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2? Pel — e ee & FUNDACAO UNIVERSIDADE DE BRASILIA Reitor Timothy Martin Mulholland Vice-Reitor Edgar Nobuo Mamiya Ke UnB Diretor Henryk Siewierski Diretor-Executivo Alexandre Lima Conselho Editorial Beatriz de Freitas Salles Dione Oliveira Moura Henryk Siewierski Jader Soares Marinho Filho Lia Zanotta Machado Maria José Moreira Serra da Silva Paulo César Coelho Abrantes Ricardo Silveira Bernardes Suzete Venturelli Jorn Risen Prof Lubstes id Historia viva Teoria da Historia III: formas ¢ fungdes do conhecimento histérico Tradugao Estevao de Rezende Martins Equipe editorial Rejane de Meneses » Supervisto editorial Sonja Cavalcanti - Acompanhamento editorial ‘Teresa Cristina Brandéo: Preparagdo de originais ¢ revisdo Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Danizia Maria Queiroz Gama - fndice Tvanise Oliveira de Brito - Capa Elmano Rodrigues Pinheire - Acoripanharnento grafico Copyright © 1986 by Vandenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 by Editora Universidade de Brasilia, pela traducao Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundztige ciner Historik Lil: Formen und Funktionen des historischen Wissens impresso no Brasil Colegao Teoria da historia, de Jorn Rasen: Volume 1 - Razio histérica (publicado em 2001) Volume II ~ Reconstrugao da pasado Volume III - Histéria viva Direitos exclusivos para esta edicao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.2 - BlacoC~ nt 78 EAOK andar 70302-907 - Brasilia-DF ‘Tel.: (61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 wwweditora.unb.br direcao@editora.unb.br wwwilivrariauniversidade,unb.br Todos os direitos reservados. Nerthuma parte desta publicagao podera ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica eluborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia R951 Risen, Jorn. Historia viva : teoria da historia : formas ¢ fungacs do conhe- cimento histérico / Jérn Risen ; tradugdo de Estevaa de Rezende Martins. ~ Brasilia : Editora Universidade de Brasilia, 2007. 160 p.; 21. cm. ‘Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Historik UL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230-0974-8 1, Historiografia. 2, Formago histérica. 3. Teoria da historia, 4. Didaticada histéria. 5, Estética da historia, 6, Consciéncia historica, I. Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo, CDU 94 Sumario PREFACi0, 7 IntRopucAo, 9 Cariruto 1 TOPICA — FORMAS DA HISTORIOGRAFIA, 17 Pesquisa historica e historiografia, 21 Historiografia como problema teérico, 21 Estética e retérica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constituig¢do tradicional de sentido, 48 Constituicéo exemplar de sentido, 50 Constituigio critica de sentido, 55 Constituigao genética de sentido, 58 Formas e topei complexes, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido historico, 75 CarituLo 2 DIDATICA ~ FUNCOES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da historia e didatica, 88 © que é formagio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagiio histérica, 103 A fora cognitiva da cultura histérica, 121 Equipe editorial Rejane de Meneses - Supervisito edttorial Sonja Cavalcanti . Acompanhamento editorial Teresa Cristina Brandio- Preparacao de originais ¢ revisao Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Deniizia Maria Queiroz Gama - indice Tvanise Oliveira de Brito - Capa Elmano Rodrigues Pinheiro - Acompanhamento grifico Copyright ® 1986 by Vendenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 ty Editora Universidade de Brasilia, pela traducao Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Histortk III: ormen und Funktionen des historischen Wiscens Impresso no Brasit Coleco Teoria da histéria, de Jorn Risen: ‘Volume I - Razio histérica (publicado em 2001) ‘Volume II - Reconstrugao do passado ‘Volume Il] ~ Histéria viva Direitos exclusivos para esta edi¢ao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q. 2 - Bloco C- 1 78 Ed. OK - 1° audar 70302-907 — Brasilia-DF Tel.: (61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 wwweditora.unb.br direcan@editora.unb.br werwlivrariauniversidade.unb.br Todos os direitos reservados. Nerihuma parte desta publicagio poderé ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorizacio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasflia RIS] Rasen, Jorn, Histéria vive : teoria da historia : formas ¢ fungées do conhe- cimento hist6rico / Jorn Riisen ; tradugao de Estevio de Rezende ‘Martins. ~ Brasilia: Editora Universidade de Brasilia, 2007. Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundziage einer Historik IIL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230.0974.8 1. Historiografia. 2. Formagao histérica, 3. Teoria da histéria. 4. Didatica da historia. 5, Estética da historia. 6. Consciéncia histérica, I Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo. cbus4 Sumario PREFACIO, 7 Inrropucio, 9 Capituto 1 Tortca — FORMAS DA isToRioGRaFiA, 17 Pesquisa histérica ¢ historiografia, 21 Historiografia como problema tedrico, 21 Estetica € retorica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constitui¢do tradicional de sentido, 48 Constituicéo exemplar de sentido, 50 Constituigio critica de sentido, 55 Constituig&o genética de sentido, 58 Formas e zopoi complexos, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido hist6rico, 75 CapiruLo 2 DMATICA — FUNCOES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da historia e didatica, 88 O que é formagiio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagao histérica, 103 A forca cognitiva da cultura historica, 121 Equipe editorial Rejane de Meneses - Supervisio editorial Sonja Cavalcanti . Acompanhamento editorial ‘Teresa Cristina Branddo- Preparagao de originais ¢ revisto Raimunda Dias . Editoragdo eletrénica Rejane de Meneses ¢ Danazia Maria Queiroz Gama - indice Tvanise Oliveira de Brito Capa Elmano Rodrigues Pinheiro - Acompanhamento grafico Copyright © 1986 by Vandenhoeck & Ruprecht Copyright © 2007 by Editora Universidade de Brasilia, pela traducio Titulo original: Lebendige Geschichte: Grundziige einer Historik III: Formen und Funktionen des historischen Wissens Impresso ro Brasit Colecdo Teoria da historia, de jOrn Rasen: Volume I - Razao histérica (publicado em 2001) Volume il - Reconstrucio do pasado Volume III ~ Histéria viva Direitos exclusivos para esta edigao: Editora Universidade de Brasilia SCS Q.2- Boca C - n?78 Ed OK - 1 andar 70302-907 - Brasilia-DF Tel.:(61) 3035-4211 Fax: (61) 3035-4223 ww editora.unb.br direcao@editora.unb.br wwwilivrariauniversidade.unb.br Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta publicagio poderd ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio semi a autorizagio por escrito da Editora. Ficha catalogréfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasilia R95] Riise, Jorn. Historia viva : teoria da historia : formas e fungdes do conhe- Cimento histérien / Jarn Riisen ; traducio de Estevio de Rezende Martins. - Brasflia ; Editora Universidade de Brasilia, 2007. 160 p.: 21. em. ‘Tradugao de: Lebendige Geschichte: Grundzlige einer Historik IIL: Formen und Funktionen des historischen Wissens. ISBN: 978-85-230-0974-8 1. Historiografia, 2, Formagio hist6riea. 3, Teoria da histéria. 4. Didatica da historia. 5, Estética da historia. 6. Consciencia histérica, I. Martins, Estevio de Rezende. II. Titulo. cpus Sumario PREFACIO, 7 IntRopucao, 9 CapituLo 1 Trica ~ FORMAS DA HISTORIOGRAFIA, 7 Pesquisa histérica ¢ historiografia, 21 Historiografia como problema tedrico, 24 Estética e retérica no discurso da historiografia, 28 Conseqiiéncias da pesquisa, 38 Tipologia da historiografia, 43 Principios da diferenciagao, 44 Constituicao tradicional de sentido, 48 Constituigdo exemplar de sentido, 50 Constituigao critica de sentido, 55 Constituigao genética de sentido, 58 Formas € fopei complexos, 63 Ciéncia como principio da forma, 68 Ciéncia e sentido histérico, 75 CariruLo 2 DIWATICA — FUNCGES DO SABER HISTORICO, 85 Teoria da histéria e didatica, 88 O que é formapio histérica?, 95 As trés dimensdes de aprendizado da formagao histérica, 103 A forca cognitiva da cultura histérica, 121 6 Jorn Rasen ConcLusio Utopia, ALTERIDADE, KAIROS ~ 0 FUTURO DO passavo, 135 Breuiocraria, 151 inoice, 157 Prefacio Este € 0 terceiro e ultimo volume da série em que consignei minha tentativa de desenvolver um conjunto sistematico de argumen- tos para apresentar a teoria da histéria como autocompreensao da ciéncia da histéria quanto a seus fundamentos ¢ 4 sua matriz disci- plinar. A pretensiio sistematica deve certamente reforcar a impressao de provisoriedade do resultado obtido. Os temas que sao tratados agora (historiografia ¢ formagio histérica) requerem uma reflexdo mais pormenorizada sobre modos de pensar ¢ contetidos do saber de outras disciplinas (como, por exemplo, a linguistica, a pedagogia, a psicologia, a teoria da literatura) do que o dia-a-dia da vida acadé- mica e os mites previstos para o volume permitem. O compromisso que teve de ser encontrado obedeceu ao critério de delimitar o cam- po das questdes abordadas e clarificar como devem ser tratadas. Encerro meu trabalho com uma mescla de trés sentimentos: receio, alivio e gratidéo. Receio quanto a distancia entre o que ten- cionava € 0 que apresento. Alivio, pois consegui colocar um ponto final (mesmo se provisério) e posso me dedicar a outros assuntos no- vos. E gratidao, pois pude contar com muita ajuda, apoio ¢ incentive no longo periddo da incubagao dos argumentos ¢ da elaboracao dos enunciados deste trabalho. Inicialmente, gostaria de registrar meus agradecimentos a Fundagdo Volkswagenwerk por um scmestre sabatico adicional. Nao sei como teria conseguido concluir a reda- 80 sem a bolsa cientifica. Em seguida, agradego cordiaimente aos colegas Frank Ankersmit (Groningen), Chang-Tse Hu (Taichun), Floris van Jaarsveld (Pretoria) e Augustin Wernet (Sido Paulo), cujo interesse e entusiasmo me impulsionaram nos ultimos anos a perse- yerar no labirinto da teoria da historia, malgrado muitos historiado- Tes considerarem que nele o ar é demasiado rarefeito. Klaus Fréhlich 8 Jom Risen Karl-Ernst Jeismann foram de grande valia, ao sustentarem que essa atmosfera faz bem igualmente a didatica da historia. Junte-se a isso a longa amizade ¢ colaboragdo em projetos de didatica da historia com Ursula A. J. Becher, Klaus Bergmann, Bodo von Borries, Annette Kuhn, Hans-Jiirgen Pandel, Gerhard Schneider e Rolf Schérken. Todos contribuiram para relembrar a utilidade.da reflexdo sobre os fundamentos para a didatica da historia. Hildegard Vords-Radema- cher e Jiirgen Jahnke convenceram-me que minhas reflexdes sobre a didatica da historia, por causa ou apesar de sua forte conotacio teéri- ca, podem ser de valia para a pratica do ensino. Horst Walter Blanke, Klaus Bergmann, Klaus Frohlich « Hans-Jargen Pandel tiveram a paciéncia de ler o manuscrito. Nao hesitaram em opinar e fazer boas sugestes de aperfeicoamento. Ursula Jansen e Christel Schmid merecem meus agradeci- mentos pela trabalheira com o manuscrito ¢ com o manuscio, por vezes frustrante, do progresso tecnoldgico em forma de computa- der, Agradego a Thomas Sandkuhier pela leitura atenta e critica do manuscrito e das provas, mas sobretudo pelo seu apoio constante no uso do computador. A ele ¢ a Udo Dreher meu agradecimento pela montagem € corregao dos indices. Bochum, agosto de 1988. Introduc¢ao O historiador deve poder infundir presente no passado, tal como o profeta Ezequiel: ele caminha por entre um emaranhado de esqueletos, mas medida que anda, por detrés dele eclode nova vida. Karl Lamprecht! A questau das formas ¢ fungdes do saber histérico parece, a primeira vista, desviar-se da tematica prdpria a teoria da histéria. Pois agora ja nao se trataria mais da histéria como ciéncia, nem da regulag’o metédica que fundamenta a cientificidade do conhe- cimento ¢ sua pretensdo especifica de verdade. Diante dessa ra- cionalidade intrinseca do saber histérico, de sua clareza apolinea, formas e fungdes parecem pertencer a um outro lado da ciéncia, 4 sua vivacidade dionisiaca, na qual se trata nao das regras ¢ das fundamentagées, mas das formas estéticas, das intengdes retoricas e do uso pratico. Em suas formas e com suas fungées, o saber histérico parece evadir-se de sua cientificidade propria e indicar, assim, os limites da cientificidade no processo do conhecimento histérico. Inquirir novamente e com profundidade as regras metodicas da historiografia, como é indispensavel 4 histria como ciéncia, seria aqui descabido, quando nao abstruso. Surgiria assim uma teoria da arte historiografica, na qual “método” significaria coisa completamente ''K. Lamprecht. Paralipomena der Deutschen Geschichte (1910), Ausgewdhlte Schriften zur Wirtschafts- und Kulturgeschichte und zur Theorie der Geschichts- wissenschaft. Aalen, 1974, p. 719-724, cit. p. 719. 10 Jorn Rusen distinta dos principios do procedimento para assegurar a validade do conhecimento, de que se serve a historia como cigncia. Método, apenas como regra canénica da composicao historiografica, seria entendido como uma restri¢éo das possibilidades de dar forma 4 historiografia, um enfraquecimento de suas potencialidades. Sua eventual exigéncia seria certamente recusada pela maioria dos historiadores. A pretens%o de entender as repercussées praticas do saber histérico como decorrentes de principios metédicos, obri- gatérios de um jeito ou de outro em nome da ciéncia, parece sem sentido. Pensar que os resultados adviriam somente da prescrigao metédica ¢ altamente problematico. Esse automatismo metédico estaria perto demais das rigidezes dogmaticas, mediante as quais determinadas posigSes seriam impostas autoritariamente como pontos de vista da vida pratica. Tal imposigSo estaria cm contradi- ¢&o com um principio fundamental para a historia como ciéncia: 0 da livre argumentagao. Por outro lado, o processo cientitico do conhecimento histé- rico n&o pode ser pensado sem os fatores “formas” ¢ “fungdes”. Nenhum saber histérico é amorfo. O saber histérico desempenha sempre fungGes na vida cultural do tempo presente. Forma e funcado so essenciais ao trabalho do historiador, E mesmo em sua forma e em suas fungdes que o saber histérico se completa, Somente nelas 6 que ele toma vida. E com elas que cle responde as caréncias de orientagao que suscitou. Sao elas que tormam necessarios e signifi- cativos todos os esforgos de reflexio da histéria como ciéncia. Se é por suas formas e fungSes que o saber histérico se torna verdadei- ramente vivo, seré que essa vida nfo se daria as custas de sua cien- tificidade? E, assim, a teoria da historia, que se ocupa em descobrir ¢ fundamentar os principios do pensamento que asseguram a cienti- ficidade da historia, ndo estaria 4 busca de resolver a quadratura do circulo? Ela se preocupa com cientificidade onde justamente nada parece cientifico, onde nenhuma regra metédica da pesquisa parece determinar o trabalho do historiador. ‘Nao é por acaso que a questo da forma e da fung4o do saber hist6rico esté no centro das preacupagdes dos historiadores, mes- mo quando ainda no consideram seu oficio primariamente como Historia viva un cientifico,? Na tradigao retérica da teoria da historia cuidava-se, so- bretudo, das regras da escrita historiografica, da poética normativa da historiografia. Tal poética ensinaria aos historiadores como escre- ver obras “faceis de ler”, ou seja: de boa repercussdo, A obra deveria dirigir-se ao “coragio” do leitor. A historiografia deveria habilité-lo a agir praticamente. Com a cientificizagao da historiografia, o mi- cleo das reflexées metédicas dos historiadores mudou. Ele passou da formatago da historiografia para as regras da pesquisa histdrica. O aspecto da forma e da repercussfo deslocou-se para a margem da profissionalizacao, quando nao para fora dela, como mero acessério, extemo a especializagao. Assim, por exemplo, a didatica da histéria, por muito tempo, no era considerada parte integrante da disciplina especializada “‘histéria”, mas apenas como aplicagao pedagdgica, referente apenas ao uso externo do saber histérico. N&o obstante, as formas e as fungées do saber histérico siio dois fatores originais e essenciais da matriz disciplinar da ciéncia da his- téria. Eles so e permanecem elementos integrantes do trabalho de obten¢ao do conhecimento cientifico. Afinal, a histéria continua pre- cisando ser “escrita”, ou seja, apresentada de alguma maneira, e toda historiografia — em que forma seja — esta inserida em um contexto pratico de fungées, Deixar as duas de lado scria uma limitagio inadmissivel do campo da ciéncia da historia, Digamos que 0 carter especificamen- te cientifico sé fosse reconhecido na forma de apresentacgao de uma monografia ou de uma edigao critica de fontes, bem préxima das praticas de pesquisa. Mesmo assim, ainda se impée reconhecer que esse resultado teve de receber determinada forma (embora limitada) de especificidade histérica, pois do contrario se chegaria 4 negagao ? Acerca do desenvolvimento da teoria da histéria, ver as concludes de H. W. Blanke, no artigo intitulado Georg Andreas Wills “Einleitung in die historische Gelahrheit” (1766) und die Anfiinge moderner Historik-Vorlesungen in Deutsch- land. Ditthey.Jahrbuch fir Philosophie und Geschichte der Geisteswissenschaf- ten, 2, 1984, p. 193-265, exp. p. 196-206. Ver também J. Risen. Geschichesschrei- bung als Theorieproblem (14).* *N. doE.: A exemplo desta nota, 0s titulos que aparecem neste ou nos volumes an- teriores desta série so citados com o nome do editor, titulo abreviado e o mimero, entre parénteses, da parte numerada da bibliografia. R Jorn Risen dos resultados historiograficos obtidos pela histéria como ciéncia em sua pratica de pesquisa. O mesmo vale para a fungSo pratica do saber histérico, Esse saber sempre tem um efeito determinante sobre 0 processo histéri- co de conhecimento (mesmo se por vias transversas), em particular sobre seu ponto inicial, a pergunta historica. Excluir esse fator da especificidade cicntifica da historia traria apenas descontrole sobre sua repercussdo, uma espécie de inconsciéncia acerca da praxis his- toriografica. Ademais, os historiadores, com sua competéncia pro- fissional, ficariam impedidos de tomar posig&o direta quanto ao uso pratico do saber histérico que produziram. A legitimagao histérica da politica, o ensino da histéria na educaco ou a apresentagao das experiéncias e interpretacdes historicas em museus — isso e muito mais seria subtraide 4 competéncia do historiador, se nio lhe fosse permitido exprimir, na forma ¢ nas fungdcs do saber histérico, seu proprio entendimento como cientistas. Como isso é possivel? A formatac4o do saber histérico obtido pela pesquisa e sua fun- go na vida pratica dos historiadores ¢ das historiadoras tém de ser seriamente levados em copta, em sua concepgdo da especialidade, como fatores originais ¢ essenciais da matriz disciplinar da ciéncia da hist6ria. Sao justamente essas propriedades, pelas quais a forma- tagao historiografica e o uso pritico do saber histérico parecem afas- tar-se da cientificidade do processo de conhecimente histérico, que devem ser examinadas como grandezas determinantes da pesquisa hist6rica. Como a teoria da histéria se pergunta, em primeiro lugar, em que consiste o conhecimento histérico necessario, historia, como ciéncia, deve-se colocar, com respeito aos fatores “formas ¢ fun- gGes”, duas questdes. (1) A que esquemas ordenadores esses fatores esto submetidos no processo de obtencio do conhecimento histé- tico? (2) Como esses esquemas se articulam com 0 principio da ga- rantia discursiva de validade, constitutivo da historia como ciéncia especializada? Quando os historiadores redigem textos e se referem aos desafios da vida cultural de seu tempo (por exemplo: 4 preten- sao politica de legitimar as dominagdes, aos problemas pedagdgicos do ensino de histéria, 4 organizagéio dos museus), ou quando atuam Historia viva RB nela— o que fazem de sua ciéncia? Que procedimentos adotam? Que regras observam? Existem formas dessas regras das quais se possa dizer que corespondem 4 especificidade do pensamento histérico, tipica da histéria como ciéncia? Seria um equivoco querer definir modelos historiograficos e didatico-politicos para 0s csquemas de ordenamento cientifico da pesquisa historica e do resultado pratico do saber historico. Por mais desejaveis que sejam a retorica sistematizada e a competéncia di- datico-politica dos historiadores, quando se trata da importancia do saber histérico como fator relevante para a orientagdo da vida pra- tica, a teoria da historia nao ¢ um livro de receitas — afinal, prescri- gées em forma de receita so contrarias 4 inovagao. Como a ciéncia é uma oportunidade institucionalizada de inovagdo, esquemas de ordenamento desse¢ tipo teriam efeito contraproducente se assumis- sem a forma de modelos. Por outro lado, o oposto a esterilidade das receitas prontas nao é a desordem ou um deserto dionisiaco nos fundamentos da forma historiografica ou no efeito pratico do saber histérico. Seria pensavel, contudo, conceber os principios ou refletir sobre os pontos de vista que atuariam na formatagZo historiografica € nos efeitos culturais do saber histérico, por forga da cientificidade da historia. E necessario que se trate de principios e pontos de vista que permitam medir ¢ avaliar a relevancia da formatagaio e do efeito cultural para a regulagio metédica da pesquisa histérica. Para além dessa relevancia, quem sabe existam ~ até no aparente distancia- mento da cientificidade, em que atuariam a forma de apresentagao ¢ 0 efeito politico-cultural — principios de formatagfo dessa atuagao que ajam complementarmente a cientificidade do saber histérico, de cuja vida se trata aqui. Essa questao nos remete ao ponto de partida desta teoria da his- t6ria. Tratava-se da conexdo direta da cientificidade da histéria com a especificidade do pensamento histérico. A racionalidade peculiar do conhecimento histérico deve tornar-se visivel desde sua origem na vida comum. A questéo da vivacidade historiografica e politico- cultural do saber historico remete diretamente a essa origem na vida comum. O olhar critico da teoria da histéria, que se volta para as formas c as funcdes do pensamento histérico, dirige-se em seguida “4 Jorn Risen Para 0s processos elementares ¢ gerais da constituicao narrativa de sentido mediante as operacdes da consciéncia histérica. Cabe, todavia, especificar também a questio da insercao do sa- ber histérico na vida comum, de modo semelhante ao que se fez com respeite aos fundamentos da pesquisa histérica no quotidiano. Ela se torna ainda mais critica ao deter-se nos principios metodolé- gicos da garantia discursiva de validade, determinantes da historia como ciéncia. S30 esses principios que transformam o pensamento histérico em processo de pesquisa, A questiio da narrativa histérica Jé nao trata mais, agora, das operagdes fundamentais da consciéncia historica em geral e em seu conjunto, mas do proceso de formagiio do saber histérico, que se distingue do processo cognitivo da pesqui- sa histérica ¢ que, come tal, pode ser sistematicamente relacionado 4 pesquisa. Nao resta divida de que essa relacdo consiste em um fator essencial da cientificidade da forma historiogrdfica. Mesmo quando a teoria da histéria vai além da formacdo do saber histérico ¢ suscita a questao de suas funcdes culturais, sempre se tem na narrativa histérica uma operaco basilar da consciéncia histérica. Trata-se agora de descobrir o que faz dessa narrativa um fato social. Lida-se aqui com a aplicagdo e com o uso de “histérias” na vida cultural de uma sociedade. Para a teoria da historia, o que interessa ¢ correlacao desse uso com a ciéncia. O que advém, para a historia como ciéneia, do uso pratico do modo tipico de narrar hist6rias? Que papel pode e deve desempenhar a estrutura argumen- tativa da constituigao histérica de sentido na vida cultural de uma socicdade? Como pode ¢ deve a histéria como ciéncia corresponder a esse papel? Antes como agora o que interessa é a razdo determinante da historia como ciéncia. Essa raz&o assegura as chances da garantia discursiva de validade quando se lida interpretativamente com o passado humano. Com relagaio 4 formatacao historiografica, a ques- t&o da razio dirige-se ao problema da articulagio entre pesquisa historica e formatag%o historiografica. Como é que se mantém, na apresentagio de intcrpretagdes histéricas, a discursividade que lida, interpretativamente, com a experiéncia histérica e que é determi- nante da pesquisa? De que modo essa discursividade estd presente Historia viva 15. especificamente na historiografia? A resposta a essa pergunta diz respeito a um ponto de vista decisivo para a praxis historiografica: a relagdo com os destinatarios, com o publico-alvo. Esse ponto de vista pode assumir as mais diversas formas. Uma teoria da historia, que trata da historia como ciéncia, leva em considerac4o 0 espago das possibilidades historiograficas sob 0 ponto de vista da maneira como a racionalidade dos destinatarios pode ser reforgada pelo con- tacto com o saber histérico e com a experiéncia histérica. Quando se volta para a constitui¢do narrativa de sentido pela consciéncia histérica como fato social, a teoria da historia pergunta- se entdo se e como a ciéncia da histéria se relaciona, na vida pratica dos historiadores, com o uso pratico do saber histérico produzido por ela. Em uma de suas operagdes cognitivas mais proprias, a historia como ciéncia esta intimamente conectada com a vida pratica. Com respeito a esta, nao lhe é possivel reivindicar qualquer neutralidade estrutural. E esse o resultado a que chegaram as mais criticas das teflexdes produzidas sobre o problema da objetividade.* No entanto, quando se esta debatendo as funcdes praticas do saber historico, nio basta apenas lembrar as formas da objetividade histérica determi- nantes da historia como ciéncia. Pelo contrario: refletir sobre o uso pratico do saber histérico é um requisito basico da ciéncia da histé- ria. (E € uma exigéncia aos especialistas, para que ndo confundam o fundamento de sua ciéncia na vida com uma torre de marfim perdida no espago.) Deve-se investigar, explicitar ¢ fundamentar os pontos de vista ¢ os principios particulares que se aplicam ao uso prati- co do saber historic. A relagdo para com a vida, inerente a praxis cientifica mesma, precisa ser refletida. Essa relagdo pode entio ser utilizada conscientemente quando a ciéncia da histdria (melhor: os historiadores) é chamada a explicitd-la. E os especialistas séo cons- tantemente chamados (quando nao, forgados) a isso, por exemplo, na elaboracao de diretrizes curriculares para o ensino de histéria, na elaboragdo de projetos de pesquisa ou nos comités de planejamento de muscus. 86 essas circunstancias j4 bastariam para evidenciar que a relagdo do saber histérico com a pratica niio se esgota no debate + CEL NG. 16 Jorn Rasen sobre se a objetividade pode ser garantida ou salva. Tem-se aqui um problema mais complexo, que associa a formatacio ativa pelos historiadores com a autocompreensio da ciéncia da histéria e que requer andlise ¢ sistematizacio. Seja como for, a histéria, como ciéncia especializada, est4 sem- pre em relacdo intima com a educagio, a politica e a arte. Ela ne- cessita articular-se no 4mbito dessa relagdo, sem que disso resulte uma amputagao fatal da autocompreensio dos historiadores profis- sionais, que consistiria em achar que a mera execugao do projeto de pesquisa ja bastaria para realizar essa relacéo. Nao se deve deixar para os outros a Teflexao e a sistematizac&o das regras decorrentes da pratica do saber histérico, que se distinguem das regras proprias da pesquisa e da historiografia desta decorrente. Existem, pois, fungdes culturais do saber hist6rico que nao estao plenamente exercidas s6 porque esse saber foi expresso em termos historiograficos. Ademais, nao se entende porque a ciéncia da histéria deve ficar alienada des- sas fungdcs, Ela ndo deve ficar alicnada dessas fungées porque scu trabalho cognitive nasce de impulsos que conduzem a elas. Com a questo das formas e das fungdes do saber histérico, a reflexdo da teoria da histéria retorna a seu comego, no qual a origem do pensamento histérico deve ser evidenciada nos produtos cultu- rais da vida humana pratica. Com esse retorno, deve ficar claro que © resultado das reflexdes feitas até aqui, que a demonstragao das chances de racionalidade do pensamento histérico — essenciais para a histéria como ciéncia — consistem em afirmar que a ciéncia da histéria abre uma chance de vida em seu 4mbito. O que seria de uma razdo, de que a histéria como ciéncia fosse capaz, se nao se dirigisse 4 raiz mesma da ciéncia: os processos com os quais os homens se esforcam por viver humanamente. Capitulo 1 Tépica - formas da historiografia Se aprender historia é preciso, merece nossa gratiddo aquele que a transforma de drida em encantadora ciéncta. Friedrich Schiller! Ao palavreado retérico da histéria universal dou forma por meu préprio engenho. Verifico 0 que a une para sempre... Hobble Frank? Escrever histéria é a tarefa dos historiadores. Isso ¢ trivial. Como fazé-lo, 6 um problema. Os procedimentos da escrita da his- téria perdem-se, no trabalho de reflexdo sobre os fundamentos da ciéncia da historia, na ambigitidade de um processo nao esclarecido. Esse processo € realizado com naturalidade, recebe reconhecimento publico ¢ nao raro € premiado. No entanto, se comparada com o cuidado metodolégico aplicado a pesquisa, a praxis historiografica profissional mostra-se infensa a um tegramento andlogo. Ela é atri- buida a um engenho de competéncia literéria, cuja importancia ndo édiscutida, mas que nao obstante se encontra numa relagfo confusa com a profissionalizacao da pesquisa histérica. A telacao confusa entre cientificidade e arte historiografica, con- tudo, no se constitui necessariamente, para a teoria da histéria, em. desvantagem. Ao revés, essa relagao pode ser oportuna, enquanto ) Carta a Kémer, de 8 de janeiro de 1788, 2 Bm K. May. Der Geist der Liana estakado. B. Koscinszko (Ed.). Stuttgart, 1984, p. 49. Jérn Risen forga produtiva da forma literaria, cujo desregramento beneficiaria a ciéncia da histéria com maior eficdcia de resultados. A ambigtiidade da avaliag&o do que os historiadores fazem e tal duplicidade de pa- drdes de regramento continuam, todavia, a constituir problema, pois atingem a Idgica do conhecimento histérico, o estatuto da histéria como ciéncia, suas pretenses de validade ¢ a representacao de seu papel na vida cultural da sociedade. , Ranke formulou o problema relativo 4 questao do estatuto da histéria da seguinte maneira: Ahistéria distingue-se das demais ciéncias Por ser, simultaneamente, arte. Ela é ciéncia ao coletar, achar, investigar. Fla é arte ao dar forma ao colhido, ao conhecido e ao representé-los. Outras ciéncias satisfa- zem-se em mostrar o achado meramente como achado. Na histéria, opera a Faculdade da reconstituigdo. Como ciéncia, ela é aparentada 4 filosofia; como arte, a poesia? Ranke via a diferenca da cigncia da histéria com respeito a fi- losofia e 4 arte no caréter investigativo das operagdes cognitivas da historia: no colher, achar ¢ investigar da heuristica, da critica e da interpretagdo. Até hoje nada mudou nesse particular. E certo que sabemos mais, entrementes, sobre o “parentesco” entre histéria ¢ filosofia, pelo menos na medida em que s¢ pode identificar ¢ des- crever os procedimentos especificos da pesquisa, da elaboracao de teorias e das explicagdes histéricas enquadradas teoricamente.‘ Res- tam, contudo, questdes abertas sobre o “parentesco” entre a pesquisa hist6rica e a arte, sobre 0 significado da “faculdade da reconstitui- go” da historiografia com relagao 4 racionalidade metédica da pes- quisa histérica, sobre a historiografia Jancar mao dessa faculdade. deixando de lado principios racionais. Por um longo periodo essas quest0es néo foram prioritarias para a ciéncia da historia. Ranke, Por exemplo, considerava que importava, antes de tudo, “investigar "L. von Ranke. Die Idee det Universalhistorie (1835). Vorlesungseinleitungen, v. Doterweich (Ed.); W. P. Fuchs (Werk und Nachlass, v. 4), Munchen, 1975, p.72. ‘ * Ver Il, 23 5. Historia viva 19 cuidadosamente o individual”, ficando o resto “ao Deus dard”. Ele via a formataciio historiografica do saber obtido pela pesquisa, pois, como uma conseqiiéncia automatica da pesquisa. O potencial criti- co da pesquisa foi sempre energicamente contraposto 4 “densidade” de uma tradicao historiografica, que recorresse aos meios da ficgdo literaria para representar processos histéricos.' Com respeito a essa questo, o debate no campo da teoria da histéria trata o problema da formatagao do saber historico considerando argumentos lingitiisticos como decisivos para o estatuto cognitive e para a fungao cultural do pensamento hist6rico, daquele decorrente. A historiografia foi posta 4 luz de um principio que coloca a pesquisa c suas opcragées metédicas na sombra da uma racionali- zagio meramente secundaria, a servico das constituigdes primarias de sentido de cunho poético ou retérico. Afinal: a historiografia é fungdo da pesquisa ou a pesquisa é fungdo da historiografia? Considero essa alternativa improdutiva, pois trata de fatores es- senciais e originarios da matriz disciplinar de modo que o esclare- cimento de um levaria ao obscurecimento do outro. Ora, a questao esta em analisar o construto complexo de suas relagées sistematicas como base de um trabalho de conhecimento histérico consistente. Para tanto, necessita-se de inicio p6r a quest4o das formas da apre- sentacao historica, de modo a ir além da orbita dos principios da pesquisa histérica, no interior da qual a pretensiio de cientificidade da histria costuma confinar a autocompreensio dos historiadores. Em um estagio anterior da evolugao da ciéncia, pesquisa ¢ apresentag¢io podiam ser subsumidas sob um mesmo conceito abrangente de método. Na primeira versdo de sua Teoria da hist6- ria, Droysen ainda considerava a apresentagio como uma opera- ¢&o cognitiva que poderia ser associada sem restrigdes 4 operacdo interpretativa.* No entanto, quanto mais se refinava a andlise do 5 Cito as criticas de Ranke 20 que ele considerava as “falsas narrativas” de Guic- ciardini. L. von Ranke. Zur Kritik neuerer Geschichtschreibung. 2. ed. Leipzig, 1874, p. 24. © Yer J. Riisen. Bemerkungen zu Droysens Typologie der Geschichtsschreibung, em R. Koselleck et alii (Org.). Formen der Geschichtsschreibung (14), p. 192- 200. 20 Jom Risen tegramento do conhecimento histérico, que o define como processo de pesquisa, tanto mais se distinguia dele a apresentacao, como uma opetacao de tipo proprio. Essa distingo consiste no fato de que a pesquisa se refere por principio aos contetdos da experiéncia do passado ¢ de que 2 apresentacdio histérica se dirige ao publico do presente. Essa relagdo com o publico-alvo confere ao fator “formas da apresentagfo” sua especificidade e seu Peso proprio no processo do conhecimento histérico. E com ele que a historiografia se orga- niza, de acordo com Tegramentos prdprios, distintos dos aplicados a pesquisa. No que segue, gostaria de desenvolver, inicialmente, essa dis- tingdo de principio entre a formatagao historiografica e a pesquisa histérica. E certo que, para isso, ndo basta remeter a circunstancia de o saber histérico estar marcado pela relagio que sua formatagao tem com 0 publico-alvo e a0 modo como isso ocorre. A remissio da historiografia 4 pesquisa nao pode faltar, pois é com ela que a historiografia se aiticula para corresponder 4 pretensSo de validade do saber histérico, que reproduz em si como tesultado da pesquisa. Nao se trata, entretanto, apenas de expandir a riqueza e a varieda- de das possibilidades historiograficas de apresentagao dos resulta- dos da pesquisa nem meramente de explicitar seu cardter literdrio, A questo nao estd numa falta eventual de conhecimentos em teoria da literatura, mas sim em um Ponto sistematico: no Ambito da teoria da histéria, da cigncia da historia que reflete sobre seus fundamentos com o fito de especificar e sustentar sua Pretensdo propria de racio- nalidade como ciéncia. Nesse contexto, racionalidade é entendida como a stimula dos principios cognitivos que asseguram a validade. Isso se aplica igualmente ao fator da formatagao historiografica do saber histrico. A teoria da literatura interessa-se pelas possibilida- des estéticas, pelas propriedades e pela qualidade da historiografia. Um tal interesse pode facilmente deixar de lado a especificidade da Taz4o metddica que constitui a ciéncia. Por esse motivo, a teoria da histéria deve ocupar-se, em primeiro lugar, de investigar essa racio- nalidade na historiografia. Nao obsiante, convém evitar a alternativa improdutiva “ciéncia ou literatura” e renovar a Proposta rankeana da unidade de ciéncia e Histéria viva a literatura. Por isso, a primeira questiio a ser trabalhada, quanto a formatacao historiografica, ¢ a dos processos elementares ¢ gerais da constituigao histérica de sentido, nos quais a consciéncia historica elabora e produz suas termbrangas. Minha inten¢ao & pois, de inves- tigar “pela base” a distin¢do entre elementos cientificos e elementos literarios do conhecimento histérico, ao examinar seus fundamentos na vida pratica. Em primeiro lugar, cabe explicitar a formatayao his- toriografica como um modo pratico de Operar da consciéncia histé- rica, que se apresenta na forma de narrativa histérica. Ao examinar essa formatag%o, quero concentrar-me no espectro dos modos es pecificamente histéricos de constituir sentido acerca da experiéncia do tempo. Essa constituigao de sentido sera qualificada mediante uma tipologia da narrativa historica. A tipologia permitird ordenar ¢ caracterizar categorialmente as multiplas formas da historiografia. Somente com 0 quadro dessa tipologia se consegue identificar como se apresenta, na historiografia, o ganho de racionalidade obtido pelo pensamento histérico mediante os procedimentos da pesquisa. Para concluir, examinarei a questiio de como os resultados da pesquisa se consolidam nos processos narrativos de constituigac de sentide realizados pela consciéncia histérica, cujas formas préprias serao articuladas tipologicamente. Pesquisa histérica e historiografia Historiografia como problema teorico A pesquisa e a historiografia sao dois lados, mas também duas fases do processo histérico do conhecimento. Distingui-los é um mero artificio. Toda pesquisa tem por objetivo transformar- se em historiografia, néo sé porque seus resultados hecessitam ser expressos em linguagem, mas também porque cles funcionam como componentes de uma histéria e assim so vistos. As ques- tdes resolvidas pela pesquisa esto sempre enquadradas em histé- rias. Elas servem para esclarecer processos temporais em contextos abrangentes de uma apresentagao que articula o passado, 0 presente 2 Jorn Risen o futuro em um construte significativo que funciona como refe- téncia pratica de orientacdo no tempo.’ Inversamente, nao ha his- toriografia que nao pretenda ser verdadeira, o que a remete forgo- samente 4 pesquisa. Por mais que a pesquisa e a historiografia se entrelacem ou se- jam lados de uma mesma coisa, perfeitamente plausivel distingui- las (mesmo se forma abstrata) como duas fases do Processo histéri- co de conhecimento. Essa distingiio se baseia nos dois principios ja mencionados: no principio da relaco a experiéncia (que o conheci- mento histérico mantém na pesquisa) e no Principio da relagio ao piiblico-alvo (na apresentagao historica). Ambos os principios deter- minam 0s aspectos formais do conhecimento histérico. Na pesquisa, trata-se de uma forma cognitiva, de uma estrutura de persamento, baseada nas regras dos procedimentos adotados para lidar com a experiéncia, ou seja, em Pprincipios metédicos. Na apresentacdo, tra- ta-se de uma forma expressiva, de formatacio lingitistico-“literaria”, baseada nas regras dos procedimentos adotados para lidar eam o interesse histérico, ou seja, em principios estéticos e ret6ticos, Ambos os aspectos formais aparecem sempre juntos. Por que entdo existiria um problema da telacdo de um com 0 outro (so- bretudo se for algo que v4 além da gencralidade e da radicalidade do problema do pensar ¢ falar, que obviamente escapa a teoria da histéria)? Para a problematica dessa Telagdo hé razes mais histéri- cas do que légicas. No processo de Cientificizagiio do pensamento histérico, a Pesquisa tomou-se auténoma, como construgdo propria as instituigdes académicas. A investigago dos fatos histdricos e a fundamentagao de sua facticidade sto elementos de toda historio- grafia (mesmo se ocorre grande variagao, ao longo do tempo ¢ na diversidade das culturas, sobre o que se entende por facticidade € sua plausibilidade). Com a ciéncia da historia, contudo, a pes- quisa ganhou peso préprio no processo do conhecimento histérico. A formatagao historiografica dos resultados da Pesquisa, no entan- to, pareceu secundaria, até mesmo mera fungiio da pesquisa. Como a cientificidade do conhecimento histérico foi identificada com seu * Ver mais pormenores em I, 56 ss. Historia viva 23 carater investigativo, 0 processo de formatagao historiogrifica pare- ceu ser algo externo a ciéncia. A expressio anti-retérica de Ranke, 3 verdade nua, sem nenhum ornamento”,* subentendia que © resulta lo decisivo, obtido pela constituigdo de sentido operada pelo comheci- mento histérico, decorre do processo de pesquisa. Como se tratava de estabelccer empiricamente o contexto histésico especifico dos fatos do passado, obtidos pela critica das fontes, nao sobrava hada de bem especifico para a apresentaca4o, do ponto de vista cognitivo. Essa apresentagdo deveria contentar-se em dar forma adequada 4 icidade investigada. , : ate cbstante, essa forma sc destacou por uma qualidade lite- raria tao peculiar, que a Histéria de Roma de Theodor Mommsen veio a ser agraciada com o Prémio Nobel de Literatura, em 1902, Isso em nada atenua, todavia, que a autocompreensao dos historia- dores profissionais considere suspcitos todos os elementos e fatores da formatacao historiogréfica que nao se relacionem diretamente com a pesquisa, Esses elementos e@ fatores estariam contaminados pelo gosto da literatura acientifica. A estrita relagao @ pesquisa é © nico critério adequado a historia como ciéncia a ser levado em. conia quando ‘se aborde a historiografia.” Mesmo a mais claborada teoria da ciéncia da histéria no 4mbito do historicismo, a Tépica de Droysen, estabelece uma tipologia das formas historiograficas quc, ao fim ¢ ao cabo, se baseia no Pressuposto de que todas as operagdes cognitivas da interpretagéo histérica esto relacionadas as diversas dimensGes da consciéncia historica dos destinat S O que houvesse de literério, mediante o qual as formas historio- graficas se distinguiriam dos procedimentos concretos da pesquisa histérica, conteria um elemento proprio de conhecimento ndio Te- dutivel 4 forma cognitiva da pesquisa, ao qual a estética filosofica se aplicaria, Esse componente literdrio sempre aparece como fonte TTT Be rit . . 8),p.24. * Liv Ranke. Zur Kritik nenerer Geschichtschreibung (ver nota a 5 Acerca dessa reflexdo ver a investigagdo pioneira de H.-J. Pandel. Mimesis und Apodeixis (14). ; ; ; Ver 1. Risen. Bemerkungen zu Droysens Typologie der Geschichisschreibung. In: R, Koselleck et ali (Org,). Formen der Geschichtsschreibung (14), p. 192-2005 W. Schieffer. Theorien der Geschichtschreibung (14). 24 Jom Rusen de inquietagao ¢ de dissensiio na autocompreensao dos historiado- Tes profissionais. Desde a controvérsia entre Bury e Trevelyan, na virada do século XIX para o século XX,'! encadeia-se até hoje uma polémica constante, na qual o carter especificamente cientifico e baseado nos procedimentos da pesquisa da historiografia é contra- posto 4 sua qualidade estética como Produto e manifestacao da for- mata¢ao lingiistica que elabora. Exemplos recentes dessa polémica s&0 o debate entre Golo Mann e Hans-Ulrich Wehler," 0 livro de Lawrence Stone sobre retorno da narrativa, assim como as discus- sdes que provocaram." No debate mais atual sobre o estatuto cientifico da histériae sua proximidade com a arte, a contraposigdo das perspectivas aplicaveis ao oficio do historiador acentuou-se fortemente. De um lado, tem-se uma consciéncia crescente da ciéncia da historia acerca de suas pre- tensdes de racionalidade, Essas pretensdes se fundam nas conquis- tas do método analitico ¢ no emprego de construtos tedricos para uma reconstruydo explicativa do passado. Nesse sentido, © carater atlisticu da historiogratia seria {mais) um resquicio de tradig6es his- toriograficas ndo superadas. A racionalidade inetédica contrapde-se a formatagao estética. “Zt will never be literature” [Nunca sera lite- tatura!] — essa exclamagao de um Tepresentante da New Economic History [nova historia econdmica] assinala a contraposigao."* De outro lado, cresce a aceitagfio de que ndo se tem como aban- donar os elementos narrativos na apresentacao da histéria (‘“narrati- vo” entendido aqui como uma forma Possivel de apresentagiio histo- riografica, dentre outras).'* Alm disso, a0 se examinar mais de perto "Documentado ex F. Stern (Ed.). Geschichte und Geschichisschreibung, Mégli- chheiten, Aufgaben, Methoden, Texte von Voltaire bis zur Gegenwart, Miinchen, 1966, p. 214-252. "°). Kocka; T. Nippetdey (Bd). Theovie und Eroahlung in der Geschichte (Theorie der Geschichte. Beitrdige zur Historik, v.3), Miinchen, 1979, p. 17-62. SL, Stone. The revival of narrative: reflections on a new old history, Past and Present, 85, 1979, p, 3-24; E. J. Hobsbwam. The revival of narrative: some com. ments. Past and Present, 86, 1980, p. 3-8. “L. E, Davis. The new economic history: a critique. in: R. L. Andreano (Ed). The mew economic history: recent papers on methodology. Nova York, 1970, p. 65, A Zeitschrift fir Geschicheswissenschaft dedicou a ease tema um niinero espe- cial: 34, 1986, n. 2. Histéria viva 25 essa questo, encontra-se que um significado especial é atribuido A estrutura narrativa do saber histérico, Essa estrutura diz respeito a peculiaridade Logica do conhecimento histérico. Actesce que um olhar mais detido sobre as operagées narrativas da consciéncia his- térica traz a luz fatores do conhecimento historico que dificilmente podem ser reduzidos 4 concepgao corriqueira de tacionalidade cien- tifica (desenvolvida obviamente a partir do paradigmna das ciéncias naturais matematizadas). Os critérios de sentido decisivos para o pensamento histérico, com os quais acontecimentos passados sio ordenados em um contexto especificamente histérico (post festum), possuem uma qualidade especial. Hayden White os descreveu como “poéticos” e alcangou, com isso, uma influéncia altamente benéfi- ca sobre o debate na teoria da histdria."*" Com cssa peculiaridade narrativa ou até pogtica, o pensamento histérico protege-se de sua subsungdo a uma concep¢4o unitaria da ciéncia, dependente de uma racionalidade nomoldgica. O anguls lingiistico dessa concepgao de {mota)tooria da ciéncia histérica vale para os procedimentos lingiis- ticos mediante os quais os fatos obtidos das fontes pela pesquisa ad- quirem seu sentido historico especifico. Esse sentido se constitui na conex4o narrativa que os articula, transformando assim “passado’ em “historia”. Tais procedimentos constituem uma profunda dimen- sao da historiografia, na qual sdo evidentes surprecndentes pontos em comum com as formas literdrias da constituigao de sentido. Na interpretacao ¢ apresentacao, pela ciéncia da historia, dos contextos histéricos, consolidam-se os modos fundamentais de atribuicio de sentido, pela linguagem, a fatos que vinham sendo consignados praticamente sé em textos literdrios. Hayden White classificou tipologicamente esses modos como metéfora, metonimia, sinédo- que ¢ ironia. Interpretou-os como “tropos” da constituigdo historica de sentido.” Sao cles que, afinal, determinam a interpretagio dos fatos obtidos pela critica das fontes. Eles conférem ao contexto tem- poral desses fatos seu sentido especificamente histérico. A uz de uma tal concep¢io, a pesquisa aparece como mera racionalizagdo de ‘SH. White. Metahistory (14), Tropics of discourse (15), The content of the form (5). "H. White. Metahistory (14).p. 31s. 26 Jérn Rasen tais atribuicdes de sentido. A pesquisa é entdo submetida ao crivo de principios lingitisticos que integrariam doravante o estoque de ins- trumentos de qualquer ser humano em sua telacio lingiiistica com 0 mundo e em sua auto-interpretagio, Esses principios precederiam e fundamentariam os procedimentos met6dicos da pesquisa. A afirmagio de que os pontos de vista determinantes da in- terpretacao hisiérica sao critérios poéticos de sentido abalou for- temente 0 estatuto cientifico da historia. Essa afirmagao decorre quase inevitavelmente da concepedo tradicional de ciéneia, que a ciéncia da historia utilizou para distinguir-se de sua tradiga0 pré- cientifica, retérica. Com essa concepedo, a pesquisa histérica ga- rante uma facticidade pela qual as apresentacées historiograficas relacionadas com a pesquisa se diferenciam substantivamente das produgées literdrias. Ficgdo é 0 conceito que se opée a essa factici- dade, de modo a referir 0 cardter “literario” ou “artistico” das cons- tituigGes ndo-cientificas de sentido na narrativa. Facticidade contra ficcionalidade — é disso que se tratava ontem, € disso que se trata hoje. Apenas o significado do ficcional modificou-se tadicalmente: deixou de ser o “outro” do historico, mas seu proprio fundamento, ao menos uma parte essencial dele. A ciéncia da histéria fiou-se longo tempo em sua capacidade de obter, das fontes, fatos {informagdes) comprovaveis intersubjeti- vamente (por certo nao se pode colocar em divida os tesultados da critica das fontes). Isso conduziu, no entanto, a conferir, ao contexto construfde pela interpretago histérica a partir dos fatos sustentados pelas fontes, uma facticidade scmelhante a que se reconhece a estes. A presungo “factualista” da critica das fontes transferiu-se para in- terpretagdo propriamente histérica do passado, Com isso, a ciéncia da histéria usufruiu do Prestigio cultural das ciéncias naturais en- tendidas como positivistas e empiristas."* Em uma tat concepgao da ciéncia nio t8m lugar, naturalmente, critérios de sentido que "Ver R. Barthes. Die Historie und ihr Diskurs (14); H. R. Jauss. Der Gebrauch der Fiktion in Formen der Anschauung und Darstellung der Geschichte. In: R. Koselleck et alii (Org). Formen der Geschichisschreibung (14), p. 415-451. "Um exemplo pico encontra-se em B. H. v. Sybel. Uber die Gesetze des historis- chen Wissens (1864). Fortrage und Aufsdize. Berlim, 1874, p. 1-20. Historia viva 27 correlacionem o significado da facticidade do passado com os pro- blemas de orientaca4o do presente, submetidos a regras. No dmbito de uma concepeao restrita de ciéncia, como a Positivista-empirista, esses pontos de vista sé podem valer como ndo-cientificos ou exter- nos 4 ciéncia. Eles siio confinados na esfera da atribuigao de sentido e da auto-interpretagao que, como arte, compensa, com atribuigdes de sentido e significado, a neutralidade valorativa da ciéncia. A teoria contemporanea da literatura igualmente se fiou ampla- mente na possibilidade de questionar a pretensio de cientificidade da histéria, mediante o mito da facticidade da histéria que se obtém a partir de dados adquiridos, interpretativamente, pela critica das fontes.” Sua critica continua na dependéncia de uma concepgao po- sitivista da ciéncia. Nao se levou em conta que esse positivismo nao é apropriado a descrever adequadamente as operagGes metodicas de- terminantes da historia como ciéncia. Se a interpretagao da realidade depender exclusivamente da alternativa entre facticidade dos dados das fontes ¢ fiecionalidade dos contextos de sentido e significado, entio a operagao cognitiva da pesquisa especificamente histérica, a interpretagao, deve ser vinculada 4 segunda opcao. Sé assim € que se pode opor o carater poético-retérico ao carater cientifico da ciéncia da historia. , A propria pesquisa j4 produz sentido cm scu procedimento de interpretardo. Por esse motivo, é possivel caracterizar, até certo Ponto, como “ficgées” os contextos histéricos reconstruidos pela pesquisa, por contraste com a facticidade dos dados obtidos pela critica das fontes. Isso s6 ¢ admissivel, contudo, quando se admite um concei- to duvidoso de realidade, que a define como facticidade pura (sem sentido ou significado) de dados ou informagdes. O que se ganha, no entanto, com isso? Mesmo com 0 entendimento de que o contexto histérico possui um outro estatuto ontolégico do que o fato obtido das fontes, a interpretacio nio deixa de ser uma operagGo especifi- camente cientifica. O historiador se beneficia do brilho poético da constitui¢do narrativa de sentido inclusive quando, como pesquisa- dor, lida com as fontes de metédica e regradamente. Deve sobrar » Assim por exemplo R. Barthes. Die Historie und ihr Diskurs (14). 28 Jorn Ruser ainda, para a historiografia, alguma coisa desse britho, para produ- zir uma constitui¢ao narrativa de sentido proprio, peculiar. Colocar problemas, nos quais a pesquisa e a apresentacdo absurvem uma a outra ou se instrumentalizam mutuamente, é improdutivo. A pesqui- Sa € a apresentagao devem ser vistas, analisadas e entendidas como dois Processos distintos de um mesmo procedimento abrangente diferenciado de constituicao narrativa do sentido da experiéncia do tempo. Suas diferencas podem ser abordadas produtivamente com a questdio de que pontos de vista ou Tegramentos sao necessdrios para a tealizagao respectiva da constitui¢do narrativa de sentido pela pes- qutsa ¢ pela historiografia. Estética e retorica no discurso da historiografia Pesquisa é 0 processo da constituigéo narrativa de sentido, no qual a relagao a experiéncia, presente cm todo pensamenta historico, se exprime de mancira a que essa constituigao de sentido adquira de- terminada relevdncia cognitiva. Essa televancia cognitiva consiste em um grau elevado do contetido empirico ¢ da forma explicativa das histérias, Relacionadas a pesquisa, elas so narradas de maneira a serem mais bem fundamentadas empiricamente e explicadas teo- nicamente, A apresentacao historiografica é, por conseguintc, um modo da Constitui¢ao narrativa de sentido, no qual domina o fator da relacao 20 publico-alvo, de dirigir-se a alguém mediante o pensamento his- térico (que, alids, sempre ¢ pensado para alguém, para um publico ou para um grupo de pesquisadores, por exemplo). E determinante desse modo e de sua especificidade cientifica o ponto de vista da relevancia comunicativa. Ela diz respeito 4 receptividade das histo- rias. Ela consiste em que a recepeao do saber histérico apresentado pela historiografia possa ocorrer, na vida pratica, de modo sustentavel, Essa “insergao na vida” a que se destina todo saber hist6rico - Seja mediado como for - é tratada hoje em dia pela categoria do ‘discurso”. O discurso histérico é 0 tipo de discurso em que “subsis- te” o saber histérico, isto é, em que aparece como parte integrante da Historia viva 2° orientacdo existencial, constituindo um elemento essencial da re- lag4o social na vida humana pratica. No discurso historico, o saber histérico torna-se um fator da cultura da interpretagdo, um meio da socializagdo ¢ da individuacdo. Como discurso, atua sobre o modo como as condi¢des atuais da vida sic experimentadas, interpreta- das e, 4 luz das interpretagées, gerenciadas praticamente. Relevancia comunicativa significa que o saber historico pode exercer essa fingio mediante seu tipo de apresentacfo, de forma bem engajada e muito bem sucedida. A “verdade nua”, que Ranke havia definido como objetivo da pesquisa para o saber historico,”! deve ser entendida da seguinte forma: esse saber deve estar formu- lado de tal modo que possa inscrir-se nos processos culturais da vida humana pratica, que lida com a experiéncia, a interpretacdo ¢ a gestdo das mudangas no tempo. A historiografia tem de apresentar (mediante a pesquisa) o tempo interpretado de maneira que se torne parte da vida, que recebe dela direcionamento temporal efetivo, ao ser transposta para as intengdes concretas do agir dos sujeitos. Essa vivéncia, essa participagao do saber histérico na mobilidade cultural da vida pratica humana, aparece na historiografia como coeréncia estética e retérica da apresentagiio histérica. Os termos “estética” ¢ “retorica” carecem de explicitagao, Am- bos devem exprimir o que se passa quando se formata historiogra- ficamente o saber historico, na medida em que essa formatacio é mais da que se da no pensamento histdérico durante a pesquisa, ¢ é diferente dela. “Fstética” designa aqui duas coisas: um plano e uma inten¢do, mediante os quais qualquer pessoa é interpelada pela apresentagao histérica. E estético o plano pré-cognitivo da comunicagiio simbé- lica, sobre o qual tém de se basear construtos cognitivos como o conhecimento ¢ o saber, na medida em que influenciam culturai- mente a vida de uma sociedade ou de um individuo. O elemento estético da formatagiio historiografica permite a percepgdo do saber histérico, abre-lhe a possibilidade da imediatez ¢ da forga de con- vencimento da percepcao sensivel. 2 Ver p. 23 e nota 6. 30 Jom Risen O que se entende por isso pode ser exemplificado de maneira bastante trivial. No ensino de historia, o saber histérico pode vir a ser percebido pelas alunas ¢ pelos alunos como um ramo morto de sua arvore do conhecimento. Aparece, assim, como massa de infor- magOes a serem decoradas e repetidas para satisfazer os professores, com 0 mero objetivo de tirar boas notas, Perde qualquer valor rela- tivo no modo como as criangas e os jovens pensam seu tempo, sua vida ¢ scu mundo. Em momentos de crise, até mesmo professores de historia chegam a admitir que muitos dos conteudos tratados nas aulas possuem esse cardter disfuncional ¢ que dificilmente desem- Ppenharae qualquer papel decisivo em situagSes concretas da vida, Posteriormente. De outro lado, tem-se — para a satisfacao dos profes- sores — a experiéncia de que o saber histérico pode contribuir para a auto-afirmagdo e autocompreensio das criangas e dos jovens ao longo do tempo de suas vidas préprias. Ademais, a sabedoria peda- gégica universal adverte que essa insergao do saber historico depen- de cum grande parte de seu tratamento comunicativo em sala de aula. E-ihe necessdrio desenvolver uma vivacidade que conduza seus destinatarios a vé-lo e aproprid-lo como parte de sua vida pessoal. 0 termo “estética” exprime, pois, que essa vivacidade Ppossui uma dimensio pré-cognitiva e uma dimensao metacognitiva, nas quais as formas cognitivas e os conteidos do conhecimento histérico tém de estar enraizadas, se sua interpretagio do tempo busca ter influéncia sobre as disposigdes mentais profundas do agir. Um outro exemplo: a critica da “frieza”, que certos historiado- res do quotidiano dirigem a historia social que recorre as teorias, diz Tespeito 4 sua capacidade de lograr tal chraizamento. Trata-se, ao final de contas, de um argumento esiético, que remete a relevancia comunicativa do saber hist6rico e nao, em primeiro lugar, a rele- vancia cognitiva. Por esse motivo, nao deve ser debatido apenas no plano da pesquisa, mas antes no da historiografia. A dimensio estética da historiografia consiste na incluséo, na formatagao do saber historico, de elementos lingitisticos que se re- ferem a dimensdes pré e extracognitivas do discurso histérico. Com esses elementos a subjetividade dos destinatarios é interpelada no plano em que lida com a forga sensorial, simbdlica ¢ representativa Historia viva 31 da relago com o mundo, da auto-expressao e da autocompreensao. Nao se trata mais apenas da qualidade literaria dos textos historio- graficos. A questio esta agora na fora interpeladora do discurso, na qual, em Ultima instancia, também reside a qualidade literaria desses textos. Ela torna vidvel a aptiddo a apresentar as constituig6es de sentido de maneira que suscitem, nos destinatarios, sua propria capacidade de constituir sentido, o que leva 4 ampliagéio ¢ ao apro- fundamento de sua competéncia para tanto. Temos assim ja um segundo significado para o termo “estéti- ca”. Bo que consigna uma determinada inten¢ao da formatagiio his- toriografica no plano pré e extracognitivo. Essa intengio relaciona a percepcao sensivel ¢ a forga das representacdes imageéticas, como fontes da vida pratica do saber histérico, aos contetdos cognitivos da apresentacao histérica. Essa relagao se da de maneira a que o entendimento histérico das energias da vida pratica atue de modo libertador, sempre que haja interesse cm agir. Com suas proprie- dades estéticas, a historiografia nado apenas enraiza o saber histéri- co nas dimensées intencionais profundas da vida pratica humana, como produz também o entendimente histérico como compensagio das coergées do agir, possibilitando assim uma relagao livre ¢ in- condicionada dos destinatarios com sua memoria historica. A inten- ao da estética de fomentar a liberdade provém da filosofia classica da arte (Kant, Schiller, Hegel). Ela pode ser mostrada também como elemento formador da historiografia. Seus efeitos aparecem quando o saber histérico esta a tal ponte enraizado nos impulses intencionais da vida pratica, que a meméria histérica se abre a re- presentagdes do passado nao predeterminadas. Os elementos es- téticos da historiografia introduzem o saber histérico como fator de libertacdo na motivagao para o agiz, que depende das memérias histdricas. As coergdes tomam-se assim t4o visiveis, que podem ser vencidas. A subjetividade dos destinatarios é inserida no movimento de participagao ativa na meméria, do que extrai sua forga criativa para dar forma ao futuro. Da-se pela historiografia uma espécie de ® Acorca da estética de Hegel, ver mirha interprotagiio em J. Risen. Asthetik und Geschichte (15), p. 41 s. 2 Jorn Rusen catarse da memoria. Por seu intermédio, os destinatarios alcangam um entendimento aprofundado de si mesmos e de sua historicidade, Ganham, ademais, uma motivagao para agir, na qual seu proprio eu se vé liberado das coeredes decorrentes de um passado incom- preendido no presente, que pesaria como um lastro. Uma catarse assim libertadora ¢ estimulante se funda na cocréncia estética da formatagao historiografica. Gostaria de explicitar esse ponto recorrendo aos exemplos j4 trazidos. O saber histérico pode ser aproximado das criangas e dos jovens, como meio de sua orientacdo existencial, de diferentes ma- ueiras. Eles podem ser manipulados para assumir atitudes politi- cas determinadas, com as quais se entregam incondicionalmente aos poderes dominantes. Essa vivéncia do saber histérico seria um fracasso estético. Inversamente, eles podem se tornar senhores de si nas atitudes que assumam com relagéio aos'poderes dominantes, habilitar-se para serem eles mesmos a darem forma a suas vidas. Um saber histérico com essa furga de vida seria um sucesso estéti- co. Quanto ao argumento estetico, de que o uso analitico de teorias levaria a0 “esftiamento” da relagio com a experiéncia histérica, deve-se insistir em que 0 “calor? exigido, como proximidade da vida pratica e da experiéncia pessoal, sé pode ser historiogratica- mente plausivel se aprofundar e ampliar o entendimento histérico, € ndo as suas custas. Na estética classica,” 0 processo pré-cognitivo da subjetivi dade humana, no qual s&o produzidas as impressdes sensiveis, é caracterizado como um movimento €spontaneo da imaginagdo, que corre sem sé opor as Operagdes cognitivas intelectuais ¢ conceituais da consciéncia. Pelo contrario: o movimento da imaginagio é con- siderado como um complemento, quando nao um Pptessuposto da producao de conhecimento, Dentre as fungdes de complemento ou de fundamento das operagées estéticas da consciéncia cabe desta- Car 0 peso estético especifico que a formatacao historiografica ad- quire sobre a pesquisa histérica. Nao se pode esquecer, todavia, que ®Penso sobretudo na Critica do juizo (1790), de Kant, e em Schiller (Uber die &sthetische Erziehung des Menschen, in einer Reihe Von Briefen, 1795). Historia viva 33 a imaginagiio representativa da consciéncia histérica esté sempre limitada — enquadrada mesmo ~ sistematicamente pela relagao da pesquisa a experiéncia. Herder bem retratou esse limite: ‘oO poeta é sufocado se o olharmos como historiador”.* A formatacao historio- grafica esté sempre estruturalmente enquadrada por um limite que fica aquém da imaginagao, que produz sentido estético sempre em so utdpico. ; eee limite nao pode ser caracterizado pela distingaa entre facti- cidade e ficcionalidade, pois a articulagdo entre sentido e significado dos fatos do passado vai além de sua facticidade. Justamente se se desejar considerar a facticidade pura de que determinada ocoméncia foi o caso em determinado tempo e lugar, de determinada maneira por determinadas razGes, como a esséncia da facticidade historica, entdo o especificamente histérico dessa facticidade estard sendo tratado nao factual, mas ficcionalmente. No entanto, se “ficcional devesse significar que 0 contexto histérico dos fatos nao Possui fac- ticidade alguma, desapareceriam os limites 4 imaginagao utopica no pensamento historico. Nao faria mais sentido, entio, discutir ¢ cri- ticar as interpretagdes histéricas desde o ponto de vista de saber em que medida lidam ou nao com a experiéncia histérica. Ora, uma historia ndo é narrada sob a pressdo esquizofrénica de ser ou a pura facticidade das informagdes das Fontes, de um lado, ou a imaginacdo ficcional de seu cardter historico. Sua fac- ticidade propria, muito mais real do que a facticidade dos dados das fontes, encontra-se na forma em que o passado se torna um elemento influente na vida humana pratica no presente. A memoria historica nao catapulta representagdes imagindrias, por passe de magica, de um passado factual longinquo para a proximidade da orientagdo concreta do agir humano. Ela se esforca, isso sim, e por vezes com grande dificuldade, por amenizar, mediante 0 tra- balho interpretative da consciéncia histérica, o peso determinante do passado sobre a vida presente ¢ suas perspectivas de futuro. A consciéncia histérica tem por objetivo, pois, extrair do lastro do passado pontos de vista ¢ perspectivas para a orientagao do agir, * Obras, ed. B. Suphan, v. 11, p. 76. 34 Jorn Rasen nos quais tenham espaco a subjetividade dos agentes e sua busca de uma relagao livre consigo mesmos ¢ com scu mundo. Essa li- berdade e a qualidade estética mencionada acima s4o entendidas como metas da apresentacio histérica.?> A pressdo do passado sobre os pressupostos e as circunstéincias da vida humana pratica atual é tao real quanto.o so os elementos inten- cionais dessa praxis, com os quais os individuos buscam transformar tal pressiio em impulsos de seu agir auténomo. Essa realidade atraves- Sa a distingdo entre facticidade e ficcionalidade no processo de memé- tia da consciéncia histética. O limite das possibilidades estéticas da apresentacao historica esta no ponto em que a imaginapao simbélica da interpretagfio do mundo, da autocompreensio e da autoconcep¢ao descole dessa realidade e introduza uma dimensio utépica do tempo na determinagao do sentido do agir e o transforme em simulagao.”6 Naturalmente, esse limite separa, do potencial estético da constituigade histérica de sentido, todos os campos da constituigdo estética de sen- tide, na medida cu yue estes se subtraiam a Pressao experiencial dos Pprocessos temporais reais, liberando a imaginacao. A coeréncia formal com que a historiografia leva em conta a televdneia comunicativa, necessaria ao processo de constituigao de sentido pela consciéncia historica, ndo se esgota na qualidade esté- tica, A categoria da estética € demasiado estreita. Desconectada da qualidade paraut6pica de sua ultrapassagem da realidade pela imagi- nagao, a estética estreita a vistio da constituigao de sentido produzi- da pela formatacao historiografica. $6 com ela nao é possivel expli- citamente suficientemente 0 que a categoria da retérica representa para a historiografia. Nessa categoria encontra-se a telagdo pragmatica a realidade, na qual © potencial significativo da historiografia se distingue nao negativa, mas positivamente das constituigdes “puramente” estéti- cas de sentido na arte (entendidas como ultrapassagem da realidade pela imaginagao). Embora as dimensies estética ¢ retorica das cons- tituigées narrativas de sentido sempre se superponham, a intencao 25-Ver p. 30. Isso no quer dizer que os construtos utépicos de sentide no possam gerar impul- 80S produtivos para a historiografia. Ver p. 135 8. Histéria viva 35 de surtir efcito sobre os destinatarios, prdpria a toda formatagiio lingitistica do saber hist6rico, é mais bem-apreendida pela categoria da retorica do que pela categoria da estética. Esta ocupa-se mais da eficacia ou do potencial que possa alcangar por forca de seus com- ponentes imaginativos. A qualidade retérica de um texto historio- grafico esta, ao invés, em sua estrutura de interpelagdo, na maneira ena forma com que motiva o destinatario a conceber inten¢des que se desdobram em sua disposi¢ao para agir (com relagdo a si ou a outros). Essa relag4o as disposigdes para o agir e 4 autoconcepeao pratica ¢ assegurada pela forma significativa com que uma detenmi- nada interpretagdo da experiéncia do tempo é expressa pelos modos lingilisticos, que so, simultaneamente, os modos praticos de pro- mover orientag&o para o agir e constituig&o de identidade. A reto- rica da historiografia articula a linguagem do saber histdérico a lin- guagem falada pelos préprios destinatarios. Com outras palavras: a linguagem que sempre falaram, pois sua relagéo consigo mesmos e€ com 0 mundo estd fundamentalmente determinada pelas interpreta- gdes do tempo, pelas atitudes quanto as experiéncias do tempo, por modelos de interpretagdes do tempo. “Tépos histérico” é 0 termo que se utiliza para designar os tipos de discurso ou de linguagem que conectam os historiadores e seu publico-alvo, nos quais o agir a constituicio da identidade so orientados no tempo.” Ao utilizar a designagdo “tdpos” para caracterizar sua reflexao sobre a historiografia, a teoria da histéria afirma que o ponto de vista da relevancia comunicativa, determinante da historiografia, aponta para o papel que o saber histérico desempenha no discurso cultural da respectiva sociedade. “RetOrica” € toda e qualquer historiografia, uma vez que esta sempre determinada pelas intengGes de seu autor, dirigidas aos seus destinatarios potenciais. Essa intencionalidade pode ser mais bem explicitada: ela se dirige (evidentemente pelos mais diversos graus de mediac&o) ao ponto da vida humana pratica, © Acerca da t6pica ¢ da retorica, em geral, ver o insteutive panorama de L. Fischer. Topik, Rhetorik. In: H. L. Arnold; V. Sinemus (Ed.). Grundsiige der Literatur- und Sprachwissenschaft, v. 1: Literaturwissenschaft, Miinchen, 1973, p. 134-156, 157-164. Para os fundamentos, ver Bornscheuer. Zopik (15). Uma visio de con- junto do debate atual est4 em Brever; Schanze, Ed. Topik (15). 36 Jom Risen em que os significados do tempo interpretado cxercem uma fun¢ao de orientagao pratica da relacao dos sujeitos consigo mesmos ¢ com o mundo. Essa teleologia retérica manifesta-se nos modos “tépicos” do discurso historiografico, no uso de modelos histéricos de pensa- mento e de argumentagdo, que possuem um papel decisivo na ges- tao da vida pratica. Um édpos articula “a intengdo de sistematizar e a vontade de convencer de maneira nao-impositiva”.”* A tépica da historiografia demonstra que modelos culturalmente elaborados sao utilizados para a interpretacg&o do tempo, ¢ de que modo atuam quan- do o saber histérico busca ter influéncia sobre seus destinatérios. Estética e retorica sdo dimens6es da formatacio historiografica, mediante as quais o saber hist6rico adquire as propriedades com as quais pode “inserir-se na vida”. Na dimensio estética, pela lingua- gem, que abarca as disposicdes ¢ intengdes pré © extracognitivas dos sujeitos interpelados. Na dimensdo retérica, pela teleologia da interpelagao, que abarca os modos, modelos e estratégias da argu- mentacao lingilistica sempre presentes na orientagdo pratica da vida na constituigio da identidade. Ou seja: abarca o discurso histérico, que opera como cédigo cultural em uma dada sociedade. A relevancia comunicativa da historiografia expressa-se na coeréncia estética e retérica de cada formatagdo lingiiistica histo- tiogrdfica. Com respeito 4 dimensio estética, pode-se chamar essa coeréncia de “beleza”. Com respeito 4 dimensdo retérica, pode-se chamar essa coeréncia de “eficacia”. Presta-se, assim, homenagem 4 conhecida classificagio das fungSes da poesia por Horacio, re- conhecendo o prodesse ¢ 0 delectare. A formatagio historiografi- ca é coerente esteticamente se apresenta o saber historico com as expressées lingtifsticas significativas que satisfagam 4 caréncia de sentido e 4 capacidade de constituir sentido dos destinatarios. Algo semelhante vale para o critério historiografico da coeréncia reté- rica: ele é satisfeito por formatacgées que respondam aos sujeitos interpelados justamente no ponto em que agem praticamente por teferéncia a constitui¢ao histérica de sentido. 3D. Harth. Strukturprobleme der Literaturwissenschaft. In: D. Harth; P. Gebhardt (Ed.). Erkerminis der Literatur, Theorien, Konzepte, Methoden der Literaturwis- senschaft, Stuttgart, 1982, p. 7. Historia viva 37 Como se relacionam a estética e a retérica da historiografia? Aresposta mais comum a essa pergunta é que uma dimensdo esta subordinada 4 outra e dela depende. Isso decorre da evolugio di- vergente desses dois tipos de reflexdo sobre a comunicagiio humana. Aestética desenvolveu-se como uma disciplina filos6fica, cuja visio da arte teve um efeito fortemente anti-retérico. A beleza, como qua- lidade cognitiva particular da percep¢do sensorial, foi rigorosamente separada da eficacia pratica, e mesmo oposta a ela, de modo que a qualidade estética de uma forma de significado seria medida pelo quanto ela evita interferir nas intencdes do agir. O desinteresse valia como qualidade essencial da estética. A coeréncia estética de um construto significativo estaria ent&io em fomentar nos destinatarios uma relagao de liberdade com as determinacées do agir em suas vi- das concretas. Ao invés de induzir os sujeitos a agir de determinada maneira, libera-os da pressao para agir e habilita-os a conhecer me- thor as circunstancias de suas vidas, que lhes ficariam veladas na ro- tina quotidiana do agir por interesse. A cocréncia estética predispoc para a libertac&o do sujeito dos constrangimentos para agir. Por sua vez, essa liberagao confere 4s intengdes orientadoras do agir uma nova qualidade: entendimento dos contextos de sentido que envol- vem 0 agit, liberdade como motivo ¢ intengdo do agir. Essa fungio libertadora da estética faz a retérica aparecer como um contra-senso, pois ela vincula os destinatarios de um significado a determinadas induces a agir, de que a qualidade estética da imaginagdo os quer justamente libertar. Diante desse quadro, a retorica tende a conceber a coeréncia histérica como um fépos histérico, que tem por objetivo determina- das disposi¢6es para o agir. Isso ndo é incorreto, na medida em que, pela coeréncia estética, a referida liberdade de agir ¢ uma qualidade que serve de motivo para agir. E nao se trata de uma qualidade qual- quer dentre outras, mas a qualidade do agir humano por exceléncia. Esse motivo suscita um agir em que os seres humanos se véem mu- tuamente como fins em si mesmos e nao como meios para a realiza- go de fins particulares. Estética e retérica nado precisam se contradizer ¢ tampouco se subordinar uma 4 outta. Sua articulagao é mais bem explanada 38 Jom Rusen assim: a retérica concentra-se, na estética, no efeito que o cons- truto lingitistico de sentido tem no agir, liberando os sujeitos de constrangimentos prévios para determinada ag&o, fomentado sua reflexdo sobre outras formas de acdo, dispondo-os, assim, a um agir novo, qualitativamente diferente. Na estética, a retérica torna-se metapragmitica: ela faz lidar com o proprio agir, provoca tomada de posigao dos sujeitos agentes quanto ao agit, fazendo-os ganhar mais liberdade. | oO que significa tudo isso para a historiografia? Trata-se da re- levancia comunicativa da formatagdo historiogréfica, com a qual ela vai além das intengées prdticas de influir (no mais das vezes politicamente), capacitando seus destinatarios a entender as cir- cunsténcias temporais de sua vida pratica, que admitem outras in- tengdes praticas. A historiografia de Ranke, por exemplo, esta sem dtivida alguma impregnada Por representagGes politicas conserva- doras, mas sua qualidade esictica, tao apreciada, agrada também ao publico que assume outras posigdes politicas. Essa historiogra- fia Apresenta-lhe outros entendimentos historicos, que podem ser de interesse mesmo se originada em posturas politicas ¢ interesses divergentes do seu. Arelevancia comunicativa da historiografia consiste, pois, em um contexto de mediagAo entre a coeréncia estética ea coeréncia retorica. Nesse contexto, os elementos cognitivos desempenham um Papel es Sencial. Para a teoria da historia, 4 qual interessa explicitar a historia como ciéncia, é decisiva a perspectiva historiografica em que a fer- mentagdo cognitiva de sua televancia comunicativa prevalece. E-lhe necessario colocar a questo da relacdo da historiografia 4 pesquisa, como fator de sua coeréncia estética ¢ retérica, Que papel desempe- nha a relevancia cognitiva, constituida pela pesquisa no pensamento hist6rico, na relevancia comunicativa propria 4 historiografia? Conseqtiéncias da pesquisa Para poder responder a essa pergunta, é preciso levar em conta © Passo que, no processo do conhecimento histérico, vai da pesquisa Historia viva # a apresentagdo. A pesquisa, como ja foi dito, esta tendencialmente sempre dirigida 4 apresentagdo. Todo resultado de pesquisa s6 pode ser entendido como componente de uma histéria, e 6 assim a pode produzir. No entanto, essa tendéncia, essa virtualidade, requet ser transformada em manifestagio, cm atualidade. Para tornar claro o que ocorre ai, deve-se lembrar, previamente, 0 que acontece quando a pesquisa se pde em movimento. A pesquisa comega com certas abstracdes. Essas abstragdes precisam ser compensadas pela histo- riografia no nivel cognitive do saber histérico alcangado pela pré- pria pesquisa. E fato que a pesquisa se articula com as caréncias de orientacao da vida pratica pelas operacdes cognitivas da heuristica. A pesquisa sublima essas caréncias, transformando-as em perspec- tivas quanto a experiéncia acumulada, na qual o passado remanesce presente. O sujeito do conhecimento, ao voltar-se decididamente na pesquisa 4 investigagdo empirica do passado (“voltar as fontes mes- mas”), da as costas a seu presente. O quadro tedrico de referéncias da pesquisa ¢ da intorpretagio histéricas é por certo algo distinto da orientacao da vida pratica no tempo, embora estejam imbricados. A pesquisa nao exclui a base existencial do pensamento his- torico, a inquietagéo da experiéncia do tempo, que engendram as questdes histéricas, sob o pretexto de um ponto de vista neutro, fora de seu tempo. Pelo contrario, cla as inclui. As inquictagées sao apaziguadas pelos procedimentos regulares do trabalho com © material das fontes. Além disso, como a pesquisa, por definigao, desbrava caminhos novos do saber histérico, vem a colocar entre parénteses 0 acervo de conhecimento jé acumulado. E assim que 0 complexo processo do questionamento mais ou menos tedrico das fontes e da interpretacgao de seus dados gira, primariamente, nao em torno dos abalos e das tentativas de estabilizagao da identidade histérica (por mais que cssa scja a origem de todo questionamento histérico), mas sim em torno da questdo de “como foi mesmo que tudo ocorreu”’. Ao fim do processo, entretanto, quando a pesquisa encontrou as respostas as perguntas formuladas e trata-se de formular essas respostas de maneira inteligivel ¢ eficaz, o saber histérico aleancado pela pesquisa precisa ser reintegrado ao acervo de conhecimento ja a0 Jorn Riisen acumulado. Nesse ponto, surge a questéio dos pontos de vista que orientam essa reintegragao, o que em qual perspectiva deve ser mais ou menos importante. Essa questo leva de volta as inquietantes ex- periéncias do tempo e a busca de identidade histérica no contexto Pratico da vida em que se produz o conhecimento histérico, Se esse contexto havia sido colocado entre parénteses por exigéncia da re- levancia cognitiva do saber histérico, agora esses parénteses tém de Ser retirados no ato da formatagao historiografica do saber histérico obtido pela pesquisa. Naturalmente, faz diferenca se o resultado da pesquisa € di- tigido em primeiro lugar aos especialistas ou ao publico em geral {por isso mesmo inespecifico). O gran de inovago que a pesqui- sa introduz, com relagao a0 acervo de conhecimento acumulado, amitde vai além do circulo estreito dos especialistas ¢ dirige-se a interessados em geral. No primeiro caso (o dos especialistas), a re- consideracao do sujeito do conhecimento da vida concreta presente bermanece um momente implicito da formatagao historiografica. E preciso ler muito nas entrelinhas para descobrir-se onde e como a experigncia do presente influcnciou ou até engendrou a realizacao da pesquisa. No segundo caso (o do pubblico em geral), esse cardter implicito nao existe; a historiografia assume a plenitude de sua re- levancia comunicativa. Como fazer valer, entio, as conquistas cognitivas da pesquisa, quando o conhecimento histérico retoma, na formatacao historio- grafica, as suas origens no contexto existencial? A tesposta dada pela tradipdo cientifica a essa questio, ainda valida na autocompre- ensao cotidiana dos historiadores profissionais, é a “des-retoriza- s4o”” das apresentagées historiograficas. Como um fio condutor, encontram-se as observacdes anti-retéricas nos textos em que a autocompreensdo da historia se enuncia programaticamente como ciéncia especializada.” O que se quer dizer com esse tépos, que ® Sobre esse conceito e sua problemitica, ver II, 15s. Eo que declara a Revue Historique — para citar apenas um exemplo — ne mani- festo introdut6rio de seu primeiro nimero: “... que cada afirmagio seja acom- Parthada de provas, de remissiio as fontes e de citagdes, excluinda com rigor as generalidades vagas e os arroubos otatérios ...” [tradugde da citaeao do original Historia viva 4 a historiografia orientada cientificamente nada teria a ver com a retorica? E corriqueira a concepoao de que a historiografia baseada em pesquisa nada mais diz do que teria ocorrido. No sentido de uma objetividade cientifica entendida como neutralidade, a histo- riografia nao estaria de nenhum modo relevante vinculada a praxis. Ranke deu a essa concepcAo sua formulapao mais forte: “A verdade nua, sem nenhum ornamento. Investigaga4o profunda do individual; o resto ao deus-dara. Nada de poesia, nadinha, nada de elucubra- gio”.*! Uma concep¢ao dessa expulsa do processo de conhecimento historico 0 peso proprio e a especificidade da apresentacdo histo- riografica. Mesmo assim, Ranke ainda admite que ha um “resto”. Na pratica, ¢ muito menos ao deus-dard do que 4 maneira como sua historiografia dominou magistralmente seus temas que ele obteve reconhecimento, pois soube inserir o resultado de suas pesquisas na forma estética de uma grande historiografia épica, Nao resta divida de que essa épica se compée de elementos retéricos, de que decorre a influéncia da historiografia de Ranke sobre a cultura politica dos alemaes. O tépos anti-retérico opde-se explicitamente tanto a linguagem historiografica empolada, que aparece como fim em si mesma, quan- to 4 utilizag&o de clementos ficcionais na historiografia. Para Ranke, esses elementos ficcionais sdo os discursos ficticios que Guicciardi- ni inseriu em sua apresentagdo, mediante os quais os agentes forne- ceriam ao leitor os motivos explicativos de suas agdes. Mesmo se essas duas exclusdes parecem justificadas, no plano da historiogra~ fia baseada em pesquisa, em nada contribuem para compreender o estatuto de seus elementos estéticos e retéricos. Esses elementos nao s&o imunes 4 relevancia cognitiva que a pesquisa confere ao pensamento historico. As conquistas cognitivas, aleangadas por este pensamento na pesquisa, entram na relevancia comunicativa da historiografia. A historiografia resultante da pesquisa ganha, com isso, uma quatidade que a diferencia de outras formas de formata- go histérica. francés, N.T.]. G. Monod, G. Fagniez. Avant propos. Revue Historique, 1, 1876, p. 1-4, cit. p. 2. » Ver nota &.

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