: Cronos, Aiôn e Kairós, cada um
remetendo a um aspecto diferente.
Assim se desenvolveu a atividade humana até o aprimoramento, no Renascimento,
do relógio mecânico que possibilitou a repartição do tempo em unidades iguais e
precisas permitindo uma concepção do tempo como algo linear e sucessivo.
E como estamos tratando da questão do urbano, não podemos deixar de relacionar a
criação do relógio ao processo de industrialização vivido naquele período. O tempo
cronometrado permite não apenas o aperfeiçoamento das máquinas como também a
quantificação do trabalho humano e serve para validar o pensamento mecanicista
capitalista de que “tempo é dinheiro”.
O tempo, da mesma forma que se dá a ver, por ser medido e observável pela própria
sucessão entre dias e noites, estações do ano, horas, é também interiormente
apreendido. Quando falamos em relógio biológico estamos falando desse tempo
cotidianamente aprendido. Da mesma forma, quando falamos em memória, dizemos de
um tempo passado delicadamente interiorizado.
André Comte-Sponville define a existência de dois tempos – um subjetivo (da
consciência) e outro objetivo (o do relógio). O primeiro é desigual, se dá na
multiplicidade e num percurso não-linear através do qual lembramos do passado e
projetamos o futuro, um tempo que só existe em nós. Ao contrário, o tempo do
cronômetro é marcado por sucessões exatas e determinadas. Acerca deste tempo, o
dos relógios, lembra Paula Sibilia: “a tradução dos relógios analógicos para os digitais,
todavia, sugere algumas pistas interessantes: nos novos modelos, o tempo perdeu os
interstícios” (Sibilia, 2003:30).
Exatamente por termos essa noção que a fotografia causou tanto espanto. E é
através da figura de um mágico que Cláudio Araújo Kubrusly nos mostra essa
sensação, como se tudo não passasse de fantasia:

“- Senhoras e senhores. Acabais de presenciar a mais revolucionária mágica de todos os


tempos! Suas conseqüências para as gerações vindouras são imprevisíveis. Eis aqui,
aprisionado nesta folha de papel, um fragmento do tempo, um instante preservado, que não se
perdeu como se perdem todos os instantes” (Kubrusly, 1991: 17)

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Já o cinema, para dizer grosseira e rapidamente, através de sua sucessão de


imagens e das técnicas de edição, não retém o tempo, mas o dilata ou o condensa
numa narrativa que quebra com a idéia de linearidade mostrando sua flexibilidade.
A partir desses mecanismos eletrônicos e digitais, passamos a viver numa sociedade
marcada pela cultura da imagem produzida para ditar normas e estabelecer parâmetros,
sejam estéticos ou de comportamento. Não a imagem própria da estrutura social
humana, a que nos acompanha como estrutura mental, dentro, e que lemos, porque
tudo é imagem, de uma palavra a um gesto, de um sonho a um desejo, sempre através
da linguagem.
A televisão, o vídeo, o cinema e, sobretudo a internet, imprimem à vida cotidiana um
tempo acelerado, o tempo instantâneo que acelera também a forma de perceber a
realidade. E essa percepção passa a estar mediada pela tela, que passa a ser nossa
janela para o mundo, suplantando a percepção da realidade imediata, o que pode
causar (e causa) distorções de interpretação através, dentre outros motivos, da
automação do olhar.
E não é apenas o visual que baliza a cultura contemporânea, mas também a
informação que se faz necessária para nos sentirmos parte do mundo e que, ao mesmo
tempo, nos causa completo esgotamento por se apresentarem em excesso e porque
nos chegam de todos os lados nos dizendo que é preciso estar sempre bem informado
à todo momento não havendo como processar tudo o que nos chega e até separar o
que realmente acrescenta do que é completamente descartável.
Para Paul Virilio, esses meios audiovisuais passam a pautar o dia do homem citadino
contrapondo um tempo que passa a um tempo que se expõe e que estabelece uma
duração técnica instaurando uma espécie de eterno presente. Assim, podemos dizer
que o tempo é, antes de tudo, um “entre” e que, modificado pelas novas tecnologias se
configura em um continuum, “que assume um caráter de incompletude e
inexorabilidade” (Pellegrini, 20).
Sobre esse tempo é que trato desde o início deste trabalho. E quando falo de
modernidade, pós-modernidade ou qualquer outro momento da história, tento apenas
não me perder e definir algo sobre esse tempo “que é o nosso e que curiosamente
chamamos de ‘contemporâneo’, como se pudéssemos viver num tempo que não fosse
junto conosco”(D’Ámaral in Doctors, 2003:17).

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Para este trabalho o “entre” se torna ponto fundamental na medida em que estou
falando também de reconfiguração do espaço. Se, como já foi dito citando autores como
Paul Virilio, a distância tende a desaparecer, então, onde localizar o “entre” desse
espaço-tempo? Como e onde localizar o devir?
A partir do pensamento acerca da inexistência do tempo próprio da consciência
definidos na estrutura passado, presente e futuro, Santo Agostinho nos lança o desafio
de pensarmos uma definição para este tempo (Santo Agostinho, 1996:322).
Se o passado não existe porque não é mais, o futuro não existe porque não é ainda e
o presente já está passando, portanto sem duração, então o tempo não existiria e isso
nos levaria ao que Sponville chamou niilismo cronológico. Por outro lado, o autor afirma
que se não existisse o tempo, não existiria o ser para perceber esse tempo, o que seria
um niilismo ontológico. Daí, então, a definição do tempo segundo santo Agostinho se
configura como três presentes - o presente do passado (a memória), o presente do
presente (a intuição direta) e o presente do futuro (a espera), configurando a
temporalidade, ou seja, o tempo como o apreendemos.
No entanto, Sponville esclarece:

“Não deixa de haver sucessão, já que há movimento, mudança, devir – já que o presente não
cessa de suceder a si mesmo, mas transformando-se. É sempre hoje, mas nunca é o mesmo.
É sempre agora, mas todos os agoras são diferentes. É essa, parece-me, a verdade do tempo,
a sucessão pura, sem passado nem futuro, o puro presente do mundo, a novidade perene de
tudo” (Sponville, 2000:68)

Então o tempo não é o nada, mas se dá no movimento, na passagem, no devir. A


partir da tecnologia existente no cotidiano há uma espécie de inversão desse tempo. É
possível uma antecipação do futuro que, segundo Márcio Tavares d’Amaral, o torna
causa do presente. Como exemplo podemos citar que a descoberta de um possível
desenvolvimento de alguma doença através da análise genética ainda no feto, permite
antecipar os cuidados e dessa forma até prolongar a vida. Segundo Márcio d’Amaral,

“o futuro, que não era, agora determina o presente; o passado, que era, agora se torna virtual.
Está lá, mas como quem fica entre duas dimensões. Se precisamos, temos de trazê-lo para a
dimensão certa. É como se agora começássemos a fazer ficção científica para o passado.

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Antes ela era feita para o futuro, mas o futuro deixou de ser ficção, ele é o real do presente
(...)” (D’Amaral in Doctors, 2003:23).

Essa presentificação problematiza também a questão da memória, mais


especificamente de que forma ela se dará a partir de um passado que se torna virtual e
que nos tira certa sensação de permanência. E o que vem a ser realidade virtual? Seria
o oposto de real ou um outro nível de realidade? O conceito de real que temos hoje
advém do pensamento moderno mecanicista em que descobertas e estudos sobre ótica
e mecânica deram nova dimensão para a representação da realidade, baseado na idéia
de que o mundo físico representava a totalidade da realidade.
Com a realidade virtual entra em crise o modelo de representação que vinha desde o
Quattrocento em que o homem entendia o mundo a partir de uma perspectiva central
com tridimensionalidade e profundidade de campo. Para André Parente essa crise é
decorrente do surgimento do novo que produz novos sistemas de significação. “O novo
é o que escapa à representação do mundo, como dado, como cópia” (Parente,
1993:19). No Quattrocento, segundo Edmond Couchot, essa perspectiva centralizada é
que leva à automatização dos processos de criação da imagem.
Como é de imagem que falo aqui, mais especificamente como modo de significação,
é importante lembrar que na fotografia e no cinema, ela representava a própria
realidade, seja estática ou em movimento, mas sempre advinda de algo existente
fisicamente. A partir do vídeo e das imagens digitais ou infográficas, esse conceito
passa a ser relativisado, pois essas imagens podem prescindir do real, ou seja, podem
ter ou não um referente.
E aqui começam a surgir as discussões sobre a natureza dessa realidade que André
Parente sugere também em seu livro Imagem-máquina. Nele encontramos, grosso
modo, três vertentes para esse debate. A primeira diz respeito à imagem digital como
imagem virtual, ou seja, a virtualidade se dá a partir de mecanismos tecnológicos que
criam imagens sem referência na realidade. A segunda observa o virtual como sendo a
própria realidade que está cada vez mais mediada, se apresentando sempre de
segunda ordem. E a terceira enxerga o virtual como uma outra forma de realidade na
qual o homem não se coloca como exterior, mas imerso nela.
No primeiro caso encontramos autores como Edmond Couchot e Arlindo Machado.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Para Couchot, a fotografia inaugura o processo de automatização da imagem.


Entretanto, essa automatização não afasta a fotografia do real, mas ao contrário, a faz
cada vez mais presa a ele a partir do momento em que a cada ponto da imagem há
uma correspondência na realidade que adere à foto pela representação. Ao contrário,
na imagem digital embora existam semelhanças, aos pontos de luz do vídeo e aos
pixels não há correspondência alguma, são imagens formadas apenas por combinações
numéricas.

“A realidade que a imagem numérica dá a ver é uma outra realidade: uma realidade
sintetizada, artificial, sem substrato material além da nuvem eletrônica de bilhões de micro-
impulsos que percorrem os circuitos eletrônicos do computador, uma realidade cuja única
realidade é virtual” (Couchot in Parente 1993:42).

Na imagem videográfica os valores numéricos que compõem a imagem digital são


representados por feixes de luz que a formam a partir da varredura completa da tela
numa velocidade imperceptível aos nossos olhos caracterizando-se não como uma
inscrição no espaço, mas no tempo. Neste sentido ambos os autores concordam que as
imagens provenientes de aparelhos eletrônicos ou digitais são de uma outra ordem que
não a representação, mas sim a simulação da realidade.
No segundo caso podemos citar J. Baudrillard e Paul Virilio. Ambos discutem sobre a
qualidade de percepção que se tem a partir da mediação feita, especialmente, pelos
media.
Baudrillard critica o que chamou de “informação como escândalo”. Para ele, a
televisão não faz o papel de retratar a realidade, mas se mostra como a própria ficção. A
tv espetaculariza a informação de forma que passemos a não conceber os fatos
mostrados como sendo reais, a exemplo da Guerra do Golfo e, mais recentemente, a
queda das torres gêmeas em Nova Iorque, o World Trade Center. Acostumados com
efeitos especiais do vídeo e do cinema digital, tivemos dificuldades em acreditar na
veracidade das imagens que estávamos assistindo ao vivo. E, passado algum tempo,
mesmo absorvidos os fatos como reais, a urgência de racionalização do ocorrido, como
informação, nos distancia da real significação que aquilo carrega ou acarreta.

“Ao contrário da ficção de solidariedade universal criada pela mídia e pelas imagens, os

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

acontecimentos, cada vez mais, só tem sentido para aqueles que os vivem, no momento em
que os vivem. Fora desse contexto o eco é artificial, e a ressonância é tão nula quanto
ensurdecedora” (Baudrillard in Parente 1993:51).

Para Paul Virilio o fato de a tela se tornar nossa interface com o mundo e mediar
nossas informações causa distorções de interpretação dado que toda mensagem já nos
chega carregada de conteúdos ideológicos e prévias interpretações. Além disso, tanto
na televisão quanto na internet as informações se misturam às peças publicitárias
causando uma mistura de conteúdos que muitas vezes não percebemos e que provoca
“um desequilíbrio perigoso entre o sensível e o inteligível”(Virilio, 1993:23). Essa
realidade passa a ser configurada como virtual no sentido de estar separada do aqui-
agora do espaço físico que ocupo.
Dos debates sobre a terceira vertente, ainda no livro Imagem-Máquina, participam
Félix Guattari e Antonio Negri. Para eles as máquinas e a mídia, embora estejam cada
vez mais avançadas em seu poder de transmissão e velocidade, não representam uma
ameaça ao homem. Especialmente para Negri, concordar com a afirmação da
“monstruosidade” conferida à televisão, por exemplo, é considerar a sociedade como
uma massa homogênea e amorfa. O que discutem é que a sociedade contemporânea é
a sociedade de controle e que esse controle é feito através de mecanismos
tecnológicos. Entretanto, a tecnologia não foi criada para esse fim, mas seu uso é que
determina esse controle.
Justamente por esse motivo é que afirmam que um equilíbrio com a tecnologia
dependerá de nossa capacidade de reapropriação dessas ferramentas. Para ambos a
realidade virtual é um outro princípio de realidade, ou seja, o virtual não se contrapõe ao
real. É, antes, uma realidade com outras referências de espaço, tempo, linguagem.
Interessam aqui as novas formas de produção de subjetividade decorrentes desses
novos elementos.
Assim, percebemos que vários são os enfoques dados a uma mesma questão.
Entretanto, estamos estudando os efeitos de uma determinada situação (o
desenvolvimento das imagens virtuais) de dentro dessa situação. O que devemos
avaliar e lembrar é que as mudanças, provocadas ou não pelas Novas Tecnologias,
promovem alterações por um período mais ou menos longo e que os verdadeiros efeitos

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

poderão entrar em consenso em um tempo, talvez, um pouco mais adiante. Justamente


por isso não me posiciono tendenciosa a nenhuma vertente dessa discussão, mas
tentando estudar o lugar-comum, ou diferente, entre todas elas.
Ainda assim a definição de André Parente me parece bastante adequada: “A imagem
virtual não se opõe ao real, mas sim ao atual da percepção” (Parente, 1993:26). Desta
forma, livra-se essa imagem de uma dependência a algum elemento que tenha relação
com um dado passado. O que não se pode é conferir às imagens o poder de
transformação no pensamento, dado que as técnicas de produção dessas imagens já
carregam consigo, anteriormente, o pensamento transformador. E aí voltamos à questão
proposta por Guattari de que é o uso dessas ferramentas que nos dirá de que modo
pretendemos pensar o futuro próximo. Para André Parente a imagem não reproduz o
real, pois se isso acontece “ela o faz literalmente, ela o reproduz uma segunda vez”
(Parente, 1993:30) e isso já é uma outra realidade.
Podemos considerar a imagem como linguagem (a única coisa que é de fato) para
então pensarmos que elas provocam alterações nos processos comunicacionais, tendo
em vista que, de acordo com Jakobson, a linguagem é o instrumento principal da
comunicação informativa (Jakobson, 1971:11).

“As imagens de síntese são co-criadoras do que chamamos ‘realidade’. Mostram outras
facetas do ‘real’, colocando em crise a noção de verdade e sobretudo de ‘referente’, pois o
conceito de ‘realidade’ torna-se tributário da linguagem e de seu instrumento produtivo” (Plaza
in Parente, 1993:87).

O processo de interatividade possível com as imagens virtuais altera o modelo


tradicional de comunicação emissor-receptor. O emissor pode ao mesmo tempo ser
receptor das imagens que pode modificar. Julio Plaza analisa as mudanças possíveis
em cada elemento do sistema de comunicação e das funções da linguagem a partir da
proposta estabelecida por Roman Jakobson em seu livro Lingüística e Comunicação.
O autor faz as seguintes relações: à função emotiva corresponde o emissor que pode se
valer de múltiplas linguagens possíveis com as imagens de síntese; a função conativa
relaciona-se ao papel de receptor que passa a estar relativizado devido ao processo de
interatividade; a função fática diz respeito ao contato que, agora, passa a ser feito por
meio de uma interface; à metalingüística correspondem os códigos existentes em cada

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linguagem específica; a função referencial liga-se ao contexto que pode ou não ter
referente e, por fim, a função poética diz respeito à mensagem que pode ser interativa
e, por isso, possuir diferentes sentidos.
Trata-se, portanto, uma re-adequação da linguagem aos meios, incluindo a criação
de novos elementos e com isso novas formas de comunicação e representação no
imaginário. Além das funções de linguagem, a própria língua absorve novas palavras
derivadas de funções específicas de determinados aplicativos. E todo esse novo
processo de linguagem e comunicação tem seus efeitos na relação do homem com o
outro e consigo. Além disso, as questões acerca da realidade e virtualidade implicam,
da mesma forma, discussões sobre como o corpo passa a estar posicionado diante
dessas alterações e que desdobramentos esse corpo também passa a sofrer.

3. Corpo

3.1 O que pode ser o corpo?


“O corpo é o que eu vejo, no outro ou em mim (..)” (Gaiarsa, 2002:15). Essa definição
nos parece demasiado simples para definir algo tão complexo como o corpo humano.
Sabemos, entretanto, pelo senso comum, que “o que vejo” carrega inúmeros elementos
que não vejo mas que são constituintes desse corpo, outra narrativa, sem palavras. E
não estamos falando apenas de componentes fisiológicos, mas também, de toda carga
psíquica e emocional que experimentamos.
Também há uma outra dimensão do corpo que vai além do espaço físico que ocupa –
é a dimensão espacial do entorno que faz parte também da noção desse corpo.
Entretanto e, paradoxalmente, nossa percepção não atinge a dimensão corpórea total,
ou seja, “nosso corpo existe, dentro de nós, enquanto estrutura imagética e até
tridimensional, como um figurino intangível” (Greiner & Amorim, 2003:157).
Da mesma forma que nosso exterior, a noção de interior ou subjetividade que tivemos
até hoje não estava completa. Lúcia Santaella lembra que esta noção vem desde o
princípio cartesiano do “Penso, logo existo” no qual “a existência do sujeito é idêntica a
seu pensamento” (Santaella, 2004:13).
Esse conceito passa a ser questionado, desde o século passado, devido ao que se
chamou de “morte do sujeito” em que a definição de um sujeito universal e, ao mesmo

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tempo individualizado, dá lugar a uma visão de sujeito múltiplo e heterogêneo, conforme


apontou Santaella acerca do pensamento de Deleuze. Diante disso a autora, citando
Ihde (2002), lembra que são três os sentidos do corpo:

“Nós somos nosso corpo pelo modo como a fenomenologia compreende nosso ser no mundo
emotivo, perceptivo e móvel. Esse é o primeiro sentido. No segundo, somos corpos no sentido
social e cultural, algo que experienciamos a partir de situações e valores relativos ao corpo que
são culturalmente construídos. Atravessando tanto o primeiro quanto o segundo sentido, há
uma terceira dimensão: o das relações tecnológicas, das simbioses entre o corpo e as
tecnologias” (Santaella, 2004:10).

Essas tecnologias da medicina, biologia e da comunicação provocam alterações na


experiência que temos com nosso corpo permitindo modificações físicas e até genéticas
que acentuam ainda mais a crise acerca da subjetividade, a partir da possibilidade de
criação de um outro corpo. Desta forma, afirma Tadeu da Silva:

“é no confronto com clones, ciborgues e outros híbridos tecnonaturais que a ‘humanidade’ de


nossa subjetividade se viu colocada em questão. Aquilo que caracteriza a máquina nos fez
questionar aquilo que caracteriza o humano: a matéria de que somos feitos. A imagem do
ciborgue nos estimulou a repensar a subjetividade humana; sua realidade nos obrigou a
deslocá-la” (Silva, 2000).

Mas há ainda uma outra dimensão do corpo, que nos interessa aqui, que é a da
possibilidade dos desdobramentos, da multiplicidade. Esse corpo que não é o humano
carnal, mas o das projeções, da aprendizagem e da memória. Sobre essas variações
nos fala Michel Serres:

“Quanto mais se dilata esse capital, esse reservatório inconsciente – pois o inconsciente é o
corpo - , menos ele pesa e mais ele se torna leve e aéreo em virtude das adaptações
conquistadas” (Serres, 2004:76)

Mas esse corpo habitado de multiplicidade também habita e é na cidade, espaço de


incessantes transformações, que ele irá determinar quais os seus movimentos e que
significações estabelece.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

3.2 O corpo na cidade, o corpo como objeto

Este corpo do qual estou tratando está, necessariamente, inserido no contexto e/ou
nos imaginários urbanos, pois “as relações entre os corpos humanos no espaço é que
determinam suas reações mútuas, como se vêem e se ouvem, como se tocam ou se
distanciam” (Sennet, 2003:17), sempre e somente através da linguagem.
A partir do surgimento das cidades o corpo esteve exposto a inúmeras interferências
tanto na forma de se perceber como no embate com o meio. Maria Cristina Franco
Ferraz constata que nas sociedades disciplinares vinculadas ao período da Revolução
Industrial, os corpos eram submetidos a estímulos musculares necessários ao
desenvolvimento do trabalho fabril. Sem contar que até esse momento não havia
acontecido de tantos corpos se concentrarem num mesmo ambiente por tanto tempo
como passou a ocorrer nas fábricas, agora local de trabalho de centenas de pessoas,
neste momento especificamente e com maior força na Europa.
Este corpo na obra de Foucault era totalmente determinado socialmente através do
discurso, “tratava-se de produzir um corpo dócil, eficaz economicamente e submisso
politicamente” (Vaz in Villaça, 1999: 165). É preciso lembrar, entretanto, que não apenas
as fábricas participavam dessa modelagem do corpo, mas também outras instituições
como a escola, os hospitais e as prisões.
Já na sociedade de controle, apontada por Deleuze, afirma Ferraz que o estímulo é
realizado sobre as terminações nervosas, gerando o que chamou de corpo
superexcitado. “O que mais importa ao homem moderno não é mais o prazer ou o
desprazer, mas estar excitado” (Nietzsche, 1973:72-73). O que acontece é que a partir
do desenvolvimento das tecnologias da comunicação, a mídia passa a exercer uma
influência grande sobre o comportamento humano, constituindo-se, como dissemos no
capítulo anterior, como mediadora entre o homem e o mundo em que vive.
Assim somos submetidos a milhares de imagens e informações diariamente. Maria
Cristina Franco Ferraz considera que esse turbilhão de estímulos, ao mesmo tempo em
que entorpece, também excita os corpos. É possível dizer que essa excitação vem
desde a cidade moderna e o surgimento das galerias e vitrinas. Estes caminhos de
passagem facilitam a exposição de mercadorias que fisgam o olhar do passante. Mas
não só a mercadoria passa a estar exposta, os corpos passam a servir como vitrinas de

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roupas, jóias e toda a sorte de adornos e acessórios.


Neste caso vemos a moda surgir como um produto destas transformações, aliada ao
capitalismo e ao caráter efêmero da vida urbana. Afinal de contas a moda depende
dessa efemeridade, pois se constitui de ciclos e não da permanência. A própria
revolução industrial é um fator que impulsiona o surgimento e desenvolvimento da moda
na medida em que possibilita a reprodução dos produtos. Assim, a moda encontra
ambiente e imaginários propícios: a experiência do consumo de massa e a fetichização
da mercadoria.
Como procura mostrar tendências e ser o retrato de seu tempo, foi na cidade
contemporânea que a moda encontrou terreno fértil para o seu crescimento. A
percepção de velocidade proporcionada pelos avanços das tecnologias da informação e
comunicação propicia um imaginário e um corpo impregnado pela fragmentação e,
neste caso, “a moda é maneira perfeita de expressar um mundo de identidades
incomensuráveis e fragmentadas, oferecendo uma procissão dinâmica de signos
flutuantes e trocas simbólicas” (Villaça e Góes apud Santaella, 2004:117).
Mas o corpo não serve apenas como vitrina nas ruas, passa também, através da
mídia e da publicidade, a ser tratado como objeto – um corpo ideal, fetichizado. A
publicidade passa a expor e a criar um padrão de beleza que dita o comportamento e o
modelo a ser seguido, “assim, a ilusão de uma identidade fixa e estável, característica
da sociedade moderna e industrial, vai cedendo terreno aos ‘kits de perfis padrão’ ou
‘identidades prêt-à-porter’, segundo as denominações de Suely Rolnik (...)” (Sibilia,
2003:33). O que vemos hoje é a busca incansável pela aparência através das
academias, cirurgias e inúmeros produtos que movimentam a indústria cosmética e
farmacêutica.
Seja através de outdoors nas ruas da cidade, seja através dos jornais ou capas de
revistas, o corpo assume o papel de objeto de consumo. Nos outdoors, independente do
produto que se queira vender, lá estará em tamanho gigante um corpo exposto e
despertando o desejo não ao produto, mas a si mesmo, o que Baudrillard chamou
“fascínio auto-erótico, o da mulher objeto que se olha, com os grandes olhos abertos,
volta a fechá-los sobre si mesma” (Baudrillard, 1996: 145). Sem contar um número de
revistas que apelam para o corpo, seja através de dietas e roupas, seja através do
apelo sexual. Baudrillard afirma ainda que essa transformação do corpo em objeto está

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ligada à idéia do corpo como valor.


Paradoxalmente, a velocidade propicia uma falta de cuidados com a saúde, em
especial com a alimentação que passa a ser feita não apenas com rapidez, mas
também com alimentos de preparo rápido (fast foods), trazendo inúmeras implicações
prejudiciais devido a seu baixo valor nutritivo.
Outra conseqüência da aceleração da vida cotidiana é com relação ao deslocamento
desse corpo no ambiente urbano. Na cidade moderna, vimos nascer a figura do flanêur
que vivia suas experiências no ato de caminhar pelas ruas e, embora pudéssemos dizer
da efemeridade das coisas já nesse período, da impossibilidade de existir, a caminhada
pelas ruas, galerias, bulevares proporcionava um embate direto com a cidade e com as
pessoas. Agora, a cidade contemporânea propicia uma desconexão com o espaço, no
qual as auto-pistas e as grandes avenidas (com exceção de diversas brasileiras que
não possuem essa estrutura) promovem um deslocamento cada vez mais acelerado,
promovendo uma certa anulação na qual “não se está mais em parte alguma, se está
numa espécie de no man´s land” (Baudrillard in Salles, 1989:18). Com o ciberespaço
essa desvinculação, tanto em relação ao espaço físico como em relação aos demais
corpos, passa por uma outra configuração.

3.3 Células e bits


Cercado por tecnologias de todos os tipos, o corpo contemporâneo se vê
questionado sobre sua utilidade, funcionalidade e até mesmo se continuará a existir nos
próximos anos. Procurei evitar ser tendenciosa até o momento, mas aqui procurarei
seguir o raciocínio de que não está em xeque a permanência do corpo orgânico na
sociedade contemporânea, mas que vemos surgir um novo corpo que tento entender
qual é e como se constitui, principalmente a partir de toda a influência que a tecnologia
proporciona.
Os aparatos tecnológicos disponíveis se tornam cada vez mais numerosos e, num
período cada vez mais curto de tempo, passam por renovações e são logo substituídos.
São inúmeros modelos de aparelhos de telefonia celular, pagers, palm tops,
computadores que, somados aos tradicionais meios de comunicação se tornam, estes
também, parte da indústria da informação e do entretenimento.
Em meio a tantas alternativas cada vez mais direcionadas a um público específico,

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seja pelos modelos de aparelhos eletro-eletrônicos e digitais, seja pela variedade de


canais de tv por assinatura, o corpo passa a sofrer do que Paula Sibilia chamou de
“tiranias do up grade”(Sibilia, 2003:13). Através de uma imposição social e
mercadológica o corpo necessita estar em constante atualização e renovação não
apenas em suas extensões tecnológicas, conforme o conceito de Marshall McLuhan,
mas também em relação ao seu próprio conteúdo informativo.
Essa presença maciça da tecnologia na vida cotidiana provoca uma familiarização do
homem com esse meio e começa a haver como que uma simbiose entre corpo e
máquina causando uma “desconstrução das certezas ontológicas e metafísicas
implicadas nas tradicionais categorias (...) de sujeito, subjetividade e identidade”
(Santaella, 2004:53).
Na realidade essa não é uma discussão recente. Todas as identidades passam a ser
configuradas como falsas na medida em que estou tratando de um corpo filosófico,
portanto múltiplo e variável. Estabelecer uma identidade única e definida seria deixar de
lado as diversas conexões que estabelece. Sobre isso questiona Michel Serres:

“Como definir um corpo que se aplica com tanta constância a tantas posturas e signos?
Quando e sob que forma esse corpo é ele mesmo? Como ultrapassar todas as inumeráveis
diferenças que caracterizam as pessoas: quando e sob que formas ele se identifica à nós?
Essas múltiplas posturas impedem de dizê-lo. Meu corpo e nossa espécie existem menos no
real concreto do que em ‘potencial’ ou em virtualidade” (Serres, 2004:52).

A este corpo simbiótico chamaremos biocibernético, conceito usado por Lúcia


Santaella e que significa a junção do corpo orgânico (organismo) à tecnologia
cibernética. Outros conceitos também são utilizados como cyborg, corpo pós-orgânico,
protético ou pós-biológico. No entanto a justificativa pela opção da nomenclatura
biocibernético da qual compartilho com Santaella é que “ ‘bio’ apresenta significados
mais abrangentes do que ‘org’ (...) além de que não está culturalmente tão
sobrecarregado quanto ‘ciborgue’ com as conotações triunfalistas ou sombrias do
imaginário fílmico e televisivo” (Santaella, 2004:54).
Por falar em cinema e fazendo uma rápida volta no tempo, verificamos que o corpo
sempre esteve presente nas artes de um modo geral: esculturas, pinturas, artes visuais,
sem falar das artes corporais por excelência – o teatro e a dança. Entretanto, Santaella

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

lembra que especialmente a partir do século XX o corpo passa a ser problematizado e


deixa de ser apenas representação.
Nas décadas de 60 e 70 vemos o próprio corpo do artista ser utilizado como suporte,
a exemplo dos happenings e da body art. Naquele momento temos no Brasil exemplos
como os “parangolés” de Hélio Oiticica e os objetos relacionais de Lygia Clark.
Assistimos também ao surgimento do vídeo (elemento tecnológico) como forma de
manifestação artística que passa inclusive a explorar o corpo do observador de forma
interativa na composição da obra. Nos anos 80, embora tenham ocorrido alguns
movimentos de retorno à pintura, a fotografia e o vídeo passam a ganhar força tendo o
corpo como objeto.
Os anos 90 assistem à entrada definitiva da sociedade e da arte na era digital que
implica não apenas uma transformação do artista, seus conceitos, seu olhar, mas
também e, conseqüentemente, da arte por ele produzida.

“Quanto mais os territórios do virtual são explorados, mais central a questão do corpo se torna,
pois ele age como um limiar entre dois mundos, entre as três dimensões dos objetos e as x-
dimensões do pensamento. Surge assim um novo corpo que perdeu a certeza do ego, um
corpo instável, inquieto, instintivo e longe do equilíbrio” (Santaella, 2004:75).

A arte se apropria da tecnologia. E não só a arte, mas a medicina, a biologia e as


ciências de um modo geral. O corpo se torna híbrido. Para Lúcia Santaella há três
formas de hibridização, quais sejam: de dentro para fora do corpo; na superfície que liga
o dentro e o fora do corpo e de fora para dentro.
No primeiro movimento encontramos as “extensões do homem”, ou seja, todos os
sistemas que ampliam ou modificam o potencial humano, como telefones celulares,
computadores, dentre outros. O segundo caso engloba as modificações que são
possíveis de se realizar no corpo (body building e body modification) como as
tatuagens, cirurgias plásticas e piercings, por exemplo. O movimento de fora para
dentro envolve as próteses e implantes que modificam funções orgânicas do nosso
corpo constituindo o que chamamos “ciborgue”.
Para Paula Sibilia essa hibridização acontece porque nos dias atuais o corpo humano
mostra-se “obsoleto”. Ela afirma: “o corpo não é descartado por ser pecador, mas por
ser ‘impuro’ em um novo sentido: imperfeito e perecível. E, portanto, limitado. Por ser

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viscoso e orgânico, meramente orgânico, ele é inexoravelmente obsoleto” (Sibilia,


2003:96). Essa posição me parece insuficiente acerca da questão do híbrido, inclusive
por considerar o corpo apenas em sua organicidade.
A autora de O homem pós-orgânico nos mostra duas correntes de pensamento
acerca do assunto – a prometéica e a fáustica. A primeira vê as tecnologias como
McLuhan – como extensões do homem que potencializam suas capacidades. A
segunda, da qual parece participar, enxerga o processo tecnológico como algo que
pode ir muito além do humano, transcendendo o corpóreo.
A internet não deixa de ser neste caso um bom exemplo. Neste ambiente virtual o
corpo liberta-se de sua corporeidade podendo percorrer múltiplos percursos instantânea
e simultaneamente. É bem verdade que a tecnociência passou a considerar a vida
também como informação ao analisar o código genético do homem a exemplo do
Projeto Genoma Humano. Entretanto, considerar que é o fim do corpo, seria esquecer
características inerentes ao ser humano (e que, de uma forma ou de outra, promovem o
crescimento e o desenvolvimento da sociedade) como se sociabilizar, sentir dor e se
emocionar.

3.4 Trocas
Depois de tentar verificar como a tecnologia influencia o corpo, a idéia é iniciar um
caminho na investigação de como esse corpo se comporta em relação ao outro e à
cidade. Como procurei demonstrar na primeira parte do texto, a incorporação das
tecnologias da informação e da comunicação à cidade e, conseqüentemente ao
imaginário do homem urbano, imprime a velocidade como forma de viver. Diante dessa
emergência da vida aliada às “tiranias do up grade” constata-se a existência do homem
cada vez mais ligado ao trabalho e cada vez mais voltado para si.
A vida do dia-a-dia é tão agitada e repleta de afazeres (sem contar os
engarrafamentos das grandes cidades) que, no tempo livre, nada melhor do que evitar
sair de casa. Para isso os serviços delivery e em especial, a internet, foram invenções
perfeitas. Mas não é apenas pelo cansaço que não se sai de casa. Novas formas de
trabalho foram também surgindo a partir das possibilidades trazidas pela internet, nas
quais não há necessidade de deslocamento físico para se chegar a um escritório.
E mesmo as relações formais no trabalho estão bastante modificadas. O uso de

97
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sistemas como a intranet, por exemplo, permite que se fale com o colega da sala ao
lado através do computador transformando sensivelmente o contato social. Um exemplo
disso está no filme Denise está chamando44, no qual há um círculo de amigos que por
causa de seus afazeres e pela escassez de tempo só conseguem se falar por telefone
(extensão do ouvido e da voz em McLuhan). Todas as situações são vividas através da
linha telefônica, inclusive um “namoro” e uma “relação sexual” entre duas pessoas que
nunca chegaram a se conhecer. Esse tipo de situação tem se tornado comum na
internet através de sites e chats específicos.
A partir disso, vemos sumir de nossas vistas o outro (nossa alteridade) no qual nos
reconhecemos e nos espelhamos. Inclusive porque segundo Gaiarsa “os animais
aprendem quase tudo o que aprendem vendo os outros fazerem. A imitação é o método
natural de comportamentos complexos” (Gaiarsa, 2002:67). O desaparecimento do
outro se dá no sentido de afastamento dos corpos cujo contato passa a ser mediado
pelo computador. Assim, vemos surgir uma nova forma de agregação social: as diversas
tribos e comunidades existentes, basicamente, na internet que, muito mais do que
marcas de um espaço físico, prestam-se a trocas simbólicas de interesse comum.
Temos então que a visão de isolamento e individualismo urbano, iniciada na
modernidade, passam a ter uma contraposição num formato outro que é um tipo de
relacionamento numa configuração diferente de espaço e tempo, uma nova forma de
“sociação”. Simmel define “sociação” como um agrupamento de indivíduos que pode se
dar de diversas formas a fim de satisfazerem seus interesses, sejam religiosos,
sensuais, profissionais ou qualquer outro. Estes interesses formam a base das
sociedades humanas.

“Estritamente falando nem fome, nem amor, nem trabalho, nem religiosidade, nem tecnologia,
nem as funções e resultados da inteligência são sociais. São fatores de sociação apenas
quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados em formas específicas de ser
com e para um outro – formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação”
(Simmel, 1983:166).

Embora esses conceitos tenham sido formulados entre 1900 e 1910


aproximadamente, nos parecem bastante atuais para falar das novas formas de
44
Denise Calls Up, EUA, 1995 - Direção: Hal Salwen

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sociabilidade. Como está baseada em impulsos ou em função de propósitos, essa


interação se dá através de motivações psicológicas. Sociabilidade é, portanto, “a forma
lúdica de sociação”. Desta forma, a internet serve além de instrumento de pesquisa,
comércio e transmissão e compartilhamento de arquivos, também como um meio de
sociabilidade e formação de grupos. Daí a proliferação de blogs, fotologs e
comunidades virtuais cujos objetivos não são apenas mostrar fotos ou conteúdos
individuais, mas sim receber um retorno, um comentário de quem acessou. Nota-se
então que há ainda uma necessidade do outro mesmo que não face-a-face.
Um exemplo bastante interessante dessas comunidades virtuais e que é considerada
a maior atualmente é o ORKUT. Na verdade, o ORKUT é um grande portal (uma cidade)
no qual um usuário pode encontrar pessoas conhecidas (seu simulacro; sua página
pessoal) e acrescentá-las à sua lista de amigos. É possível também fazer novos
amigos, além de participar de diversas comunidades definidas por temas específicos
nas quais se trocam informações sobre aquele determinado assunto. Como não há
contato físico, embora exista a possibilidade de se publicar uma fotografia na página
pessoal, o usuário deve se descrever com o máximo de detalhes de forma que a
aproximação com outros usuários se dê pela afinidade de interesses. Além disso, para
se participar dessa comunidade há a necessidade de ser convidado.
No caso o ORKUT é uma das tantas comunidades existentes no ambiente da www. E
é sempre importante ponderar que é apenas e somente uma manifestação tecnológica
reproduzida da estrutura real da escolha de amigos a partir sim das afinidades, apenas
fazendo uso da rede.
Os grupos são os mais diversos bem como o são os objetivos. E o que é mais
interessante: não há fronteiras. De qualquer parte do mundo é possível participar destes
grupos, caso não haja outro tipo de restrição. O que percebi, no entanto, em uma das
vezes que acessei o sistema do ORKUT e que me intrigou, foi ver as pessoas de uma
determinada comunidade marcarem mais um dos muitos encontros num local da
cidade, no caso São Paulo. Isso me fez pensar que ao contrário do que alguns teóricos
estejam escrevendo, há uma necessidade ou ao menos uma vontade das pessoas se
encontrarem fisicamente e, desta forma, a internet pode ser um instrumento que
potencialize o crescimento de um circulo de amizades. Outro exemplo dessa interação
são as lan houses – casas de jogos eletrônicos que têm reunido cada vez mais adeptos

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para disputas de jogos em rede. É bom lembrar, mais uma vez, que esses exemplos
também fazem parte da realidade brasileira.
O que pode ressaltar a sensação de afastamento entre os corpos é a maneira como
a comunicação se dá – na impessoalidade da escrita, anulando a expressão corporal.
Entretanto, o que vemos é a criação de uma linguagem própria desse meio para que
haja um resgate da emoção da comunicação que, a priori, é proporcionada pelo corpo.
São os emoticons – figuras e desenhos utilizados para demonstrar algum tipo de
expressão.
Ora, se mudam as representações simbólicas, muda-se também o corpo e a forma
de sociabilidade. O que se pode problematizar é que, numa conversa face-a-face, o
corpo “fala” de diversas formas, seja através dos gestos e mímicas, seja pela posição
ou deslocamentos que percorre ou ainda pela entonação ou variações da voz. Estas
variações são realizadas pelo indivíduo e, simultaneamente, refletem no seu interlocutor
que as devolve com outras variações. Algumas formas se tornam signos culturais como
por exemplo sinalizar com o polegar para cima indicando que está tudo bem. Esses
signos como mencionado acima variam de cultura para cultura.
As próprias expressões faciais não nos permitem, na maioria das vezes, esconder
certas emoções. Já num chat ou numa conversa on line não há essa reciprocidade, a
não ser pelos emoticons. Podemos então ser quem quisermos, embora no espaço físico
isto também se dê de uma certa forma.. Neste caso pode-se recorrer a inúmeras
identidades e personalidades sem que o outro, mediado pela interface, possa
reconhecer. Aqui há um duplo que se comunica. E desta forma, podemos até dizer que
há o desaparecimento do outro como referência de alteridade, mas não o
desaparecimento do corpo.
Encerro, então, com mais um trecho do texto de Serres que nos diz algo dessa
fluidez tão inerente à nós:

“Em resumo, o corpo não se reduz nem à fixidez nem à realidade: menos real do que virtual,
ele visa ao potencial, ou melhor, ele vive no modal. Longe de um estar lá, ele se movimenta;
não se desloca apenas sobre o trajeto daqui para acolá, mas forma-se, deforma-se,
transforma-se, estende-se, alonga-se, figura-se, desfigura-se, transfigura-se; polimorfo e
proteiforme, vocês não interromperão essas variações, a não ser que definam o corpo como
capaz” (Serres, 2004:138).

100
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

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REVERÊNCIAS E ANDRAJOS / REDES E


LIMINARIDADES
Fabiane Moraes Borges

Resumo
Texto discute performance em contextos radicais de drogadição, miséria e loucura, onde
resolvi depositar minha pesquisa e minha experiência. Traz à tona as questões
subjetivas e criativas possíveis de concatenar nessas realidades, aqui especificamente
no contexto dos moradores de rua acopladas à digressões teóricas e práticas sobre o
trabalho de Renato Cohen.

REVERÊNCIAS E ANDRAJOS / REDES E LIMINARIDADES


...
Por entre saturações odoríferas e paranóicas, enredos de tramas reais, acidentes
mnemônicos e signos factos-ficcionais, eu arrastava minha pesquisa trôpega e vadia,
que respondia às tentativas de qualquer estruturação desarrazoando nos lamaçais de
onde emergia.
Essas situações de arriscos e vulnerabilidades desafiavam-me a tentar criar planos
de gestação das coisas, maneiras de tornar essas experiências algo-de-inscrito-no-
socius e ao mesmo tempo alargar o socius até as dimensões demasiadas e além delas.
Era tempo, no entanto de recortes. Recortes e sobrevivências...
Essa gestação foi se delineando de modo mais apreensível a partir do meu
encontro/recorte com a performance e suas teorias ligadas à política, antropologia e
semiótica; sua genealogia porosa, multifacetada, ritualística, processual, estruturada
numa collage expandida, intrinsecamente comprometida com a manipulação e liberação
de códigos culturais foi o agenciamento necessário para a fruição das experiências.
Interessante a crítica semi-especializada em performance, quando através da
percepção do ato performático cria significações e sentidos inusitados.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Tais agenciamentos conduziam-me a nomadismos criativos em meio a variadas


matilhas de rua. Experimentações e travestimentos permeados por brincadeiras
sonoras, pinturas corpóreas, intervenções espaciais nas ruas com moradores de rua e
também atuações um pouco mais elaboradas como produção de pequenos eventos
autônomos e anárquicos em determinados locais quase-secretos, onde ajuntava
pessoas que manipulavam diferentes linguagens advindas dos campos da psicologia de
grupos, da arte contemporânea e da tecnologia digital. Precária reverência - Excêntricos
andrajos: exotismo hipersígnico em meio às instalações escatológicas, ou ao contrário
disso, ao contrário de qualquer coisa – na verdade esses acontecimentos teciam seus
próprios sentidos na medida em que se efetuavam.

Se por um lado eu cedia a um intransigente desejo de criar pequenos happenings


plurilinguísticos com os moradores de rua, trazendo para seus espaços uma aura
criativa e sofisticada de comunicação que implicava corpos, matérias e tecnologias
incomuns ao seu cotidiano, por outro lado eu desejava promover dentro dos meus
outros circuitos de convívio, modos de acessibilidades a condições existenciais de rua
com todas nuances e densidades que eu percebia.

Arranhando um resumo ousado eu diria que a vida-de-rua impelia-me a produzir


eventos de arte (conectivos-interventivos-públicos), que aconteciam como happenings-
rituais tanto nos mocós quanto nas galerias de arte e universidades, que se
caracterizavam como “uma pequena bagunça” em função da falta de ordenação dos
acontecimentos e abertura irrestrita ao acaso imponderável; mas também se
caracterizavam como rara possibilidade de ampliar modos de comunicabilidade,
amplificar realidades sócio-individuais-subjetivas, intensificar códigos e signos,
promover imersões de sentidos através de manuseio de tecnologias fossem elas
corpóreas, matéricas ou mediáticas. Tratava-se do não medido, daquilo que não se
inscreve enquanto instância nos códigos sócio/jurídicos, mas que de qualquer forma se
expressa. Aleatoriedades de rua desconhecidas inclusive dos seus próprios
protagonistas.

Reminicências: Esses portadores da cidade... Cidade-porta-portão convite-e-


proibição. Sem saída – Sem entrada. Um-entre-mundo-que-é-mundo. Entre a cidade

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murada, o fora protegido pelo IBAMA e as fazendas cercadas de arames e fios de


eletro-choque há o mundo habitado pelo moribundo. Que mundo é esse que o
moribundo habita e que gestos esse mundo promove?
A busca por esse “incomensurável” tornara-se o elemento mais importante na
proposição dos eventos: procurar nas fissuras do cotidiano e da linguagem suas
constelações inenarráveis. Poderiam as tecnologias performáticas e multimidiáticas
atravessar os véus endurecidos da falta, sobrepostos à experiência trágica do morador
de rua? Os véus culturalmente criados a partir de valores ascendentes e assépticos que
costumam reduzir a expressão vital do-que-vive-na-rua à pura incapacidade de
adaptação ao sistema econômico, à inabilidade de articular o discurso da linguagem
lógica e à patologia crônica seriam fatores impeditivos na busca de outras
variabilidades?
A essas questões somavam-se inquietações relativas às materialidades utilizadas
pelos inumeráveis “mulas-marmelas” ao produzirem suas transitórias moradias nos
espaços públicos... Esses materiais se transpostos para outros espaços aleatoriamente
escolhidos carregariam consigo algo-da-rua? Quero dizer, através das transposições
espaciais das lonas pretas, arames, caixas de papelão, cobertores cinzas, sacos-de-
cola, sacos-pretos-de-lixo - signos amplamente difundidos nas instâncias midiáticas e
imaginárias da população em geral - poder-se-ia acionar sensações e corporeidades
que se avizinhassem ontologicamente da rua? Devires-de-rua-matéricos, sistemas
gestuais, ruídos sonoros deslocados de ambientes impulsionando variações afetivas e
perceptivas da-e-sobre-a-rua... Talvez Alex Kazuo, o alfaiate45, compreenda isso quando
recolhe – bucólico - peças de vestuário abandonadas por moradores de rua e as
transforma em indumentárias da realeza.
Falando em inspiração secular, Diotima in Sócrates alucinando a lógica:

“Socrates: _ Que dizes, ó Diotima? É feio então o Amor, e mau.


E ela: _ Não vais te calar? Acaso pensas que o que não for belo,é forçoso ser feio?
_ Exatamente.
_ E também se não for sábio é ignorante? Ou não percebeste que existe algo entre
45
Alex Kazuo – alfaiate paulista que desenvolve pesquisa estética com roupas de moradores de rua. Atualmente tem coletado
roupas deixadas nas ruas por moradores de rua criando com elas algo que lembra vestidos de rainhas da idade média.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

sabedoria e ignorância?
_ Que é?
_ O opinar certo, mesmo sem poder dar razão, não sabes, dizia-me ela, que nem é
saber - pois o que é sem razão, como seria ciência? - nem é ignorância - pois o que
atinge o ser, como seria ignorância? - e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a
opinião certa, um intermediário entre entendimento e ignorância.
_ É verdade o que dizes, tornei-lhe.
_ Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a
ser mau. Assim também o Amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo,
nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia
ela, entre esses dois extremos” 46.

Cópula sígnica entre o tetrapodismo do morador de rua e a dança; DANÇA DAS


TREVAS de Hijikata. Buto-dança-de-morte47 - mais um dos efeitos da bomba lançada
sobre Hiroshima e Nagazaki! Dança que se torna ela própria explosão de corpos e
códigos. As imersões dos corpos vivos nos regimes espaço-temporais dos corpos em
putrefação iam aos poucos subsidiando novas corporeidades: insetos e larvas jogados
em linhas de ancestralidades... Hijikata e seu parceiro Kazuo Ono construíam a partir de
suas experimentações necrotéricas uma espécie de cartografia dos movimentos da
morte, que somadas às produções imagéticas, poéticas e sonoras configurava-se como
inovação na linguagem da dança48. O Buto entendia as ações das leis físicas sobre o
corpo morto e seus processos naturais de decomposição como modo de afirmação da
vida em seu sentido ampliado: replicação e continuidade - a vida jaz no movimento!

Reminiscências: Ecceidades avolumadas em meu imaginário andarilho:


corporeidades... materialidades... Imersibilidades... O tetrapodismo do homem despacho
insinuando danças de sombras e trevas; suspensões e tecnologias instaladas nas
fissuras ordinárias... Quase-danças-nos-portões. Portadores-de-ladrilhos. Ladrões.

46
Cfe. Platão. O Banquete. Coleção Os Pensadores. Ed. Abril Cultural . São Paulo. SP. 1983.
47
Ankoku butô – dança das trevas, criada em 1959 por Tatsumi Hijikata, em Tóquio, Japão. Cfe. Christine Greiner. Butô em
evolução. Ed. Escrituras. 1998. São Paulo. SP. P. 97 e Cfe. Christine Greiner. O teatro Nô e o Ocidente. Ed. Annablume Fapesp.
2000. P. 94-95.
48
Fukan-zu: uma espécie de mapa do buto. Cfe. Christine Greiner. O teatro Nô e o Ocidente. Ed. Annablume Fapesp. 2000. P. 94-
95.

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Tremulação de bandos humanóidicos descavernados... Intoleráveis vira-latas –


imemoráveis! Desistentes do progresso. Insistentes no inominável. Princípio e resto.
Eu estava testando essas transposições matéricas, corpóreas e imersivas
assimiladas junto aos moradores de rua em vários outros contextos da cidade. Os
movimentos existentes nos estados de putrefação que Hijikata tão bem compreendera
avizinhavam-se da minha busca. No meu caso não era dança - era quase dança.
Sombra de buto-de-rua tatuando gestos nos cotidianos murados. Eu chafurdava nessa
tepidez de lama-e-sombra arremedando corpos e cheiros, transladando plásticas. Não
se tratava de transformar pessoas da sociedade contribuinte em moradores de rua, mas
de abrir buracos no seu/meu umbigo ordinário. Era preciso repensar a rua! Reviver o
espaço e o tempo público! Ampliar os sentidos dessa vida-de-rua tão facilmente
associada à morte, como se esse estado de existência fosse o ponto final da
experiência. Não é possível que se note o movimento que essa “morte” produz? Os
movimentos que Hijikata putrefava-em-si não remexia nada no olho que o assistia? O
que se dá entre a calçada e o alquebrado? O que vibra no tetrapodismo calçadificado?
“Depressa a cabeça no saco onde com o perdão da palavra tenho todo o sofrimento de
todos os tempos não rogo uma praga por isso e uivos de gargalhadas em cada célula
as latas tinem como castanholas e debaixo de mim convulsionada a lama gorgoleja
peido e mijo num só fôlego”49.
Gestos e materialidades tatuados nos espaços públicos da cidade. O fato de
residirem nas calçadas e praças, criarem inumeráveis estéticas matéricas para proteção
corpórea, furarem o pacto social relativo a trabalho + moradia + salário = sobrevivência,
se drogarem incisivamente, parecia-me algo que ia muito além da cansativa “estética da
miséria” ou a crítica a essa estética; parecia mais um aceno... Um sacrifício... Um resto
explícito... Precário... Um movimento ínfimo e infinito. Gesto. Gestos. Gestos...
Estava ficando cada vez mais difícil criar esses eventos transconectivos, pois os
elementos iam crescendo em quantidade e intensidade. Já não podia pensar na body
modification, por exemplo, só como uma analogia copular-signica ao corpo moribundo
entregue aos atravessamentos matéricos da rua; tão pouco conseguia pensar o artista
ou o manipulador de programas eletrônicos como expositor de um aparato-obra em
busca de interlocução com novos públicos. Queria juntá-los-nos todos num

49
Cfe. Samuel Beckett. como é. Ed. Iluminuras LTDa. São Paulo. SP. 2003. P.46

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

espaço/tempo imersivo-experimental a fim de deflagrar processos.


Mistura heterogênea de condições existenciais cronificadas: moradores de rua,
virtuoses musicais, modificadores corporais, programadores de softwares, instaladores
transmídicos, interventores públicos; todos se encontrando juntos nuns experimentos
coletivos, como se fossem um aglomeradinho de traços do tecido/socius em
amassadura, que seria abarrotado, cortado, picado, espichado, encolhido, ampliado; de
modo que ao socius caberia uma remexedura tramática para reincorporar seu tecido-
partido, re-acoplado agora como tecido-prótese. Uma pequena taz (zona autônoma
temporária), um micro carnaval, um ritualzinho de celebração, uma ação de
interferência, um happening, uma performance em passagem – deflagrações de sinais
fracos?

Pensando performances e eventos conectivos transfaceados:


Performance: vírus artístico deformativo congênito transmitido através de
promiscuidades midiáticas-geracionais, de linhagem ancestro-futurista-dadaísta-
surrealista-underground-avantgard-contracultura-beat-hippie-wave-punk-raves-festivais-
e-experimentalismos-seculares. Performance-corta-e-cola! Cut up de modas e ataduras.
Drogadição impudica de roqueiros plásticos. Collages e ontologias.
Renato Cohen era assim como encenador: ousado-desordenado. Revidava sua
irritação com a burocracia caotizando as coisas da arte. Juntava grupos de diferentes
especializações como cantores líricos e web designers, performers e programadores.
Misturava músicos, loucos e terapeutas ocupacionais (me refiro a companhia teatral
Ueinzz50, composta por usuários de serviços de saúde mental, coordenada por Peter Pál
Pelbart e dirigida por Sérgio Pena). Também flertava com a morte de um jeito medroso e
profético: um aviso prévio de sua morte prévia.
O conheci em 2001 num curso em Porto Alegre na Terreira da Tribo, uma companhia
de teatro que existe desde os anos 70 reconhecida pela sua radicalidade devido o viés
arte/vida, teatro da crueldade e influências do teatro físico. Foi levado por Julio York, um
dos mestres da intensificação do corpo perceptivo que na época trabalhava com Artaud
nessa companhia. Renato distribuiu seus textos dadaístas pelo grupo e impregnou o
salão de ruídos loucos, vozes desconectadas, barulhinhos e estalidos. Brincávamos de

50
http://ueinzz.sites.uol.com.br

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criar sentidos a todos e quaisquer atos - quaisquer sentidos. Depois, as provocações


polifônicas improvisadas. Sem representações, só conexões de intensidades estéticas.
O grupo falando em línguas estranhas e testando contatos, quase-transe. Pentecostes!
Quando cheguei em São Paulo o procurei. Estava atrás de sua esquisitice tão-lúcida.
Li seus livros e artigos. Assisti suas aulas na pós-graduação da Semiótica da Puc,
também seus espetáculos espalhafatosos e seus ensaios com a turma-usuária. Fui
morar com Daniel Sêda, um dos seus assíduos colaboradores desde o tempo de
graduação em artes plásticas na Unicamp. Aos poucos fui conhecendo grupos com
quem Renato trabalhava, artistas com quem contava para sua empreitada
artística/conceitual: Guto Lacaz, Otavio Donasci, Samira Brandão, Rogério Borovick,
Gisele Freyberger, Felipe Spíndola, Mirco Zanini, Lucio Agra, Maura Baiocchi, entre
muitos outros. Fui assim pelas beiradas compreendendo certas composições do mundo
criativo desse encantador encenador brasileiro.
No prefácio do primeiro livro de Renato Cohen - Performance como Linguagem51 -
Arthur Matuck fala da grande importância da pesquisa do autor no cenário da arte
brasileira, que segundo ele serviu tanto para aprofundar estética e conceitualmente o
gênero artístico da Performance, quanto para incentivar a “inclusão de performances
em eventos do circuito cultural”, pois apesar dessa linguagem existir enquanto prática
artística desde os anos 70, no Brasil em plenos anos 90 e 2000 ela ainda não tinha
conquistado um sólido território de inscrição nas instituições de arte e no imaginário
social. A partir dos anos 70 inúmeros artistas brasileiros oriundos das artes plásticas e
do teatro dedicaram-se, quase que exclusivamente a essa forma de atuação, mas
devido a ampla abertura proposta por essa nova linguagem, somada ao fato de ter sido
construída na esteira das artes de vanguarda européia e americana e com a grande
valorização da mídia brasileira aos novos estilos produzidos no cenário internacional,
muitos trabalhos foram feitos de modo a copiar mal e parcamente as criações
estrangeiras, refletindo segundo Matuck, “um típico processo de colonização cultural”52;
desse modo, a pesquisa de Renato Cohen teria representado um esforço de mudar
essa situação.
51
Cfe. Renato Cohen. Performance como Linguagem. Prefácio. Ed. Perspectiva.S.A. São Paulo. SP. 2002
52
“No Brasil, no entanto, a absorção da performance refletiu um típico processo de colonização cultural, no qual os mais recentes
avanços da cultura americana ou européia são excessivamente valorizados pela mídia e assumidos de maneira rápida e
superficial, gerando eventos, obras e publicações equivocadas, e um público despreparado”. Cfe. Renato Cohen. Performance
como Linguagem. Prefácio. Ed. Perspectiva.S.A. São Paulo. SP. 2002

110
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Logo no início desse livro Renato fala das motivações que o levaram a escolha desse
tema - performance - ressaltando dois pontos: um, a identificação com a cultura
underground (avisando que já não equivale ao que anteriormente conhecia-se como
cultura subterrânea), e o outro, a busca da cena teatral como expressão, mais do que
representação: expressão da vida mesma.
Reclama de um vácuo existente em nossas produções que investe muito pouco no
imagético, no não-verbal, em construções mais irracionais; salienta o fato de que livros
como o Teatro e o seu Duplo de Antonin Artaud e escritos beats só foram traduzidos no
Brasil vinte anos depois de serem publicados. Segundo ele essa carência promoveu um
efeito exagerado nas produções locais, de modo a desgastar a performance
rapidamente diante do público, em função de grandes quantidades de espetáculos
oportunistas e de mau gosto. Qualquer coisa era performance. Para Renato essa orgia
criativa e retardatária era happening e não performance.
Quase no fim do livro ele introduz uma prancha comparativa entre a linguagem do
Happening e da Performance onde traça diferenças entre as duas linguagens, apesar
de considerá-las como duas versões de um mesmo movimento. As diferenças básicas
residiriam no fato do Happening ser uma linguagem estabelecida nos anos 60 e ter
como influências teóricas e práticas o universo da contracultura e do movimento hippie;
a Performance por sua vez vai se configurar como linguagem nos anos 70, sofrendo de
um zeitgeist punk-niilista que nutria um descrédito crescente para com as ideologias
libertárias e alternativas. Nelson Aguilar endossa esse ponto de vista dizendo que o
happening era uma situação social criada para manifestar contestação e esse tipo de
arte só se justificava pelas discussões políticas que se produziam nos anos 60, pois nos
anos 70 elas não importavam mais. Happening para ele era a arte de criar situações e
ambientes de descontextualização onde as pessoas vivenciavam outras possibilidades
de vida que soava como uma provocação à vida política e social da época, enquanto
performance “nada mais é que uma linguagem tal como a pintura, tal como a música
onde o artista desenvolve a sua idéia através de toda esta vibração energética que ele
põe53”. Para Cohen o que vai diferenciar efetivamente a atuação de um e outro é a
preocupação individualista, estética e conceitual que a Performance retoma, abrindo

53
Arte em Revista. Ano 6. nº8. Independentes. Ed. CEAC. São Paulo. SP. 1984. P.40

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mão de um certo experimentalismo espontaneísta que o happening cultiva54. O que as


manteria conectadas seria a estrutura de ambas as linguagens, que para ambos
pesquisadores é a collage.
A Collage atravessa o século XX em constante processo de variação, propagando-se,
estendendo-se, entrecruzando forças sensório-matéricas, alternando-se em diferentes
composições, esgarçando contornos obsoletos, justapondo linguagens, acumulando
vizinhanças e estratos para logo desdobrar-se em novas excentricidades. A Collage foi o
princípio ativo de obras como as Mers-Baus de Kurt Schwitters, concertos-
intermidiáticos de John Cage, hipertextualidades de William Burroughs, deslocamentos
ambientais de Arthur Barrio e Kaprow, aktions de Joseph Beuys e Fluxus, edições
mixadas dos vídeos-artes, imersões multimídicas, sons experimentais eletrônicos em
cena, cut ups do rosto de Orlan, hologramas interativos, intracorporeidades virtualizadas
e outras.
Independentemente dos consensos históricos relativos aos envolvimentos sociais e
políticos propostos pelo Happening dos anos 60 e sua influência na construção da
linguagem da performance arte nos 70, cujo caráter era mais estético e especular, para
mim o que Renato Cohen propunha abarcava isso tudo e muito mais: um movimento
sócio-estético: collage-contemporânea.
Ao pensar a performance como collage de matérias, tessituras, corpos, atualidades e
virtualidades culturais, as produções artísticas de caráter mais espetacular se tornam
só-mais-uma das infinitas composições de expressibilidade55. Ao meu ver a
“Performance” proposta por Renato emerge dessas profusas conectagens matéricas
54
Jorge Glusberg diz que a razão dessa distinção mantida por críticos e performers existente entre happening e performance é
de fácil compreensão se tivermos em mente as seguintes oposições: “a) desconstrução em contraste com a reconstrução; b)
ausência de reflexo especular em contraste com a utilização do reflexo especular, c) ausência de envolvimento massivo em
contraste com envolvimento massivo; d) confusão em contraste com discriminação”. Cfe. Jorge Glusberg. A Arte da
Performance. Ed. Perspectiva. 2002.
55
Para muitos teóricos como Victor Turner, Richard Schechner, Diana Taylor a essência da linguagem da performance é pensada
como fenômeno de expressibilidade encontrado nas mais variadas formas de dramatizações coletivas: “o estudo da
performance tem sido definido por vários autores como uma combinação de antropologia, artes, e estudos culturais no exame
de um determinado conjunto de atos sociais, tais como rituais, festivais, teatro, dança, esportes e outros eventos, permitindo a
discussão e o entendimento intercultural. Assim, no estudo da performance, os valores e os objetivos da cultura são vistos e
percebidos em ação, oferecendo a possibilidade de questionamentos críticos na compreensão de práticas sociais, como os
aspectos da vida cotidiana e até mesmo a complexa rede de movimento social da pós-modernidade. Portanto, podemos
concluir que a performance é um modo de comportamento, uma forma de agir e de pensar sobre as próprias atividades
humanas”. Cfe. Claudio Guilarduci.Revista: O percevejo; Estudos da Performance.Revista de Teatro, Crítica e Estética. Ano 11.
n°12. 2003. ISSN 0104-7671. Departamento de Teoria do Teatro. Programa de Pós-graduação em Teatro. UNIRIO .
Performance nesse sentido adquire um caráter antropológico e se revela enquanto manifestação e elocubração do socius. O
próprio Cohen ao tentar defini-la fala em: arte de fronteira, arte não intencional, intervenção e blefe”. Cfe. Renato Cohen.
Performance como Linguagem. Prefácio. Ed. Perspectiva.S.A. São Paulo. SP. 2002. P. 49

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

imerso/subjetivas - Collage-expandida – libertinagem ética-estética. Putaria entre


corpos, emissores, receptores e tecnologia.
A impressão que tive em alguns espetáculos de Cohen é que eu estava habitando
uma zona avizinhada do que eu desejava que fosse a própria vida: um tempo-espaço
de saúde coletiva e invenção onde a compreensão das coisas ziguezagueiam por entre
máquinas, corpos e barulhos, sem impedimentos a imprescindíveis solidões e pequenas
doses de violência. Esses eventos não me reportavam à noção de hiperbólicos-
ecletismos-massificados-contemporâneos, mas a uma desordem pungente, uma
ambientação imersiva, um extraordinário singular.
O público carne-osso, no entanto ainda ocupava o lugar daquele-que-assiste-a-obra.
Evidentemente que era impelido a movimentar-se de um lado a outro, assistir trabalhos
sob vários ângulos por causa das propostas de deslocamentos dos corpos e das
instalações espaciais, era surpreendido por ataques artísticos-súbitos de grupos jovens
com pesquisas pouco conhecidas, mas a grosso modo ele estava lá: - o público; para
quem no final das contas o produto-obra era apresentado.

Com seus performers e colaboradores Cohen ia mais fundo do que ia com seu
público. Saiam juntos em busca de viver experiências coletivas nos contextos mais
diversos, tanto no campo quanto na cidade a partir dos rituais próprios a cada espaço.
Essas vivências serviam como disparadores de processos criativos e investigativos: -
contagem de sonhos, experiências xamânicas, usos de plantas de poder, exercícios de
concentração e técnicas de respiração - ; o universo subjetivo de cada um servia como
material fundamental para construção da obra. Ao se referir ao projeto teatral do grupo
Orlando Furioso onde dirigiu a peça: Sturm Und Drang / Tempestade e ímpeto (1990-
1993), Cohen fala que a criação da cena teve como sustentação noções como arte/vida,
arte não-naturalista e cena sem representação que valoriza o cotidiano com sua face de
repetição e imprevisibilidade. Nessa peça foi “(...) desenvolvida uma encenação sem
submissão à palavra e à narrativa aristotélica utilizando toda fonte de criação –
imagens, memórias, frases, movimentos, (...) uma relação viva com o processo criativo
e a exacerbação do caminho sensível, intuitivo, sensório, próprio do domínio das
artes”56.
Eu sentia um pouco de falta da participação efetiva do público nos espetáculos de
56
Cfe. Renato /Cohen. Work in Progress na cena contemporânea. Ed. Perspectiva. S.S. São Paulo. SP. 1998. P. 33

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Renato, e cobrava em baixo tom, uma dose a mais de crueldade57. Criava alternativas
cômicas como quando devaneava com Lygia Clark enredando seu público em redes,
linhas e babas; metendo-os em túneis plásticos claustrofóbicos quase os asfixiando. Por
traz de sua sublime arte terapêutica e seus cuidados quase-zen eu a imaginava
impondo cruéis desafios ao seu público trazendo-lhe para experimentos radicais de
solitude e náusea, depois lhe soprando os ouvidos com delicadeza dando-lhe
barulhinhos de conchas tropicais. Ela os fazia parir e androgenizar; perder o sexo e a
identidade, depois comungava-os em canibalismos de frutas-orgãos. Comensalismos
tribais. Os objetos eram em suas mãos suportes-dispositivos para alteração perceptiva.
Alteração dolorida suponho; sempre é. Esse era seu concomitante espetáculo e revide.
Revide contra a paralisia dos corpos e percepções. Ela foi a fundo na mexedura
estrutural das afetividades do “público”. Dizia Marquesa-Lygia-de-Sade que estava
acostumada a enfrentar crises, surtos e desmaios em seus settings psicanártísticos 58.
Enquanto isso o bobo-Oiticica-da-corte baixava a favela no museu, e seu público tinha
que tirar os sapatos para pisar nas britas de sua favela santa. Precisava levar o público
a transes olfáticos e intensidades suprasensoriais, dar uma tropicaliada em seus
sentidos. Parangoleava-os trazendo para a galeria seus comparsas de favela -
passistas da Mangueira que muitas vezes não entrariam na galeria - não possuíam
gravata nem convite -, ninguém se convencia que a “ocupação da favela no MAM na
exposição Opinião 65”, por exemplo, era a própria arte; o público atônito foi obrigado a
assistir a cena da exclusão-obra59. Ahahahahahaha!
No início do seu trabalho Renato operava com dois topos estruturais para pensar a
relação emissor/receptor ou performance/público: um seria o modelo estético e o outro
mítico. O estético seria o teatro convencional que funcionaria de modo a delimitar
estrategicamente os lugares onde o público e os apresentadores se fixariam. Ele aponta
variações dessas espacialidades arquitetônicas construídas para apresentações teatrais
no decorrer da história do teatro: coliseu, teatro elisabetano, teatro de arena, teatros-
edifício, modelos que diferenciavam-se entre si mas que eram solidários no
confinamento espetacular da obra. No teatro mítico essa separação entre público e obra
57
“O que é crueldade? Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável,
no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor, fora de cuja necessidade ilutável a vida não
consegue se manter.” Cfe, Antonin Artaud. O teatro e seu duplo. Ed.Martins Fontes. Pág 118-119
58
Ref. Ricardo Nascimento Fabrini. O Espaço de Lígia Clark. Ed. ATLAS S.A. – 1994.
59
Ref. Waly Salomão. Hélio Oiticica. Qual é o Parangolé e outros escritos. Ed. Rocco LTDA. Rio de Janeiro. RJ. 2003

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

não se daria de forma tão distinguível porque o espectador é essencialmente parte da


obra, ele deixa de ser público para ser participante do acontecimento ritualístico: cultos
xamânicos, dionisíacos, ritos pentecostais, epifanias, orgias canibalísticas, sexuais, etc.
Em seu segundo livro no capítulo denominado “Do Estranho ao Numinoso”, Renato
Cohen aprofunda a discussão sobre o “teatro mítico” afirmando seu sentido
extraordinário e irruptivo que tem capacidade de atualizar e manifestar potências não
utilizadas no cotidiano; cotidiano promotor do definhamento de afetos, sensações e
percepções, ordinariedade que anestesia o contato direto da vida com a experiência de
estar vivo; nesse sentido o papel do performer seria o de atualizar potências do corpo
coletivo, tarefa comumente executada somente pelas religiões:

“A cena do numinoso remete à busca da epifania, da cifra, do mistério. (...) epifania enquanto
manifestação de essencialidade, liminiscência, “alma das coisas”, incorporando desde alusões
platônicas clássicas quanto a imanência romântica, a weltanschauung nietzschiana, o “belo
horrendo” de Lautreámont, representações grotescas de Bosch, as fiscalizações do butô. (...)
apesar do tema da epifania ter um viés platônico, essa questão é essencialmente moderna:
desde o romantismo, com a busca do encantamento e do sagrado imanente, mais
remotamente, no barroco, com a multifacetação e o gongorismo teísta, até as vanguardas
históricas (expressionismo, cubismo, dadá, surrealismo) que reiteram essa busca (...) seja por
via paródica, pela ritualização, por mímese ou pelas utopias surrealistas. (...) Ao tratarmos de
temas do mythos, do estranho, do numinoso – estados exacerbados de presença, topos do
insólito, do singular, do novo, do perfeito, do monstruoso – distintos do ordinário cotidiano, fica
clara a pertinência da teatralidade enquanto expressão dessas manifestações (... ) teatralidade
enquanto espaço do trágico da vida (fugacidade e transitoriedade). (...) A cena mítica,
momento de permeação ou de re-apresentação do fenômeno primeiro, investe-se pelo seu
caráter direto com a experiência, plena de visibilidade e sensação, de uma potência superior
às narrativas e relatos. (...) A presença, a permeação, a iniciação, a narrativa imagética
potencializam o rito enquanto espaço de manifestação do mítico: percurso paralelo ao da cena
teatral, oriunda de práticas dionisíacas e rituais dos mistérios de elêusis (...) é possível apontar
alguns dados para instauração do campo mítico: inteireza, adensamento, exacerbação,
ampliação da presença – colocação do potencial psicofísico inteiramente alinhado com o
trabalho presente. (...) Através do aumento da presença diminuem as demandas energéticas
para atender as vicissitudes do cotidiano e o participante passa a operar mais pleno, tendo
acesso, principalmente, à sua mente subliminar, não objetiva.” 60.

60
Cfe. Renato Cohen. Work in Progress na Cena Contemporânea. Ed. Perspectiva. S.A 1998. Ps. 59 em diante.

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Sua atuação como performer, encenador e produtor cultural foi aos poucos
radicalizando processos “míticos”, de modo que em seus últimos trabalhos mais
intermediáticos essa divisão público-obra foi tornando-se cada vez mais amena, pois
tratava-se de eventos artísticos de caráter conectivo e virtualizado onde uma nova gama
de conteúdos e conceitos vinham à tona promovendo uma variação estrutural nos dois
topos de cena, como aconteceu ou quase aconteceu no evento Constelação realizado
no Sesc São Paulo em 2002 cuja concepção e curadoria foi feito pelo próprio Cohen.
Nesse evento ele criou uma rede transmidiática que linkava em tempo real quatro
centros de irradiação: Sesc-São Paulo, Caiia Center-UK, Ohio Media Center-Columbus,
USA e Centro de Mídia-UNB – durante 12 horas de sequências de performances e
interescrituras, com possibilidade de intervenção de outros grupos autônomos
conectados virtualmente ou em presença real. Nesse evento “pós-teatral” ele tentou
construir uma cena expandida onde os modelos emissor/receptor desafiavam-se
transpassantes:

“A criação de novas arenas de representação com a entrada , onipresente, do duplo virtual


das redes telemáticas (WEB-Internet) , amplifica o espectro da performação e da investigação
cênica com novas circuitações, navegação de presenças e consciências na rede e criação de
interiscrituras e textos colaborativos. Com uma imersão em novos paradigmas de simulação e
conectividade, em detrimento da representação, a nova cena das redes, dos lofts, dos
espaços conectados, desconstrói os axiomas da linguagem teatro: atuante, texto, público – ao
vivo, num único espaço, instaurando o campo do Pós-Teatro. (...) A relação axiomática da
cena : corpo-texto-audiência, enquanto rito, totalização, implicando interações ao vivo é
deslocada para eventos intermediáticos onde a telepresença (on line) espacializa a recepção.
O suporte redimensiona a presença, o texto alça-se a hipertexto, a audiência alcança a
dimensão da globalidade. Gera-se o real mediatizado, elevado ao paroxismo pelas novas
tecnologias onde suportes telemáticos, redes de ambientes WEB (Internet), CD- Rom e
hologramias que simulam outras relações de presença, imagem, virtualidade. (...) A
contaminação do teatro com as artes visuais, cinéticas e eletrônicas dá um novo salto, com a
emergência das redes telemáticas, que permeiam uma comunicação em tempo real, e uma
extensão do corpo e da presença (o corpo extenso) —que é eminentemente performatizada. A
partir dos anos 90, os novos mídia tecnológicos (web-art, artetelemática, net-art) com novos
recursos de mediação, virtualização e amplificação de presença passam a impor outras
direções às experiências radicais da Performance e do Teatro: Johannes Birringer61 nomeia

61
Em BIRRINGER, Johannes . “Contemporary Performance/Technology”. Theatre Journal 51, 361-381, 1999.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

um novo espaço monádico de performação—a sala tecnológica, recebendo imputs em tempo


real—em contraposição à sala instalação , remetida às Artes Plásticas. (...) Esses novos
espaços de performação, intensamente alimentados por dados -- em tempo real -- colocam os
performers e a audiência em espaços simulados de improviso e presentificação. (...) Essa
nova cena está ancorada em alternâncias de fluxos sêmicos e de suportes, instalando o
hipersigno teatral, da mutação, da desterritorialização, da pulsação do híbrido. O
contemporâneo contempla o múltiplo, a fusão, a diluição de gêneros: trágico, lírico, épico,
dramático; epifania, crueldade e paródia convivem na mesma cena, consubstanciando uma
escritura não seqüencial, corporificando o paradigma da descentralização , formulado por
Derrida, para quem o centro é uma função não uma entidade de realidade. Gesta-se nessa
tessitura hipertextual, a grande “memória interativa”, rizomática, em recursos de proliferação,
mediação e subjetivação 62.”

Eu estava cada vez mais seduzida por esses eventos surubáticos estético-mítico-
tecnológicos e tentava concatená-los com aquilo que seria o leitmotiv do meu trabalho:
a experiência do espaço e tempo público da cidade expandida a partir do seu extremo
miserável (moração de rua radicalizada). Não era só de epifania e mediação que se
tratava, mas do agigantamento semiótico-perceptivo-sensorial da radical nudez-
linguagem que a miséria promove diante da avassaladora sistematização da vida. Era
quase uma militância política que reivindicava a inclusão-no-socius de gestos e
narrativas desprovidas de organização burocrática e institucionalizadas. Na verdade era
quase uma contra-militância: traçar contornos visíveis na experiência radical miserável a
partir da própria miséria, alargando a miséria através de collages de signos de vida-de-
rua, criações de happenings, técnicas de performance, ritos transmidiáticos criados para
públicos-obra imersos em ambientes reais e virtualizados. As novas tecnologias
legitimando a formação de novas inteligibilidades63”. Estranhas inteligibilidades
legitimando novas tecnologias. Quiçá!

62
Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediações na Cena Contemporânea Brasileira/ texto guia do Evento Constelação – Mostra SESC
Ares e Pensares – 2002. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc
63
“(...) o aporte das novas tecnologias que amplificam os mecanismos de mediação, virtualização e refratação da percepção e,
captação de códigos sensíveis que demarcam tempos, espaços, corporeidades vão legitimar uma série de experimentos,
eventos – da ordem de uma cultura das bordas – que passam a se inscrever no campo da cultura. A questão que se propõe na
arte da performance é de uma mediação e intervenção nos planos da realidade, superando os limites do campo do real e da
ficcionalidade, entre sujeito e receptor da obra, dando complexidade e polissemia a produção do evento, que passa a ser
culturalizado” Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediações na Cena Contemporânea Brasileira/ texto guia do Evento Constelação –
Mostra SESC Ares e Pensares – 2002.
http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Reminiscências... Mecanismos empregados na dilatação de gestos vibráticos da


miséria radicalizada. Transpassagem de circuitos para inovação de sentidos no sócius e
seu alargamento. As misturas das artes e tecnologias digitais e performáticas mediando
extremos de sobrevivencialismos em estados de exceção social subsidiariam novas
formas de inteligibilidade para além do doutrinamento e assepsia geralmente proposta
pelos projetos sociais? Corpo e algumas matérias. Corpo cansado, que não agüenta
mais, como diz David Lapoujade. Corpo-Instalação largado no meio dos caminhos.
Descaminhados. Gestos em riscos mendicantes colocando-nos em situação de arriscos
e vulnerabilidades; quase mudos, imundos. Instalações transmídicas nos albergues em
conexão direta com albergues de várias partes do mundo. Os albergados sem teto de
rua do mundo em fomento multimídico-artístico-performático criando estranhíssimas
redes. Novos territórios miseráveis conectados em redes telemáticas. Mini-cubos 64
alojados em espaços/tempos comuns promovendo abundantes interlocuções de rua.
Interfaces-transfaces de público tornado obra. “Efeitos potencializadores da intimidade a
65
partir das tecnologias de comunicação móvel (...)” . “Instaura-se o topos da cena
expandida: a cena das vertigens, das simultaneidades, dos paradoxos na avolumação
66
do uso do suporte e da mediação nas intervenções com o real” . Morador de rua em
mim. Meu gesto de rua no morador de rua. Eu-ele-transfaces... O distante entre nós.
Sobravam tentativas e experimentações submidiáticas.

64
Trata-se de uma caixa audiovisual de 7m X 7m X 7m que foi instalada, alternadamente, em três pontos da cidade de São
Paulo. Nas cinco faces externas do cubo, foram projetadas imagens, vídeos, filmes, interações eletrônicas com música e outros
trabalhos.É uma idéia pós-moderna por excelência, uma vez que lida com as principais questões das artes no momento: a
mistura de linguagens, a relação com a cidade, a participação dos públicos, o uso de suportes alternativos. Os coletivos, grupos
de artistas e simpatizantes em torno de um projeto cultural, também são uma invenção contemporânea que questiona a autoria
e a autenticidade das obras. Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/panorama/cubo/cubo.asp
65
Cfe. Lucas Bambozzi. http://www.cubobranco.hpg.ig.com.br/texto_intimatetech.htm e Cfe. Lucas Bambozzi.
http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum/viewtopic.php?t=89&sid=e89366b26cc8e8133629f2b6e676c1bb : “Diante de
novos sistemas de mediação envolvendo tecnologias com penetração em vários ambientes e camadas sociais, torna-se
pertinente falar de práticas artísticas e culturais abrangentes, que se deixem afetar pelo contexto em sua diversidade de
nuances. (...) criação de mecanismos por parte de determinados projetos que produzem conexões entre artista, público e a
suposta responsabilidade de criação de espaços compartilháveis (vida pública), através do que pode ser chamado de interfaces
sociais baseadas na realidade (reality-based-interfaces). Na medida em que tornam a mediação transparente, minimamente
permeável, alguns trabalhos que emergem no cenário das novas mídias nos sugerem um sentido expandido para a idéia de
‘interfaces’, como sistemas viabilizadores de comunicação, experiências de potencialização do pensamento crítico e do uso de
dispositivos de forma a sugerir enfrentamentos diante de novas formas de alienação que surgem embebidas nessas
tecnologias. Seriam essas as faces e desafios de um ativismo atualizado às redes móveis, baseadas em sistemas locativos e
imersos na trama da cidade?”
66
Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediações na Cena Contemporânea Brasileira/ texto guia do Evento Constelação – Mostra SESC
Ares e Pensares – 2002. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc

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Tentativas e Experimentações Submidiáticas

VIVER E MORRER NA CIDADE DE SÃO PAULO: O MASSACRE NO CENTRO67

Evento/manifesto68

Entre os dias 19 e 22 de agosto de 2004, vários moradores de rua do centro


de São Paulo foram atacados violentamente enquanto dormiam. Os
agressores tinham, em todos os ataques, a clara intenção de assassinar
cada um dos homens e mulheres atingidos num total de 15. Sete desses
moradores de rua morreram e oito ficaram feridos. Por iniciativa e apoio de
psicanalistas e psicólogos de São Paulo e Porto Alegre, juntamente com
organizações governamentais e não governamentais, estamos organizando
um evento/manifesto que tem como objetivo grifar, assinalar e repudiar todas
as práticas de extermínio que ainda perduram em nossa cidade e em nosso
país. É preciso, urgentemente reconhecer esses mortos, homens e
mulheres morando na rua, que foram enterrados como números e,
coletivamente, realizar seu luto para que sua memória perdure, entre nós,
como exemplo do intolerável 69.
67
Nome do evento realizado em 26-11-2004 na Câmara dos Vereadores de São Paulo, por ocasião dos assassinatos de
moradores de rua na região central de São Paulo.Durante o evento estava exposta essa faixa com os nomes dos moradores de
rua assassinados e os números do IML(Instituto Médico Legal) para os cadáveres não reconhecidos.
68
Apresentação e convite para participar do evento. http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/11/295479.shtml
69
A parte do texto de apresentação do encontro escrito pelo psicanalista Paulo Endo. Participações na mesa: - Paulo Endo
(Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP) - Coordenador da mesa. - Alderon Pereira da Costa (Rede Rua-OCAS
- SP) - Edson Luiz André de Sousa (PPG-Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
(UFRGS)/Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA)-Frei Lúcio (Cheiro de Capim) -Hélio Bicudo (Comissão Municipal
de Direitos Humanos - SP) - Irmã Alberta ( Movimento Sem Terra (MST)-Comunas da Terra) - Ítalo Cardoso (Comissão de
Direitos Humanos da Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo) -Janaína Bechler (Alice –Agência Livre para Infância,
Cidadania e Educação/Jornal Boca de Rua – Porto Alegre) - Jorge Broide (Núcleo Psicanálise e Sociedade do PPG Psicologia
Social da PUC/SP)-José Arbex Junior (Revista Caros Amigos) - Lucila Pizani Gonçalves (Comissão de Direitos Humanos e
Cidadania da Câmara Municipal de São Paulo)-Maria Auxiliadora Arantes (Depto de Psicanálise do Sedes Sapientiae) -Maria
Helena de Souza Patto (Instituto de Psicologia da USP) -Mariah Leick (Comunas Urbanas)-Miriam Debieux Rosa (Laboratório
Psicanálise e SociedadeUSP/PUC) -Rose Santa Rosa (Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão – Ministério Público
Federal). APOIOS: - Associação Brasileira de Ongs (ABONG)-Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) - Associação
Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental -CDH (Centro de Direitos Humanos) -Centro de Referência às
Vítimas da Violência (CNRVV) -Comissão Municipal de Direitos Humanos – SP -Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da

119
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

Este evento de caráter conectivo e interventor foi criado com a intenção de assinalar
os assassinatos e fortalecer/ampliar as redes, entidades e movimentos que atuavam
junto aos moradores de rua da cidade de São Paulo. Sua primeira parte foi realizada na
câmara dos vereadores SP, com a participação de inúmeros apoiadores das mais
variadas vertentes como os sem terra, sem teto, direitos humanos, tortura nunca mais,
órgãos governamentais e não governamentais, representantes de organizações de
moradores de rua.
Nessa manhã de sexta feira a câmara se tornou um espaço de debates, proposições
e elaboração de um baixo assinado que exigia da justiça e dos órgãos públicos a
efetivação do processo jurídico. Esse baixo assinado foi levado à promotoria pública e
ao ministério da justiça e ao que tudo indica resultou na retomada das investigações.
Um momento muito especial desse encontro foi a participação do jornal Boca de Rua
composto por moradores de rua de Porto Alegre. Janaina Bechler - psicóloga – e o
jovem morador de rua - José Nedir Malta Ramires (Ceco) - apresentaram o vídeo carta
de Porto Alegre que ela organizou junto com os participantes do jornal. Eles realizaram
o vídeo desde a roteirização, filmagem até a edição. O argumento consensualmente
escolhido para o vídeo foi a apresentação da cidade de Porto Alegre aos moradores de
rua de São Paulo. De-morador-de-rua-para-morador-de-rua. As filmagens foram feitas
em diferentes locais da cidade de acordo com os afetos que os espaços despertavam
nos seus realizadores. Esse moço-de-rua-dos-pampas (Ceco) veio diretamente da
praça onde morava em Porto Alegre para exibir seu primeiro filme em São Paulo,
quando voltou para Porto Alegre foi pra de baixo de um viaduto.
Os convidados levantavam questões relativas ao assassinato, diziam das
descobertas das investigações e das propostas de cada organização; em meio a isso
Janaína surpreendeu a sala com inesperada emissão de um grito tenebroso e caiu no
chão num frenesi corpóreo que lembrava Artaud simulando a contaminação da peste.
Ela teve um ataque súbito-léptico-da-peste e paralisou o encontro com aquele gesto
Câmara Municipal de São Paulo -CONDEPE (Centro de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) - Conselho Municipal dos
Direitos das Crianças e Adolescentes – Prefeitura de Porto Alegre -Coordenação de Direitos Humanos – Secretaria Municipal
de Direitos Humanos e Segurança Urbana – Prefeitura de Porto Alegre - Grupo Tortura Nunca Mais/SP -Catadores de Histórias
-Cheiro de Capim - Comunas da Terra (MST) - Comunas Urbanas -Departamento de Psicologia Clínica da USP -Departamento
de Psicanálise do Sedes Sapientiae -Instituto de Psicologia da USP - Laboratório de Psicanálise e Sociedade da USP -Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Ministério Público Federal - PPG Psicologia Social e
InstitucionaldaUFRGS - Rede-rua-Ocas. Apresentação dos vídeos e comentários: -Carta aberta de Porto Alegre - Janaína
Bechler & -Catadores de histórias - Fabiane Borges, Rafael Adaime. Comissão organizadora: Beatriz-Afonso,Edson Luiz
André de Sousa, Fabiane Borges, Janaina Bechler, Mariah Leick , Miriam Debieux Rosa e Paulo Endo.

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

agonizante interferindo de modo incisivo na continuidade do debate, abrindo uma vala


sensório-perceptiva em pleno salão da Câmara dos Vereadores de São Paulo,
evidenciando a gravidade do assunto, trazendo à tona gestos de morte e
transitoriedade.

Illustration 1: Ceco na Câmara dos


Vereadores - SP Fotos: Rafael Adaime

Diante do vácuo subjetivo instalado eu e Veridiana Zurita continuamos a performance


ocupando o salão com trinta quilos de carne vermelha e crua no corpo amarrados com
arames e sacos de lixo preto. Arrancávamos pedaços de carne do corpo uma da outra e
despejávamos numa bandeja de plástico dizendo os nomes dos mortos e seus números
do IML. Depois disso colocamos pedaços de carne na boca e saímos carregando a
bandeja de carne/morte.

Essa performance foi uma tentativa de trazer para o encontro a dimensão da morte
através da constelação sígnica que cerca o morador de rua. Era o rito de enterramento
dos corpos que de fato esses assassinados não tiveram. O som ensurdecedor de
Diamanda Gallas gritando como uma porca-louca interviu no ambiente acompanhando-
nos em nossa cerimônia de enterramento. Ao sairmos da sala deixamos a sensação do
acontecimento.
70
O Evento/Performance continuou até a noite do mesmo dia, quando assamos ao
vivo a carne-morte usada no corpo junto com os moradores de rua, artistas e
apoiadores, que comeram da carne como num rito antropofágico. A comilança coletiva
se deu como forma de trazer à vida aquilo que estava morto, e simbolicamente
fortalecer os vivos que na sua maioria continuariam a viver o destino da rua.

70
A churrasqueira performer Veridiana Zuritta iniciou o churrasco e depois passou para as mãos dos moradores de rua, que
desavisados, sequer suspeitavam que faziam Arte assada com os signos dos companheiros assassinados.

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Illustration 2: Fabiane Borges e Veridiana


Zurita. Foto: Rafael Adaime

Esse evento noturno aconteceu no Pátio do Colégio sucedendo o evento da Câmara


dos Vereadores. O local foi escolhido em função de ser um local de moradia para muitas
pessoas e também por se situar em frente à Secretaria Estadual de Justiça e em frente
a primeira igreja construída em São Paulo. Os convites aos moradores de rua foram
entregues um a um durante a semana que precedeu o encontro. Esquecemos de
colocar endereço, dia e horário do evento, de modo que tivemos que pôr a caneta
pedindo para os moradores de rua que encontrávamos nas ruas nos ajudarem a
escrever o que faltava nos convites xerocados, isso aproximou a festa do público para a
qual ela era dirigida, e muitos dos folhetos ficaram com eles para que eles mesmos
distribuíssem. Reconhecemos na festa muitas dessas pessoas que conectamos na rua;
era impressionante perceber que o mesmo povo que não se organiza nem para
participar de movimentos de ocupação, não freqüenta albergues e que não se mobiliza
politicamente para quase nada, se dispõe a ir em festas esquisitas. O evento chamou-
se Ritual de Celebração e Intervenção à vida 71.
Além dos participantes e apoiadores do evento matinal foram convidados vários
grupos de arte e coletivos de intervenção urbana. A idéia era criar um ritual
experimental, corporal e tecnológico que operasse como dispositivo de ampliação de
comunicação e servisse como disparador de novas percepções em relação à rua. Nem
os artistas, nem os moradores de rua, nem a organização do evento sabiam de fato o
que aconteceria naquela praça pública, de modo que tudo foi feito a partir do encontro
entre as pessoas, a partir da imersão no universo da rua em suas conotações
dramáticas e festivas. Os grupos de artistas convidados se dispuseram a viver

71
Evento ganhou 1º lugar do Prêmio Milton Santos. Câmara dos Vereadores - 2005.

122
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abertamente essa experiência e se comprometeram a produzir suas ações inspirados


na conexão subjetiva com os seres existentes naquela situação/ambiente. E assim, a
noite aconteceu sem que ninguém ficasse ordenando os fatos e suas seqüências. Os
performers interagiam, as máquinas fotográficas passavam de mão em mão, os swings
foram espalhados entre as pessoas assim como as bolinhas de malabares, os tambores
incentivavam cômicas saltitações, os vídeos projetavam passado e presente que
misturavam-se num telão 4 X 5 metros... O Dj atrapalhado em sonorizar aquela esquizo-
noite. Pessoas de mundos muito diversos dançaram juntas e constituíram um lugar –
mesmo que temporário – mesmo que efêmero – de aproximação conectiva. Durante
todo o evento os discursos inflamados de sem tetos, artistas, jornalistas, trabalhadores
de albergues e moradores de rua no microfone demonstravam o quanto é insustentável
a invisibilidade. Aquele microfone era a tecnologia disponível que tinha poder de atuar
como foco de mobilização de toda aquela coletividade de rua. Das caixas de som
surgiam discursos irritados, politizados, odes de amor à vida, ao filho, ao namorado...
Contavam secretos rumores e diziam do improvável. Lamentei profundamente a
insuficiência tecnológica que deveria ser mais contundente para abarcar as vozes, seus
sentidos loucos e suas nuances tresloucadas.

O vídeo-carta de Porto Alegre finalmente foi apresentado para a população de rua de


são Paulo; foi um momento intenso e afetivo onde Ceco novamente tomou a palavra e

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discursou como líder de revide falando da vida na rua e sobre possibilidades de juntar
forças. Era uma correspondência que chegava, em plena praça pública, vinda
diretamente dos moradores de rua do sul. Isso gerou discussões, reconhecimentos
recíprocos e vontade de se criar respostas.
Quase no final da noite colocamos uma faixa de 40 metros no centro da praça, e
numas bandejas de papelão distribuímos potes de tinta. Todos participantes se
ajoelharam no chão em rabiscos coletivos, desenhando na pele da praça suas marcas.
Essa faixa foi pendurada no monumento que fica exatamente entre a Secretaria de
Justiça à primeira igreja católica construída em São Paulo. A faixa continha nomes
próprios, apelidos, declarações amorosas, pedidos de justiças, mãos espalmadas,
corações, críticas ao governo e incompreensibilidades, e perdurou durante semanas até
ser tirada por algum desconhecido.

Apresentação do vídeo carta Foto: Rafael Adaime. Moradores de rua no microfone e usando as máquinas fotográficas.

Seria essa uma intervenção de arte urbana? Uma interferência nas redes sociais?
Uma ação clínica expandida? Não era a toa que os participantes da organização eram,
em sua maioria, psicanalistas. Sim! Tratava-se de uma ação CLÍNICA-ARTÍSTICA-
URBANA-SOCIAL. Um ato político/festivo/epifânico. Uma espécie de happening
performático e conectivo criado num espaço/tempo público da cidade a partir do seu
extremo miserável. Talvez esse relato não dê conta da infinidade de conexões e
transformações subjetivas que acontecem num evento como esse. Rápido, anárquico,
sem financiamento, desprovido de qualquer possibilidade de permanência, mas que tem

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potência de afetar a vida das pessoas envolvidas, às vezes de modo definitivo. É uma
zona temporária que se propõe interferir e celebrar ao mesmo tempo. Rito de ocupação
de vias e vidas públicas. Evento como acontecimento, como cartografia, intervenção,
como dispositivo de mobilização de desejo, produção de sentidos, disparador de ação,
atualização e virtualização de acontecimentos. Práticas de conexões entre política e
ontologia criadas nas cidades e intervindo em suas ordinariedades... Corpo, cidade,
instalação e transfaces... Tentativas e começos. Orgia mídico-epifânica... Pós-teatro
onde público e obra se misturam... Política mítica. Rede viva de agenciamentos e, no
entanto... Precariamente fugaz72.

PROCESSOS IMERSIVOS

_ Meu nome é Cassandra, fui incumbida de levar vocês aos Domínios do Demasiado. _Coloca
no papel seu nome e uma situação considerada de risco para você: _ Situação de risco em
mim! Foi assim que iniciou a oficina/interferência73 .

Pedi então que tirassem os sapatos e com um elástico grosso fui cantarolando
incongruências amarrando seus sapatos criando enorme rede sócio-sola. Com os pés
no chão, passamos todos para a outra sala, onde fizemos inocentes exercícios de
respiração e relaxamento. Depois... A terceira sala... Era preciso provocar a sensação
de passagem/distância através de um minúsculo nomadismo; a mudança de espaço
provocava uma certa desterritorialização, necessária para a imersão que se sucederia;
funcionava como pequeníssimo rito de passagem.
Na terceira sala estavam os outros oficineiros/interferentes74. Tratava-se de uma sala-
72
A partir desse evento foi pensado um projeto institucional que logo foi enviado para o Ministério da Saúde, Dst/Aids Unidade de
Prevenção, no ano 2005, que apresentava um Programa/Cronograma com uma série de argumentos e ações referentes ao
encontro de Moradores de Rua, Arte, Tecnologia, Coletivos de Ação, Prevenção à Dst/Aids e Exposições dos trabalhos
construídos coletivamente com esse “público” em galerias, museus, espaços públicos e albergues. Esse projeto se auto-
desafiava a construir políticas a partir de narrativas fragmentadas que é a narrativa comum a grupos que vivem em estados
radicalizados de exceção e minorias em geral.
73
Nome da oficina/evento realizada em dezembro de 2005 à convite de Angela Donini - técnica da Unidade de Prevenção às
Dst/aids - Ministério da Saúde - no CTA Henfil (Centro de Testagem e Aconselhamento) situado no centro de São Paulo, por
ocasião da Implantação do projeto piloto: Prevenção às DST/Aids em crianças, adolescentes e jovens em situação de rua na
cidade de S.Paulo em parceria com programas estaduais e municipais de DST/Aids e Saúde do Adolescente, Ogs e ONGs.
Essa oficina/interferência tinha cerca de 35 participantes, entre eles: médicos, assistentes sociais, coordenadores de
equipamentos públicos, educadores sociais.
74
Alessandra Galasso (Tzzzáááá), Eduardo Loureiro (Bijari), Giuliano Obici (Oráculo tecnológico), Rafael Adaime (Catadores de
Histórias) e Fabiane Borges (Catadores de Histórias)

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instalação-imersiva cujas paredes foram ocupadas por 40 metros de lona preta e muitos
outros elementos, utilizados por moradores de rua em suas nomádicas residências
urbanas e por Sem Tetos e Sem Terras quando acampados ou despejados: arames,
sacos de lixo, recortes de tecidos, roupas encardidas, pedaços de ferro e plástico,
caixas de papelão, jornais velhos, cobertores cinzas e aparatos tecnológicos como
caixas de som, microfones, projetor, mixers de imagem e som. O VJ mixava imagens
das ruas com as coisas que iam acontecendo no momento; os ambientes imersivos das
calçadas, os ritos em volta das fogueiras de rua, as comilanças coletivas debaixo dos
viadutos copulavam escandalosamente pelas paredes da sala, enquanto as “situações
de risco” anteriormente escritas nos papéis incendiavam em uma bacia-latão. O fogo
perpassando caras de espanto e náusea, a terra largada sobre os papéis queimados
iam sendo perfurados por velas pretas e vermelhas de Exú - o Orixá sem teto. Pontos
de vista da cidade foram explorados através de captação prévia de Rafael que
arremedava gestos dos moradores de rua a fim de ver a cidade avizinhado dos seus
pontos de vista. Os pneus dos caminhões agigantando-se diante do corpo concretizado
de calçada e fumaça. O céu cinza e as listas nightshot dos carros rápidos. As pernas
dos transeuntes quase pisando na câmera-olho. Quinze metros de tecido branco foram
colocados nos corpos de uma parte dos participantes tornados corpos-telas, que
refletiam entrevistas sobre situações de riscos vividas por moradores de rua
radicalizados.
Os elementos iam sendo utilizados de modo a criar uma ambientação urbana
extremamente hermética onde liberdade e poder sustentavam-se em conflito. O
programa de som operado por Giuliano Obici “Oráculo Sonoro”, misturava arquivos de
sons previamente captados junto aos moradores de rua e sons captados na hora da
intervenção através de microfones, injetando no ambiente-instalação repetições,
reverberações, sobreposições de ruídos, distorções de fala, infantilização de vozes,
ressonâncias e desestruturações de frases, criando uma imersão sonoro-climática-em-
risco, ao mesmo tempo em que gemidos de sexo e gozo entremeavam toda a morte
suposta. Hipertextualidades, polifonias, dessincronias e, no entanto o leitmotiv do
trabalho sobrevivendo-se: Vulnerabilidades e Virulências de rua. A idéia não era imitar a
ambiência de rua, nem transformar momentaneamente as pessoas em moradores de
rua, mas agigantar os sentidos da vida de rua, agigantar seus gestos, suas

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performances, transpor suas imagens para o próprio corpo de quem com a rua trabalha,
aumentar o foco-rua, ativar imaginários, copular signos...
Esse espaço/tempo produzido artificialmente era uma bolha ambiental de total
exposição onde não foi proposta comoventes harmonias, nem sequer um clima
amigável de trocas sofridas de trabalhadores impotentes que lidam com realidades
tristes. Nessa época eu estava farta de oficinas solidárias, onde todos se envolvem num
clima de trocas sentimentais, e não mudam em nada suas práticas humanistas-
higiências-evolucionistas. Estava muito mais atenta às potências advindas de alguns
softwares eletrônicos de som (noise) e imagens: sua ebriedade envolvente que imita
sensações drogaditas de crack, cola e pasta, sua incrível força de persuasão semi-
lisérgica. Era um modo de colocar para os serviços sociais de saúde a necessidade de
tratar de temas relativos à inclusão digital, a partir da suas possibilidades mais
abrangentes. Trazer uma dimensão profunda da experiência dos softwares eletrônicos
como dispositivo de aproximação a certas condições existenciais das ruas: - Domínios
Demasiados.
Tratava-se de uma pesquisa ampla que aproximava realidades nuas, a saber: um
incerto feminismo que reivindicava um incerto feminino atrapalhado com lógicas
aristotélicas, assemelhado a um incerto discurso torporoso, nauseabundo e drogadito
dos sujeitos da rua, que avizinhava-se a uma incerta prostituição sedutora e miserável
que transa visibilidades mundanas, que lembram Cassandra a ininteligível
aconchavando virgindades e promiscuidades sinápticas.

Illustration 3: Processos Imersivos: Foto:


Rafael Adaime

Sim! Nosso pequeníssimo revide. Mórbida vingancinha às paralisias perceptivas. Um


devir Medeia singelo que não mata os filhos senão, a obviedade das lógicas
trabalhadoras. Discursos em risco social. Da frase articulada, sobra a palavra solitária

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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01

despregada do seu contexto repetindo-se à exaustão, até formar por si mesma um


hermetismo imersivo. Repetição abusiva adentrando a obliqüidade auditiva e
transignificando-se em seus sentidos.
O mesmo com as imagens, a redundância patética do rosto perplexo desdobrando-se
em imagens de toureiros atravessados por guampas de touros sobreviventes. Berros e
aberrações. Para sair da sala era preciso desamarrar uma imensa rede de sapatos
atados. Cada saída, uma destruição. A confusão de Cassandra-tróia-e-trolha estendida
no ambiente contagiando tudo com sua ópera-vidêntica. Situação de risco em mim!
Vulnerabilidades expandidas75.

Reminiscências e inconclusões: Sempre o clássico para atrapalhar. Se já não


tivessem tentado isso ou aquilo poderíamos então inventar. Mas não se trata de inventar
e sim recombinar. Será? Os pneus passando pelo perfuramento veloz da lona até quase
atingir as tramas de arame. O barulho da borracharia, a fumaça da caldeira, as
máquinas quentes produzindo a recombinação entre a borracha colante e o pneu
arranhado de pregos... Os cavalos correndo campo a fora em busca do sorgo no pátio.
Um avião assoviando no céu um rastro branco assinalando a passagem genealógica
que vai desaparecendo aos poucos. O pneu agora está mais quente; chega a 600 graus
de calor a ferrugem marrom que solta da tampa de pressão. Ah, era só recombinação,
somente uma mistura de afetos e pelagem de pneu velho que se tornava outro. Não
novo. Outro. O novo é a ilusão carinhosa que amamos de temermos. Depois, o
caminhoneiro estaria pronto para partir pela estrada de Roberto Carlos. Por agora
sobrava a última pintura de cola preta na recombinação laudânica da borracharia. Nada
de novo no front, mas a estrada acelerava-se.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
75
Depois dessa Oficina/Interferência: “Processos Imersivos”. Enviei um projeto à Unidade de Prevenção DST/Aids do Ministério
da Saúde que propunha uma Parceria entre a Unidade DST/Aids e o Programa Nacional de Cultura do Ministério da Cultura:
Pontos de Cultura, para produzir uma nova mídia sobre Dsts a partir de oficinas para crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade, para aprenderem a criarem e manipularem programas eletrônicos em softwares livres através de métodos de
aprendizagens imersivas. No prelo (janeiro de 2006)

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