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Questées da Nossa Epoca Volume 6 ‘Dados internacionals de Catalogagao na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro , SP, Brasil) | ro-02805 a indices para catélogo sistematico: Emilia Ferreiro REFLEXOES SOBRE ALFABETIZAGAO 26 edicéo 1° reimpressio Sesians [REFLEXOES SOBRE ALFABBTIZAGRO Eonilia Ferreiro ‘Traduge: Horiclo Gonzales, Maria A Avevedo Goldberg, Maria Antonia Cruz Costa Magalldes, Mansa do Nascimento Paro e Sara Cunha Lima Capa: aeroestadi Preparacto dos originais Naix Kayo -Revisio: Maria de Lourdes de Almeida Composide: Linea Bditora Lida, Coondenago editorial: Danilo A. Q, Morales "Nenhuma parte desta obra pode ser reps rizagio expressa do autor ¢ do editor. © 1901 by Antora Direitos para esta edigao ua Monte Alegre, Perdlzes (5014-001 — Sio Paw 2164-4200 9 no Brasil ~ feverelno de 2013 Prefiicio ... Apresentagao... A representacao da linguagem e 0 processo de alfabetizagao..... 1. A escrita como sistema de representagio..... 2. As concepcbes das criancas a respeito do sistema de escrita .... 3. As concepgies sobi pratica docente .. Conchis6es...... A compreensio do sistema de escrita: construgdes originais da crianga ¢ informagao especifica dos adultos... 1. Construgies origi 2, Informagoes esp 3, Algumas implicagdes pedagégicas. ERUA FeRRERO Processos de aquisicao da lingua escrita no contexto escolar 0 espago da Teitura ¢ da eserita na educagio pré-escolar Bibliografia Este 6 um livro sobre alfabetizagao que, contrariando habitos e expectativas, nao traz para o leitor nem um novo método, nem novos testes, nem nada que se parega com uma solugao pronta (0 que a autora nos oferece sdo ideias a partir das quais torna-se possivel o que ja era necessario: repensar a pratica escolar da alfabetizagao. Sao reflexdes — as vezes apaixona- das — sobre os resultados de suas pesquisas cientificas. Emilia Ferreiro é doutora pela Universidade de Gene- bra, onde teve o privilégio de ser orientanda e colaborado- ra de Jean Piaget. Suas pesquisas sobre a alfabetizagao foram realizadas principalmente na Argentina, onde nasceu, eno México, pais que a recebeu e onde é, atualmente, professo- ra titular do Centro de Investigagao e Estudos Avancados do Instituto Politécnico Nacional ‘Tradicionalmente a investigagao sobre as questées da alfabetizagao tem girado em torno de uma pergunta: “como se deve ensinar a ler e escrever?" A crenga implicita era a de que 0 processo de alfabetizacto comegava e acabava entre as quatro paredes da sala de aula ¢ que a aplicagio EMUAFERREIRO correta do método adequado garantia ao professor 0 con- trole do proceso de alfabetizacao dos alunos A medida que um contingente maior de criangas passou a ter acesso A educagao, os nimeros do fracasso foram se tornando mais alarmantes. Diante da derrota impésse a necessidade de mudancas radicais. Uma unanimidade na- cional que — na auséncia de instrumentos para repensar a prética falida — converteu-se em caga aos culpados. Ninguém escapou do banco dos réus: os alunos, por serem submutridos, carentes, deficientes. A escola, por ser uma inexoravel ma- quina de reproducao das relagoes de poder. O professor, por ser mal pago, malformado, incompetente. Neste momento 0 circulo parece ter se fechado ¢ tudo indica que as contradigdes alcancaram um nivel realmente desestabilizador. Como diz. Emilia Ferreiro: “Em alguns momentos da historia faz falta uma revolugio conceitual. Acreditamos ter chegado 0 momento de fazé-la a respeito da alfabetizacao." Nao foi certamente obra do acaso que um avango tao significativo na compreensao do proceso de alfabetizagao como a contribuigao de Emilia Ferreiro tenha acontecido na América Latina, onde o fracasso escolar jé ultrapassou 0s limites de um problema educacional; onde os indices chegaram a niveis politica ¢ socialmente inaceitaveis, As pesquisas de Emilia Ferreiro ¢ colaboradores rom- peram 0 imobilismo lamuriento e acusatorio e deflagraram um esforgo coletivo de busca de novos caminhos. Deslocan- do a investigacao do “como se ensina” para 0 “como se aprende”, Emilia Ferreiro descobriu e descreveu a psicogt- nese da lingua escrita e abriu espaco — agora sim — para REFLEXOES SOBRE ALFARETIZAGKO um novo tipo de pesquisa em pedagogia. Uma pedagogia onde a compreensio do papel de cada um dos envolvidos no processo educativo muda radicalmente. Suas idei quando levadas a pratica, produzem mudancas tao profun- das na propria natureza das relagdes do poder pedagégico que, sonho ou nao, é inevitével acalentar a ideia de que esta revolugéio conceitual sobre a alfabetizagao acabe levando a mudaneas profundas na propria estrutura escolar. Mas nao vamos colocar 0 carro adiante dos bois. O importante neste momento € que, através deste livro, che- guem as mfos dos educadores as ferramentas que Emilia Ferreiro nos oferece. Com as quais, quem sabe, vamos con- seguir descobrir os caminhos para romper 0 circulo vicioso da reprodugao do analfabetismo. Telma Weisz Apresentacao Neste volume esto reunidos quatro trabalhos produ- zidos em momentos diferentes, porém dentro da mesma linha de prcocupagao: contribuir para uma reflexdo sobre a intervengao educativa alfabetizadora a partir dos novos dados oriundos das investigagbes sobre a psicogénese da escrita na crianga. Estas investigagdes (que ha dez anos vimos realizando ininterruptamente) evidenciam que 0 processo de alfabetizagao nada tem de mecanico, do ponto de vista da crianga que aprende. Essa crianga se coloca problemas, constréi sistemas interpretativos, pensa, raciocina ¢ inventa, buscando com- preender esse objeto social particularmente complexo que 6 a escrita, tal como ela existe em sociedade. Os dados a que nos referimos nestes quatro trabalhos provém de investigacdes realizadas em castelhano (com criangas da Argentina e do México). Os dados cothidos re- centemente no Brasil por Telma Weisz (Sao Paulo), Esther Pilar Grossi (Porto Alegre), Terezinha Nunes Carraher € Licia Browne Rego (Recife), mostram que os processos de conceitualizagao da escrita seguem uma linha evolutiva similar em portugués. MUA FERRERO Esperamos, no enianto, que novas pesquisas brasileiras contribuam para precisar melhor os aspectos especificos de portugués, aspectos esses relevantes para compreender 0 que ocorre quando se inicia 0 periodo de fonetizagao da escrita. Julho, 1985. Este livro, até sua 224 edicZo, continha quatro trabathos. Um deles intitulava-se “Deve-se ou nao se deve ensinar a ler ¢ escrever na pré-escola? Um problema mal colocado” Esse texto, escrito em 1982, exigia ser revisado, em fungao dos miiltiplos comentarios que recebi de educadoras durante esses anos, Em marco de 1994, a pedido da Unidad de Publicaciones da Secretaria de Educacién Pitblica do México, procedi a esta nova versio, que agora passa a de- nominar-se “O espago da leitura e da escrita na educacao pré-escolar’ Emilia Ferreiro México, margo de 1994. A representacao da linquagem e o processo de alfabetizagdo* E recente a tomada de consciéncia sobre a importancia da alfabetizagao inicial como a tinica solugio real para problema da alfabetizagdo remediativa (de adolescentes ¢ adultos). ‘Tradicionalmente, a alfabetizagao inicial é considerada em fungo da relagdo entre o método utilizado ¢ 0 estado do “maturidade” ou de “prontidao” da crianga. Os dois polos do processo de aprendizagem (quem ensina ¢ quem apren- de) tém sido caracterizados sem que se leve em conta 0 terceiro elemento da relaco: a natureza do objeto de co- nhecimento envolvendo esta aprendizagem, ‘Tentaremos demonstrar de que maneira este objeto de conhecimento intervém no proceso, ndo como uma entidade tinica, mas como uma triade: temos, por um lado, o sistema de repre- sentaco alfabética da linguagem, com suas caracteristicas * Texto publiado no Cademo de Fesquisa,n. 52, p {de Horicio Gonzales. “ ENMUA eto especificas;! por outro lado, as concepgbes que tanto os que aprendem (as criangas) como os que ensinam (os professo- res) tém sobre este objeto. 1. Aescrita como sistema de representagio A escrita pode ser concebida de duas formas muito diferentes ¢ conforme o modo de considerd-la as conse- quéncias pedagégicas mudam drasticamente. A escrita pode ser considerada como uma vepresentagéio da lingua- gem ou como um o6digo de transcrigdo gréfica das unida- des sonoras. Tratemos de precisar em que consistem as diferencas. A construgio de qualquer sistema de representagao envolve um processo de diferenciagao dos elementos ¢ relagdes reconhecidas no objeto a ser apresentado ¢ uma selecdo daqueles elementos ¢ relagdes que serao retidos na representagao. Uma representacao X nao é igual & realida- de R que representa (se assim for, nao seria uma represen- taco mas uma outra insténcia de R). Portanto, se um sis- tema X é uma representagdo adequada de certa realidade R, rotine duas condigdes aparentemente contraditérias: a) X possui algumas das propriedades e relagées pré- prias a R; ) X exclui algumas das propriedades ¢ relagdes pré- prias a R. 1. Tataremos aqui exclusivamente do sistema alf EFLENOES SoaRe ALABETZAGAO 1 vinculo entre X e R pode ser de tipo analégico ou totalmente arbitrério. Por exemplo, se os clementos de R sio formas, disténcias e cores, X pode conservar essas pro- priedades ¢ representar formas por formas, distancias por distancias e cores por cores. E 0 que acontece no caso dos mapas modernos: a costa nao é uma linha, mas a linha do mapa conserva as relagdes de proximidade entre dois pon- tos quaisquer, situados nessa costa; as diferengas de altura do relevo nao se exprimem necessariamente por diferengas de colorago em R, mas podem se exprimir por diferengas de cores em X ete, Embora um mapa seja basicamente um sistema de representacao analdgico, contém também cle- mentos arbitrarios; as fronteiras politicas podem ser indi- cadas por uma série de pontos, por uma linha continua ow por qualquer outro recurso; as cidades nao sao formas circulares nem quadradas e, no entanto, séo estas duas formas gcométricas as que habitualmente representam — na escala do mapa de um pais — as cidades? ete. A construgao de um sistema de representagao X ade- quado a R é um problema completamente diferente da construgao de sistemas alternativos de representagao (X1, X2, XB... construidos a partir de um X original: Reservamos a expressao codificar para a construgdo desses sistemas al- ternativos. A transcrigao das letras do alfabeto em cédigo tclegrifico, a transcrigdo dos digitos em cédigo binario computacional, a produgdo de cédigos secretos para uso smeros de habitantes das populagtes, ov na import. cia politica das mesmas, pode se exprimir por Aiferencas de forma tals como ‘quadrados versus cieul arma, Neste caso se restab ny RA FERREIRO militar etc., so todos exemplos de construgio de cédigos de transcrigao alternativa baseados em uma representacaio {ja constituida (0 sistema alfabético para a linguagem ou 0 sistema ideografico para os ntimeros) A diferenga essencial € a seguinte: no caso da codifica- fo, tanto os elementos como as relagées ja estéio predetermi- nados; 0 novo c6digo nao faz. sendo encontrar uma repre- sentagao diferente para os mesmos elementos e as mesmas relagdes. No caso da criagao de uma representagdo, nem os elementos nem as relagies esto predeterminados. Por exemplo, na transcrigao da escrita em codigo Morse todas as configu- rages graficas que caracterizam as letras se convertem em sequéncias de pontos e tracos, mas a cada letra do primeiro sistema corresponde uma configuragéio diferente de pontos ¢ tragos, em correspondéncia biunivoca. Nao aparecem “ete: contrario, a construgdo de uma primeira forma de repre- sentagio adequada co, até se obter uma forma final de uso coletivo. novas" nem se omitem distingdes anteriores. Ao psttuma ser um longo processo hist6ri- A invengao da escrita foi um proc construgao de um sistema de representagao, nao um pro- cesso de codificagao. Uma vez construido, poder-se-ia pen- sar que o sistema de representacao 6 aprendido pelos novos ficagao. Entretanto, nao é assim. No caso dos dois sistemas envolvidos no inicio da escolarizagao (o sistema de repre: sistema de representagao da linguagem), as dificuldades que as criangas enfrentam sao dificuldades conceituais as da construco do sistema € por isso pode-se dizer, em ambos os casos, que a crianca reinventa esses usuarios como um sistema de co ‘ago dos nimeros e 0 semelhant REFLEAOES SOBRE ALFRBETZAGO wv sistemas, Bem entendido: nao se trata de que as criangas reinventem as letras nem os ntimeros, mas que, para pode- rem se servir desses elementos como elementos de um sistema, devem compreender seu processo de construgio e suas regras de producdo, o que coloca o problema episte- mol6gico fundamental: qual é a natureza da relacao entre o real € a sua representagao? No caso particular da linguagem escrita, a natureza complexa do signo lingufstico torna dificil a escolha dos pardmetros privilegiados na representagio. A partir dos tra- balhos definidores de Ferdinand de Saussure estamos habi- tuados a conceber o signo linguistico como a unio indisso- lavel de um significante com um significado, mas nao avaliamos suficientemente o que isto pressupde para a cons- truco da escrita como sistema de representagao. fo carater bifaisico do signo linguistico, a natureza complexa que ele tem e a relagao de referéncia o que est em jogo. Mas, o que a escrita realmente representa? Por acaso representa dife- rengas nos significados? Ou diferengas nos significados com relagdo a propriedade dos referentes? representa por acaso diferengas entre significantes? Ou diferengas entre os signi- ficantes com relaclo aos significados? AS esctitas de tipo alfabético (tanto quanto as escritas silébicas) poderiam ser caracterizadas como sistemas de representagdo cujo intuito original — e primordial — ¢ repre- sentar as diferencas entre os significantes, Ao contrario, as escritas de tipo ideografico poderiam ser caracterizadas como sistemas de representagio cuja intengao primeira — ou pri- mordial — 6 representar diferengas nos significados. No entanto, também se pode afirmar que nenhum sistema de escrita conseguin representar de maneira equilibrada a na- BAIA FERRERO tureza bifasica do signo lingufstico. Apesar de que alguns deles (como o sistema alfabético) privilegiam a representacao ferencas entre os significantes, ¢ outros (como 03 ideo- graticos) privilegiam a representacao de diferengas nos sig- nificados, nenhum deles é “puro’: os sistemas alfabéticos incluem — através da de recursos ortograficos — componentes ideograficos (Blanche-Benveniste ¢ Chervel, 1974), tanto quanto os sistemas ideogralicos (ou logograificos) incluem componentes fonéticos (Cohen, 1958; Gelb, 1976), A distingdo que estabelecemos entre sistema de codi- ficagao ¢ sistema de representagao nao é apenas termino- logica. Suas consequéncias para a ago alfabetizadora mar- cam uma nitida linha divis6ria. Ao concebermos a escrita como um cédigo de transcrigao que converte as unidades sonoras em unidades graficas, coloca-se em primeiro plano a discriminagao perceptiva nas modalidades envolvidas (visual e auditiva). Os programas de preparagao para a lei- tura ea escrita que derivam desta concepgao centram-se, assim, na exercitagdo da discriminagao, sem se questiona- rem jamais sobre a natureza das unidades utilizadas. A linguagem, como tal, é colocada de certa forma ‘entre pa- rénteses", ou melhor, reduzida a uma série de sons (con- trastes Sonoros a nivel do a0 dissociar o significante sonoro do significado, destruimos o signa linguistico. O pressuposto que existe por tras destas priticas é quase que transparente: se ndo hd dificuldades para discriminar entre duas formas visuais préximas, nem entre duas formas auditivas préximas, nem também para desenhé-las, nao deveria existir dificuldade para aprender aller, jd que se trata de uma simples transcri¢ao do sonoro para um oédigo visual. REFLEXOES SOBRE ALFAOETZAGAO ws Mas se se concebe a aprendizagem da lingua escrita como a compreensio do modo de construgao de um sistema de representago, o problema se coloca em termos comple- tamente diferentes. Embora se saiba falar adequadamente, € se facam todas as discriminagdes perceptivas aparente- mente necessérias, isso no resolve o problema central compreender a natureza desse sistema de representagao. Isto significa, por exemplo, compreender por que alguns elementos essenciais da lingua oral (a entonago, entre outros) nao sao retidos na representaco; por que todas as palavras so tratadas como equivalentes na representago, apesar de pertencerem a “classes” diferentes; por que se ignoram as semethangas no significado e se privilegiam as semelhangas sonoras; por que se introduzem diferengas na Tepresentagao por conta das semelhangas conceituais etc. A consequéncia tiltima desta dicotomia se exprime em termos ainda mais dramaticos: se a escrita 6 concebida como um cédigo de transcrigao, sua aprendizagem é concebida como a aquisicao de uma técnica; se a escrita como um sistema de representagdo, sua aprendizagem se converte na apropriagao de um novo objeto de conhecimen- to, ou seja, em uma aprendizagem conceitual. concebida 2. As concepcdes das criancas a respeito do sistema de escrita Os indicadores mais claros das exploragées que as criangas realizam para compreender a natureza da es s espontdneas, entendendo como tal as so suas pro MILA FERRERO que nao sao o resultado de uma cépia (imediata ou posterior).’ Quando uma crianga escreve tal como acredita que poderia ou deveria escrever certo conjunto de palavras,' esta nos oferecendo um valiosissimo documen- to que necessita ser interpretado para poder ser avaliado. Essas escritas infantis tem sido consideradas, displicente- mente, como garatujas, ‘puro jogo", o resultado de fazer “como se” soubesse escrever. Aprender a lé-las — isto é, a interpret4-las — ¢ um longo aprendizado que requer uma atitude teorica definida. Se pensarmos que a crianga apren- de s6 quando ¢ submetida a um ensino sistematico, ¢ que a sua ignordncia esti garantida até que receba tal tipo de ensino, nada poderemos enxergar. Mas se pensarmos que s silo seres que ignoram que devem pedir permis- so para comecar a aprender, talvez comecemos a aceitar que podem saber, embora nao tenha sido dada a ¢las a au- torizagio institucional para tanto, Saber algo a respeito de certo objeto ndo quer dizer, necessariamente, saber algo socialmente aceito como ‘conhecimento”, “Saber” quer dizer ter construido alguma concepgao que explica certo conjun- tode fendmenos ou de objetos da realidade. Que esse "saber" coincida com o “saber” socialmente valido 6 um outro pro- blema (embora seja esse, precisamente, 0 problema do saber" escolarmente reconhecido). Uma crianga pode co- 4 Mencionaremes agul ape Brn rant da limitagio pretgto de textos (l nlas (0 que nfo signifies paralolismo completo) 4. Gimportante sublinhar “canjunto esertaIsolada 6 se 1m conjunto de expressaes ceseritas para poder aval ta na canstrugio da representagio. EFLEXOES SOBRE ALEABENIZACAO nihecer o nome (ou 0 valor sonoro convencional) das letras, e ndo compreender exaustivamente o sistema de escrita. Inversamente, outras criangas realizam avangos substanciais no que diz respeito a compreensao do sistema, sem ter recebido informagao sobre a denomninagao de letras par- ticulares. Aqui mencionaremos brevemente alguns aspec- tos fundamentais desta evolucdo psicogenética, que tem sido apresentada e discutida com maior detalhe em outras publicacées. As primeiras escritas infantis aparecem, do ponto de vista grafico, como linhas onduladas ou quebradas (zigue- vague), continuas ou fragmentadas, ou entao como uma série de elementos discretos repetidos (séries de linhas verticais, ou de bolinhas). A aparéncia grafica nao € garan- tia de escrita, a menos que se conhegam as condicdes de produgao. O modo tradicional de se considerar a escrita infantil consiste em se prestar atencdo apenas nos aspectos graficos dessas produg6es, ignorando os aspectos construtivos. Os aspectos graficos tm a ver com a qualidade do trago, a dis- tribuigao espacial das formas, a orientagio predominante (da esquerda para a direita, de cima para baixo), a orienta- do dos caracteres individuais (inversdes, rotagaes etc.). Os aspectos construtivos tém a ver com o que se quis represen- tar € os meios utilizados para criar diferenciagdes entre as representagdes. Do ponto de vista construtivo, a escrita infantil segue uma linha de evolucio surpreendentemente regular, através 5, Conforme: E, Rereitoe A. Teberosky (1979 ¢ 1901}; £, Reeelzo (1982) 5; B. Perreino (no prelo 2 exLinreaaeino de diversos meios culturais, de diversas situagdes educativas e de diversas linguas. Ai, podem ser distinguidos trés gran- des periodos no interior dos quais cabem miltiplas subdi- visdes: * distingdo entre 0 modo de representacdo iconico © nao icbnico; © a construgio de formas de diferenciagao (controle progressivo das variacées sobre os eixos qualitativo € quantitativo); © a fonetizagao da escrita (que se inicia com um pe- riodo silabico ¢ culmina no periodo alfabético). No primeiro perfodo se conseguem as duas distingdes basicas que sustentardo as construgdes subsequentes: a diferenciagao entre as marcas graficas figurativas ¢ as ndo figurativas, por um lado, ¢ a constituigao da escrita como objeto substituto, por outros.* A distingao entre “desenhar" ¢ “escrever" ¢ de fundamental importancia (quaisquer que sejam 0s vocabulos com que se designam especificamente ‘essas ages). Ao desenhar se esté no dominio do iconico; as formas dos grafismos importam porque reproduzem a forma dos objetos. Ao escrever se esta fora do icbnico: as formas dos grafismos nao reproduzem a forma dos objetos, nem sua ordenagao espacial reproduz o contorno dos mes- ‘mos. Por isso, tanto a arbitrariedade das formas utilizadas como a ordenagao linear das mesmas so as primeiras ca- racteristicas manifestas da escrita pré-escolar. Arbitrarieda- de nao significa necessariamente convencionalidade. No 6, Para comproonder ayassagem das letras como dbjetos em sia Tetras como EFLENOES Sour ALTABETZAGKO 2 entanto, também as formas convencionais costumam fazer a sua aparigéo com muita precocidade. As criangas nao empregam seus esforcos intelectuais para inventar letras novas: recebem a forma das letras da sociedade e as adotam tal e qual Por outro lado, as criangas dedicam um grande esforgo intelectual na construgao de formas de diferenciagao entre as escritas e é isso que caracteriza 0 periodo seguinte. Esses critérios de diferenciagdo sao, inicialmente, intrafigurais ¢ consistem no estabelecimento das propriedades que um texto escrito deve possuir para poder ser interpretavel (ou seja, para que seja possivel atribuir-Ihe uma significagao). Esses critérios intrafigurais se expressam, sobre o ¢ixo quan titativo, como a quantidade minima de letras — geralmen- te trés — que uma escrita deve ter para que ‘diga algo" e, sobre 0 eixo qualitative, como a variago interna necessaria para que uma série de grafias possa ser interpretada (se 0 escrito tem “o tempo todo a mesma letra", ndo se pode ler, ou seja, nao é interpretavel). © passo seguinte se caracteriza pela busca de diferen- ciagdes entre as escritas produzidas, precisamente para ‘dizer coisas diferentes’. Comega entdo uma busca dificil ¢ muito claborada de modos de diferenciagao, que resultam ser interfigurais; as condigdes de legibilidade intrafigurais se mantém, mas agora é necessario criar modos sistema- ticos de diferenciacao entre uma escrita ¢ a seguinte, pre~ cisamente para garantir a diferenca de interpretagio que seré atribuida. As criangas exploram entao critérios que thes permitem, as vezes, variacdes sobre o eixo quantitati- vo (variar a quantidade de letras de uma escrita para outra, para obter escritas diferentes), , as vezes, sobre 0 eixo % FUAFeRREIRO MusTRAGAO 18 Escrita sem diferenciagées interfigurais (Adriana, 4, 5). 2) gg wis — Desee uma casa, (Deserhe) — O gue 6 isso? = Uma casinha, erLexOes Somme ALeABETZAGKO as ILUSTRAGAO 1B Escrita com letras convencionais mas sem diferenciagies interfigurais (Domingo, 6 anos). 5 ea E ® A 5 Eo A 5 E ® S Ew A AS A A SE “ (2) galinha MUA FeRREIRO Lusteacio 2 serta com diferenciagdesinterfigurais (Carmel, 6;2). AEe ge Fale Ee (ack ING ere Sie Fe * (2) Carmelo Ensique Castillo Avllano (ua tetra para cada nome), (6) mamae come tacos (coma tpica mexicana). EFLEXDES SOBRE ALTABETZAGEO qualitativo (variar o repertério de letras que s¢ utiliza de ‘para outra; variar a posigao das mesmas letras sem modificar a quantidade). A coordenagao dos dois mo- dos de diferenciacao (quantitativos e qualitativos) é to dificil aqui como em qualquer outro dominio da atividade cognitiva. Nestes dois primeitos periodos, o escrito nao esté regu- lado por diferengas ou semelhancas entre os significantes sonoros, f a atengao as propriedades sonoras do significan- te que marca o ingresso no terceiro grande periodo desta evolugiio. A crianga comega por descobrir que as partes da escrita (suas letras) podem corresponder a outras tantas partes da palavra escrita (suas sflabas). Sobre o eixo quanti- tativo, isto se exprime na descoberta de que a quantidade de letras com que se vai esorever uma palayra pode ter cor respondéncia com a quantidade de partes que se reconhece na emissao oral. Essas “partes” da palavra sao inicialmente as suas sflabas, I até chegar a uma oxi labas e sem repetir letras. Esta hipétese silébi- ca é da maior importancia, por duas razbes: permite obter um critério geral para regular as variagdes na quantidade de Jetras que devem ser escritas, ¢ centra a atengio da crianga nas variagdes sonoras entre as palavras. No entanto, a hipo- tese sildbica cria suas préprias condigdes de contradicao: contradigao entre o controle silébico ¢ a quantidade minima de letras que uma escrita deve possuir para ser “interpreté- vel" (por exemplo, 0 monossilabo deveria se escrever com uma tinica letra, mas se se coloca uma letra 86, 0 escrito “nao se pode ler’, ou seja, no ¢ interpretavel contradigao entre a interpretacdo sildbica ¢ as escritas pro- ILUSTRAGAO 3A ecrtasilabia (letras de forma utilizadas sem seu valor sonoro «onvencional): cada letra vale por uma silaba (Jorge, 6 anes). C KIA\Ins © (gate) (borhoteta) (cavalo) at) (6) el- ga to-be-be-te- che {0 gato bebe Leite) (As palavras foram mantidas no original espanol para que o processo aqui ado Faga sentido.) REFLEXOES SODRE ALFABETIZAGAO duzidas pelos adultos (que sempre terdio mais letras do que as que a hipotese silébica permite antecipar), No mesmo periodo — emibora nao necessariamente a0 mesmo tempo — as letras podem comegar a adquirir valo- res sonoros (silébicos) relativamente estaveis, 0 que leva a se estabelecer correspondéncia com o eixo qualitativo: as partes sonoras semelhantes entre as palavras comecam a se exprimir por letras semeThantes. E isto também gera suas formas particulares de conflito. Os conflitos antes mencionados (aos que se acrescen- ta. as vezes a aco educativa, conforme a idade que tenha a crianga nesse momento) vaio desestabilizando progressiva- mente a hipotese silabica, até que a crianga tem coragem suficiente para se comprometer em um novo processo de construgio.’ O periodo sildbico-alfabético marca a transi¢ao entre os esquemas prévios em via de serem abandonados 08 esquemas futuros em vias de serem construidos, Quan- do a crianga descobre que a silaba nao pode ser considera- da como uma unidade, mas que ela é, por sua vez, reanali- sivel em elementos menores, ingressa no tiltimo passo da mente estabelecido, E, a ¢ por um lado nao basta uma letra por também nao se pode estabelecer nenhuma regularidade duplicando a quantidade de letras por sflaba (ja que ha si Jabas que se escrevem com uma, duas, trés ou mais letras); pelo lado qualitativo, enfrentara os problemas ortograficos (a identidade de som nao garante identidade de letras, nem a identidade de letras a de sons) :n0 da equilbracio (Piaget, 1975). eMUAFERRERO REFLEXOES SOBRE ALFABETIZACKO muustragio 3B Escritasitabiea (vagais com valor sonoro conven cada letra vale por uma sitzba (Francisco, 6 2 ILUSTRAGAO 4 Eserita silabico-alfabética (Jilio Cesar, 6 anos). yar” a) CiPs & CaBbijo o PSa \GarBlehy (gato) (o (caval (peixe) ‘gato bebe leche {0 gato bebe leite) FR] QgQ” (As palavras foram mantidas no original espanhol para que 0 processo aqut slustrado faga sentido.) 3. As concepgées sobre a lingua subjacentes a pratica docente ‘Tradicionalmente, as discussdes sobre a pratica alfabe- 2 NLA FERRO em conta o que agora conhecemos: as concepgdes das crian- gas sobre o sistema de escrita, Dai a necessidade imperiosa de tecolocar a discussio sobre novas bases. Se aceitarmos que a crianga nao é uma tabula rasa onde se inscrevem as letras ¢ as palavras segundo determinado método; se acei- tarmos que o “facil” € 0 “dificil” nao podem ser definidos a partir da perspectiva do adulto mas da de quern aprende; se aceitarmos que qualquer informagao deve ser assimilada (e portanto transformada) para ser operante, entdio deve- ramos também aceitar que os métodos (como sequéncia de passos ordenados para chegar a um fim) nao oferecem mais do que sugestdes, incitagdes, quando nao praticas Tituais ou conjunto de proibigdes. O método nao pode criar conhecimento. A nossa compreensao dos problemas tal como as crian- Gas 08 colocam, ¢ da sequéncia de solugées que elas consi- deram aceitaveis (e que dao origem a novos problemas), é, sem diivida, essencial para poder ao menos imaginar um tipo de intervengao adequada a natureza do processo real de aprendizagem, Mas reduzir esta intervengao ao que tra dicionalmente denominow-se “o método utilizado" é limitar demais nossa indagagao. E util se perguntar através de que tipo de praticas a crianga é introduzida na lingua escrita, e como se apreson- ta este objeto no contexto escolar! Ha préticas que levam a crianga a conviccao de que o conhecimento é algo que os outros possuem € que 86 se pode obter da boca dos outros, sem nunca ser participante na construgao do conhecimen- 8. Um estudo de uma destas priticas — 0 dtado — encontra-se em Ferreiro (1984) EFLENOES SOBRE ALFABETZAGKO 8 to. Ha praticas que levam a pensar que “o que existe para se conhecer" jé foi estabelecido, como um conjunto de coi- sas fechado, sagrado, imutavel e nao modificivel. Ha pré- ticas que levam a que o sujeito (a crianga neste caso) fique de “fora” do conhecimento, como espectador passive ou receptor mecanico, sem nunca encontrar respostas aos "porqués" ¢ aos “para qués', que jd nem sequer se atreve a formular em voz alta. Nenhuma pratica pedagogica é neutra. ‘Todas estao apoiadas em certo modo de conceber o processo de apren- dizagem e 0 objeto dessa aprendizagem. Sao provavelmen- te essas priticas (mais do que os métodos em si) que tém efeitos mais duraveis a longo prazo, no dominio da lingua escrita como em todos 08 outros. Conforme se coloque a relaco entre o sujeito € o objeto de conhecimento, e con- forme se caracterize a ambos, certas praticas aparecerao como “normais” ou como “aberrantes". F aqui que a refle- xdo psicopedagogica necesita se apoiar em uma reflexao epistemolégica Em diferentes experiéncias que tivemos com profissio- nais de ensino’ apareceram trés dificuldades principais que precisam ser inicialmente colocadas: em primeiro lugar, a visio que um adulto, jé alfabetizado, tem do siste- ma de escrita; em segundo lugar, a confusao entre escrever ‘senhar letras; finalmente, a redugao do conhecimento 9. Varias acdes de capacitacio de professones da 1" sé ia assim como também por virias pessoas que trabalham nestes tenass em Isuenos Altes € no Mexica, UA FERRE do Ieitor ao conhecimento das letras e seu valor sonoro convencional. Mencionaremos brevemente as duas primeiras, ¢ ire- mos nos deter mais na terceira. Nao ha forma de recuperar por introspecgio a visio do sistema de escrita que tivemos quando éramos analfa- betos (porque todos fomos analfabetos em algum momen- to). Somente o conhemento da evolugio psicogenética pode nos obrigar a abandonar uma visdo adultocéntrica do proceso. Por outro lado, a confusdo entre escrever e desenhar letras (Ferreiro ¢ Teberosky, 1979, cap. VIII) é relativamen- te dificil de se esclarecer, porque se apoia em uma visio do processo de aprendizagem segundo a qual a c6pia ¢ a repe- tigdo dos modelos apresentados sao os procedimentos prin- cipais para se obter bons resultados. A andlise detalhada de algumas das muitas criangas mas que nao compreendem o modo de construgao do que copiam 0 melhor recurso para problematizar a origem desta confusao entre escrever e desenhar letras. 1ue so ‘copistas” experientes Os adultos ja alfabetizados tém tendéncia a reduzir 0 conhecimento do leitor ao conhecimento das letras ¢ seu valor sonoro convencional. Para problematizar tal redugio utilizamos, reiteradas uma situagdo que favorece uma tomada de consciéncia quase que imediata: formamos pe- quenos grupos (por volta de cinco pessoas em cada um) e entregamos materiais impressos em escritas desconhecidas para eles (arabe, hebraico, chines ete.) com a orientacao de tratar de Ié-los. A primeira reagdo — obviamente — 6 de rejei¢ao: como ler se no conhecem essas letras? Insistimos FEFLEXOES SOBRE ALASETZAGO 2 em que tratassem de ler, Quando afinal decidem explorar os materiais impressos comegam, de imediato, os intercam- bios nos grupos. Primeiro, a respeito da categorizagao do objeto que tém entre as mios: isso 6 um livro (de que tipo?), um jornal, uma revista, um folheto etc. Conforme a catego- rizagio combinada, apresenta-se de imediato a antecipagao sobre a organizagao do seu contetido: se é um jornal, tem de ter segdes (politica, esportes etc.); se 6 um livro, tem de ter 0 titulo no inicio, o nome do autor, a editora, o indice no inicio ou no final ete. Em todos os casos se supde que as paginas esto numeradas, o que permite encontrar a dife- renga gréfica entre nimeros ¢ letras. Em alguns casos, a orientagdo da escrita ndo esta clara (vai da esquerda a di- ou da direita a esquerda?) e se buscam indicadores para poder decidir (por exemplo, ver onde acaba um paré- grafo e comega o seguinte). Supde-se que haja letras maitis- culas ¢ mindisculas e sinais de pontuacdo, Supde-se que no Jornal aparega a data completa (dia, més e ano), enquanto que em um livro se busca apenas 0 ano de impressio, Se 1a fotografias ou desenhos, antecipa-se que o texto mais préximo tem a ver com o desenhado ou fotografado e, em se tratando de uma personagem piiblica (homem politico, ator, esportista etc.), pressupde-se que seu nome esteja escrito. Se a mesma personagem aparece em duas fotogra- fias, procura-se de imediato, nos textos que se supdem ser legendas das fotografia, alguma parte em comum: caso seja encontrada, se supde que af esta escrito o nome da perso- nagem em questo. E assim se prossegue. No final de certo tempo de exploragao (uma hora aproximadamente), os grupos confrontam suas conclusdes. Todos conseguiram chegar a conclusdes do tipo ‘aqui deve dizer...", ‘pensamos feMuArERREO. que aqui diz... porque... Os que mais avangaram nas suas tentativas de interpretagao sao os que encontraram fotos, Gesenhos ou diagramas sobre os quais apoiar a interpretagao dos textos, Foi explicado a eles que as fazem a mesma coisa. Todos se sentiram muito desorienta- dos ao explorar esses caracteres desconhecidos, e, em par- ticular, descobriram como pode ser dificil encontrar dois caracteres iguais quando nao se conhece quais so as varia- (Ges irrelevantes ¢ quais as variagdes importantes. Explica- mos a eles, ent&o, que as criangas também se sentem assim no inicio da aprendizagem. Mas todos puderam fazer ante- cipacao sobre o significado porque sabem o que 6 um livro, como esté organizado e que tipo de coisa pode estar escrito nele (0 mesmo vale para os jornais, revistas etc.). Esse tipo de conhecimento geralmente as criangas nfo tém. Desco- briram que construir antecipacées sobre o significado e tratar depois de encontrar indicagées que permitam justi- ficar ou rejeitar a antecipacao é uma atividade intelectual complexa, bem diferente da pura adivinhago ou da imagi- nagao nao controlada. Assim descobrem que o conheci to da lingua escrita que eles possuem, por serem leitores, ndo se reduz ao conhecimento das letras, Uma vez esclarecidas estas dificuldades conceituais iniciais, € possivel analisar a pratica docente em termos diferentes do metodol6gico. A titulo de exemplo realizare- mos a seguir a andlise das concepgdes sobre a lingua escri- ta subjacentes a algumas dessas praticas. A) Existe uma polémica tradicional sobre a ordem em que devem ser introduzidas as atividades de leitura ¢ as de esctita. Na tradigiio pedagégica norte-americana, a leitura precede regularmente a escrita, Na América Latina, a tra- ReFLENOES SOBRE ALFRBETZAGKO 2 digo tende a utilizar uma introdugio conjunta das duas atividades (¢ por isso tem se imposto a expresso lecto- escritura)."° No entanto, espera-se habitualmente que a crianga possa ler antes de saber escrever por si mesma (sem copiar). A inquietacdo dos professores subsiste: esta é uma das perguntas que formulam frequentemente (as criangas devem ler antes de escrever?), Se pensarmos que o ensino da lingua escrita tem por objetivo o aprendizado de um cédigo de transcricao, é possivel dissociar o ensino da lei- tura e da escrita enquanto aprendizagem de duas técnicas diferentes, embora complementares. Mas esta diferenciagao carece totalmente de sentido quando sabemos que, para a crianga, trata-se de compreender a estrutura do sistema de esorita, ¢ que, para conseguir compreender o nosso sistema, realiza tanto atividades de interpretacao como de produc. A propria ideia da possibilidade de dissociar as duas ativ: dades ¢ inerente a visdo do ensino da escrita como o ensino de técnica de transcrigao. B) Nas decisées metodolégicas a forma de se apre- sentar as letras individuais ocupa um lugar importante (€ preciso dar o nome ou 0 som?), bem como a ordem de apresentagdo tanto de letras quanto de palavras, 0 que implica uma sequéncia do “facil” ao “dificil”. Nao vamos considerar aqui a questo da defini¢ao de “facil” ou ‘di- oil” que se esta utilizando, ainda que seja um problema fundamental," fonte dos primeiros fracassos na comu- hha colsas que sao faceis em um momento e dilfcais poucos meses depois, Por x NLA FERREO nicagao entre aquele que ensina e aquele que apronde. Me permito reproduzir aqui uma ilustracdo que sintetiza maravilhosamente esta ruptura inicial da comunicagao!? (traduza-se a diferenca entre os animais como diferenca entre 08 “sistemas” disponiveis para ambos e a relagao de dominagao que essa diferenga encerra). Vamos considerar unicamente as suposigées no que diz respeito a informacao disponivel. A lingua escrita é um objeto de uso social, com uma existéncia social (¢ nao apenas escolar), Quando as crianas vivem em um ambiente urhano, encontram escri- tas por toda parte (letreiros da rua, vasilhames comerciais, 1 ¢ 0 comora a dar a essa letra , aparecem novos problemas: Ramin, tra do seu none (R) como" ra" ¢ tio ympreendle por que sua colega Rosa usa a mesma letra inieal quando de- 12, Tratase de ums propaganda que circulou hé muitos anos na Europa, ‘come parte de uma promogdo de cursos de linguas estrangeiras, FEFLEXOES SOBRE ALFABETI2AGAO 2 propagandas, antincios da tevé etc.). No mundo circundante estiio todas as letras, ndio em uma ordem preestabelecida, mas com a frequéncia que cada uma delas tem na escrita da lingua. Todas as letras em uma grande quantidade de estilos € tipos gréficos. Ninguém pode impedir a crianga de vé-las & se ocupar delas. Como também ninguém pode honestamente pedir a crianga que apenas pega informagao a sua professora, sem jamais pedir informacao a outras pessoas alfabetizadas que possa ter & sua volta (irmaos, amigos, tios...) Quando no Ambito escolar se toma alguma decisao sobre 0 modo de apresentagdo das letras costama-se tentar — simultaneamente — controlar 0 comportamento dos pais a respeito disso (os classicos pedidos de colaboragao dos pais em termos de proibiges, com autorizagaio expressa de fazer exclusivamente o mesmo que se fi de modo a nao criar conflitos no proceso de aprendizagem). Pode-se. talvez. controlar os pais, mas é ilusério pretender controlar a conduta de todos os informantes em potencial (itmdos, 5, avés...}, € é totalmente impossivel controlar a presenga do material escrito no ambiente urbano, Muitas vezes tem se enfatizado a necessidade de abrir aescola para a comunidade circundante. Curiosamente, no caso onde é mais facil abri-la é onde a fechamos. A crianga vé mais letras fora do que dentro da escola: a crianga pode produzir textos fora da escola enquanto na escola s6 é au- torizada a copiar, mas nunca a produzir de forma pessoal. A crianga recebe informagdo dentro mas também fora da escola, e essa informagdo extraescolar se parece & informa- Gio linguistica geral que utilizou quando aprendeu a falar. E informacao variada, aparentemente desordenada, as vezes [EMUAFERREIRO contraditoria, mas 6 informacao sobre a lingua escrita em Contextos sociais de uso, enquanto que a informagao esco- lar 6 frequentemente informagao descontextualizada. Por tras das discussbes sobre a ordem de apresentagdo Gas letras e das sequéncias de letras reaparece a concepeio da escrita como técnica de transcric&o de sons, mas também algo mais sério e carregado dé consequéncias: a transfor- macio da escrita em um objeto escolar ¢, por consequencia, @ conversao do professor no tinico informante autorizado, Poderiamos continuar desta maneira com a andlise de outras préticas, que sdo reveladoras da concepgfio que os que ensinam tém acerca do objeto e do processo de apren- dizagem. A transformagio destas praticas é que é realmen- te dificil, jé que obriga a redefinir o papel do professor e a dindmica das relagdes sociais dentro ¢ fora da sala de aula, E importante indicar que de mancira alguma podemos Concluir do que foi dito anteriormente que o professor de- veria se limitar a ser simples espectador de um processo espontineo. Foi Ana Teberosky, em Barcelona, a ase atrever a fazer uma experiencia pedagdgica baseada, a meu ver, em trés ideias simples mas fandamentais: a) dei- xar entrar ¢ sair para buscar informagao extraescolar dispo- nivel, com todas as consequéncias disso; b) o professor nZo é mais 0 unico que sabe ler e escrevor na sala de aula: todos podem ler e escrever, cada um ao seu nivel; ©)as criangas que ainda nao esto alfabetizadas podem contribuir com Proveito na propria alfabetizagao e na dos seus companhei- REFLENOES SOBRE ALFABETIZAGRO 1os, quando a discussio a respeito da representagao es da linguagem se torna pratica escolar." Conclusées Do que foi dito fica claro, do nosso ponto de vista, que mudangas necessarias para enfrentar sobre bases novas a alfabetizagao inicial nao se resolvem com um novo méto- do de ensino, nem com novos testes de prontidao nem com novos materiais didaticos (particularmente novos livros de leitura), B preciso mudar os pontos por onde nés fazemos pas- sar o eixo central das nossas discusses. Temos uma im gem empobrecida da lingua escrita: ¢ preciso reintroduzir, quando consideramos a alfabetizaco, a escrita como si tema de representagdo da linguagem. Temos uma imagem par de olhos, um par de ouvidos, uma mao que pega um instrumento para marcar ¢ um aparelho fonador que emni- te sons. Atras disso ha um sujeito cognoscente, alguém interpretagbes, que age sobre 0 que pensa, que const real para fazé-lo seu. a MUA FERRERO Um novo método nao resolve os problemas. i preciso reanalisar as praticas de introducao da lingua escrita, tra- tando de ver os pressupostos subjacentes a clas, ¢ até que Ponto funcionam como filtros de transformacao seletiva © deformante de qualquer proposta inovadora. Os testes de prontidao também nao sao neutros, A andlise de suas Pressuposigdes mereceria um estudo em particular, que escapa aos limites deste trabalho. E suficiente apontar que a “prontidao” que tais testes dizem avaliar é uma nogdo to pouco cientifica como a “inteligencia” que outros pre- tendem medi Em alguns momentos da historia faz falta uma revolu- do conceitual, Acreditamos ter chegado 0 momento de fazé-la a respeito da alfabetizacao, 16. Em uma discussio sobre este tema, Herm’ feliz expresso para nos aletar contra os periges da nogio de “prontidao para a (reading readiness: “Uma das coisas que teatamos de dizer nesta conte. inci & ientficamente) preparados para falar da prontiaso tors, o, até que isso aconteqa, seria melher supor que tadas as criangas 8 para a leitura, 20 invés de lasificar aqueles que ndo tem o que supomos que saber: Perreiro e Gémce Pa 13082, p. 49), Sinclair emprogoa wma fe ao estames te devem ter (In Si ° A compreensao do sistema de escrita: construgées originais da crianca e informacao especifica dos adultos* Emilia Ferreiro** Ana Teberosky*** A leitura ¢ a escrita tém sido tradicionalmente consi- deradas como objeto de uma instrucdo sistematica, como algo que deva ser ‘ensinado’ e cuja “aprendizagem” suporia © exercicio de uma série de habilidades especificas. Multi- plos trabathos de psicélogos e educadores tém se orientado neste sentido, Nao obstante, nossas pesquisas sobre os pro- cessos de compreensao da linguagem escrita nos obrigam aabandonar estas duas ideias: as atividades de interpretacao e de produgao de escrita comecam antes da escolarizacao, iicado em Lecura y Vida, ano 2, n, 1, 1981, Tradugao de Marisa do [Nascimento Paro, Professora titular da Departamento de Investigaciones CContto de Investigaciones y Bstudios Avanzados (CINVESTAV), Mé Licenciada em Ciéncias da Eeucaglo, Pesquisadora do Instituto Man pal de Educacién (IME), Barcelona neativas del ie MUAFEAREIRO como parte da atividade propria da idade pré-escolar; a aprendizagem se insere (embora nao se separe dele) em um sistema de concepgies previamente claboradas, e nao Pode ser reduzido 4 um conjunto de técnicas perceptivo- -motoras. A escrita no é um produto escolar, mas sim um obje- to cultural, resultado do esforco coletivo da humanidade. Como objeto cultural, a escrita cumpre diversas fancées Sociais ¢ tem meios coneretos de existéncia (especialmente nas concentragdes urbanas). O escrito aparece, para a crian- 2, como objeto com propriedades especificas ¢ como su- Porte de acdes ¢ intercdmbios sociais. Existem intimeras amostras de inscrigées nos mais variados contextos (letrei- 70s, embalagens, tevé, roupas, periddicos etc.). Os adultos fazem anotagoes, leem cartas, comentam os periédicos, Procuram um ntimero de telefone etc. Isto é, produzem ¢ interpretam a escrita nos mais variados contextos. E evi Gente que, por sis6, a presenga isolada do objeto e das acoes Sociais pertinentes nao transmitem conhecimento, mas ambas exercem uma influéncia, criando as condigdes den- tro das quais isto é possivel. Imersa em um mundo onde ha 8 presenca de sistemas simbolicos socialmente elaborados, @ crian¢a procura compreender a natureza destas marcas especiais. Para tanto, ndo exercita uma técnica especifica de aprendizagem. Como ja fez antes, com outros tipos de objeto, vai descobrindo as propriedades dos sistemas sim- Dolicos por meio de um prolongado processo construtivo, As catacteristicas dos processos cognitivos tém sido expos- tas pelas bem conhecidas pesquisas de J. Piaget ¢ seus co- laboradores. Utilizamos 0 marco conceitual da teoria psico- genética de Piaget para compreender os processos de EFLEXOES SOBRE ALFABENZRCAD s construgio do conhecimento no caso particular da lingua- gem escrita. Para descobrir como a crianga consegue interpretar e Produair escritas muito antes de chegar a escrever ou ler {no sentido convencional do termo), criamos situagées experimentais ¢ utilizamos 0 “métado clinico" ou de “explo- racdo critica” proprio dos estudos piagetianos. Depois de uma série de pesquisas realizadas em cast Ihano ¢ em francés, em Buenos Aires, Gidade do México, Monterrey, Barcelona e Genera, com criangas que moram em cidades ¢ so provenientes de diferentes meios sociais (de classe média ¢ da periferia urbana marginalizada), es- tamos em condigées de afirmar que existe um processo de aquisigio da linguagem escrita que precede ¢ excede os li mites escolares, Precede-os na origem; @ os excede em natureza, ao diferir de maneira notavel do que tem sido considerado até agora como 0 caminho “normal” da ap: izagem (e, portanto, do ensino). Através dos dados colhidos com populagoes infantis de diferentes meios sociais, pode-se estabelecer uma progres- so regular nos problemas que elas enfrentam e nas solugdes que as criangas ensaiam para descobrir a natureza da escri- ta. A ordem de progresséo de condutas nao impée efetiva- mente wm ritmo determinado na evolugao. Aqui, como em outros campos do desenvolvimento cognitivo, encontramos grandes diferencas individuais: algumas criangas chegam a descobrir os princfpios fundamentais do sistema antes de iniciarem a escola, ao passo que outras, estiio longe de con- seguir fazé-lo, E dificil resumir a multiplicidade de dados que possui- ‘mos no momento, dados estes que sustentam nossas hipo- Eun FERRERO. teses. Mencionaremos alguns deles para exemplificar de- terminados aspectos de toda esta evolugao.’ 1. Construgées originais das criancas Entre os resultados mais surpreendentes que obtive- mos (por meio de diferentes situagoes experimentais) se situam aqueles que demonstram que as criangas elaboram ideias proprias a respeito dos sinais escritos, ideias estas que nao podem ser atribuidas a influéncia do meio am- biente. Desde aproximadamente os quatro anos, as eriangas Possuem sdlidos critérios para admitir que uma marca grafica possa ou ndo ser lida, antes de serem capazes de ler os textos apresentados. O primeiro critério organizador de um material composto por varias marcas graficas 6 ode fazer uma dicotomia entre o “figurativo’, por vim lado, eo “nao figurativo", pelo outro, Isto é, aquilo que é ‘uma figu- ta’ nao é para se ler (embora possa ser interpretado). Para que se possa ler, so necessarios outros tipos de marcas, dcfinidos inicialmente por pura oposigio ao figurativo ¢, a8 vezes, na auséncia de qualquer termo genérico (“letras" ou “niimeros"), ‘Uma vez realizada esta primeira distingao entre “o que € uma figura” e “o que néo é uma figura", comeca um tra- balho cognitivo em relacdo a este segundo conjunto, ¢ Surge o critério que temos chamado de “quantidade minima izada, consultese nosso livo Las sistemas México: Silo 204, 1979, EFLEXOES SoBne aLrABETZACKO a de caracteres’, critério este que perdura por muito tempo ¢ que tem uma influéncia decisiva em toda a evolucao. Nao basta que haja letras: é preciso uma certa quantidade mini- ma (que em geral oscila por volta de trés) para que se pos- jd que “com poucas nfo se pode ler’ 0 cri caracteres". Nao basta um certo niimero de grafias conven- cionais: para que se possa ler, 6 necessario que essas grafias variem, que niio se repitam sempre as mesmas. sale ‘io seguinte refere-se a “variedade interna de Estas exigéncias aparecem diante de escritas descon- textuadas (isto é, simples cartées escritos), mas também surgem nas escritas feitas pelas criancas (em oposicao a c6pia de escritas produzidas por terceiros). De onde vem a ideia infantil de que no se pode ler com poucas letras? Os adultos nao podem transmitir esta ideia, j4 que qualquer adulto alfabetizado 1é correntemente palavras tais como “a” (artigo), ‘o", "em", “a" (preposicéio), “e" “ow" “de" etc. Ambas as hipoteses, a da quantidade e a da variedade, sto constru- 0es proprias da crianga, no sentido de elaboragées internas que nao dependem do ensino do adulto e nem da presenga de amostras de escrita onde podem aparecer anotagées de uma ou duas letras, com reduzida variedade interna. S40 construgdes proprias da crianga que tampouco podem ser explicadas por confusdes perceptivas. Em vez de confusao trata-se de uma convicgdo: nao ha aqui um problema per ceptivo, mas sim um problema conceitual. Exigir trés letras como minimo, além da variedade de caracteres, so exigén- cias puramente formais, sistematizagoes feitas pelas crian- as a0 operarem com base no proprio raciocinio. Assinale- mos também quanto a prética escolar pode afastar-se das ideias infantis ao decidir a priori que os artigos “o" ¢ “a” sao ~ MUA FERRERO “faceis" pr substantivos “ovo" © “asa” sao “fiiceis' precisamente por terem letras repetidas. Cabe aqui a pergunta: faceis para quem?, com que definigao de facilidade? Quando o adulto fornece informagoes especificas sobre uum texto, elas também sao processadas de acordo com 0 sistema de concepgdes infantis. Por exemplo, ao apresen- tarmos uma oragao escrita & crianga ¢ ao 1é-la em vor alia (acompanhados de um assinalar continuo do texto), cremos que estamos dando informagdes acerca daquilo que esta escrito, ‘Mas, para a crianga, nfo é isto que ocorre, porque ela faz, uma distingio — que no estamos habituados a fazer — entre “o que esti escrito” e “0 que se pode ler’, Por volta dos quatro ou cinco anos as criangas pensam que se pode escrever apenas os substantivos, Com uma série de subs- tantivos relacionados podemos ler uma oragao, sem que necessariamente todas as palavras que a compéem estejam representadas no papel. Consideremos um exemplo concreto para esclarecer isto. Apresentamos ¢ Iemos para a crianga a oragdio: a me- nina comprow um caramelo. A crianga a repete corretamen- te (repetindo inclusive o assinalar continuo que acabamos de fazer). Se Ihe perguntarmos onde esta escrito “menina" ou "caramelo", nao tera dificuldades em assinalar alguma das palavras escritas (ndo importa, no momento, saber se a indicagdo ou nao correta), mas nao Ihe ocorrera que o verbo, ¢ muito menos os artigos, estejam escritos. De acor- do com a anilise realizada pelas criancas deste nivel, exis- scritas em demasia, e bastaria apenas duas palavras: ‘menina’ e “caramelo* para se pod ler uma ora- FEFLEXOES Sowre ALPARETIZAGHO *° cdo completa. O que falta nao 6 a meméria imediata (jé que a crianga consegue repetir a oragao quando the pergunta- mos: “o que dizia o texto todo?"), E um problema de con- traste de concepodes. Para poder utilizar a informacao fornecida pelo adulto, a crianga deveria partir das suposig6es, basicas de nosso sistema escrito: que todas as palavras ditas esto escritas, ¢ que a ordem da escrita corresponde * a ordem da enunciagao. Com estas duas suposigdes — ¢ sem. conseguirem ainda decifrar o texto ~ as criangas de outros niveis conseguem localizar corretamente todas as palavras da oracao nas partes do texto. Mas estas suposigbes — que sio evidentes para um adulto jé alfabetizado — nao sao as primeiras, do ponto de vista genético. Sao 0 produto de uma ampla evolugao# Vejamos um exemplo de tipos extremos de conduta de diferentes criangas ante uma mesma oragao escrita. Erick (6 anos) ainda nao sabe decifrar o texto, mas ja trabalha com as suposicdes basicas que acabamos de mencionar, Para encontrar a posicao de cada uma das palavras do texto, repete a oraco para si, desde o come¢o, enquanto vai mos- trando uma palavra escrita para cada palavra dita. Este & uum procedimento muito eficaz, utilizado por varias oriancas, quando ja supdem que todas as palavras ditas estejam es- critas na mesma ordem em que foram emitidas. A oraco que nos serviré de exemplo é: Papai martelow a tabua? 3. Exemplos Gant, BT nino preescolar y su comprens 1079, reccién General de Baucacis Expect so ‘aun FERRERO Experimentador Erick (6 anos) (12 a oragéo.) 0 que diz? Diz tabua em algum lugar? Papai martolou a tabu: texto com o dedo indicador, repetindo para si a orado e logo (Repassa o Diz papai em algum lugar? (Mostra papai, sem pestanejar.) (Repassa 0 texto desde 0 comeco, (Repete 0 mesmo procedimento.) A Em um outro exemplo, uma menina da mesma idade nao concebe que o artigo “a” possa estar escrito — apesar de repetir corretamente a oragao: Experimentador Silvia (6 anos) (U2. oragio,) 0 que diz? Papai martelou tébua. Onde esta escrito papai? ‘Aqui (papai) E aqui? (martelou) Martelou. (tabu) Tabua, Ta. papai martelow a tébua Sim, papai martelou a tébua. Entdo, o que diz aqui? (papai) Fapai. Aqui? (cabua) abua. ? 16, 1ro que Silvia nao tem problemas para reter a ora¢do na memoria imediata. Simplesmente nao encontra entio, EFLEXOES SOBRE ALFABETIZACAO s como muitas 0 que pode estar representado neste ‘neg apenas uma letra, chega a seguinte conclusdo: a uma eseri- ta incompleta (ja que tem menos letras do que as necessa- rias) s6 pode corresponder uma parte incompleta de um nome (isto é, uma parte silabica: "t4" de "tabua”), No caso especifico da orago que tomamos como exemplo, as crian- ‘cas que nfo pensam que o verbo possa estar escrito encon- tram uma solugao imediata: transformar “martelou" no substantivo correspondente, “martelo", Assim raciocina Laura (também de 6 anos), para quem somente os nomes podem estar representados: fas criangas, que tentam compreender io” esorito com Experimentador Laura (6 anos) (Le a oragio.) 0 que diz? Papai martelou a tébua. Diz papa em algum lugar? Diz tabua em algum lugar? 0 que diz aqui? (martelou) E aqui? (a) 6 que diz aqui? (tabu) Aqui? (pape E aqui? (martelou) E nesse pedaco? (a) 0 que diz o texto todo? Papai martelou a tébva. Onde esta escrito tabua? (Mostra tabua). O que diz at? Tabua, E aqui? (a) Diz algo ou nao diz nada? Nao, no diz nada. Por que? Tem uma letra 56. st AFRO Citamos explicitamente criangas da mesma idade cro- Para que fique claro que a evolucao a que estamos nos referindo nao se expressa diretamente em termos de idade. Ainda que as respostas de Laura aparegam com mui- to mais frequéncia em criancas de 4 a5 anos, os niveis de nceitualizagao expressam. uma sequéncia psicogenetica- mente ordenada ¢ nao uma série cronolégica Estas respostas, sustentadas pela suposigao de que somente os substantivos esto escritos, sao completamente alheias a0 pensamento de um adulto alfabetizado. Entre- tanto, por mais estranho que nos parega, néio so as respos- tas mais primitivas, ja que supdem que as letras possam “dizer” algo, fora de qualquer contexto significativo. A difi- culdade de se interpretar essas letras sem outro apoio sim- bolico ou material esta claramente indicada no seguinte exemplo: dizemos a Héctor (de 5 anos) que acabamos de escrever: Um peissaro vod, e Héctor diz: Pois faga 0 passaro. Perguntamos-lhe se assim nao se pode dizer a oracao e ele responde: ‘ndo, porque nao tem nenhum passaro voando. Faga um passaro ¢ uma arvore’ Héctor esta nos indicando que nao bastam as condigdes do didlogo: se quisermos que ele aceite 0 que dissemos, devemos oferecer-the algo mais do que simples letras sobre um papel: pelo menos o desenho de um passaro, para que ele ‘possa dizer’ o que acabamos de ler. Héctor, como outras criangas do mesmo ni sabe que se Ié nas letras, mas para que se possa ler nas letras é necessdrio algo mais, precisamente aquilo que nao é para se ler, mas que po bilita interpretar o que é para ler Eo que nos expressa claramente Ramiro, quando folheamos juntos um livro de historias: FREFLEWOES SOBRE ALEARET2AGKO s Experimentador Ramiro (5 anos) (Pégina com texto figuras) Ha algo aqui que se poss ler? Moste tudo o que se pode lx. Sim (mostra alguns textos). (Qfostra todos os textos.) (Pécina apenas com texto) Pode-s ler agi? io. Por que? Nao tem nada, ada? Nao. Por qué? : 0 que falta? 0 que deveria ter. 0 que deveria ter? Cosas. Ceisas como estas? (texto) Nao. Como quai? Como estas (mostra figuras de outras paginas), possivel ler aqui? (figuras) Nao. Por qué? ‘No tom letra. Para que foram colocadas aqui? Para que as vissemos. Dificilmente se poderia ter, considerando tratar-se de uma crianga de 5 anos, uma defini¢a0 mais precisa do que é, em linguagem légica, condigao necessaria porém nao suficie ¢ ler somente nas letras (as figuras sto somente "para se ver’, ¢ ndo podem ser lidas porque “nao tém letras"); mas nao se pode ler um texto sem imagens, porque ndio tem “o que deveria ter” para se poder interpre- tar as letras. Até agora vimos como aparecem ideias propriamente infantis, construgGes originais ¢ nao meras copias das formagoes adultas, quando se trata de estabelecer as digdes de legibilidade’ ou de utilizar a informagao forneci- ‘on- EMUAFERRERO da por um adulto em um ato de Ieitura. Mas também nas produges escritas das criangas aparecem estas construgdes originais > Tais construgdes aparecem antes e depois que as letras se vinculem a representagao de aspectos parciais e formais da fala. Antes, porque em determinado momento as crian- ¢as procuram estabelecer a correspondéncia entre a quan- tidade de letras da palavra escrita e certas propriedades quantificaveis do objeto (assim, por exemplo, Antonio, de 4 anos, nos diz que se deve escrever “elefante’ com mais letras do que *borboleta’, porque “ele pesa uns mil quilos") Depois, porque a primeira vinculagio clara entre a escrita € 08 aspectos formais da fala leva a crianga a elaborar o que chamamos de “hipétese silabica’, segundo a qual cada letra representa uma silaba da palavra (momento no qual, por exemplo a letra p vale pela silaba pa porque é 0 ‘pa de pa- pai’, © servira entdo para escrever "pato’, mas nao para escrever "pipoca’, porque "6 necessdrio o pi", ¢ assim por diante). Como outros sistemas de escrita, 0 sistema alfabético 6 © produto do esforgo coletivo para representar 0 que se quer simbolizar: alinguagem. Como toda representacao, baseia-se em uma construgdo mental que cria suas préprias regras. Sabemos, desde Luquet, que desenhar nao é reproduzir 0 com produgies idiossincré tions, no is. O que falamos agi foi do consirugdes comuns a todas as crianas estudadas, om certo nivel de desen- te sentido, eemelhantes as construcdes igina’s estudadas por Piaget em ontras dominios cognitivos. Para uma andlise ddo desenvolvimento da escrita da crianga, consulte-se 0 Capitulo 1V do live ja citade na nota 1. EFLENDES SOBRE ALFARETIZAGRO = que s¢ vé, mas sim o que se sabe. Se este principio 6 verda- deiro para o desenho, com mais razdo 0 é para a escrita. Escrever ndo € transformar o que se ouve em formas grafi- cas, assim como ler também nao equivale a reproduzir com a boca o que o olho reconhece visualmente, A tio famosa correspondéncia fonema-grafema deixa de ser simples quan- do se passa a analisar a complexidade do sistema alfabético. Nao € surpreendente, portanto, que sua aprendizagem su- ponha um grande esforco por parte das criangas, além de um grande periodo de tempo e muitas dificuldades. 2. Informagées especificas No desenvolvimento que temos estudado aparece, pois, uma série de concepgties que nao podem ser atribuidas a uma influéncia direta do meio. Certamente so concepgbes acerca das propriedades, estrutura e modo de funcionamen- to de certo objeto, e & preciso que 0 cbjeto como tal (a es- crita em sua existéncia material) esteja presente no mundo externo para se poder fazer consideracdes a seu respeito. Entretanto, o que indubitavelmente ocorre é que esta refle- xo comporta uma construgio interna, cuja progressio ndio 6 aleatoria. ‘Ao contrario, existem conhecimentos especificos sobre alinguagem escrita que s6 podem ser adquiridos por meio de outros informantes (leitores adultos ou criangas maiores). Por exemplo, o fato de se saber que cada letra tem um nome especifico; que todas elas tém um nome genérico; que na oposigio entre os nomes genéricos das marcas, a diferenga xMUIAFERREIRO entre “letras” e "ntimeros’ é fundamental; que convencio- nalmente escrevemos de cima para baixo ¢ da esquerda para a dircita; que. junto com as letras aparecem sinais que nao sdo letras (sinais de pontuagao); que utilizamos as maidsculas para nomes préprios, para titulos e depois de um ponto etc. etc, Em todos estes casos trata-se da apren- dizagem de convengdes que nao afetam a estrutura do sistema (o sistema pode continuar a ser alfabético embora no utilize sinais de pontuagdo, embora se escreva da direi- ta para a esquerda, embora denominemos as letras de outra maneira, embora utilizemos as maidsculas com outro fim etc.). E no caso destas aprendizagens que, conforme a pro- cedéncia social das criangas, hé maior variabilidade indivi- dual e maiores diferengas. ‘Tomemos, para exemplificar, o problema da orientagio da leitura. A fim de averiguar quantas criangas conheciam esta direcao convencional, apresentamos-Ihes um livro de historias (com gravuras ¢ textos), solicitando-Ihes que mos- trassem com o dedo onde se comegava a lex, que diregao se tomava ¢ onde se terminava. Aos 4 0u 5 anos a orientagéio convencional (da esquerda para a direita ¢ de cima para baixo) raramente esta presente; ou melhor, quando apare combina com outras, com uma acentuada tendéncia para a alternancia. Esta alternancia consiste em dar uma conti- nuidade ao ato de assinalar; continuar do ponto onde se Parou, originando assim uma combinacao de diregao alter- nativa em cada linha ou coluna, Ocorrem atos de assinalar na diregao de cima para baixo, seguidos por outros de baixo para cima ¢ em sentido vertical, ao passar de uma pagina para outra ou de uma coluna para outra; ¢ da esquerda para a direita, seguidos por outros da diteita para a esquerda e eRLEXOES SOBRE ALFABENZKCKO sr em sentido horizontal, ao se passar de uma linha para outra. Em contrapartida, por volta dos 5 anos ¢ meio ou 6 as duas orientagdes jé sao conhecidas. Por outro lado, existe uma acentuada diferenga na distribuicgao das respostas de acordo com a procedéncia il dos sujeitos. Enquanto todas as criangas do grupo de 6 anos, pertencentes a classe média, conhecem as duas orientagdes convencionais, 36 algumas com a mesma idade, mas pertencentes a ciasse haixa, tém critérios claros a seu respeito. Para orientar-se dentro do texto é preciso saber que 6 sobre ele pode-se realizar um ato de leitura e este conhecimento nao ¢ manifestado por todas as criangas de 4 anos estudadas por nés. Algumas delas, grupos socialmente marginalizados, demonstram ter difi- dades para diferenciar atividades tao préximas: ler ¢ esctever. Quando Thes perguntamos: ‘onde ha algo para se ler?" (também em relacdo a um livro de histérias), respon- dem ‘com um lapis ‘momentos iniciais desta evolucdo, a atividade de escrita 6 privilegiada, Enquanto eserever € uma ago com resultado (marcas sobre uma superficie), modificadora do objeto, a Icitara nao produz resultados observaveis em relago ao objeto. Como se escreve sobre o papel, este nao sera *o antes ¢ depois do ato da escrita; no entanto, como ¢ Ié ja é algo escrito sobre um papel, o papel conti- nuard a ser 0 mesmo antes e depois do ato de leitura. Pro- vavelmente bastam poucos exemplos para se entender que. classe de atos chamamos de “escrever" (embora nao se en- tenda para que servem estas marcas e nem o que signifi- cam); contudo, so necessarios intimeros exemplos para se entender que classe de atos denominamos ‘ler’, Nao apenas ELA FERRERO porque existe leitura em vor alta ¢ leitura silenciosa, leitu- ra para terceiros ¢ Ieitura para si mesmo, mas também porque é preciso, no caso especifico da leitura em vor alta, fazer-se a diferenciagao deste ato de fala de outros atos de fala que também podem ser realizados diante de um texto (comentar, contar, perguntar etc.) A distancia da informagao que separa um grupo social de outro nao pode ser atribufda a fatores puramente cogni- tivos. Esta distancia diminui quando 0 que esta em jogo é © raciocinio da crianga; aumenta quando se necesita con- tar com informagées precisas do meio, Na verdade, o siste- ma de escrita tem um modo social de existénci que no seja necessario contar com uma informacao espe- cial para se aprender uma atividade t4o natural como ade marcar (deixar tragos sobre qualquer tipo de superficie), € embora estas marcas estejam longe de constituir escritas em sentido exato, é imprescindivel que a informagio seja socialmente transmitida para chegar a compreender ages to pouco “resultativas’ quanto a leitura, A crianca que cresce em um meio “letrado” est4 exposta a influéncia de uma série de ages. E quando dizemos ages, neste contex- to, queremos dizer interagdes. Através das interagbes adulto- -adulto, adulto-crianga ¢ criangas entre si, oriam-se as condigées para a inteligibilidade dos simbolos. A experién- cia com leitores datextos informa sobre a possibilidade de interpretagio dos mesmos, sobre as exigéncias desta inter- pretagiio e sobre as ages pertinentes, convencionalmente estabelecidas. Aqueles que conhecem a funcao social da escrita dao-Ihe forma explicita ¢ existéncia objetiva através de ages interindividuais. A crianga se vé continuamente envolvida, como agente e observador, no mundo “letrado’ EFLEXDES SOBRE ALFABETIZAGHO Os adultos Ihe dio a possibilidade de agir como se fosse leitor — ou escritor —, oferecendo muiltiplas oportunidades para sua realizagiio (livros de hist6rias, periédicos, papel e lapis, tintas etc.). O fato de poder comportar-se como leitor antes de sé-lo, faz com que se aprenda precocemente 0 essencial das praticas sociais ligadas a escrita. 3. Algumas implicacées pedagégicas A dimensao das questes levantadas pode suscitar de imediato uma pergunta: se a compreensio da escrita come- aa se desenvolver antes de ser ensinada, qual é 0 papel dos adultos, especialmente dos professores, no que se refe- re a aprendizagem? Nao se deve deduzir de nossos estudos que subestitnamos a importancia da escola. Ao contrario, cremos que ela pode cumprir um papel importante ¢ in- substituivel. No entanto, este nao deveria ser o de dar ini- cialmente todas as chaves secretas do sistema alfabético, mas o de criar condigdes para que a crianca as descubra por si mesma. Esperamos que os dados aqui apresentados sirvam para sustentar nossas asserg6es ¢ para abrir caminhos para re- flexes sobre suas implicagées pedagogicas. Os estudos comparativos com populagées de diversas procedéncias sociais e nacionais nos permitem afirmar que € muito 0 que a escola pode fazer para ajudar as criancas, especialmente aquelas cujos pais, analfabetos ou semianal- fabetos, nao possam transmitir-Ihes um conhecimento que cles mesmos ndo possuem. O professor 6 quem pode mi- oo Mua FERRERO norar esta caréncia, evitando porém ficar prisioneiro de suas proprias convicgdes: as de um adulto ja alfabetizado. Para ser eficaz, tera que adaptar sew ponto de vista ao da crianga, Tarefa nada facil, jé que poderia parecer impossivel reconstruir introspectivamente o estado de analfabetismo pelo qual todos ja passamos, E aqui que os dados anteriores podem ajudar fazendo ver a nacionalidade do que aparen- temente ¢ irracional, a coeréncia do que ¢ aparentemente inooerente e a dit ntemente dbvio Decidimos, a titulo de conclusao, assinalar alguns aspec- tos sobre os quais os profissionais deveriam estar alert a) Se pensarmos que a escrita remete de maneira obvia e natural & linguagem, estaremos supervalorizando as capacidades da crianga, que pode estar longe de ter descoberto sua natureza fonética. b) Em contrapartida, poderiamos menosprezar seus conhecimentos ao trabalhar exclusivamente com base na esorita c6pia sonorizagio dos grafemas, Enquanto a crianga ‘sabe” que a escrita 6 significa- tiva, 0 adulto a esconde atras do tracado de formas graficas ou da repetigao de fonemas isolados, ambos sem sentido. ©) Ao tratarmos como ininteligivel a produc escrita da crianga, na medida em que esta nao se aproxima da escrita convencional, estaremos desvalorizando seus esforcos para compreender as leis do sistema Imitando a mae que age “como se” o bebe estivesse falando quando produz seus primeiros balbucios, 0 professor teria que accitar as primeizas escritas in- fantis como amostras reais de escrita e nao como puros *rabiscos" [EFLENDES SOBRE ALTABETZAGKO a 4) Interpretar em termos de certo ow errado (em rela- 40 a0 modelo adulto) os esforgos iniciais para compreender, 6 negar-se a ver os processos ¢ inten- Ges que possibilitam a avaliagio dos resultados. ©) A énfase na reprodugao de tragados reduz a escrita a um objeto “em si’, de natureza exclusivamente grfica: insistir na correspondéncia fonema-grafema € apresentar a escrita como “espelho" dos aspectos sonoros da linguagem. Ela nem “reflete" apenas 08 fonemas e nem é um objeto “opaco", f um produto de uma construcao mental da humanidade, a partir de uma tomada de consciéncia das propriedades da Jinguagem. Como todo sistema simbél poe regras de representagao que tém sentido dentro do sistema (pensemos na diregdo convencional da es- querda para a direita, na utilizagao de maitiscula na separacdo de palavras, ¢ assim por diante). £) Os problemas que a crianca enfrenta em sua evolu- Bo nao esto sujeitos a qualificativos em termos de “simples” ou “complexos". So os problemas que ela pode resolver em uma ordem no aleatéria, mas internamente coerente. g) Finalmente, se s6 nos dirigirmos as criangas que compartilhem alguns de nossos conhecimentos (ou eja, a quem ja tenha percorrido praticamente sozi- nho grande parte do caminho), deixaremos de lado uma grande porcentagem da populacdo infantil es- tacionada em niveis anteriores a esta evolugao, condenando-a — involuntariamente — ao fiacasso. Processos de aquisicao da lingua escrita no contexto escolar* Estamos to acostumados a considerar a aprendizagem da leitura ¢ escrita como um processo de aprendizagem escolar que se torna dificil reconhecermos que 0 desenvol- vimento da leitura ¢ da escrita comega muito antes da escolarizagao. Os educadores so os que tém maior difi- culdade em aceitar isto, Nao se trata simplesmente de aceitar, mas também de nao ter medo de que sej Lembro-me de ter ouvido de uma professora que mente, seu proprio filho aprendeu a ler sozinho, antes de entrar na escola de 1° grau. Infelizmente, ela dizia, porque aprenden fora de todo controle sistemitico. Esta crianga ndo tem qualquer problema especifico de leitura; a tinica dificuldade aparente que apresenta (nao tracar as letras XXVII Rewno Ant BUA, em abril de 1982, 09 t ‘a new abject of knowledge") Tad lea reRRERO com a clareza ¢ a perfei¢ao esperadas por sua mae) é a buida a este fato horrivel: aprendeu sozinha, sem estar autorizada a fazé-lo. A ideia subjacente a esse modo de raciocinar e ainda muito difundida é a seguinte: necessitamos controlar 0 processo de aprendizagem, pois, caso contrério, algo de mau vai ocorrer, A institui¢o social criada para controlar 0 pro- cesso de aprendizagem é a escola. Logo, a aprendizagem deve realizar-se na escola. Felizmente, as oriangas de todas as épocas ¢ de todos 08 paises ignoram esta restrigdo. Nunca esperaram comple- tar 6 anos c ter uma professora a sua frente para comegarem a aprender. Desde que nascem sao construtoras de conhe- cimento. No esforgo de compreender o mundo que as rodeia, levantam problemas muito dificeis ¢ abstratos ¢ tratam, por de descobrir respostas para eles. Esto cons- truindo objetos complexos de conhecimento ¢ o sistema de escrita 6 um deles, Aqui € preciso estabelecer duas distingdes. A primeira remete a um problema epistemolégico fundamental. A segunda diz respeito 2 relacdio entre processos epistemol6- gicos © os métodos on procedimentos de ensino. Vejamos a primeira. A distingao a ser estabelecida é entre a construgao de um objeto de conhecimento ¢ a ma- neira pela qual fragmentos de informagaa fornecidos a0 sujeito sao incorporados ou n&o como conhecimento. Em- bora estreitamente relacionados, trata-se de processos dife- rentes. Em ambiente urbano, as criangas esto, desde seu nascimento, expostas a material escrito © a agdes sociais, vinculadas a esse tipo de material. Podem obter informagio EFLENOES SOBRE ALFABETZACAO acerca de alguns tipos de relagdes entre ages ¢ objetos (por exemplo, que enviar uma carta pressupde escrever algo em uma folha de papel, colocd-la num envelope ¢ ir ao correio depois, tudo isso sem sabrer exatamente 0 que significa ‘escrever", que classe de objeto é uma carta e, menos ainda, que tipo de instituigao 6 0 correio ou qual € 0 vinculo entre co carteiro e o destinatario da carta). o de um objeto de conhecimento implica muito mais que mera colecao de informagdes. Implica a construgdo de um esquema conceitual que permita inter pretar dados prévios e novos dados (isto ¢, que possa rece- ber informagio e transfor em conhecimento); um esquema conceitual que permita processos de inferéncia acerca de propriedades nao observadas de um determinado objeto ¢ a construgio de novos observaveis, na base do que se antecipou e do que foi verificado. Frequentemente se aceita que o desenvolvimento da lecto-escritura! comece antes da escola; todavia, considera-se apenas como a aprendigazem de diferentes informagoes nao relacionadas entre si, que logo serao reunidas por algum_ tipo de mecanismo nao especificado. Porém, a aprendiza- gem da leitura-e-escrita é muito mais que aprender a con- duzir-se de modo apropriado com este tipo de objeto cultu- ral (inclusive, quando se define culturalmente 0 termo “apropriado", ou seja, quando o relativizamos), & muito mais do que isto, exatamente porque envolve a construgao de um novo objeto de conhecimento que, como tal, no pode ser diretamente observado de fora. 1, ecto-scrinow em castelhano: liture-c-escrita (N. da “6 MLA FERRERO A distingao anterior esta em intima relagdo com a que se segue: a distingao entre métodos ou procedimentos de ensino ¢ 0 processo de aprendizagem. O propésito de man- ter o processo de aprendizagem sob controle traz implicita a suposigao de que os procedimentos de ensino determinam 08 passos na progressao da aprendizagem. Por sua vez, este ponto de vista baseia-se na convicgdo de que “nada esti dentro da mente se nao esteve antes fora dela’, Toda pes- quisa psicologica ou psicopedagégica orientada por esta suposigao implicita pareceria comprovar que assim ocorre efetivamente. No entanto, isto s6 se verifica quando as res- postas do sujeito sio analisadas apenas em termos de ‘cer- tas’ ou ‘erradas’, isto é, respostas esperadas, “boas” por oposigao as outras, que so consideradas tinica e exclusiva- mente em termos negativos ‘Todavia, quando a pesquisa é conduzida na base de outro tipo de pressupostos, ou seja, que as respostas do sujeito so apenas a manifestagao externa de mecanismos internos de onganizagao ¢ que as respostas podem ser clas- sificadas em termos de “corretas ou incorretas” somente quando 0 ponto de vista do observador é tomado como sendo 0 tinico legitimo — pode-se encontrar uma porcao de coisas muito estranhas, Foi Jean Piaget quem nos obrigou a reconhecer a importancia destas ‘coisas muito estranh: que ocorrem no desenvolvimento cognitivo, Por essa mes- ma razio obrigou-nos a abandonar esta manifestacao par- ticular do “egocentrismo" que pode ser chamada ‘adulto- centrismo’ (0 egocentrismo nao esté restrito apenas a um period da vida: reaparece, em niveis muito diferentes, tal como se pode ver claramente na histéria das Ciéncias So- ciais). Jean Piaget obrigou-nos a abandonar a ideia de que EFLEXOES SOBRE ALEABENZAGAD o nosso modo de pensar € 0 tinico legitimo e obrigou-nos a adotar o ponto de vista do sujeito em desenvolvimento. Isto é facil de dizer, mas muito dificil de aplicar coerente e sis- tematicamente. No caso do desenvolvimento da leitura-e-escrita, a di- ficuldade para adotar 0 ponto de vista da crianga foi to grande que ignoramos completamente as manifestacdes mais evidentes das tentativas infantis para compreender o sistema de escrita: as produgdes escritas das préprias crian- Até ha poucos anos as primeiras tentativas de escrever feitas pelas criangas eram consideradas meras garatujas, rita devesse comecar diretamente com letras como se a convencionais bem tracadas. Tudo 0 que ocorria antes era simplesmente considerado como tentativas de escrever e no como escrita real. Na melhor das hipéteses, era nsi- derada como atividade puramente grafica, relevante para a verdadeira escrita apenas na medida em que conduzia a um crescente controle dos instrumentos e espaco gra Nao se supunha que a execugdo de tais garatujas ocon simultaneamente com algum tipo de atividade cognitiva, Essas estranhas marcas graficas pareciam estar dispostas a0 acaso. Mais ainda: quando as criancas comegavam a tragar letras convencionais, porém em uma ordem nao a convencional, 0 resultado era considerado uma “ma" repro- dugao de alguma escrita que, por certo, teriam observado nalgum outro lugar. Mesmo agora, quando a expressiio invented spelling? crita inventada) tornou-se popular (pelo menos nos Es- 2. Invent op [MUA FERRERO tados Unidos), nao é facil encontrar educadores ¢ investi- gadores capazes de interpretar todas as sutilezas envolvidas nas produgées escritas que precedem qualquer tentativa de estabelecer uma correspondéncia entre letras e sons. Nossos estudos longitudinais com criangas de 3 a7 anos, cuja lingua materna era o castelhano (Ferreiro, 1982), permitiram-nos — além de outros resultados novos — con- firmaras hip6teses sobre 0 desenvolvimento, que haviamos formulado ao publicarmos nossas investigagbes transversais prévias (Ferreiro ¢ Teberosky, 1979). Sabemos agora que ha uma série de passos ordenados antes que a crianga com- preenda a natureza de nosso sistema alfabético de escrita © que cada passo caracteriza-se por esquemas conceituais espectfi jo desenvolvimento e transformagao consti- tuem nosso principal objeto de estudo. Nenhum desses esquemas coneeituais pode ser caracterizado como simples reprodugio — na mente da crianga — de informagies for- necidas pelo meio. Esses esquemas implicam sempre um Proceso construtivo no qual as criangas levam em conta parte da informagao dada, ¢ introduzem sempre, ao mesmo tempo, algo de pessoal. O resultado sio construgées origi- nais, tao estranhas a nosso modo de pensar, que, a primei- ra vista, parecem caéticas. Essas “coisas muito estranhas", que Piaget nos ajuda a interpretar em outros dominios, aparecem também no desenvolvimento da leitura-e-escrita. A historia desses esquemas conceituais nao é um processo ao acaso: essa histéria tem uma diregao, embora nao possa ser caracterizada como um proceso puramente maturacio- nal. Cada passo resulta da interacdo que ocorre entre 0 sujeito cognoscente ¢ 0 objeto de conhecimento: no proces- EFLEAOES SOBRE ALBETIZACKO °° 80 de assimilacdo (isto 6, no processo de elaboragao da in- formago), o sujeito transforma a informagao dada; as vezes a resisténcia do objeto obriga o sujeito a modificar-se tam- bém (isto é, a mudar seus préprios esquemas) para com- preender 0 objeto (isto é, para incorporé-o, para apropriar- -se dele). Um dos dados mais recentes que obtivemos foi este: muitas criangas que, a0 comegarem a escola de 1° grau, esttio em niveis conceituais muito elementares acerca do sistema de esorita, seguem durante o primeiro ano escolar a mesma progressdo que outras criancas apresentam antes de entrar para a escola; isto ocorre apesar de estarem ex- postas a agdes sistematicas, planejadas para fazé-las com- preender diretamente o sistema alfabético de escrita, Vamos apresentar alguns exemplos pormenorizados. Antes, porém, duas observagdes sdo necessarias. Em pri- meiro lugar, 0 desenvolvimento da leitura-e-escrita me preocupa ndo apenas por razdes teéricas mas também por razOes praticas: 0 analfabetismo ainda hoje é um grave problema na América Latina. O sistema da escola pitblica € o que me interessa, pois, se quisermos mudar a situacao escolar da maioria da populacio de nossos paises, esse sis- tema é 0 que deve ser mais sensivel aos problemas das criangas e mais eficiente para resolvé-los, Em qualquer pais, ft ntrar situagdes especiais, envol- vendo uma minoria de criangas: escolas com projetos-pilo- to, onde as coisas se passam de outro modo, professores treinados que se comportam de forma diferente etc, Estudar 05 problemas de alfabetizagio em nivel nacional nao é 0 mesmo que estudé-los em escala local ou em situagées particulares bem controladas. Se se considerar que as crian- NALA FERRERO as que apresentaremos a seguir poderiam ter recebido um rente e obtido, ao final, melhores resultados, umente de acordo, Mas nao estou interes- sada, aqui, na metodologia como tal e, sim, na distingao nevessaria entre o que é ensinado ¢ o que se aprende, ¢ esta la no caso de um ensino de tipo m: ional. Além disso, dentro do sistema piiblico de educacio, ‘meu interesse esta centrado naquelas criangas que tiveram lidades muito limitadas de estarem rodeadas por critos ¢ de serem seus usudrios: criancas de pais analfabetos ow semialfabetizados, criangas que tiveram uma oportunidade de frequentar uma in tuicdo pré-escolar. Meu interesse particular por tanto a razbes teo interna’ que se contrapde a ages ped: s € sistematicas que a ignoram; de outro lado, por- tagdo. Um tinico aspecto p Tinearidade na disposigao EFLEXOES SOBRE ALFABETIZACAO ILUSTRAGAO A1* OLGA LETICIA — I (setembro) (Olga Leticia) (Olga Leticia) Ch yy Wo wi (vaca) “Abu n yy wills (amosea) (mosca) nuunyuubhwnypyn (cetante) (elefante) heb uuu uu * Em toda as han a fim de assegurar plen EMA FERRERO vras escolares mais comuns (‘0s0").* A professora estava que Olga apren- 1 a desenhar algumas letras €, talvez, um certo tipo de alternancia de caracteres em uma série, Certamente, nao ha correspondéncia entre grafemas nora das palavras que lo termina ao chegar a su). Se mente, veremos que duas vezes no final a conheci da série sasesisosu para pensou que isso fosse uma ol que havia escrito duas coisas diferentes, apesar da identi- dade objetiva das ese FEFLENOES SOBRE ALFABETIZAGKO a Lusrragio Az OLGA LETICIA - It (novembro) Leticia) (Olga Leticia) &eYyrLoc( OF (Seg y mm (vaca) eeu; os is Os Yy wom) (touro) @§ Bois OS y (ostos) (borboleta) os a 515 OS Gy (eran (clefante) 345 est $esu (eee (mosca) SOC Cie. y mnea) (papai come tacos)

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