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#01
[In.CoRpo.Ro] Magazine
Index
Em Busca da Performance ................................................................................................
....................4
Reflexões de um transeunte em busca de sentido............................................................................... ...8
Performance Como Campo de Investigação...................................................................................... ..19
Flávio de Carvalho – O Engenheiro Corporal....................................................................
[In.CoRpo.Ro] Magazine
.................40
A Importância da Primeira Imagem na Construção da Cena Performática........................................59
A cidade como corpo, o corpo na cidade............................................................................... ..............66
REVERÊNCIAS E ANDRAJOS / REDES E LIMINARIDADES..................................................104
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VOL.#01CARLAMEDIANEIRODIOGODEM
ORAESJOSERENATOPAULADARRIBASA
NDRAPARRATATIMADEFATIMAFABIANE
BORGESMONICARIZZOLLI2007PERFOR1
MANDO
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Boa Leitura
Monica Rizzolli
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Index
Em Busca da Performance ................................................................................................
....................4
Reflexões de um transeunte em busca de sentido............................................................................... ...8
Performance Como Campo de Investigação...................................................................................... ..19
Flávio de Carvalho – O Engenheiro Corporal.................................................................... .................40
A Importância da Primeira Imagem na Construção da Cena Performática........................................59
A cidade como corpo, o corpo na cidade............................................................................... ..............66
REVERÊNCIAS E ANDRAJOS / REDES E LIMINARIDADES..................................................104
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Em Busca da Performance
Carla Medianeira Antonello
Professora Departamento de Artes Cênicas – UnB / Decanato de Extensão – DEX –
UnB.
Resumo
Trata-se de um artigo que descreve o trabalho do Grupo de extensão - O Teatro
Como Acontecimento em Artaud / Teatro Grave. Situando a pesquisa e seu
desenvolvimento a partir dos estudos de Antonin Artaud e a linguagem da performance.
Como se correleciona o fazer artístico contemporâneo embasados neste referencial
bibliográfico.
Em Busca da Performance
O grupo de Extensão o Teatro Como Acontecimento em Artaud do Departamento de
Artes Cênicas na Universidade de Brasília – DF, coordenado por Carla Antonello, inicío
sua pesquisa em 2005. Assim, além da intitulação do projeto, sentiu-se a necessidade
de uma outra nomeação para uma maior proposição junto a comunidade cultural.
Encontrou-se então o Grupo Grave que foi extraído do texto O Teatro e seu Duplo de
Antonin Artaud (1999, p. 96) “ O Longo hábito dos espetáculos de distração nos fez
esquecer a idéia de um teatro grave que, abalando todas as nossas representações,
insufle-nos o magnetismo ardente das imagens e acabe por agir sobre nós a exemplo
de uma terapia da alma cuja passagem não se deixará mais esquecer”. mais esquecer.”
Diante da citação encontrou-se uma identidade com a concepção estética que
permeia a pesquisa e os desdobramentos dos processos criativos da atuação do grupo.
A palavra grave, poderia remeter ao significado de imprimir algo. Poder-se- ia adentrar-
se ao mundo do sensível tecendo poéticas imaginárias e devires em constante
transformações.
Nessa direção, buscou-se na linguagem da performance um caminho, com
possibilidades para dilatar as inquietações, justamente por ela se colocar num campo
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Referências bibiográficas
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Max Limonad,1984.
______________. Linguagem e Vida. São Paulo: Perspectiva, 1995.
ASLAN, Odete. O Ator no Século XX. São Paulo: Perspectiva, 1994.
ARANTES. Urias Corrêa. Artaud. Teatro e Cultura. São Paulo: Unicamp, 1992.
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2002: 35-36)
A fim de promover uma reflexão sobre o estado de deteriorização no qual se encontra
esta atividade, Konder apresenta algumas das questões que inquietavam Marx:
Por que o trabalho se transformou numa atividade tão desagradável, tão sofrida, para os
trabalhadores? Por que, no trabalho, a força vira impotência, a criação se torna castração, a
humanização resulta em desumanização?. (KONDER, 2002: 35)
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Não.
Tal resposta explicita a enorme contradição vivida pelo cidadão, ou seja, habitar um
lugar que não lhe transmite sentido(s) para além da funcionalidade da rotina, justamente
porque este(s) deve(m) ser construído(s) na relação com o lugar. Logo, se o cidadão
deixa de estabelecer relação com os elementos que compõem seus percursos diários
(único momento que resta para o contato com o meio ambiente da metrópole), ele não
consegue se identificar com o próprio habitat, o que significa que não pode se
reconhecer ali.
Esta “impossibilidade” de encontrar um motivo para a experiência do trânsito na
metrópole que vá além da busca pela sobrevivência, representa para mim, enquanto
cidadão e artista consciente dos riscos desta circunstância, um grande desafio, o qual
procuro encarar com a elaboração de uma estratégia artística. Neste caso, coloco-me
na posição de cidadão/artista, adotando uma postura ativa frente às dinâmicas da
metrópole, de modo a cultivar minha capacidade de perceber, refletir e estabelecer
relação com os elementos que povoam os meus itinerários.
Parece óbvio que esta posição só pode ser tomada a partir do exercício de
distanciamento da insípida e alienante rotina imposta pela metrópole, o que não
significa a sua negação, mesmo porque isto seria inviável. Este distanciamento, através
do qual procuro ponderar e transformar o meu cotidiano de cidadão, é fomentado pela
pesquisa nos campos da arte, da filosofia e das ciências sociais (entendendo que estes
campos do conhecimento entrecuzam-se), nos quais busco os recursos necessários
para enfrentar os obstáculos que impedem o desenvolvimento de um olhar sensível,
fundado no meu repertório de experiências (memória afetiva) e, consequentemente, na
minha imaginação – o qual procuro lançar sobre alguns dos elementos que se
apresentam durante os meus percursos.
Ao longo do processo de pesquisa, descobri a existência de uma tradição artística e
teórica cujo tema central é a exploração do território urbano por meio da prática de
caminhar – o espaço da metrópole passa a ser encarado por alguns artistas e por
alguns teóricos como um privilegiado campo de experiência estética. Entre os nomes
mais significativos que configuram esta tradição encontram-se: o flâneur (personagem
urbano encarnado, entre outros, por Charles Baudelaire), Edgar Allan Poe, Walter
Benjamin, Mário de Andrade, o grupo dadaísta de Paris (destaque para Louis Aragon,
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André Breton, Francis Picabia e Tristan Tzara), Kurt Scwitters, os surrealistas (destaque
para André Breton), a Internacional Situacionista (destaque para Guy Debord, Constant,
Asger Jorn e Raoul Vaneigem), o grupo Fluxus (destaque para George Maciunas,
Patterson e Yoko Ono), Robert Smithson, Hélio Oiticica, Artur Barrio, entre outros.
O resgate de parte desta tradição será aqui realizado por meio da exposição das
práticas do flâneur e dos situacionistas, que se desenvolvem respectivamente durante
as décadas de 1830-1840 e 1950-1960. A intenção é que tal análise sirva de
fundamento para a minha estratégia artística, que se apresenta como uma possibilidade
de recontextualização e, portanto, de reformulação destas práticas de exploração
urbana.
O flâneur é um caráter típico da Paris do século XIX e também uma alegoria do
literato parisiense deste período. O contato com esta figura é garantida pelos textos do
filósofo e cientista social alemão Walter Benjamin (1892-1940), que apresentam a
postura do flâneur frente às significativas mudanças ocorridas no modo de vida do
habitante da metrópole durante o período pós-revolução industrial. O acesso aos textos
e, consequentemente, às idéias de Benjamin em relação ao flâneur será aqui mediado
pelo pesquisador e professor de literatura Wili Bolle, através do seu estudo intitulado
Fisiognomia da Metrópole Moderna: Representação da História em Walter Benjamin.
Reprsentante da mentalidade pequeno-burguesa (classes médias), o flâneur é um
personagem urbano que, num primeiro momento, recusa adequar-se às novas
circunstâncias impostas pela sociedade industrial, como, por exemplo, “a divisão do
trabalho que transforma as pessoas em especialistas”, segundo definição de Benjamin.
(BENJAMIN, 1989: 50) “Contrário ao espírito do seu tempo”, ou seja , ao mundo
burguês do negócio, o flâneur dedica seu tempo à prática do ócio, por meio da qual
desenvolve um olhar contemplativo para os elementos que se apresentam durante os
seus vagabundeos pelo território urbano. Sem paradeiro certo, “se deleita com o
espetáculo da metrópole, contracenando com a multidão erotizada em meio à paisagem
do consumo”. (BOLLE, 1994: 375-20).
De acordo com o exame do escritor inglês Edgar Allan Poe – nomeado por Bolle
como um dos grandes fisiognomistas urbanos ao lado de Baudelaire e Benjamin -, o
flâneur sente-se inseguro em sua própria sociedade, por isso busca na multidão de
transeuntes o seu esconderijo, onde procura se proteger da “atmosfera de inquietação,
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“[Estas reuniões são] aglomerações concretas, mas socialmente permanecem abstratas [...].
Seu modelo são os fregueses que, cada qual em seu interesse privado, se reúnem na feira em
torno da ‘coisa comum’. Muitas vezes, essas aglomerações possuem apenas existência
estatística. Ocultam aquilo que perfaz sua real monstruosidade, ou seja, a massificação dos
indivíduos por meio do acaso de seus interesses privados”. (BENJAMIN, 1989:?).
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que moldam a vida cotidiana do “cidadão comum”, passivo às regras estipuladas pela
sociedade burguesa.
A negação das regras do sistema capitalista permitiu que estes “artistas marginais”
desenvolvessem um procedimento de exploração urbana baseado no uso do tempo
livre – um tempo que não é regulado pela rotina de trabalho, pois se situa fora dela.
Apontado isto, é necessário que se faça a seguinte pergunta: no atual contexto –
marcado pela globalização e, consequentemente, pelo super-capitalismo – é possível se
opor às regras do sistema, negando, por exemplo, a rotina de trabalho que este nos
impõe? Penso que não.
Portanto, se sinto necessidade de explorar o território urbano, isto deve acontecer
durante os meus deslocamentos diários da casa para o trabalho e do trabalho para casa
– único momento que me resta. Por isso, desenvolvo uma estratégia artística de
exploração apoiada sobretudo na procura de brechas na minha rotina de trabalho, mais
especificamente nos meus itinerários. Estas brechas correspondem basicamente a
instantes de observação e reflexão sobre elementos que se apresentam durante os
meus percursos: objetos, pessoas, animais, situações, arquiteturas, fenômenos
naturais, etc.
Além da atitude, que considero como parte essencial do processo, outros elementos
compõe a minha estratégia, são eles: caderno de bordo (onde escrevo e desenho
minhas impressões; tamanho reduzido: 5,5 X 8,4 cm), caneta (cor preta), camisas
adaptadas (contendo bolsos para o caderno de bordo, os passes de metrô e trem, o
lenço de nariz e a caneta), relógio de pulso (para evitar atrasos), casacos apropriados
(com abertura na região do peito para facilitar o acesso ao bolso da camisa em dias
frios), mochila (para garantir as mãos livres) e o crachá (através do qual procuro
evidenciar a minha “função”, ou seja, de um “procurador de sentido”).
Gostaria de deixar claro que o presente texto não teve a intenção de mostrar de
maneira detalhada o modo como procedo durante os meus percursos e como um olhar
sensível pode encontrar significados preciosos para coisas aparentemente irrelevantes
(talvez as imagens – desenhos e registros fotográficos – dêem conta de evidenciar
estes aspectos), e sim de apresentar algumas das minhas referências e a forma como
respondo à realidade urbana.
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Referências Bibliográficas
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Resumo
Este artigo nasce de uma inquietação: a predominante sensação de que o “poder”
cada vez mais assola e tenta manipula a vida das pessoas no momento
contemporâneo, de forma cada vez mais diluída e mais sutil, quase que imperceptível.
As questões levantadas pelo filósofo francês Michel Foucault (1926-1984),
principalmente sob o aspecto do investimento de saberes e poderes que se dirigem aos
corpos e às subjetividades nos ajudam a problematizar estas questões. O autor traça os
caminhos pelos quais os mecanismos de poder vão se virtualizando e passam a se
exercer sobre o desejo, sobre os impulsos, sobre o corpo. Poder que passa a ser
entendido como relação de forças, como exercício, não mais apenas como relações
judiciais, mas que se espalha à toda a malha social, incluindo a arte. Poder que se
transforma em Biopoder. A partir desses argumentos, articulo algumas reflexões entre a
arte da performance e os mecanismos de poder.
Palavras-chave: Performance, Poder, Corpo, Comunicação
2
Este artigo é extraído do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) realizado na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC-SP, orientado pela Professora Doutora Naira Ciotti, como parte integrante
da conclusão do curso de Comunicação das Artes do Corpo. Agradecimentos: Naira Ciotti, Lucio Agra e
a todos os professores do curso de Artes do Corpo da PUC-SP, que de um modo ou de outro fazem
parte desta pesquisa.
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seguir?
Negri apontou para um momento contemporâneo em que, na medida da falência de
um modelo (comunista) e na inevitável falência predatória do outro (capitalista), a
melhor alternativa talvez fosse uma espécie de apontamento para o vazio, um não
posicionamento ou uma não opção, o que não significaria nem apatia, nem niilismo.
Segundo seu ponto de vista, a melhor atitude talvez fosse enfrentar esse vazio,
aceitando que todos os modelos pré-existentes não dão conta da complexidade das
relações atuais, acrescentando inclusive que o Capital é um conceito do período
moderno que morreu juntamente com todos os outros conceitos que mantêm-se
atrelados ao período e que, com um ato de coragem, devemos aceitar esse momento
de vazio, na busca de um novo modo de relação.
- O jornal Folha de S. Paulo publicou que havia sido preso um integrante da rede Al
Qaeda, em função de uma ligação telefônica que havia sido rastreada, num universo de
3 bilhões de ligações que diariamente são rastreadas pelos EUA. É uma informação que
pode passar desapercebida, mas uma coisa chama a atenção: 3 bilhões de ligações
rastreadas por dia significa que, em média, cada um dos 6 bilhões de habitantes do
planeta Terra tem uma ligação rastreada por dia, já que uma ligação prevê duas
pessoas conversando; isso sem pensarmos que, provavelmente, nem metade da
população mundial tem telefone.
Os exemplos acima mencionados nos levam às discussões de Foucault. Como disse
Negri, a obra de Foucault nos permite perceber uma transformação histórica nas formas
sociais, passando da sociedade disciplinar para a sociedade de controle, onde um novo
paradigma de poder é realizado, o biopoder. São criadas as instituições disciplinadoras,
que vão das instituições carcerárias, manicômios, escolas, exércitos a todas as
instituições totais, e estabelece-se o panóptico como modelo máximo, mecanismo que
faz da possibilidade de estar sendo vigiado o principal meio de controle das diferenças e
desvios, isolando-se aquilo que é considerado anormalidade e investindo na construção
de um corpo dócil e domesticado.
Podemos perceber a atualidade de suas concepções apresentadas por Paula Sibilia
em O Homem Pós-Orgânico: Corpo, Subjetividade e Tecnologias Digitais. A autora
retoma alguns destes conceitos, e nos interessa especialmente o do biopoder, nas
condições sociais, políticas e tecnológicas do momento contemporâneo, principalmente
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naquilo que as mídias digitais ofereceram como possibilidades de atuação, além das
nanotecnologias que propõem a modificação dos corpos e das informações genéticas
do corpo. Como exemplo dos paradoxos que se apresentam, está sendo autorizado que
se faça copyright de moléculas, bactérias e organismos geneticamente modificados. Em
última instância, estabelecem-se direitos de propriedade sobre a vida, tais como nos
projetos Genoma e Transgênicos, como no caso da Monsanto.
Neste trabalho, busco relações que permitam perceber como muitos dos
questionamentos feitos pelos artistas da performance são questionamentos de relações
de poder. Uma postura de tensionamento com algo não pragmático e desconhecido é o
que encontramos nos estudos de performance. Postura que é efetivamente o
enfrentamento de algo que não se define previamente, pois são tantos os modos de
atuação artística que podem ser abarcados na arte nomeada como performance que se
torna impossível estabelecer uma definição cartesiana ou binária do que seja essa
manifestação artística. O convite que faço é que entendamos a performance, neste
trajeto, como um campo de investigação.
Percursos
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referem ao corpo. Um dos pontos cruciais para uma genealogia da performance refere-
se à colocação do corpo na cena, efetuada em muitos casos por artistas que não eram
necessariamente bailarinos ou atores, e no caso de serem, não se encontravam mais
satisfeitos com os modos de fazer que a dança e o teatro propunham. Eram artistas
plásticos, escultores, pintores, poetas, escritores, músicos e fotógrafos, questionando os
limites impostos pelos suportes habituais de suas respectivas áreas de atuação e
desejando colocar o corpo em questão, o próprio corpo.
Podemos levantar alguns procedimentos e eventos que fazem parte de uma possível
história da performance. Falamos de uma possível história porque a performance não
tem uma data de nascimento, que segundo Jorge Glusberg, é possível remontar aos
primeiros rituais da tradição judaico-cristã, aos rituais tribais, aos mistérios medievais,
no que tange a esse modo de uso do corpo. Os trabalhos de performance atuais se
utilizam de uma gama variada de inspirações, acolhendo desde elementos de
manifestações populares até recursos das mais altas esferas da tecnologia.
Toda uma série de movimentos ligados às vanguardas artísticas apontam nessa
direção. Como não pretendo tratar desses movimentos especificamente, e visto
encontrar-se disponível uma vasta bibliografia sobre cada um deles, farei um breve
apanhado dos mesmos. Um pouco antes da virada do século, em 1896, acontece a
estréia de Ubu Rei, de Alfred Jarry, espetáculo que tanto dramatúrgica quanto
cenicamente quebrava uma série de convenções de época. Em 1910, têm início as
“Noites Futuristas”, ligadas ao Futurismo de Marinetti. Em 1912, um grupo de pintores e
poetas ligados a Maiakovski e Klébnikov começam a se organizar em torno do
Futurismo Russo. Em 1913, Franz Kafka (1883-1924) publica seu primeiro livro. Judeu
theco, residente em Praga, morto em 1924 num sanatório onde estava internado para
tratar de tuberculose. Em 1916, Hugo Ball e Emmy Hennings inauguram em Zurique o
Cabaré Voltaire. Tristan Tzara, Hans Arp e Marcel Janko fundam o Movimento Dadaísta.
Serge Diaghilev, na dança, é considerado um grande reformador. Empresário, seu
trabalho serve de síntese entre a dança, a música e artes visuais. Sobre muitos
aspectos, Marcel Duchamp será considerado um dos fundadores da arte
contemporânea. Seja por seus ready-mades, por suas intervenções, seu trabalho de
gênero sobre a persona de Rose Sélavy, é pedra fundamental em qualquer
questionamento da arte feita a partir dele. Sua influência se reflete até os dias de hoje.
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Em 1918, Tzara lança o manifesto dadaísta, que chama a atenção de vários poetas
parisienses, entre eles André Breton. Aos poucos o movimento começa a se espalhar
pela Europa e ganha força em Berlim e Colônia, na Alemanha.
Kurt Schwitters começa a sua Merz-Bau em 1923, uma espécie de colagem gigante
em seu apartamento, em que ia anexando objetos, em geral encontrados na rua, sobre
a construção. Em 1937 exila-se na Noruega e um bombardeio destrói sua casa em
1943. Max Ernst realiza Collages. Em 1932, Antonin Artaud (1896-1948), ator e grande
pensador do teatro, lança seu Manifesto do Teatro da Crueldade. Foi um dos principais
precursores das inquietações que vão ser retomadas pela performance na década de
60. Capaz de escrever que não havia nada mais inútil do que as palavras, que as
palavras não davam conta das inquietações do espírito, deixou uma vasta obra que hoje
remonta a algo em torno de 26 volumes, apenas de escritos. Questionando sempre os
conceitos que ele próprio estabelecia, tinha por método um eterno retorno ao que já
havia dito ou questionado, como se não quisesse deixar que um conceito se
estabelecesse como lei e se cristalizasse. Em 1933, entra em funcionamento o Black
Mountain College (BMC), nos EUA, sob direção de Josef Albers. A partir dos anos 50,
John Cage trabalha no BMC, e sua parceria com Merce Cunningham é de fundamental
importância para uma nova visão da dança moderna, pelo uso do acaso e pela
separação entre as partes – música, cenário e coreografia – como unidades autônomas
em seus trabalhos.
Dá-se o início dos Happenings. Pollock realiza suas Action Paintings. Aparece a Por
Art. No final da década, Judith Malina e Julian Beck fundam o Living Theater. No Japão
desenvolvem-se propostas de Live Art, com o grupo Gutai, de Osaka. Alan Kaprow, a
partir das idéias das colagens, cria os Environments. Em 1959, Grotowski busca seu
Teatro Pobre. Em 1962, Yves Klein realiza o seu Salto no Vazio e chegamos a um
momento fundamental:
Em uma manhã de 1962, em Nice, cidade onde havia nascido trinta e quatro anos antes, Yves
Klein realizou um de seus trabalhos mais conhecidos: Salto no Vazio. Ele mesmo – fotografado
no instante que saltava para a rua, de um edifício – era o protagonista de sua obra, e, nesse
sentido, a obra em si. 7
7
GLUSBERG, JORGE. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2003.Idem. p.11
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Segundo Glusberg, este evento pode ter sido o início do que chamamos hoje de
Performance Art. Também em 1962 surge o Judson Dance Group na Judson Church em
NY, que vai agregar vários bailarinos e coreógrafos que queriam romper inclusive com a
dança moderna. Fazem parte Steve Paxton, Forty, Rainer, Brown, Deborah Hay,
Lucinda Childs e Philip Córner. George Maciunas funda o Movimento Fluxus. Joseph
Beuys organiza o Festival Fluxus de 1963 em Dusseldorf, na Alemanha. Este é outro
nome de primeira grandeza em qualquer discussão da performance. Em sua obra
Coyote: I Like America and America Likes Me8 seu posicionamento fica muito claro.
Joseph Beuys, vindo da Alemanha, não pisa no solo americano. Uma ambulância o leva
para a galeria de arte onde ele vai conviver durante uma semana com um coiote, sem
contato com as pessoas americanas. O diário Wall Street Journal é entregue
diariamente para servir de mictório ao coiote. O ano é 1974, período próximo à Guerra
do Vietnã e época da contracultura, do Faça paz, não faça guerra. Por volta dessa
mesma época, começa o movimento da Body Art, que se realiza na direção de utilizar o
próprio corpo, fazendo transformações algumas vezes definitivas e trabalhando muitas
vezes no limite da dor.
Só no início dos anos setenta é que estes vários movimentos e influências, tendo ou
não realizado ações performáticas em suas manifestações, vão migrar para um certo
modo de organização que vai ser nomeado Arte da Performance, ou Performance Art,
com muitos dos artistas anteriormente citados fazendo parte das mesmas, mas com
algumas diferenças. Cohen mapeia algumas mudanças que ocorrem na passagem do
Happening à Performance:9
8
Discutida mais longamente em COHEN, RENATO. Performance Como Linguagem: Criação de um
Tempo-Espaço de Experimentação. São Paulo: Perspectiva.Edusp, 1989. p.51 e ss.
9
COHEN, RENATO. Idem. p.136
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Talvez o exemplo mais claro dessa ruptura com a representação seja o do circo (que também
pode ser entendido como um tipo de performance). Quando o atirador de facas atua, ele não
está “representando”, não está fazendo nenhuma personagem. Ele está praticamente atuando
no real time. Talvez o risco nesse caso é que esteja trazendo mais “realidade”, mais “vida”,
para esta cena (na medida em que se trabalha com o imprevisto).10
26
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... a Performance vai ter em comum com outros exemplos da arte contemporânea a
necessidade de ser interpretada e julgada à luz de um enriquecimento cultural do receptor,
sem o qual o transgressivo se converte simplesmente em algo aborrecedor ou também num
total nonsesnse.11
...o movimento que existia apenas no circuito underground já está absorvido pela mídia e pela
“indústria cultural” (indústrias de moda e fonográfica principalmente). Inicia-se a fase daquilo que
se chamou “guerra de estilos”, que vem a ser a multiplicação de tendências a partir do punk e do
new wave – gótico, tecno-pop, ska, ôi, rockabillity, para dar alguns exemplos – surgindo com
essas novas correntes dezenas de grupos.12
11
GLUSBERG, JORGE. Idem. p.64
12
COHEN, RENATO. Idem. p.148
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Essa prática, que envolve trabalhos de câmera lenta, exercícios de atenção, danças extáticas,
movimentos iogues, está incorporada ao repertório de inúmeros grupos contemporâneos: dos
trabalhos de Bob Wilson com dilatação de tempo e deformações de percepção ao stacatto e
interlúdios de Pina Bausch, da exacerbação física à exaustão do butô, aos trabalhos de
superposição propostos pelo Wooster Group.13
Cartografia
Eu sou um cartógrafo.
Michel Foucault
o poder é menos uma propriedade que uma estratégia, e seus efeitos não são atribuíveis a
uma apropriação, mas a disposições, a manobras, táticas, técnicas, funcionamentos; ele se
exerce mais do que se possui. (...) Em suma, o poder não tem homogeneidade; define-se por
singularidade, pelos pontos singulares por onde passa.14
28
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Punições menos diretamente físicas, uma certa discrição na arte de fazer sofrer, uma arranjo
de sofrimentos mais sutis, mais velados e despojados de ostentação (...) No entanto, um fato é
certo: em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado,
amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como
espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal.17
27.06.2004.
16
FOUCAULT, MICHEL. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
17
Idem. p.14.
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A minúcia dos regulamentos, o olhar esmiuçante das inspeções, o controle das mínimas
parcelas da vida e do corpo darão em breve, no quadro da escola, do quartel, do hospital ou
da oficina, um conteúdo laicizado, uma racionalidade econômica ou técnica a esse cálculo
místico do ínfimo e do infinito.18
faz “funcionar” um poder relacional que se auto-sustenta por seus próprios mecanismos e
substitui o brilho das manifestações pelo jogo ininterrupto dos olhares calculados. Graças às
técnicas de vigilância, a “física” do poder, o domínio sobre o corpo se efetuam segundo as leis
da ótica e da mecânica, segundo um jogo de espaços, de linhas , de telas, de feixes, de graus,
e sem recurso, pelo menos em princípio, ao excesso, à força, à violência. Poder que é em
aparência ainda menos “corporal” por ser mais sabiamente “físico”.19
Na sociedade, esse poder vai extrapolar as condições de uma culpa. Não será mais
necessário ter cometido algum delito para se transformar em ponto de exercício do
poder disciplinar. Alternativas médicas são dadas de maneira diferente, passando de um
sintoma anterior – modelo da lepra – para um sintoma novo, típico da postura
inquisidora, o modelo da peste. Contra a lepra, a separação, o isolamento, a clausura,
em nome de uma raça “pura”, de uma raça “limpa”. Na peste, ao contrário, tudo será
rastreado, solicitado, diagnosticado. Esse novo espaço...
... recortado, vigiado em todos os seus pontos, onde os indivíduos estão inseridos num lugar
fixo, onde os menores movimentos são controlados, onde todos os acontecimentos são
registrados, onde um trabalho ininterrupto de escrita liga o centro e a periferia, onde o poder é
exercido sem divisão, segundo uma figura hierárquica contínua, onde cada indivíduo é
constantemente localizado, examinado e distribuído entre os vivos, os doentes e os mortos –
18
Idem. p.129.
19
Idem. p.159.
30
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A fórmula abstrata do Panoptismo não é mais, então, “ver sem ser visto”, mas impor uma
conduta qualquer a uma multiplicidade humana qualquer. Especifica-se apenas que a
multiplicidade considerada deve ser reduzida, tomada num espaço restrito, e que a imposição
de uma conduta se faz através da repartição no espaço-tempo.21
20
Idem. p.175.
21
DELEUZE, GILLES. Idem. p.43.
31
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Porque eu não pude encontrar o alimento que me agrada. Se eu o tivesse encontrado, pode
acreditar, não teria feito nenhum alarde e me empanturrado como você e todo mundo.22
Não podia aceitar. Não era do alimento que lhe davam que o personagem
necessitava. E era em seu corpo que esse ponto de tensão entre a arte e a vida
acontecia. Não pela via do discurso, pela via da discussão racional ou intelectual, mas
pelo corpo. O mesmo lugar onde se investe o poder e que não se pode suportar mais é
o lugar da resistência. Kakfa é retrato de uma época em que este sentimento do
intolerável se fazia muito presente, que vai ser, sob muitos aspectos, o discurso da
performance:
32
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
São os líderes políticos que desejam atrair as massas; nós, que trabalhamos a longo prazo,
nos conformamos em ir conversando com a maior quantidade de pessoas possível, gente que
por seu turno conversará com outros grupos e assim por diante, em uma espécie de cadeia
incessante.24
Todos esses caminhos, aparentemente divergentes, apontavam para uma única direção,
reexaminar os objetivos da arte – de todas as artes – abrindo novas possibilidades para aquela
que é a mais sublime parte do homem, marcado por um mundo recém-saído da guerra e do
holocausto atômico.25
Não é que haja, entre estes procedimentos da performance e esta leitura do poder,
uma relação direta de causalidade, um estímulo-resposta, nem que a arte tenha uma
função pré-determinada à qual ela deva obedecer, mas o fato é que em um mesmo
período histórico temos a revolução russa e as duas guerras mundiais; um
desenvolvimento tecnológico numa velocidade inimaginável e um certo desconsolo do
mundo. Arte e tecnologia se imbricam pela fotografia e pelo cinema, criando uma
necessidade de questionamento de um certo realismo proposto por formas anteriores
24
GLUSBERG, JORGE. Idem. p.132
25
Idem. p.27.
33
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de arte, já que estas fazem isso muito melhor. Gerações de artistas vão questionar toda
essa situação, incluindo os modos de fazer e as expectativas em relação às linguagens
e à vida
O que podemos encontrar aqui é que, na quebra das tradições, na liberdade de
atuação e do uso das linguagens, o que se encontra são os diagramas, que não se
referem a algo externo ou interno, mas que a partir de impulsos e como respostas à
aspectos tanto internos (do artista) quanto externos (do meio, do social), emergem
como indicadores apenas de si mesmos, sem pontos de apoio:
É que o diagrama é altamente instável ou fluído, não pára de misturar matérias e funções de
modo a constituir mutações. Finalmente, todo diagrama é intersocial, e em devir. Ele nunca
age para representar um mundo preexistente, ele produz um novo tipo de realidade, um novo
modelo de verdade. Não é sujeito da história nem a supera. Faz a história desfazendo as
realidades e as significações anteriores, formando um número equivalente de pontos de
emergência ou de criatividade, de conjunções inesperadas, de improváveis continuuns. Ele
duplica a história com um devir.26
26
DELEUZE, GILLES. Idem. p.44-5.
34
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O estado do pestífero que morre sem destruição da matéria, tendo em si todos os estigmas de
um mal absoluto e quase abstrato, é idêntico ao estado do ator integralmente penetrado e
transtornado por seus sentimentos, sem nenhum proveito para a realidade. Tudo no aspecto
físico do ator, assim como no do pestífero, mostra que a vida reagiu ao paroxismo e, no
entanto, nada aconteceu.27
Fica claro na obra de Artaud a busca pela potência intrínseca dos elementos na cena,
que nos interessa aqui. Algo de linhas de forças, de atributos de linguagem e de modos
de organização. E é muito presente na cena da performance o questionamento dos
lugares habituais das forças envolvidas, um questionamento de suas qualidades como
elementos de representação de outra realidade. Conforme já salientado, Artaud vai ser
autor fundamental no desenvolvimento da performance, por exemplo, no sentido de um
certo imediatismo em relação aos elementos colocados em cena, que são o que são em
si mesmos, não querendo representar um terceiro. Trata-se da busca de um signo mais
próximo do icônico. Claro que sempre haverá algo de representação na utilização de um
elemento em cena, e que a presença do público trará inevitavelmente as associações
que este fará, em função da sua aproximação com a obra. Mas essa busca de
elementos próximos de suas qualidades intrínsecas é um dos mecanismos de busca da
potência do elemento em si, de uma certa assimetria cênica proposta, do
desmantelamento da uma certa dramaturgia.
Trará para os elementos em questão – cenários, figurinos, corpo, música – um modo
de utilização e de organização que não será mais o espaço da dramaturgia como texto,
diminuindo a importância do mesmo. A cena não se refere mais a um texto escrito, ou a
uma história a ser contada, ou a um conjunto de passos a ser realizado na dança. O
choque entre os elementos é que será de extrema importância. Não entre o que eles
têm de representativo, mas pelo que eles têm de materialidade e que vai se apresentar
para um público que será convidado a participar desse momento, com menos
conhecimento prévio do que vai acontecer e participante do contexto para a criação de
significados.
Quando os elementos não mais se colocam como suportes para a transmissão de um
texto (seja ele o texto teatral ou os conjuntos de passos na dança) que seja externo a
27
ARTAUD, ANTONIN. O Teatro e a Peste. In: O Teatro e Seu Duplo. São Paulo:
Martins Fontes. 1999. p.20.
35
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
eles ou pré-dados, encontramos potências não estratificadas das coisas e das formas,
ou seja, forças mais próximas da própria fonte de emissão, que tentam encontrar
caminhos para escoar. Ao entrar em contato com os elementos da materialidade a que
estão circunscritas, descobrem outros pontos de apoio, desconhecidos até então,
algumas vezes tanto para o performer – nesse sentido propositor da experiência –
quanto para o “espectador”, que nesse caso deixa de ser apenas um receptor passivo
da experiência e pode colocar-se como colaborador da cena, no momento presente, em
maior ou menor grau de intensidade, de acordo com as possibilidade que, por um lado,
a cena lhe dê, e por outro, de sua disposição e abertura para que isto aconteça.
Considerações Finais
O que desejei apontar com esta cartografia e com os apontamentos históricos que
realizei é que, em primeiro lugar, não há como delinear um território onde a performance
se realiza ou de onde ela parta. A construção passa sempre por uma
desterritorialização. Se partimos de um ponto de vista em que há a colocação do corpo
do artista como início da pesquisa, temos que considerar que aspectos identitários
sempre estarão presente. É freqüente uma certa característica “obsessiva” em relação a
alguns assuntos ou temas. Essa característica permite ao performer conversar com as
áreas de interesse para cada realização, estabelecer diálogo com outros artistas, com
outras disciplinas, colaborações técnicas, articulando um fluxo de diálogo e contato em
que não é suficiente ser o especialista de uma área para poder interagir com ela, pois
existe a liberdade e a abertura para apropriar-se de fragmentos de experiências.
Considerando que essas possibilidades de diálogo com outras áreas constituem um
campo de investigação multidisciplinar, podemos apontar uma característica
transdisciplinar da performance, via Teoria Geral dos Sistemas, apontando futuros
estudos nessa área. Segundo a fórmula de sistemas proposta por Avanir Uyemov28:
“dado um agregado qualquer de coisas (m), isto será um sistema (S) quando,
28
VIEIRA, JORGE DE ALBUQUERQUE. Intersemiose e Arte. São Paulo: Anais do VIII Congresso
Nacional da Federação de Arte-Educadores do Brasil, 1995. p.01.
36
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Uma conseqüência desta pesquisa é que a performance art pode ser vista como essa
propriedade partilhada P. A partir do diálogo com as áreas de interesse (que constituem
as linhas de força), dos diagramas, das forças que atuam sobre o corpo, pela
característica autoral e biográfica do performer, a relação com outras “disciplinas” –
dança, teatro, artes plásticas, música etc. – possibilita uma interação interdisciplinar, e
promove a emergência de um transdisciplinar, a propriedade partilhada P, a
performance art, que não está em nenhuma das partes anteriores, mas que emerge e
dá sentido às partes. Isto não a isenta de rigor nem a torna uma espécie de “salada”, de
mistura de qualquer coisa, pois esse todo, esse emergente, por mais que seja criado a
partir de fragmentações, de diálogos com outras disciplinas, com outras áreas, precisa
apresentar coerência.
Mas como descobrir essa coerência? Só no momento em que a performance se
realiza é possível descobrir isso. Haverá sempre um risco envolvido. O que o
pesquisador tem como possibilidade é descobrir quais são os atratores que ele pode
utilizar, que serão percebidos ao longo do trabalho, para criar índices de
gramaticalidade que possibilitem ao outro a leitura de sua obra, em participação com
ele. Os atratores são os pontos de confluência, de tendências, para onde o trabalho vai
se encaminhando na sua elaboração. Assim, por mais que se tenha a liberdade de
pesquisar as bordas e fronteiras com as áreas de saber que se tenha vontade, e com
isso chegamos à noção disso que estou chamando de campo de investigação, o
trabalho da performance traz elementos que, quando aparecem, permanecem durante
todo o processo. Tomamos de empréstimo uma citação de Paula Sibilia que, na
introdução de seu livro, pede um novo olhar para as discussões que fará. Para a autora:
As artes, as ciências e a filosofia devem assumir essa tarefa esquiva, pois esses três tipos de
saberes nos intimam a mergulhar no caos. Em vez de desfrutar a tranqüilidade que oferecem
as certezas absolutas, o desafio consiste em enfrentar o abismo desconhecido. (...) A verdade,
afinal, é apenas “uma espécie de erro que tem a seu favor o fato de não poder ser refutada
porque o longo cozimento da história a tornou inalterável”, como apontou Michel Foucault em
37
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
Microfísica do Poder. (...) a proposta é abrir uma fenda na segurança do já pensado para
deixar passar a riqueza do ainda não pensado, como um raio impetuoso capaz de alterar
aquilo que é29.
Referências Bibliográficas
ARTAUD, ANTONIN. O Teatro e Seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes. 1999.
BERTALANFFY, LUDWIG VON. Teoria Geral dos Sistemas. Petrópolis: Vozes,
1975.
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em Comunicação e Semiótica PUC-SP. São Paulo. 1999.
COHEN, RENATO. Performance Como Linguagem: Criação de um Tempo-
espaço de Experimentação. São Paulo: Perspectiva, 1989.
COHEN, RENATO. Work In Progress na Cena Contemporânea. São Paulo:
Perspectiva, 1998.
DELEUZE, GILLES. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
FOUCAULT, MICHEL. Vigiar e Punir. Nascimento da Prisão. Petrópolis: Vozes,
1977.
GLUSBERG, JORGE. A Arte da Performance. São Paulo: Perspectiva, 2003.
GUINSBURG, J., TELESI, SILVIA FERNANDES e NETO, ANTONIO MERCADO
(orgs.). Linguagem e Vida. Antonin Artaud. São Paulo: Perspectiva.1995
HARDT, MICHAEL e NEGRI, ANTONIO. Império. São Paulo: Record, 2003.
KAFKA, FRANZ. Um Artista de Fome e A Construçâo. São Paulo: Brasiliense,
1995.
NUNES, SANDRA MEYER. O Corpo Que Pensa. O Treinamento Corporal na
Formação do Ator (Stanislavski, Artaud, Grotowski, Barba, Antunes Filho). Tese de
29
SIBILIA, PAULA. O Homem Pós-Orgânico. Corpo, Subjetividades e Tecnologias
Digitais. Rio de Janeiro. Relume Dumara:2003. p.20-1.
38
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40
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A partir desses aspectos preliminares, concordamos com Dias (1990, pg. 132) no
sentido de que uma abordagem antropológica possa ser útil para “o entendimento das
práticas artísticas de nossa modernidade e pós-modernidade” através das suas
manifestações concretas e cotidianas. E, apesar de não estarmos fazendo aqui um
41
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O ENGENHEIRO “CORPORAL”
Flávio de Carvalho, depois de onze anos de estudos na França e na Inglaterra,
retorna ao Brasil em 1922, reinstalando-se na híbrida cidade de São Paulo que dava
passos largos em função da crescente industrialização, mas ao mesmo tempo
mantinha-se culturalmente presa ao tradicionalismo e ao preconceito provinciano.
Engenheiro civil, portando um diploma da Universidade de Durham, Newcastle, logo
é contratado por um dos mais conceituados escritórios da cidade exercendo a função de
calculista por alguns anos junto a equipe de Ramos de Azevedo, responsável pelas
principais obras de engenharia e arquitetura da época.
O austero engenheiro calculista atua, no entanto, sob o domínio do artista que
freqüentou o departamento de Belas Artes da mesma universidade – King Edward VII
School of Art e tendo uma cidade ambiciosamente “modernista” como palco do embate
entre a tradição e a vanguarda, foi uma questão de tempo despontarem suas vivências
junto às vanguardas artísticas européias, impregnadas das idéias futuristas, surrealistas
e expressionistas.
O projeto apresentado em 1927 para o Palácio do Governo de São Paulo logo
desperta a crítica dos olhares “conservadores” de plantão e a simpatia dos modernistas.
Flávio de Carvalho envia para os jornais um novo desenho desse projeto,
propositadamente menos técnico e pleno de contrastes em preto e branco. O impacto
visual adquirido por esse novo esboço é perfeito para a reprodução nos jornais e Flávio
inicia assim a sua própria “tradição” no que diz respeito a tomar partido - sempre e o
máximo possível - de qualquer meio de comunicação que se fizesse disponível (Leite,
42
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
2004).
Naquela época a arquitetura brasileira ainda se consolidava através dos “neo-isto” ou
“neo-aquilo”, convenientemente importados da Europa e que delegavam aos prédios,
sobretudos aos públicos o caráter de sobriedade pretendido pela “metrópole em
desenvolvimento industrial” e que procurava driblar, a todo custo e com intervenção
federal, os problemas oriundos da crise do café e do crack da Bolsa de Nova York em
1929.
O escritório de engenharia onde Flávio de Carvalho prestava serviços foi
responsável, por exemplo, pela construção da Escola Politécnica, dos Correios e do
Teatro Municipal de São Paulo. As escolhas do universo clássico na maioria das
construções dessa época traduziam, portanto, valores que estabeleciam “uma
continuidade em relação a um passado” conveniente (HOBSBAWN, 1984, pg. 09) e
que pudesse refletir a aura ao mesmo tempo de progresso e poder, inventando
tradições convenientes a manutenção do status quo vigente.
Segundo Newton Freitas (1983, pg. 69), São Paulo nos anos 20 era a autêntica
“tradução européia” de costumes e tradições, submetida à penetração das correntes
migratórias e do desenvolvimento urbano e industrial e não foi mera coincidência ter
sido, em contrapartida, o palco da vanguarda brasileira a partir da Semana da Arte
Moderna .No entanto, apesar dos gritos modernistas terem projetado alguma luz diante
das artes plásticas e literárias, as influências modernistas na arquitetura eram até então
desconhecidas.A funcionalidade, o despojamento e o caráter geométrico dos projetos
que o engenheiro começa a difundir em sucessivos concursos, sempre através de um
pseudônimo, Efficacia, gera estranhamento e discussão ainda no final da década.
Os primeiros projetos modernistas vieram a ser executados na cidade de São Paulo a
partir dos anos subseqüentes e é claro, preferencialmente importados de arquitetos
estrangeiros (ainda assim, estes também geraram polêmica). Foi o caso da primeira
casa modernista construída na cidade de autoria do arquiteto russo Gregori
Warchavchik em 1928.
O que nos parece mais interessante aqui é o fato de Flávio de Carvalho ter utilizado
conscientemente a imprensa no sentido de difundir as propostas modernistas de seus
projetos arquitetônicos, fato que vai se repetir sucessivamente durante o ano de 1928 e
1929. São exemplos os projetos para a Embaixada Argentina no Rio de Janeiro,
43
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O ARTISTA “CALCULISTA”
As inovadoras propostas de Flávio de Carvalho para o teatro assim como suas
performances, aconteceram na ainda provinciana São Paulo da década de 30 e 40
agitando a imprensa e o público conservador da cidade e posteriormente, de forma mais
branda, nos anos 50. Consideradas na época como atitudes escandalosas e de auto
promoção, por muitos anos abordadas de forma especulativa, até mesmo romântica,
são hoje consideradas como pioneiras da linguagem performática e de intervenção
urbana-social no Brasil tendo inclusive, segundo Cohen (2002, p.44) influenciado as
futuras gerações de performers. 31
Diante desses fatos, levantamos a posição de Sahlins no que se refere às questões
históricas, não sendo estas, “nem longinquamente, tão exóticas quanto tais ocorrências
possam sugerir”. Com certeza, o caráter transgressor e ousado, por vezes incoerente
das primeiras ações propostas por Flávio de Carvalho, gerou conflitos de interpretação
diante não só do público em geral como também diante dos mecanismos culturais de
elite dominantes na época, avesso a tais concepções. Suas “atitudes escandalosas” da
30
O artista propõe a fusão dos vários elementos teatrais na busca de reação sensorial na assistência. In:
Theatro Antigo e Moderno, O Homem do Povo (3), São Paulo, 31/03/1931.
31
São, entre outras: “Experiência nº 2” - caminhada na contramão de uma procissão religiosa; a “soneca”
com amigos em uma cama de casal na exposição de móveis organizada no Saguão do Cine Odeon; as
apresentações performáticas da banda “Lira Musical Flor dos Jabaquaras” que se sucederam na então
Rádio Cultura (executadas sem a utilização de instrumentos musicais); o banho na Fonte das Lagostas
situada na Praça Júlio de Mesquita; a “Experiência nº 3” - lançamento de seu traje de verão masculino – o
New Look - em desfile solo pelas ruas da capital paulista; a Experiência nº 4 – uma expedição à Amazônia
com o propósito de investigar a evolução social e humana no continente americano.
45
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Hobsbawm (1984, pg. 276) cita o trabalho desses dois psicólogos sociais como parte
dos estudos promovidos pelos governos europeus da época para a manutenção da
estrutura e da ordem social a partir do final do século XIX. A política das massas
percebia e tirava partido exatamente da irracionalidade inerente as multidões e é a partir
dessas teorias de manutenção da ordem social que Flávio de Carvalho vai questionar
essas mesmas estruturas e gerar o desconforto nas elites poderosas de São Paulo.
Ainda no início dos anos 30, Flávio de Carvalho dedica-se a organização do Teatro
da Experiência, que seria segundo ele um laboratório experimental com a intenção de
criar um teatro novo, com novas estruturas de cenário, encenação, iluminação 32.
Influenciado pelas pesquisas dos antropólogos Frazer (O Ramo Dourado) e Malinowiski
(O Papel do Mito na Vida) e impregnado de Nietszche, o artista decide que a peça
inaugural do teatro seria “O Bailado do Deus Morto”, texto de sua autoria:
Terceiro ato: tal foi o impacto e o escândalo causado pela peça na época que a
delegacia de costumes de São Paulo censura o texto e decide fechar o Teatro da
32
Consultar: “Flávio de Carvalho - cenógrafo” - artigo publicado no Catálogo da Exposição na XVII Bienal de
São Paulo, São Paulo, 1983, pg. 61 de autoria de Nicanor Miranda.
47
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Experiência. E mais uma vez temos os ataques mútuos entre Flávio de Carvalho e os
conservadores através dos infindáveis artigos publicados nos periódicos sobre o “novo
incidente” envolvendo o “artista maldito”.
Nos anos seguintes não faltam novos escândalos, envolvimentos com a polícia e
embates intelectuais através da imprensa. Exemplo disso é “A Máquina e o Asceta
Sinistro” publicado no Diário de São Paulo em 01 de Maio de 1932. O artigo não só
escandaliza os religiosos e leitores de uma forma geral como quase garante ao autor
tratamento psiquiátrico no exterior patrocinado pela família. São décadas intensas, onde
o artista dá ênfase a seus trabalhos como artista plástico e produtor cultural. Passa a
organizar o Salão de Maio, funda o Clube dos Artistas Modernos onde ocorrem
reuniões, exposições e palestras com nomes de ponta no cenário artístico nacional e
internacional 33 e faz diversas exposições individuais de suas pinturas e desenhos.
Sua produção como artista plástico ilustra bem sua preocupação com “a percepção
psicológica e mentalista” e buscava ao mesmo tempo a “compreensão mental e
sensibilidade emotiva” citados pelo artista no Manifesto do III Salão de Maio, final dos
anos 30. De forma geral, suas obras apresentam indiscutível unidade no conjunto sendo
a maioria de retratos e nus de forte tendência expressionista e esse caráter vai se
manter ao longo dos anos, inclusive durante a década de 50. A partir dessa época, o
artista passa a inserir planos geométricos no fundo de suas telas mas apesar desta sutil
influência, segue no entanto,combatendo as correntes concretas brasileiras.
Zanini (1983, pg. 6) aponta a forma aguda como o artista penetra no estado psíquico
dos modelos bem como na apreensão do caráter erótico das mulheres retratadas.
Célebre é a frase de Mario de Andrade sobre a impressão psicológica de seu retrato
feito por Flávio de Carvalho: “Quando defronto o quadro feito pelo Flávio, sinto-me
assustado, pois vejo nele o lado tenebroso de minha pessoa, o lado que escondo dos
outros”.
Uma das séries mais notáveis (e que na época foi alvo de críticas em função do
tema) executadas durante os anos 40 foi a denominada “Trágica”, onde retrata os
últimos momentos da mãe no leito de morte. Figura muito importante na vida do artista
já que era ela quem garantia, a revelia da família, o dinheiro necessário a Flávio de
33
Käthe Kollwitz, David Alfaro Siqueiros, Edmundo Haas, entre outros.
48
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Além disso, praticamente toda a sua produção escrita, a maioria relativa as sua
impressões de viagens, são adquiridas pela imprensa, e uma delas é publicada pela
editora Ariel em 1936 sob o nome de “Os Ossos do Mundo”. “Rumo ao Paraguai”,
encomendada antecipadamente, é publicada no Diário de São Paulo em 1943.
34
Já nos anos 30 projeta a “vestimenta adequada aos trabalhos de expedição”, traje que seria utilizado na
pesquisa de campo que estudaria o berço dos gafanhotos, nunca realizada.
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entre outros: a “Experiência nº. 3”, de 18 de outubro de 1956, que também teve como
local de realização as ruas do centro da cidade de São Paulo. Desta vez Flávio de
Carvalho desfilou um traje masculino por ele idealizado, o New Look – ou segundo a
perspectiva de Moraes (1986, p. 66), “a roupa nova do homem nu”. Consistia de
sandálias, meias femininas, saia, blusa bufante e chapéu.
O projeto desse traje foi apresentado pela primeira vez em 1952 durante uma
entrevista com o jornalista e crítico de arte Luis Martins e na ocasião, foram exaltadas
suas qualidades no que diz respeito a adequação ao clima dos trópicos e o abandono
aos padrões internacionais. Na verdade, esta performance ilustrou os artigos da série “A
Moda e o Novo Homem” que o artista publicara durante oito meses em sua coluna no
Diário de São Paulo durante o ano de 1956 e que foram resultantes de pesquisas
iniciadas no início dos anos 30 sobre a história do vestuário. Entre esses artigos: “O
Defeito – o Aspecto”, “O Valor do Corpo”, “O Homem Nu e o Homem Vestido”, “A Magia
da História – o Pudor” e “A Grande Imaginação do Limite Vagando pela Rua”. Neles, o
autor aborda questões pertinentes a relação corpo-traje-homem e suas modificações e
adaptações sofridas ao longo da história frente aos aspectos sócio-culturais.
50
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vestir do homem brasileiro que mais uma vez importou e incorporou o modelo europeu
ao longo dos anos.
Nas “performances caminhantes” (LIGIÉRO, 1999), assim como nas demais ações,
Flávio de Carvalho centrou as expectativas de criação no seu próprio corpo e nas
relações que o mesmo estabelece com o público, com o espaço e com a cultura. A
síntese da sua produção teórica referente aos trabalhos abordados aliada ao processo
performático em sí, ou seja, o confronto de seu próprio corpo com uma audiência
totalmente aleatória, sugerem a ampla percepção desse corpo e das relações que este
estabelece com o espaço físico e temporal assim como das possibilidades do mesmo
como mais um caminho de expressão para o artista já a partir da década de 30.
Tais aspectos serão levados ao extremo com a “Experiência nº. 4”, realizada em
1958, na verdade, mais do que uma viagem, uma proposta experimental de intervenção
social e pesquisa antropológica. O artista incorpora uma expedição de pesquisa ao alto
Rio Negro, organizada pelo Serviço de Proteção ao Índio. A intenção dele era a de
produzir um filme sobre a lenda da “deusa branca” junto a tribo dos Xiriana. Os
preparativos para tal incursão foram exaustivamente divulgados por Flávio de Carvalho
e claro que os jornais aproveitaram a repercussão de tal expectativa. O filme, conforme
o planejado, nunca foi concretizado mas, no entanto, aspectos interessantes sobre a
tribo foram documentados e relatados por ele.
Tendo em vista a importância específica dada ao corpo, incluindo-se aí suas relações
com o espaço, tempo e sociedade, presentes em toda a produção de Flávio de
Carvalho (OSORIO, 2000), percebe-se a antecipação de propostas e mecanismos de
questionamento em relação a esse corpo que só viriam a se consolidar nos anos
subseqüentes aos de sua produção e que se mantêm presentes na arena de discussão
da arte contemporânea, sobretudo como já assinalado, do teatro, vídeo, cinema e
performance.
Cumpre lembrar que o corpo enquanto ação artística e/ou objeto de arte vai ser
interpretado dessa forma nos anos 60 frente as novas concepções da cultura dita
performativa que delega ao corpo desfetichizado o poder de existir como matéria-prima
dos happenings , da body-art e das performances em sua maioria. Além disso, um dos
focos primordiais de interesse atualmente, a despeito das inúmeras possibilidades de
apreciação por parte dos estudiosos e críticos gira em torno do processo de trabalho,
51
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Nesse sentido, Leite, no artigo “Flávio de Carvalho: Media Artist Avant la Lettre”,
publicado em formato eletrônico na revista Leonardo em 2004 enfatiza os processos de
criação, execução e recepção das Experiências desenvolvidas por Flávio de Carvalho e,
sobretudo, chama a atenção para a repercussão que tais atitudes tiveram em seu
ambiente cultural.
Um dos pontos que mais nos interessa destacado pelo autor é o fato de a
“Experiência nº. 3” e a “Experiência nº. 4” terem sido anunciadas com meses de
antecedência bem como a “Experiência nº. 3” ter sido uma das primeiras ações
artísticas a fazer uso e se difundir através da televisão, veículo de comunicação de
massa em consolidação durante a década de 50. Leite destaca ainda a incorporação
dos conceitos da psicologia, antropologia e sociologia no trabalho artístico de Flávio de
Carvalho, a forma como antecipou questões relativas ao vestuário de forma geral e a
utilização dos meios de comunicação (jornal, rádio, televisão, cinema) de forma a dar o
máximo possível de visibilidade aos seus projetos, trabalhos e idéias de uma forma
geral, contribuindo para a difusão e popularização destes.
O ARTISTA “ARTISTA”
Os anos 50 marcam para Flávio de Carvalho o início do reconhecimento de sua
trajetória enquanto artista. Suas ações – ou atitudes - já não causam o escândalo e as
críticas acirradas que caracterizaram as décadas anteriores. Garantem sim, uma
52
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Garcia Lorca, encomendado por exilados espanhóis e que foi destruído por um grupo
intitulado “Comando de Caça aos Comunistas”.
Essa estreita relação que Flávio de Carvalho mantém até o final da vida, sobretudo
com o seu entorno político e moral, servem de modelo para que tentemos visualizar e
entender sua produção frente às “demais expressões dos objetivos humanos” (Geertz,
1997). A obra teórica e prática do artista expressam-se a partir - e em consequência de -
um modelo cultural em mutação submetido, sobretudo às intempéries das ações
políticas e econômicas. Consciente disso, uma de suas últimas “atitudes” diante do
momento repressivo foi concorrer, em 1972, com Alfredo Buzaid, então Ministro da
Justiça do General Médici a uma vaga na Academia Paulista de Letras sendo apoiado
por Sérgio Buarque de Holanda e Luís Martins ao mesmo tempo em que mantinha um
projeto com o Teatro de Arena, reduto da resistência paulistana à repressão militar, de
executar finalmente o Bailado do Deus Morto. Mais uma vez isso não acontece.
Com sua morte, em 1973, alguns outros projetos também ficam em aberto, um deles,
é a sala de Maria Martins e Tarsila do Amaral que organizava na XII Bienal de São Paulo
e o filme produzido por J. Toledo, “O Comedor de Emoções”.
Vida e obra do artista fundem-se o tempo todo desde o começo de sua carreira assim
como sempre se fundiram suas propostas de intervenção artísticas com os fenômenos
sociais e culturais que percebia e estudava. O artista plástico, sobretudo o pintor
moderno, funde-se com o performer e com o action-artist pós-moderno. A fantasia e a
realidade se misturam em sua vida pessoal e profissional e o artista, mais do que
atento, sempre tira partido de qualquer possibilidade de “escândalo” para usufruir de
seu espaço na mídia.
Publica panfletos para divulgar suas casas modernistas nos anos 30 e seu traje de
verão nos anos 50 da mesma forma que mandou imprimir cartões explicativos sobre o
atropelamento que sofreu por volta dos anos 40 e o problema que resultou em um dos
seus pés. Redigidos e explicados todos eles com a mesma maestria presente, por
exemplo, na “Cidade do Homem Nu”. E com a mesma seriedade que apresentava suas
palestras nos congressos internacionais, comparecia todas as semanas na sede da
recém fundada Rádio Cultura, num quintal do subúrbio paulistano para performar um
35
instrumento musical “virtual” . E é com essa habilidade que vai multiplicando
35
Consultar: “Flávio 1, 2, 3 – Louco, Lunático, Infantil”, Sangirardi Jr., artigo publicado no Catálogo da
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Referências Bibliográficas
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de
Janeiro: Contra Capa, 2000.
CANCLINI, Néstor Garcia. La Modernidad después de la posmodernidad. In:
BELLUZZO, Ana Maria de Moraes (org.). Modernidade, Vanguardas Artísticas na
América Latina, São Paulo: Ed. UNESP, 1990.
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Atriz desde 1989, foi pesquisadora de Teatro Físico (a partir do trabalho de Yves
Lebreton) de 1997 a 2003, quando conheceu a performance art e o seitai-ho (técnica
japonesa trazida para o Brasil pelo performer fu-gaku Toshi Tanaka). Atualmente, além
de realizar pesquisa de criação cênica a partir do seitai-ho, leciona na Universidade
Federal de Ouro Preto, onde desenvolve, junto ao corpo discente, trabalho prático sobre
o papel da respiração na criação cênica. Como derivação desse trabalho, desenvolve
pesquisa de mestrado na UFMG sobre possibilidades de trabalho integrado de voz e
movimento corporal para artistas cênicos.
Resumo
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Ministrar essa disciplina mostrou-se um desafio, logo de início, por uma série de
questões: 1. o curso não tem linha de trabalho voltada para as linguagens cênicas
contemporâneas, a matéria em questão seria apenas uma “rápida passagem/
experimentação” por um viés mais contemporâneo das artes cênicas; 2. a disciplina é
obrigatória, o que significa que todos os alunos, interessados ou não pelo assunto,
deveriam cursá-la; 3. são raríssimas as intervenções performáticas na cidade de Ouro
Preto, e os alunos, na sua maioria vindos de cidades do interior de São Paulo e Minas
Gerais, praticamente nunca tiveram contato com esse tipo de arte – conheciam-na
principalmente por terem “ouvido falar” sobre.
Assim, o primeiro desafio apresentado foi tentar eliminar, de pronto, uma série de
preconceitos já formados sobre a performance art nesses alunos. A frase inaugural, e
que se estabeleceu como o mote de todo o nosso curso, foi: “Performance Não É
Teatro”; ela é uma das artes cênicas, sim, como a dança, o circo, o próprio teatro, mas
não é teatro – embora dialogue, troque influências, misture fronteiras, a performance art
configura-se como uma arte autônoma, diferente em princípios e fundamentos, do
teatro. Isso nos serviu principalmente para minar o preconceito, já arraigado em muitos
deles, de que Performance seria “um tipo de teatro esquisito” que “ninguém entende”
(palavras deles).
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Dessa forma, dentre as diversas linhas de trabalho e pensamento que fazem parte do
universo da performance, para dar aos alunos uma visão o mais clara possível sobre o
que seria realmente a performance art como arte “não-teatral”, embora cênica, optamos
por manter nossa abordagem totalmente dentro das questões plásticas da performance:
não só sua origem nas artes plásticas, como principalmente os modos de trabalho e
conceituação das artes plásticas, que afetam (e, muitas vezes, determinam) os modus
operandi das performances (sem contar com as discussões sobre arte moderna e pós-
moderna, e sobre o papel do artista e o status da arte na pós-modernidade, discussões
muito mais elaboradas no âmbito das artes plásticas que nos das artes cênicas). Isso
trouxe a possibilidade de discutirmos concretamente, a partir da oposição radical com o
universo teatral, as questões da não-narratividade, da ausência da personagem (em
favor da persona), da questão do tempo distendido, da utilização expandida do espaço
e, principalmente, da relação com o espectador.
Após a discussão conceitual das questões citadas acima, como passo inicial do
trabalho prático pedimos aos alunos que se juntassem em duplas ou trios36 e criassem
uma cena performática a partir do tema linha. O tema foi dado sem nenhuma explicação
ou direcionamento de nossa parte. Pretendíamos, com isso, que os alunos tivessem o
máximo possível de liberdade no desenvolvimento do tema, a partir de imagens,
36
Evitamos o trabalho solo para que os alunos pudessem passar pela experiência da criação em conjunto:
apesar de cada um deles ser considerado, nesse trabalho, como um criador independente, eles
deveriam também encontrar pontos de diálogo entre suas criações, dentro de um mesmo “grupo” – tal
como acontece em performances elaboradas por artistas diversos.
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materiais e meios que fossem absolutamente pessoais a eles, dentro do seu próprio
universo de possibilidades, idéias, técnicas, desejos. Isso gerou, a princípio, uma
perplexidade que chegou em alguns casos a beirar o pânico ou a fuga: dentro da
formação tradicional em teatro, somos sempre convidados a nos filiarmos a alguma
corrente estética, a algum pensamento já instituído ou, no caso de atores, a seguirmos
as ordens ou idéias trazidas por um diretor, “chefe” do trabalho de criação e das
escolhas estéticas.37
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O ambiente de criação das cenas foi bastante rico, pois os grupos trouxeram
concepções bastante diversas, com execuções mais diversas ainda, sobre o tema
genérico linha: linha da vida, linha como caminho, linha como imagem da ascese
(ascensão vertical), linhas como marcas de tiro ao alvo (na violência urbana), linha
como fronteira, ou como obstáculo, ou como proteção, ou como ligamen entre as
pessoas e das pessoas com o mundo, linhas como estrutura de jogos (jogo da velha,
caça ao tesouro). Após a primeira apresentação das cenas, questionamos cada grupo
sobre o conceito que eles queriam desenvolver em suas performances; pusemos em
discussão e fizemos sugestões para que esse conceito ficasse cada vez mais claro e,
ao mesmo tempo, cada vez mais complexo e mais amplo. O segundo passo foi exigir
dos alunos o máximo de rigor e precisão na construção da cena: eles não poderiam “se
dar ao luxo” de executar ou construir a cena performática de maneira “aproximada” ou
improvisada; eles deveriam ter o máximo de fidelidade possível àquilo que eles
imaginaram, àquilo que eles desejaram na sua criação. Com isso, pudemos abrir a
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discussão sobre o fato de que eles deveriam ter sempre o máximo de respeito por seus
impulsos e desejos criativos, pois embora costumem ser tratados, no âmbito teatral,
como coisas secundárias, imagens, desejos, improvisações são o próprio material de
trabalho de um criador cênico – são aquilo que ele produz, como artista.38
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À parte as questões puramente didáticas que nos nortearam, nossas escolhas foram
feitas primeiramente a partir do nosso próprio percurso de formação (já que iniciamos
nossa carreira também no teatro, e portanto conhecíamos bastante bem, por
experiência própria, a maior parte da hesitações e estranhamentos dos alunos), mas
principalmente pela nossa convicção pessoal, como artista, que a fé na primeira
imagem, com tudo o que ela acarreta, é fundamental para a construção do caminho
criativo do performer.
Referências Bibliográficas
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De fato, uma das alunas declarou textualmente que “ela podia não saber direito o que era mesmo essa
tal performance, mas que ela tinha acabado o curso sabendo muito melhor o que era teatro”.
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Resumo
Diante das tecnologias presentes em nossa vida cotidiana, se fazendo não apenas
instrumento ou extensão dos sentidos, mas também paisagem e componente quase
orgânico, algumas questões acerca do corpo e da cidade se tornam pertinentes.
Sobre a cidade podemos pensar em suas transformações e nas implicações daí
decorrentes para o imaginário deste homem urbano que passa a re-significar, entre
outras coisas, conceitos como espaço e tempo, especialmente quando falamos de
cibercidades.
E não apenas o imaginário sofre modificações; as formas de sociabilidade e o contato
com o outro se alteram e a própria noção de corpo é colocada em xeque.
A proposta deste trabalho é discutir acerca dos desdobramentos possíveis a este
corpo e quais relações estabelece com a cidade, aqui também vista como um corpo, e
que é o seu lugar de habitar, fazendo uso de alguns pensadores destas questões, tais
como: Walter Benjamin, Georg Simmel, Edgar Allan Poe, Michel Foucault, Paul Virilio,
Lúcia Santaella, Paula Sibilia entre outros.
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“fim do prazo, fim do relevo, o volume não é mais a realidade das coisas, esta se dissimula na
banalidade das figuras. A partir de agora o tamanho natural não é mais parâmetro do real, pois
este último se esconde na redução das imagens na tela (...) a realidade parece se desculpar
por possuir um relevo, uma espessura qualquer.” (Virilio, 1993:109)
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Além disso, esse espaço configura uma nova forma de sociabilidade cada vez mais
fragmentada e segmentada por interesses de seus participantes com uma nova
linguagem e novas formas de interação através de um outro corpo que passa a estar
configurado a partir dessas tecnologias. Como afirma Roy Ascott, representante da
tecno-arte,
“à medida que interajo com a Rede, reconfiguro à mim mesmo; minha extensão-rede me
define exatamente como meu corpo material me definiu na velha cultura biológica; não tenho
nem peso, nem dimensão em qualquer sentido exato, sou medido pela minha conectividade”
(Ascott in Sibilia, 2002:57)
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Contudo, de agora por diante, tu também estás morto... Em mim tu vivias... e, na minha
morte, vê por esta imagem, que é a tua própria imagem, quão completamente
assassinaste a ti mesmo!”
Neste sentido, tendo em vista que as cidades surgiram para aproximar os homens, as
cibercidades, e a rede de um modo geral, tornam-se um paradoxo na medida em que
unem à distância (Virílio in Salles, 1989:135), no sentido de que o contato, via
tecnologia, pode se tornar mais constante e sem barreiras geográficas, e em que o
sujeito, ao mesmo tempo em que desaparece, se torna hiperpresente..
Este trabalho tem como objetivo discutir de que forma o corpo passa a ser percebido
a partir das modificações trazidas com os avanços da medicina e biologia, com a
possibilidade de ser reconstruído e até prolongar a vida e, como esse novo corpo,
híbrido, passa a se sociabilizar na rede através de uma duplicidade imagética de si.
Tudo isso perpassando pela cidade, e agora cibercidade, que é o lugar onde esse corpo
está imerso.
Para a realização deste trabalho foi desenvolvida uma pesquisa do tipo bibliográfica,
através da leitura analítica e interpretativa de textos: livros, artigos de jornal, revistas,
sites especializados etc. Assim, o primeiro capítulo do trabalho traz um breve histórico
da cidade desde a modernidade até as cibercidades; o segundo traz a discussão sobre
as novas configurações do tempo a partir das novas tecnologias da informação e da
comunicação, bem como sobre realidade e virtualidade. Já o terceiro capítulo trata
especificamente sobre o corpo, sua nova configuração e possibilidades de
desdobramento a partir dos avanços tecnológicos, mas cuja mediação continua se
dando através da linguagem desde as artes até a sociabilidade através da internet.
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Podemos, por exemplo, considerar a cidade como memória, pois em seu espaço são
acumulados alguns elementos que contam e guardam sua história. São as construções
arquitetônicas e monumentos que, como afirma Marc Augé pretendem “ser a expressão
tangível da permanência ou pelo menos da duração” (Augé, 1994:58) e que falam de
um momento vivido e uma cultura que ali passam a estar representados. Mas não
apenas grandes feitos nos conta a cidade: tampinhas de garrafa cobertas pelo asfalto, a
ferrugem que corrói, o lixo (restos de ontem), e as marcas da interação humana que se
fazem presentes e nos falam do passado.
A cidade pode ser vista também como a imagem de um grande mosaico: imagens
diversas e de todos os tipos – publicitárias, eletrônicas, além de ser palco para a vida de
diversas raças com suas muitas linguagens. Pode ser ainda a cidade da multidão em
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“Pela primeira vez, o espaço em que vive o homem privado se contrapõe ao local de trabalho.
Organiza-se no interior da moradia. O escritório é seu complemento. O homem privado,
realista no escritório quer que o interieur sustente as suas ilusões” (Benjamin, 1991:37).
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“Entendemos, então, que a grande crise provocada pelo surgimento da fotografia aconteceu
por uma disputa no campo simbólico da apreensão do tempo, pela idéia de fixação do tempo.
Mais do que imagens, é a revelação de instantes imperceptíveis do tempo que surpreende o
homem moderno. É como se, ao apreender uma imagem com qualidades de verossimilhança,
a fotografia tivesse causado um efeito de prolongamento temporal que afetou a subjetividade
humana moderna” (Furtado, 2002:44)
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que talvez a linguagem não dê conta de expressar e cujo exemplo citado por Benjamin
é a experiência da guerra de trincheiras; ou porque são tantas e/ou tão efêmeras que
delas pouco se guarda para narrar. Neste caso guarda uma ligação com o tempo,
especialmente o tempo acelerado que hoje vivemos. Nas palavras de Paul Virilio, “a
energia da informação alimenta uma corrente de transformação descontínua, alternativa
e de curtíssima duração, na qual o que domina não é mais tanto o espaço (...), mas
antes a temporalidade” (Virilio, 1993:75/76).
Como vemos, as transformações são inúmeras e se dão para o sujeito,
principalmente, na forma de apreensão da realidade. Assim, essas características do
enclausuramento, da distinção do público e privado, bem como da questão da
experiência e das mudanças espaço-temporais, ficam cada vez mais acentuadas à
medida que novos elementos tecnológicos, não apenas passam a se constituir como
aparatos de uso doméstico, como passam a estar inseridos na paisagem urbana.
“Telas nos informam e nos formam; telas nos colocam em contato com o mundo; telas nos
controlam; telas expressam nossos desejos e ampliam nossos sentidos; telas registram,
reproduzem, produzem, criam; telas descobrem nossa consciência e nosso corpo; telas dão
conta de nossa felicidade e de nossa doença... É como se tudo, desde nossos sonhos até as
grandes decisões que afetam o futuro da humanidade, se tivesse convertido num prodigioso e
monumental efeito de telas” (Subirats, 1993: 45)
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para ele uma nova relação temporal que pauta a vida cotidiana: o tempo real.
“Não se trata mais aqui da supremacia de um meio de informação sobre a imprensa, o rádio ou
o cinema, é a casa que se transforma em uma ‘casa-imprensa’, uma arquitetura em que a
dimensão-informação se acumula e se comprime, em concorrência direta com as dimensões
do espaço das atividades diárias” (Foucault, 1987: 173)
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forma como se pode ainda pensar o corpo. A experiência do choque, do corpo que se
encontra no embate com o outro, é sucedida pela experiência do transitório como uma
tentativa de evitar o padecimento do corpo, ou mesmo o seu morrer.
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carentes. Entretanto, nos dias 22 e 23/11/04 o site estava fora do ar. Outros projetos
como o “Clicar” da Universidade de São Paulo disponibilizam computadores com acesso
à internet para a comunidade. Já na iniciativa privada, um exemplo de perseverança em
busca da inclusão digital é o CDI (Comitê para a Democratização da Informática) que já
beneficiou cerca de 263 mil pessoas (em 10 países) dos quais 92% são brasileiros.
É importante frisar que não basta dar acesso à internet. É preciso que as pessoas
aprendam e se familiarizem com o computador e que as escolas, em especial as
públicas, possam ter mais equipamentos disponíveis. Justamente por isso a discussão
passa antes por uma questão, provavelmente, governamental, ou seja, de políticas
públicas.
André Lemos pensa a cibercidade também como
“um conceito que visa colocar o acento sobre as formas de impacto das novas redes
telemáticas no espaço urbano. Redes de cabos, fibras, antenas de celulares, espectro de
ondas de rádio permitindo uma conexão wi-fi, entre outras, estão modificando a nossa vivência
no espaço urbano através do teletrabalho, da escola on-line, das comunidades virtuais, dos
fóruns temáticos planetários. (...) A cibercidade é a cidade contemporânea e todas as cidades
contemporâneas estão se transformando em cibercidades” (Lemos, 2004:20).
Esta definição nos dá apenas uma dimensão do que as tecnologias podem promover
no que diz respeito às trocas efetuadas pelo sujeito habitante da cidade no ambiente da
rede e através da qual se pode fazer compras, realizar transações bancárias, visitar
outros lugares, conversar com as pessoas, estudar, trabalhar e muitas outras coisas que
são feitas no espaço a que chamamos real. Por outro lado, neste último encontram-se
formas tecnológicas como os aparelhos celulares, citados por Lemos, caixas
automáticos de banco, câmeras e diversos outros meios que nos ligam por meio da
conexão. Isso não quer dizer, a meu ver, que as cidades estejam se tornando
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cibercidades apenas por que fazem uso de suportes tecnológicos. Esta visão seria
reducionista levando em consideração apenas as máquinas e desprezando, por
exemplo, que o corpo habita um e outro espaço e que habitar esses espaços diferentes
implica diferentes formas de significação.
Podemos pensar, então, na cibercidade como um não-lugar, no sentido antropológico
de que fala Marc Augé. Para ele os lugares têm algumas das seguintes características:
são identitários, relacionais e históricos. Identitários no sentido de que os lugares
habitados pelo homem são referência para sua identidade individual. Da mesma forma,
os elementos que constituem e fazem parte de um lugar estabelecem entre si algum
tipo de relação. O lugar é histórico por ser um território em que se estabelecem relações
e acontecimentos que passam a se configurar como memória. Também para o autor as
dimensões geométricas são características de um lugar; basta pensarmos em uma
cidade com suas ruas, subsolos e itinerários que se cruzam e conduzem o trajeto de
quem a ocupa.
Ao contrário, qualquer espaço que não possua essas características – relacional,
identitária, histórica – se definirá como não-lugar. Esse conceito, que caracteriza
espaços da cidade contemporânea, diz respeito àqueles de passagem, provisórios e
dos quais Augé cita como exemplo as redes de hotéis, aeroportos, estações rodoviárias
e porque não as cibercidades - locais que se dão ao transitório, ao efêmero.
Marc Augé deixa claro também que “existe evidentemente o não-lugar como lugar:
ele nunca existe sob uma forma pura: lugares se recompõem nele; relações se
reconstituem nele (...)” (Augé, 1994: 74), inclusive porque a definição de não-lugar
depende do ponto de onde se lança o olhar – uma pessoa que exerce suas atividades
profissionais em um aeroporto o tem como lugar de trabalho. Além disso, e continuando
com o mesmo exemplo, ali ainda há espaço para a lágrima, a espera, o abraço, a perda,
o embaraço, alguma dor.
No entanto, não vou me deter na definição do que vem a ser a cibercidade, mas sim
pensar de que forma ela afeta nossa experiência. E a conexão é apenas uma delas.
Já afirmei que a incorporação à paisagem urbana de meios ligados à tecnologia
modifica a noção que temos de espaço e pensá-los como não-lugares já é uma
desconstrução ou uma nova construção do pensamento sobre lugar, sobretudo quando
pensamos no ambiente da rede propriamente dito. Neste caso, quando nos
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encontrar referência de três deuses para representá-lo: Cronos, Aiôn e Kairós, cada um
remetendo a um aspecto diferente.
Assim se desenvolveu a atividade humana até o aprimoramento, no Renascimento,
do relógio mecânico que possibilitou a repartição do tempo em unidades iguais e
precisas permitindo uma concepção do tempo como algo linear e sucessivo.
E como estamos tratando da questão do urbano, não podemos deixar de relacionar a
criação do relógio ao processo de industrialização vivido naquele período. O tempo
cronometrado permite não apenas o aperfeiçoamento das máquinas como também a
quantificação do trabalho humano e serve para validar o pensamento mecanicista
capitalista de que “tempo é dinheiro”.
O tempo, da mesma forma que se dá a ver, por ser medido e observável pela própria
sucessão entre dias e noites, estações do ano, horas, é também interiormente
apreendido. Quando falamos em relógio biológico estamos falando desse tempo
cotidianamente aprendido. Da mesma forma, quando falamos em memória, dizemos de
um tempo passado delicadamente interiorizado.
André Comte-Sponville define a existência de dois tempos – um subjetivo (da
consciência) e outro objetivo (o do relógio). O primeiro é desigual, se dá na
multiplicidade e num percurso não-linear através do qual lembramos do passado e
projetamos o futuro, um tempo que só existe em nós. Ao contrário, o tempo do
cronômetro é marcado por sucessões exatas e determinadas. Acerca deste tempo, o
dos relógios, lembra Paula Sibilia: “a tradução dos relógios analógicos para os digitais,
todavia, sugere algumas pistas interessantes: nos novos modelos, o tempo perdeu os
interstícios” (Sibilia, 2003:30).
Exatamente por termos essa noção que a fotografia causou tanto espanto. E é
através da figura de um mágico que Cláudio Araújo Kubrusly nos mostra essa
sensação, como se tudo não passasse de fantasia:
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Para este trabalho o “entre” se torna ponto fundamental na medida em que estou
falando também de reconfiguração do espaço. Se, como já foi dito citando autores como
Paul Virilio, a distância tende a desaparecer, então, onde localizar o “entre” desse
espaço-tempo? Como e onde localizar o devir?
A partir do pensamento acerca da inexistência do tempo próprio da consciência
definidos na estrutura passado, presente e futuro, Santo Agostinho nos lança o desafio
de pensarmos uma definição para este tempo (Santo Agostinho, 1996:322).
Se o passado não existe porque não é mais, o futuro não existe porque não é ainda e
o presente já está passando, portanto sem duração, então o tempo não existiria e isso
nos levaria ao que Sponville chamou niilismo cronológico. Por outro lado, o autor afirma
que se não existisse o tempo, não existiria o ser para perceber esse tempo, o que seria
um niilismo ontológico. Daí, então, a definição do tempo segundo santo Agostinho se
configura como três presentes - o presente do passado (a memória), o presente do
presente (a intuição direta) e o presente do futuro (a espera), configurando a
temporalidade, ou seja, o tempo como o apreendemos.
No entanto, Sponville esclarece:
“Não deixa de haver sucessão, já que há movimento, mudança, devir – já que o presente não
cessa de suceder a si mesmo, mas transformando-se. É sempre hoje, mas nunca é o mesmo.
É sempre agora, mas todos os agoras são diferentes. É essa, parece-me, a verdade do tempo,
a sucessão pura, sem passado nem futuro, o puro presente do mundo, a novidade perene de
tudo” (Sponville, 2000:68)
“o futuro, que não era, agora determina o presente; o passado, que era, agora se torna virtual.
Está lá, mas como quem fica entre duas dimensões. Se precisamos, temos de trazê-lo para a
dimensão certa. É como se agora começássemos a fazer ficção científica para o passado.
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Antes ela era feita para o futuro, mas o futuro deixou de ser ficção, ele é o real do presente
(...)” (D’Amaral in Doctors, 2003:23).
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“A realidade que a imagem numérica dá a ver é uma outra realidade: uma realidade
sintetizada, artificial, sem substrato material além da nuvem eletrônica de bilhões de micro-
impulsos que percorrem os circuitos eletrônicos do computador, uma realidade cuja única
realidade é virtual” (Couchot in Parente 1993:42).
“Ao contrário da ficção de solidariedade universal criada pela mídia e pelas imagens, os
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acontecimentos, cada vez mais, só tem sentido para aqueles que os vivem, no momento em
que os vivem. Fora desse contexto o eco é artificial, e a ressonância é tão nula quanto
ensurdecedora” (Baudrillard in Parente 1993:51).
Para Paul Virilio o fato de a tela se tornar nossa interface com o mundo e mediar
nossas informações causa distorções de interpretação dado que toda mensagem já nos
chega carregada de conteúdos ideológicos e prévias interpretações. Além disso, tanto
na televisão quanto na internet as informações se misturam às peças publicitárias
causando uma mistura de conteúdos que muitas vezes não percebemos e que provoca
“um desequilíbrio perigoso entre o sensível e o inteligível”(Virilio, 1993:23). Essa
realidade passa a ser configurada como virtual no sentido de estar separada do aqui-
agora do espaço físico que ocupo.
Dos debates sobre a terceira vertente, ainda no livro Imagem-Máquina, participam
Félix Guattari e Antonio Negri. Para eles as máquinas e a mídia, embora estejam cada
vez mais avançadas em seu poder de transmissão e velocidade, não representam uma
ameaça ao homem. Especialmente para Negri, concordar com a afirmação da
“monstruosidade” conferida à televisão, por exemplo, é considerar a sociedade como
uma massa homogênea e amorfa. O que discutem é que a sociedade contemporânea é
a sociedade de controle e que esse controle é feito através de mecanismos
tecnológicos. Entretanto, a tecnologia não foi criada para esse fim, mas seu uso é que
determina esse controle.
Justamente por esse motivo é que afirmam que um equilíbrio com a tecnologia
dependerá de nossa capacidade de reapropriação dessas ferramentas. Para ambos a
realidade virtual é um outro princípio de realidade, ou seja, o virtual não se contrapõe ao
real. É, antes, uma realidade com outras referências de espaço, tempo, linguagem.
Interessam aqui as novas formas de produção de subjetividade decorrentes desses
novos elementos.
Assim, percebemos que vários são os enfoques dados a uma mesma questão.
Entretanto, estamos estudando os efeitos de uma determinada situação (o
desenvolvimento das imagens virtuais) de dentro dessa situação. O que devemos
avaliar e lembrar é que as mudanças, provocadas ou não pelas Novas Tecnologias,
promovem alterações por um período mais ou menos longo e que os verdadeiros efeitos
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“As imagens de síntese são co-criadoras do que chamamos ‘realidade’. Mostram outras
facetas do ‘real’, colocando em crise a noção de verdade e sobretudo de ‘referente’, pois o
conceito de ‘realidade’ torna-se tributário da linguagem e de seu instrumento produtivo” (Plaza
in Parente, 1993:87).
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linguagem específica; a função referencial liga-se ao contexto que pode ou não ter
referente e, por fim, a função poética diz respeito à mensagem que pode ser interativa
e, por isso, possuir diferentes sentidos.
Trata-se, portanto, uma re-adequação da linguagem aos meios, incluindo a criação
de novos elementos e com isso novas formas de comunicação e representação no
imaginário. Além das funções de linguagem, a própria língua absorve novas palavras
derivadas de funções específicas de determinados aplicativos. E todo esse novo
processo de linguagem e comunicação tem seus efeitos na relação do homem com o
outro e consigo. Além disso, as questões acerca da realidade e virtualidade implicam,
da mesma forma, discussões sobre como o corpo passa a estar posicionado diante
dessas alterações e que desdobramentos esse corpo também passa a sofrer.
3. Corpo
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“Nós somos nosso corpo pelo modo como a fenomenologia compreende nosso ser no mundo
emotivo, perceptivo e móvel. Esse é o primeiro sentido. No segundo, somos corpos no sentido
social e cultural, algo que experienciamos a partir de situações e valores relativos ao corpo que
são culturalmente construídos. Atravessando tanto o primeiro quanto o segundo sentido, há
uma terceira dimensão: o das relações tecnológicas, das simbioses entre o corpo e as
tecnologias” (Santaella, 2004:10).
Mas há ainda uma outra dimensão do corpo, que nos interessa aqui, que é a da
possibilidade dos desdobramentos, da multiplicidade. Esse corpo que não é o humano
carnal, mas o das projeções, da aprendizagem e da memória. Sobre essas variações
nos fala Michel Serres:
“Quanto mais se dilata esse capital, esse reservatório inconsciente – pois o inconsciente é o
corpo - , menos ele pesa e mais ele se torna leve e aéreo em virtude das adaptações
conquistadas” (Serres, 2004:76)
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Este corpo do qual estou tratando está, necessariamente, inserido no contexto e/ou
nos imaginários urbanos, pois “as relações entre os corpos humanos no espaço é que
determinam suas reações mútuas, como se vêem e se ouvem, como se tocam ou se
distanciam” (Sennet, 2003:17), sempre e somente através da linguagem.
A partir do surgimento das cidades o corpo esteve exposto a inúmeras interferências
tanto na forma de se perceber como no embate com o meio. Maria Cristina Franco
Ferraz constata que nas sociedades disciplinares vinculadas ao período da Revolução
Industrial, os corpos eram submetidos a estímulos musculares necessários ao
desenvolvimento do trabalho fabril. Sem contar que até esse momento não havia
acontecido de tantos corpos se concentrarem num mesmo ambiente por tanto tempo
como passou a ocorrer nas fábricas, agora local de trabalho de centenas de pessoas,
neste momento especificamente e com maior força na Europa.
Este corpo na obra de Foucault era totalmente determinado socialmente através do
discurso, “tratava-se de produzir um corpo dócil, eficaz economicamente e submisso
politicamente” (Vaz in Villaça, 1999: 165). É preciso lembrar, entretanto, que não apenas
as fábricas participavam dessa modelagem do corpo, mas também outras instituições
como a escola, os hospitais e as prisões.
Já na sociedade de controle, apontada por Deleuze, afirma Ferraz que o estímulo é
realizado sobre as terminações nervosas, gerando o que chamou de corpo
superexcitado. “O que mais importa ao homem moderno não é mais o prazer ou o
desprazer, mas estar excitado” (Nietzsche, 1973:72-73). O que acontece é que a partir
do desenvolvimento das tecnologias da comunicação, a mídia passa a exercer uma
influência grande sobre o comportamento humano, constituindo-se, como dissemos no
capítulo anterior, como mediadora entre o homem e o mundo em que vive.
Assim somos submetidos a milhares de imagens e informações diariamente. Maria
Cristina Franco Ferraz considera que esse turbilhão de estímulos, ao mesmo tempo em
que entorpece, também excita os corpos. É possível dizer que essa excitação vem
desde a cidade moderna e o surgimento das galerias e vitrinas. Estes caminhos de
passagem facilitam a exposição de mercadorias que fisgam o olhar do passante. Mas
não só a mercadoria passa a estar exposta, os corpos passam a servir como vitrinas de
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“Como definir um corpo que se aplica com tanta constância a tantas posturas e signos?
Quando e sob que forma esse corpo é ele mesmo? Como ultrapassar todas as inumeráveis
diferenças que caracterizam as pessoas: quando e sob que formas ele se identifica à nós?
Essas múltiplas posturas impedem de dizê-lo. Meu corpo e nossa espécie existem menos no
real concreto do que em ‘potencial’ ou em virtualidade” (Serres, 2004:52).
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“Quanto mais os territórios do virtual são explorados, mais central a questão do corpo se torna,
pois ele age como um limiar entre dois mundos, entre as três dimensões dos objetos e as x-
dimensões do pensamento. Surge assim um novo corpo que perdeu a certeza do ego, um
corpo instável, inquieto, instintivo e longe do equilíbrio” (Santaella, 2004:75).
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3.4 Trocas
Depois de tentar verificar como a tecnologia influencia o corpo, a idéia é iniciar um
caminho na investigação de como esse corpo se comporta em relação ao outro e à
cidade. Como procurei demonstrar na primeira parte do texto, a incorporação das
tecnologias da informação e da comunicação à cidade e, conseqüentemente ao
imaginário do homem urbano, imprime a velocidade como forma de viver. Diante dessa
emergência da vida aliada às “tiranias do up grade” constata-se a existência do homem
cada vez mais ligado ao trabalho e cada vez mais voltado para si.
A vida do dia-a-dia é tão agitada e repleta de afazeres (sem contar os
engarrafamentos das grandes cidades) que, no tempo livre, nada melhor do que evitar
sair de casa. Para isso os serviços delivery e em especial, a internet, foram invenções
perfeitas. Mas não é apenas pelo cansaço que não se sai de casa. Novas formas de
trabalho foram também surgindo a partir das possibilidades trazidas pela internet, nas
quais não há necessidade de deslocamento físico para se chegar a um escritório.
E mesmo as relações formais no trabalho estão bastante modificadas. O uso de
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sistemas como a intranet, por exemplo, permite que se fale com o colega da sala ao
lado através do computador transformando sensivelmente o contato social. Um exemplo
disso está no filme Denise está chamando44, no qual há um círculo de amigos que por
causa de seus afazeres e pela escassez de tempo só conseguem se falar por telefone
(extensão do ouvido e da voz em McLuhan). Todas as situações são vividas através da
linha telefônica, inclusive um “namoro” e uma “relação sexual” entre duas pessoas que
nunca chegaram a se conhecer. Esse tipo de situação tem se tornado comum na
internet através de sites e chats específicos.
A partir disso, vemos sumir de nossas vistas o outro (nossa alteridade) no qual nos
reconhecemos e nos espelhamos. Inclusive porque segundo Gaiarsa “os animais
aprendem quase tudo o que aprendem vendo os outros fazerem. A imitação é o método
natural de comportamentos complexos” (Gaiarsa, 2002:67). O desaparecimento do
outro se dá no sentido de afastamento dos corpos cujo contato passa a ser mediado
pelo computador. Assim, vemos surgir uma nova forma de agregação social: as diversas
tribos e comunidades existentes, basicamente, na internet que, muito mais do que
marcas de um espaço físico, prestam-se a trocas simbólicas de interesse comum.
Temos então que a visão de isolamento e individualismo urbano, iniciada na
modernidade, passam a ter uma contraposição num formato outro que é um tipo de
relacionamento numa configuração diferente de espaço e tempo, uma nova forma de
“sociação”. Simmel define “sociação” como um agrupamento de indivíduos que pode se
dar de diversas formas a fim de satisfazerem seus interesses, sejam religiosos,
sensuais, profissionais ou qualquer outro. Estes interesses formam a base das
sociedades humanas.
“Estritamente falando nem fome, nem amor, nem trabalho, nem religiosidade, nem tecnologia,
nem as funções e resultados da inteligência são sociais. São fatores de sociação apenas
quando transformam o mero agregado de indivíduos isolados em formas específicas de ser
com e para um outro – formas que estão agrupadas sob o conceito geral de interação”
(Simmel, 1983:166).
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para disputas de jogos em rede. É bom lembrar, mais uma vez, que esses exemplos
também fazem parte da realidade brasileira.
O que pode ressaltar a sensação de afastamento entre os corpos é a maneira como
a comunicação se dá – na impessoalidade da escrita, anulando a expressão corporal.
Entretanto, o que vemos é a criação de uma linguagem própria desse meio para que
haja um resgate da emoção da comunicação que, a priori, é proporcionada pelo corpo.
São os emoticons – figuras e desenhos utilizados para demonstrar algum tipo de
expressão.
Ora, se mudam as representações simbólicas, muda-se também o corpo e a forma
de sociabilidade. O que se pode problematizar é que, numa conversa face-a-face, o
corpo “fala” de diversas formas, seja através dos gestos e mímicas, seja pela posição
ou deslocamentos que percorre ou ainda pela entonação ou variações da voz. Estas
variações são realizadas pelo indivíduo e, simultaneamente, refletem no seu interlocutor
que as devolve com outras variações. Algumas formas se tornam signos culturais como
por exemplo sinalizar com o polegar para cima indicando que está tudo bem. Esses
signos como mencionado acima variam de cultura para cultura.
As próprias expressões faciais não nos permitem, na maioria das vezes, esconder
certas emoções. Já num chat ou numa conversa on line não há essa reciprocidade, a
não ser pelos emoticons. Podemos então ser quem quisermos, embora no espaço físico
isto também se dê de uma certa forma.. Neste caso pode-se recorrer a inúmeras
identidades e personalidades sem que o outro, mediado pela interface, possa
reconhecer. Aqui há um duplo que se comunica. E desta forma, podemos até dizer que
há o desaparecimento do outro como referência de alteridade, mas não o
desaparecimento do corpo.
Encerro, então, com mais um trecho do texto de Serres que nos diz algo dessa
fluidez tão inerente à nós:
“Em resumo, o corpo não se reduz nem à fixidez nem à realidade: menos real do que virtual,
ele visa ao potencial, ou melhor, ele vive no modal. Longe de um estar lá, ele se movimenta;
não se desloca apenas sobre o trajeto daqui para acolá, mas forma-se, deforma-se,
transforma-se, estende-se, alonga-se, figura-se, desfigura-se, transfigura-se; polimorfo e
proteiforme, vocês não interromperão essas variações, a não ser que definam o corpo como
capaz” (Serres, 2004:138).
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Resumo
Texto discute performance em contextos radicais de drogadição, miséria e loucura, onde
resolvi depositar minha pesquisa e minha experiência. Traz à tona as questões
subjetivas e criativas possíveis de concatenar nessas realidades, aqui especificamente
no contexto dos moradores de rua acopladas à digressões teóricas e práticas sobre o
trabalho de Renato Cohen.
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sabedoria e ignorância?
_ Que é?
_ O opinar certo, mesmo sem poder dar razão, não sabes, dizia-me ela, que nem é
saber - pois o que é sem razão, como seria ciência? - nem é ignorância - pois o que
atinge o ser, como seria ignorância? - e que é sem dúvida alguma coisa desse tipo a
opinião certa, um intermediário entre entendimento e ignorância.
_ É verdade o que dizes, tornei-lhe.
_ Não fiques, portanto, forçando o que não é belo a ser feio, nem o que não é bom a
ser mau. Assim também o Amor, porque tu mesmo admites que não é bom nem belo,
nem por isso vás imaginar que ele deve ser feio e mau, mas sim algo que está, dizia
ela, entre esses dois extremos” 46.
46
Cfe. Platão. O Banquete. Coleção Os Pensadores. Ed. Abril Cultural . São Paulo. SP. 1983.
47
Ankoku butô – dança das trevas, criada em 1959 por Tatsumi Hijikata, em Tóquio, Japão. Cfe. Christine Greiner. Butô em
evolução. Ed. Escrituras. 1998. São Paulo. SP. P. 97 e Cfe. Christine Greiner. O teatro Nô e o Ocidente. Ed. Annablume Fapesp.
2000. P. 94-95.
48
Fukan-zu: uma espécie de mapa do buto. Cfe. Christine Greiner. O teatro Nô e o Ocidente. Ed. Annablume Fapesp. 2000. P. 94-
95.
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49
Cfe. Samuel Beckett. como é. Ed. Iluminuras LTDa. São Paulo. SP. 2003. P.46
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http://ueinzz.sites.uol.com.br
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Logo no início desse livro Renato fala das motivações que o levaram a escolha desse
tema - performance - ressaltando dois pontos: um, a identificação com a cultura
underground (avisando que já não equivale ao que anteriormente conhecia-se como
cultura subterrânea), e o outro, a busca da cena teatral como expressão, mais do que
representação: expressão da vida mesma.
Reclama de um vácuo existente em nossas produções que investe muito pouco no
imagético, no não-verbal, em construções mais irracionais; salienta o fato de que livros
como o Teatro e o seu Duplo de Antonin Artaud e escritos beats só foram traduzidos no
Brasil vinte anos depois de serem publicados. Segundo ele essa carência promoveu um
efeito exagerado nas produções locais, de modo a desgastar a performance
rapidamente diante do público, em função de grandes quantidades de espetáculos
oportunistas e de mau gosto. Qualquer coisa era performance. Para Renato essa orgia
criativa e retardatária era happening e não performance.
Quase no fim do livro ele introduz uma prancha comparativa entre a linguagem do
Happening e da Performance onde traça diferenças entre as duas linguagens, apesar
de considerá-las como duas versões de um mesmo movimento. As diferenças básicas
residiriam no fato do Happening ser uma linguagem estabelecida nos anos 60 e ter
como influências teóricas e práticas o universo da contracultura e do movimento hippie;
a Performance por sua vez vai se configurar como linguagem nos anos 70, sofrendo de
um zeitgeist punk-niilista que nutria um descrédito crescente para com as ideologias
libertárias e alternativas. Nelson Aguilar endossa esse ponto de vista dizendo que o
happening era uma situação social criada para manifestar contestação e esse tipo de
arte só se justificava pelas discussões políticas que se produziam nos anos 60, pois nos
anos 70 elas não importavam mais. Happening para ele era a arte de criar situações e
ambientes de descontextualização onde as pessoas vivenciavam outras possibilidades
de vida que soava como uma provocação à vida política e social da época, enquanto
performance “nada mais é que uma linguagem tal como a pintura, tal como a música
onde o artista desenvolve a sua idéia através de toda esta vibração energética que ele
põe53”. Para Cohen o que vai diferenciar efetivamente a atuação de um e outro é a
preocupação individualista, estética e conceitual que a Performance retoma, abrindo
53
Arte em Revista. Ano 6. nº8. Independentes. Ed. CEAC. São Paulo. SP. 1984. P.40
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Com seus performers e colaboradores Cohen ia mais fundo do que ia com seu
público. Saiam juntos em busca de viver experiências coletivas nos contextos mais
diversos, tanto no campo quanto na cidade a partir dos rituais próprios a cada espaço.
Essas vivências serviam como disparadores de processos criativos e investigativos: -
contagem de sonhos, experiências xamânicas, usos de plantas de poder, exercícios de
concentração e técnicas de respiração - ; o universo subjetivo de cada um servia como
material fundamental para construção da obra. Ao se referir ao projeto teatral do grupo
Orlando Furioso onde dirigiu a peça: Sturm Und Drang / Tempestade e ímpeto (1990-
1993), Cohen fala que a criação da cena teve como sustentação noções como arte/vida,
arte não-naturalista e cena sem representação que valoriza o cotidiano com sua face de
repetição e imprevisibilidade. Nessa peça foi “(...) desenvolvida uma encenação sem
submissão à palavra e à narrativa aristotélica utilizando toda fonte de criação –
imagens, memórias, frases, movimentos, (...) uma relação viva com o processo criativo
e a exacerbação do caminho sensível, intuitivo, sensório, próprio do domínio das
artes”56.
Eu sentia um pouco de falta da participação efetiva do público nos espetáculos de
56
Cfe. Renato /Cohen. Work in Progress na cena contemporânea. Ed. Perspectiva. S.S. São Paulo. SP. 1998. P. 33
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Renato, e cobrava em baixo tom, uma dose a mais de crueldade57. Criava alternativas
cômicas como quando devaneava com Lygia Clark enredando seu público em redes,
linhas e babas; metendo-os em túneis plásticos claustrofóbicos quase os asfixiando. Por
traz de sua sublime arte terapêutica e seus cuidados quase-zen eu a imaginava
impondo cruéis desafios ao seu público trazendo-lhe para experimentos radicais de
solitude e náusea, depois lhe soprando os ouvidos com delicadeza dando-lhe
barulhinhos de conchas tropicais. Ela os fazia parir e androgenizar; perder o sexo e a
identidade, depois comungava-os em canibalismos de frutas-orgãos. Comensalismos
tribais. Os objetos eram em suas mãos suportes-dispositivos para alteração perceptiva.
Alteração dolorida suponho; sempre é. Esse era seu concomitante espetáculo e revide.
Revide contra a paralisia dos corpos e percepções. Ela foi a fundo na mexedura
estrutural das afetividades do “público”. Dizia Marquesa-Lygia-de-Sade que estava
acostumada a enfrentar crises, surtos e desmaios em seus settings psicanártísticos 58.
Enquanto isso o bobo-Oiticica-da-corte baixava a favela no museu, e seu público tinha
que tirar os sapatos para pisar nas britas de sua favela santa. Precisava levar o público
a transes olfáticos e intensidades suprasensoriais, dar uma tropicaliada em seus
sentidos. Parangoleava-os trazendo para a galeria seus comparsas de favela -
passistas da Mangueira que muitas vezes não entrariam na galeria - não possuíam
gravata nem convite -, ninguém se convencia que a “ocupação da favela no MAM na
exposição Opinião 65”, por exemplo, era a própria arte; o público atônito foi obrigado a
assistir a cena da exclusão-obra59. Ahahahahahaha!
No início do seu trabalho Renato operava com dois topos estruturais para pensar a
relação emissor/receptor ou performance/público: um seria o modelo estético e o outro
mítico. O estético seria o teatro convencional que funcionaria de modo a delimitar
estrategicamente os lugares onde o público e os apresentadores se fixariam. Ele aponta
variações dessas espacialidades arquitetônicas construídas para apresentações teatrais
no decorrer da história do teatro: coliseu, teatro elisabetano, teatro de arena, teatros-
edifício, modelos que diferenciavam-se entre si mas que eram solidários no
confinamento espetacular da obra. No teatro mítico essa separação entre público e obra
57
“O que é crueldade? Uso a palavra crueldade no sentido de apetite de vida, de rigor cósmico e de necessidade implacável,
no sentido gnóstico de turbilhão de vida que devora as trevas, no sentido da dor, fora de cuja necessidade ilutável a vida não
consegue se manter.” Cfe, Antonin Artaud. O teatro e seu duplo. Ed.Martins Fontes. Pág 118-119
58
Ref. Ricardo Nascimento Fabrini. O Espaço de Lígia Clark. Ed. ATLAS S.A. – 1994.
59
Ref. Waly Salomão. Hélio Oiticica. Qual é o Parangolé e outros escritos. Ed. Rocco LTDA. Rio de Janeiro. RJ. 2003
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“A cena do numinoso remete à busca da epifania, da cifra, do mistério. (...) epifania enquanto
manifestação de essencialidade, liminiscência, “alma das coisas”, incorporando desde alusões
platônicas clássicas quanto a imanência romântica, a weltanschauung nietzschiana, o “belo
horrendo” de Lautreámont, representações grotescas de Bosch, as fiscalizações do butô. (...)
apesar do tema da epifania ter um viés platônico, essa questão é essencialmente moderna:
desde o romantismo, com a busca do encantamento e do sagrado imanente, mais
remotamente, no barroco, com a multifacetação e o gongorismo teísta, até as vanguardas
históricas (expressionismo, cubismo, dadá, surrealismo) que reiteram essa busca (...) seja por
via paródica, pela ritualização, por mímese ou pelas utopias surrealistas. (...) Ao tratarmos de
temas do mythos, do estranho, do numinoso – estados exacerbados de presença, topos do
insólito, do singular, do novo, do perfeito, do monstruoso – distintos do ordinário cotidiano, fica
clara a pertinência da teatralidade enquanto expressão dessas manifestações (... ) teatralidade
enquanto espaço do trágico da vida (fugacidade e transitoriedade). (...) A cena mítica,
momento de permeação ou de re-apresentação do fenômeno primeiro, investe-se pelo seu
caráter direto com a experiência, plena de visibilidade e sensação, de uma potência superior
às narrativas e relatos. (...) A presença, a permeação, a iniciação, a narrativa imagética
potencializam o rito enquanto espaço de manifestação do mítico: percurso paralelo ao da cena
teatral, oriunda de práticas dionisíacas e rituais dos mistérios de elêusis (...) é possível apontar
alguns dados para instauração do campo mítico: inteireza, adensamento, exacerbação,
ampliação da presença – colocação do potencial psicofísico inteiramente alinhado com o
trabalho presente. (...) Através do aumento da presença diminuem as demandas energéticas
para atender as vicissitudes do cotidiano e o participante passa a operar mais pleno, tendo
acesso, principalmente, à sua mente subliminar, não objetiva.” 60.
60
Cfe. Renato Cohen. Work in Progress na Cena Contemporânea. Ed. Perspectiva. S.A 1998. Ps. 59 em diante.
115
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Sua atuação como performer, encenador e produtor cultural foi aos poucos
radicalizando processos “míticos”, de modo que em seus últimos trabalhos mais
intermediáticos essa divisão público-obra foi tornando-se cada vez mais amena, pois
tratava-se de eventos artísticos de caráter conectivo e virtualizado onde uma nova gama
de conteúdos e conceitos vinham à tona promovendo uma variação estrutural nos dois
topos de cena, como aconteceu ou quase aconteceu no evento Constelação realizado
no Sesc São Paulo em 2002 cuja concepção e curadoria foi feito pelo próprio Cohen.
Nesse evento ele criou uma rede transmidiática que linkava em tempo real quatro
centros de irradiação: Sesc-São Paulo, Caiia Center-UK, Ohio Media Center-Columbus,
USA e Centro de Mídia-UNB – durante 12 horas de sequências de performances e
interescrituras, com possibilidade de intervenção de outros grupos autônomos
conectados virtualmente ou em presença real. Nesse evento “pós-teatral” ele tentou
construir uma cena expandida onde os modelos emissor/receptor desafiavam-se
transpassantes:
61
Em BIRRINGER, Johannes . “Contemporary Performance/Technology”. Theatre Journal 51, 361-381, 1999.
116
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Eu estava cada vez mais seduzida por esses eventos surubáticos estético-mítico-
tecnológicos e tentava concatená-los com aquilo que seria o leitmotiv do meu trabalho:
a experiência do espaço e tempo público da cidade expandida a partir do seu extremo
miserável (moração de rua radicalizada). Não era só de epifania e mediação que se
tratava, mas do agigantamento semiótico-perceptivo-sensorial da radical nudez-
linguagem que a miséria promove diante da avassaladora sistematização da vida. Era
quase uma militância política que reivindicava a inclusão-no-socius de gestos e
narrativas desprovidas de organização burocrática e institucionalizadas. Na verdade era
quase uma contra-militância: traçar contornos visíveis na experiência radical miserável a
partir da própria miséria, alargando a miséria através de collages de signos de vida-de-
rua, criações de happenings, técnicas de performance, ritos transmidiáticos criados para
públicos-obra imersos em ambientes reais e virtualizados. As novas tecnologias
legitimando a formação de novas inteligibilidades63”. Estranhas inteligibilidades
legitimando novas tecnologias. Quiçá!
62
Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediações na Cena Contemporânea Brasileira/ texto guia do Evento Constelação – Mostra SESC
Ares e Pensares – 2002. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc
63
“(...) o aporte das novas tecnologias que amplificam os mecanismos de mediação, virtualização e refratação da percepção e,
captação de códigos sensíveis que demarcam tempos, espaços, corporeidades vão legitimar uma série de experimentos,
eventos – da ordem de uma cultura das bordas – que passam a se inscrever no campo da cultura. A questão que se propõe na
arte da performance é de uma mediação e intervenção nos planos da realidade, superando os limites do campo do real e da
ficcionalidade, entre sujeito e receptor da obra, dando complexidade e polissemia a produção do evento, que passa a ser
culturalizado” Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediações na Cena Contemporânea Brasileira/ texto guia do Evento Constelação –
Mostra SESC Ares e Pensares – 2002.
http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc
117
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64
Trata-se de uma caixa audiovisual de 7m X 7m X 7m que foi instalada, alternadamente, em três pontos da cidade de São
Paulo. Nas cinco faces externas do cubo, foram projetadas imagens, vídeos, filmes, interações eletrônicas com música e outros
trabalhos.É uma idéia pós-moderna por excelência, uma vez que lida com as principais questões das artes no momento: a
mistura de linguagens, a relação com a cidade, a participação dos públicos, o uso de suportes alternativos. Os coletivos, grupos
de artistas e simpatizantes em torno de um projeto cultural, também são uma invenção contemporânea que questiona a autoria
e a autenticidade das obras. Ver: http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/panorama/cubo/cubo.asp
65
Cfe. Lucas Bambozzi. http://www.cubobranco.hpg.ig.com.br/texto_intimatetech.htm e Cfe. Lucas Bambozzi.
http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum/viewtopic.php?t=89&sid=e89366b26cc8e8133629f2b6e676c1bb : “Diante de
novos sistemas de mediação envolvendo tecnologias com penetração em vários ambientes e camadas sociais, torna-se
pertinente falar de práticas artísticas e culturais abrangentes, que se deixem afetar pelo contexto em sua diversidade de
nuances. (...) criação de mecanismos por parte de determinados projetos que produzem conexões entre artista, público e a
suposta responsabilidade de criação de espaços compartilháveis (vida pública), através do que pode ser chamado de interfaces
sociais baseadas na realidade (reality-based-interfaces). Na medida em que tornam a mediação transparente, minimamente
permeável, alguns trabalhos que emergem no cenário das novas mídias nos sugerem um sentido expandido para a idéia de
‘interfaces’, como sistemas viabilizadores de comunicação, experiências de potencialização do pensamento crítico e do uso de
dispositivos de forma a sugerir enfrentamentos diante de novas formas de alienação que surgem embebidas nessas
tecnologias. Seriam essas as faces e desafios de um ativismo atualizado às redes móveis, baseadas em sistemas locativos e
imersos na trama da cidade?”
66
Cfe. Rito, Tecnologia, Novas Mediações na Cena Contemporânea Brasileira/ texto guia do Evento Constelação – Mostra SESC
Ares e Pensares – 2002. http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.doc
118
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
Evento/manifesto68
119
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
Este evento de caráter conectivo e interventor foi criado com a intenção de assinalar
os assassinatos e fortalecer/ampliar as redes, entidades e movimentos que atuavam
junto aos moradores de rua da cidade de São Paulo. Sua primeira parte foi realizada na
câmara dos vereadores SP, com a participação de inúmeros apoiadores das mais
variadas vertentes como os sem terra, sem teto, direitos humanos, tortura nunca mais,
órgãos governamentais e não governamentais, representantes de organizações de
moradores de rua.
Nessa manhã de sexta feira a câmara se tornou um espaço de debates, proposições
e elaboração de um baixo assinado que exigia da justiça e dos órgãos públicos a
efetivação do processo jurídico. Esse baixo assinado foi levado à promotoria pública e
ao ministério da justiça e ao que tudo indica resultou na retomada das investigações.
Um momento muito especial desse encontro foi a participação do jornal Boca de Rua
composto por moradores de rua de Porto Alegre. Janaina Bechler - psicóloga – e o
jovem morador de rua - José Nedir Malta Ramires (Ceco) - apresentaram o vídeo carta
de Porto Alegre que ela organizou junto com os participantes do jornal. Eles realizaram
o vídeo desde a roteirização, filmagem até a edição. O argumento consensualmente
escolhido para o vídeo foi a apresentação da cidade de Porto Alegre aos moradores de
rua de São Paulo. De-morador-de-rua-para-morador-de-rua. As filmagens foram feitas
em diferentes locais da cidade de acordo com os afetos que os espaços despertavam
nos seus realizadores. Esse moço-de-rua-dos-pampas (Ceco) veio diretamente da
praça onde morava em Porto Alegre para exibir seu primeiro filme em São Paulo,
quando voltou para Porto Alegre foi pra de baixo de um viaduto.
Os convidados levantavam questões relativas ao assassinato, diziam das
descobertas das investigações e das propostas de cada organização; em meio a isso
Janaína surpreendeu a sala com inesperada emissão de um grito tenebroso e caiu no
chão num frenesi corpóreo que lembrava Artaud simulando a contaminação da peste.
Ela teve um ataque súbito-léptico-da-peste e paralisou o encontro com aquele gesto
Câmara Municipal de São Paulo -CONDEPE (Centro de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana) - Conselho Municipal dos
Direitos das Crianças e Adolescentes – Prefeitura de Porto Alegre -Coordenação de Direitos Humanos – Secretaria Municipal
de Direitos Humanos e Segurança Urbana – Prefeitura de Porto Alegre - Grupo Tortura Nunca Mais/SP -Catadores de Histórias
-Cheiro de Capim - Comunas da Terra (MST) - Comunas Urbanas -Departamento de Psicologia Clínica da USP -Departamento
de Psicanálise do Sedes Sapientiae -Instituto de Psicologia da USP - Laboratório de Psicanálise e Sociedade da USP -Instituto
de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) - Ministério Público Federal - PPG Psicologia Social e
InstitucionaldaUFRGS - Rede-rua-Ocas. Apresentação dos vídeos e comentários: -Carta aberta de Porto Alegre - Janaína
Bechler & -Catadores de histórias - Fabiane Borges, Rafael Adaime. Comissão organizadora: Beatriz-Afonso,Edson Luiz
André de Sousa, Fabiane Borges, Janaina Bechler, Mariah Leick , Miriam Debieux Rosa e Paulo Endo.
120
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
Essa performance foi uma tentativa de trazer para o encontro a dimensão da morte
através da constelação sígnica que cerca o morador de rua. Era o rito de enterramento
dos corpos que de fato esses assassinados não tiveram. O som ensurdecedor de
Diamanda Gallas gritando como uma porca-louca interviu no ambiente acompanhando-
nos em nossa cerimônia de enterramento. Ao sairmos da sala deixamos a sensação do
acontecimento.
70
O Evento/Performance continuou até a noite do mesmo dia, quando assamos ao
vivo a carne-morte usada no corpo junto com os moradores de rua, artistas e
apoiadores, que comeram da carne como num rito antropofágico. A comilança coletiva
se deu como forma de trazer à vida aquilo que estava morto, e simbolicamente
fortalecer os vivos que na sua maioria continuariam a viver o destino da rua.
70
A churrasqueira performer Veridiana Zuritta iniciou o churrasco e depois passou para as mãos dos moradores de rua, que
desavisados, sequer suspeitavam que faziam Arte assada com os signos dos companheiros assassinados.
121
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71
Evento ganhou 1º lugar do Prêmio Milton Santos. Câmara dos Vereadores - 2005.
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discursou como líder de revide falando da vida na rua e sobre possibilidades de juntar
forças. Era uma correspondência que chegava, em plena praça pública, vinda
diretamente dos moradores de rua do sul. Isso gerou discussões, reconhecimentos
recíprocos e vontade de se criar respostas.
Quase no final da noite colocamos uma faixa de 40 metros no centro da praça, e
numas bandejas de papelão distribuímos potes de tinta. Todos participantes se
ajoelharam no chão em rabiscos coletivos, desenhando na pele da praça suas marcas.
Essa faixa foi pendurada no monumento que fica exatamente entre a Secretaria de
Justiça à primeira igreja católica construída em São Paulo. A faixa continha nomes
próprios, apelidos, declarações amorosas, pedidos de justiças, mãos espalmadas,
corações, críticas ao governo e incompreensibilidades, e perdurou durante semanas até
ser tirada por algum desconhecido.
Apresentação do vídeo carta Foto: Rafael Adaime. Moradores de rua no microfone e usando as máquinas fotográficas.
Seria essa uma intervenção de arte urbana? Uma interferência nas redes sociais?
Uma ação clínica expandida? Não era a toa que os participantes da organização eram,
em sua maioria, psicanalistas. Sim! Tratava-se de uma ação CLÍNICA-ARTÍSTICA-
URBANA-SOCIAL. Um ato político/festivo/epifânico. Uma espécie de happening
performático e conectivo criado num espaço/tempo público da cidade a partir do seu
extremo miserável. Talvez esse relato não dê conta da infinidade de conexões e
transformações subjetivas que acontecem num evento como esse. Rápido, anárquico,
sem financiamento, desprovido de qualquer possibilidade de permanência, mas que tem
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potência de afetar a vida das pessoas envolvidas, às vezes de modo definitivo. É uma
zona temporária que se propõe interferir e celebrar ao mesmo tempo. Rito de ocupação
de vias e vidas públicas. Evento como acontecimento, como cartografia, intervenção,
como dispositivo de mobilização de desejo, produção de sentidos, disparador de ação,
atualização e virtualização de acontecimentos. Práticas de conexões entre política e
ontologia criadas nas cidades e intervindo em suas ordinariedades... Corpo, cidade,
instalação e transfaces... Tentativas e começos. Orgia mídico-epifânica... Pós-teatro
onde público e obra se misturam... Política mítica. Rede viva de agenciamentos e, no
entanto... Precariamente fugaz72.
PROCESSOS IMERSIVOS
_ Meu nome é Cassandra, fui incumbida de levar vocês aos Domínios do Demasiado. _Coloca
no papel seu nome e uma situação considerada de risco para você: _ Situação de risco em
mim! Foi assim que iniciou a oficina/interferência73 .
Pedi então que tirassem os sapatos e com um elástico grosso fui cantarolando
incongruências amarrando seus sapatos criando enorme rede sócio-sola. Com os pés
no chão, passamos todos para a outra sala, onde fizemos inocentes exercícios de
respiração e relaxamento. Depois... A terceira sala... Era preciso provocar a sensação
de passagem/distância através de um minúsculo nomadismo; a mudança de espaço
provocava uma certa desterritorialização, necessária para a imersão que se sucederia;
funcionava como pequeníssimo rito de passagem.
Na terceira sala estavam os outros oficineiros/interferentes74. Tratava-se de uma sala-
72
A partir desse evento foi pensado um projeto institucional que logo foi enviado para o Ministério da Saúde, Dst/Aids Unidade de
Prevenção, no ano 2005, que apresentava um Programa/Cronograma com uma série de argumentos e ações referentes ao
encontro de Moradores de Rua, Arte, Tecnologia, Coletivos de Ação, Prevenção à Dst/Aids e Exposições dos trabalhos
construídos coletivamente com esse “público” em galerias, museus, espaços públicos e albergues. Esse projeto se auto-
desafiava a construir políticas a partir de narrativas fragmentadas que é a narrativa comum a grupos que vivem em estados
radicalizados de exceção e minorias em geral.
73
Nome da oficina/evento realizada em dezembro de 2005 à convite de Angela Donini - técnica da Unidade de Prevenção às
Dst/aids - Ministério da Saúde - no CTA Henfil (Centro de Testagem e Aconselhamento) situado no centro de São Paulo, por
ocasião da Implantação do projeto piloto: Prevenção às DST/Aids em crianças, adolescentes e jovens em situação de rua na
cidade de S.Paulo em parceria com programas estaduais e municipais de DST/Aids e Saúde do Adolescente, Ogs e ONGs.
Essa oficina/interferência tinha cerca de 35 participantes, entre eles: médicos, assistentes sociais, coordenadores de
equipamentos públicos, educadores sociais.
74
Alessandra Galasso (Tzzzáááá), Eduardo Loureiro (Bijari), Giuliano Obici (Oráculo tecnológico), Rafael Adaime (Catadores de
Histórias) e Fabiane Borges (Catadores de Histórias)
125
[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
instalação-imersiva cujas paredes foram ocupadas por 40 metros de lona preta e muitos
outros elementos, utilizados por moradores de rua em suas nomádicas residências
urbanas e por Sem Tetos e Sem Terras quando acampados ou despejados: arames,
sacos de lixo, recortes de tecidos, roupas encardidas, pedaços de ferro e plástico,
caixas de papelão, jornais velhos, cobertores cinzas e aparatos tecnológicos como
caixas de som, microfones, projetor, mixers de imagem e som. O VJ mixava imagens
das ruas com as coisas que iam acontecendo no momento; os ambientes imersivos das
calçadas, os ritos em volta das fogueiras de rua, as comilanças coletivas debaixo dos
viadutos copulavam escandalosamente pelas paredes da sala, enquanto as “situações
de risco” anteriormente escritas nos papéis incendiavam em uma bacia-latão. O fogo
perpassando caras de espanto e náusea, a terra largada sobre os papéis queimados
iam sendo perfurados por velas pretas e vermelhas de Exú - o Orixá sem teto. Pontos
de vista da cidade foram explorados através de captação prévia de Rafael que
arremedava gestos dos moradores de rua a fim de ver a cidade avizinhado dos seus
pontos de vista. Os pneus dos caminhões agigantando-se diante do corpo concretizado
de calçada e fumaça. O céu cinza e as listas nightshot dos carros rápidos. As pernas
dos transeuntes quase pisando na câmera-olho. Quinze metros de tecido branco foram
colocados nos corpos de uma parte dos participantes tornados corpos-telas, que
refletiam entrevistas sobre situações de riscos vividas por moradores de rua
radicalizados.
Os elementos iam sendo utilizados de modo a criar uma ambientação urbana
extremamente hermética onde liberdade e poder sustentavam-se em conflito. O
programa de som operado por Giuliano Obici “Oráculo Sonoro”, misturava arquivos de
sons previamente captados junto aos moradores de rua e sons captados na hora da
intervenção através de microfones, injetando no ambiente-instalação repetições,
reverberações, sobreposições de ruídos, distorções de fala, infantilização de vozes,
ressonâncias e desestruturações de frases, criando uma imersão sonoro-climática-em-
risco, ao mesmo tempo em que gemidos de sexo e gozo entremeavam toda a morte
suposta. Hipertextualidades, polifonias, dessincronias e, no entanto o leitmotiv do
trabalho sobrevivendo-se: Vulnerabilidades e Virulências de rua. A idéia não era imitar a
ambiência de rua, nem transformar momentaneamente as pessoas em moradores de
rua, mas agigantar os sentidos da vida de rua, agigantar seus gestos, suas
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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
performances, transpor suas imagens para o próprio corpo de quem com a rua trabalha,
aumentar o foco-rua, ativar imaginários, copular signos...
Esse espaço/tempo produzido artificialmente era uma bolha ambiental de total
exposição onde não foi proposta comoventes harmonias, nem sequer um clima
amigável de trocas sofridas de trabalhadores impotentes que lidam com realidades
tristes. Nessa época eu estava farta de oficinas solidárias, onde todos se envolvem num
clima de trocas sentimentais, e não mudam em nada suas práticas humanistas-
higiências-evolucionistas. Estava muito mais atenta às potências advindas de alguns
softwares eletrônicos de som (noise) e imagens: sua ebriedade envolvente que imita
sensações drogaditas de crack, cola e pasta, sua incrível força de persuasão semi-
lisérgica. Era um modo de colocar para os serviços sociais de saúde a necessidade de
tratar de temas relativos à inclusão digital, a partir da suas possibilidades mais
abrangentes. Trazer uma dimensão profunda da experiência dos softwares eletrônicos
como dispositivo de aproximação a certas condições existenciais das ruas: - Domínios
Demasiados.
Tratava-se de uma pesquisa ampla que aproximava realidades nuas, a saber: um
incerto feminismo que reivindicava um incerto feminino atrapalhado com lógicas
aristotélicas, assemelhado a um incerto discurso torporoso, nauseabundo e drogadito
dos sujeitos da rua, que avizinhava-se a uma incerta prostituição sedutora e miserável
que transa visibilidades mundanas, que lembram Cassandra a ininteligível
aconchavando virgindades e promiscuidades sinápticas.
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[In.CoRpo.Ro] Magazine – VOL. #01
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
75
Depois dessa Oficina/Interferência: “Processos Imersivos”. Enviei um projeto à Unidade de Prevenção DST/Aids do Ministério
da Saúde que propunha uma Parceria entre a Unidade DST/Aids e o Programa Nacional de Cultura do Ministério da Cultura:
Pontos de Cultura, para produzir uma nova mídia sobre Dsts a partir de oficinas para crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade, para aprenderem a criarem e manipularem programas eletrônicos em softwares livres através de métodos de
aprendizagens imersivas. No prelo (janeiro de 2006)
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Alguns sites buscados:
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http://hemi.nyu.edu/archive/text/hijos2.html
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http://mixbrasil.uol.com.br/cultura/panorama/cubo/cubo.asp
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http://www.bmezine.com
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http://www.canalcontemporaneo.art.br/forum
http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohen.d
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http://www.hermetic.com/bey
http://www.itaucultural.org.br/proximoato/Papers/Texto%20PORT%20renato%20cohe
n.doc
http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2004/01/272986.shtml.
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http://www.mstc.org.br/textos/alckmin-despeja.php
http://www.neoarte.net
http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/za/
http://www.triplov.com/letras
http://www.viradacultural.com.br.
www.estudiolivre.org
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www.forumcentrovivo.hpg.ig.com.br
www.mstc.org.br
133